Fragmento de Entrevista de Osman Lins a Esdras Do Nascimento

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Fragmento de entrevista de Osman Lins a Esdras do Nascimento (O Estado de São Paulo – 12/05/1974). A última pergunta (Evangelho na taba, pág.: 180-181): Esdras Nascimento: “ O Avalovara é ser composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaros”. (Avalovara, 1ª edição, página 282). Aí está a estrutura do romance. E o autor pretende “jogar umas palavras contra as outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados”’. (Idem, pág.:211). Na definição da estrutura do livro, o autor evidencia uma preocupação altamente intelectualizada pelo aspecto de construção da sua obra. Na descrição do seu processo de utilização das palavras, deixa uma porta aberta à magia, ao místico, ao fantástico. Trata-se de proposições a serem repensadas ou de incoerência a ser mantida e aprofundada? OSMAN LINS: Mais uma vez você me atribui palavras do meu personagem. Vamos por partes. Quando diz Abel que o Avalovara é um pássaro feito de pequenos pássaros, miúdos como abelhas, ele fala do pássaro Avalovara, não do romance Avalovara. Mas, realmente, esse pássaro, além de outras coisas, é uma imagem do romance. Não deste romance apenas. E sim do romance em geral. O romance aglutina narrativas menores, breves unidades temáticas, pássaros miúdos. Não é o meu romance que é assim. Qualquer romance é isso. E eu já lembrei a pouco que Avalovara é em certo sentido uma alegoria do romance. Há o outro pressuposto que você menciona: jogar umas palavras contra as outras etc. É Abel que fala. Este é o seu sonho. Será também o meu? Poderia dizer que sim, mas não no grau e na intensidade com que o problema se apresenta ao meu personagem. Ainda: eu não posso dizer que tivesse forças para realizar este ideal de escrita formulado pelo personagem. Apesar de tudo, embora as preliminares da questão que você me propõe não estejam muito firmes, você absolutamente não se engana quando menciona uma contradição: de um lado um domínio intelectual na elaboração da obra, de outro lado, a porta aberta à magia etc. Sim, há isto. Há essa contradição, ou, para ser mais exato, esse conflito. Tomo a liberdade de fazer aqui, o que

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Fragmento de entrevista de Osman Lins a Esdras do Nascimento (O Estado de São Paulo – 12/05/1974).

A última pergunta (Evangelho na taba, pág.: 180-181):

Esdras Nascimento: “ O Avalovara é ser composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaros”. (Avalovara, 1ª edição, página 282). Aí está a estrutura do romance. E o autor pretende “jogar umas palavras contra as outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados”’. (Idem, pág.:211). Na definição da estrutura do livro, o autor evidencia uma preocupação altamente intelectualizada pelo aspecto de construção da sua obra. Na descrição do seu processo de utilização das palavras, deixa uma porta aberta à magia, ao místico, ao fantástico. Trata-se de proposições a serem repensadas ou de incoerência a ser mantida e aprofundada?

OSMAN LINS: Mais uma vez você me atribui palavras do meu personagem. Vamos por partes. Quando diz Abel que o Avalovara é um pássaro feito de pequenos pássaros, miúdos como abelhas, ele fala do pássaro Avalovara, não do romance Avalovara. Mas, realmente, esse pássaro, além de outras coisas, é uma imagem do romance. Não deste romance apenas. E sim do romance em geral. O romance aglutina narrativas menores, breves unidades temáticas, pássaros miúdos. Não é o meu romance que é assim. Qualquer romance é isso. E eu já lembrei a pouco que Avalovara é em certo sentido uma alegoria do romance. Há o outro pressuposto que você menciona: jogar umas palavras contra as outras etc. É Abel que fala. Este é o seu sonho. Será também o meu? Poderia dizer que sim, mas não no grau e na intensidade com que o problema se apresenta ao meu personagem. Ainda: eu não posso dizer que tivesse forças para realizar este ideal de escrita formulado pelo personagem.

Apesar de tudo, embora as preliminares da questão que você me propõe não estejam muito firmes, você absolutamente não se engana quando menciona uma contradição: de um lado um domínio intelectual na elaboração da obra, de outro lado, a porta aberta à magia etc. Sim, há isto. Há essa contradição, ou, para ser mais exato, esse conflito. Tomo a liberdade de fazer aqui, o que não me agrada, uma citação minha. Em “O ponto do círculo”, de Nove, Novena, uma personagem fala dos hieróglifos. Para ela os egípcios haviam encontrado, na sua escrita, o equilíbrio entre a geometria e a desordem. Confrontavam-se, nos hieróglifos, uma criação intelectual e a natureza. Confrontavam-se e conjugavam-se. Certos escritos meus, Avalovara entre eles, são deliberadamente uma construção intelectual e como que uma invocação mágica. Isto, bem entendido, não para obedecer a uma teoria, a um programa. Mas porque eu próprio, como um homem, levarei sempre em mim essa contradição: a de debater-me entre a ânsia de compreender e a certeza de que tudo é mistério.