Fracasso Escolar - uma questão de Gênero

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  • 7/25/2019 Fracasso Escolar - uma questo de Gnero

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    1 8 5Educao e Pesquisa, So Paulo, v.29, n.1, p. 185-193, jan./jun. 2003

    S u c e s s o e f r a c a s s o e s c o la r : uma questo de gnero

    Marlia Pinto de CarvalhoUniversidade de So Paulo

    Entre os dias 24 e 28 de maro ltimo, a Coordenadoria Especialda Mulher e a Secretaria Municipal de Educao de So Pauloorganizaram o seminrio internacional Gnero e educao:educar para a igualdade, com o apoio do British Council e doEDGES (Grupo de Gnero, Educao e Cultura Sexual da Facul-dade de Educao da USP). Alm de outras pesquisadoras brasi-leiras, essa semana de debates contou com a presena de trs

    colegas da Inglaterra, as professoras Rosemary Preston, HilaryPovey e Carol Adams, e foi acompanhada por cerca de quatro-centas professoras e professores da rede municipal de ensino. Naltima manh de trabalho, expus para esse pblico entusiasmadouma palestra sobre o fracasso escolar das crianas de sexo mas-culino, a qual eu pretendia transformar posteriormente num tex-to, a fim de publicar nos anais do seminrio. Entretanto, ao rece-ber a transcrio da fita gravada com minha fala, espantou-me otom quase premonitrio que algumas passagens adquiriram fren-te a matrias recentes da grande imprensa brasileira, em especial

    a reportagem de capa da Revista da Folha, de 4 de maio ltimo.1Tendo em vista o carter pouco esclarecedor dessas matrias e ofato de que em nenhuma delas foram ouvidas as estudiosas degnero que pesquisam h anos em nossas Faculdades de Educa-o, pareceu-me oportuno divulgar com certa rapidez o textoresultante daquela palestra, ainda que mantendo um estilo bas-tante prximo exposio oral. Consciente dos riscos que issoimplica em termos de superficialidade e simplificao, agradeoa EDUCAO E PESQUISA pela oportunidade e pela ousadia defaz-lo. O texto que se segue a transcrio quase direta da

    palestra, com alteraes mnimas a fim de permitir a compreen-so. Espero que ele contribua para esse importante debate.

    1. O mesmo assunto fo i abordado narevista Veja( 4 /05 / 200 3 ) en t re ou trosveculos, sempre a partir da divulgaodo best-sellerde Steve Bidulph, CriandoMeninos.

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    S u c e s s o e f r a c a s s o e s c o la r :

    u m a q u e s t o d e g n e r o

    Gostaria de partir de algumas informa-

    es sobre as diferenas de desempenho esco-lar entre meninos e meninas no Brasil. Em re-lao aos anos mdios de estudo (grfico 1), oshomens tinham, em 1960, menos de trs anosde escolaridade mdia e as mulheres, menos dedois anos, o que significa que o acesso es-cola era em geral muito baixo e ainda pior paraas mulheres. Ao longo dos ltimos 40 anos, as-sistimos a uma ampliao muito grande doacesso escola: as mdias nacionais hoje es-

    to em torno de seis anos de escolaridade, masao mesmo tempo, ocorreu uma inverso entreos grupos por sexo indicando que as mulheresforam as maiores beneficiadas.

    Isso vai aparecer muito claramente nos

    dados sobre nveis de analfabetismo, divididospor faixas etrias (grfico 2). Temos, entre osjovens, taxas de analfabetismo menores, devi-do ao maior acesso escola em comparao aadultos e idosos. Mas considerando o recortepor sexo, nas faixas etrias acima de 40 anosvamos encontrar mais mulheres do que homensanalfabetos, ao passo que na faixa de 15 a 19anos temos quase o dobro de rapazes quemoas analfabetas. Isso preocupante porque

    a grande maioria desses jovens analfabetos sopessoas que passaram pela escola, que tiveram

    uma trajetria escolar marcada pela repetncia,pela evaso, que vo e voltam ao sistema deensino e no conseguem se apropriar da ferra-menta da leitura e escrita. Esse um indicador

    muito forte de que a escola est fracassandoperante um grupo grande de jovens e este gru-po concentra uma maioria de pessoas do sexomasculino.

    No que se refere defasagem entresrie e idade adequada, tomamos a porcenta-gem de pessoas que estavam freqentando uma

    srie anterior que deveriam (grfico 3). Osdados so de 1996, ento a questo da re-petncia era mais marcante do que hoje, namedida em que as polticas de ciclos e demelhoria do fluxo escolar apenas comeavam adifundir-se pelas diferentes redes de ensino dopas. Naquele ano, a diferena entre srie eidade j comeava aos 7 anos, e se ampliava aquase 10% a mais de meninos atrasados na suaescolarizao at os 16 anos, quando os ndi-

    ces tendem a se igualar entre ambos os sexos.Isso nos permite dizer que a diferena entre aspropores de homens e mulheres alfabetizadostem a ver com o percurso escolar que meninose meninas esto fazendo no nosso ensino,evidenciando uma trajetria mais longa e maistumultuada para as pessoas do sexo masculino.

    Essas informaes, na verdade, estodisponveis h pelo menos vinte anos; vm sen-do apresentadas e discutidas por pesquisadoras

    como Flvia Rosemberg (1982, 1994, 2001) emdiversos trabalhos. Mas esse debate no chega

    G r f ic o 1 .G r f ic o 1 .G r f ic o 1 .G r f ic o 1 .Grf ic o 1 . Anos mdios de estudo na populao de 5 anos e mais porsexo. Bras i l , 1960 e 1996

    G r f ic o 2 .G r f ic o 2 .G r f ic o 2 .G r f ic o 2 .G r f ic o 2 . Taxas de analfabetism o por idade e sexo, Brasil, 199 5

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    aos cursos de formao de professores, aos

    formuladores de polticas educacionais e mes-mo s pesquisas acadmicas. Como resultado,ns sabemos muito pouco sobre como se cons-troem esses processos, como explicar essas si-tuaes.

    Devemos considerar que esses dados sotodos muito gerais e que, para serem efetiva-mente entendidos, precisariam ser divididos porregies do pas, por rea urbana e rural, porclasse, raa/cor e etnia dos alunos e alunas, para

    que pudssemos perceber quais so os gruposmais atingidos pelas dificuldades escolares.E mais, hoje preciso utilizar outros

    indicadores, devido s polticas de melhoria dofluxo escolar (ciclos, promoo automtica e asdiferentes formas de combate repetncia eatraso escolar que se espalham pelo pas).Essas polticas trouxeram, sem dvida, um sal-do positivo ao garantir uma maior permann-cia das crianas e jovens na escola, mas ante a

    elas a defasagem entre srie e idade esperadae o abandono escolar j no so boas medidas

    de quem est tendo problemas na escola. Noh informaes em nvel macrosobre aquelascrianas que esto sendo indicadas para aulas dereforo, quando elas existem, ou aquelas que

    esto recebendo conceitos negativos como in-suficiente ou insatisfatrio. Esse tipo de infor-mao circula apenas no mbito da escola e svezes s da professora, que decide quem ela vaiatender no reforo ou no. Isso tem gerado, paraa pesquisa, uma dificuldade em estabelecerquem hoje enfrenta problemas no seu percursoescolar, particularmente porque sabemos que emmuitas redes de ensino a presso muito gran-de para que no se atribuam conceitos negati-

    vos, para que no se retenha ningum ao finaldo ciclo, ou s um nmero muito pequeno es vezes predeterminado de alunos por clas-se (Carvalho, 2001a).

    As questes que apresento a seguirdecorrem de um esforo que venho fazendodesde 1999, angustiada com essas informaessobre o fracasso escolar maior entre os meni-nos e com o fato de esse debate no ter se-qncia. Tenho buscado, de um lado, conhe-

    cer as discusses que vm ocorrendo fora doBrasil e que esto muito mais avanadas, comgrande repercusso na mdia e nas pesquisasacadmicas, tanto nos pases de lngua ingle-sa como na Frana. E de outro lado, procuroconhecer um pouco a realidade em algumasescolas: trabalho com pesquisas qualitativas,permanecendo na escola por perodos longos,fazendo entrevistas com alunos, alunas e pro-fessoras, observaes em salas de aula, etc.

    Nessas investigaes tenho trabalhado comaquelas avaliaes que ocorrem no cotidiano daescola, feitas pelas professoras e falo profes-soras porque estudo principalmente o ensinode 1a 4asrie, no qual so mulheres mais de95% dos profissionais. Sem dvida h umaoutra investigao a ser feita, sobre o desem-penho por sexo em testes padronizados comoSaeb (Sistema nacional de Avaliao do EnsinoBsico) ou o Enem (Exame Nacional do Ensino

    Mdio), estudos que certamente tambm pode-ro indicar elementos importantes. preciso ter

    Grf ico 3 .Gr f ico 3 .Gr f ico 3 .Gr f ico 3 .Grf ico 3. ndice de defasagem entre sr ie e idade adequada,B ras i l - 199 6

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    clareza de que a avaliao levada a efeito den-tro da escola no o mesmo que desempenhoem testes e, ao mesmo tempo, no o mesmoque aquisio de conhecimento. Essas trs coi-

    sas tm pontos em comum, mas no necessa-riamente indicam que as meninas aprendemmais do que os meninos pelo fato de recebe-rem conceitos melhores. Meu foco exatamen-te discutir qual o processo de avaliao queest sendo feito pelas professoras e o que estsendo levado em conta nessa avaliao.

    E minha aprendizagem tem sido que,com a substituio do sistema antigo (basea-do na repetncia e na avaliao por provas)

    pelo sistema de ciclos, sem uma discusso,sem uma melhoria nas condies de trabalhona escola, sem um espao de formao con-tnua, muitas vezes o que tem acontecido adiluio completa dos critrios de avaliao ea dependncia mais acentuada desses critriosperante a subjetividade, o repertrio que aprofessora j dispunha antes e sobre o qual elano tem um espao coletivo para refletir e cri-ticar. Estamos todos imersos numa sociedade

    que tem profundas desigualdades de raa,classe e gnero, estamos marcados por essasdesigualdades e, medida que no encontra-mos espaos coletivos para rever nossos con-ceitos, claro que a tendncia ser lanarmo, na avaliao de nossos alunos e alunas,daquilo que aprendemos em nossa prpria so-cializao. E acho que isso tem marcado ain-da mais os processos de avaliao agora, nocontexto do ensino por ciclos.

    Tr s e x p lic a e s f r e q e n t e s

    O que apresento a seguir uma tenta-tiva de mapear algumas questes, pois apesarde estar h alguns anos trabalhando com essetema, percebo que se trata de um campo com-plexo, exigente e comprometido ideologica-mente. No tenho a pretenso de fazer suges-tes, de dar alguma indicao mais concreta,

    mas apenas de apontar elementos para umareflexo inicial. Pensei em trs explicaes com

    as quais me deparo freqentemente, tanto nasconversas nas escolas quanto em algumas pes-quisas que j foram feitas no Brasil, a fim depensarmos um pouco sobre cada uma delas,

    como so insuficientes para dar conta dessequadro.

    No Brasil, quando vemos que os meni-nos tm maior atraso escolar, h mais rapazesanalfabetos, a primeira tendncia atribuir issoao trabalho infantil. Dados da OIT indicam que,num total de 2,9 milhes de crianas entre 5 e14 anos trabalhando no pas, dois teros sorapazes, concentrados na faixa acima de 14anos e majoritariamente envolvidos no trabalho

    agrcola. A maioria desses trabalhadores so dosexo masculino, ento deve ser por isso que osmeninos vo mal na escola. Ser? Em primeirolugar preciso levar em conta que essas esta-tsticas so extremamente precrias, muito pou-co se conhece sobre trabalho infantil no Brasil,que um trabalho muitas vezes informal e, emsua maioria, ilegal. Pensem por exemplo nasformas de trabalho dentro dos domiclios, sejaas meninas e moas empregadas como doms-

    ticas, seja o trabalho na agricultura ou nosnegcios familiares.Em segundo lugar, esses nmeros no

    captam o trabalho domstico no-remunerado,a participao das meninas nas tarefas doms-ticas na sua prpria casa. Isso no aparececomo participao no trabalho infantil e muito interessante pararmos para pensar queno sabemos exatamente quais so as suasconseqncias para a escolarizao das meni-

    nas. Na literatura j existente, possvel encon-trar hipteses totalmente opostas: de um ladoa afirmao de que o trabalho domstico difi-cultaria o desempenho das meninas na escola,pois trabalho duro que toma tempo e impe-de a realizao de lies de casa, obriga a fal-tar para cuidar do irmo mais novo, etc. Aomesmo tempo, hipteses opostas afirmam quea flexibilidade do trabalho domstico permiti-ria que as meninas permanecessem estudando,

    apesar de assumir essas tarefas em parte do dia,pois no outro horrio estariam na escola. E

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    mesmo o fato de elas ficarem confinadas emcasa fazendo o trabalho domstico as levaria ater uma percepo positiva da escola, como umespao de socializao, no qual encontrariam

    outros jovens e onde vislumbrariam a possibili-dade de libertarem-se dessa mesma situao(Rosemberg, 2001; Madeira, 1997). Isso levariaa um investimento escolar maior, seja pelo pra-zer imediato de ir escola, de sair de casa, sejapela percepo da importncia da escolaridadepara poder exercer algum tipo de ocupaomelhor remunerada.

    Mas se no temos clareza sobre o pesoque o trabalho domstico tem para a escolarida-

    de das meninas, tambm no temos clarezasobre o peso que o trabalho remunerado temsobre os meninos e rapazes, porque ao mesmotempo em que afirmamos que o trabalho remu-nerado dificulta o estudo, em muitas famlias decamadas populares o trabalho no percebidocomo contraditrio com a escolarizao oumesmo com a infncia (Auster, 1992; Coelho,1999). Particularmente diante do perigo dasruas, da violncia, o esforo em encaminhar o

    jovem para um trabalho pode significar, porparte de algumas famlias, um esforo educadore no contraditrio com a escola, at para a pr-pria aprendizagem da disciplina do trabalho.Finalmente, j temos indicaes suficientes deque a opo pelo trabalho remunerado muitasvezes vem como decorrncia de uma trajetriaescolar j marcada pelo fracasso, pelas dificulda-des e repetncias. Por isso estou convencida deque nenhuma explicao simples vai nos ajudar

    nessa situao, preciso entrar nos significados,nos meandros e nuances para comear a enten-der os nossos alunos e alunas.

    Uma segunda explicao que tambmaparece muito no Brasil a que afirma que asmeninas seriam mais adaptadas escola.2Osmeninos so mais indisciplinados, mais desor-ganizados e as meninas tm todo um compor-tamento que facilita o ser aluno, o que osfranceses definem como ofcio de aluno. As

    meninas j viriam da prpria organizao fami-liar e da socializao primria mais preparadas

    para exercer esse ofcio, porque seriam maispassivas, obedientes, calmas, silenciosas, ordei-ras, caprichosas, minuciosas (SILVA et al.,1999). Vejam que imagem de mulher vem

    desse discurso, que imagem de ns mesmas!Ao mesmo tempo que os meninos seriam agi-tados, agressivos e indisciplinados, ns sera-mos calmas, obedientes e passivas professo-ras e alunas e seramos mais adequadas paraa escola.

    Mas o que eu tenho encontrado em mi-nhas pesquisas, na verdade, no esse modelo deensino. As crianas que as professoras avaliamcomo bons e boas alunas so crianas que elas

    mesmas definem como participativas, crticas, quetm certa liderana no grupo, que ajudam a fa-zer questionamentos. No so as crianas que re-petem bem o que as professoras dizem, acho queessa no a pedagogia que predomina na nos-sa escola. No vamos negar que existe ainda essemodelo de menina mais obediente, mais passiva,mas no o nico, assim como tambm no onico modelo de escola e de professora.

    Da mesma forma, nem todos os meninos

    so indisciplinados, irrequietos e agressivos, nemtodos os meninos correspondem ao plo opostodessa feminilidade passiva. Pelo contrrio, quasesempre o que as professoras tm me indicado que os bons mesmo, os timos alunos, someninos. Quase sempre quando me descrevemsuas classes, elas colocam os meninos nos doisplos, o dos excelentes e o dos muito compli-cados, que tm muita dificuldade. E as meninaspermanecem no crculo mediano: no so to

    brilhantes mas tambm no do tanto problema(Carvalho, 2001b). Isso mostra que h um grupode meninos que tem conseguido articular algumtipo de afirmao da sua masculinidade com umdesempenho escolar muito positivo do ponto devista das professoras e indica tambm que preci-samos ainda entender os mltiplos conceitos demasculinidade que circulam entre os nossos alu-nos. No entend-los como um nico tipo de

    2 . Esse tipo de interpretao herd eiro de autores com o os francesesBaudelot e Establet (199 1), bastante conhecidos no Brasil.

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    masculinidade fechado, estereotipado, mas na suadiversidade.

    Essas duas explicaes expostas at aquia que remete as dificuldades escolares dos

    meninos insero no mercado de trabalho e aque afirma uma incompatibilidade entre os mo-delos de masculinidade aprendidos na famlia e asexigncias escolares tm um outro problema,uma coisa muito comum entre ns, professoras:ou a dificuldade est no trabalho ou est na fa-mlia, ela nunca est na escola. Com esse tipo deexplicao a gente se exime da culpa, mas agente tambm no pode fazer nada, o meninotem que trabalhar e vai mal na escola e ponto

    final. O menino agressivo porque a famlia en-sina a ser assim, e as meninas so obedientes epassivas porque j chegam assim na escola. Nose cria um espao para refletir sobre qual aresponsabilidade da escola nessa conversa: noque a nossa prpria atitude como educadoras,como educadores, as relaes entre as crianas nasala de aula, no ptio de recreio, no que tudoisso contribui para a formao desses modelos defeminilidade e de masculinidade diversificados.

    claro que isso est o tempo todo em construo.Est em construo para ns, adultos, quantomais para as crianas. No vem pronto de casa,ao contrrio, est sendo elaborado na escola tam-bm. Por exemplo, a relao entre ser masculinoou feminino com ter um caderno bonito, ter umanota boa no foi aprendida em casa, so elemen-tos escolares. Em que medida nossa prpria ati-tude est participando nessa construo? Achoque esse ponto que devemos nos colocar, para

    no atribuir sempre a responsabilidade s outrasinstituies e tirar ao mesmo tempo a nossa cul-pa e o nosso poder de transformao, para nonos deixar impotentes.

    Em terceiro lugar, queria mencionar umaexplicao presente tambm em alguns estudosbrasileiros e internacionais. um raciocnio queprocura inverter essa explicao baseada na pas-sividade das mulheres, na idia de que as meninasseriam mais adaptadas escola pela passividade e

    obedincia. Algumas autoras brasileiras partiramdaquela constatao de que as meninas ficam

    confinadas em casa, seja pelo trabalho doms-tico, seja por uma educao em que a famliarestringe muito a circulao das meninas, pre-sente principalmente nas camadas populares.

    Enquanto os meninos saem para jogar futebol eempinar pipa, as meninas tm o espao muitomais restrito de circulao e brincadeira e porisso elas teriam uma viso mais positiva da es-cola, como um espao de socializao e at delazer (Heilborn, 1997; Madeira, 1997), ao mes-mo tempo que mais igualitrio, um lugar emque seria possvel conviver com os meninos e teralgum tipo de igualdade de tratamento, diferen-temente da famlia.3Ou ainda se busca afirmar

    uma percepo das mulheres de que a escolari-dade fundamental para sua insero no mer-cado de trabalho, particularmente para uma in-sero mais qualificada, pois sabemos que omercado de trabalho muito mais exigente comas mulheres e claro que, a sua maneira, as mo-as e os rapazes esto percebendo isto.

    Sem dvida, essa explicao tambmpode dar conta de uma parte da realidade, masse arrisca a fazer simplesmente o inverso da ex-

    plicao anterior. Samos de um esteretipo ne-gativo da feminilidade, de uma idia de mulhe-res simplesmente passivas e obedientes, para umesteretipo positivo. O esteretipo semprehomogeneza tudo, polariza, no permite umapercepo mais nuanada da realidade. Talvezesta hiptese explique alguns dos movimentospositivos que mes de crianas do sexo femini-no e alunas tm feito em relao escola, masacho que tambm insuficiente. Na minha opi-

    nio devemos levar muito a srio as crticas deuma sociloga francesa chamada Marie Durut-Bellat (1994), que aponta o risco desse tipo deexplicao que vimos desenvolvendo at aquiestar mais baseado em idias e posicionamentosa priori a valorizao ou desvalorizao pr-via da feminilidade e da ao dos sujeitos , doque em concluses possveis de deduzir daqui-lo que foi observado e pesquisado.

    3 . Flv ia Rosemberg (199 0) desenvolveu essa idia a par t i r de um asugesto de Mariano Enguita.

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    P o n t o s p a r a r e f le t ir

    Enfim, esses trs pontos de reflexo queexpus so apenas uma pequena margem de um

    problema muito maior. H ainda muita coisa a seconhecer melhor, por exemplo, a relao entre ascrianas, as culturas infantis. Perceber comoaquele menino que vai bem na escola e elo-giado pela professora acaba sendo desprezadopelos colegas, chamado de bicha ou de mu-lherzinha, e para afirmar sua masculinidadeacaba tendo que recorrer at ao mau desempe-nho escolar, indisciplina. Como ser que istoacontece? Como as crianas esto articulando

    entre si esses conceitos? O que a escola podefazer para discuti-los de forma produtiva? Poroutro lado, como as famlias esto percebendoa importncia da escola e do trabalho para seusfilhos e filhas? Como diferentes tipos de famli-as ou, para evitar toda explicao generalizante,como as famlias com as quais eu estou traba-lhando percebem isso e diferenciam meninos demeninas? Como isso influencia os resultados dasminhas alunas e alunos?

    Com tantas questes, acho que a pri-meira grande tarefa que est posta para ns trazer a questo de gnero para o centro do de-bate sobre fracasso escolar. Se existe algumatradio no Brasil de perceber a questo do fra-casso escolar como uma questo fortemente ar-ticulada com a temtica de classe, ainda estpor ser feita a complexificao desse conceitomediante sua articulao com outras hierarquiassociais. O que eu tenho visto nas classes de re-

    foro, nas classes de acelerao quando elasestavam no auge, so principalmente meninos(do sexo masculino) negros e pobres. Como des-fazer esse n e pensar essa questo com todasua complexidade, sem cair no preconceito e naculpabilizao das vtimas, ainda um desafioterico e prtico para ns.

    Mas preciso tambm saber que setrata de um campo minado. A possibilidade dese cair em explicaes que na verdade cami-

    nham para trs, muito grande. Tivemos aquidurante todo o seminrio a oportunidade de

    entrar em contato com a experincia inglesa,com o debate que j ocorre com muita foranos pases anglo-saxes, uma experincia deanos de discusso sobre essa temtica que nos

    alerta claramente para os riscos do conser-vadorismo, de um abordagem que tende acolocar esse problema em termos de meninosvtimas de uma sociedade e uma escola femini-lizadas, dominadas pelas mulheres ou pelofeminismo.

    Na medida em que, no Brasil, a mdiamuito pontualmente comenta essa questo, otema do fracasso escolar dos meninos aindano se transformou num pnico moral como

    caracterizaram nossas colegas britnicas. Aindaest em nossas mos pensar de uma maneiraprogressista e transformadora essa questo,porque ela no est totalmente amarrada a umareforma educacional tecnicista nem baseada naaquisio de contedos posteriormente avalia-dos em testes padronizados, como l. Ao mes-mo tempo, no est vinculada a uma crtica aomovimento feminista, que teria transformado asescolas em espaos hostis aos meninos. Pelo

    contrrio, sabemos que no Brasil muito pe-quena a difuso das idias do movimento demulheres nas escolas, das preocupaes femi-nistas com a transformao de currculo e pr-ticas escolares; e mesmo assim ns temos ummelhor desempenho das meninas.

    Por estarmos ainda fora desse embatedireto com propostas conservadoras e comacusaes feminilidade ou s mulheres pro-fessoras, ainda temos tempo e condies para

    o trabalho reflexivo. Pela minha experinciacomo formadora de educadores, aprendi que,antes de comear a pensar sobre os nossosalunos, antes de um debate sobre como modi-ficar o currculo, como modificar os materiaisdidticos, como me relacionar diferentementecom os meus alunos, preciso fazer uma dis-cusso muito profunda sobre a prpria identi-dade de gnero. Particularmente no caso dagrande maioria em nossa categoria, que so

    mulheres, preciso refletir: somos professoras,somos diretoras de escola, o que isso nos traz?

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    Ns mesmas valorizamos as caractersticas so-cialmente articuladas feminilidade, como aintuio, o cuidado, o envolvimento emocionalcom o trabalho educativo? Como nos relaciona-

    mos com os homens professores e especialistasde educao? Como percebemos nossa prpriacategoria, nossas lideranas, nosso movimentoorganizado? Comear a pensar sobre as nossasprprias concepes de gnero, criar espaoscoletivos para essa reflexo me parecem ser astarefas iniciais por meio das quais podem des-lanchar mudanas na prtica.

    Caso contrrio corremos o risco de, aocolocar a discusso do fracasso escolar dos me-

    ninos em primeiro plano, ouvir que a culpa exa-tamente da feminizao da escola, uma explica-o conservadora que s vezes aparece na im-prensa brasileira tambm, at porque ela copia etraduz muita coisa que vem de fora. Nessa abor-dagem, a escola, por ter professoras mulheres, noofereceria modelos masculinos para os meninos eeles, principalmente nas camadas populares, se-riam criados s pelas mes, cresceriam sem mo-delos masculinos, cresceriam marcados pelas fa-

    lhas das mulheres que os educaram. No achoque seja pouco provvel aparecer no Brasil a pro-posta de aumentar o nmero de professores dosexo masculino, ou formar classes e escolas s demeninos. Esse caminho no est excludo donosso horizonte.

    Para concluir, gostaria de reafirmar porque o gnero deve ser colocado como uma dis-cusso central para o debate educacional hoje.Seja na escola, na sala de aula, na formulao de

    polticas pblicas, seja na pesquisa acadmica,dois temas atualmente so cruciais, e o so por-que tm um reflexo social muito grande. Um deles o fracasso escolar, que vimos discutindo, e ooutro, que me parece fortemente articulado aoprimeiro, a questo da violncia no mbito daescola, um tema que se vincula aos debates so-bre a juventude e a violncia social como umtodo. Esses dois temas o fracasso e a violnciaescolares vm sendo discutidos no Brasil como

    se eles nada tivessem a ver com as relaes degnero, quando na verdade estamos falando o

    tempo todo de determinadas formas de masculi-nidade. Essas masculinidades fazem parte da tra-jetria de um grupo significativo dos nossos ra-pazes, principalmente aqueles que esto mais

    abaixo no conjunto das hierarquias de classe e deraa, um caminho que muitas vezes desembocaem atitudes anti-escola, em fracasso escolar,transgresso e, no limite, em violncia social.Acho muito estranho como conseguimos falardisso sem ver que tanto as vtimas quanto osautores em situaes de violncia so na suamaioria rapazes, homens e que h modelos demasculinidade envolvidos a que, claro, cor-respondem tambm a certos modelos de femini-

    lidade (Zaluar, 1992). Portanto, h relaes degnero que, se evidentemente no explicam es-ses fenmenos como um todo, no podem serdispensadas para entend-los. Por isso est pos-ta diante de ns a tarefa de trazer a discusso degnero e fundamentalmente uma discusso so-bre as masculinidades para o centro do deba-te educacional, tornando-a visvel.

    Essa no uma tarefa fcil, particular-mente porque no temos muita tradio, no cam-

    po educacional, sequer de discutir gnero, menosainda de entrar na discusso de gnero a partirdas masculinidades. A discusso de gnero histo-ricamente caminhou a partir da visibilizao dasmulheres a histria das mulheres, a violnciacontra as mulheres e, mesmo em outros pases,s aps algumas dcadas comeou a ser aborda-da a questo das masculinidades. O desafio queest posto para ns entrar diretamente no de-bate sobre as masculinidades e procurar nos apro-

    priar dele, estabelec-lo em termos democrticose igualitaristas, em termos de uma educao parao respeito diversidade e ao convvio com as di-ferenas, antes que ele caia em mos conserva-doras. Pois, numa sociedade to hierarquizadaem termos de classe, sexo e raa como a nossa, muito grande a probabilidade da discusso so-bre o fracasso escolar dos meninos ser tomadacomo veculo para reforar a masculinidade he-gemnica e como pretexto para acusar tanto as

    mulheres professoras quanto as famlias negras epobres.

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