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FRANÇA E ESCOLA BRASILEIRA DE GEOGRAFIA: Verso e Reverso

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FRANÇA E ESCOLA BRASILEIRA

DE GEOGRAFIA:Verso e Reverso

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Presidente da RepúblicaDilma Vana Rousseff

Ministro da EducaçãoAloizio Mercadante

Universidade Federal do CearáReitorProf. Jesualdo Pereira Farias

Vice-ReitorProf. Henry de Holanda Campos

Editora UFCEditorProf. Antônio Claúdio Lima Guimarães

Conselho EditorialPresidenteProf. Antônio Claúdio Lima Guimarães

ConselheirosProfª. Adelaide Maria Gonçalves PereiraProfª. Angela Maria R. Mota de GutiérrezProf. Gil de Aquino FariasProf. Ítalo GurgelProf. José Edmar da Silva Ribeiro

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MembrosProfª. Ana Fani Alessandri CarlosProf. Antônio Jeovah de Andrade MeirelesProf. Christian Dennys OliveiraProf. Edson Vicente da SilvaProf. Francisco MendonçaProf. Hérvé ThéryProf. Jordi Serra i RaventosProf. José Borzacchiello da SilvaProf. Jean-Pierre PeulvastProfª. Maria Elisa Zanella

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FRANÇA E ESCOLA BRASILEIRA

DE GEOGRAFIA:Verso e Reverso

José Borzacchiello da Silva

Fortaleza2012

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S 586 f Silva, José Borzacchielo da

França e escola brasileira de geografi a: verso e reverso /

José Borzacchiello da Silva. – Fortaleza: Edições UFC, 2012.

232 p.: il.

ISBN: 978-85-7282-512-2

(Coleção Estudos Geográfi cos, n. 12).

1. Geografi a 2. Geografi a Francesa 3. Geografi a-Brasil

4. Epistemologia I. Título

CDD: 910

França e escola brasileira de geografi a: verso e reverso© 2012 Copyright by José Borzacchiello da SilvaImpresso Brasil / Printed in BrazilEfetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

Todos os Direitos ReservadosEdições UFC (Coleção Estudos Geográfi cos)Pós-Graduação em Geografi a da UFCCampus do Pici, Bloco 911, Fortaleza – Ceará - BrasilCEP: 60445-760 – tel. (85) 3366.9855 – fax: (85) 3366.9864Site: www.posgeografi [email protected] – e-mail: [email protected]

Divisão de Editoração

Coordenação EditorialMoacir Ribeiro da Silva

Leitura e Revisão de TextoLeonora Vale de Albuquerque

Normalização Bibliográfi caPerpétua Socorro Tavares Guimarães

Programação VisualLuiz Carlos Azevedo

Dados Internacionais de Catalogação na FonteBibliotecária: Perpetua Socorro Tavares Guimarães CRB 3/801

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SUMÁRIO PREFÁCIO ......................................................................................................7

APRESENTAÇÃO ..........................................................................................15

1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................19

2 ANTECEDENTES: A GEOGRAFIA FRANCESA NO BRASIL .................................49

3 A HEGEMONIA DA GEOGRAFIA FRANCESA NO BRASIL ..................................57

4 PERIODIZAÇÃO: UMA SUGESTÃO ..................................................................654.1 Aproximações: a Implantação de Cursos de Geografia no Brasil .................. 694.1.1 Fase da construção da hegemonia ..........................................................714.1.2 O Congresso da UGI ................................................................................724.1.3 Distanciamentos: a “Nova Geografia”... e a França passou a ser vista por lideranças da geografia brasileira como referência do velho, do passado ..............................................................................744.1.4 Exclusividades: Pierre George .................................................................764.1.5 Novas alianças: Rochefort e Kayser, o urbano e o rural ...........................804.1.6 Rupturas, estremecimentos: a “Geografia Nova” – Yves Lacoste

faz a Geografia, a Guerra... ...................................................................102

5 NOVOS GEÓGRAFOS FRANCESES ENTRAM EM CENA ..................................133

6 O BRASIL NA FRANÇA ................................................................................175

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7 A PRODUÇÃO DE TESES DE BRASILEIROS NA FRANÇA ...............................191

8 CONCLUSÕES .............................................................................................213

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................225

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PREFÁCIOO Brasil foi, em 1998, o país convidado de honra na Feira

do Livro de Paris, e uma das mesas-redondas organizadas nesta ocasião pelo Syndicat National de l’Édition – da qual eu tive a honra de participar – era intitulada “peripécias amorosas do re-lacionamento entre a França e o Brasil”. Parece que este título se aplicaria igualmente bem ao presente livro de José Borzacchiello da Silva sobre a relação entre a geogra� a francesa e a brasileira, como evidenciado pelas palavras que ele usa para se referir às fases desse relacionamento: “aproximações”, “distanciamentos”, “exclusividades”, “rupturas”. Há de fato muito carinho e até mes-mo muita paixão - às vezes desapontada – nesta longa história de casal, que teve inevitavelmente altos e baixos.

José Borzacchiello da Silva discute essas fases em detalhe, oferecendo uma periodização inédita, em que a fundação da USP, em 1934, e o Congresso da UGI, em 1956, no Rio de Ja-neiro, são momentos-chave, voltando às origens distantes e indo até a época na qual ele fez uma ampla pesquisa de pós-doutorado na França sobre este assunto. Ele tinha então (em 1992-1993) analisado os 104 volumes do Bulletin Intergéo, publicado desde 1966 pelo CNRS (Conselho Nacional de Pesquisa Cientí� ca), e a produção de teses francesas sobre o Brasil e de brasileiros

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na França. Ele fornece, portanto, uma quantidade de dados de primeira mão que dão à sua obra uma densidade notável e refor-çam signi� cativamente as análises, relevantes e sutis, que ele faz ao interpretá-los.

O objetivo dele é claro:

Estudar a formação de uma geogra� a nacional advinda das relações estabelecidas entre a França e o Brasil permitia apre-ender o nível de envolvimento de geógrafos dos dois países, identi� cando momentos diferenciados de acordo com suas conjunturas.

A maneira de fazê-lo é claramente enunciada:

� enumerar os geógrafos daquele país que trabalharam sobre o Brasil ou que in! uenciaram a geogra� a brasi-leira, por meio da orientação de teses, edição de livros, textos ou outra atividade;

� veri� car, em termos analíticos, os momentos de pico dessas in! uências;

� relacionar aspectos da história de vida desses pro� s-sionais com o tipo de in! uência exercida na geogra� a brasileira;

� mapear, no espaço brasileiro, as áreas que foram mais estudadas e quais foram os centros que estabeleceram maior intercâmbio geográ� co com universidades francesas;

� localizar na França, quais as cidades/universidades que mais in! uenciaram a geogra� a brasileira;

� situar na França que cidades/universidades recebe-ram maior quantidade de pesquisadores brasileiros na área de Geogra� a;

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� listar as principais linhas de pesquisas brasileiras que guardam ligação estreita com a França;

� identi# car a partir dos títulos das pesquisas realizadas por franceses no Brasil, o grau de inovação quanto ao enfoque teórico-conceitual e metodológico;

� veri# car em que medida ocorre a inserção e assimila-ção dessas inovações em termos de Brasil.

O livro aborda a maioria destas perguntas, mas ressalta-mos aqui que uma das principais conclusões do trabalho é que a relação entre geógrafos franceses e brasileiros tornou-se me-nos assimétrica. No início, e durante décadas,

a relação estabelecida entre os pro# ssionais dos dois países não era marcada pela simetria, ao contrário, a tradição aca-dêmica francesa associada a longo período de aplicação de teorias e métodos em sua ação expansionista, garantia um caráter universal, até estão desconhecido pela geogra# a feita no Brasil.

Como resultado,

aqui os franceses fazem suas pesquisas e no passado muito contribuíram para que se # zesse a leitura geográ# ca do país, vislumbrando um projeto nacional a partir da ótica deles. Na França, o brasileiro enquanto pro# ssional situava-se, predominantemente, na condição de aprendiz da funda-mentação teórica e metodológica norteadora daquela escola geográ# ca com suas diversas correntes.

Com o passar do tempo, porém, o Brasil mudou muito, e com ele a relação entre os geógrafos brasileiros e franceses, que tem um pouco arrefecido:

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A geografia, sintonizada com a experiência que o Brasil atravessava com crescimento econômico e grandes obras de infraestrutura, exerceu destacado papel naquele mo-mento. Buscou nos métodos quantitativos, as fórmulas possíveis de oferecer explicações espaciais e resultados esperados. Viveu naquele momento situação de ruptura parcial com a geografia francesa de corte mais clássico, pautada no ideário do arranjo e organização espacial. Esta pratica dominante de parcela da geografia oficial, atendia aos interesses do governo militar e da elite burocrática que se instalara no país. Por outro lado, as esquerdas, com apoio da Igreja e de outras instituições não oficiais buscam referências teóricas capazes de sustentar suas utopias de realidade e propostas partidárias.

José Borzacchiello da Silva nota, no entanto, um caso que cruza essas fases diversas sem perda de in� uência, o de Pierre George:

Dentre os vários que aqui estiveram Pierre George merece destaque, pois exerceu enorme in� uência na geogra� a brasi-leira. Tornou-se referência bibliográ� ca quase que obrigatória nos cursos de Geogra� a. Nas discussões que enfocam a relação da geogra� a francesa com a brasileira, Pierre George pode ser classi� cado como exemplo de uma situação de permanência [...] Independentemente de opções teórico-metodológicas, o ilustre professor permanecia como inalterado, numa posição tranquila, editando seus livros em português pela DIFEL – Difusão Europeia do Livro, de São Paulo, sob os auspícios da Presses Universitaires de France, de Paris e pela Editora Fundo de Cultura, do Rio de Janeiro. Mantinha um público cativo. A estabilidade alcançada por Pierre George não indica de forma alguma que as relações acadêmicas seguiam o curso regular com os franceses.

Note-se aqui como José Borzacchiello da Silva é capaz de ligar de maneira convincente desenvolvimento econômico, si-

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tuações políticas e o seu impacto tanto na geogra� a brasileira como na sua relação com a geogra� a francesa. O mesmo se apli-ca para o período seguinte, aquele no qual a redução progressiva da pressão política ligada ao � m do regime militar permitiu que os geógrafos brasileiros mudassem profundamente o rumo de suas pesquisas, recorrendo com entusiasmo às análises marxis-tas, que lhes eram previamente proibidas:

A geogra� a pós-78, através de parte signi� cativa da categoria dos geógrafos [...] encontra, na escassa literatura de funda-mento marxista, elementos para a reorganização da ciência. O movimento denominado Fortaleza 1978 foi um divisor de opiniões e posturas no modo de conceber, ensinar e aplicar a geogra� a no país [...]. O Pós-78 signi� cou um rearranjo no mapa da produção geográ� ca do país, inseriu novos persona-gens em cena, sacralizou uns, demonizou outros.

Lamentamos apenas que José Borzacchiello da Silva não tenha prolongado a sua análise até os dias atuais, gostaríamos de saber como ele vê a evolução de hoje, 34 anos após a “virada de mesa” de Fortaleza e vinte anos após a sua pesquisa. Talvez poderia ser o objeto de uma nova pesquisa de ambos os lados do Atlântico ...

Mas tal como ele está, este livro já é fascinante (mesmo para quem não é, como eu sou, um dos atores nessa relação fran-co-brasileira), e um dos seus aspectos mais interessantes e mais originais, é que José Borzacchiello da Silva, durante a sua estadia de pós-doutorado, entrevistou vários geógrafos franceses que desempenharam um papel na colaboração entre as duas escolas de geogra� a, sempre seguindo o mesmo questionário, com algu-mas adaptações para “apreender ao máximo as contribuições ca-pazes de responder às indagações que norteavam a pesquisa”. Ele transcreveu no livro as respostas dos entrevistados e às vezes as suas próprias reações – muitas vezes entusiasmadas – às respos-

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tas, e os diálogos adicionais que surgiram quando ele, sempre educadamente mas com � rmeza, obrigava os seus interlocutores a completar as respostas. Jacques Lévy, que admite que “para ser honesto, devo dizer que a geogra� a brasileira que eu conheço é aquela que gravita em torno de Milton Santos” e de fato a par-ticipação dele à colaboração franco-brasileira foi mínima (com apenas duas breves visitas ao Brasil). Uma das entrevistas obte-ve um resultado inesperado, mostrando que Yves Lacoste “não tinha ideia da importância dele no Brasil, sobretudo, a partir de seu livro, A Geogra� a Serve...”, livro que foi tão in! uente na evo-lução da geogra� a brasileira, primeiro na forma de uma edição pirata (sob o regime militar), e em seguida abertamente, após o retorno da democracia.

Com Paul Claval, cuja cooperação com o Brasil foi – e ain-da é – importante, se impõe uma conclusão, que se torna mais forte ainda considerando que a sua participação ocorreu um pouco tarde no período, quando a geogra� a brasileira já estava bem consolidada: “A relação que tive com colegas brasileiros foi sempre para mim interessante e tenho a impressão de estar num terreno onde falo para iguais.”

Michel Rochefort chega a uma conclusão similar: “houve uma renovação da geogra� a francesa e há uma bela fase da ge-ogra� a brasileira e elas são capazes de se aproximar, mas, agora são relações adultas. Mas o mais notável é que essa análise vem depois de ele ter acompanhado uma mudança signi� cativa, que observou desde a década de 1950 (no momento da entrevista, ele tinha passado 27 temporadas no Brasil):

Houve a fase infantil quando o Brasil se formou pelos mestres franceses; houve a fase da adolescência quando a geogra� a brasileira rejeitou os pais e, en� m, agora, tem relações adultas quando se discute, se troca, mas não há qualquer supremacia de uma sobre a outra.

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Michel Rochefort faz, porém, uma leve crítica aos colegas brasileiros, que ainda não se atreviam no momento da entrevista – e ainda é verdade hoje em grande parte – a ir além dos limi-tes de seu país para estudar países vizinhos ou mais distantes, o que os impediu de tirar pleno partido da cooperação com os geógrafos franceses, que uma longa história preparou para anali-sar sem complexos os países estrangeiros, e a fazer comparações entre eles: “o Brasil se fechou na geogra� a brasileira [quando as] abordagens que os franceses podem fazer é uma abordagem de comparação.”

No total, José Borzacchiello da Silva faz uma avaliação di-ferenciada da in� uência francesa na geogra� a brasileira: “dentre os estrangeiros, não resta a menor dúvida que, no Brasil, os fran-ceses ocuparam e ocupam papel destacado” [...]

durou mais de meio século o mito em torno da qualidade da geogra� a francesa. Não importa saber se ele foi elaborado dentro ou fora das fronteiras daquele país. Os professores fran-ceses, especialmente os orientadores de tese e coordenadores de laboratórios foram convidados para vir ao Brasil ministrar cursos, proferir palestras, acompanhar trabalhos de campo ou assessorar grupos de pesquisa ou equipes ministeriais. Apesar do mito e de uma sensível reação da geogra� a francesa face a geogra� a germânica, ainda é duvidoso saber se hoje ela ainda estaria habilitada a manter-se em posição confortável como o foi nos anos anteriores.

José Borzacchiello da Silva deixa a porta aberta para fu-turas discussões, com um claro sentido de otimismo, e uma atitude proativa: “As relações entre os dois países devem ser reforçadas, propiciando a troca recíproca”. Mas esse otimismo e esta vontade de ver se con� rmar uma relação mais simétrica, se fundamentam numa con� ança – justi� cada – na maturidade da geogra� a brasileira, que deverá permitir-lhe agora olhar para

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além das suas fronteiras: “cabe à geogra� a brasileira importante papel na explicação da realidade do país, da América Latina e por que não, do mundo”. Ambição louvável, os geógrafos france-ses � carão felizes e orgulhosos ao acompanhar.

Hervé � éryDirecteur de recherches au CNRS

Professor convidado na USP

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APRESENTAÇÃOAs relações entre França e Brasil no âmbito da Geogra� a

sempre despertaram meu interesse. Minha formação pro� ssio-nal tem sido construída com muita aproximação da cultura francesa, especialmente, a geográ� ca. Este livro resulta de pes-quisas desenvolvidas a partir da minha vivência na Universidade de Paris IV-Sorbonne, onde contei com o apoio incondicional do Prof. Paul CLAVAL, profundo conhecedor da geogra� a francesa, fecundo pesquisador e em constante diálogo com a geogra� a brasileira. Desfrutar desta dileta companhia e compar-tilhar de discussões teóricas e metodológicas, foi um privilégio. Tenho prazer de constar na sua relação de amigos.

O estudo de aspectos da geogra� a francesa, suas escolas e tendências, a criação e difusão de suas linhas de pesquisa pelo mundo, especialmente no Brasil, motivaram uma permanência de dezoito meses em Paris, onde tive amplas oportunidades para aprofundar o objeto de estudo.

Selecionei Cursos e Seminários estabelecendo os seguin-tes critérios:

• Perceber o nível geral de discussão da Geogra� a Hu-mana;

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• Veri� car os cursos e seminários que trabalhavam te-mas novos e a manter relações com as atividades da Geogra� a no Brasil;

• Contemplar áreas que possibilitassem desenhar e per-ceber um amplo espectro das ciências humanas na França.

Entre os critérios gerais, incluí a escolha de instituições para a realização da pesquisa. Elegi o Instituto de Geogra� a, lo-calizado no 191 da Rue Saint Jacques, que abriga os cursos de Geogra� a das Universidades de Paris I e IV. O Boletim Inter-geo facilitou a pesquisa em seus arquivos sobre as atividades da geogra� a francesa. A Biblioteca do Instituto de Geogra� a, da Sorbonne, foi fundamental para o avanço da pesquisa.

Na França contei ainda com a colaboração dos professo-res Martine Droulers, Michel Rochefort, Jacques Lévy, Yves La-coste, Marion Aubrée, Alain Touraine, Cornelius Castoriadis e Augustin Berque.

Destaco os diálogos mantidos com Bernard Lepetit, pre-cocemente falecido. Seu interesse pelo tema, aumentou meu compromisso.

Alex Mengue, geógrafo da República de Camarões foi um excelente interlocutor. Compartilhamos ricas e profícuas dis-cussões.

Clélia Lustosa, Vanda Sales e Maria Geralda de Almeida com suas críticas e sugestões permitiram o aprofundamento da pesquisa e o aprimoramento da análise.

A Eustógio Dantas, parceiro de tantas jornadas, meu agra-decimento pela insistência na publicação do livro.

Aos meus colegas do Departamento de Geogra� a da UFC, especialmente os do Programa de Pós-Graduação, pelo estímulo

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constante e pelo enfrentamento dos desa� os, e do Observatório das Metrópoles.

Aos meus orientandos, pela interlocução cientí� ca e pela convivência agradável e jovial.

Ao Prof. Hervé � éry, agradeço a gentileza da apresen-tação do livro.

Emília, minha mulher , companheira de todas as horas, participou ativamente nos momentos da pesquisa e na elabora-ção do livro.

Ao CNPq que � nanciou a pesquisa.À Editora da UFC e a todos que colaboraram direta ou

indiretamente, o meu muito obrigado.

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1INTRODUÇÃO

Debruçado sobre imagens de satélite é possível ao obser-vador ver, perceber e representar a terra em sua totalidade � nita contida na esfericidade de uma de suas faces (PINCHEMEL).1 Essas imagens, reais hoje, constituíam, num passado bem re-cente o virtual, a � cção, o inatingível. Hoje, a partir do avanço tecnológico, pensa-se que tudo é possível. Seria essa promessa de possibilidade o que se poderia chamar de � m da Geogra� a? Assim, essa ciência clássica se converteria em outro ramo do sa-ber, talvez uma técnica. Enquanto técnica estaria desprovida da preocupação básica que caracteriza a Geogra� a e sobre a qual se fundamenta: a localização, a descrição e a comparação. Seria o � m de toda possibilidade de descoberta, de observação, de ana-lise? Seria o � m do secretar emoções que torna a geogra� a uma ciência fascinante? Uma ciência que tem o charme do desven-dar, da descoberta, do inusitado, do premeditado, do induzido, en� m, um “algo mais” todo especial que só os que se dedicam a ela com paixão podem sentir, e eu sinto.

1 PINCHEMEL, P. L. I. A venture geographique de la terre In:_____. Encyclopedie de geographie. Paris: Economica, 1992.

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Teria se tornado � nito todo o desejo secreto da aventura consorciada aos pressupostos cientí� cos?

A história da Geogra� a tem sido construída desde seus primórdios, e permanece, ainda hoje, como grande motivadora de seus adeptos, o sentido da ousadia, da afronta, no desvenda-mento das relações Sociedade e Natureza.

Cartas geográ� cas, atlas, globos terrestres, fatos, fotos, re-alidades processos, imagens de satélites fascinam o observador. Se for geógrafo, esse fascínio parece maior. São pro� ssionais que trabalham em várias escalas. Em suas observações e análises ten-tam dominar e comandar o mundo quando alcançam, em ter-mos de produção e reprodução de imagens, redutibilidades ex-traordinárias. Estaria sendo atingida a tão propalada síntese. Essa totalidade simbiótica de Natureza e Sociedade seria, no âmbito da observação e representação, a possibilidade de conhecimento e de controle. A natureza mesclada com sociedade mostra-se aí adestrável, estática, indolente, domável e controlável.

Essa realidade não reduz a geogra� a à representação e à ob-servação, mas, sem dúvida, guarda toda uma historicidade, todo um processo em que inquietante busca impulsionou a humani-dade em todas as direções. Singrando mares, galgando monta-nhas, atravessando desertos, penetrando � orestas... . Num longo processo, lenta, lentamente, o mundo tornava-se dialeticamente viável, em âmbito dos macroespaços e impunha um rigor ótico ao nível dos microespaços desconhecidos.

A ciência geográ� ca tratando de escalas tão diferentes, tem feito um longo percurso.

Inserida nesse processo, a Geogra� a teve sua gênese, sua evolução, suas angústias, dúvidas e inquietações. Qualquer ten-tativa de reconstituir a história do pensamento geográ� co pode signi� car passar ao largo de sua discussão epistemológica que lhe dá suporte e lhe garante o estatuto de ciência.

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No contexto da história da ciência, quando busca a origem e evolução de um ramo do saber, constrói-se a história do co-nhecimento. A produção dessa história, seu teor narrativo, suas implicações políticas estarão diretamente ligadas, imbricadas com o seu narrador. Uma história depende de quem a conta.

Gramsci, a propósito da relação entre ciência e concepção de mundo, a� rma:

Colocar a ciência na base da vida, fazer da ciência a concepção do mundo por excelência, a que liberta os olhos de qualquer ilusão ideológica, que põe o homem em face da realidade tal como ela é, isto signi� ca recair no conceito de que a � loso� a da práxis tenha necessidade de sustentáculos � losó� cos fora de si mesma. Mas, na realidade, também a ciência é uma su-perestrutura, uma ideologia. É possível dizer, contudo, que no estudo das superestruturas a ciência ocupa um lugar pri-vilegiado, pelo fato de que a sua reação sobre a natureza tem um caráter particular, de maior extensão e continuidade de desenvolvimento, notadamente após o século XVIII, a partir de quando a ciência seja uma superestrutura, e o que é de-monstrado também pelo fato de que ela tenha tido períodos inteiros de eclipse, obscurecida que foi por uma outra ideo-logia dominante, a religião, que a� rmava ter absorvido a pró-pria ciência. Assim, a ciência e a técnica dos árabes eram tidas pelos cristãos como pura baixaria. Alem disso, não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como uma noção objetiva. Ela aparece sempre revestida por uma ideologia e, concretamente, a ciência e a união do fato objetivo com uma hipótese, ou um sistema de hipóteses, que superam o mero fato objetivo. (G� MSCI).2

A Geogra� a não foge à regra. Enquanto saber cientí� co em seu processo histórico confundiu-se com ideologia, � cou a

2 G� MSCI, A. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. p. 70-1.

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serviço do poder, revestiu-se de uma visão romântica idealista a partir de valores forjados no ocidente, principalmente na Euro-pa. Com foro de ciência na construção do saber, a Geogra� a tem sido instrumentalizada o su� ciente para dar conta de discursos ideológicos elaborados por diferentes atores sociais.

No acúmulo de experiências da humanidade, a Terra en-quanto planeta, aparentemente livre de questões teóricas mais complexas e consequentes, atinge uma mudança radical de sua emblemática, ou seja, da Terra compartimentada, longínqua que separa e isola os indivíduos e sociedades, nas relações com os elementos que a compõem: terra, ar e água - sua forma e dis-tribuição: continente, mares, oceanos e atmosfera, a majestática observação do planeta enquanto totalidade no universo obtida pelas imagens transmitidas pelos satélites.

Da horizontalidade que separa, compartimenta, isola e camu-� a a visibilidade do planeta reduzindo e criando deformações de perspectiva. A conquista da visão plena obtida nas alturas até a ver-ticalidade das fotogra� as aéreas do globo, ao universal das imagens transmitidas e retransmitidas diretamente por possantes e comple-xas aparelhagens desenvolvidas e aperfeiçoadas por uma tecnologia avançada em que a imagem virtual confunde-se com o real.

Ao homem, concebido e aceito como sujeito do planeta é permitido o isolar-se, o colocar-se alheio à Terra como o univer-so objetivo que lhe é exterior. Esse rompimento de distâncias, essa dinâmica estática que articula sujeitos/atores cada vez mais próximos/distantes em seus lares informatizados nos espaços técnicos, cientí� cos e informacionais (SANTOS).3 Os � uxos e as redes conectam todos os espaços reduzindo-os a imagens observáveis nas telas “mágicas” de TV e dos computadores. Via-

3 SANTOS, M. “Flexibilidade tropical” In:____. Arquitetura e urbanismo, n. 38,

out/nov. 91.

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gens intermináveis conduzem o sujeito a um universo coletivo onde a interação se dá via redes conectadas.

Hoje, a concepção de mundo distorce os conceitos vigen-tes de limites, fronteiras e barreiras. As minorias nacionais insis-tem em institucionalizar seus Estados. Novas formas de federa-ção concentram terras, unem países, experimentam linguagens uni� cadas nos setores político, econômico e cultural. Ao mesmo tempo, nações e federações se fragmentam instaurando a com-petição. As guerras e lutas sustentam sonhos, mantêm grupos hegemônicos e fomentam planos de conquistas.

Essa trama do jogo dialético, essa interação em escalas diferenciadas que integram ou alternam macro e micro, a� rma-ção e negação contínua de realidades cambiantes são, em última instância, a razão primeira da geogra� a. Sua condição cienti� -ca coloca-a diante do desvelar, do descobrir o mundo em suas partes componentes de um mosaico. As interpretações gerais e regionais as visões centradas em partes do mundo dando origem a políticas de controle e modelagem. Essa fragmentação da tota-lidade, muitas vezes intencional, justi� ca a adoção de políticas colonialistas empregadas na gestão do território. Con� rmando esta prática calcada em pontos de vista de pessoas abalizadas, os governos centrais elaboraram seus planos de expansão e explo-ração de terras e povos. Vidal de La Blache, eminente geógrafo francês, teceu a seguinte consideração:

Devemos nos congratular porque a tarefa da colonização que constitui a glória de nossa época seria apenas uma vergonha se a natureza pudesse ter estabelecido limites rígidos, em vez de deixar margem para o trabalho de transformação ou de re-construção cuja realização está dentro do poder do homem. (VIDAL DE LA BLACHE).4

4 VIDAL DE LA BLACHE, P. Géographie Générale. Annales de Géographie, n. 38, 1989. In: SANTOS, M. Por uma geogra! a nova. São Paulo: Hucitec, 1978. p.15.

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Prosseguindo nessa tônica, com base no mesmo texto, a� rma Demangeon:

Nessa África Negra que ainda oferece à colonização euro-peia um campo maravilhoso (DEMANGEON)5

A Geogra� a Colonial assumiu destaque para o império francês. Enquanto saber acadêmico e disciplina escolar, a geo-gra� a vai conhecer na França, um crescimento considerável já no início do século XX. Segundo Droulers (1991)6, em 1923, Albert Demangeon e Emmanuel de Martonne fundaram o Insti-tuto de Geogra� a de Paris que conheceu dias de glória. Os cursos de licenciatura (licence) e agrégation specialisée en géographie7, só foram criados em 1941. Referindo-se à Geogra� a Colonial, como base da Geogra� a francesa durante o século XIX, Bruneau (1989)8 assim se coloca:

“Sua � nalidade era fornecer um conhecimento... aprofun-dado dos meios e territórios colonizados de sua posição em va-lor racional.”

Contrapondo-se essa imagem clássica de Geogra� a, cons-truída a partir de suas visões de mundo, a uma Geogra� a dos tempos presentes, da pós-modernidade9, em que a sua razão

5 DEMANGEON, A. Traite de geographie. Armand Colin: Paris, 1947 In: SAN-TOS, M. Op. cit., p. 15. 6 DROULERS, M. “L’ocole française de geographie”. In: MONBEIG, Pierre. Un geographe pionnier. Paris: IHEAL, 1991.7 Não chega a ser uma especialização. Trata-se de um concurso publico para recru-tamento de professores do ensino secundário.8 BRUNEAU, M. Les enjeux de la tropicali! . Paris: Masson, 1989. In: DROULERS M. Op. cit., p. 35.9 A descrição que Baudrillard faz do espaço americano, como contraponto ao eu-ropeu fornece essa ideia de leitura pós-moderna de espaço geográ� co. O trecho a seguir sugere essa situação “Os pores-do-sol são arco-íris gigantescos que duram uma hora. As estações ali não têm sentido: a manhã, e a primavera, o meio-dia e o verão, e as noites do deserto são frias sem que jamais seja o inverno. É uma espécie de eternidade suspensa ou o ano que se renova todos os dias” In: BAUDRILLARD, J. “Amérique”. Paris: G# SSET/Le Livre de Poche, 1986. p.117.

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maior, espaço território/sociedade parece fugir à análise como um punhado de areia a escoar entre os dedos.

A Geogra� a insiste em buscar sua identidade. A espacia-lidade do mundo contemporâneo, o caráter de redutibilidade a partir da transformação do real pela imagem, coloca a Geogra� a em posição incômoda entre as demais ciências humanas.

“Em que espelho � cou perdida a minha face?”. Cecília Mei-reles no poema “Retrato Natural” (1987)10 mergulha na trágica constatação da perda de seus traços, aqueles que lhe garantiam a identidade. Em que espelho/imagens a Geogra� a construiu a sua face, ao menos aquela mais conhecida vulgarmente?

Neste jogo de imagens, re� exos, espelhos, identidades, a Geogra� a tenta sua sorte, seu caminho. Procura construir um per� l que lhe garanta con� abilidade e permanência. Sua exis-tência repousa na possibilidade de tomar-se, cada vez mais, útil, re� exiva e prática face as mudanças de um novo tempo.

A renovação tecnológica se dá com uma rapidez avassa-ladora. Grandes grupos econômicos que controlam a criação e produção de inovações colocam-se numa guerra sem igual, rumo aos lucros. Políticas autofágicas são adotadas de tal forma que novos modelos comprometem muitas vezes aqueles colo-cados à disposição do público há tão pouco tempo. Uma avi-dez insana do mercado em busca desesperada pelo lucro cerca o homem, convertendo-o em consumidor por toda parte, a todo instante.

Em nome da modernidade, esse processo avança e avança cada vez mais. Não há limite! Formam-se sucatas de produtos praticamente novos, e já ultrapassados por modelos recém--saídos das linhas de produção. Diminui a vida útil dos produ-

10 MEIRELES, Cecília. “Viagem”. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Ja-neiro: Editora Nova Aguilar S/A., 1987. p. 84.

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tos. Para um produto lançado há uma espécie de “morte anun-ciada”, isto é, um protótipo que, ao contrário da “Anunciação” de Niccolo Pisano (Séc. XVI), prenuncia sua morte. É lamentável, mas essa mudança, essa rapidez, não atinge o mundo sincroni-camente. Espaços e tempos diferenciados integram uma lógica onde fome e fartura, doença e bem-estar, dé� cit e superávit con-vivem entre outros antípodas de uma simbiose fundada na in-justiça e na desigualdade.

Nesse percurso longo e difícil, a Geogra� a construiu sua história, ganhou notoriedade, respeitabilidade. Houve tempo em que intelectuais reuniam-se em torno de sociedades de Geo-gra� a como as de Paris criada em 1821, Berlim em 1828, Lon-dres em 1830. Os ares de cienti� cidade emprestavam à geogra� a o charme do método, da teoria, da análise. A base empírica, as expedições, as viagens, os trabalhos de campo, revestem esse se-tor do conhecimento de mistério; aquele mistério da aventura, do novo, do desbravar o desconhecido. A Geogra� a ganha peso, mais fôlego. Instrumentalizada, torna-se um saber a serviço do poder (SANTOS, 1978, DRESCH, 1948). Abordando este as-sunto no contexto da discussão da “utilidade” da Geogra� a, La-coste foi enfático:

Colocar para início de conversa que a Geogra� a serve antes de mais nada, para fazer a guerra não implica dizer que ela só serve para realizar operações militares. Ela serve também para organizar os territórios não somente em previsão de batalhas que poderia livrar contra tal e tal adversário, mas também para melhor controlar os homens sobre os quais o aparelho de Es-tado exerce sua autoridade. A Geogra� a é, antes de mais nada, um saber estratégico estreitamente ligado a um conjunto de práticas políticas e militares[...] LACOSTE (1982).11

11 LACOSTE, Y. La Geografphie,ça sert d’abord,à faire la guerre. Paris: MASPERO, 1982. p. 7.

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Essa pecha, a Geogra� a carregou por muito tempo ou talvez carregue, ainda. Quaini (1978)12 denuncia sua inutilidade enquanto conteúdo pedagógico assim como o faz também Lacoste (1982)13 quando identi� ca na Geogra� a uma “Geogra� a dos professores” e outra que ele chamou de “Geogra� a dos Estados Maiores.”

Na busca de legitimidade e aceitação, a geogra� a conhe-ceu diferentes abordagens. Em algumas, confundia-se com téc-nicas, como o foi com a New Geography que instaurou no Brasil a conhecida “revolução quantitativa”. Referindo-se a essa fase de implantação a� rma Monteiro (1980):14

Após assessoria prestada por M. Rochefort ao CNG em trans-formação em 1966, uma das mudanças sensíveis na orienta-ção da nova Fundação IBGE e seu IBG foi uma reabertura da Geogra� a anglo-saxônica. No limiar dessa faixa de transição à segunda época (1967-1968) deu-se a introdução efetiva das técnicas quantitativas e preocupações “teoréticas” através das visitas de Gauthier, Cole e Berry.

Em outras abordagens, a Geogra� a consistia mais em mé-todo, como o foi no conhecido Método Regional proposto por Hartshorne.15 Segundo Claval, seria uma espécie de reação a Fred Schaefer que contestava a Geogra� a como ciência do único no artigo intitulado “O Exceptionalismo em Geogra� a”. Claval (1976)16 é categórico:

12 QUAINI, M. Marxismo e geogra� a. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 13 LACOSTE, Y. La Geografphie,ça sert d’abord,à faire la guerre, 1982. 235 P.14 MONTEIRO, Carlos Augusto Figueiredo. A Geogra� a no Brasil (1934-1977): avaliaçao e tendências. Universidade de São Paulo-USP, 1980. p. 27. 15 HARTSHORNE, R. ! e nature of Geography. Annals Association of American Geographers XXIX, 1939.16 CLAVAL, P. Essai sur L’Evolution de la Geographie Humaine” Annales Li$ eraires de L’Université de Besançon. Paris: Les Belles Le# res, 1976. p. 185.

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Assim, o artigo de SCHAEFER está indiretamente na origem da publicação de ‘Perspective on the Nature of Geography’, e esta obra é além de uma consideração, uma resposta de Scha-efer, um contra-manifesto.

Sua abordagem enquanto escola adquiriu feições de geo-gra� a voltada para determinados modelos nacionais. Em de-corrência, a caracterização de uma Escola alemã, uma francesa, sueca etc.

A aceitação imediata da existência de uma escola nacio-nal pode con� gurar em muitos casos um reducionismo. Uma análise mais acurada daquilo que se convencionou chamar de escola pode revelar na verdade tratar-se de grupos mais ou me-nos de� nidos, diferenciados e que, em muitos casos, se opõem. Entretanto, o que dá visibilidade e caracteriza ou con� gura a es-cola e aquele grupo unido em torno de determinados princípios ou doutrinas. Para � ns de análise nessa pesquisa, tratamos por escola o conjunto nacional e tentamos veri� car se a Geogra� a brasileira já se constitui ou se con� gura como escola.

Segundo Capel (1999)

a existência de uma comunidade cientí� ca especializada modela o pensamento de seus integrantes e, com o tempo, origina o que se tem denominado estilos de pensamento, que determinam a eleição dos problemas cientí� cos, as pergun-tas que são feitas, guiam as observações, estabelecem as re-gras para se trabalhar e ainda predeterminam o vocabulário que se há de utilizar. O que em muitas disciplinas cientí� cas se denominou de ponto de vista, talvez não seja mais que uma aplicação do estilo próprio de pensar da comunidade. (CAPEL, 1999).17

17 CAPEL, Horácio. O nascimento da ciência moderna e a América. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 1999. p. 20 e 21.

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Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do trabalho e a rea-lidade desnudam a questão e colocam em evidência a mescla de princípios, conceitos e métodos em termos globais, o que di� culta a construção e de� nição de identidades localizadas. A mundialização da economia, as megacidades, a revolução nos transportes e nas comunicações, as mais variadas formas de lin-guagens mesclam e imbricam as ideias, di� cultando ao analista a elaboração de atestados de originalidade. O mercado editorial distribui seus catálogos mundialmente, as universidades se cru-zam por meio dos programas de intercâmbio. O computador conecta e interage em sistemas especí� cos organizados em for-ma de redes. Sociedade, paisagem, ambiente, espaço e território circulam nas telas de cinema. Não obstante, sabe-se que nas re-lações sociais de produção que estruturam e dinamizam o mer-cado, o sistema de trocas, de intercâmbio geram uma situação de desigualdade, de excludência.

O Brasil e os demais países periféricos � cam contidos no quadro da porção dos excluídos, com sérias di� culdades de pro-jetar sua forma de conceber a ciência e, em caso especí� co, a Geo gra� a. E, como em outros países, não existe a princípio, uma única escola. Mesmo no interior das universidades localizam-se grupos de a� nidades que se contrapõem quanto às suas concep-ções, doutrinas, princípios e bases � losó� cas sustentadoras de suas posições no contexto da ciência geográ� ca.

Neste livro, considero enquanto escola brasileira, o con-junto de conhecimento sistematizado, conhecido e identi� cado como Geogra� a.

Esse saber produzido no Brasil acaba muitas vezes reduzin-do suas fronteiras, como se uma geogra� a brasileira só fosse ca-paz de gerar um saber interpretativo da realidade interna do país.

O Instituto de Geogra� a, em Paris, foi o local privilegia-do dos geógrafos. A complementação da pesquisa foi realizada

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na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), instituição que desfruta de grande prestígio internacional, por reunir em seu interior, pro� ssionais de todas as áreas das Ciências Humanas e, no IHEAL, Institut des Hautes Etudes de l’Amérique Latine. Paralelamente ao desenvolvimento da pesquisa e frequência aos cursos, integramos dois grupos que reúnem pesquisadores franceses e brasileiros voltados para a organização de seminários e discussões em torno da realidade brasileira.

• GRUPO B� SIL, tinha como animadores os geógra-fos Martine DROULERS e Bernard BRET do quadro do CREDAL (Centre de Recherche et de Documenta-tion sur l’Amerique Latine), U� do CNRS, associado ao Institut des Hautes Etudes de L’ Amérique Latine.

• GROUPE DE REFLEXION SUR LE BRESIL CON-TEMPO� IN, tinha como animadores os professo-res Ignacy SACHS e Marion AUBREE do Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain da Maison de Sciences de L ‘Homme.

O triângulo constituído pelos Institut de Géographie, Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine e École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, da Maison de Sciences de I’Homme propiciou uma rara oportunidade de poder olhar, comparar e questionar o estado da arte da Geogra� a francesa e suas repercussões no Brasil. Inserida no contexto histórico de relações mantidas entre os dois países, a pesquisa foi adquirindo mais nitidez. Permitiu traçar um percurso da geogra� a brasilei-ra, em particular o retorno às suas origens. Recuperar a partir dos primeiros contatos acadêmicos estabelecidos entre os dois países no período a partir do levantamento da produção cientí-

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� ca de brasileiros na França e de franceses que elegeram o Brasil como tema e campo de pesquisa.

Estudar a formação de uma geogra� a nacional advinda das relações estabelecidas entre a França e o Brasil permitia apreender o nível de envolvimento de geógrafos dos dois paí-ses, identi� cando momentos diferenciados de acordo com suas conjunturas. Na pretensão de construir um per� l da geogra� a brasileira, consoante as in� uências da escola geográ� ca francesa permitiu: enumerar os geógrafos daquele país que trabalharam sobre o Brasil ou que in� uenciaram a geogra� a brasileira, por meio da orientação de teses, edição de livros, textos ou outra atividade; veri� car em termos analíticos os momentos de pico dessas in� uências; relacionar aspectos da história de vida des-ses pro� ssionais com o tipo de in� uência exercida na geogra� a brasileira; mapear no espaço brasileiro as áreas que foram mais estudadas e quais foram os centros que estabeleceram maior in-tercâmbio geo grá� co com universidades francesas; localizar na França, quais as cidades/universidades que mais in� uenciaram a geogra� a brasileira; situar na França que cidades/universida-des receberam maior quantidade de pesquisadores brasileiros na área de Geogra� a; listar as principais linhas de pesquisas bra-sileiras que guardam ligação estreita com a França; identi� car a partir dos títulos das pesquisas realizadas por franceses no Brasil o nível de inovação quanto ao enfoque teórico-conceitual e me-todológico; veri� car em que medida ocorre a inserção e assimi-lação dessas inovações em termos de Brasil.

A de� nição dos procedimentos metodológicos e a abran-gência da pesquisa, dado ao seu caráter histórico-analítico exigiu o levantamento de fontes primárias e secundárias, entrevistas, e a elaboração de quadros e tabelas.

A fonte privilegiada de pesquisa primária foi a série de 104 volumes do Bulletin Intergeo, publicado desde 1966, pelo

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CNRS (Conselho Nacional de Pesquisa Cientí� ca), que registra os principais aspectos do desenvolvimento e da prática da geo-gra� a francesa. A estrutura da pesquisa atende satisfatoriamente as perguntas que a nortearam. O Intergeo contempla aspectos da formação de quadros, publica listas de professores e pesqui-sadores das universidades francesas. Informa sobre os eventos mais importantes da comunidade geográ� ca daquele país. For-nece com detalhes a posição de teses em geogra� a na França em vários períodos, publicação e/ou defesa de teses, bem como, o quadro de previsão de futuras defesas. Contar com essas infor-mações signi� ca ter a possibilidade de conhecer em termos evo-lutivos a expressão da geogra� a francesa, identi� car seus prin-cipais produtores e divulgadores nesse período. Outro aspecto interessante foi a possibilidade de se veri� car a evolução de te-máticas, relacionando os assuntos pesquisados pelos brasileiros com dados da realidade do país. A consulta minuciosa dos 104 volumes do INTERGEO, seguida de registros dos dados neces-sários foi complementada por levantamentos em fonte secundá-ria capazes de cobrir o período de 1934 a 1966. A aplicação de entrevistas junto a professores, técnicos e administradores for-neceram as demais informações para o preenchimento de nosso quadro de referências.

O levantamento forneceu-nos a listagem dos professores e pesquisadores franceses que estudaram ou trabalharam no Bra-sil. Permitiu identi� car, de imediato, os centros franceses gera-dores de pesquisa sobre o país.

As temáticas principais relacionadas com as mudanças so-fridas na espacialidade brasileira, revelaram a constante tentati-va de atualização da geogra� a francesa, como importante campo do conhecimento.

Os temas da atualidade e o surgimento e aplicação de novos conceitos revelam um período de grande efervescência

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da geogra� a quando os termos espaço, organização, “aména-gement”, território, meio, “médience” etc., assumem destaque na produção geográ� ca do país e são logo incorporados pela geogra� a que está se construindo no exterior. A comunidade organizada em torno de uma escola teria um forte poder dire-cionador de se pensar a ciência a partir de sua organização e de seus pressupostos. Para Bailly e Ferras (1997)18, a epistemologia em seu sentido etimológico é abordada como teoria da ciência, como dinâmica de um pensamento e de um discurso cientí� co. A epistemologia visa ainda três objetivos: um objetivo de co-nhecimento do pensamento dominante, ou seja, a pesquisa da problemática ou dos problemas maiores; um objetivo metodo-lógico para entender as modalidades de aquisição e de organiza-ção de conhecimentos que serão utilizados; um objetivo de cla-rear as providências para a organização do pensamento, indo da coleta de dados aos procedimentos de controle dos resultados.

A epistemologia adquiriu seu estatuto cientí� co na linha da � loso� a das ciências, a partir das obras de Descartes, Discurso do Método, de 1637 e Ensaio sobre a ! loso! a das ciências de Am-père, de 1860.

No Brasil, o tema da epistemologia da geogra� a adquiriu maior vigor a partir de 1978. Milton Santos foi pioneiro com seu livro Por uma geogra! a nova (1978), em que a� rma:

[...] desde a fundação do que historicamente se chama geo-gra� a cientí� ca, no � m do século XIX, jamais nos foi possível construir um conjunto de proposições baseados num sistema comum e entrelaçado por uma lógica interna. Se a geogra� a não foi capaz de ultrapassar esta de� ciência, é porque esteve sempre muito mais preocupada com uma discussão narcísica em torno da geogra� a como disciplina ao invés de preocupar-

18 BAILLY, A. e FERRAS, R. Éléments d’épistémologie de la géographie. Paris: Armand Collin, 1997. p. 6.

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-se com a geogra� a como objeto. Sempre, e ainda hoje, se dis-cute muito mais sobre a geogra� a do que sobre o espaço, que é o objeto da ciência geográ� ca.19

Quanto à produção de brasileiros na França, o levanta-mento evidenciou as áreas mais estudadas, as Universidades mais solicitadas e os orientadores mais procurados no período pesquisado. Lamentavelmente, os dados fornecidos pelo Bole-tin Intergéo não são precisos quanto ao ano de defesa da tese dos inscritos em programas de pós-graduação e não indicam a área de conhecimento desses estudantes.

Esse último aspecto impediu comparações entre o núme-ro de geógrafos e o de outros pro� ssionais brasileiros que reali-zaram suas teses na França.

As viagens de estudo de franceses ao Brasil foi outro tema enfocado na pesquisa. Há um período em que é frequente a pre-sença de estudiosos franceses no Brasil. .

Quanto à ida a França de pesquisadores ou professores brasileiros da área de geogra� a como convidados daquele país, a pesquisa registra um tratamento deveras desigual como já o era esperado em intercâmbios dessa natureza. O IHEAL - Instituto de Altos Estudos para a América Latina, é o centro de estudos e pesquisa que mais atraiu estudiosos brasileiros, num momento de forte interesse da França em estudar e compreender o Brasil.

O exame da listagem de cursos oferecidos pelas universida-des francesas, permitiu perceber a natureza dos temas relaciona-dos e determinados professores. Esse levantamento comprovou um acentuado interesse por temas ligados ao desenvolvimento, como crescimento demográ� co, Terceiro Mundo etc.

O material obtido com a aplicação de entrevistas revelou--se valiosa fonte para a compreensão da presença do pensamen-

19 SANTOS, M. Por uma geogra� a nova. São Paulo: HUCITEC, 1978. p. 2.

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to francês na geogra� a brasileira. Do universo de professores e pesquisadores franceses que, de alguma maneira, exerceram in-� uência na geogra� a brasileira, selecionamos alguns professores que ministraram curso ou desenvolveram pesquisa no Brasil; professores que orientaram teses de brasileiros na França; auto-res de livros e textos geográ� cos que in� uenciaram o pensamen-to geográ� co brasileiro independentemente de conhecerem ou não o país.

O roteiro de entrevista foi o mesmo do questionário en-viado por carta aos professores selecionados. Em alguns casos, conforme a natureza do entrevistado, houve ajustes buscando--se apreender ao máximo as contribuições capazes de responder às indagações que norteavam a pesquisa.

No seu todo, o material obtido durante a pesquisa possi-bilitou uma visão ampla da presença do pensamento francês na geogra� a brasileira e forneceu pistas para a elaboração da pre-sente investigação.

Dentre os professores brasileiros foram entrevistados: Milton SANTOS e Pedro Pinchas GEIGER, que muito con-tribuíram para a recuperação de informações sobre as relações França e Brasil, no período anterior a 1966, início de registro do boletim INTERGEO.

Hoje, é bem maior o interesse que a França tem pelo Bra-sil. Há uma renovação do quadro de professores e pesquisadores interessados pelo estudo e compreensão do país. É evidente que houve uma mudança de atitude. O Brasil dos anos 1990 guarda poucos vestígios daquele país que foi conhecido pelos expoentes da geogra� a francesa. O XVIII Congresso da União Geográ� ca Internacional, realizado em 1956, no Rio de Janeiro, foi o evento que marcou de vez a geogra� a brasileira. Foi a maior mostra da capacidade de ler e interpretar os fatos de natureza geográ� ca, a partir da realidade brasileira. Rigorosa na teoria e no método, a

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geogra� a brasileira mostrou-se vigorosa, com formidável apoio o� cial, no caso, do IBGE. Os estrangeiros que visitaram as ins-talações do Conselho Nacional de Geogra� a, nesse ano, � caram impressionados com a dinâmica e diversidade da produção geo-grá� ca brasileira. O evento foi marcante:

Pela primeira vez a U.G.I. promovia um colóquio mundial no hemisfério sul, e que atraiu uma delegação francesa constitu-ída de geógrafos da primeira linha tendo na linha de frente Maximilien SORRE. 20

Além das atividades desenvolvidas, foram preparadas de-zoito excursões atravessando vasta extensão do território brasi-leiro, sendo uma antes e outra depois do XVIII Congresso In-ternacional de Geogra� a. Os Guias para as excursões abarcavam os aspectos geográ� cos mais importantes das regiões visitadas. Foram todos publicados pelo Conselho Nacional de Geogra� a. Para sua confecção, foram reunidos pro� ssionais de primeira linha que garantiram o sucesso do evento. A versão em portu-guês começou a ser editada em 1957. As excursões com seus Guias correspondentes foram as seguintes: 1) Planalto Centro--Ocidental e Pantanal Mato-Grossense, de Fernando F. M. de Almeida e Miguel Alves de Lima (1959); 2) Zona Metalúrgica de Minas Gerais e Vale do Rio Doce, de Ney Strauch (1958); 3) A marcha do Café e as Frentes Pioneiras, de Ary França (1960); 4) Vale do Paraíba, Serra da Mantiqueira e arredores de São Pau-lo, de Aziz Nacib Ab’Saber e Nilo Bernardes (1958); 5) Planície Litorânea e Região Açucareira do Estado do Rio de Janeiro, de Lysia Maria Cavalcanti Bernardes (1957); 6) Bahia, de Alfredo José Porto Domingues e Elza Coelho de Souza Keller (1958);

20 VALVERDE, Orlando. La Coopération française dans la géographie bresilienne. In: F! NCE - BRESIL, VINGT ANS DE COOPE! TION. CARDOSO, Luiz Claudio e MARTINIÈRE, Guy, Paris: IHEAL/PUG, Paris/Grenoble, 1984. p. 83.

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7) Paisagens do Nordeste em Pernambuco e Paraíba, de Mario Lacerda de Melo (1958); 8) Amazônia, de Lúcio de Castro So-ares (1963); 9) Planalto Meridional do Brasil, de Orlando Val-verde (1957). Foram publicados durante o evento, em inglês e francês, constituindo uma das melhores mostras da capacidade brasileira de produzir geogra� a na segunda metade do século XX, quando eram poucos os cursos de graduação em geogra� a no país. A delegação francesa era a maior.

Se hoje é bem maior o interesse da França pelo Brasil, a reciprocidade não é perfeita. A França permanece como um dos países mais procurados pelos brasileiros para realizarem seus cursos de pós-graduação. É razoável o número de brasileiros matriculados nos cursos daquele país. Também é relevante a tra-dução de textos e publicação de autores franceses no Brasil.

Buscando diferentes caminhos e vivendo realidades dis-tintas, a situação da geogra� a nos dois países impõe novos ele-mentos de re� exão. A França, passada a grande crise teórica pós--marxista, a situação do Leste Europeu e a construção de uma Europa federativa, volta-se também para uma geogra� a euro-peia, buscando compreender temas que não foram estudados. As geogra� as de recorte nacional adquirem novos contornos com o novo desenho da Europa. A Comunidade Europeia e a Europa num sentido mais amplo têm impelido com maior a� n-co a geogra� a francesa à compreensão da nova con� guração do continente. Essa postura não invalida sua prática tradicional - a França e o Mundo, lendo-se como Mundo a África Negra, o Ma-gheb, a América Latina e o Sudeste Asiático.

O Brasil, par sua vez, na busca de a� rmação de uma geo-gra� a nacional, depara-se com uma profunda e longa crise que impõe a busca de novos referenciais capazes de explicar essa rea-lidade. Essa diferença de postura e interesse inseridos num con-texto histórico, coloca em evidência as geogra� as dos dois países.

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A Geogra� a francesa goza de grande prestígio e reconhe-cimento internacional. Entretanto, viveu seus “anos dourados” desde o início do século, alcançando o apogeu nas décadas de cinquenta e sessenta do século vinte. O Brasil, mesmo tendo co-nhecido a in� uência de outras escolas geográ� cas como a ame-ricana, a alemã, a inglesa, � rmou-se, na verdade, como um país sob forte in� uência da Geogra� a francesa.

A criação do curso superior de Geogra� a no Brasil, na USP – Universidade de São Paulo – no mesmo ano em que se criava aquela Universidade – 1934 – propiciou a formação de quadros nacionais que aos poucos foram auxiliando e substi-tuindo os mestres estrangeiros ao término de suas atividades no país.

Aos poucos, o Brasil busca sua autonomia por meio da criação de novos cursos de Geogra� a (Rio de Janeiro, em 1935) e criação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geogra� a e Estatís-tica), em 1937. O IBGE desempenhou um papel fundamental para delimitação, conformação e compreensão da realidade es-pacial brasileira. Foi o órgão que formou várias gerações de geó-grafos de excelente qualidade técnica, constituindo-se uma das principais “escolas” de geogra� a do país.

A pesquisa mostra com maior nitidez o percurso da geo-gra� a brasileira. A volta às origens, a leitura de relatos de viagens, o acesso a uma vasta bibliogra� a e a realização de várias entrevis-tas e contatos com professores e pesquisadores que exerceram in� uência no pensamento geográ� co brasileiro foram, em suma, reveladores.

Desnecessário falar da importância atribuída à produção cientí� ca francesa e do processo de maturidade alcançado pelos intelectuais brasileiros. Sergio MICELI, no seu livro Les Intelec-tuels et le Pouvoir au Brésil, assim comenta essa questão:

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A emergência desta categoria particular de intelectual que é o pesquisador pro� ssional � rmou-se, na América Latina, após a Segunda Guerra mundial e, sobretudo, nos anos 1960. O nascimento do pesquisador como também do universitário é, pois, particularmente recente. No máximo uma geração. O papel jogado por esta primeira geração de pesquisadores, nascidos entre 1945 e 1960, modi� cou consideravelmente as relações estabelecidas nos anos 1920/1945 entre os intelec-tuais e a pesquisa cientí� ca de uma parte, os intelectuais e o poder de outra. A análise de questões colocadas por esses no-vos intelectuais para compreender as grandes transformações que suas sociedades conheceram nestes últimos trinta anos, apareceu como uma pedra de toque de projetos de estabeleci-mentos de uma nova pesquisa em cooperação entre a França e a América Latina. 21

A a� rmativa é verdadeira no caso brasileiro. É inegável a qualidade de nossos pro� ssionais, como o é também, o peso intelectual que eles passaram a exercer na tomada de decisão de importantes políticas públicas brasileiras. No caso especí� -co dos geógrafos, é representativo o reconhecimento que eles conquistam. Além da qualidade, expressa em seus postos de tra-balho, vários geógrafos brasileiros alcançaram reputação inter-nacional. Entretanto, mesmo conhecendo e reconhecendo essa qualidade, � cava evidente a supremacia da geogra� a francesa. Os aspectos ligados a qualidade, o estabelecimento de vínculos entre a França e o Brasil � rmaram-se de tal forma que tornou quase constante a presença de franceses no Brasil e de brasilei-ros na França.

A relação estabelecida entre os pro� ssionais dos dois paí-ses não era marcada pela simetria, ao contrário, a tradição acadê-

21 MICELI, Sérgio. Les intellectuels et Ie pouvoir au Brasil (1920/1945). Paris: Ed. de la Maison de Sciences de I’Homme, 1981. In: CHOCCHOL, J. e MARTI-NIERE, G. L’Amérique Latine et Ie latino-americanisme en France. Paris: L’Harmat-tan, 1985. p. 28-30.

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mica francesa associada a longo período de aplicação de teorias e métodos em sua ação expansionista, garantia um caráter univer-sal, até estão desconhecido pela geogra� a feita no Brasil. Aqui os franceses fazem suas pesquisas e no passado muito contribuíram para que se � zesse a leitura geográ� ca do país, vislumbrando um projeto nacional a partir da ótica deles. Na França, o brasileiro enquanto pro� ssional situava-se, predominantemente, na con-dição de aprendiz da fundamentação teórica e metodológica norteadora daquela escola geográ� ca com suas diversas corren-tes. Poucos foram os casos de brasileiros que exerceram o magis-tério na França, e, quando o � zeram, era majoritariamente para falar de Brasil, do mundo tropical, de Amazônia ou Nordeste. Raros são os casos dos que ensinam ou ensinaram temas gerais ou europeus para os franceses.

Pesquisa realizada pela CAPES e CNPq, em 1992, junto a 635 estudantes brasileiros na França e respondida por cerca de 50% deles, a partir de questionários destinados a avaliação pes-soal apresentou, dentre outros, os seguintes resultados: os bol-sistas classi� caram a orientação recebida como fraca (28%), boa (43.6%) e ótima (45.2%). Quanto ao interesse do orientador no tópico de pesquisa do bolsista, 20% consideraram-no normal, 32.5% grande e 45.2%, muito grande. Na mesma pesquisa, 92% dos entrevistados, acharam o nível do corpo docente bom ou ex-celente, e 94.7% julgam ser bom ou excelente o nível das pesqui-sas realizadas em seus departamentos. Quanto aos orientadores, 91.7% os recomendam, indicando também para 92.7%, os seus departamentos de estudos a outros bolsistas brasileiros.22

Não temos dados especí� cos para bolsistas da área de Geogra� a. Os resultados, entretanto, revelam certa uniformi-

22 Publicado pelo Nouvelles APEB, Informativo da Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França, n. 7 dez. 1992, Paris.

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dade se for considerada a diversidade de áreas representadas nas respostas.

A pesquisa de antemão desperta novos interesses, exigin-do desdobramentos inclusive aqueles pertinentes ao retorno dos estudantes e pro� ssionais que optam pela França para reali-zar seus estudos de pós-graduação. Os dados da pesquisa reali-zada pela CAPES e pelo CNPq aguçam a curiosidade cientí� ca e constituem um incentivo ao prosseguimento, agora com outra abordagem e outras características, bem como novos objetivos e aspectos do percurso das relações França-Brasil.

O novo percurso signi� ca apreender com a maior nitidez possível, para � ns de análise, a condição pro� ssional em Geogra� a no Brasil, ou seja, ao voltar ao Brasil, qual a contribuição do pro-� ssional que fora, anteriormente, bolsista na França? A análise de temporalidades diferentes calcadas no antes e depois da perma-nência na França surge como uma espécie de apreciação sobre o desempenho de representantes da categoria dos geógrafos atuan-do na condição de técnico ou de professor após sua volta ao Brasil. Os questionamentos norteadores foram os seguintes:

• Esses pro� ssionais apresentaram mudança substancial na sua prática pro� ssional após sua permanência na França?.

• Exerceram/exercem função inovadora na produção geográ� ca brasileira?

• Assumiram cargos expressivos em diferentes órgãos de gestão administrativa pública ou privada no país?

• Têm tido forte ingerência em políticas públicas?

Constatou-se que parte da liderança intelectual dos pro� s-sionais da área de geogra� a repousa sobre aqueles que tiveram sua formação doutoral no exterior. No caso francês, é muito evi-dente. Todo esse quadro engendrou a necessidade de se repen-

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sar a Geogra� a brasileira, buscar compreender em que consiste a sua essência, e quais são suas novas possibilidades. O livro res-gata o conhecimento sobre as origens e caminhos da geogra� a brasileira, no que se relaciona com a in� uência exercida pelos franceses. A tese em si não esgota o assunto, mas permite apro-fundar o conhecimento em torno das relações entre os dois paí-ses a partir da geogra� a. Com certeza, ela responde de imediato às indagações e pressupostos norteadores iniciais da pesquisa.

Sabemos que a conjuntura dos últimos anos delineia no-vos blocos de poder, altera o mapa do mundo e estabelece no-vas relações. Nesse contexto, antigas e novas parcerias mantidas pelo Brasil com os chamados países centrais exigem interpreta-ções mais acuradas que permitam veri� car o desempenho de se-tores pro� ssionais no país, bem como avaliar a performance de um setor do conhecimento cientí� co do pais.

A Geogra� a francesa � rmou-se a partir da empreitada co-lonial estabelecida por aquele país. Num outro contexto histó-rico expandiu-se sob o rótulo de Geogra� a Tropical como des-dobramento da Geogra� a colonial e, mais tarde, ajustando-se ao quadro resultante da 2a Grande Guerra, converte-se numa Ge-ogra� a Terceiro-Mundista. Hoje, a realidade mostra um mun-do integrado pelo mercado. Considerando essa nova realidade, pergunta-se até que ponto a Geogra� a francesa tem gerado co-nhecimento capaz de explicá-la?

O Brasil, após a Segunda Guerra Mundial, inscreveu-se entre os países com possibilidades de desenvolvimento, co-nhecido como tardio. Na década de sessenta do século passa-do, após o golpe militar, o processo de modernização implicou na busca de modelos matemáticos neopositivistas, tidos como capazes de explicar a realidade social do país. A geogra� a, sin-tonizada com a experiência que o Brasil atravessava com cres-cimento econômico e grandes obras de infraestrutura, exerceu

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destacado papel naquele momento. A ciência geográ� ca buscou nos métodos quantitativos, as fórmulas possíveis de oferecer ex-plicações espaciais e resultados esperados. Viveu, naquele mo-mento, situação de ruptura parcial com a geogra� a francesa de corte mais clássico, pautada no ideário do arranjo e organização espacial. Esta prática dominante de parcela da geogra� a o� cial, atendia aos interesses do governo militar e da elite burocrática que se instalara no país. Por outro lado, as esquerdas, com apoio da Igreja e de outras instituições não o� ciais, buscam referências teóricas capazes de sustentar suas utopias de realidade e propos-tas partidárias.

A geogra� a pós-78, por meio de parte signi� cativa da categoria dos geógrafos, dentre aqueles mais atuantes, tendo à frente a AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), encontra, na escassa literatura de fundamento marxista, elementos para a reorganização da ciência. O movimento denominado Fortaleza 1978 foi um divisor de opiniões e posturas no modo de conce-ber, ensinar e aplicar a geogra� a no país. Inconformados com a estrutura hierárquica da AGB, vários estudantes e geógrafos pro-puseram outros rumos à Assembleia Geral, realizada no término do 3º Encontro Nacional de Geógrafos. Os con� itos não foram facilmente resolvidos, quiçá, jamais resolvidos. De concreto, aconteceu um movimento de renovação da geogra� a marcado pelo lançamento de livros, edição de artigos de teor marxista, com forte conteúdo social, exigindo uma postura dos pro� ssio-nais geógrafos diante da realidade. O Pós-78 signi� cou um re-arranjo no mapa da produção geográ� ca do país, inseriu novos personagens em cena, sacralizou uns e satanizou outros.

Neste quadro, Yves Lacoste, através de seu livro La géogra-phie ça sert d’abord a faire la guerre23, torna-se como uma espécie

23 LACOSTE, Y. O livro era divulgado informalmente em cópias feitas a partir da versão em português. Publicada em Portugal.

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de “guru” de toda uma geração de geógrafos brasileiros. A situa-ção decorrente desta mudança radical na geogra� a brasileira exi-ge um balanço do desenvolvimento da geogra� a nesse período via análise das relações entre os dos países. A pergunta que � cou foi se teriam os brasileiros produzido teses de teor marxista em programas de pós-graduação realizado na França ou se haveria uma geogra� a marxista naquele país quando da publicação do livro?

A prática colonial, característica da Geogra� a francesa, uma espécie de marca registrada, transformou-a num dos úl-timos ramos das ciências humanas a sofrer efeitos dos funda-mentos teóricos de origem marxista. A crise do marxismo dos anos 1980 impôs a busca de novos paradigmas. A geogra� a francesa teria encontrado no marxismo novos caminhos ou a publicação do livro de Lacoste, não estaria inserida num con-texto mais amplo com possibilidades de explicação da realida-de daquele país.

A a� rmação da geogra� a francesa em forma de ciência e conteúdo pedagógico resultou na criação de cursos de geogra-� a em vários centros universitários. Esta expansão promoveu o surgimento de centros especializados, como por exemplo: Gre-noble (Geogra� a Alpina); Brest (Geogra� a da Pesca e do Mar); Montpellier (Geogra� a do Magheb); Bordeaux (Geogra� a do Mundo Tropical) etc. A dispersão e a especialização de centros de ensino e pesquisa provocaram grandes mudanças na geogra-� a francesa.

Com relação aos geógrafos e suas áreas de especialização, denota-se uma espécie de recortes de especialização, muitas ve-zes coincidentes com os recortes de um país ou conjunto de paí-ses. Na América Latina se traduz em Argentina com domínio sobre a referência de Pierre Denis; Brasil com as � guras basilares de Pierre MONBEIG e Pierre DEFFONTAINES; México com

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Claude BATAILLON, Peru com Claude COLIN-DELA VAUD, entre outros.

Os discípulos desses mestres continuaram e continuam trabalhando sobre as abordagens fundadas em suas formulações iniciais, fazendo os ajustes que se tornam necessários. Muitos deles elegeram, a exemplo de seus mestres, aqueles países como áreas preferenciais de pesquisa. No caso brasileiro, é visível a diminuição em termos de área da abrangência da pesquisa. É compreensível a mudança ocorrida no país e o aumento do nível de complexidade exigido por cada pesquisador. Isto quer dizer que Hervé � éry pesquisou Rondônia; Yves Leloup, Minas Ge-rais; Raymond Pebayle, o Rio Grande do SuI, Martine Droulers, o Maranhão etc. Ao contrário de seus mestres que realizaram abordagens mais gerais sobre o país, estes � zeram estudos com-pletos em ambientes rural e urbano.

Outra evidência e a redução do número de pesquisadores vinculados ao Brasil e outros países da América Latina. Esta re-dução estaria indicando o alcance de certa autonomia, quando relacionada com a análise da realidade brasileira. Seria isso, se-não, indica que a América Latina teria deixado de ser centro de interesse para a Geogra� a francesa. Hoje, os geógrafos franceses presentes em missão ao Brasil, são ligados, majoritariamente a órgãos de pesquisa, independentemente de universidades.

A geogra� a francesa das ultimas décadas mudou de foco, voltando-se para um debate mais amplo capaz de inseri-la com maior consistência nos meios acadêmicos. Entre os geógrafos, alguns mais experientes gozam de muito prestígio. Entre os mais novos, vários ensaiam novas formulações. O antigo Grupo RE-CLUS, de Montpellier, em que a M.G.M (Maison de la Géogra-phie de Montpellier), foi fonte de inovação da geogra� a francesa e referência para o mundo, sua análise muda totalmente de eixo, ajusta-se às novas linguagens informacionais, convertendo-se

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em inovação na representação cartográ� ca e na análise geográ� -ca de maior complexidade.

Mediante os vínculos da geogra� a brasileira com a geogra-� a francesa, vários integrantes das novas correntes dominantes no Brasil colocaram em dúvida a tradicional � liação.

Tendo exercido grande in� uência na formação técnico--cientí� ca brasileira a geogra� a francesa contribuiu em vários programas e ações no país, ocasionando uma ampla divulgação e assimilação de novos conceitos como: “aménagement du ter-ritoire”, “ville-moyenne”, “métropole d’équilibre”, “téchnopole”, etc.. Hoje, domina outra realidade. A geogra� a se consolidou no país, � rmou-se em vários centros com a criação de cursos de gra-duação e de pós-graduação.

A propósito do avanço da geogra� a brasileira, Milton San-tos, no início dos anos noventa do século passado, já a� rmava que o país apresentava uma contrapartida:

Já é tempo de nos explicarmos sobre o que consideramos uma geogra� a brasileira. Não se trata de propor que se cerquem as fronteiras do país com uma espécie de cordão sanitário que impeça pessoas e idéias elaboradas no estrangeiro de aqui se instalar e in� uir. Nada disso. O objetivo e outro. Trata-se de ajudar o país a ser uma nação adulta, de um ponto de vista intelectual e cultural. Um país incapaz de gerar suas próprias idéias, esta fadado a ser um país dependente, ou, mesmo, não ser um país. Mas, construir uma Geogra� a brasileira signi� ca também construir um pensamento geográ� co que, nascido no Brasil, seja universal.24

O ilustre professor provoca um debate amplo e necessário. Sua fala signi� ca dizer que se nos mantivermos dependentes, se não alcançarmos um estágio caracterizado pela construção de

24 SANTOS, M. “0 Pensamento geográ� co e a realidade brasileira” In: SANTOS, Milton. (Org.). Novos rumos da geogra� a brasileira. São Paulo: Hucitec, 1982. p. 217.

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um discurso próprio, nada mais faremos do que importar fór-mulas e modelos e camu� ar soluções aplicadas em realidades distintas da brasileira.

A construção do conhecimento pressupõe um proces-so lento. O conhecimento geográ� co concebido e produzido a partir de ideias originais impõe desa� os. Cabe lembrar a impor-tância que Milton Santos atribui ao intercâmbio e à convivência com pro� ssionais estrangeiros.

Milton Santos insistiu na construção de um pensamento geográ� co brasileiro. Seu pioneirismo aparece com maior cla-reza no livro Por uma geogra� a nova, de 1978. Faz uma severa crítica aos rumos da geogra� a a� rmando:

[...] desde a fundação do que historicamente se chama geo-gra� a cientí� ca, no � m do século XIX, jamais nos foi possível construir um conjunto de proposições baseados num sistema comum e entrelaçado por uma lógica interna. Se a geogra� a não foi capaz de ultrapassar esta de� ciência, é porque esteve sempre muito mais preocupada com uma discussão narcísica em torno da geogra� a como disciplina ao invés de preocupar--se com a geogra� a como objeto. Sempre, e ainda hoje, se dis-cute muito mais sobre a geogra� a do que sobre o espaço, que é o objeto da ciência geográ� ca.25

A construção do conhecimento no contexto da produção cientí� ca é expressão da formação de grupos especializados for-mados em ambientes propícios à re� exão, à análise e à crítica. Referindo-se ao conhecimento cientí� co, Pinto (l969), assim se expressou:

Sendo processo, e histórico e progressivo, por essência, o co-nhecimento cienti� ca de cada momento constitui a premis-sa do conhecimento cientí� co do momento seguinte. Sendo

25 SANTOS, M. Por uma geogra� a nova. São Paulo: Hucitec, 1978. p. 2.

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metódico, e adquirido voluntariamente e em função de regras para a exploração da realidade objetiva, física e social que con-dicionam a natureza dos resultados obtidos.26

O ambiente francês anunciava inovações no campo teórico--metodológico. Segundo Pinchemel (1992)27a nova geogra$ a acarretou, necessariamente, uma mudança nos conceitos. Os conceitos da Geogra$ a Clássica, região, sobretudo meio, paisa-gem não resistiram às mudanças de perspectivas e de métodos e foram substituídos por um único conceito, o de espaço. Pinche-mel (1992).28

26 PINTO A. V. Ciência e existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 31.27 PINCHEMEL, Philippe. L’Aventure géographique sur la terre”. In: Encyclopédie de Géographie. Paris: Economica, 1992. 1132p.28 _______. L’Aventure géographique sur la terre”. In: Encyclopédie de Géographie. Paris: Economica, 1992. 1132p.

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2ANTECEDENTES: A GEOGRAFIA

FRANCESA NO BRASIL A geogra� a francesa sempre demonstrou muito vigor. En-

tretanto, sua a� rmação passa pelo reconhecimento internacional das teses formuladas por Vidal de La Blache (1845/1918). O mais famoso geógrafo francês de todos os tempos foi professor da Escola Normal Superior de Paris desde 1878. A partir daí ampliou signi� cativamente seu raio de ação quando ocupou a cátedra de Geogra� a da Universidade de Sorbonne, in� uenciando um gran-de número de discípulos em França e no exterior, principalmente nos Estados Unidos da América. La Blache é considerado o fun-dador da Escola Francesa de Geogra� a. Cabe destacar seu princi-pal livro o Tableau de Géographie de la France que se tornou leitura obrigatória entre a intelectualidade francesa de seu tempo. Coube também a ele a fundação da revista Annales de Géographie.

Historicamente pode-se dizer que a geogra� a francesa � rmou-se com La Blache, sendo aplicada fartamente junto à ação colonial exercida pelo país durante muitos anos. Sobre esse tema, Manoel Correia de Andrade, profundo conhecedor da geo gra� a francesa a� rmou:

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A França deglutia, no início do século XX, o segundo maior império colonial da superfície da Terra, necessitando, natu-ralmente, de confundir a política colonial com os interesses humanísticos de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista dos povos ditos inferiores. (AND� DE).29

A geogra� a tropical, desenvolvida posteriormente pelos geógrafos franceses, substituiu em parte a ação do país nesse campo da ciência, após o processo de descolonização. O des-mantelamento do império colonial não impediu a presença dos geógrafos franceses junto aos novos estados formados em Áfri-ca, Ásia e América Central. O grande representante da Geogra-� a Colonial foi o Prof. Pierre Gourou, do Collège de France e da Universidade de Bruxelas, autor do livro Les pays tropicaux edi-tado pela PUF – Presse Universitaire de France, em 1947. Outro nome da Geogra� a Tropical muito conhecido é o do Prof. Guy Lasserre que assim se expressou em entrevista concedida ao au-tor, em janeiro de 1993:

“Eu sou fundamentalmente tropicalista e criei em Borde-aux o Centro de Estudos em geogra� a tropical (CEGET) sobre os auspícios do CNRS”.

Poder-se-ia também dizer que a geogra� a terceiro-mun-dista seria um misto de geogra� a colonial com geogra� a tro-pical. Entretanto, de geogra� a colonial com geogra� a tropical ou que ela rejeitava os dois, razão das principais desavenças da época, que acabou com o Ceget, de Bordeaux. O fato concreto é que a realidade, hoje, mostra um mundo globalizado, em que o mercado dita as normas. Sob este aspecto, a pesquisa geográ� ca

29 AND� DE, Manoel C. de “O pensamento geográ� co e a realidade brasileira”. In: MILTON, Santos (Org.). Novos rumos da geogra! a brasileira. São Paulo: Hucitec, 1982. p. 184.

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francesa se ajustou a esta nova con� guração mundial, irradiando suas in� uências, buscando adequar-se a essa nova realidade. A geogra� a brasileira, por sua vez, � cou conhecida quase que emi-nentemente como de alinhamento francês.

A geogra� a brasileira insiste em sua a� rmação. Busca a construção de sua identidade enquanto campo cientí� co en-frentando problemas de várias ordens: o excessivo número de cursos de formação pro� ssional, orientados para o magistério e para a formação técnica; questões ligadas à de� nição do que seria em termos de competência o professor e o técnico, a de-� ciência dessa formação no que concerne ao número reduzido de pro� ssionais envolvidos no debate em torno da de� nição dos caminhos da ciência geográ� ca. A discussão em torno da distinção entre o que seria a geogra� a como disciplina escolar, como conhecimento cientí� co e como conjunto instrumental técnico-operacional, prolonga-se há alguns anos, sendo possível enumerar outras questões ligadas à produção cientí� ca, divulga-ção, tipos de formulações, papel da geogra� a enquanto ciência no contexto político nacional, as lutas corporativas na busca da valorização desse campo do conhecimento etc.

O fato concreto é que ao buscar compreender suas ori-gens, seus caminhos ou descaminhos, a geogra� a brasileira en-frentou esbarrões ligados ao “empréstimo cientí� co-cultural” ou a “difusão cultural” que se instalou o� cialmente no país a partir de 1934 com a criação do primeiro curso de geogra� a, da USP. Poucas vezes a análise da contribuição de escolas foi abordada. Sabe-se que a geogra� a brasileira conheceu outras in� uências que teve outras linhas de análise como a americana e a alemã. Geógrafos de várias nacionalidades e outros pesquisadores com trabalhos de cunho geográ� co elegeram o Brasil como sujeito de suas indagações, formulações teóricas, buscas e explicações. Hoje, é forte a in� uência exercida por geógrafos espanhóis e

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portugueses, fruto de diversos convênios e acordos � rmados en-tre o Brasil e os dois países.

Tornou-se senso comum a� rmar que a geogra� a brasileira é fruto da geogra� a francesa. Não se conhece, entretanto, com major clareza, a extensão desses vínculos; por isso decidimos averiguar como se estabeleceram essas relações.

Cabe à geogra� a brasileira veri� car os desenhos que se de� niram no país, quanto aos centros que � rmaram maior ou menor contato com a geogra� a francesa. Ao mesmo tempo, foi necessário identi� car os geógrafos franceses que escolheram o Brasil como campo de trabalho e de pesquisa, e, a partir das in-formações, detectar em que nível essas relações se mantêm.

Nos casos de registro de brasileiros que estudaram na França e que exerceram cargo no magistério ou na pesquisa, a partir de convites � rmados em programas de cooperação técni-ca, estaria implícito que, em toda essa relação, não teria havido apenas uma situação de transposição de formulações teórico--metodológicas da geogra� a francesa; ao contrário, esse fato, se registrado com certa frequência, pode revelar que o Brasil tem ou teria condição de estabelecer o que se pode chamar de uma escola de geogra� a brasileira.

A presença marcante da geogra� a francesa no Brasil é tida por alguns teóricos como um dos entraves para que este ramo cientí� co tivesse outro desempenho, tendo em vista o fato de ser a geogra� a francesa encarada como tradicional em sua abor-dagem mais geral. Entretanto, leva-se em conta que, através dos tempos, a geogra� a francesa tem conseguido avançar na elabora-ção de novos conceitos e aplicação. Independentemente desses avanços há indícios de que, no caso brasileiro, existiu o domínio de certos grupos cristalizados na França, sendo que alguns au-tores que inovaram a geogra� a foram tardiamente conhecidos ou permanecem em certo anonimato no país. Contrariamente,

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ocorrem casos que revelam certa exclusividade ou mesmo iden-ti� cação em determinados ramos da Geogra� a Humana, que acabam sendo traduzidos como sinônimos daquele setor do co-nhecimento. Esta presença da geogra� a francesa no Brasil nem sempre seguiu seu curso de forma tão tranquila. Há registros de casos de rupturas, quando determinados setores da produção e divulgação da geogra� a brasileira procuram novas referências matriciais. O caso mais conhecido e o do IBGE, órgão o� cial da geogra� a brasileira que na década de sessenta do século passado, assumiu a postura de se pautar a partir da geogra� a teorética, de base quantitativa, de origem anglo-saxônica.

Toda a efervescência dos anos 1980 sofre certo colapso na passagem para a nova década, com novos fatos que redesenham o mundo e alteram signi� cativamente sua aparência. Destacam--se neste contexto a queda do Muro de Berlim e o desmanche da URSS, além do surgimento do chamado bloco dos países pós--comunistas, o fortalecimento de lutas nacionalistas e a con� -guração de novos blocos de poder etc.

O estudo da geogra� a francesa, de suas escolas e ten-dências, a difusão de suas linhas de pesquisa pelo mundo e principalmente no Brasil, permite, especialmente, o estabele-cimento de análises comparativas. Permite face às abordagens de franceses e brasileiros em torno de questões ligadas ao pro-cesso de urbanização, metropolização, formação de periferias, movimentos sociais, cidadania, cotidiano, imaginário, repre-sentação, redes, � uxos, espaço, território etc. Permite a busca das diferenças de contextos políticos e culturais da França e do Brasil, na tentativa de clarear alguns enfoques tidos como ambíguos. A atualização bibliográ� ca e outras pesquisas em curso oportunizaram a percepção parcial do estado da arte da geogra� a e principalmente da Geogra� a Humana francesa. Essa oportunidade propiciou alguns questionamentos sobre a

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Geogra� a francesa, no que tange aos seus princípios e funda-mentos e suas relações com o Brasil.

A elaboração do texto no seu todo evoca um quadro bem distinto do vivido pela geogra� a francesa no século passado, quando criava teorias e modelos que eram de pronto incorpo-rados e aplicados nos países que viviam sob a égide da hegemo-nia francesa. A diferença contextual repousa em constatações e indagações sobre a abrangência internacional da geogra� a francesa nos dias atuais. O advento da internet com a divulga-ção on line de informações associadas às novas regras impostas pela ciência no que tange a concepção, elaboração e publica-ção de resultados de pesquisas em periódicos indexados, re-conhecidos internacionalmente. Essas mudanças abalaram o prestígio internacional de várias escolas nacionais ou mesmo regionais, exigindo a incorporação de novos procedimentos em consonância com grandes centros reconhecidos como ir-radiadores de inovações. Por sua vez, o mercado editorial tem que se ajustar à imposição dos novos tempos. Livrarias virtu-ais facilitam a divulgação e distribuição da produção cientí� ca. É nesse quadro de conjuntura que se pergunta se a geogra� a francesa teria acompanhado essas mudanças e se teria preser-vado o mesmo peso e a mesma força de períodos passados. A geogra� a e alguns geógrafos que ocupavam lugar de destaque nos moldes conhecidos como convencionais estariam passan-do por uma fase de “ocaso”, se comparados com novos pro� s-sionais. Referimo-nos àqueles que editam e-books, fazem tele-conferências, mantêm per� s na internet e circulam com muita rapidez os resultados de suas pesquisas. É evidente que a geo-gra� a não conta com a mesma expressão que conhecera antes. São vários os geógrafos de prestígio; no entanto, esse prestígio não parece atingir a Geogra� a para destacá-la, colocá-la em evidência. Ao contrário dos geógrafos que gozam de prestígio,

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muitos deles são confundidos com pro� ssionais de outras áre-as do conhecimento, logo, não há ressonância capaz de valori-zar, gerar prestígio para a Geogra� a. Desses pro� ssionais, que estão em cena adquirindo certo prestígio, respeitabilidade e notoriedade, poucos são conhecidos no Brasil. Nesta situação citamos Marcel RONCAYOLO, Diretor de Estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, autor de vários livros e artigos na área de Geogra� a urbana e urbanismo e de farta di-vulgação nos meios técnicos e cientí� cos da França. Augustin BERQUE também se inscreve entre eles, geógrafo reconheci-do por seus trabalhos variados sabre o Japão, e também Dire-tor de Estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Poderíamos enumerar mais alguns, mas com certeza esses dois exemplos são su� cientes para sustentar nosso argumento. Cabe dizer que, desses geógrafos, quase todos trabalham em instituições marcadas pela multidisciplinaridade.

A Geogra� a alcançou grande prestígio no âmbito acadê-mico e cientí� co na França e constitui-se em importante ramo de sua política externa. Tal prestígio perdura não se sabe se fun-dado na qualidade de suas formulações atuais ou devido à he-rança daquilo que a geogra� a representou. A partir disso, teria se construído um mito em torno de sua qualidade, aplicação e dinâmica.

Em sua trajetória, a Geogra� a francesa teve anos de glória, fundada na obra de uns poucos geógrafos, optou durante algum tempo pela Geogra� a Lablacheana e, por meio de sua institucio-nalização, foi criando centros de formação e de pesquisa. Esses centros ao mesmo tempo em que serviram para criar a imagem de Mundo na França e de França no Mundo, constituíram-se em referências bibliográ� cas com enorme capacidade de divulgação e difusão cultural, tendo momentos mais voltados à explicação de um mundo que se transformava.

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Das descrições da Geogra� a Colonial, da interpretação da França a partir de suas regiões que passaram a ser propriamen-te sua maior leitura, a Geogra� a francesa voltou-se para temas novos embora algumas vezes tratados com metodologia velha. Um dos espaços preferenciais da Geogra� a francesa foi a África. “Temas como Terceiro Mundo, Subdesenvolvimento, Mundo Tropical, Aménagement” do território, entravam em cena, res-paldavam alguns geógrafos e garantiam o prestígio e privilégios a ciência geográ� ca.

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3A HEGEMONIA DA GEOGRAFIA

FRANCESA NO BRASIL O reconhecimento da excelência da geogra� a francesa

se manifestava no Brasil pela escolha da França como melhor destino capaz de oferecer aperfeiçoamento e quali� cação pro-� ssional. Essa escolha permanece em muitas áreas. No caso da geogra� a, vive-se um momento de retração, face à implantação de cursos de mestrado e doutorado em geogra� a, em várias cida-des brasileiras. Durou mais de meio século o apreço e admiração dos brasileiros em torno da qualidade da geogra� a francesa. Não importa saber se ele foi elaborado dentro ou fora das fronteiras daquele país. Os professores franceses, especialmente os orien-tadores de tese e coordenadores de laboratórios foram convida-dos para vir ao Brasil ministrar cursos, proferir palestras, acom-panhar trabalhos de campo ou assessorar grupos de pesquisa ou equipes ministeriais. Apesar da admiração e de uma sensível reação da geogra� a francesa face à geogra� a germânica, ainda é duvidoso saber se hoje ela ainda estaria habilitada a manter-se em posição confortável como o foi nos anos anteriores. Alguns a� rmam que ela estaria perdendo lugar. A questão é outra, o de-

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bate deve veri� car se o Brasil elegeu outras bases matriciais ou se sua produção cientí� ca é capaz de atender as suas demandas e necessidades. Independentemente da questão do “mito” é muito forte a tradição de estabelecimento de laços cientí� cos e cultu-rais entre França e Brasil. Nesse contexto, a geogra� a assumiu importante papel e não raros são os geógrafos que exerceram acentuada importância na comunidade geográ� ca brasileira.

A vinda dos primeiros franceses em 1934 está ligada aos nomes de dois geógrafos daquele país: Pierre De� ontaines e Pierre Monbeig. A permanência desses mestres especialmente favoreceu a implantação de uma cultura geográ� ca nos moldes acadêmicos e organizacionais franceses, que resultou na criação de cátedras, segundo o modelo que lá vigorava como também a criação da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB, nos moldes da similar francesa. Monbeig viveu em São Paulo, totali-zando onze anos de permanência no Brasil.

A propósito da discussão em torno da construção da he-gemonia da geogra� a francesa no Brasil e o peso representado pelo desempenho do professor Monbeig, uma consulta a três autores, um francês e dois brasileiros, revelam uma convergên-cia de opiniões, embora cada em deles enfoque aspectos bem di-ferenciados entre si. Neste sentido, segundo Droulers, geógrafa do IHEAL e ex-aluna do Prof. Monbeig:

Pierre Monbeig, ao longo de sua permanência prolongada (1935-1946) na Universidade de São Paulo participou naque-le momento particular da introdução da Geogra� a nova no Brasil. Isto quer dizer, não somente na elaboração de cursos universitários, mas também, na de� nição e animação dos do-mínios de pesquisa. 30

30 DROULERS M. “Le Developpement de la Geographie Bresilienne” In: PIERRE MONBEIG. Un Geographe Pionnier. Paris: IHEAL,1991. p. 95

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O texto prioriza o lado empreendedor do Prof. Monbeig, citado como o responsável pela introdução da Geogra� a Nova no Brasil.

O Prof. Manoel Correia de Andrade registra sua opinião sobre o Mestre francês, destacando sua contribuição no Brasil via consolidação da vida acadêmica, que terá um peso signi� -cativo na estruturação de uma cultura geográ� ca brasileira com matriz francesa da seguinte maneira:

Sua ação na Universidade de São Paulo foi das mais importan-tes porque ele estruturou e consolidou a cátedra de Geogra-� a, depois transformada em Geogra� a Humana, e contribuiu para a criação das cátedras de Geogra� a Física, que teve em João Dias da Silveira o seu primeiro titular e de Geogra� a do Brasil, que foi ocupada por Aroldo de Azevedo a preocupação central de sua obra que foi de analisar problemas, re� etindo sobre as causas que o provocaram, as paisagens e os proble-mas que os geraram e as soluções que podem ser sugeridas para a solução dos mesmos.31

Explorando outro aspecto da presença prolongada de Monbeig e sua obra no Brasil, assinalando o lado negativo de poucos terem tido acesso aos trabalhos de qualidade do mestre, assim se manifestou a Profa. Maria Isaura Pereira de Queiroz:

Pierre Monbeig deixou um grande número de estudos sobre o Brasil principalmente artigos dispersos em numerosas re-vistas, das duas costas do Atlântico; estes trabalhos preciosos não tocaram senão um círculo restrito de colegas e de estu-dantes, isto é a comunidade cientí� ca a qual ele pertencia. Ele não � gura, que eu saiba, sobre as mesas de trabalho dos diri-gentes do país, nem sobre as dos políticos que ambicionam

31 AND! DE, Manoel Correia de. “Pierre Monbeig e o Brasil”. In: MONBEIG, Pierre. Un Geographe Pionnier. " ~ry, H. e Droulers, M. (Org.). Paris: IHEAL, 1991. p. 53-4.

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desempenhar papéis importantes na vida nacional. Entretan-to, esses trabalhos lhes dariam conhecimentos adequados e profundos da realidade social do país, de seus mecanismos, das transformações em curso.32

Fica evidente o reconhecimento que os três autores cita-dos manifestam pelo Prof. Pierre Monbeig, o que reforça o peso exercido pela Geogra� a francesa no país e sob que condições ela cria suas bases. O depoimento da Profa. Maria Isaura Pereira de Queiroz é revelador e adquire um caráter crítico e de denúncia, ao mesmo tempo em que registra certo descaso em relação a um saber produzido num momento em que a nação tinha grande necessidade de conhecimento de sua própria realidade.

O país crescia, acompanhava a transferência da população do campo para as cidades e ao mesmo tempo avançava interior adentro, seguindo a marcha do café. Essa realidade espacial bra-sileira instigava investigação, pesquisa, busca. Face às necessi-dades prementes de pesquisa, os geógrafos não poderiam � car imunes a esse apelo. Em resposta, ocorre um salto quantitativo e qualitativo da geogra� a no país.

Uma multiplicidade de fatos e situações exige e impõe de-sa� os ao geógrafo. Diante dela, o maior é responder às inquieta-ções e demandas sociais. As respostas deveriam estar respalda-das em conhecimento novo, o que signi� cava a necessidade de se construir no país um referencial teórico-metodológico capaz de apreender para � ns de análise essa realidade.

O país necessita embrenhar-se no seu conhecimento, fazer um reconhecimento de sua territorialidade, estabelecer suas ba-ses cartográ� cas consoantes aos trabalhos de campo que se reali-zam. Ao geógrafo recém-formado ou em formação cabia a tarefa

32 QUEIROZ, Maria Isaura P. “La Recherche Geographique au Bresil” In: MON-

BEIG, Pierre. Un Geographe Pionnier. Op. cit., p. 64. (T.A.).

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de desbravar o país em todas as direções, mostrar as faces des-conhecidas de uma nação. Um gigante agrário, com economia agroexportadora. Um país que conhece um processo acelerado de industrialização e de urbanização. Espacialidades cambiáveis que revelam imagens diferenciadas do país exigem quali� cação, acuidade, rigor teórico. O país se urbaniza rapidamente.

Os problemas vividos quando da formação dos primeiros pro� ssionais no país se aguçaram. A geogra� a � rmou-se como disciplina escolar obrigatória. No campo cientí� co, o IBGE am-pliava seus quadros, realizava pesquisas. Nos Departamentos recém-criados, alunos dos cursos de Geogra� a e História (trata-va-se de uma única formação) faziam seus trabalhos de campo, constatando no real concreto o que era estudado e discutido em sala de aula.

Os últimos dados censitários (2010) comprovam um comportamento contínuo e aglomerado da população com praticamente 85% do total concentrada em cidades, sendo que parte substancial desse percentual vive nas grandes cidades. Não só a geogra� a, porém toda a ciência e a sociedade buscam ele-mentos analíticos elucidativos da complexidade do urbano no país. O aumento progressivo da população e o advento de uma realidade urbana totalmente nova culminam com a emergência de problemas sociais até então desconhecidos. O mesmo se dá com a realidade agrária e agrícola, com a circulação de pesso-as, mercadorias e capitais, novas necessidades de transporte. As mudanças especiais eram visíveis face à nova lógica de organi-zação do território. A hegemonia do transporte rodoviário alte-ra substancialmente a espacialidade do país. As antigas cidades dos vales cortados pelas ferrovias, dão lugar a novas cidades nos planaltos com a implantação das rodovias e o crescimento da indústria automotiva. O comércio litorâneo se recompõe em função do reforço das capitais em detrimento de antigos portos

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servidos pela navegação de cabotagem. A transferência da capi-tal federal em 1960 e o consequente domínio das superfícies de Cerrado do Centro-Oeste resultaram em mudanças estruturais no espaço brasileiro. O país muda rapidamente sua imagem. Sua inserção no contexto internacional favorece a emergência de te-mas novos como a “Questão Amazônica”, a “Questão Nordeste” no âmbito da “Questão Nacional”. Esses e outros tantos temas instigam e desa� am os geógrafos à interpretação e à descoberta. Suas análises eram realizadas em diferentes escalas. O construir--se cotidiano dessa nova realidade resultou no desenvolvimento da geogra� a brasileira mais dependente, sem dúvida, no início, de referenciais estrangeiros, especialmente franceses. O reco-nhecimento da qualidade de suas re� exões era patente. Traziam em sua formação o conceito de ciência aplicada. Aziz Ab’Saber, em seu depoimento, dá a dimensão do caráter aplicado da pes-quisa entre os mestres franceses. Assim a� rma

Monbeig investia contra o uso abusivo da expressão ciência aplicada, na qual cada grupo de especialistas procura uma aplicação para sua área de conhecimento, sem levar em con-ta as fortes interações necessárias para sua aplicabilidade. Em um congresso de cientistas franceses, Pierre Monbeig defen-dia a ideia de que existem aplicações de ciências e não apenas um caso solista de aplicação de uma ciência. Nessa ocasião, o mestre intuitivo que nele existia, procurava reorientar o pen-samento de seus colegas para o campo da interdisciplinarida-de indispensável às tarefas de aplicação de ciências a diferen-tes interesses da sociedade e do desenvolvimento econômico e social. Mal sabia Monbeig que estava provocando com vara curta os seus vaidosos colegas, cada qual pretendendo encon-trar aplicações isoladas no campo cientí� co a que se dedica-vam. (AZIZ AB’SABER, 1994).33

33 Aziz Ab’Saber, Estudos Avançados, (8-22), 1994. p. 232.

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Os geógrafos brasileiros percorreram um longo caminho. Associada a dinâmica da realidade socioespacial do Brasil, a desvantagem numérica no que tange ao reduzido número de pro� ssionais para cobrir um país de tão vasta dimensão, impu-nha sérios obstáculos. A ausência de pessoal quali� cado abriu as portas do Brasil aos estrangeiros. Historicamente, viajantes, naturalistas, artistas entre outros, registravam suas impressões sobre a realidade das áreas por eles visitadas, enfocando aspec-tos da paisagem, dos tipos característicos, arranjo espacial, tipo de construção etc. Esses textos constituem documentação im-prescindível ao resgate da dinâmica espacial brasileira nos seus primórdios.

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4PERIODIZAÇÃO: UMA SUGESTÃO

Uma proposta de periodização corre sempre o risco de estar carregada de valores subjetivos de seu proponente, o que é até certo ponto, lógico. Entretanto, independentemente dos objetivos, interesses, metodologias e fontes teóricas, os cortes de tempo, tendo em vista a periodização vinculam-se a fatos e/ou eventos que pela sua signi� cância por si só constituem um marco ou etapas no tratamento de temáticas as mais diferencia-das possíveis. No caso especí� co de análise das relações França e Brasil mediadas pela Geogra� a, é importante o resgate das in� u-ências, trocas recíprocas e ou formação de uma escola autônoma de geogra� a no Brasil, o que implica em perseguir metodologi-camente esse percurso, buscar sua verticalidade, sem esquecer os desdobramentos de cada fato/evento/fase/etapa com a pre-ocupação de não romper a totalidade. Assim, as horizontalida-des são obtidas criando um painel que indica direção, caminho, percurso, sem que as nuances sejam desprezadas.

Nos termos da periodização proposta, 1934 despon-ta como ano privilegiado, pois é a data da criação do primeiro curso superior de geogra� a no país. Marca o início da geogra� a

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acadêmica, da geogra� a cientí� ca, o surgimento dessa geogra-

� a de caráter mais acadêmico. Não implica a� rmar que não ha-via nenhuma abordagem geográ� ca no país até esse momento. Cabe lembrar a existência dos compêndios de geogra� a e outros trabalhos do Prof. Delgado de Carvalho (Paris, 1884/1990)34

Desta feita, a proposta de periodização privilegia 1934. A partir dessa data/marco inicia o período que foi denomina-do de Aproximações. Esse período pressupõe a discussão em torno da instalação dos primeiros cursos de geogra� a de nível superior no país. Ele marca o início de uma forte in� uência francesa com a presença de professores daquele país que cria-ram escola e deixaram marcas profundas nas instituições por onde passaram além de imprimir um “modo” francês de se fa-zer a ciência geográ� ca.

O outro tema, intimamente ligado ao anterior, volta-se à discussão em torno da construção da hegemonia da geogra� a francesa no Brasil. A realização do Congresso da UGI (União Geográ� ca Internacional), no Brasil em 1956, assume impor-tância capital – há uma espécie de coroamento daquelas ati-vidades iniciadas 22 anos antes. Como não poderia deixar de ser, o congresso constitui um marco fundamental para a com-preensão desse percurso. A partir do Congresso da U.G.I., in-tensi� cou-se a presença dos franceses no Brasil. Foram muitas as visitas de grandes mestres, algumas mais duradouras, for-mulações de novas teorias levando em conta a espacialidade e peculiaridades do país.

A contratação do Prof. Michel Rochefort, em 1961, pelo CNG do IBGE, é o início de uma fase de alianças entre os dois

34 Lecionou no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Publicou vários livros dos quais destaco os seguintes: O Brasil Meridional, em 1910; Geogra! a do Brasil, em 1913; Meteorologia do Brasil, em 1916.

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países, marcada pela entrada em cena de renomados professores franceses. 35

Dentre os vários que aqui estiveram Pierre George me-rece destaque, pois, exerceu enorme in" uência na geogra$ a bra-sileira. Tornou-se referência bibliográ$ ca quase que obrigatória nos cursos de Geogra$ a. Nas discussões que enfocam a relação da geogra$ a francesa com a brasileira, Pierre George pode ser classi$ cado como exemplo de uma situação de permanência, tratado aqui no item Exclusividades que analisa o fato que in-dependentemente de opções teórico-metodo1ógicas, o ilustre professor permanecia como inalterado, numa posição tranquila, editando seus livros em português pela DIFEL – Difusão Eu-ropéia do Livro, de São Paulo, sob os auspícios da Presses Uni-versitaires de France, de Paris e pela Editora Fundo de Cultura, do Rio de Janeiro. Mantinha um público cativo. A estabilidade alcançada por Pierre George não indica de forma alguma que as relações acadêmicas seguiam o curso regular com os franceses.

Em entrevista concedida ao autor em Paris, em novem-bro de 1992, assim se manifestou o Prof. Pierre George: “[...] as relações entre meus colegas e amigos brasileiros e eu foram distendidas. Por que, ao mesmo tempo, a geogra$ a brasileira foi atraída por outros correspondentes.”

35 Professor Emérito da Université de Paris I e Presidente do Conselho de Adminis-tração do Instituto Francês de Urbanismo, dedicou-se à Geogra$ a Urbana e à dis-cussão das desigualdades socioespaciais, particularmente, nos países em desenvol-vimento, especialmente, o Brasil. De suas obras destacam-se : Dynamique d’espace � ançais et aménagement du territoire de 1995 e Le dé! urbain dans les pays du Sud, de 2000. Manteve fortes vínculos com diferentes organismos de gestão e de desenvol-vimento na França e no Brasil e Bernard Kayser o famoso professor da Universidade de Toulouse da área de Geogra$ a Agrária, autor de vários livros e artigos publicados em revistas especializadas. Foi geógrafo contratado pelo DATAR, pelo Ministère de l’Agriculture e foi presidente da Universidade Rural Europeia. Integrava também a equipe do CIEU - Centre Interdisciplinaire d’Études Urbaines).

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A introdução da Nova Geogra� a no Brasil, de inspiração anglo-saxônica se inscreve no país num período de Distancia-mentos com a geogra� a francesa. Até então a geogra� a brasileira era tratada de forma monolítica, como se não existissem a ca-racterização de grupos com preferências e per� s diferenciados nos vários centros urbanos do país onde funcionavam cursos de graduação e alguns de pós-graduação. Havia evidências que já despontavam nessa época sintomas de autonomia manifestado em grupos com linhas diferenciadas de compreensão, aplicação e análise do saber geográ� co.

Em Rupturas privilegia-se um corte duplo entre a geo-gra� a dos dois países. Duplo no sentido de rompimento com a prática da geogra� a no Brasil, dominada pela aplicação de mo-delos teoréticos quantitativos da Nova Geogra� a e, ao mesmo tempo signi� ca uma ruptura com a chamada Geogra� a francesa de corte clássico. Nessa fase, as obras de Yves Lacoste recebem tratamento especial pelo peso que assumiram no período.

Dessa forma, para � ns de tratamento em bloco, foi sugeri-da uma periodização que caracterize essa época. Isso não quer dizer que esse bloco encerre a pesquisa. Noutros capítulos dedi-cados ao assunto, serão abordados outros aspectos dessa relação entre os dois países. Para assegurar mais destaque ao ingresso de pro� ssionais geógrafos que prosseguiram a trilha aberta a partir de 1934, um capítulo é dedicado a entrada em cena de geógra-fos que optam pelo Brasil para suas pesquisas, orientação de te-ses etc. Um outro capítulo elaborado foge de uma periodização. Trata-se do que discute a produção de brasileiros na França a partir de sua participação em programas de pós-graduação rea-lizados naquele país. Completando a análise, um breve capítulo aborda “o Brasil na França e o Brasil visto pelos franceses”, ba-seado em interessantes depoimentos que permitiram aproximar de um per� l de imagens provocadas pelo Brasil.

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4.1 Aproximações: a Implantação de Cursos de Geografia no Brasil

Historicamente, pode-se dizer que a Geogra� a francesa � rmou-se no país a partir dos primeiros compêndios produzi-dos por brasileiros, embora dominados por conteúdos da geo-gra� a francesa.

A criação de cursos de nível superior de geogra� a no Brasil fomenta a formação de pessoal quali� cado e a a� rmação des-ta área do saber, delineando a institucionalização da geogra� a no país. Os mestres estrangeiros comandaram o processo for-necendo, aos nossos olhos, um referencial analítico totalmente novo. Amplia-se assim a sistematização de conhecimentos sabre o país.

Aroldo de Azevedo, renomado professor da Universidade de São Paulo, em brilhante discurso da solenidade de abertura do I Congresso Brasileiro de Geógrafos, realizado em Ribeirão Preto, em julho de 1954, na condição de Presidente da AGB e da Comissão Executiva do Congresso, referindo-se às condições de ensino da geogra� a brasileira quanto à produção e método a� r-ma: “Os métodos que caracterizam a moderna Geogra� a che-garam tardiamente ao nosso país; ou, para ser mais exato, passa-ram a ser mais amplamente conhecidos há bem pouco tempo.” (AZEVEDO, 1956).36

Prosseguindo, o grande mestre que difundiu e deu res-peitabilidade à geogra� a com seus famosos livros didáticos, foi categórico:

36 AZEVEDO, A. Discurso de Abertura do I Congresso Brasileiro de Ge6grafos, da As-sociação dos Geógrafos Brasileiros. v. 8, tomo 1. São Paulo: AGB, 1953/1954, 1956. p. 22.

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Não ignoro que, no decorrer das três primeiras décadas de nosso século, brasileiros cultos demonstraram, por sua produ-ção, conhecer as modernas diretrizes da Geogra� a. Euclides da Cunha, embora não possa ser considerado um geógrafo, estava a par das idéias de Ratzel e de Willian Davis, por exem-plo. Isolado no seu longínquo Maranhão, Raimundo Lopes, no decorrer da segunda década escreveu um livro ‘O Torrão Maranhense’, em que se sente a presença do verdadeiro geó-grafo e no qual aparecem citações do ‘Traité de Géographie Physique’, de Emmanuel De Martonne. Do mesmo tipo são os trabalhos de Everardo Beckheuser, de Fernando de Raja Gabaglia e de Sylvio Fróis Abreu, publicados antes de 1930.37

O Prof. Aroldo de Azevedo, como não podia deixar de fazê-lo, prestou homenagem ao grande inovador e criador da Geogra� a brasileira, o Prof. Delgado de Carvalho. Suas palavras foram as seguintes:

No entanto nesse período a � gura central, a grande perso-nalidade da Geogra� a brasileira foi, sem a menor dúvida, o ilustre professor Carlos Delgado de Carvalho. Todas as vezes que leio suas obras escritas nessa época, maior se torna minha admiração por esse grande brasileiro já por todos proclamado 0 pioneiro da moderna Geogra� a no Brasil. Geógrafo do tipo atual aparece quando fez sua estréia, em 1910, ao publicar a obra “Le Brésil Meridional”. Mais seguro em sua orientação, sem exagero um verdadeiro revolucionário dentro da rotina em que vivia a Geogra� a brasileira, surge quando entregou ao público a sua notável “Geogra� a do Brasil”, em 1913. Verda-deiro homem de ciência demonstra ser ao escrever sua “Mé-téorologie du Brésil”, publicada em 1917. Inegavelmente um mestre aparece quando, já na terceira década do século, com-pôs aquela série de conferências, reunidas sob o titulo geral de “Fisiogra� a do Brasil.”38

37 AZEVEDO. A. Op. cit., p. 22-23.38 ______. Op. cit., p. 23.

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Dentre os estrangeiros, os franceses foram marcantes. Fi-zeram escola. Não eram apenas geógrafos. Quando da criação dos primeiros cursos superiores no Brasil, nos anos 30 do sécu-lo passado, pesquisadores de várias áreas do conhecimento, que mais tarde � cariam célebres no cenário internacional passaram parte de sua vida acadêmica no Brasil.39

4.1.1 Fase da construção da hegemonia

A partir daí a França criaria raízes no país. Inicia-se um período de forte vinculação, ocasionando a vinda de vários geógrafos, além de outros pro� ssionais franceses ao Brasil. Na Universidade de São Paulo (USP): P. De" ontaines, P. Monbeig, Emile Coornaert, Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, Paul Arbousse-Bastide, Etienne Borne, Jean Mogüé, Robert Garric, Pierre Hourcade, François Perroux, René Courtin, Pierre Fro-mont - Na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro): Henri Hauser, Gaston Leduc, Maurice Bye e, em Porto Alegre, Jacques Lambert.40

Esse fluxo vai se diluindo à medida que as Universida-des brasileiras se estruturam com a instalação de laborató-rios, grupos e núcleos de pesquisa e institucionalizam um plano de capacitação e preparação do pessoal especializado para substituir os convidados estrangeiros. No contexto das políticas desenvolvimentistas no pós-guerra, é criada a CA-PES, em 1951, como Campanha de Aperfeiçoamento do Pes-soal de Nível Superior. A agência voltada a assegurar a exis-

39 Para mais aprofundamento ver MONTEIRO, Carlos Augusto F. A Geogra� a no Brasil (1934- 1977): avaliação e tendências. São Paulo: Instituto de Geogra� a, Uni-versidade de São Paulo-USP, 1980. 40 CHONCHOL, Jacques e MARTINIERE, Guy, ”L’Amerique Latine et Ie latino-americanisme en France. Paris: L’Harma& an, 1985. p. 90.

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tência de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades dos empreendimen-tos públicos e privados, com atuação junto às universidades e institutos de ensino superior, era vinculada ao Ministério da Educação e Saúde.

Dos geógrafos visitantes contratados como professores em nossas universidades, com suas análises gerais sobre a si-tuação geográ� ca brasileira, chega-se ao Congresso da U.G.I. (União Geográ� ca Internacional).

4.1.2 O Congresso da UGI

O Congresso da UGI foi um acontecimento de grande va-lor histórico Referindo-se a esse evento assim se expressou Nice Lecocq Muller (1956), 41 “o planejamento antecedeu a fundação das novas cidades com critérios rigorosos de localizações que permitissem o acesso da população rural.” Sobre o Congresso da UGI foi enfática ao a� rmar: [...] além de propiciar renovação de pontos de vista e de métodos pelo contato com especialistas estrangeiros, estimulou uma série de estudos urbanos.42

O Congresso marca o início de contato com uma geo-gra� a mais cientí� ca. O evento foi determinante no estabeleci-mento de novas relações. A partir dele, intensi� cou-se o # uxo de brasileiros em direção à França em busca de aperfeiçoamento. Cresce o interesse pela especialização.

41 Nice Lecocq Muller foi uma das geógrafas mais in# uentes do país. Aluna de Mon-beig especializou-se em geogra� a urbana. Dedicou-se ao planejamento urbano e re-gional. É autora do renomado livro O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba, de 1969.42 MULLER, N. L. Evolução e estado atual dos estudos de geogra� a urbana no Bra-sil. In: Instituto Panamericano de Geogra� a e Hist6ria – IPGH. Simposio de geogra! a urbana. Publicação, Rio de Janeiro, n. 274, Comissão de Geogra� a, 1968. p. 16.

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Orlando Valverde, conhecedor profundo da história da geogra� a brasileira, referindo-se ao Congresso, destacou sua ex-cepcionalidade e sua importância:

Um episódio excepcional de relações culturais em matéria de Ge-ogra� a foi a oportunidade oferecida pelo XVIII Congresso Inter-nacional de Geogra� a, que se realizou no Rio de Janeiro de 3 a 18 de agosto de 1956. Pela primeira vez, a União Geográ� ca Interna-cional (UGI), patrocinava um colóquio mundial sob os trópicos e no hemisfério sul. A delegação francesa não era a mais numero-sa mas foi sem contestação, uma das mais brilhantes... Maximi-lien Sorre, Pierre George, Jean Dresch, Jean Tricart, Pierre Birot, André Cailleux, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Michel Rochefort, Bernard Kayser, P. De� ontaines, P. Monbeig,... B. Kayser revelou um novo campo de idéias, de grande interesse econômico e so-cial para o Brasil: a Geogra� a do emprego... M. Rochefort pro-vocou um grande interesse no curso que ministrou no Conselho Nacional de Geogra� a, onde introduziu as noções de Geogra� a dos Serviços e os conceitos de centro e rede urbanas.43

A partir daquele momento, a geogra� a � rma-se numa tra-jetória ascendente em que o IBGE passou a exercer papel de destaque. A intensi� cação do intercâmbio provoca o contato com uma literatura geográ� ca especí� ca que alcançou grande produção nos anos cinquenta e sessenta do século passado.

Essa produção signi� cativa de textos básicos de funda-mentação da geogra� a francesa contribuiu sobremaneira para preencher certo vazio teórico-metodológico da ciência geográ� -ca no tratamento de temas que a nova realidade exigia. Para veri-� car se havia diferença de tratamento de situações distintas, no que tange às realidades socioespaciais entre a França e o Brasil,

43 VALVERDE, OrIando. ”La coopération française dans la géographie brésilienne”, In: France-Brésil. Vingt ans de coopération, Obra coordenada por Cardoso, Luiz C. e Martiniére G., Collection “Travaux et Mémoires” n. 44, Paris/Grenoble, IHEAL/PUG, 1989. p. 83.

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foram entrevistados vários geógrafos franceses, especialmente os que mantiveram relações de trabalho cientí� co com o Brasil.

Jean Labasse, renomado geógrafo da Universidade de Lyon, a� rma o seguinte em seu depoimento:

O trabalho no Brasil muito me ensinou em particular sobre o funcionamento das redes urbanas. Eu devo também a minhas estadas no seu país certo modo de apreciação dos grandes es-paços, que eu não obtive em outros lugares, minhas perma-nências no Canadá foram limitadas às províncias do Leste e a minha passagem pelas URSS foi muito rápida.44

Labasse ressalta a diferença da escala, um dado fundamen-tal no processo de diferenciação. Ainda nessa direção, quando da entrevista com o geógrafo Bernard � YSER, versando sobre o mesmo tema, sua resposta contundente:

“Se eu não houvesse ‘trabalhado’ no Brasil, eu não teria, no que concerne ao Terceiro Mundo, esta doutrina intuitiva que me permitiu alguns cursos e artigos muitas vezes contrários às opiniões e análises comuns”45 Kayser deixa evidentes as diferen-ças de contexto socioespacial. Atribui à sua estada ao Brasil, a mudança de suas concepções sobre o espaço.

4.1.3 Distanciamentos: a “Nova Geografia”... e a França passou a ser vista por lideranças da geografia brasileira como referência do velho, do passado

A geogra� a brasileira em busca de seu rumo, e, na tentativa de dar respostas à dinâmica de seu território e de sua sociedade

44 Entrevista realizada pelo autor em dez. 92.45 Idem.

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que se transformava rapidamente na virada da década de 1960, adquire efervescência ao mesmo tempo em que se atrela, em termos o� ciais a uma orientação bem diferente daquela que vi-gorava a partir do Congresso da UGI. Desenhava-se um outro país, e o Estado repressivo, resultado do Golpe de 1964, não tardou em se servir da geogra� a não só para fazer a guerra, mas para aniquilar áreas de congregação de ideias e resistências. A exígua liberdade, quando existia, ainda era vigiada. O Estado militarizou-se rapidamente e se organizavam formas so� stica-das de controle. A geogra� a preparava-se para dar sua resposta. A proposta o� cial � cou prenhe de status. Uma geogra� a sendo elaborada em moldes matemáticos, tendia a ser, aos olhos de alguns técnicos ansiosos por reconhecimento e prestígio o� -cial, uma geogra� a mais exata e mais cientí� ca, amparada por fórmulas e modelos, alcançaria maior aplicação e reconheci-mento. Vários pro� ssionais tornaram-se executivos da geogra-� a brasileira � rmaram-se a partir do golpe. Intensi� cou-se o � uxo Rio de Janeiro, Brasília, Washington. Perdia a sociedade, ganhava mais uma vez o Estado num contexto cada vez mais repressivo e excludente.

Corroborando esta tese, Monteiro (1980) propõe 1968 como marco divisório para o que ele chamou de “proclamação o� cial” da adição das novas práticas de análise geográ� ca.46

Perseguindo essa linha de raciocínio, Faissol (1978) na Introdução de seu livro Urbanização e Regionalização, publica-do pelo IBGE, quando da apresentação do artigo de Gunnar Olsson, faz uso de uma linguagem até então incompreensível à maioria dos geógrafos brasileiros. O lançamento do livro ocorre dez anos após a chegada da Geogra� a Teorética no Brasil.

46 MONTEIRO, Carlos Augusto Figueiredo. A Geogra! a no Brasil (1934-1977): avaliação e tendências. São Paulo: Instituto de Geogra� a, 1980.

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[...] seguindo a linha metodológica de Michael Dacey utiliza modelos de distribuição de pontos segundo diferentes leis de probabilidades (as mais freqüentes são a Poisson, e as famílias de distribuição do tipo contágio, como a Binomial Negativa).47

4.1.4 Exclusividades: Pierre George

O Prof. Pierre George tornou-se uma espécie de unanimi-dade nacional no que concerne à geogra# a. Suas obras editadas no Brasil há muitos anos ainda são adotadas em vários de nossos cursos acadêmicos. Enquanto pesquisador, produziu um consi-derável volume de textos entre livros, ensaios, relatórios de pes-quisas, artigos em revistas especializadas, conferências etc.

Hoje, a presença de Pierre George é mais tênue nos circui-tos acadêmicos, e, por descuido ou deformação de nossas práti-cas didático-pedagógicas, os autores tidos ou classi# cados como clássicos, são considerados pelos professores universitários de geogra# a como ultrapassados. A observação é valida para vários autores, inclusive brasileiros, cuja vasta experiência alcançada na produção cientí# ca # ca esquecida nas prateleiras de bibliotecas ou arquivos. A procura exacerbada do novo, mesmo sendo inte-ressante, peca pela perda da historicidade do processo de pro-dução do saber. Basta perguntar quantos alunos leram o livro A Cidade dos Países Subdesenvolvidos, um clássico do Prof. Milton Santos. O mesmo pode ser perguntado em relação ao Prof. Ma-noel Correia de Andrade. Seu tão citado livro A Terra e o Homem no Nordeste, outro clássico da geogra# a brasileira não é lido pela juventude acadêmica de geogra# a, embora seja leitura obrigató-ria para alunos de outros cursos. O mesmo poderia ser dito para o internacional Geogra! a da Fome, de Josué de Castro – ilustre

47 FAISSOL, Speridião (Org.). Urbanização e regionalização. Rio de Janeiro: IBGE/Secreta-ria de Planejamento da Presidência. da República, 1978. p. 22.

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desconhecido para a maior parte dos alunos. A análise especí� ca da situação de Pierre George fundada na sua condição de autor bem difundido no Brasil, tendo parte signi� cativa de suas obras editadas no país pela DIFEL.48

Quanto às suas experiências com a pesquisa e com o mun-do, onde se inclui o Brasil, assim se expressou GEORGE:

Em 1946 começa a descoberta de ‘outro mundo’ pelo primei-ro contato com a Tunísia, o que será seguido de vários perío-dos de permanências na condição de professor na Universida-de de Tunis [...]. Mais tarde, as viagens ao Marrocos guiadas por F. Joly, Jean Le Coz, Daniel Noin. Mais o principal campo de observação onde as viagens se associam a participação em congressos, colóquios e a períodos de ensino e a América La-tina: o Brasil, 1956, 1962, 1968, o Chile, 1966, a Argentina, 1965, 1969, a Venezuela, 1977, o México, 1964, 1976, 1978, 1980, 1982, 1984.49

A atualidade do Prof. GEORGE pode ser observada pela análise do conteúdo de várias conferências realizadas no Brasil em 1962, no IBGE, Rio de Janeiro. A citação extraída de um tex-to de uma conferência proferida em 1963, quando abordou o tema “Alguns Problemas do Estudo Geográ� co da População”, revela um geógrafo atualizado. No trecho citado, o renomado professor analisa a realidade dos futuros tecnopolos compon-do a paisagem industrial dominante nos países desenvolvidos. Quando discutia o item, novos aspectos do desenvolvimento industrial, a esse respeito a� rmou:

48 Entre os mais importantes citamos: Os grandes Mercados do Mundo. 3. ed. 1969; Geogra! a industrial do mundo. 5. ed. 1979; A Geogra! a do Consumo. 2. ed. 1971; Geogra! a social do mundo, 1969; Geogra! a da população, 5. ed. 1978; Geogra! a da URSS, 1970; Geogra! a agrícola do mundo, 3. ed. 1975; A Ação do homem, 1971; Os métodos da geogra! a, 2. ed. 1978; O Meio ambiente, 1973; População e povoamento, 1975; Panorama do mundo atual, 6. ed. 1979; Populações ativas, 1979. 49 GEORGE, P. “Le métier des géographes”. Paris: Armand Colin, 1990. p. 235.

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A localização depende apenas da aceitação e escolha dos ho-mens cada vez mais difícil, quanto à instalação geográ� ca. Importa-lhes, efetivamente, usufruir todas as vantagens ofere-cidas pelas técnicas modernas sem sofrer os inconvenientes. Novos tipos de localização em regiões mais agradáveis de se-rem habitadas e melhor providas dos serviços mais requisita-dos (Grenoble na França) substituem as antigas � xações nas sombrias regiões carboníferas ou nos tristes subúrbios.50

George detinha um conhecimento acurado. Obteve reco-nhecimento na França, onde era chamado para dirigir ou com-por equipes de planejamento e gestão. Foi um geógrafo sagaz e crítico. Testemunha dos avanços alcançados pela geogra� a fran-cesa, desenvolve um julgamento severo em relação ao excessivo nível de fragmentação da ciência geográ� ca. É mordaz e rigoro-so quando revela os diversos compartimentos incomunicáveis dos laboratórios e núcleos de pesquisa.

Pierre George em seu magní� co livro Le Métier de Géogra-phe, comemorativo de seus cinquenta anos de geogra� a, reúne um conjunto de artigos que revelam suas inquietações, suas an-gústias com o rumo da ciência geográ� ca. Nos Annales de géo-graphie51, discute as “Di� culdades e incertezas da geogra� a.” O texto revela um pro� ssional atualizado com os acontecimentos. Trata-se de um texto precursor, em que George coloca a inter-rogação da categoria que pergunta – “Será a geogra� a realmente uma ciência em si mesma, considerando o que ela faz com seus métodos e suas diligências?” Tentando responder a esta pergun-ta e diante das di� culdades encontradas pela geogra� a, o autor prossegue com seus questionamentos – O que resta da geogra-� a? Um letreiro sobre a porta de onde partem corredores que

50 GEORGE, P. “Alguns Problemas do Estudo Geográ� co da População”. In:____. Visita de mestres ! anceses. Rio de Janeiro: IBGE, 1963. p. 31.51 GEORGE, P. Annales de géographie, LXXXV, 1976. p. 48.63.

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conduzem aos laboratórios de geomorfologia, de pedologia, de sedimentologia, de climatologia, mais ou menos metereológico, mas também de estruturas agrárias, de demogra� as, de urbanis-mo, de estudos de transportes, onde se duelam técnicos que se ignoram uns aos outros”. Critica o cienti� cismo dizendo que ele só conduz a setorialização e à fragmentação e que o mesmo de-ságua no esquematismo com tendência ao perfeccionismo.

Seu amadurecimento se expressa no desenvolvimento de uma consciência crítica quando fala dos limites da ciência geo-grá� ca face aos desa� os impostos pelos novos tempos.

Chega um momento onde o arsenal do geógrafo parece desusado e inadequado para prosseguir um movimento que se diversi� ca e se acelera ao ponto que o sistema universitário tradicional com a produção de teses exaustivas, incapaz de seguir o ritmo dos eventos, parece totalmente inadaptado. (GEORGE, 1990).52

Cobrava da geogra� a mais coerência, mais objetividade. A� rmava: “Uma ciência se de� ne por seu objeto e por seus mé-todos. Todo método que não se adapta ao objeto é inadequado”53

Dentre outras publicações do Prof. George sobre o Bra-sil citamos: “Originalité des capitales des pays temperés de l’Amérique Latine”, Revista Geográ� ca, Instituto Pan-ame-ricano de Geogra� a e História, Rio de Janeiro, dec. 1967, p. 31-42; “Des routes de l’aventure aux pullmans des autoroutes au Brésil”, Transport, Paris,1959, p. 112-118; “Aire Métropoli-taine, conurbation ou région industrielle, les cas de São Paulo”, dans Régionalisation de l’Espace au Brésil, Bordeaux, Centre d’Etudes Géographiques des regions tropicales et Paris CNRS, 19971, p. 175-183.

52 George, P. Le métier de géographe. Paris: Armand Colin. 1990. p. 81.53 Id. Ibid., p. 81.

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O período conhecido no Brasil como o de renovação te-órica e metodológica da geogra� a coincide com o início de um forte distanciamento dos geógrafos brasileiros em relação às po-sições do Prof. Pierre George. Entretanto, o volume de sua obra, o número de edições alcançadas por vários de seus livros com-prova a importância que ele assumiu no Brasil.

4.1.5 Novas alianças: Rochefort e Kayser, o urbano e o rural

As considerações do Prof. Carlos Augusto Monteiro so-bre a contratação do Prof. Rochefort pelo IBGE e o número de viagens de estudo, de pesquisa e assessoria que fez ao Brasil in-dicam a signi� cância de sua presença entre nós e o reforço que será dado nas relações entre os dois países no que concerne ao intercâmbio cientí� co e cultural. O Prof. Rochefort simboliza um período de grande procura da França para a orientação de teses e, nesse quadro, assume um papel preponderante.

A in! uência de Michel Rochefort não apareceria apenas nos trabalhos baseados na aplicação de seu método. Suas idéias, sua orientação no modo de encarar o problema de redes ur-banas � cariam registradas em outros trabalhos recentes, inde-pendentemente do método de estudo adotado.54

Com vistas a um maior aprofundamento de sua entrada em cena nas relações cientí� cas entre os dois países, optou-se pela transcrição integral da entrevista realizada em dezembro de 1992 em Paris:

54 CORREIA, R. Lobato. “Os Estudos de Redes Urbanas no Brasil ate 1965”. In: GEOG$ FIA URBANA, Comision de Geogra� a, IPGH, N° 274 Rio de Janeiro, 1968, p. 192.

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Entrevista com o Professor Michel ROCHEFORT

Dentre as várias atividades desenvolvidas por Michel Ro-chefort no Brasil, a mais conhecida é a de assessor. Entretanto, também exerceu atividades ligadas ao ensino. Diz o mestre que ensinou seja para a aplicação da geogra� a ao serviço do “aména-gement”, seja para a pesquisa e o ensino propriamente ditos, só em algumas missões.

Eu estive, por exemplo, um ano na Universidade de Recife, em 1961-1962, passei o ano letivo para ensinar Geogra� a, mas a ge-ogra� a aplicada, geogra� a visando o ‘aménagement’ do território. A aplicação da geogra� a ao ‘aménagement’ regional e urbano.

Prossegue o professor:

Depois eu participei de missões essencialmente para as quais eu fui convidado para serviço de “aménagement”. (1966-1967) em 1966 via CEPAL e em 1967 no IPEA. Quem dirigia o IBGE, naquela época era Mme. Velloso. Depois, eu trabalhei no CNPU - Comissão Nacional de Políticas Urbanas, e a partir de 1974, com interrupção em 1967-68, na cidade de S. Paulo, com Maria Adé-lia no Ministério do ‘Amenagement’ ou Secretaria de Estado de Planejamento, no Programa de Cidades de Porte Médio. Eu tra-balhei em Brasília no CNPU e cada vez eu fazia conferências nas Universidades; mas eu não havia ido diretamente para ensinar.

Sobre as atividades mais recentes diz:

E somente há alguns anos eu � z missão especial para ensinar no quadro de cooperação técnica entre França e Brasil (CAPES/COFECUB), em Salvador e Belém. Estive em Brasília em missão do CNPU. De outra vez fui a Fortaleza proferir algumas confe-rências. Estive no Brasil, creio que vinte e seis (26) vezes a partir de 1956. Fui vinte e seis vezes ao Brasil e cada vez que eu fazia conferências nas Universidades, posso dizer, em todas as univer-sidades brasileiras.

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Sobre as conferências proferidas assim se manifesta:

Eu � z conferências em Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, S. Paulo, mas também em Presidente Prudente, Recife, Salvador, Belém, Brasília, Vitória e a cada vez ensinar era uma função se-cundária em relação à missão principal que era de cooperação técnica e de serviço do ‘aménagement’ brasileiro para aplicação da geogra� a. E cada vez a serviço do acordo de cooperação entre a França e o Brasil. O primeiro acordo, eu penso, que data de 1948. Você sabe, havia um serviço permanente de cooperação técnica entre a França e o Brasil. Penso que M. Pebayle foi o último � an-cês que esteve no Brasil por esse acordo. É possível. Eram acordos � rmados com objetivos acadêmicos. Os que eu participava eram acordos de cooperação técnico-cientí� ca, mantidos por órgãos o� -ciais dos negócios estrangeiros da França. Esses acordos com o Brasil � nanciavam minha missão e, secundariamente, o Brasil me convidava para fazer conferências nas Universidades. Eu comecei a ter responsabilidades na Secretaria de Planejamento (1974), onde a Profa. Maria Adélia de Souza era coordenadora de Ação Regional. Meu papel universitário consistia em receber alunos com suas pesquisas, suas teses. Eram alunos oriundos de várias universidades do país e para mim, essa atividade signi� cou mais do que ensinar no Brasil.

Rochefort, com sua argúcia, ajusta seu discurso, adaptan-do-se à realidade do país. Diz que o Brasil de hoje é bem mais complexo. Tratar o país como um todo é muito difícil para um estrangeiro. Hoje, os pesquisadores tendem a pesquisar estados da federação ou regiões. Evidencia que cada vez mais se focali-za o “particular”; conforme o aprofundamento dos mecanismos de orientação da geogra( a nova, a geogra( a dos atores, a análi-se dos mecanismos; “eu creio que quando se passa da descrição da paisagem à análise dos mecanismos da relação entre espaço e sociedade, de todo o modo na geogra( a dos atores estuda-se o “particular”, para perceber melhor essas verdadeiras relações.

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Passa-se a uma geogra� a de correlação onde há a paisagem assim é uma outra coisa etc. Quando modi� quei essa parte de minha atividade, assumi na condição de professor no Togo, na Univer-sidade de Daomé, para concluir uma tese sob minha direção. Bem, eu sempre tentei mesmo quando eu estava no Brasil, con-tinuar com a atividade de cooperação e com a pesquisa urbana na África, ou melhor, no Maghreb, África Tropical. Eu dirigi um considerável número de teses lá, sobre o Maghreb, particular-mente sobre a famosa tese de Signolles, na Tunísia, discutindo o espaço tunisiano, eu dirigi ainda e acaba de ser defendida uma tese muito interessante que se chama “Pobreza urbana e mobili-dade residencial em Marrakech.” Motivado com sua prática pro-� ssional como diretor de pesquisa, o professor prossegue ver-sando sobre o tema e conteúdo da tese, especialmente no que concerne à abordagem metodológica adotada.

Trata-se de um novo esquema de orientação, que toma o fenôme-no social da pobreza para compreender como se explicam os me-canismos de troca de residência no interior do espaço urbano ou suburbano, a segregação socioespacial e a mobilidade dos pobres na pesquisa da habitação onde eles não são só marcados pela sim-ples segregação, mas têm uma capacidade de mobilidade dentro dos espaços da pobreza. Você poderá dizer que esses espaços da pobreza integram uma dinâmica porque há, sobretudo, no caso dos imigrantes, um espaço de ‘acolhimento’. Trata-se de espaços de solidariedade de alguém. Só assim, conseguem escapar da história da pobreza.

Opinando sobre a relação França-Brasil no tocante a ativi-dade acadêmica voltada para a geogra� a quando discute as fases dessa relação, diz que

os dois países viveram momentos de forte aproximação, momen-tos de aparente ruptura e outros, marcados pela ausência de brasi-leiros matriculados em cursos de pós-graduação na França. Alem

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disso, parece que há enfoques teórico-conceituais diferentes, prin-cipalmente no momento em que na França a discussão em torno da queda do marxismo já havia sido incorporada, ao contrário do que se deu no Brasil.

A� rma que a dinâmica é extremamente lógica, que são duas questões diferentes do ponto de vista da relação entre o pensamento francês e a geogra� a brasileira. Sobre sua atuação noutros países e seu olhar sobre a geogra� a, a� rma: “Dentre os países que eu colaborei, eu percebi que há uma dinâmica onde, de partida, se recebe certo número de conceitos, de noções, de uma geogra� a que se quer universal, mas que é francesa e, então, que tem conceitos e noções que são marcados ao mesmo tem-po pela estrutura do pensamento francês e a originalidade do espaço francês onde ela foi trabalhada. Isso e a infância quando se recebe conceitos e noções dos outros; e depois há, necessaria-mente, o momento em que alguém se rebela - e isso é legitimo! Esta revolta contra esses conceitos é o momento da busca da autonomia, é buscar sua autonomia sobre o planejamento dos meios. Finalmente, os brasileiros estão muito ligados ao estu-do de seu país. A geogra� a brasileira recebeu noções externas, mas os brasileiros aplicaram-nas à compreensão de seu país e é verdadeiramente, uma nação onde a geogra� a está mais ligada à ideia de nação. Você falou que os geógrafos do Conselho Na-cional de Geogra� a e os das Universidades estavam muito liga-dos a certo papel social que eles deviam desempenhar enquan-to geógrafos para melhor conhecer e fazer conhecer seu país. É um verdadeiro nacionalismo, respeitável, e necessário. Em certo momento, há uma rebelião contra os conceitos estrangeiros e, melhor dizendo, para compreender o Brasil é necessário encon-trar qualquer coisa que seja mais adaptada a essa realidade que se quer analisar, é encontrar formas de compreender as relações

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com a sociedade brasileira. Então há uma busca – a sociedade brasileira especi� ca, vê que nossa geogra� a é uma adaptação da busca espacial dessa estrutura particular da sociedade brasileira na medida em que não é mais o espaço dessa sociedade. Ora, nesse momento o verdadeiro marxismo é muito importante nessa busca das relações entre a sociedade e o espaço. Ora, te-mos toda uma geração de geógrafos brasileiros demasiadamente marxistas e, pode ser com uma grande tendência a rejeitar tudo que não seja necessariamente brasileiro. Eu posso aceitar essa tendência porque eu falo português, é mais fácil, mas é verdadei-ramente, uma atitude que se chama de rebelião positiva. Há esse movimento e podemos a� rmar sem citar ninguém que há cer-to número de geógrafos brasileiros para os quais essa corrente da geogra� a realizada no Brasil que se quer crer independente, mesmo continuando a fazer teses na França. Querem desenvol-ver teses e textos muito marxistas numa hora em que a França coloca em questão toda a estrutura marxista do pensamento e, então, esses textos são mal aceitos. É verdade. Isso provocou cer-tas di� culdades. Então, quero acrescentar que o Brasil conheceu uma fase difícil de sua ditadura militar que não facilitou uma aproximação com a França. Eu fui criticado por ir ao Brasil du-rante a ditadura militar, me diziam: “Ah! O que você vai fazer lá... etc.? E eu trabalhei com pessoas que eram contra a ditadura mi-litar, que eram contrárias e denunciavam e foram a sustentação moral de nós todos. É evidente, e isso é verdade, e depois não sei porque, houve uma renovação da geogra� a francesa e há uma bela fase da geogra� a brasileira e elas são capazes de se aproxi-marem, mas, agora são relações adultas. Houve a fase infantil quando o Brasil se formou pelos mestres franceses; houve a fase da adolescência quando a geogra� a brasileira rejeitou os pais e, en� m, agora, tem relações adultas quando se discute, se troca, mas não há qualquer supremacia de uma sobre a outra. Mas eu

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penso agora fazem 15 (quinze) anos e eu repito cada vez que vou ao Brasil que há muitas coisas no Brasil da parte dos geógrafos brasileiros, muito mais do que tudo que geralmente se pensa e se espera. Tudo o que se pensa é justamente desvencilhar-se dos conceitos gerais, pois o Brasil se fechou na geogra� a brasileira. As abordagens que os franceses podem fazer é uma abordagem de comparação, abordagem de outro país. Por conta de minha especialização sobre cidades do Terceiro Mundo eu relaciono, mas é diferente na África, é diferente na América mas a compre-ensão da geogra� a brasileira tem sido in� nitamente mais apro-fundada pelos geógrafos brasileiros do que por tudo que podem fazer os franceses. Os franceses não fazem mais do que pesquisas especí� cas, como por exemplo, sobre o setor informal no qua-dro das comparações com o resto, mas a geogra� a brasileira, ela pertence agora aos brasileiros e é por isso que eu me sinto um tanto desconfortável de ver livros sobre o Brasil escritos pelos franceses sem colaboração brasileira. Eu penso que chegou o tempo que para se escrever sobre o Brasil, se a França vai publi-car um livro sobre Geogra� a do Brasil, é necessário pedir a um brasileiro que o escreva e os franceses devem traduzi-lo. Nós, os franceses e vocês, os brasileiros, temos relações adultas de com-paração, então a geogra� a brasileira trata sobre o Brasil e nós lhe traremos a visão de outros espaços, e se traduz, se compara.

Indagado sobre o fato de se produzir no país uma geogra-� a muito brasileira, e se isto seria um problema ou uma condi-ção devido à complexidade do país, quanto à sua extensão e su-perfície, respondeu:

É qualquer coisa que foi criada porque os brasileiros têm essa mo-tivação nacionalista e os geógrafos brasileiros são, muitas vezes, pessoas engajadas que querem fazer qualquer coisa por seu país. São estudiosos do país e percebem que esse país é tão complexo que é su� ciente como laboratório de estudo, e há as tais diferenças

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entre a Amazônia e o Rio Grande do Sul”. Completa sua fala, aborda a questão cultural dizendo: “Um problema que ainda não foi resolvido é o da relação entre a geogra� a brasileira e a geogra-� a dos demais países da América do Sul.

Prossegue:

Isso não foi resolvido ainda porque vocês têm mais facilidade de se relacionarem com os europeus e com os americanos do norte do que com seus colegas da América do Sul. Esse é um problema que pode ser resolvido, mas carece de tempo. Nos colóquios, nos congressos atuais, o que me parece de mais interessante é essa a� r-mação da geogra� a no Brasil. Firma-se como a única que conhece os problemas brasileiros. Que conduz esse conhecimento a uma discussão geral com outros geógrafos, mas, que não acrescenta o que deve ser traduzido. Agora é verdade que isso deveria existir para os outros países da América do Sul. Sonho com um congresso em que geógrafos do Chile, do Peru, da Colômbia, da Argentina e os brasileiros realizem trocas de igual para igual sobre um assunto que seja de interesse latino-americano. (Entrevista – Encontros EGAL).55

Perguntado se as relações seriam as mesmas entre os fran-ceses e os brasileiros, ou seria diferente entre os franceses e os peruanos ou entre geógrafos de outros países como o México, países que não têm uma escola de geogra* a ainda reconhecida, respondeu: “Esse é o problema. A geogra* a nos demais países da América Latina não conheceu a mesma evolução que a geogra-* a brasileira. Há certos países que têm escola geográ* ca, mas há outros que têm vantagens na sociologia urbana e não têm a mes-ma abordagem e por isso vocês têm di* culdade de ir até o * m. E eu penso que essa geogra* a adulta do Brasil tem a * ança inicial da França que criou a escola brasileira de geogra* a que começa

55 A entrevista foi concedida antes da a* rmação da realização dos encontros do EGAL, espaço privilegiado da geogra* a latino-americana.

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com vantagem e vocês tem muito mais facilidade de conversar com o Maghreb, com a África negra porque há essa espécie de ponto de partida. Há, agora, melhor que antes, os conceitos fun-damentais que são os conceitos da escola francesa. É o que faz diálogo mais fácil, mesmo se cada um evoluiu, encontrou seu próprio saber, seu próprio conceito e mesmo uma base que per-mita o diálogo vem mais facilmente do que com outros países que não conheceram a mesma evolução.

Retomando a questão da fase rebelde ocorrida nessas re-lações entre os dois países, no que Rochefort classi� ca como a infância e a adulta, provoquei o professor dizendo que para nós, brasileiros, especialmente para mim, havia indícios que te-riam acontecido mudanças na França, uma espécie de rebelião interna e que ele assumiu papel de destaque quando trabalhou o conceito de “aménagement” de território, de “aménagement” urbano. Rochefort acata a provocação e responde: “Certamente tanto no Brasil quanto na França há sempre numerosas “familles d’esprit” ou correntes de pensamento e há pessoas e há ainda geógrafos velhos no Brasil que permanecem no estado infantil. E há ainda geógrafos brasileiros que estão na adolescência, que são ainda extremamente rebeldes a toda colaboração estrangei-ra, dizendo que o Brasil é dos brasileiros e há geógrafos brasilei-ros adultos. Na França também. Há geógrafos que representam a geogra� a francesa de quarenta anos atrás, que não evoluíram e há rebeliões internas, seguramente. Eu segui muito a rebelião da AGB contra seus mandarins em 1978, em Fortaleza, mas isso foi um julgamento muito excessivo, duro. Mas há um esforço para esclarecer o quadro que foi ultrapassado. Há pessoas as quais é necessário dar atenção. Eu, por exemplo, sou muito amigo de Manoel Correia de Andrade e para mim é um amigo muito pro-fundo, um grande amigo, e � co muito magoado de ver Manoel Correia de Andrade rejeitado pelos jovens, jovens geógrafos um

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tanto exagerados. Isso faz mal. O Brasil é sempre um pouco vio-lento, é a violência da sociedade brasileira. E aqui na França há certamente renovações, rebeliões, mas são sempre com nuances diferentes e são sempre de “familles d’esprit”, que são diferentes umas das outras, são tendências diferentes e pode-se dizer isso da geogra� a francesa como se pode dizer também a Geogra� a brasileira. Há tendências que eu conheço bem do lado dos fran-ceses e do lado dos brasileiros, as únicas que eu conheço e que fragmentam a Geogra� a”. Prossegui na provocação dizendo que na França há especializações a exemplo de Strasbourg que de-sempenha na geogra� a, um papel diferente daquele de Borde-aux, de Toulouse, de Paris. Rochefort acata e continua com seu discurso revelador: “É verdade, isso foi rea� rmado por perso-nalidades”. A Geogra� a francesa durante muito tempo, porque era um sistema de mandarinato, foi dominada por algumas per-sonalidades que, ao mesmo tempo, tinham o poder nas univer-sidades da província. Enquanto que em Paris há uma multidão de professores de tendências diversas, há em Strasbourg Tricart, que marcou a Universidade. Em Bordeaux, Lasserre obteve o reconhecimento de sua orientação. O mesmo acontece com Labasse, em Lyon. Há mais casos de muitas personalidades etc. Mas isso passou, foram momentos. Atualmente as universidades são bem mais variadas.

Sobre o grupo RECLUS e da Maison de Géographie de Montpellier – MGM, pergunta-se se seria a nova Geogra� a fran-cesa de hoje. Com a calma que lhe é peculiar a� rma: “Não é uma Geogra� a francesa, é uma orientação, mas uma orientação no meio de tantas outras. Isso para mim não representa o futuro da geogra� a, representa uma tendência que é dotada de recursos muito interessantes, meios, técnicas e � nanciamentos impor-tantes e que vai até o � m dessa tendência que é a da utilização de técnicas modernas, de bancos de dados, para chegar a uma

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cartogra� a moderna, mas eu penso que isso é extremamente reduzido em relação à geogra� a que me interessa que é a geo-gra� a dos mecanismos, da compreensão da interação entre me-canismos sociais, econômicos, espaciais e que recusa essa forma moderna de encontrar a descrição da paisagem. Mas quando eles chegam a fechar conclusões sobre os mecanismos, torna--se muito perigoso. Eu trabalho muito com “aménagement” do território e penso que tirar como eixo privilegiado do desen-volvimento europeu, o que eles chamam de “banana”56, penso que isso faz um mal enorme porque é uma visão simplista do espaço. O Grupo tem muitos recursos, meios enormes e tem um líder que é meu amigo, que é Roger Brunet que fez muito, mas é sempre uma orientação, uma orientação útil, uma nova postura de técnicas modernas, uma nova forma de trabalhar o espaço e dados estatísticos. Isso não é, para mim, a Geogra� a total, mas é um aspecto interessante da Geogra� a que é a nova descrição do espaço graças aos novos tratamentos de dados, mas pode-se en-ganar de modo muito grave na compreensão dos mecanismos; por isso, é necessário esse esforço para compreender a Geogra� a de atores, porque são os atores da interação entre o econômi-co, o social e o espacial, o domínio da geogra� a que me interes-sa, é sobre o que eu trabalho e trabalhei. Eu não digo que isso não é geogra� a, mas um passo geográ� co complementar e uma ajuda a outra, mas uma não tem supremacia em relação a outra e as duas são importantes e se você quer fazer ‘aménagement’ do território, isso não basta. Não basta a descrição, é necessário compreender os mecanismos porque são os mecanismos que fa-zem agir. Para mim, neste momento, penso que a geogra� a que é

56 A “banana” apresentada em carta prospectiva do grupo RECLUS corresponde a uma faixa que se estende em diagonal NW /SE em relação ao continente europeu estendendo-se da Inglaterra, região da bacia de Londres até o Norte da Itália, região de Turim e Milão.

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mais útil para a sociedade, é a geogra� a que permite ver para agir e mudar qualquer coisa na relação espaço-sociedade. E para agir, mudar qualquer coisa, é necessário compreender os mecanis-mos. Se não se compreende os mecanismos, não se muda nada. Por isso, eu respeito muito o grupo Reclus, mas, para mim, não é geogra� a. Claval tem uma orientação diferente da minha, mas eu respeito enormemente seu caminho que é compreender os domínios culturais. Há uma brecha, uma brecha marcada pelo marxismo - não ele, mas eu - mas uma brecha privilegiada dos mecanismos sociais e econômicos e se pensa que o social é li-gado ao econômico, não é senão a expressão entre o social e o espacial; o social é também o cultural e então se quer compreen-der, é necessário simplesmente conhecer não só os mecanismos sociais e culturais, mas como o cultural tem um papel importan-te nos mecanismos de interação entre a sociedade e o espaço. E por isso o trabalho de Claval é um trabalho tão importante. O mesmo esforço e necessário para compreender as interações entre espaço e sociedade. Claval é culturalista e eu, por outro lado, abordo o econômico do social mas as categorias sociais são vertentes complementares”.

Sobre singularidade da geogra� a, buscada tradicional-mente nas relações entre a Geogra� a Física e a Geogra� a Huma-na, seus braços mais importantes; considerando que a� rmamos frequentemente que o espaço é social, pergunto ao Prof. Roche-fort, se neste caso não estaríamos atribuindo à Geogra� a Física, uma função puramente instrumental. Em sua resposta, Roche-fort revela seu profundo conhecimento da ciência geográ� ca, uma compreensão que dá sentido às questões ligadas à singu-laridade da geogra� a. A propósito responde que “para a França é muito grave porque em nosso percurso tivemos necessidade de conhecimento físico do espaço, conhecimento do domínio natural, necessidade mais e mais de conhecimento do meio

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ambiente, mas temos também necessidade de conhecimento enquanto mecanismos atuais de relação entre a sociedade e seu meio natural. Desse modo, é toda a Geogra� a Física que vai nos fornecer os dados, porque a mesma é orientada para a análise do meio ambiente, sob o aspecto físico do meio ambiente e sob o aspecto da in� uência como a geogra� a dos riscos naturais - uma geogra� a indispensável. Mas a Geogra� a Física não quer só isso ela quer ser uma geogra� a que explique o meio natural, que ex-plique como o fundo de um quadro num desenho, mas também a sua evolução, a realidade da natureza e o percurso das ciências naturais, e nessas, a geogra� a é muito mal aquinhoada, porque a Climatologia o fez, a Geologia o fez, a Meteorologia fez, sem dúvida, muito melhor. E a Geogra� a Física, ou ela aceita tornar--se geogra� a do meio físico nas suas relações com a sociedade, o que é indispensável e ninguém discute, ou será simplesmente uma Geogra� a Física da compreensão das ciências da natureza, da compreensão da natureza e, nesse momento a Geogra� a se perde”. Lembro ao professor que no Brasil essa discussão tem sido recorrente e ele continua: “a Geogra� a humana nós sabe-mos, é o espaço social, é social, mas é espaço. Mas os dados do espaço não é qualquer coisa maleável, é a realidade, é a interação entre atores. Os atores são a realidade física do espaço.”

Poucos pro� ssionais conheceram o Brasil com o nível de aprofundamento como o construído por Rochefort. Esteve no Brasil vinte e seis vezes e nessas idas e vindas, pode falar do pa-pel exercido pelo Brasil em sua formação e no seu itinerário in-telectual. Instigado pela indagação responde: “Ah, isso foi muito importante! O Brasil representou para mim, posso dizer, desde 1956, a descoberta de que a geogra� a não se reduzia ao mundo desenvolvido. Antes eu era verdadeiramente muito francocên-trico. Daí, eu comecei a perceber que havia uma realidade que me deu ao espírito a ideia de que era necessário, antes de tudo,

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partir da realidade de uma sociedade para compreender a Geo-gra� a Humana. Antes, humanizar conceitos gerais – humanizar a cidade, humanizar etc. e não via até então a realidade da cida-de relativa à estrutura da sociedade. Eu descobri uma socieda-de muito diferente no campo, no mundo rural, com a herança dos fazendeiros, descobri também uma sociedade urbana muito diferente com o peso da pobreza e nesse percurso eu me disse, ‘bem, essa sociedade tem particularidades e é necessário que eu relativize minha geogra� a humana à realidade de cada socieda-de’. Isso para mim foi um despertar, e a partir desse despertar eu percebi que havia uma diferença fundamental entre países desenvolvidos, desculpe-me, e países subdesenvolvidos e foi em seguida, que partindo do conhecimento brasileiro, eu me inte-ressei pelo conjunto do que chamamos Terceiro Mundo. Agora o Brasil se afasta um pouco desta condição, eu comecei a traba-lhar a África, fazendo pesquisas sobre o Daomé etc, mas o Brasil esteve sempre em meu pensamento. Essa descoberta, ao mesmo tempo pela descoberta do Brasil e pelo o que os geógrafos do Brasil me disseram do Brasil e o que � z no Brasil, no período de 1956 até 1961. Não se pode esquecer que entre 1960 e 61 eu passei um ano e meio no Brasil. E nesse ano e meio com Manoel Correia de Andrade, e com Mario Lacerda de Melo eu � z uma ‘tournée’ pelo interior do Nordeste brasileiro onde passei dois meses e lá vi que meus conceitos de ‘cidade’, que meus conceitos de ‘campo’ caíram por terra... e isso foi fundamental para mim, e então eu me tornei um outro geógrafo, diferente daquele que � zera uma tese sobre a organização urbana da França”.

Aproveitei o momento e disse que tinha muito interesse em discutir a questão da Geogra� a Tropical e da Geogra� a Co-lonial, no contexto das relações travadas pelos franceses com o Brasil. Indago da possibilidade de se encontrar algum ponto em comum entre as concepções. De imediato, Rochefort mos-

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trou seu largo e profundo conhecimento. Adentrou no âmago da indagação e deu amplas oportunidades de se estabelecer as relações quando a� rma que “A partir do olhar da geogra� a fran-cesa, a geogra� a aplicada aos estudos de Brasil é, de certo modo, semelhante ao método de análise da Geogra� a Tropical e da Geogra� a Colonial. Claro que isso sob o ponto de vista dos geógrafos franceses (risos). Eu penso que eu nunca � z Geogra-� a Colonial e nunca � z Geogra� a Tropical, porque para mim, uma e outra são conceitos falsos. Uma é uma realidade tem-poral para certos países, para um determinado país... mas eu me referi à geogra� a dos atores. Em certos países, há certos atores, que em certo período, houve colonialismo. Então há o fato colonial com os atores da realidade socioespacial atual. A Geogra� a Tropical diz que o meio tropical é também um ator. Dizem do meio, é verdade, que a geogra� a é de fato semelhan-te ao meio físico natural, tropical. Mas é ainda um elemento. É necessário compreender as relações globais entre a sociedade e o espaço, como na sociedade africana. É verdade que na so-ciedade africana há uma realidade colonial que foi muito usa-da, que há uma realidade tropical, mas há também o povo, esse povo que foi colonizado, que fazia alguma coisa antes e outra coisa após. Então é necessário sempre, fazer a geogra� a de cada sociedade em suas relações com o espaço e, para mim, sendo tropical ou colonial, as duas são elementos no sentido de uma globalização que é necessária atender. Eu penso de fato, que eu não � z nem Geogra� a Colonial, nem Geogra� a Tropical. Eu penso, embora isso seja desagradável para alguns colegas, que certos geógrafos franceses � zeram muito de Geogra� a Colo-nial na África e Geogra� a Tropical no Brasil e daí privilegiaram seus conceitos parciais da Geogra� a”. O grande mestre, pro-fundo conhecedor da geogra� a brasileira olha para mim esbo-çando um sorriso e me pergunta: “Eu respondi”? Nessa fase da

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entrevista, eu estava entusiasmado com o resultado alcançado. Rochefort, motivado pelo assunto e afável, como de costume, prosseguiu:

Em matéria de Geogra� a, temos hoje na França, orientações que eu respeito profundamente, como é o caso da Geogra� a quantita-tiva que traz uma visão in� nitamente mais sólida da realidade. Ao contrário, ao nível da compreensão das relações ela é � ágil, posto que a análise fatorial estabelece uma correlação e não a compreensão do papel de cada um dos grupos de atores no meca-nismo de interação entre a sociedade e o espaço. Esses mecanismos de interação suprem análises in� nitamente mais precisas do que pode fazer a geogra� a quantitativa. E isso consiste em conhecer o ator e conhecer o mecanismo de poder sobre o espaço de diferentes sociedades.

Sobre seus projetos de pesquisa desenvolvidos na atuali-dade e sobre a Geogra! a dos atores, diz:

É ai justamente, que, efetivamente, teve-se a fase onde o marxismo deu uma aparência muito fácil porque a Geogra� a dos atores é a tradução no espaço, da luta de classes. Isto passou, sabe-se alguma coisa e é muito útil para a evolução. Isto se perdeu, é verdade, e é necessário agora se recuperar certo número de forças que ajam or-denadamente sobre o espaço, sobre o urbano e, se você quiser que ajam com temporalidades diferentes. A Geogra� a dos atores já ensaiou discutir a temporalidade de cada grupo de atores. Dessa forma encontra a ideia de herança da estrutura anterior. A Geo-gra� a dos atores compreende que há atores cujo papel está ainda aí, porque há permanência do que � zeram no espaço e há tem-poralidades diferentes ao mesmo tempo na forma como agiram sobre o espaço e na forma como a ação sobre o espaço encontra a permanência. É difícil mudar.

Quando de! ne o per! l de cada ator e os resultados de suas ações diz: “Você deve decidir quem pode agir sobre o espaço e no ato de decidir você não tem apenas o Estado, e sim, o poder

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publico em conjunto, em diferentes escalas”. Dissertando sobre o poder público a� rma: “Desta forma, é o poder público que é revestido de poder sobre o espaço. Neste momento, o problema é saber em nome de quem ele age sobre o espaço e você encontra o dilema da falta de ideologia e se pode dizer, que age sobre o es-paço a serviço do capitalismo; ou não, que usa o espaço a serviço do bem comum, ou age sobre o espaço em função de certo nú-mero de preconceitos e de certo número de modelos que tem na cabeça. Isso é muito difícil de ser reduzido a uma teoria. Quanto à ação do poder público, ela se faz através de pessoas que têm o poder e que buscam um modelo, seja ele ideológico, sentimental ou um modelo de interesse. Há alguns estudos, por exemplo, so-bre o papel do prefeito no processo de periurbanização ao redor de Paris e vê-se a motivação do prefeito pela análise do que ele vai fazer quando tem que decidir qualquer coisa. Você vê, nos atores públicos em diferentes escalas, quais são suas motivações. Há um papel marxista dos interesses em relação ao capitalismo. Eu penso que existe uma junção de modelos e também de con-cepções de interesse geral, de interesse particular etc. Você vê os dirigentes da empresa privada para os quais o espaço é uma fonte de rentabilidade e você assiste a todo um jogo estratégico territorial desses dirigentes que têm agora grande poder de mo-bilização porque podem decidir a localização de suas atividades. E então, o que há, é uma estratégia territorial dos dirigentes de empresas privadas, e há também, o papel do habitante comum, que pode tornar-se cidadão no sentido pleno caso ele se orga-nize em associações, em comitês para agir sobre o espaço. Ao tornar-se um ator e, dessa junção, tornar-se, ao mesmo tempo, entre o ator público, o ator privado enquanto dirigente, e o das forças sociais, se expressando em associações de moradores em relação ao espaço, podem fazer uma interação entre os dados efetivos do espaço visível”.

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Encerrando a entrevista a� rma: “Há uma nova dinâmica dos grupos sociais e há também o fenômeno de exclusão que perpassa a posição do indivíduo na concepção marxista de lutas de classes. E há também, o fenômeno de exclusão que ocorre no domínio do trabalho de pesquisa, quando se teoriza. Nesse mo-mento, a pesquisa estuda todos os mecanismos de exclusão, de um grupo por outro e, justamente, estuda-se esses mecanismos para se chegar a teorizar”.

Michel Rochefort representa, pode-se dizer, a fase de per-manência e reatamento mais intenso de relações entre a França e o Brasil no campo da geogra� a. Sua primeira vinda ao Brasil, como participante do XVIII Congresso Internacional de Geo-gra� a, da UGI57, marcou o inicio de um longo período de ati-vidades na área do planejamento urbano e do aménagement do território. No Brasil, Michel Rochefort fez escola. O antigo Con-selho Nacional de Geogra� a do IBGE foi o centro de irradiação de suas ideias, logo propagadas pelo país. O chamado método Rochefort de análise das cidades e do fenômeno urbano atraiu um número considerável de geógrafos, todos de comprovada qualidade e de renome. Pro� ssionais que ocupavam pastas im-portantes nos órgãos voltados ao planejamento a ao aménage-ment do território e gestão do espaço.

Michel Rochefort se tornou � gura proeminente no mun-do acadêmico da geogra� a. Na França, no momento da pesquisa, permanece no magistério na Universidade de Paris-I, Sorbonne, onde orienta teses de alunos vindos dos lugares mais distantes do mundo. Alcançou grau de respeitabilidade acadêmica a partir de suas teses e práticas de Geogra� a aplicada que lhe garantiram acesso aos meios o� ciais e acadêmicos franceses. Atuou com

57 Sobre a participação da comitiva francesa no referido evento vide: VALVERDE, O. “La coopération française dans la géographie bresiliènne.” In: CARDOSO, L. C. e MARTINIERE, G. Op. cit.

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intensidade nos órgãos de planejamento, interagiu com pro-� ssionais técnicos de diversas áreas do conhecimento, ganhou notoriedade e respeitabilidade e, ao mesmo tempo, tornou-se grande divulgador da geogra� a francesa. Na Sorbonne, sua prá-tica pro� ssional foi logo reconhecida e valorizada. Tal fato pode ser comprovado pelo enorme poder de atração que exercia so-bre diversas áreas do conhecimento. A maioria das teses por ele orientadas foi desenvolvida por pro� ssionais advindos de áreas outras que não a Geogra� a. No Brasil, os geógrafos mais antigos conhecem bem suas obras e muitos tiveram suas teses dirigidas por ele.

Suas vinte e seis viagens ao Brasil comprovam quão estrei-tas foram suas relações. Um dado importante a destacar é o efei-to do país, com sua espacialidade, com sua singularidade nas for-mulações do eminente professor. O relato de sua experiência no Nordeste brasileiro, quando a� rma de forma categórica que “caí-ram por terra seus conceitos de rural e de urbano.” Tal a� rmação conduz à valorização desse processo de troca, de intercâmbio no processo de construção do saber cientí� co. A geogra� a brasilei-ra muito incorporou em suas re� exões com situações similares. A ampliação dos horizontes e o desvendamento de formas e re-lações foram fundamentais para o avanço da ciência.

Diversos geógrafos utilizaram o método Rochefort ao estuda-rem aspectos da Geogra� a Urbana de diferentes áreas brasi-leiras. Os resultados a que chegaram podem exprimir a reali-dade funcional do espaço estudado, na medida em que outros elementos foram utilizados para o conhecimento da vida de relações. (CORREA, 1968).58

Michel Rochefort demonstrou conhecimento profundo e detalhado das questões brasileiras, indicando durante as entre-

58 CORREA, R. Lobato. Op. cit., p.190.

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vistas situações ligadas à formação do país, condição e nível de proposição da geogra� a brasileira.

Na geogra� a francesa, Rochefort permanece como nome de grande referência. Isso não quer dizer que o professor em questão ainda participe de eventos acadêmicos. Entretanto, tem estado presente noutras manifestações a exemplo de sua partici-pação em programações do porte do Les Entretiens de la ville, nos quadros do “Espaces & Citoyenneté” com a conferência “Voies de communication et " ux” realizada em 7 de abril de 1993.

Essa situação talvez esteja vinculada à extrema dedicação do professor Rochefort a Geogra� a Aplicada, manifesta em for-ma de aménagement urbano e do território. No que se refere à presença ou in" uência de geógrafos franceses no Brasil perce-be-se certa substituição por outros especialistas franceses. Na verdade, o país investiu pouco nos últimos anos em políticas es-paciais mais consequentes, principalmente no que se relaciona aos projetos o� ciais do governo federal. Esse vazio foi preenchi-do por técnicos locais e no caso de assessorias estrangeiras, os sucessivos cortes de verbas do governo federal têm inviabiliza-do sua realização. Entretanto, a importância do Prof. Rochefort não pode ser negligenciada. Ao fazê-la, estar-se-ia prejudicando a leitura da efetiva situação de cooperação que se deu entre os dois países, que foram fortalecidas a partir de suas primeiras vindas. Grande parte de nosso conhecimento produzido no setor de Geogra� a urbana tem por trás sua presença. O grupo seleto que ele organizou e dirigiu. Os técnicos quali� cados dos quadros dos ministérios, conselhos e comissões em que atuou na condição de assessor, constituem pessoal de excelente qua-lidade que modi� cou o per� l da produção brasileira na área do urbano e do regional.

Outra grande in" uência na geogra� a brasileira foi a do Prof. Bernard Kayser. Integrou a comitiva francesa que compa-

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receu ao Congresso da UGI – União Geográ� ca Internacional no Rio de Janeiro em 1956, quando iniciaria um longo período de intercâmbio com o país.

Ministrou vários cursos em Toulouse sobre o Brasil, sen-do, alguns, com o Prof. Milton Santos.

Sua contribuição expressiva aparece no livro Geogra� a Ati-va, especialmente, na quarta parte, capítulo I, intitulado “A re-gião como objeto de estudo da Geogra� a”, em que trabalha a região como espaço econômico e como espaço polarizado.

A seguir, o teor das respostas obtidas pela entrevista reali-zada com o eminente Prof. Bernard Kayser.

Pergunto ao Prof. Kayser o que ele pensa sobre a Geogra-� a brasileira, se ela já tem um per� l próprio e se já constitui uma escola autônoma.

De forma simpática e amável responde: “Minha simpatia pelo seu país e pelos brasileiros é sem restrição. São as razões de saúde que me têm impedido de continuar recentemente a ofe-recer minha colaboração. É evidente que a geogra� a brasileira existe. Ela tem o mesmo problema epistemológico que a geogra-� a em todos os países – uma ‘ciência’ sem método, sem objetivo, obra (muitas vezes) de excelentes especialistas em seu domínio próprio de trabalho, institucionalizando-se por re+ exo de defesa pro� ssional. A geogra� a brasileira não existe, mas os geógrafos existem, os brasileiros em particular”.

Discutindo essa temática da relação presença/ausência de franceses no Brasil, o Prof. Kaiser foi indagado se tem havido descontinuidade nas nossas relações, e quais seriam os sinto-mas desta estagnação. Sobre as relações cientí� cas em torno da geogra� a, mantidas entre a França e o Brasil em diferentes mo-mentos caracterizados como de hegemonia, de afastamento, de

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ruptura e aproximação, destacou-se a presença no Brasil de pro-fessores reconhecidos tais como De� ontaines, Monbeig, Papy, De Martonne, Pierre George, Kayser, Rochefort, Labasse, Cla-val, Lacoste, Tricart, Pebayle, entre outros, assim se manifestou Kayser: “Suas relações com os geógrafos franceses são perfeita-mente ecléticas. Vocês procuram neles o que convém a vocês, e têm razão. Mas as in� uências contraditórias são um obstáculo a mais, na coesão da disciplina”.

Ao traçar seu itinerário intelectual fazendo referência ao papel que o trabalho sobre o Brasil desempenhou na sua forma-ção disse:

Se eu não houvesse ‘trabalhado’ no Brasil, eu não teria no que concerne ao Terceiro Mundo, esta doutrina intuitiva que me permitiu alguns cursos e artigos, muitas vezes contra a corren-te (em desacordo) das opiniões e análises comuns.

Tratando-se de um pro� ssional reconhecido nos meios acadêmicos, Kayser foi indagado sobre as novidades em termos de geogra� a na França. Falando da consistência, das caracterís-ticas, dos centros produtores e de seus principais personagens, respondeu:

Existe, certamente, muitas novidades na geogra� a francesa. Posso destacar a produção comercial de análises cartográ� cas e estatísticas, completamente desligadas do campo da realida-de, do concreto e das realidades sociais. São análises moder-nas, de caráter publicitário, logo, rentáveis, conforme a produ-ção do grupo ‘RECLUS’. Aponto também a consolidação da corrente ‘Geogra� a Social’ viva e muitas vezes militante em contato com a realidade, modesta, mas e� caz, assentando-se sobre os homens mais do que sobre as máquinas, a exemplo dos textos de Hérodote.

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4.1.6 Rupturas, estremecimentos: a “Geografia Nova” – Yves Lacoste faz a Geografia, a Guerra...

Dentre os geógrafos franceses, Yves LACOSTE é, sem sombra de dúvida, um dos mais conhecidos no Brasil. A veiculação de suas ideias no país, a partir da circulação “pirata” de seus livro A Geogra� a Serve Antes de Mais Nada para Fazer a guerra59 provocou um grande “frisson” no público leitor brasileiro e “fez a cabeça” de toda uma geração. A divulgação dessa obra de Lacoste nesse período e nos anos subsequentes, ultrapassou as fronteiras do país, haja vista a expressiva presença de geógrafos dos países vizinhos participando dos eventos promovidos pela AGB.

Em julho de 1978, quando a Associação dos Geógrafos Brasileiros promovia o III Encontro Nacional de Geógrafos, as ideias de Lacoste convertiam-se em palavras de ordem. O refe-rido Encontro foi um verdadeiro “virar de mesa” no contexto da discussão, organização e mobilização em torno de questões centrais do país que ainda sofria os fortes efeitos de uma política comandada pela ditadura militar. Todo o acúmulo de repressão, o “calar a boca” forçado eclodiu em grito de liberdade que teve excessos, magoou muita gente, destituiu lideranças da AGB cha-madas na época de “mandarins” e elegeu outras. Em pouco tem-po, um novo mandarinato assumia a entidade. Toda discussão recaía sobre o processo de redemocratização, abertura, anistia, Constituinte. O pressuposto básico era que a democracia de-veria começar no interior da entidade. A partir desse princípio inicia-se uma profunda alteração nos quadros da AGB. Essa re-visão da prática da entidade e da organização da categoria tinha os textos de Lacoste como pano de fundo. Citações atribuídas

59 LACOS’l’E, Y. Op. cit., p. 1.

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ao autor estavam na boca de todos, empolgavam plenárias, as-sustavam outros. Não se pode a� rmar que tudo que era tido bem alto e bom som emanava de Lacoste, o que era dito em seu nome sim, com certeza.

As ações das novas lideranças e sua repercussão nas seções locais da AGB serviram para nacionalizar o movimento e torná--lo praticamente uno. Calcados a princípio nas palavras e temas--chave do livro, assuntos como a geogra� a dos professores, a ge-ogra� a dos Estados maiores, região como obstáculo, o problema da carência epistemológica da geogra� a, a questão da escala na leitura e interpretação dos fenômenos entre outros, vieram à tona. Tudo isso no bojo de uma discussão calorosa que não se encerrou no evento de Fortaleza. Ao contrário, ele detonou uma reviravolta na organização da categoria, deu visibilidade aos pro-fessores, um segmento que não tinha muita expressão no interior da AGB até aquele momento. Mudança de estatuto, assembleias, proliferação de seções. O mercado editorial ganha vitalidade. Novos atores entram em cena, uns nem tão novos, porém afas-tados do país pelo esquema repressivo que se instaurara. Esse é o caso de Milton Santos, que no livro, será apresentado num item à parte. Mas, voltando ao personagem Lacoste, com sua geogra� a e sua “guerra”, fez, no Brasil, uma verdadeira revolução. No âm-bito da contestação manifestada durante o evento em Fortaleza, sua proposta surge como uma espécie de antídoto para todos os males que se abatiam sobre a geogra� a brasileira até 1978. Mui-to exagero nas a� rmações, frases e textos absurdos eram ditos e escritos com pouco critério, muita agressão verbal por parte de uns, omissões por parte de outros, num momento extremamen-te conturbado. Lacoste não esperava, certamente, que seu livro provocasse tanta polêmica, tanto escândalo no “lado de baixo do Equador”[...] Talvez, sim. Nas palavras iniciais da apresentação da segunda edição da Maspero, de 1982, a� rma o autor:

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Logo que esse livrinho apareceu em 1976 foi um belo escândalo na corporação dos geógrafos universitários. Um escândalo tão grande que muitos entre eles encheram-se de indignação.60

LACOSTE já era conhecido dos brasileiros. Seus livros A Geogra� a do Subdesenvolvimento, editado na França em 1965, pela PUF, com nova edição em 1981 e Os Países Subdesenvolvi-dos, da coleção Saber Atual, nº. 62, da DIFEL, São Paulo, 1966 - 3a edição (editado na França para a mesma coleção sob o n. 863, com a 4° edição de 1963) alcançaram rapidamente o pú-blico brasileiro. Em 1964, Yves LACOSTE, ao lado de Bernard # YSER e Raymond GUGLIELMO, capitaneados por Pierre GEORGE, escreveram A Geogra� a Ativa editado em português em 1966 pela DIFEL de São Paulo. Esse livro causou forte im-pacto junto ao público especializado brasileiro.

A tradução % cou a cargo de quatro promissores geógrafos do Departamento de Geogra% a da USP, que galgaram grande respeitabilidade no campo da produção geográ% ca do país. O impacto provocado pelo livro, a ideia de ativa, atividade, gerou um burburinho nos espaços geradores da ciência e do ensino de geogra% a em um momento em que % rmava-se um ensino de pós-graduação no país, com cursos mais regulares e de maior abrangência. Quanto ao enfoque, nessa parte da pesquisa, La-coste, como importante personagem da geogra% a francesa, mes-cla-se com os demais autores da Geogra% a Ativa. Será observada também a ação dos outros autores, especialmente de Pierre Ge-orge e Bernard Kayser. O texto a partir da abordagem assumida, não pode escapar de falar do quarteto responsável pelo livro e pelos efeitos geradores a partir de seu lançamento. Isso implica que as referências a P. George e sua relação com a Geogra% a Ati-

60 LACOSTE, Y. Op. cit.

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va mantêm ligação com esse movimento. Para os quatro france-ses autores do livro, o objeto da Geogra� a Ativa � ca esclarecido nessa passagem:

Impacientes por se a� rmarem úteis ao desenvolvimento eco-nômico e social regional ou nacional, geógrafos de diversos países, França, Bélgica, Países do Norte e também das regiões onde os problemas do espaço se impõem mais imperiosa-mente que na nossa velha Europa, no Brasil e nas economias socialistas, na União Soviética, Polônia, � eco-Eslovaquia, lançaram a ideia, após a Segunda Guerra Mundial, de uma Geogra� a aplicada, à imagem da geologia aplicada. Trata-se, em seu espírito, de centralizar a análise dos fatos e de relató-rios de fatos, sobre temas que pudessem contribuir, no me-lhor tempo possível, para a informação dos serviços ou das empresas que têm por tarefa utilizar ou valorizar uma fração do território.61

A Geogra� a Ativa “virou moda”, atraiu um grande número de geógrafos e difundiu-se nos meios cientí� cos e de planeja-mento. Seu discurso atendia aos anseios de um mundo que se transformava com uma intensa velocidade e que apresentava um quadro de distorções e carências inconcebíveis às pessoas mais sensíveis e politizadas. O pós-guerra criou um clima de possi-bilidades e de extrema crença na ciência como transformadora da realidade social. Ao lado das grandes conquistas tecnológicas imediatamente comunicadas ao mundo (nunca com a velocida-de que se vê hoje), havia uma postura � losó� ca que norteava ações políticas de cunho estruturalista-funcionalista embasadas no discurso do desenvolvimento versus subdesenvolvimento com interpretações evolucionistas e, porque não, darwinistas. Eram ações ideologicamente trabalhadas, ao ponto de tentar

61 GEORGE P. et al. Geogra! a ativa. Tradução de Gil Toledo, Manuel Seabra, Nel-son de la Corte e Vicenzo Bochicchio. São Paulo: DIFEL/EDUSP, 1966. p. 15.

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comprovar que o subdesenvolvimento não passava de um está-gio, uma fase que os países conheciam no percurso do desen-volvimento. As médias estatísticas conheceram uma utilidade ímpar. Indicadores e variáveis apareciam nos discursos de espe-cialistas, dentre eles os economistas que se preparavam para al-çar o grande voo de ascensão da categoria apoiados em escolas, sendo algumas divergentes, orientadas, no entanto, para a mes-ma direção. O liberalismo do pós-guerra alimentou toda essa ilusão, corrompeu corações, mentes, povos, nações. O � rmar-se do conceito de Terceiro Mundo, pressupõe outros mundos. O Terceiro Mundo enquanto concepção é inconfundível, é o mun-do dos pobres, do atraso político, da miséria e do subdesenvol-vimento. A Guerra Fria estava instaurada. A rivalidade travada entre os países do bloco tipicamente capitalista, caracterizados pela liberdade do mercado coloca em confronto os Estados Uni-dos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O Primeiro Mundo, constituído pelos países industrializados, apresenta alto padrão de vida para seus habitantes. Os do Se-gundo Mundo, aqueles liderados pela URSS e demais países da chamada “Cortina de Ferro”, nome dado aos países que experi-mentavam o chamado comunismo, era marcado pela excessiva presença e controle do Estado sobre a economia e os indivíduos. Lacoste constrói excelente explicação para a expressão “Tercei-ro Mundo”, fundamental para a compreensão dos princípios da Geogra� a Ativa da qual ele é um dos autores.

“A ideologia dos movimentos nacionais nos países coloni-zados, as lutas que precederam sua independência, a conferên-cia realizada em Bandung pelos representantes dos Estados da África e da Ásia, e tantos outros fatos, reforçaram a ideia de agru-pamento dos países subdesenvolvidos numa espécie de aliança reivindicativa em relação aos ocidentais considerados como a causa direta e indireta do subdesenvolvimento. Para designar ao

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mesmo tempo esta relativa unidade dos países subdesenvolvi-dos, a massa humana que constituem e sua miséria, pela qual fazem responsável o colonialismo, tornou-se necessário um con-ceito. Assim se explica o nascimento e o êxito, pelo menos em língua francesa, da expressão ‘Terceiro Mundo’. Ela foi forjada por A. Sauvy, à imitação do ‘Terceiro Estado’ de 1789, que, na maioria da nação, era formado de diversas classes e grupos so-ciais que reivindicavam os direitos até então con� scados pelos dois outros ‘Estados’, a Nobreza e o Clero.” 62

A “Geogra� a Ativa”, traduzida em forma de livro, mesmo ligada a outros pressupostos, traz no seu bojo uma valorização do discurso geográ� co ao a� rmar que “Não é possível hoje fa-zer boa administração em escala pública ou privada, sem uma sólida cultura geográ� ca ou sem o concurso de um geógrafo”, ao mesmo tempo tem um extremo conteúdo critico em relação à Geopolítica ao a� rmar que

A pior das caricaturas da geogra� a aplicada da primeira me-tade do século XX foi a geopolítica, justi� cando automatica-mente qualquer reivindicação territorial, qualquer ‘pilhagem’ por pseudo-argumentos cientí� cos.

Outro aspecto extremamente interessante tratado no li-vro, prenhe de inovações, responsável por mudança de atitude epistemológica na geogra� a brasileira foi a discussão sobre o “Objeto e os métodos da Geogra� a” (item II da segunda parte do livro). Apoiados sobre seis pontos, os autores são enfáticos:

1° – A Geogra� a é uma ciência humana; 2° – A Geogra� a é uma ciência do espaço, mas seus méto-

dos são diferentes daqueles das ciências naturais do espaço;

62 LACOSTE, Y. Geogra� a do subdesenvolvimento. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1975. p. 17- 18.

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3° – A Geogra� a é o resultado e o prolongamento da História;

4° – Historiador do atual, o geógrafo deve prosseguir os estudos do historiador, aplicando métodos que lhe são próprios;

5° – O objetivo da aplicação dos métodos geográ� cos e o conhecimento de situações;

6° – O estudo de uma situação pode proceder de uma con-cepção contemplativa ou de uma concepção ativa.

Outro enfoque do livro que foi ponto de referência no Brasil foi a discussão feita pelos autores sobre a dependência da pesquisa geográ� ca francesa, tida por eles como organicamente associada ao ensino superior daquele país.

Toda essa discussão em torno do livro A Geogra� a Ativa está sendo travada para mostrar as origens, práticas e � liações na chamada Escola Francesa de Geogra� a. A esse propósito cabe ressaltar a análise feita por P. George, autor da primeira parte do livro, mas que perpassa o seu conjunto: Problemas, Doutrina e Método quanto “A organização da pesquisa geográ� ca na Fran-ça; seu papel no desenvolvimento da Geogra� a ativa” tratado na página 41. Logo de início, ele esclarece:

“Em França, a pesquisa geográ� ca, até o presente, está as-sociada organicamente ao ensino superior, não existe centro ou serviço de pesquisas geográ� cas livre das responsabilidades de um ensino cada vez mais frequentado, portanto absorvente, em que possam ser elaborados de maneira contínua os diagnósticos de situações. Parece seguramente desejável que nascia um orga-nismo com dupla vocação de pesquisa fundamental e formação geográ� ca chamado, segundo as necessidades, a colaborar em empreendimentos de planejamento regional ou urbano ou de estudos de mercado comparável ao Centro de Estudos Socioló-

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gicos de Centro Nacional de Pesquisa Cienti� ca. Na expectativa de que centros de estudo regionais e centro de estudo de âmbito nacional, estejam em condições de atender ao conjunto das ne-cessidades, uma contribuição de muito grande valor cientí� co e de um interesse prático muito atual, é fornecida pelo conjunto dos trabalhos executados nos Institutos de Geogra� a universi-tários. Estes trabalhos são da alçada de dois níveis da formação cientí� ca e de pesquisa. O primeiro é o das pesquisas de princi-piantes organizadas e controladas por um diretor de pesquisa. O segundo nível é ocupado pelas pesquisas realizadas tendo em vista a preparação da tese de doutoramento. O desconhecimen-to do interesse desses trabalhos no plano prático procede de duas causas: a primeira é a diferença especí� ca entre a Geogra-� a ensinada nos programas escolares e a pesquisa geográ� ca do ensino superior e da pesquisa fundamental... A segunda causa do mal-entendido reside nas a� rmações desordenadas daqueles que “apregoam” a geogra� a no varejo e sugerem implicitamente, e às vezes mesmo explicitamente, que os conhecimentos geográ-� cos são em geral “inaplicáveis e sem interesse para a gestão dos bens privados e públicos.”63

O texto no seu todo tem a marca da valorização dos traba-lhos de pesquisa em geogra� a e ao mesmo tempo revela a utopia do autor em busca do reconhecimento da geogra� a enquanto saber cientí� co com o estatuto da aplicabilidade. A lógica do planejamento permeia o livro de forma que ao a� rmar como o faz na página 23, que “O objetivo da aplicação dos métodos geo-grá� cos e o conhecimento de situações.” No texto, � ca evidente que o conhecimento de situações corresponde a avaliação diag-nóstica, a primeira fase do planejamento, precedido da legisla-ção básica e das proposições, na forma como ele era concebido

63 GEORGE, P. et al. Op. cit., p. 41.

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e executado nessa época. Consistia ideológica e metodologica-mente na crença no planejamento como solução dos problemas cruciais do desenvolvimento, dividir a análise em três momen-tos além do diagnóstico. A segunda fase era da legislação básica e de proposições.

Não se pode negligenciar o fato de que os autores tiveram militância ou sofreram forte in� uência do Partido Comunista Francês (PCF), apesar do rompimento a partir de 1956. Os con-ceitos de economia planejada aliados aos conhecimentos que o Prof. P. George tinha da realidade da extinta URSS, reforçavam a posição expressa no livro. O grande mote do livro e da proposta reside nas questões vinculadas ao desenvolvimento, que � cou a cargo de Lacoste (p. 47/158). Na segunda parte do livro, inti-tulada Perspectivas da Geogra� a Ativa em País Subdesenvolvido, dividida em dois itens: Um conjunto geográ� co maior: o Tercei-ro Mundo, e Uma Geogra� a das Discordâncias. No � nal deste segundo item o autor é enfático e deixa transparecer o que seria a gênese de seu pequeno livro de grande sucesso, A Geogra� a serve...

“A timidez com a qual até então os geógrafos têm partici-pado do estudo do subdesenvolvimento tem, pois, causas com-plexas. É quase o resgate dos sucessos obtidos no estudo das combinações equilibradas que são muitas realidades geográ� cas dos países desenvolvidos. A Geogra� a do Terceiro Mundo é em grande parte, uma Geogra� a de discordâncias e de desarmo-nias. É preciso também mencionar que os freios que impediram uma maior participação da Geogra� a no estudo do subdesen-volvimento não estão todos relacionados com os geógrafos. O imperialismo de certos economistas, seu desconhecimento da geogra� a não facilitaram as coisas. Mais ainda, a imprecisão, o caráter relativo, senão objetivo, que rodeiam o conceito de sub-desenvolvimento no espírito de numerosos teóricos, não favore-

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ceu sua adoção pelos geógrafos, ligados que estão ao estudo das realidades concretas.”64

Lacoste deixa claro a necessidade de se estudar o sub-desenvolvimento, no contexto de uma outra ótica, aquela que permite o olhar do geógrafo, abolindo o domínio corporativo de outros especialistas. Registra ao mesmo tempo, a di� culdade do geógrafo em adotar conceitos de subdesenvolvimento que se distanciam da explicação de realidades concretas. Fica evidente que Lacoste, ao fazer a defesa dos geógrafos, deixa transparecer a fragilidade teórica da categoria que tem no empírico a base de suas formulações.

O vigor do empírico traduzido em trabalhos de campo, relatos de viagens de reconhecimento e/ou de exploração que passaram a caracterizar a prática pro� ssional do geógrafo e que o autor evidencia, de um certo modo, não caracteriza seu texto que apresenta rigor crítico em vários trechos como os que se seguem:

As relações sociais que existem na maior parte do Terceiro Mundo e, especialmente, nas zonas rurais são de natureza particular e freqüentemente, muito ignoradas pelos tratados de economia política. Nos países hoje subdesenvolvidos, o ca-pitalismo foi bruscamente introduzido do exterior pela ação e para proveito de minorias colonizadoras ou autóctones numa sociedade dominada em que prevaleciam outras relações eco-nômicas e sociais. Essa minoria, aproveitando-se da debili-dade política e do atraso técnico das populações submissas, � cou em condições de operar uma verdadeira perversão dos mecanismos normais do sistema capitalista: os poderes já consideráveis dos possuidores de capitais foram reforçados e transformados em monopólios sem freio, por um emparelha-mento, historicamente monstruoso, com as formas de domí-nio que exercia o feudal ou o feitor [...] A independência da maior parte dos países colonizados não se traduziu até agora

64 LACOSTE, Yves. Op. cit., p. 51.

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pelo desaparecimento da minoria monopolizadora, porque autóctones se substituíram ou se juntaram aos estrangeiros.65

A presença de Lacoste na Geogra� a Ativa é marcante. O autor constrói seu percurso apoiado nos temas Terceiro Mun-do e Subdesenvolvimento, subsídios para a Geopolítica, assunto preferencial ao qual se dedicou mais tarde e que hoje consiste na base de suas formulações em Geogra� a.

Em 1962, Lacoste escreveu “O Subdesenvolvimento, algu-mas obras signi� cativas surgidas depois de dez anos”, nos An-nales de Géographie, volume de março-abril, julho-agosto. Nesse artigo, o autor marca bem sua opção pelo tema que lhe ofertaria várias oportunidades no mercado editorial e forneceria condi-ções de elaborar uma crítica mais consistente e consequente para a Geogra� a. No posfácio da edição francesa de 1982 do A Geogra! a Serve... Lacoste faz uma revisão de sua crítica à obra de Vidal de LA BLACHE. O posfácio revela um amadurecimen-to signi� cativo do autor, num período em que se revela menos incendiário e quando já faz interlocução com pro� ssionais de outras categorias, com militares etc. através da revista Hérodote.

Lacoste atuou como professor da Universidade de Paris--Saint Denis, Paris 8. Foi diretor do Centro de Pesquisa e Análi-se Geopolítica. Sua tese, defendida em 1979, na Universidade de Paris-I, versou sabre o tema “Unidade e Diversidade do Tercei-ro Mundo”, tendo tido os professores M. Rochefort, P. George, como membros da banca.

Em 1993 suas pesquisas tratam dos seguintes assuntos:

• Epistemologia da Geogra� a, Geopolíticas (interna e externa);

• Problemas de Terceiro Mundo e das Sociedades Pós--Comunistas.

65 LACOSTE, Yves. Op. cit. p. 64-5.

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Além de diretor e um dos principais animadores da revista Hérodote. A propósito, cabe salientar algumas passagens do edito-rial do primeiro número da revista, lançada em janeiro de 1976, e que teve participação expressiva de Lacoste em sua redação. O título do editorial por si só já despertava interesse: “Atenção: Ge-ogra' a!” Após a introdução são enfocados cinco temas: Atenção: a Geogra' a informa os estados-maiores. Atenção: a Geogra' a misti' ca. Hérodote: a contradição inaugural. Saber pensar o espa-ço para saber pensar o poder. Da crítica dos mapas às cartas da crítica. Ao longo do texto são enfocados assuntos fundamentais para o desenvolvimento da Geogra' a enquanto saber cientí' co. Inicia dizendo que as imagens e as palavras proliferam em Geogra-' a e que elas contaminam a linguagem. A' rma que todos sabem hoje que o espaço é ' nito, que ele pode ser de fato, caro, poluí-do. É contundente quando diz que As relações sociais inscrevem--se, imprimem-se na paisagem como sobre uma superfície de registro: memória. Nas últimas páginas depois de questionar os geógrafos e interpelá-los quanta às suas imagens e palavras, conclui de forma enfática: Criticar é colocar-se em crise. Polemizar é fazer a guerra.

Completando sua produção, além dos livros mencionados Yves Lacoste tem conseguido publicar e dar ampla divulgação às suas pesquisas. Em 1980 publicou sua tese Unidade e Diver-sidade do Terceiro Mundo, pela Découverte em Paris com 526 páginas. Em 1986 foi a vez do volumoso trabalho em torno da “Geopolítica das regiões francesas”, editado em 3 volumes com um total de 3.500 páginas pela Fayard, de Paris. Esse trabalho resultou em notoriedade e respeitabilidade para Lacoste, que coordenou um grupo expressivo de pro' ssionais para a execu-ção da pesquisa. Em 1988, a editora Le Livre de Poche, de Paris, publica Question de Géopolitique com 250 páginas. Em 1990, é a vez de Paysages Politiques com 285 páginas, editado também pela Le Livre de Poche.

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Toda essa produção respalda o geógrafo Yves Lacoste e lhe dá o estatuto de intelectual engajado nas grandes questões.

No Brasil, seus trabalhos mais conhecidos são disper-sos quanto a edição. O livro Os Países Subdesenvolvidos atinge um público mais amplo, menos seleto, porém ávido de in-formações sobre o tema. Já o livro A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra, tem um público também am-plo, porém identificado principalmente por sua vinculação com a postura política de esquerda. É expressivo o número de geógrafos brasileiros de esquerda, muitos deles militantes, que aderiram às ideias de Lacoste e utilizaram-nas em seus trabalhos.66

A presença de Lacoste no Brasil alcança maior vigor após o Encontro da AGB, realizado em Fortaleza como já foi visto nas páginas anteriores. Dada essa importância e consideran-do a in' uência de suas ideias no país, independentemente da leitura ou não de suas ou de sua obra, no caso A Geogra! a ser-ve..., mas levando em conta o peso de referência que o autor em pauta adquire. Lacoste foi entrevistado em sete de janeiro de 1993. Seus pontos de vista e análises foram de capital impor-tância para a elaboração da pesquisa que deu corpo ao livro. A entrevista, marcada previamente por contato telefônico, foi concedida nas dependências da Universidade de Paris-8, Saint Denis. A atenção e simpatia do Prof. Lacoste criaram um clima agradável que muito favoreceu o transcorrer da entrevista. A ambiência permitiu um melhor conhecimento do ilustre pro-fessor e garantiu elementos para um balanço crítico da in' u-ência francesa nas formulações, práticas e questionamentos da geogra* a brasileira.

66 Dentre os vários ge6grafos brasileiros que citam e fazem referência a Lacoste em suas pesquisas e livros, podemos citar o livro Novos Rumos da Geogra! a Brasileira, organizado por Milton Santos, editado pela HUCITEC, em 1981.

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Entrevista com o Prof. Yves Lacoste

A conversa começa em torno de informações sobre a geo-gra� a brasileira a partir de 1956 quando do Congresso Interna-cional de Geogra� a, realizado no Brasil, com forte presença fran-cesa. A partir desta data, revigora-se a in� uência dos franceses na Geogra� a brasileira. Lacoste não tinha ideia da importância dele no Brasil, sobretudo, a partir de seu livro A Geogra� a Serve.... Inda-gado sobre a importância de seu livro na formação dos geógrafos brasileiros respondeu: “Não, eu não tenho consciência e quando tomo conhecimento dessa importância, � co muito honrado”. Esse livro será necessário que eu o reescreva completamente. Isso não quer dizer que eu seja contrário às ideias que lancei nesse li-vro, mas eu � z muito progresso. Esse livro data de 1976, nasceu em Paris com o início da revista Hérodote. E a revista existe e ain-da desempenha um papel importante no contexto europeu com uma tiragem industrial. No início, a preocupação da Hérodote era a que expressei no meu livro de acordo com o desenvolvimento e o aprofundamento de então. Depois, a partir de 1985, houve mudança, isto é, até então a revista era crítica do discurso acadê-mico dos geógrafos levando em consideração todos os problemas ideológicos, estratégicos, � el ao seu título que tem uma estratégia geográ� ca e ideológica. E ela � ca sempre � el ao seu titulo, ao sub-título; mas a partir de 1985, começam as mudanças na Europa de Leste, com a Perestroika etc. E nós, sabendo que essa mudança seria formidável, começamos a nos interessar e o primeiro nú-mero da Hérodote que é consagrado à União Soviética é, creio, de 1986. Até então nada se � zera na Hérodote sobre a União Soviética porque nos parecia estar absolutamente no imobilismo, sem nada de novo. A partir de 1985/86 há alguma coisa que muda e, desde então, surgem problemas geopolíticos mais e mais difíceis, e, ao mesmo tempo, mais e mais atuais. Por exemplo, o próximo núme-

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ro da Hérodote e que me deu muito trabalho é consagrado aos pro-blemas da Iugoslávia. No fundo, no período de 1967 até 1985 nós % zemos, sobretudo, uma crítica, em dizendo que os geógrafos e outros - economistas, sociólogos – não abordaram o problema em função de uma análise e% caz das informações geográ% cas. É uma crítica. Bom, nós % zemos isso certo tempo. Felizmente, a partir de 1985, as coisas começam a mudar, faz-se uma crítica do que se fez como explicação de fenômenos antigos, e agora buscamos ex-plicar problemas que se desenvolvem rapidamente e temos muito mais a entender. Nós tentamos explicar batalhas e não sabemos ainda como elas se desenvolverão. Não sabemos quem irá ganhá--las. Quem vai perdê-las. Agora avançamos e estamos numa fase de observação bem mais direta do problema”.

Prosseguindo com informações capazes de contextualizar a entrevista, foi enfocado o tema da linguagem do A Geogra! a serve.... Dissemos que o livro tem uma linguagem bem próxima da utilizada pela Hérodote, uma mistura de discurso que revela sua direção na revista. Esse livro foi publicado em português, em Portugal, pela Editora Iniciativas Editoriais de Lisboa em 1977, e só foi publicado o% cialmente no Brasil bem mais tarde. En-tretanto, um grupo de geógrafos que liderava a AGB (Associa-ção dos Geógrafos Brasileiros) a partir de 1978, fez uma edição “pirata” do livro. Não houve outra solução. Todas as vezes em que procurávamos editar o livro conforme as normas, tínhamos problemas com o editor português. A edição “pirata” no fundo foi solução e não problema. O livro foi consultado, multiplicado, reproduzido em fotocopiadoras por todo o país. O capítulo “A Geogra% a dos Professores”, foi o que provocou grande discussão no processo de transformação do ensino da geogra% a brasileira. Sobre esse tema, assim se expressou Lacoste: “Eu sempre fui ob-jeto de edições ‘piratas’. A Geogra! a do Subdesenvolvimento foi traduzida em 35 línguas e teve 25 traduções ‘piratas’ ”.

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Informei que fomos obrigados a fazer isso no Brasil (ri-sos). Disse ainda que há um fosso, entre o discurso do A Geogra-� a serve... e a Hérodote, que a revista é muito especializada, atua para um publico reduzido”. Lacoste concorda comigo.

Prosseguindo, pergunto se existe realmente uma espécie de vazio entre a época do lançamento do livro o discurso nele contido e hoje. Digo o quanto os geógrafos brasileiros esperam de Yves Lacoste. Que há uma lacuna, algo a ser preenchido. Sen-tindo-se provocado, assim se coloca Lacoste: “Sua observação é muito sutil, muito justa. Quando escrevi o Geogra� a. serve..., era uma re% exão crítica sobre o ensino, sobre a Geogra' a dos professores, mas pouco a pouco, o grupo da Hérodote, progredi-mos e eu não estava só, era todo um grupo, E eu comecei com jovens, jovens mulheres que eram estudantes de pós-graduação em 1976 e hoje são amigas e especialistas e' cazes. Ao mesmo tempo nós progredimos se bem que a Hérodote tenha se tornado uma revista muito “pontuada”, como você disse, para um público muito especializado e principalmente um público de jornalistas que se ocupam com a geopolítica, políticos, militares, homens de negócios etc.”. Continuei com minha provocação e disse: “E também de geógrafos, algumas vezes”. Lacoste logo retrucou: “Não, os geógrafos universitários, geralmente, não gostam desse tipo de publicação. E eu penso que você tem razão. E necessário que eu escreva uma nova edição desse livro A Geogra� a Serve... para fazer um pouco o balanço teórico e prático dos progressos que ' zemos. Nesse momento, com a equipe da Hérodote eu faço uma edição densa, que é o Dicionário de Geopolítica que vai apa-recer este ano, setembro de 1993. É um trabalho duro, denso. Após o lançamento do Dicionário, eu já tenho o plano do livro que sairia em 1994. Quero lhe dizer que esse livro será escrito do outro lado da França”. Tento adivinhar e pergunto: “na Ar-gélia?” Lacoste responde: “Não, nas Antilhas”. Retruco: “Será

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também uma pesquisa voltada ao tema da Geopolítica?” Lacos-te responde: “Sim, é um trabalho, uma pesquisa em geopolítica, porque irei à Martinica fazer um trabalho. Depois a situação po-lítica tornou-se di� cílima porque o político do local onde farei o trabalho morreu subitamente, e, de pronto, poderei veri� car melhor as estruturas de clientelismo, de planejamento, e ao lado das observações farei qualquer coisa, terminarei de escrever o livro”. Interrompi dizendo é muito bom, porém isso é um pouco no estilo americano. De imediato, Lacoste retrucou: “É de certa forma americano. O título A Geogra� a e é um título muito ade-quado, muito � el e é uma re! exão, eu me lembro muito bem, acompanhada de algumas olhadelas para a Europa (risos). Dian-te da colocação, perguntei: “Pode-se a� rmar que a geopolítica com a qual o senhor sempre trabalhou é uma nova Geogra� a re-gional que se de� ne mais nitidamente hoje?”. Assim respondeu Lacoste: “Sua questão é, verdadeiramente muito interessante, sutil e profunda. Vou respondê-la sim e não. Sim, eu penso que se pode e é necessário, fundamentar uma nova geogra� a regio-nal sobre a análise geopolítica e a in! uência política de tal ou tal pessoa, de tal ou tal força política, tem um quadro geográ� co e uma forma de organização do espaço muito importante. A pes-soa que, nesse domínio, está mais avançada, não sou eu, mas é alguém que desempenha um papel muito importante depois de algum tempo na Hérodote que é a Beatrice Giblin. Ela escreveu um livro ao mesmo tempo teórico e prático que se chama A Re-gião, territórios políticos, chamo a atenção, territórios políticos no plural. Ela toma como exemplo a região Norte da França que ela conhece muito bem. E o que é interessante e que ela fez esse livro para a sua tese, e ela o fez entrevistando muitos políticos. É a primeira vez que um geógrafo, na verdade, uma geógrafa, natu-ral dessa região, aborda muitos políticos que lhe disseram uma série de coisas. O livro despertou enorme interesse de políticos,

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como também de integrantes de um curso de direito francês. Chamou atenção, inclusive, de um conselheiro político. Ela teve excelentes contatos com políticos mesmo de partidos diferentes e rivais, inclusive com visão geopolítica de direita. O trabalho que ela fez é deveras interessante. Atualmente ela está encarre-gada da formação doutoral em Geopolítica, envolvendo mais de cinquenta estudantes. Eles vêm de horizontes muito diferentes, inclusive, brasileiros”.

Motivado pelo meu interesse, prossegue o professor:

Há muitos estudantes que vêm de grandes escolas e há ainda mui-tos geógrafos. Ela se encarrega dos seminários que nós chamamos para simpli� car, de ‘Visão Geopolítica Interna’, porque trata do problema geopolítico no interior do Estado. Ela dirige certo nú-mero de teses que são muito interessantes. Juntos, por outro lado, publicamos um livro, que você talvez conheça e que se chama Ge-opolítica das Regiões Francesas, onde reunimos, forçando-os um pouco ao trabalho, uma quarentena de geógrafos.

Digo que conheço o livro e falo rapidamente sobre seu conteúdo que versa sobre a geogra" a eleitoral. Lacoste emenda a conversa dizendo:

Sim, trata-se do livro Geogra� a Eleitoral com 3100 páginas. É também uma abordagem de geogra� a regional. Eu respondi sim a sua indagação. Mas agora eu respondo não à sua questão porque, no mesmo jogo geopolítico, há questões que não são da geogra-� a regional, mas que são problemas de movimento, de ação, de operação militar. Nós estamos extremamente interessados pelos problemas militares e, os problemas militares se de$ ontam entre duas forças que se opõem no campo e que se ocupam dos proble-mas da organização do espaço. Você tem a organização do espaço de forma permanente, a sociedade civil, as atividades econômicas, sociais e políticas. Bem, isso é um nível, o outro é o da guerra, e as coisas da guerra não interferem diretamente no plano da geo-gra� a regional. Se há algumas pequenas operações militares em

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regiões, isso é o não. Sim, a geopolítica é, sem dúvida, a base de uma geogra� a regional, a Geopolítica ou a Geoestratégica, e não Geopolítica Estratégica que trata de outra coisa.

Pergunto se seria um “campo” novo ou a partir de sua exposição, nesse momento em que se fala do � m da História, poder-se-ia dizer também do � m da geogra� a. Rimos e Lacoste complementa: “Ou ao contrário, o triunfo da Geogra� a”. Retru-co, e digo se seria o triunfo ou o � m, da geogra� a vidaliana. La-coste reage com � rmeza dizendo: “Não, não, não é a Geogra� a vidaliana, eu não sei qual edição do livro A Geogra� a Serve[...]’ você viu!”.

Digo que conheço as duas, que tinha lido inclusive, a edi-ção do posfácio.

Lacoste retruca:

Com o pós-fácio!. Ao mesmo tempo pode ser o � m da geo-gra� a vidaliana para o quadro da geogra� a da França que se serviu de Braudel para a incorporação da Geogra� a univer-sitária. Pode-se dizer também que, o que eu faço, é o triunfo da geogra� a vidaliana porque há um livro completamente im-pregnado de Vidal De La Blache que é A França de Leste, que fez o oposto da geopolítica.

Digo, professor, o senhor escreveu o texto “Abaixo Vidal...viva Vidal!”. Sobre o livro eu o li na Hérodote, e o senhor fala que A França de Leste é um livro esquecido, pergunto se por isso ele seria tradicional. A partir daí a conversa assume um ar de diálo-go mais intenso. Yves Lacoste responde: “Eu penso que nós temos o verdadeiro triunfo da Geogra� a”.

Pergunto se isso não estaria ligado à chamada crise da Mo-dernidade, uma crise da História. Lacoste logo retruca:

Não, não, isso já foi superado. A Geogra� a, a meu ver, é agora uma saída do impasse na qual a colocaram, ela progride bem,

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evidentemente que com coisas terríveis, con� itos com o grupo que considero mais avançado cienti� camente na Geogra� a, o grupo RECLUS. Não temos ainda o� cialmente a guerra, mas eu penso que a declaração de guerra será feita no próximo mês... (risos).

Provoco o professor questionando por que sempre se diz que o novo na França é o que é feito pela MGM - Maison de Gé-ographie de Montpellier. Prossigo e pergunto o que é realmente novo na França em termos de geogra� a? Lacoste assim se colo-ca: “O novo pode ser muito negativo... (risos). O que se parece como novo o que percebo como novo, é muito ruim. Eu posso explicar. É triunfante como todas as outras geogra� as. Nós te-mos grandes problemas atualmente que é a Geogra� a do Les-te. Como você deve saber, os geógrafos soviéticos passaram por uma situação terrível, pois a partir de 1941, a Geogra� a Humana foi interditada na União Soviética. Após 1941, não há mais Ge-ogra� a Humana e Econômica na União Soviética. É uma conse-quência do problema geopolítico, pois que é a conse quência do pacto germano-soviético, entre Stalin e Hitler � rmado em 1939. Stalin acreditou na aliança com a Alemanha por longo tempo, porque ele acreditava que os alemães representavam essa ten-tativa, como uma grande teoria geopolítica, a única que faria a grande unidade continental. Era a famosa tese de Mackinder que foi retomada pela ideia do jogo geopolítico que Hitler fez. Stalin acreditou e não previu que, dois anos mais tarde, a aliança levaria ao ataque. E ele foi tão sério que, como Mackinder era geógrafo, especializado em Geogra� a Humana, Stalin acreditou que a Geogra� a Humana era uma invenção diabólica, imperia-lista, e desde esse dia a Geogra� a Humana foi interditada. E isso repercutiu nos demais estados socialistas ou pré-socialistas ex-ceto na Polônia. Os geógrafos poloneses reuniram-se em torno dos geógrafos franceses para manter a Geogra� a Humana. Por exemplo, tive contato muito estreito em Cuba e no Vietnam, a

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propósito dos casos extremos, em que a Geogra� a Humana foi interditada e pessoas que conheço bem e que vão a Cuba como missionários e geógrafos humanos, eu pergunto sobre a Geogra-� a humana, e elas me informam que quando chegam têm que di-zer que são sociólogos, historiadores. E, no Vietnam também há a interdição da Geogra� a Humana. O Vietnam apresenta uma particularidade, porque não é o secretário geral do partido quem dirige mas o chefe de Estado, e o chefe de Estado é o sucessor de Ho Chi Minh. Em 1972 eu intervim com uma pesquisa sobre o bombardeamento de diques e nela se viu o que era trabalho de geógrafo. Eu tive assim um papel muito curioso, era quando eu falava aos acompanhantes - nos estados socialistas nunca nos deixam totalmente sós e eu tive doze acompanhantes - eram geó-grafos físicos e eu me interessava pela Geogra� a humana. Então, por consequência, nós fazíamos o que faz a Geogra� a Humana e, não o� cialmente, eu era um pouco monitor de geomorfólogos vietnamitas, para poder fazer a Geogra� a Humana (risos).

Atualmente nós temos, na Geogra� a francesa, contatos muito importantes com a União Soviética67 - com a Rússia e ha-verá possivelmente uma revista Hérodote em russo, e nós temos na formação doutoral, um certo número de jovens geógrafos russos que vêm de lá e que nós formamos para que se tomem bons geógrafos. Temos, pois, muito trabalho!

Pergunto ao professor Lacoste, no que consiste a forma-ção doutoral e direção de teses, eu não sei se há outros, mas pe-las pesquisas que � z o senhor teria orientado apenas uma tese de brasileiro. Trata-se do Resende Dantas, defendida em 1972, na Universidade de Paris-Vincennes. O titulo da pesquisa foi Formas de Urbanização em países subdesenvolvidos. Não localizei

67 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas � ndou em 1991. Em dezembro desse mesmo ano, foi criada a CEI (Comunidade de Estados Independentes), constituída de vários países com vínculo econômico militar e político entre si.

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outros brasileiros. É sobre esse aspecto que quero discutir, pois eu não compreendo, por que o senhor assume papel tão impor-tante na formação daquela geração de geógrafos que comentei. Quando se fala em orientação de teses surgem outros nomes de professores que são tradicionalmente orientadores de teses de brasileiros. O que o senhor pensa a esse respeito? Yves Lacos-te, assim respondeu: “Bom, vou lhe explicar. Há duas razões. A primeira e que eu � z minha tese de doutorado tardiamente, em 1979. Muito tarde. Embora eu fosse um geógrafo conhecido há muito tempo, fazia muitas outras coisas e o fato dessa tese ter suas particularidades, levou-me a ter só quatro experiências na orientação. Eu não era o� cialmente professor. Exercia função de professor mas, não era professor. Não podia o� cialmente orien-tar uma tese e essa é a razão pela qual um certo número de pes-soas – muitos brasileiros – pediram-me para orientá-los, eu os escutava mas dizia que tinha que orientar a minha em primeiro lugar. A segunda razão e que na instituição universitária france-sa, há posições que antigamente foram consideradas escandalo-sas etc. e as pessoas que trabalhavam comigo antigamente assu-miam consequências prejudiciais, e... todo mundo ‘desapareceu’ e eu também ‘desapareci’. O apoio que tive foi a revista Hérodote, que nunca deixou de me dar crédito o� cial e que me possibilitou solicitá-lo à Comissão de Geogra� a etc. etc. e a revista jamais deixou de ter crédito. E hoje tem crédito honorí� co, e isso faz com que � nanceiramente ela caminhe bem, com o editor Fran-çois Maspero. Meu nome era poderoso e pestilento. Eis aí as duas razões. E assim, respondi às suas indagações. Eu tenho um bom amigo que é Michel Rochefort, com o qual as ligações en-tre a geogra� a brasileira e francesa são muito estreitas e, sem du-vida, há geógrafos brasileiros cujos nomes não me lembro, que me solicitaram para dirigir suas teses e os encaminhei para Mi-chel Rochefort. Eis a explicação. Não há sombra de dúvida que

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me interesso pelo Brasil, porque trabalhei muito sobre Cuba e a partir de Cuba os problemas particulares da América Latina me interessam muito. E se eu não fui ainda ao Brasil não foi por indi-ferença aos brasileiros mas pelo concurso das circunstâncias. Eu trabalhei sobre a África do Norte, e depois foi a África Tropical e em seguida para o sudeste asiático, onde estudei particularmen-te, o Vietnam”.

Professor, sobre o Mediterrâneo, disse: o senhor tem algo a falar? Eu Ii uma pesquisa, um livro seu sobre Braudel, intitu-lado Braudel, um geógrafo. Lacoste não responde, só con" rma: “Sim, sim, Braudel geógrafo”.

Continuando a entrevista " z a seguinte colocação: Perce-bo aqui na França uma espécie de vergonha do passado, as pes-soas dizem ‘eu fui marxista’ ou ‘eu não sou marxista’. Elas passam algo de infelicidade, de desagrado quando falam, ‘eu fui marxista’. Como o senhor vê essa questão considerando a importância do marxismo para a geogra" a crítica? O que o senhor pensa dessa relação – queda do marxismo e o futuro, o da Geogra" a crítica?

Instigado, assim Lacoste se manifestou: “Você faz exce-lentes questões, questões muito boas. Fui membro do Partido Comunista Francês desde 1948, quando tinha dezenove anos de idade. Eu era muito jovem. Permaneci até 1956”. Indaguei se teria sido em função da tomada da Hungria? (risos)

Lacoste a" rma imediatamente: “Não, não foi a Hungria, não foi a Hungria. Quando eu entrei para o Partido Comunis-ta, minha formação política era nula, nula. Em 1946, me lem-bro bem, eu não sabia distinguir o que queria dizer esquerda e direita (risos). Era nulo, completamente nulo. Por quê? Por quê? Porque, me dei conta, tinha explicação em toda a minha infância colonial. Eu sou um colonial. Passei toda a minha in-fância no Marrocos. Meu pai gerenciava pesquisas na área de petróleo. Sou um produto do imperialismo (risos). No início

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achava divertido ser um colonialista, um pequeno colonialista porque penso que até certo momento, o papel da colonização não foi só negativo, foi também muito positivo. Quando se fala dos latino-americanos, se você quer saber, quando discuto com meus amigos de Cuba, que são todos produtos da colonização, nós nos sentimos muito bem juntos. A partir de certo momento terminou o período colonial, faliu e muitos franceses do Mar-rocos e de outras partes compreenderam bem. As coisas se pas-saram de forma diferente na Argélia. No Marrocos, quando era criança e para a minha família a ideia de direita e de esquerda não existia, ou não se falava sobre essa questão, desde a Segunda Guerra Mundial. As pessoas jovens como eu não falavam direita ou esquerda, mas éramos todos contra os alemães. Se bem que, logo após a Guerra, meu pai morreu, e então não estava mais ali para me explicar as coisas. A partir de então, me � liei ao partido comunista com a � ança principal de M. Rochefort, B. Kayser. De todos esses que eram mais novos do que eu mas, que sob o meu olhar, tinham um prestígio considerável, eram maiores do que eu que me via pequeno, que era pequeno, muito pequeno. Eu me lembro que o partido comunista, todo mundo hoje con-ta que era duro, controlador, doutrinador etc. Três meses mais tarde, após ter entrado no partido comunista eu fui nomeado secretário. Eu não sabia nada mas, os outros amigos me diziam que o cargo de secretário era sempre ocupado pelo último que tinha chegado. Foi lá que aprendi um certo número de coisas e isso me trouxe a construção do mundo, a racionalização do mundo. Isso me acrescentou muitas coisas e não parei mais. Depois meus mestres, meus amigos como Jean Dresch, P. Ge-orge etc, etc, todos eram membros do partido comunista. Por consequência, tenho uma história de família! (risos). Quando eu falava fazendo raciocínios mais elementares, eu não era visto como um responsável no sentido político de militante, era visto

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como amigo, sempre como amigo, não no sentido político, mas no sentido geográ� co, muito bons amigos.

Bem, mas como tinha vivido toda a minha infância no Marrocos, quis retornar ao Marrocos para fazer minha tese e me diziam que o ‘Marrocos estava perturbado, que havia começado uma luta pela independência, que eu não podia fazer ali meus trabalhos de campo. A Argélia era mais tranquila’. E fui para a Ar-gélia, no início da guerra e logo, me tornei membro do partido comunista argelino. Eu não conhecia nada da Argélia, mas como tinha vindo da França e como membro do Partido Comunista Francês eu me tornei membro do Partido Comunista da Argélia e era responsável pelos intelectuais do partido. Uma das caracte-rísticas do partido comunista é que o mesmo era vivido e manti-do pelos franceses, posto que os argelinos foram excluídos dois anos antes, por desvio nacionalista pequeno-burguês (risos). Sim eram todos franceses. Havia militares etc. Era interessante! E uma característica desta gente a quem eu não era ligado por ser geógrafo, historiador, mas o elo maior para mim, era ser político, militante e, na condição de professor mais velho, eu organizava um grupo sobre colonização, sobre a Argélia, sobre o Marrocos, sobre o anticolonialismo. Fazia tranquilamente, pois todos sa-biam muito bem que era membro do partido comunista. Eu não escondia. Assinalo que quando a guerra começou a se tomar gra-ve, fui imediatamente expulso. Nesse momento tive a chance de ser expulso. De outra forma estaria em situação perigosa. Assim, me vi e me encontrei em 1955 nomeado na Sorbonne, como Assistente, com os meus companheiros. Sabe por que deixei o Partido Comunista Francês? Não foi por Budapeste. Diziam-me que era uma revolução, contrarrevolução, e compreendi, pois naquele momento já tinha perspicácia política muito desenvol-vida, embora mais elementar que hoje (risos). Eu era muito jo-vem, mas a razão principal foi que o Partido Comunista Francês

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votou uma sessão de poder especial para fazer a guerra na Argélia e era um partido de esquerda. Em 1956, estava no poder e para não perder a Argélia, os socialistas comunistas e os socialistas, juntaram-se para votar. E fácil fazer acusações. Eles � zeram bem de votar a favor da guerra e os comunistas votaram também. E nesse momento as discussões sobre a revolução no interior do PCF tornaram-se surrealistas, e me retirei polidamente. Mas, a bom termo, � cou sendo divertido porque o partido comunista naquela época era considerado como renegado. Todos os meus amigos que pertenceram ao PC, em particular o professor Jean Dresch, grande intelectual do partido, sempre me dizia para � car tranquilo, que não seria renegado, se bem que, passados muitos anos, após ter deixado o partido fui convidado para me tomar seu simpatizante. (risos). Quando eu fazia as anotações prelimi-nares, porque era bem jovem, já aplicava os fundamentos mar-xistas e pouco a pouco me dei conta de que haviam coisas bem mais complicadas, do que o discurso marxista o� cial como era apresentado. Meu grande tormento intelectual foi quando eu comecei a discutir em 1962 e 63 sob a in� uência de Althusser, o modo de produção asiática, porque no meu itinerário intelec-tual, nada tinha sido mais importante do que ir a Argélia, ter ido ao Maghreb. Essas viagens me revelaram grandes historiadores e outros e até lá trilhara o caminho marxista elementar, o modo de produção, comunidades primitivas, escravagistas, feudalismo etc. E logo, graças a Althusser. É claro que ele não escreveu sobre o Modo de Produção Asiático, mas foi ele que um dia em 1962, ajudou a organizar uma reunião (pois eu o convidei porque ha-via deixado o partido). Ele levou textos de Marx que não haviam sido traduzidos, sobre o Modo de Produção Asiático quer dizer, uma periodização completamente diferente daquela conhecida, e, em uma nova perspectiva, bem mais livre e bem mais comple-xa, entretanto, marxista.

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Não me chamaria marxista, mas eu nunca neguei abso-lutamente o que me trouxe à análise marxista. Obtive muitas coisas que não direi que foram secundárias ou essenciais. Uma das coisas que me preocupa mais agora e que já me preocupa-va antes é o conceito de nação. Para os marxistas, nação como conceito é um problema difícil por ser justamente contraditório com a distinção da ideia de luta de classes. Para mim, nação é um fenômeno fundamental, e, na Geopolítica, no momento atual, torna-se mais importante ainda a re� exão sobre nação quando se vê o que se passa na União Soviética, Europa Central, etc. Mas como fui um anticolonialista desde o início, interesso-me pelo problema nação. Logo, tenho uma posição muitas vezes mais próxima da dos estudantes. Hoje sou mais � liado aos franceses, sou um pós-nacionalista francês e nação, para mim, é uma coi-sa cada vez mais importante, que eu considero necessária, mais que qualquer outro conceito. E o interesse que levei aos argeli-nos de ser uma outra nação, é muito legitimo, é muito justo e então, para mim, o internacionalismo do qual se fala muito entre os marxistas, não é negação da nação.

Seguramente, se pode fazer coisas extraordinárias, magní-� cas e, para mim, o internacionalismo é o respeito e o reconhe-cimento da nação. Critico minha nação se ela faz coisas que eu acho errada e, me dirijo às pessoas que não são da minha nação, mas ajudando-as a serem de suas nações.

Indago ao professor se o sentido, o conceito de nação e o de estado-nação seria como ele escreveu para a revista Parallele, de Nanterre, onde ele analisa questões ligadas ao macro e ao micro propósito da “Europa dos 12” e da luta na Iugoslávia. Lacoste as-sim se manifesta: “Sim, para mim nação é seguramente o domí-nio da representação. Na nova pesquisa que nós desenvolvemos é muito importante porque a ideia que se faz é a representação é qualquer coisa de forte, de muito poderosa. É o imaginário.

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Além do imaginário, o valor intelectual e moral estão ligados a isso e eu creio que é uma forma de conceber a nação é como uma nação surge, se desenvolve, se propaga e, algumas vezes, desaparece etc. Eis minha posição, com respeito ao marxismo contra a ideia que tinha de sociedade ideal onde tudo era deter-minado para a evolução dos modos de produção. Faz mais ou menos trinta anos que não acredito mais, e, por consequência, a ideia dessa sociedade ideal é uma representação ideológica”.

Pergunto se seria uma forma de utopia. O Prof. Lacoste concorda complementando: “Seria uma espécie de utopia uma utopia que faz analisar essa sociedade em função da propriedade dos meios de produção. Poderia dizer sim, mas não só. Penso que a análise marxista é necessária, e indispensável, mas não su-! ciente, e é importante levarem em conta também outras coisas, inclusive, o problema do poder. O grupo que tem o poder, mes-mo que ele não seja proprietário dos meios de produção, se colo-ca como um dos elementos da questão”. Prosseguindo, pergunto se seria poder no sentido foucaultiano. Lacoste responde: “Sim, sim, falo do problema do poder como consequência de lutas. E não se pode compreender uma sociedade, um estado comunis-ta, se não se levar em conta a luta terrível pelo poder. O poder é como um jogo, seja para controlar um banco ou controlar as concessões petrolíferas, sempre será necessário se disputar o po-der”. Ainda pergunto se seria o poder em si e Lacoste responde rapidamente: “Em si mesmo, o poder cultural também institui lutas, são grupos”. Pergunto se seria a representação do poder e Lacoste logo responde: “Sim, é a representação do poder. Posso de! nir a análise marxista como sempre necessária, mas não o su! ciente”.

Aproveito o ensejo para dar outro rumo à entrevista, ten-tando obter o máximo de informações do professor. Pergunto se ele tem muitos amigos entre os geógrafos brasileiros, se ele tem

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opinião formada sobre nossa geogra� a, se para ele existe hoje uma escola geográ� ca brasileira. Revelando pouca intimidade com a geogra� a brasileira, assim respondeu Lacoste: “Pode até ser que tenha, mas não a conheço. O geógrafo brasileiro que eu conheço melhor é Milton Santos. Diz que Milton Santos, lhe falara, ainda quando estava na França, que ele estava bem mais preocupado em fazer apreensões e citações de geógrafos anglo--saxões e franceses do que falar do Brasil. Era lógico, pois ele não estava no Brasil. Por consequência, em outro momento em entrevista a Hérodote, ele disse que era um geógrafo emigrado, ele não estava em sua nação e, por conseguinte, falava de outras coisas. Todos estimavam muito Milton Santos, mas depois que voltou ao Brasil eu não o revi mais”. Nos momentos � nais da en-trevista acrescentei que eu estava considerando para � ns de aná-lise, o papel dos mediadores do pensamento geográ� co francês autores de livros e orientadores de teses, como também aqueles franceses que pesquisaram ou pesquisam no Brasil. Aproveitei destacando a situação de Lacoste dizendo que era muito inte-ressante o caso dele, por tratar-se de um autor que não conhecia o Brasil, mas que havia desempenhado importante papel na for-mação de nossos geógrafos. Lacoste acrescentou: “E engraçado. Eu não conheço esse país e como eu in$ uenciei esse país (risos). É ne-cessário conhecer o Brasil. Eu penso que é o próximo passo. O Brasil me parece muito interessante graças aos geógrafos amigos, mas Cuba também me interessa muito, pois são problemas grandes e muito in-teressantes”.

A entrevista revela de imediato, um outro Yves Lacoste, um autor que parece não pretende rever a sua obra, no caso seu livro referência, como se ele causasse algum dano. Não se pode negligenciar o fato que o livro A Geogra( a Serve... é de 1976 e, como em qualquer pesquisador ou teórico da geogra� a, o pen-samento é datado. O que foi escrito para aquela época vigora-

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va para aquele período. A sociedade muda, os autores mudam logo Yves Lacoste mudou também. Caracterizá-lo consistiu em construir seu per� l a partir daquilo que se tinha de disponível no Brasil. Aqui, Lacoste era conhecido pelas obras citadas, em que a temática do subdesenvolvimento é seu carro-chefe. Ao escrever A Geogra� a Serve... , Lacoste angariou uma notoriedade poucas vezes alcançada por um geógrafo na França. O livro marca a mu-dança de eixo de preocupações do autor.

Se até então seu trabalho era produzido de forma indi-vidualizada, mesmo considerando A Geogra� a Ativa, escrita e proposta pelos quatro geógrafos já citados, de sua autoria, o que aparece sempre é seu tema preferencial, o subdesenvolvimento.

Simultaneamente ao lançamento do livro em 1976, dá-se o surgimento da revista Hérodote, resultado de um trabalho co-letivo envolvendo um número considerável de pesquisadores. A revista deu visibilidade ao autor que soube administrar o con-texto histórico em que ela surgia e ao mesmo tempo esboçou o novo na geogra� a francesa, uma espécie de reação ao saber geo-grá� co estabelecido. O livro como obra individual, uma revista expressando as ideias de um grupo e a posterior produção de sua tese de doutorado, em 1979, permitem montar o cenário em que Yves Lacoste tem sabido muito bem atuar. A criação do pro-grama de doutoramento, a grande aceitação da revista em todo mundo e um forte investimento intelectual nos temas da revis-ta (stratégies, géographies, idéologies), garantiram ao professor uma posição invejável no universo acadêmico e editorial francês. Lacoste, inteligentemente acompanhava o movimento geral da sociedade no mundo e num momento certo, ajustou seu rumo para questões candentes daquele momento histórico. Suas com-panhias e alianças, sua experiência gabaritaram-no para saber o caminho certo das discussões e o momento mais adequado para uma mudança de eixo.

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E o Brasil como � ca? – Não � ca. A entrevista evidencia que o Lacoste, especialista em Geopolítica não se identi� ca com aquele Lacoste que construiu uma fama formidável no Brasil. Ele tem uma notoriedade que já foi maior. Face às mudanças no mundo, o Brasil não iria � car de fora.

Lacoste ainda tem seu lugar no Brasil. Seu livro aqui tão famoso provocou mais discussão entre aqueles que não o leram do que entre os que realmente o conheciam. Era um verdadeiro grito de guerra. Lacoste na entrevista evita repetidas vezes falar do livro dizendo da necessidade de reescrevê-lo. Denota uma espécie de negação de sua própria obra. Não houve nenhuma justi� cativa do tipo “foi escrito nesse ou naquele contexto”; foi, na verdade, evitado, ignorado. A entrevista permite recuperar o percurso do ilustre professor, sua infância, sua juventude, o partido, a admiração pelos companheiros duplamente compa-nheiros; pelo partido e principalmente pela geogra� a. Seu rom-pimento com o partido, sua militância na Argélia, a construção de sua experiência em subdesenvolvimento, em luta de liberta-ção nacional, a ação colonial etc. Lacoste descobre a França e a Europa. Encontra meios importantes para adquirir visibilidade, para declarar novas guerras. No texto da entrevista ele promete guerra. O inimigo à vista: o Grupo RECLUS. Aguardemos!

O sucesso de Lacoste na versão de geógrafo geopolítico no Brasil está longe daquele alcançado com um único livro, qua-se catecismo de um grupo de leitores que impunha sua leitura e transformava parte de seu conteúdo em palavras de ordem. Seu livro A Geogra� a Serve... já foi publicado o� cialmente no país. Hoje, Lacoste orienta estudantes do Brasil, o que permite veri-� car sua performance. Teriam se esgotado os anos Lacoste ou nós, os brasileiros, estaremos abertos a um Lacoste pós-marxis-ta, ou melhor, pós-moderno?

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5NOVOS GEÓGRAFOS FRANCESES

ENTRAM EM CENA A análise da in� uência francesa na geogra� a brasileira,

identi� cada num conjunto de formulações, ideias e pontos de vista calcados em princípios rígidos da geogra� a daquele país re-sulta na personi� cação de pro� ssionais que passaram pelo Brasil e que dadas as peculiaridades de sua atuação, conseguiram for-mar grupos e dar continuidade ao que se chama de escola fran-cesa. A abordagem do que seria Novos Geógrafos, toma como referência aqueles pro� ssionais que reforçaram a forma francesa de fazer geogra� a em nosso país após a realização do Congresso da UGI. A partir desse evento, realizado em 1956, consideran-do que já enfatizamos a ação de pro� ssionais do porte de Pierre George, Michel Rochefort e Bernard Kayser. Em seguida des-ponta o Prof. Yves Lacoste e todo o alvoroço provocado por suas ideias, acentuado pelo tipo de leitura que foi feita no Brasil de seu livro, A Geogra� a Serve..., propiciada pela conjuntura que o país atravessava nos idos de 1977/1978.

Abordar o novo pressupõe estabelecer com clareza o que é o velho. Fica evidente que não utilizamos o critério cronológico

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embora reconheçamos a necessidade de sua utilização em vários momentos pelo fato de possibilitar a sequência de eventos e/ou episódios. Ao mesmo tempo a abordagem do modelo apresenta restrições de ordem metodológica, pois impõe que se vincule in� uência da Geogra� a francesa no Brasil a vinda ou perma-nência de pro� ssionais geógrafos ao país, excluindo aqueles que publicaram livros, orientam pesquisa e não mantêm um vínculo mais efetivo com o país. Atento a esse detalhe, foi evitado, no caso da presente pesquisa, que se excluísse nomes, pelo menos aqueles mais expressivos que deixaram suas marcas a partir de seu estilo de escrever, pesquisar ou orientar.

Muitos franceses passaram ou se relacionaram com o Bra-sil de forma direta ou indireta. Nesse processo identi� camos no-mes de professores como Elisée Reclus, autor do livro, Estados Unidos do Brasil, editado em português pela Garnier, em 1900 no Rio de Janeiro e o de Pierre Denis, talvez as mais antigas referências de tratamento cientí� co em geogra� a sobre o país. Denis escreveu Le Brésil, para a coleção Géographie Universelle, dirigida por Paul Vidal de la Blache. Falar de franceses no Brasil remete de imediato aos nomes de De! ontaines ou Monbeig.

Cabe lembrar, entretanto, a estatura de professores como Roger Dion, que substituiu Monbeig. Em 1948, o Brasil rece-beu Pierre Gourou, ilustre professor do College de France, es-pecialista em estudos de regiões tropicais, autor do famoso li-vro Les Pays Tropicaux, editado em Paris, pela PUF em 1948. Outro especialista em países tropicais, Louis Papy, chegou em 1950, vindo de Bordeaux. De 1941 a 1952 Francis Ruellan, pro-fessor de Geomorfologia Aplicada permaneceu no Brasil, quase que exclusivamente no Rio de Janeiro, indo para São Paulo em 1952. Sucederam-no André Libault, que permaneceu desde o ano de 1965 até 1973, como professor de Cartogra� a na USP, onde ministrou vários cursos e dirigiu o Atlas de l’Etat de São

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Paulo. Em 1973, chegou André Journaux. Dentre os professores chegados mais recentemente, listamos: Hervé � éry, autor do livro Le Brésil, da Masson, de Paris, editado pela primeira vez em 1985, que já ocupou o cargo de diretor do Grupo RECLUS de Montpellier, credenciado em pesquisa no CNRS e membro do CREDAL (Centre de Recherche et de Documentation sur L’Amérique Latine) entre outras atividades. Os nomes de Mar-tine Droulers, na ocasião da pesquisa, diretora do “grupo Brasil” CREDAL, organizadora do livro Le Brésil à l’Aube du Troisième Millénaire e que exerceu o magistério superior na Universidade Federal da Paraíba.

De grande importância também os nomes de Hélène La-micq, Claude Bataillon, Guy Laserre, Jean Labasse, Hélène Ri-viere d’Arc, Yves Leloup, Raymond Pébayle , Étienne Juilliard, Calembert, Jean Gallais, Daniel Noin, Guy Burgel, Philippe Pin-chemel Jean-Claude Bonnefont, Claude Collin Delavaud, Anne Collin Delavaud, Yves Babonaux, Henri Coing, Gabriel Dupuy, Jacques Malezieux, François Durand-Dastes, Jean Revel-Mou-roz, entre outros que, além das pesquisas, destacaram-se pela orientação de teses sobre o país.

O novo aqui está sendo enfocado pela capacidade maior de in+ uenciação e pelo teor das entrevistas que revelam como se estabelecem as relações que levaram a considerar como novo a atuação dos professores Paul Claval e Jacques Lévy. Como já foi lembrado anteriormente, o sentido de novo não se prende à idade cronológica, e sim ao início de um novo contato e as pos-sibilidades da polarização e formação de grupos por parte desses dois pro4 ssionais. Como foi visto, outros pro4 ssionais geógra-fos atuaram no país nesse período, entretanto, se for observa-do o percurso de cada um dos dois ver-se-á de que forma eles estabelecem suas relações com o Brasil, e, porque tem sentido chamar essa fase de “Novos Geógrafos”.

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O Prof. Claval é hoje um dos mais conceituados geógra-fos da França. Reúne um número signi� cativo de pro� ssionais de qualidade em seu laboratório e é um dos principais pro-motores de eventos em geogra� a naquele país. Seus trabalhos são conhecidos mundialmente. Entretanto no Brasil poucos travam contato com sua produção, sendo Espaço e Poder, na-quela época, seu livro mais conhecido. Sua atuação na condi-ção de orientador de tese de brasileiros na França coloca-o em condição de destaque e permite que entre no rol dos novos. O Prof. Claval orientou e orienta teses de pesquisadores do Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizonte, Fortaleza e mantém intenso contato acadêmico com professores universitários e pesquisadores dos principais departamentos de Geogra� a das universidades brasileiras e outros órgãos de pesquisa. É autor do livro A Construção do Brasil, editado em Paris, em 2004, pela editora Belin.

Jacques Lévy é hoje um grande interlocutor que o Brasil tem na França. Jacques Lévy é incontestavelmente, um excelente exemplo dos novos professores e pesquisadores que entram em cena na sustentação das relações cientí� cas entre os dois países, é � gura de proa na organização da categoria dos geógrafos na França, tendo ocupado inclusive a vice-presidência da Associa-ção Francesa para o Desenvolvimento da Geogra� a. Referido professor mantém intenso intercâmbio com professores e pes-quisadores brasileiros e torna-se visita obrigatória para contatos e discussões dos brasileiros que se dirigem a Paris para períodos longos ou curtos de permanência. Cabe salientar que, coinciden-temente, os dois professores incluídos nessa situação de “novos geógrafos franceses”, conhecem a língua portuguesa com certa desenvoltura e expressam um razoável conhecimento do país. A escolha dos dois não indica a exclusão de outros professores ou pesquisadores que atuam no Brasil.

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Em entrevista concedida pelos dois professores, foi obti-do material e informações de inestimável valor para uma análise mais segura e profunda das relações mantidas pelos dois países.

Paul Claval, ilustre pesquisador da Universidade de Paris--IV, instituição onde suas atividades e permanência garantem--lhe notoriedade e respeitabilidade ímpar, se inscreve como um dos maiores expoentes da atual geogra� a francesa. Espaço e Po-der é seu trabalho mais conhecido entre os brasileiros. Publicou em Portugal o livro A Nova Geogra! a, editado pela Livraria Al-medina, de Coimbra, em 1987.

Com uma vasta produção intelectual, Prof. Claval é sem dúvida hoje, um dos professores mais requisitados na França e no exterior. Seus trabalhos são traduzidos em várias línguas. Seus orientandos são originários de todas as partes do mundo, sendo expressivo o número de europeus e orientais, o que não é comum entre os alunos matriculados nos cursos de doutorado na área de geogra� a. Como professor visitante em universidades estrangeiras, tem levado sua contribuição ao Canadá, Estados Unidos, Brasil (ministrou curso em português na Universidade Federal da Bahia), China (Taiwan), entre outros.

Quanto à orientação de teses, vem ampliando o número de brasileiros que o procuram para este � m. Na condição de di-retor de pesquisa, o Prof. Claval esteve à frente do Laboratório Espaço e Cultura, com publicação própria e um grupo dinâmico de pesquisadores que apresentavam seus resultados em seminá-rios regulares promovidos pelo Laboratório e que se convertia em espaço privilegiado para a discussão dos temas apresenta-dos. Em sua vasta, rica e respeitável produção intelectual encon-tram-se assuntos ligados aos seus temas preferenciais que são: História da Geogra� a, aménagement, e urbanismo, geogra� a política e geogra� a cultural. Sua tese de doutoramento foi orien-tada por M. Chevalier tendo sido defendida em Besançon em

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1970. Dentre os seus trabalhos de pesquisa e livros publicados destacam-se:

• La région nouvelle à la fin du xxeme siécle. Treballs de la Societat Catalana de Geografia, 1989, n. 17, p. 1109-112.

• Les géographes françaises et le monde méditerranéen. Annales de Géographie, 1988, v. 97, n. 542. p. 385-403.

• Le théme regional dans la li" erature française. L’Es-pace Géographique, 1987, v. 16, n. 1. p. 60-73.

• A critical review of the centre-periphery model as ap-plied in a global context. In: # e World economy and the spatial organization od power/SHACHAR, A., A., ORBEG S., ed. (Avebury: Aldershot, 1990, p. 13- 27).

• Criativité Culturelle et grandes capitales. In. La geéo-graphie de la criativité et de l’innovation/CHEVAL-lER, dir. (Paris: Publications de l’Universite Paris-Sor-bonne, 1990, p. 53-63).

• La conquête de l’espace américain, Du May$ ower à Disneyworld. (Paris, Flamarion, 1990, coIl. Géo-graphes. 320p.)

Além desses trabalhos, Paul Claval escreveu “Les Mythes fondateurs des sciences sociales”, “La Logique des villes”, “Prin-cipes de géographie sociale” etc. , Claval, a propósito da renova-ção da Geogra' a a' rma:

A geografia clássica permite descrever e compreender o meio rural, as realidades regionais ou das antigas provín-cias. A indústria, a cidade, o turismo, as migrações popu-lacionais, os ritmos trepidantes da civilização avançada, escapam-lhe.68

68 CLAVAL, Paul. A nova geogra% a. Coimbra: Livraria Almedina, 1987, p. 9.

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Ao apontar a incapacidade da geogra� a clássica em perce-ber, para � ns de análise, várias faces da vida moderna P. Claval indica que houve esse avanço. É, entretanto, bem moderado e parcimonioso reconhecendo que a geogra� a não construiu sozi-nha este percurso. O autor é enfático ao a� rmar:

A transformação necessária está muito avançada. A renova-ção foi obra de geógrafos, mas também, e ao mesmo nível, de sociólogos, de economistas, de etnólogos ou urbanistas. Os historiadores participaram no movimento, mas a sua contribuição é menos essencial do que durante o período anterior.69

A renovação, segundo P. Claval, começa a ser sentida a par-tir dos anos 1960, havendo, segundo ele, certa hesitação quanto ao seu quali� cativo.

Uns falam de geogra� a teórica, outros de revolução quantita-tiva: são expressões que, não sendo inexactas, exprimem ape-nas metade da realidade. A nova Geogra� a nasceu num pe-ríodo de fermentação intelectual intensa; desenvolve-se sob uma atmosfera de agitação social... En� m o marxismo, que até agora tinha apenas jogado um papel secundário no pen-samento geográ� co, interessa-se por estes desenvolvimentos. Jovens teóricos clamam a necessidade de abrir, através de um corte epistemológico a maneira de Althusser o continente ge-ográ� co do conhecimento cientí� co.70

O texto revela que o autor trata da renovação de forma abrangente considerando todas as correntes de pensamento com cores e matizes diferentes conforme suas opções político--ideológicas.

69 Idem. 70 Ibidem., p. 11-12.

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Entrevista com o Professor Paul Claval

Indago o prof. Claval, a propósito de sua opinião sobre a geogra� a brasileira, se ele pensa que já possui um per� l próprio e se já constitui uma escola autônoma. Assim responde o professor:

“Para mim, a princípio, uma escola de geogra� a signi� ca um grupo de pro� ssionais e um corpo de doutrinas que se trans-mitem de uma geração para a outra. E, por outro lado, no sen-tido mais forte, um conjunto de pro� ssionais que desenvolvem concepções originais da disciplina, no sentido forte e no sentido fraco. No sentido fraco, um grupo de pro� ssionais com conti-nuidade e que se aplica perfeitamente ao Brasil. Há atualmente, após 60 anos, um corpo numeroso de geógrafos no Brasil, com pessoas bem formadas, com tradição, que se consolidou, e, nesse sentido, penso que falar da geogra� a brasileira é uma realidade. Nesse sentido é uma escola como o são a geogra� a ibérica, a ita-liana. Direi que é, a meu ver, a partir do que se passa com a geo-gra� a ibérica, com a italiana, quando se pretende aplicar o termo no sentido amplo, se torna difícil aplicar o mesmo à geogra� a brasileira porque ela não desenvolveu um corpo de doutrina to-talmente original, mas é possível...

Creio que na história da geogra� a houve um período que vai do � m do século XIX aos anos 1950 com o fato da Geogra-� a Humana Geral adotar correntes, posições muito diferen-tes, concepções muito contrastantes. No que toca à geogra� a, constata-se que, nesse momento, existem efetivamente escolas nacionais. Há uma escola francesa, uma escola alemã, uma es-cola americana. Havia também nessa época, uma escola inglesa. Havia, portanto, geógrafos que na Inglaterra tinham nível pro-� ssional e uma série de tradições. E havia uma escola espanhola que se esboçava, e havia uma escola polonesa. Eu creio que por

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consequência, que a ideia de escola autônoma é qualquer coisa que se aplica a um determinado momento do desenvolvimen-to da geogra� a no mundo. Atualmente, estou seguro, que entre a geogra� a francesa e a geogra� a anglo-saxônica há uma larga oposição e hábitos um pouco diferentes, mas creio que esta ideia decorre do ‘nacional’ no sentido forte do termo e não se aplica bem à realidade atual.

Nesse sentido penso que o fato da geogra� a brasileira estar bem equipada, constitui prova de sua maturidade. Penso qualquer coisa de característico do conjunto da geogra� a brasi-leira, no contexto do mundo atual.”

Prossigo indagando o professor sobre as fases de hegemo-nia, de afastamento, de rupturas e de aproximações nas relações cientí� cas travadas entre França e Brasil no campo da geogra-� a. Falo da presença direta ou indireta de vários professores e cito De� ontaines, Monbeig, Papy, De Martonne, Pierre George, Kayser, Labasse, Lacoste, Tricart, Pebayle e ele mesmo entre ou-tros, que são constantemente citados em nossos cursos e traba-lhos de pesquisa. Pergunto se ele pensa que há uma descontinui-dade em nossas relações, se há sintomas de estagnação.

“Têm havido altos e baixos nas relações entre os geógrafos brasileiros e os geógrafos franceses. O mesmo ocorre entre a ge-ogra� a brasileira e a geogra� a francesa. Há períodos de relações muito intensas, aqueles nos quais os geógrafos franceses conser-vam o modelo ‘colégio’ dos alemães e têm um papel propulsor no nascimento da geogra� a brasileira como De� ontaines, Mon-beig, Papy, Pierre George, Rochefort, Kayser, e outros, revelan-do igualmente, um período que vai até o � m da 2a. Guerra Mun-dial. Penso que a partir desse momento há, em certos geógrafos brasileiros, um desejo de independência o que, eu diria, é muito legítimo, e isso não se traduz nos pesquisadores brasileiros pela busca de outros modelos e, um caso típico e o de Sternberg, que

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partindo para longe � nalmente se instalou em Berkeley. E nos parece que há uma geração que se voltou para os Estados Uni-dos e, na época de Sternberg, não se trata de uma transformação na concepção da Geogra� a mais própria dos anos 1960 com a ‘Nova Geogra� a’, dos métodos quantitativos e houve, em certos geógrafos brasileiros, a impressão de que o que vinha do velho continente estava ultrapassado e que valia voltar-se resoluta-mente para os Estados Unidos.

A orientação à esquerda de certos geógrafos brasileiros li-mitou, evidentemente, o papel de pessoas como P. George, B. Kayser, M. Rochefort, guardando a importância dos anos cin-quenta ou sessenta. Mas, creio que há uma reaproximação re-marcada a partir do início dos anos oitenta e penso que há dois fenômenos. De um lado, a descoberta de que a geogra� a quanti-tativa, a Nova Geogra� a, tem limites e, por consequência, o mo-delo que poderia oferecer a América do Norte é parcial; de outra parte, se ligou a modernização da geogra� a francesa, a emergên-cia de novas orientações, se bem que isso não é a Geogra� a Re-gional na maneira como se praticou nos anos 1930 e 1940, mas a geogra� a de orientação marxista tal qual Kayser, Rochefort, P. George puderam representar nos anos 1950 e 1960, que são hoje fontes cada vez mais amplas. Além dos interesses que há na França pelos problemas de organização do espaço, de “aména-gément”, de geogra� a aplicada de uma parte, e os problemas de Geogra� a Histórica e Cultural entre tantos. E após uma reno-vação, só pode se dizer que a França reencontra uma in� uência que tinha no início, criteriosa, com condições de avanço na dis-ciplina. Penso que há um momento de ressurgimento.

Pergunto ao professor se ele pode traçar seu itinerário in-telectual fazendo referência ao papel que o trabalho e o contato com o Brasil exerceram na sua formação.

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“Nos países nos quais estive, em diferentes momentos de minha vida, posso rever minha estada como ‘petit français’, nos Estados Unidos, na Nova Zelândia e no Brasil. Por conse-quência, e por razões muito diversi� cadas, isso só vem dos países que visitei muito cedo e, no caso do Brasil, tomei conhecimento quando eu era estudante em Toulouse, com jovens colegas bra-sileiros que preparavam suas teses. Havia uma colega geógrafa e seu marido que era médico. E acreditei conhecer a geogra� a brasileira e descobri que embora não conhecesse o português, poderia ler o português, e que podia escrever numa revista e então nesse momento, houve um interesse redobrado pelo Bra-sil. Posso dizer que as obras que tínhamos sobre o Brasil, me interessavam muito porque havia uma sociedade diferente pela qual me interessei, porque não achara na literatura francesa, o equivalente do que Pierre Denis, que viveu também no Brasil, escrevera sobre a Argentina. É uma geogra� a magní� ca, um dos mais belos estudos regionais. Denis trabalhou nos arquivos da Argentina antes da Primeira Guerra Mundial e ele trabalhou da mesma maneira no Brasil e, por consequência, tive a impressão de um trabalho que a certo momento, utilizei como testemunho de viajante.

Em seguida, destaco o hábito de apresentar a geogra� a do Brasil a partir da história do açúcar. E interessante, mas ao mes-mo tempo, é a partir dos anos cinquenta do século vinte, que os geógrafos franceses se repetem e eles tinham na visão do açúcar do Nordeste, de Minas Gerais, do Rio, de São Paulo, uma su-cessão de bases de desenvolvimento. A Amazônia mais tarde, e notei que faltava qualquer coisa que após ter contado esse ciclo eu não saberia o que dizer dos períodos da história do país, de sua organização. E tive a pura impressão de um ressurgimento ao qual faltava a substância. O único que sempre me pareceu di-ferente é o estudo de Monbeig que justamente deu, para o caso

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de São Paulo, uma visão bem mais coerente. Lendo Monbeig descobri o interesse da geogra� a médica ou da saúde e foi di-vertido pois eu era estudante quando li Monbeig e jamais vira, a partir de um exemplo concreto e preciso, o que era abordar a Geogra� a médica.

O que encontrei de interessante na nova abordagem de Pe-bayle é que a obra e justamente uma re� exão sabre as condições ordinárias de organização do espaço no Brasil, onde não só a his-tória dessas frentes pioneiras tomam lugar. Há uma re� exão sobre a especi� cidade do espaço brasileiro, re� exão que, no fundo, não encontrara na literatura geográ� ca francesa. Deu-me a impressão de que ele se � xou após Monbeig. O discurso sobre o Brasil por cerca de trinta anos foi repetitivo, quer se trate de frentes pionei-ras, quer se trate de ciclo do açúcar, e em pequenas obras, encon-tramos sempre a mesma visão do açúcar, das frentes pioneiras e faltam muitas outras coisas para compreender o Brasil. Nesse momento tive o sentimento de que se estudara mal o Brasil. Me interessei quando ainda estudante, de ir ao Brasil, como um grito de independência, e detive muitas coisas nesse momento, mas procurei e sempre guardei a lembrança de um país sobre o qual, na literatura de língua francesa, faltava alguma coisa.

Restou um pouco na superfície, penso uma interpretação fundada historicamente, mas distante dos historiadores brasilei-ros. Uma interpretação que não encontra semelhança nos his-toriadores franceses. Só nos geógrafos, aos quais escapou um pouco e que buscam compreender o que é o espaço brasileiro propriamente dito, uma vez que as frentes pioneiras passaram e a sociedade se organiza como ela funciona, como se organiza a competição social, como se coloca a questão dos papéis-chave na sociedade brasileira e colocar questões da formação das eli-tes. Essas são coisas essenciais para compreender um país e isso não encontrei nas obras que consultei.

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Pergunto sobre a reaproximação da Geogra� a francesa com a brasileira e vice-versa, considerando que o senhor repre-senta bem essa reaproximação. Penso que a primeira pessoa que Paul Claval orientou foi Leila Cristina Dias e, em seguida, Mar-gareth Pimenta, Paulo César da Costa Gomes, Sergio Augusto, Maria Clélia Lustosa da Costa, Maria Geralda de Almeida e eu que � z estágio de pós-doutorado. No caso, todas essas teses in-dicaram algo de novo no trato do Brasil, uma abordagem dife-rente do que se faz na França normalmente? Assim Paul Claval se manifestou:

Penso que através dos trabalhos dos brasileiros que dirigi apa-rece uma ideia de modernidade, condição da formação de um espaço urbanizado moderno. Geografia da comunicação no interior de um Brasil unificado, e que não circula bem. Em Margareth Pimenta, quando ela estuda a condição da indús-tria têxtil, se apresenta mais recentemente com Leila Cristina o papel das telecomunicações na formação do funcionamento da rede bancária, no Brasil de hoje. Desse ponto de vista, os brasileiros descobriram no seu estágio na França, a importân-cia das telecomunicações. Entre as ideias, importantes a meu ver, destaco o papel das elites no funcionamento espacial de uma sociedade e qualquer coisa que está acima do nível que atrai a atenção dos brasileiros que orientei e, acredito ser im-portante para compreender a história dum país. Para mim, mais as elites do que as classes, porque se falou muito de classe e de região. Também parece interessante ver como a respon-sabilidade do país surge para fortalecer o conhecimento que permite organizá-lo e isso constitui uma rede através da qual a informação circula e começa a penetrar no mesmo sentido que atravessa a noção de especificidade do espaço. Creio que há ainda muito trabalho a fazer no Brasil pelos brasileiros para tentar ir mais longe desta vez.

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Aproveitei para indagar o que o professor pensa sobre a prática da Geogra� a francesa em relação ao Brasil, se ela seria semelhante à Geogra� a Colonial ou à Geogra� a Tropical. Res-pondendo, Paul Claval foi enfático: “Penso que não é semelhan-te por várias razões: em primeiro lugar penso que P. Monbeig teve essa preocupação bem diferente de geógrafos como Gou-rou ou P. Pélissier.” “Foi diferente, porque obteve testemunhos mais estreitamente geográ� cos que outros, pois ele tinha uma curiosidade que não � cou limitada à geogra� a física, limitada ao fato tradicional da agricultura ou da ocupação do solo. Eu creio que rapidamente ele compreendeu a importância da circulação, a importância da história, do papel do sistema de povoamento. E trouxe do estudo da sociedade brasileira uma visão da sociedade que não estava presente entre os especialistas do mundo da ge-ogra� a colonial. A ação que exerceram sobre os fatos sociais na Geogra� a colonial, não se aplica no caso das estruturas muito tradicionais porque, desde o início, o que interessa a Monbeig é o papel de S. Paulo, o papel da metrópole, o papel das estra-das de ferro, o papel de certo capitalismo inovador. Eu creio que isso não é simples equivalência ao resto da geogra� a colonial, ao resto da geogra� a tropical, mas ele tira partido da Geogra� a tropical, por exemplo, de todas as pesquisas sobre a geogra� a médica, e a integra na sua abordagem. Desse ponto de vista, ele faz parte da tradição de análise, mas é qualquer coisa que não é exclusiva. E então a originalidade é mais forte em Monbeig do que o era em outros. Eu creio que outros geógrafos franceses aceitaram mais facilmente essa interpretação da história do Bra-sil em termos do ciclo da cana-de-açúcar. Desse ponto de vista, foi pouco diferente das abordagens tradicionalmente praticadas pelos geógrafos. Mesmo assim, tornou-se repetitiva. Aceitou uma interpretação sem ver se ela cobria a realidade brasileira, e lhe permitisse compreender a dimensão do progresso do povo-

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amento que é um dos elementos da diversidade regional. Mas que havia certamente outras coisas para analisar no Brasil atual, que são diferentes e que não são as mesmas compreendidas por Monbeig, mesmo sendo excepcional, nem pelos demais geógra-fos franceses que trabalharam no Brasil”.

Pergunto se existe algo de novo em matéria de geogra� a na França, e, em caso de resposta positiva, que ele me falasse em que consistia esse novo e onde ocorria sua prática, quais seriam suas principais características e seus personagens. Solícito como sempre, assim Claval se manifestou:

“Você me põe uma questão que é di� cílima porque você conhece o assunto melhor do que eu. Fico um pouco acanha-do para responder essa questão. O que há de novo na França, depois de quanto tempo, eu lhe peço precisar mais”. Digo que estou me referindo ao momento atual (1992). Nós brasileiros quando discutimos, notamos uma espécie de “perda” de Paris e o ressurgimento de outros centros ditos tradicionais para a ge-ogra� a brasileira como Strasbourg, Toulouse, Bordeaux, Caen, mas nós perguntamos, para a geogra� a em geral hoje, o que é Montpellier, o que é Grenoble, e as universidades em Paris que trabalham com a Geogra� a como Paris I, Paris IV, Paris VII, Paris VIII, Paris XII. Claval prossegue: “Eu penso também que a geogra� a francesa na hora atual se diversi� cou nos seus inte-resses e renovou-se na concepção de região, partiu em torno do Grupo Reclus em Montpellier, e a re# exão sobre região foi, em parte, expressa pelos trabalhos do grupo RECLUS, por um es-forço de utilização sistêmica do mapa para expressar isso. A ideia de analisar o país sob a forma de uma geometria simpli� cada, nem sempre aceita por unanimidade, mas que é alguma coisa que, do ponto de vista pedagógico, representa uma vantagem importante, e a Casa de Geogra� a de Montpellier oferece aos pesquisadores que desejam obter uma documentação sobre a

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França e sobre a Europa, instrumentos informativos e cartográ-� cos modernos e facilidades de primeira linha. Por isso, a Mai-son de la Géographie de Montpellier é um centro importante em temas que estavam negligenciados como a geogra� a política que tornou-se um componente importante após dez anos e, des-se ponto de vista, há correntes interessantes de re� exão sobre a geogra� a política e a geopolítica. Pode ser em nível de pesqui-sa da Universidade de S. Denis-Paris VIII - em torno de Yves Lacoste onde se encontra a formação melhor estruturada para o terceiro ciclo neste domínio, preparação do doutorado. E há interesse pela geogra� a social, um interesse que se desenvolveu após os anos oitenta em torno de geógrafos da Universidade de Paris I, dos geógrafos de Lyon II, e de geógrafos da Université de Caen e outras universidades do oeste - Nantes, e centros menos importantes. Há aí pesquisas muito interessantes ao limite da Demogra� a, da riqueza, da pobreza, de fenômenos de exclusão e, neste conjunto, as pesquisas são muito numerosas. Após dez anos, igualmente assiste-se à renovação da geogra� a histórica e da geogra� a cultural. A geogra� a histórica e a geogra� a cultu-ral sempre foram praticadas, mas foram consideradas um pouco marginais após os anos sessenta e sobretudo nos anos setenta. Atualmente são disciplinas ativas para os mais jovens e em ma-téria de geogra� a histórica nos centros que se especializaram. A mesma é praticada em várias universidades no que concerne à Geogra� a Cultural e é a Paris IV que a mantém. Quando da rea-lização da pesquisa, lá estava o centro mais importante com o in-teresse focado na história da paisagem. Os textos e pesquisas do Prof. Pi� e revelam forte interesse por paisagem entendida como capaz de explicar a realidade. Igualmente acontece nas investiga-ções do Centro de Pesquisa do Japão Contemporâneo tendo à frente o Prof. Augustin Berque. É, em Paris, que se encontram os centros essenciais à pesquisa, os melhores. Agora deixo os

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domínios da geogra� a humana e da geogra� a social para ver o que se passa no domínio da geogra� a física ou da geogra� a natural. A impressão é que ele vive uma fase de transição e após os anos cinquenta, sessenta e setenta, assiste-se a uma crescente especialização mesmo se nos interessa mais a abordagem global. de que a geogra� a física toma mais e mais um sentido de geo-morfologia especializada, mesmo que não se diga de uma bio-geogra� a bem pontuada pela climatologia que realiza encontros consideráveis na meteorologia dinâmica, ao estudo de tipos de tempo, de massas de ar, de movimento um pouco diferente, e dá a impressão que essa geogra� a física muito especializada se volta para uma geogra� a física para o homem que nos interessa, antes de tudo, o funcionamento dos ecossistemas nos quais o homem esta envolvido, nos interessa o meio ambiente e sua preservação, nos interessa, o clima, o que signi� ca, e desse ponto de vista, a mutação rápida explica um pouco o sombreamento dos centros tradicionais que não desapareceram, mas que interessam antes de tudo, hoje, ao geólogo, ao geomorfólogo especializado, que não são geógrafos. Mas há estudos interessantes que continuam a ser feitos em Strasbourg, Caen ou em Grenoble, que é um cen-tro tradicional dessa geogra� a especializada, e há orientações novas voltadas para o meio, como em Nice, por exemplo, Greno-ble e Nanterre. E há trabalhos que superam, com profundidade, as abordagens da geogra� a física. No domínio das orientações que eu diria regionais, continua interessada pelo mundo tropical com menos sucesso após alguns anos, mas as universidades me-diterrâneas continuam elaborando trabalhos sobre o Maghreb, o mundo mediterrâneo e o Oriente Médio.

Toulouse orienta-se para o mundo ibérico especialmente hispano-americano, hispânico mais, igualmente, tem um nítido interesse pelo mundo iberofônico. E o que muda até o presente são os centros de pesquisa sobre a Europa. O que parece para-

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doxal, é que os centros que trabalham nesse domínio têm um interesse muito nítido na transformação atual do extremo orien-te, ou seja, metade do mundo pací� co. Apesar do Centro de Es-tudos do Japão Contemporâneo participar disso, faltam ainda, centros de estudos mais expressivos sobre a Europa oriental/central, do leste, centros de estudos sobre o extremo oriente. Eu creio que há conhecedores, estudiosos, estudantes, mas não há centros que estejam à altura dos problemas que se colocam nes-ses países”. Prosseguindo, o professor começa a falar da geogra� a brasileira: “A meu ver a geogra� a brasileira tornou-se uma geo-gra� a adulta com uma produção abundante de revistas de qua-lidade nas quais há, ao mesmo tempo, artigos, análises feitas por autores brasileiros, análises de obras brasileiras e há um esforço para se manter em dia com o conjunto das pesquisas no mundo. Penso, por exemplo, que o papel da revista que era orientada por Chistofole� i, a Revista Teorética tem importância capital nes-se domínio. Tenho a impressão que, através de textos e outros trabalhos abundantes e numerosos publicados nesta revista, é possível ao Brasil seguir o que se fez no mundo anglo-saxão e na Europa. Creio que a geogra� a brasileira atingiu essa maturidade constituindo um rol de pro� ssionais capazes de tratar dos assun-tos nacionais e se manter ao corrente dos interesses e do que se faz em âmbito internacional. Há manuais de ensino secundário e superior que são bem feitos e que são publicados há muitos anos. São anuais equivalentes aos encontrados em outros luga-res do mundo ocidental. Há traduções e é possível encontrar em português, obras inglesas, francesas e na grande parte de traba-lhos que existem, há fundamentos importantes e trabalhos de demonstração estatística. Creio que o fator que tolhe os geógra-fos brasileiros na hora atual é algo que tolhe toda a vida intelec-tual do Brasil, são as di� culdades de vida dum sistema ruim no qual os professores têm sempre que realizar uma ginástica difícil

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para chegar até o � nal de seus trabalhos. Desse ponto de vista, o que limita a produtividade dos geógrafos no Brasil e que eles são forçados a realizar outros cursos, a aceitar outras responsa-bilidades diversi� cadas e isso não corresponde, por outro lado, à vontade de participar no movimento geral da vida econômica e nos demais fenômenos do país.

A relação que tive com colegas brasileiros foi sempre para mim, relações interessantes e tenho a impressão de estar num terreno onde falo para iguais. Falo com pessoas que fazem de tudo para se manter atualizadas, para se manter no nível e, desse ponto de vista, tenho tido muito boa impressão da geogra� a bra-sileira, embora eu não tenha ilusão de que não apresente fraque-zas, de que os geógrafos brasileiros estejam no primeiro plano. Não! Há em toda comunidade cientí� ca grande diversi� cação tanto quanto ao nível do esforço, como nos resultados obtidos.

Ao contrário de outros geógrafos, as respostas do Prof. Paul Claval são estruturadas de tal forma que nada � ca sem res-posta. O entrevistado � cou bem à vontade e a cada solicitação emitia suas opiniões, revelando um profundo conhecimento de Brasil. Segundo o depoimento, seu interesse pelo país data do período em que o mesmo era estudante universitário em Toulouse.

Paul Claval registra magistralmente todo o seu contato com obras excelentes, escritas por franceses que analisaram o Brasil. Cita P. Denis e P. Monbeig entre outros. Sua habilidade analítica coloca-o em posição de destaque entre os geógrafos franceses que mantêm vínculos com o país. Embora não tenha registrado o conhecimento de trabalhos de intelectuais brasilei-ros sobre as várias interpretações de Brasil, seja de Sérgio Buar-que de Holanda, Caio Prado Junior, Gilberto Freire ou Celso Furtado, todas, contemplando variadas matrizes teóricas. Cita os trabalhos de seus orientados que, sem dúvida, transmitem

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uma imagem do Brasil quanto à sua totalidade. Claval constitui também outro caso bem interessante de professor orientador. Apesar de manter vínculo antigo com o país e ter a vantagem de possuir o conhecimento da língua portuguesa, só ultima-mente iniciou a atividade de orientação para brasileiros. De um modo geral, chama a atenção a procura que os brasileiros fazem para serem orientados pelo Prof. Claval, seja para uma orientação de longa duração tipo tese de doutoramento, seja para contatos, entrevistas etc. Sua simpatia e boa vontade fa-zem-no hoje uma das personagens da geogra� a francesa mais expressivas para o Brasil.

Outro geógrafo que ocupa a condição de “novo” nas rela-ções travadas entre a França e o Brasil perpassadas pela geogra� a é Jacques Lévy.

O geógrafo Jacques Lévy desponta como uma das gran-des revelações da Geogra� a francesa assumindo cada vez mais posições de destaque, com uma produção variada e de gran-de porte. Seu entrosamento com geógrafos brasileiros, seu interesse pela produção geográ� ca do país, o conhecimen-to do português leva-o a constantemente ser procurado por brasileiros que estudam na França ou que para lá se dirigem para pesquisas e contatos. Tudo isso o credencia entre novos geó grafos que ingressam no panorama da geogra� a brasileira. Suas formulações abrem muitas possibilidades a um profícuo intercâmbio acadêmico entre França e Brasil. Em sua entre-vista, Jacques Lévy dá um outro tom, desnudando as relações existentes no interior da organização da geogra� a francesa sem camu� ar suas mazelas, as lutas pelo poder, a organização de associações.

Nascido em 1952, antigo aluno da Escola Normal Supe-rior de Cachan, cidade integrante da grande Paris, mais tarde Jacques Lévy assumia a função de encarregado de pesquisa do

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CNRS junto ao laboratório Strates na Universidade de Paris I, Sorbonne. Quando da entrevista, em termos funcionais, ainda era maître des conférences (um dos níveis de carreira do magis-tério francês), no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Em 4 de janeiro de 1993, defendeu sua tese de doutorado de estado (Doctorat d’Etat) sob o título de “L’espace légitime”, na Univer-sité de Paris VII, tendo inclusive, o Prof. Milton Santos, como membro da banca que contou também com Paul Claval, Jean Bernard Racine, Olivier Dollfus e Remy Knafou. Cofundador e animador da revista Espaces Temps, Jacques Lévy reúne um con-junto de experiências signi" cativas em geogra" a.

O livro Le Monde Espaces et Systèmes, organizado por Ja-cques Lévy, Marie Françoise Durand e Denis Retaillé, lança-do em 1992, pelas editoras Presse de la Fondation Nationale des Sciences Politiques & Dalloz, constitui um trabalho denso em que se discute temas ricos e variados como: “Em torno do modelo-Estado”, “Em direção a sociedade-mundo” etc. O livro apresenta um texto do Prof. Milton Santos intitulado “São Paulo - um centro na periferia.”

Em outra obra de 1991, organizada par Jacques Lévy, Ge-ographies du Politique, parte da série ‘Referências’, editada pela Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, o au-tor ao reunir uma equipe de qualidade, recebeu grandes elogios. O jornal Libération assim referiu-se:

Como se articula o espaço da função política com as outras dimensões do espaço social? Esta obra procura responder. Para começar, pela análise da ‘donne’ de diferentes ‘espécies de espaços políticos’; em seguida pelas ‘mises’ de disciplinas, tais como a ciência política e a geogra" a, que investiram no campo: sociologia, antropologia, demogra" a, história. Estes contornos traçados, ‘les cartes’ vêm veri" car a adequação de metodologias a regiões e períodos históricos. (Marseille, a

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Bretagne, a URSS, a África). Uma última rubrica do “jeu” se esforça para dar “alguns pontos de referências para pensar o estado e o movimento do mundo hoje.”71

Do famoso jornal Le Monde obteve o seguinte comentário:

Este livro apresenta uma re" exão coletiva sobre o tema do espaço político. Especialistas de várias disciplinas (geogra% a, política, antropologia, sociologia, história, urbanismo) parti-cipam do livro, e então assiste-se, como notou Jacques Lévy, a uma ‘desgeopolitização’ do mundo e um deslocamento do político em proveito de uma extensão e de uma diferenciação de seus espaços. O conjunto constitui um dossiê rico e denso.

As duas notas, de teor crítico, de jornais famosos e respei-tados na França foram transcritas da contracapa do livro.

Entrevista com o Professor Jacques Lévy

Jacques Lévy foi muito receptivo ao ser procurado para a entrevista. Em sua casa, depois de apresentadas as razões da pes-quisa, perguntei se para ele a geogra% a brasileira já possui um per% l próprio e se até certo ponto, constitui uma escola autôno-ma. Assim se manifestou o professor:

“Bom, antes de responder a essa questão quero precisar algo. Eu não sou um especialista em Brasil e não sou um especia-lista em história da geogra% a. Portanto, eu não sou um conhece-dor especializado me permitindo responder com profundidade a essa questão. É mais uma impressão que eu posso dar a par-tir de duas viagens muito curtas que % z ao Brasil com intervalo de 10 anos – 1982 e 1992 – e do conhecimento pessoal que eu pude ter com alguns geógrafos brasileiros. Eu tenho a impressão e posso certamente responder sim a essa questão, porque, quan-

71 BERQUE, A. “Espace, milieu, paysage, environement. In:_____. Enciclopédia de Geographie. Paris: Econômica, 1992. p. 358.

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do comparada com outros países, meus sentimentos me revelam que, no Brasil, a geogra� a é importante, é densa, é estruturada, é complexa. Há muitas escolas de pensamento no interior da geogra� a, mas, em todo caso, ela se assemelha à geogra� a dos países onde essa ciência é forte. E eu não construí � rmemente meu conhecimento a respeito disso porque há uma grande crise nos países do mundo desenvolvido, como na Grã-Bretanha, na França, na Itália. Na Espanha ela é um pouco menor. E depois os Estados Unidos que não são muito poderosos senão em alguns lugares isolados, muitas vezes, aquém dos europeus. No Japão há também geógrafos, mas eu não estou seguro de que haja uma verdadeira escola japonesa de geogra� a. A Suécia também, segu-ramente, deve ser citada. Portanto, eu penso que o Brasil, desse ponto de vista, � gura entre os grandes países da geogra� a, nota-damente no que se refere à América Latina. Eu creio que não há senão o México que possa, de certa forma, rivalizar, mas de qual-quer maneira eu não tenho conhecimento, e o que sei é que há geógrafos em todos os países. Há na Argentina, na Venezuela, no Peru, mas o Brasil nesse contexto, é o mais importante, porque, se não há muitos geógrafos, torna-se difícil haver uma geogra� a. Desse ponto de vista em termos de massa, o Brasil preenche as condições. Em termos de ideias, eu creio que sua força é estar ligado ao exterior, não ser uma província, como se diz na França, isto é, uma zona de enclave, mal ligada ao mundo exterior, que vive seu próprio ritmo o que se podia dizer, no passado, também, em termos, da geogra� a francesa. Mas sabemos que geogra� a brasileira não e “provinciana”, que ela é ligada ao � uxo, ao merca-do intencional das ideias. Os geógrafos brasileiros leem o que se faz no exterior, têm uma boa cultura anglofônica e francofônica, produzem obras anglofônicas e francofônicas, são importantes como massa. Portanto, eles constituem massa sem enclave, em relação ao mundo. No fundo, verdadeiramente, eu te respon-

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do que não conheço senão um pequeno número de geógrafos. Penso que há toda uma parte que eu não conheço totalmente, especialmente, aquela ligada, por exemplo, ao IBGE - que faz a geogra� a quantitativa fundada sobre estatísticas, positivista se dito sob um ponto de vista pejorativo. Trata-se de uma geogra-� a decorrente dos momentos de glória do ‘milagre brasileiro’,de teor economicista, que não desapareceu completamente. Eu não sei se existe ou existiu, não conheço. O que conheço é a geogra-� a que se considera como ciência social, que pensa seriamente o conceito de sociedade, justamente como o de totalidade social. Trata-se de uma abordagem fundada na ideia de que o espaço tem uma dimensão de sociedade. Que utiliza, sobretudo, mé-todos qualitativos mais do que métodos quantitativos, porque pensa que é o melhor meio de apreender seu objeto. Todas essas coisas que a ligam a escolas comparáveis na Europa. E como eu mesmo me situo nessa abordagem, evidentemente, tomei con-tato com essa versão, essa porção da geogra� a brasileira. E de-pois, meu conhecimento me ligou muito fortemente à pessoa de Milton Santos. Ele foi meu embaixador nesse ingresso. Para ser honesto, devo dizer que a geogra� a brasileira que eu conheço é aquela que gravita em torno de Milton Santos”.

Interrompo e provoco mais uma vez Jacques Lévy per-guntando se a geogra� a brasileira seria uma espécie de escola e o professor prossegue: “Sim, uma espécie de escola, sobretudo agora que Milton Santos está na USP, onde trabalham muitas pessoas. Trabalham bem e muito. Isso é reforçado, penso, quan-do comparo com a época em que estive no Rio de Janeiro. Eu conheci também um terceiro aspecto da geogra� a brasileira que é o aspecto da geogra� a militante, quando de minha primeira viagem em 1982 ao congresso da AGB, em Porto Alegre. Fiquei impressionado com duas coisas que não havia visto alhures, ou seja, a possibilidade de conseguir fazer vir dois mil participantes

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geógrafos num local que era distante para todo mundo, e caro, porque os transportes são caros para os brasileiros, e entre os participantes, muitos professores do ensino secundário. E isso me pareceu um sinal muito importante de vitalidade. Creio que foi do mesmo modo, em Presidente Prudente”. Informo que a AGB tem conseguido arregimentar sempre um número consi-derável de participantes aos seus eventos. Jacques Lévy prosse-gue: “É o primeiro aspecto, o fato de que universitários estejam em contato com os utilizadores do pensamento geográ� co so-bretudo dos professores. Outro aspecto, este mais conjuntural e provavelmente mas ligado à época, é o primeiro passo da luta política pela democratização, e certamente lá houve certa mistu-ra de gêneros, eu diria, entre trabalhos propriamente cientí� cos e militantismo político. Era ao mesmo tempo simpático e in-quietante porque se pensava que a autonomia cientí� ca corria o risco de ser diminuída pela abordagem dos problemas políticos que evidentemente eram muitos e importantes, e compreendi o ‘porquê’”. Adverti ao professor que no contexto do evento de Porto Alegre já se observava um cisma, uma separação. Jacques Lévy concorda e prossegue:

Efetivamente, foi minha impressão. Após dez anos o que me espantou foi que a geogra� a brasileira trabalha, trabalha duro, tem ambições teóricas e ao mesmo tempo elabora trabalho de campo. Então ela tem, eu creio um bom equilíbrio entre esses dois aspectos da pesquisa. (1991)

Prossegui provocando o professor dizendo que conside-rando que a geogra� a brasileira mantém vínculos fortes com a geogra� a francesa apresentando fases diferenciadas como as de hegemonia, de afastamento, de rupturas e de aproximações em suas relações cientí� cas. Citei nomes de professores do porte de De� ontaines, Monbeig, Papy, De Martonne, Pierre George,

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Kayser, Rochefort, Labasse, Claval, Lacoste, Tricart, Pebayle, o próprio professor e tantos outros, que são constantemente cita-dos em cursos e trabalhos de pesquisa. A partir desse preâmbulo perguntei como ele via aquele contexto, se havia uma desconti-nuidade nessas relações ou se havia sintomas de estagnação. Jac-ques Lévy questiona: “Quando você diz sintomas de estagnação, o que seria estagnação, as relações?” Digo que sim, as relações, como você se referiu na questão anterior a propósito das rela-ções do Brasil com os Estados Unidos, a geogra� a quantitativa e assim por diante. Jacques Lévy responde assim: “Eu tenho a impressão que há certa dessimetria atual posto que os brasilei-ros são muito interessados na geogra� a de outros países, e, em particular, pela geogra� a francesa. Há uma continuidade, justa-mente do ponto de vista dos brasileiros, pelo interesse que têm pela França. Inversamente, tenho a impressão que a continuida-de não é tão forte porque os franceses gostam muito de utilizar o Brasil como objeto/campo de pesquisa, e eventualmente como público, mas eu creio que não cumpre com muito interesse e há exceções brilhantes. Muitos não podem aceitar a ideia de que o Brasil seja também um produtor de geogra� a e que então devem ir ao Brasil como vão a Grã-Bretanha ou aos Estados Unidos para se enriquecerem nas fontes de produção. Mas eu creio que não conhecem tão bem a geogra� a brasileira enquanto produto-ra de trabalhos. Portanto, talvez sejam esses especialistas os que introduziram essa descontinuidade. O fato de o Terceiro Mundo � nalmente ter se tornado popular no nosso país nos anos 60 e 70, e muito mais hoje, é qualquer coisa que perpassa largamente a geogra� a e que é o problema das esperanças � nalmente políti-cas e sociais que muitos dos intelectuais colocaram no Terceiro Mundo. Eles tinham a impressão de que a periferia � nalmente era a esperança do centro. Hoje, as ideias dominantes é de que o centro é a esperança das periferias.

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Bom, há, sem dúvida, muito de excesso nas cores. Penso que são as ideias que dominam hoje. Quero dizer que, se busca respostas, justamente, às nossas questões, no Sul. Então, há, pro-vavelmente, uma perda de interesse quando se vê nos países da América Latina e, particularmente no Terceiro Mundo, o incon-veniente de não serem nem os países que acabam de sair do Ter-ceiro Mundo como os do Sudeste da Ásia, nem países que estão na miséria como os da África. Portanto, eles são mais complexos e provavelmente não se deixam mais serem reduzidos a inter-pretações simplistas. Pode ser então que isso não seja mais do interesse daqueles que estão em pesquisa com visões simplistas do mundo. Eu penso que é por isso que há um eclipse particular da América Latina como centro de interesse. Sublinhando, eu creio que há mesmo uma continuidade que está ligada ao fato da geogra� a francesa não caminhar muito bem neste momento, pelo menos institucionalmente. Isto ocorre em face do regime nos anos 72, por razões de crises internas da geogra� a, e tam-bém porque as pessoas estavam mais interessadas nelas mesmas do que no mundo exterior, e tudo isso para resolver o problema de de� nição da geogra� a. Hoje os geógrafos apresentam certa melhora pela diversidade. Melhoraram, porque estão ligados ao exterior e então estão mais ligados à geogra� a universal. A do grupo Reclus, o festival de Saint-Dié de Vosges, constituem uma espécie de vontade de um novo universalismo que forçosamen-te, provocará contatos com o resto do mundo, mas, se mantém também, um dé� cit de relações, porque � nalmente vocês estão sempre à escuta dos geógrafos franceses. Os geógrafos franceses, entretanto, deveriam também, por outro lado, � car à escuta dos geógrafos brasileiros”.

Era difícil não demonstrar meu entusiasmo com as respos-tas e continuar a entrevista indagando o professor. Re� ro-me às suas vindas ao Brasil dizendo: você disse que foi duas vezes ao

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Brasil e que você conhece muitos geógrafos brasileiros. Você fa-lou de Milton Santos, Maria Adélia, Ana Fani, Rogério Costa. Você pode traçar seu itinerário intelectual fazendo referência ao papel que o trabalho e o contato sobre e com o Brasil exerceram na sua formação? Sempre atento e cuidadoso, assim respondeu Jacques Lévy:

“Sim. É difícil fazer um balanço quando se está justamente envolvido em alguma coisa, e o lugar do Brasil se reforçou na minha vida. Logo, é difícil fazer um balanço. Há grosseiramente duas fases na minha história brasileira pessoal. A fase em que es-sencialmente conheci Milton Santos e nós trocamos ideias, ele fez artigos e fui ao congresso da AGB em 1982. Discutimos mui-to, # z conferências, mas foram acontecimentos relativamente pontuais. Após alguns anos, o que é novo, é que pouco a pouco me encontro incluído numa pequena rede de relações com bra-sileiros que vêm a França. Percebo que não é só indo ao Brasil que faço contato com brasileiros, mas também permanecendo aqui. Assim, tive ocasião de discutir eventualmente, de acon-selhar estudantes, pesquisadores e professores brasileiros que vêm a França e eu senti uma procura muito forte da parte deles, pode ser porque o acolhimento aqui não é muito bom para os estrangeiros. Há um acirramento, há frieza, não há desenvoltura, descontração, que fazem com que os estrangeiros sintam-se per-didos. Acredito, entre outras coisas, que eu seja um pouco mais disponível e assim cresce a procura na medida em que aumenta o % uxo de brasileiros que vêm a França, falo no conjunto. Cito o caso especí# co da experiência que tive com o Rogério Costa porque estivemos verdadeiramente juntos por muitos meses e estabelecemos trocas de forma regular. Nós nos víamos cons-tantemente e ele participou de seminários que eu organizei, in-terveio em diferentes momentos e discutimos modelos explica-tivos sobre o mundo contemporâneo, sobre a epistemologia das

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ciências sociais, a modernidade e a pós-modernidade. Percebi que ele me acrescentou muita coisa, ao mesmo tempo que eu pude passar alguma coisa para ele. Nesse caso, houve uma troca verdadeiramente produtiva, que, � nalmente, pode ser mais fácil entre pessoas que estão em instituições diferentes porque há um fenômeno de sociologia das instituições que faz com que quanto mais eu esteja próximo de alguém, mais difícil se torna permu-tar com ela. Isso ocorre porque há o fenômeno da rivalidade ou da impressão de que o outro não vai nos acrescentar nada e � nal-mente, o exotismo como ponto de partida para uma verdadeira troca porque se quer conhecer melhor o mundo que encerra o indivíduo que vem de longe. E, por todas essas razões noto que, em geral, os contatos são mais fáceis com pessoas que vêm de fora e mesmo de muito longe. Por esta razão, como justamente vivi a importância dos geógrafos brasileiros que vêm à França com os quais eu pude discutir, como por exemplo, Ana Fani A. Carlos uma só vez na França e, em seguida, trocamos coisas. Ela me enviou um artigo, o seu livro sobre a cidade, que eu achei muito interessante, porque ela tem preocupações que também tenho sobre a cidade. E então, mesmo falando de Brasil, objeto fundamental para ela, e de certa forma, também para mim. Mas mudou muito quando fui ao Brasil em setembro e imaginamos fazer coisas juntos etc. Então, há coisas que se encaixam, sendo que uma delas, uma ideia que não sei se irá se realizar, de traba-lhar em pesquisas concretas sobre o espaço político brasileiro e notadamente, a partir do espaço eleitoral. É uma sugestão feita aos estudantes e pesquisadores da USP, mas há um laboratório de geogra� a política, não me lembro o nome exato, se é grupo ou seminário. Sei que é dirigido por Maria Adélia. É um grupo que trabalha sobre Geopolítica, sobre a interpretação, por exem-plo, dos resultados eleitorais, sobre as virtudes dos candidatos, a relação entre a vida política e o espaço. Agora a democratização

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permite ter uma massa de fatos, é possível discutir a cidadania, en� m, o sentido dado a esse fato. E há muitos fatos a tratar, e eu senti, por outro lado, uma reticência porque certas impressões eu compreendo, são ligadas ao fato de as eleições serem total-mente livres e transparentes etc, mas posso assegurar que é ne-cessário saber e interpretar se as eleições são totalmente livres e transparentes”.

Prossigo, dando outro rumo à entrevista e falo: Você mes-mo fez um mapa com os resultados eleitorais da França para Ma-astrich e a União Europeia, você fez a comparação.

“Sim, é uma coisa que � z há algum tempo e, efetivamen-te, é necessário interpretar com precaução, querer saber o que se quer saber, mas isso me diz coisas; no Brasil, também, pelos resultados das últimas eleições municipais, porque, por exem-plo, Salvador tem uma prefeita de esquerda e de outro lado, no governo estadual, um cacique bem conhecido. Eis uma questão geográ� ca sobre a política que a meu ver, vale a pena conside-rar. Mas estou desejoso de ir além, nas minhas trocas. Pretendo trabalhar junto”. Emendei perguntando se isso incluía Fortale-za e Jacques Lévy logo respondeu: “É isso aí. Já fui convidado em janeiro. Infelizmente eu não pude ir. É duro para um es-trangeiro que não fala bem o português, chamava Salvador de “Salvateur”(risos).

Continuo e provoco o professor perguntando se ele pensa que a prática da geogra� a francesa em relação ao Brasil é seme-lhante à geogra� a colonial ou à geogra� a tropical. Jacque Lévy é enfático ao negar. “Não, penso que não é a mesma coisa, a ques-tão não é a mesma. Há, eu penso duas tradições na geogra� a fran-cesa que se encontram na geogra� a tropical, colonial, tradicio-nal, mas que não é encontrada na geogra� a do Brasil feita pelos franceses. Por tradição, não é uma geogra� a propriamente colo-nial que é aquela a qual os geógrafos estão mesmo a serviço do

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colono e do colonizador, do Estado francês, querendo conhecer os recursos do país, querendo saber onde instalar as infraestru-turas, querendo saber como bem controlar os movimentos da população, as ideias políticas, impedir a subversão anticolonia-lista. Toda essa problemática de colono e colonizador foi mais ou menos posta em prática pelos geógrafos em seus trabalhos, particularmente nas colônias francesas. Fez-se algo semelhante no Império Britânico, mas isso não ocorreu no Brasil.

Essa Geogra� a colonial tem uma outra tradição que foi, eu diria, a tradição do arcaísmo. Tinha maior interesse pelo campo que pela cidade, mais pela agricultura que pela indústria, mais pela indústria que por serviços, não sendo atraída pelas coisas mais modernas da vida social. Interessa-se também pelo que possibilita depois, pela sua aparência, um modelo explicativo naturalista e o meio social, e a sociedade � nalmente e o que in-teressava aos geógrafos que ensaiavam aplicar o conceito de Vi-dal de La Blache. Quer dizer deixar a permanência e não o que muda. O que muda, muda na superfície. As coisas essenciais são estáveis, elas não mudam e esse é o nosso trabalho.

Daí a tentação de conservar a natureza porque a natureza não muda, muda o nosso ritmo, logo, é uma relação com a na-tureza no modelo fundamentalmente naturalista/possibilista. É uma variante que é necessário introduzir no trabalho do geógra-fo. Portanto, há evidentemente esta postura, esta atitude. Ela se manifestou mais em alguns países do Terceiro Mundo, em paí-ses onde o desenvolvimento da produção é menos importante, onde a agricultura desempenha um papel mais importante com seus contrastes físicos da terra, do clima. Há essa 1ógica de que os geógrafos franceses estão particularmente interessados, nos países do Terceiro Mundo, na geogra� a tropical, como você diz no questionário, tropical, mas não colonial. Nesse sentido a dis-tinção entre essas duas expressões, contém a tradição. Pode-se

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entender essa tradição que apresenta a geogra� a tropical pelo fato de na França, os geógrafos estudarem as cidades, porque se interessaram pela relação entre as cidades e o campo, não o es-paço das metrópoles, por exemplo, que são pouco trabalhados. Felizmente os sociólogos estão interessados nisso. Se não, não se saberia muita coisa sobre o espaço interurbano e toda essa visão. Essa abordagem, essa ‘demarcação’ que esteve presente na geo-gra� a física e que de fato fez com que um país como o Brasil com seus espaços vazios, seus espaços-cidade, seus espaços pioneiros e a presença forte da agricultura, a presença fraca da indústria, atraia particularmente os geógrafos. Estes eram também inte-ressados no Canadá e, ao mesmo tempo o mundo se expandia rapidamente, se expandia também o conjunto de zonas tropicais que pertenciam ao império britânico porque lá havia os geógra-fos coloniais britânicos etc. O Brasil e a América Latina, em ge-ral, eram um espaço onde podiam ir, não era fechado”. Prossigo e pergunto a Jacques Lévy se existe algo novo em matéria de geogra� a na França. Se tem, que ele dissesse em que consistia, onde ela estava sendo aplicada e quais eram suas principais ca-racterísticas e quais são as pessoas-chave. Com muita atenção e calma, respondeu o professor: “É difícil reunir tudo em algumas frases, sobretudo porque os brasileiros conhecem muito bem a geogra� a francesa e nada lhes escapa sob esse aspecto. Mas a di-� culdade que há no momento, se deve a uma falta de ruptura, isto e, as evoluções mais espetaculares, as mais visíveis, foram feitas entre 15 e 20 anos atrás, nos anos 68, quando era mais fácil classi� car as correntes, as ideias. Agora é mais difícil porque o trabalho cienti� co não é um trabalho concreto de pesquisa, que inviabiliza dados privilegiados ou uma nebulosa de ideias ou escola de pensamento em conjuntos menos estruturados. Pen-so, por exemplo, que a escola neopositivista-quantitativa jamais foi muito concreta na França porque foi temperada por outros

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princípios teóricos e a visão que se tinha das coisas era de clã. Hoje, utiliza-se de mais em mais o estudo quantitativo, em par-ticular de gestão automática das variáveis, estudo qualitativo das relações, dos estudos que, seguramente, utilizam dados quan-titativos privados, mas que levam mais tempo na interpretação dos dados e na manipulação em si mesmo. É claro que há uma evolução, mas não e fácil dizer que isso terminou que isso co-meça, mas há nuances, coisas que evoluem muito lentamente e, em certo momento, se percebe que há evolução. Como exemplo, assinalo como evolução na geogra� a francesa o fato de há dois anos ter vingado a estruturação em seções no CNRS que mui-to mudou para a geogra� a, e, pela primeira vez em sua história. Agora a Geogra� a Humana está separada da Geogra� a Física. A Geogra� a Humana está associada ao Urbanismo na seção que se chama Geogra� a, Urbanismo e Aménagement, enquanto que na divisão equivalente na universidade se tem ainda um só sistema – Geogra� a Humana, Física, Humana e Econômica, os mesmos nomes dos anos 50, ou mesmo de anos anteriores. É interessante assinalar que essa mudança não foi proposta pelos geógrafos, foi a administração do CNRS que considerou como evidente que valia a pena reunir as pessoas que trabalhavam juntas e realizar um reagrupamento em base mais formal. Um geógrafo que trabalha sobre a cidade jamais terá o que discutir com um geomorfólogo mas terá sempre o que discutir com um urbanista, um sociólogo urbano. Logo, foi uma mudança guiada pelo bom senso a nível administrativo. O interessante é que isso caminhou bem, não provocou medos, lágrimas, o que quer di-zer, houve evolução e eu pude constatá-la posteriormente.

Há coisas que evoluem e eu penso que outrora quando se dizia que a geogra� a era uma ciência social, isso, há vinte anos atrás. Eu me lembro, eu dizia isso, comecei minhas intervenções no plano epistemológico com a visão de geogra� a como ciên-

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cia social, como essência da ciência do espaço e da sociedade e entendi a dimensão espacial da sociedade. Então, dizer isso era considerado uma provocação e num certo momento, eu pensei, e vou falar porque, de todo modo, estou de acordo e me aper-cebi agora, que há os irredutíveis. Tenho a impressão que esse combate não tem sentido atualmente, pois todo mundo tem mais ou menos a mesma posição. Há coisas que evoluem, direi, globalmente, e há tendência muito clara ao ‘fechamento’ da geo-gra� a. Ela se fechava em si mesma, agora ela está aberta em dire-ção às outras disciplinas, particularmente, às ciências sociais. Os geógrafos encontram, evidentemente, mais 1ógica, e achavam mais necessário ler trabalhos de ciências sociais e até mesmo de Filoso� a. Fazem citações de � lósofos nos seus trabalhos geográ-� cos. A literatura também lhes interessa cada vez mais e há uma espécie de ampliação do campo e são menos economicistas e se interessam por tudo o que se refere ao espaço, por toda a es-pacialidade e, especialmente, pela espacialidade da ocorrência dos fatos. Posso dar o exemplo do carvão e da capacidade dos navios. Recentemente foi feito um estudo sobre que tipos de na-vios servem mais para tal tipo de container e não há muita coisa a ver em termos de conceito. Posso dizer que isso não é geogra� a dos mares dos anos 70, mas a geogra� a dos anos 60 que se tradu-zia desse modo, não desapareceu completamente. Essa forma de ver as coisas, ainda resiste. Pode-se considerar como uma nítida regressão e colocar-se em questão a gradação mundial, a ‘divisão mais relacional do espaço mundial’ com o re� uxo de certas áreas. É necessário compreender que a 1ógica desse re� uxo é, sobretudo, econômica, e que in� ui na formação o que indica uma evolução. Eu acho que é difícil dizer onde se pratica a geogra� a nova. Po-de-se dizer que restam certos lugares para a geogra� a moderna. Entretanto, não há muita agregação externa se bem que há mais agregação interna, isto liga-se também a natureza das provas e é

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importante, pelas consequências para todo o sistema educativo. De outro lado, há ainda um ‘bunker’ conservador, muito liga-do a uma abordagem cartográ� ca tradicional, cartogra� a para a África e que não assimilou as transformações da cartogra� a, que não aceita a ideia da geogra� a como ciência social, no seu pequeno ‘mundo’. Mas esse número de ‘bunkers’, da geogra� a tradicional pode-se dizer um movimento que há por todo can-to nas universidades, nos laboratórios, em lugares inesperados mais do que alhures. Há também os que exercem um papel im-portante na geogra� a como a revista Hérodote, Espace et Societé, Espaces Temps. Há também alguns ‘feudos’ que se mantêm e ou-tros que aparecem como RECLUS, como também, as pessoas que trabalham com Paul Claval. Há evolução, coisas e ideias no-vas aparecem, mas há também os endereços que são ‘estáticos’, laboratórios de uma região onde é possível encontrar todos os aspectos da geogra� a e também do espaço, embora haja também coisas interessantes. E há lugares delimitados como onde eu le-ciono, na Sciences Politiques. Há geogra� a política e o diretor Alain Lancelot é um politólogo que ama a geogra� a e renega a tradição de Siegfried que era geógrafo mas, negava, entretanto, a geogra� a se refugiou na geopolítica, nos imperativos políticos. E então renova a tradição de Siegfried da relação espaço e política e a geogra� a suportou bem e ela se desenvolve e há um bom nú-mero de geógrafos que ensina e produz, e há lugares novos que surgem etc..

O que mudou globalmente hoje é que a geogra� a tem uma imagem melhor fora dela e clama pelo trabalho dos geógrafos e pelos próprios geógrafos, é uma ideia que não é mais estranha no mundo afora. Atravessam-se quilômetros e não é difícil en-contrar o centro político, mas quando se trata da geogra� a po-lítica é outra coisa. Uma coisa é a questão paquistanesa, outra é a questão da Sérvia de querer constituir estados independentes

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e outra a questão do pedaço da Provence, o poder é o poder. O espaço da geopolítica e do político não são os mesmos espaços. Daí a importância de fazer a distinção de base. Em seguida peço para Jacques Lévy falar sobre a revista ‘Espace Temps’, sua impor-tância em sua formação, sua vida, considerando tratar-se de um dos animadores dessa revista. O professor respondeu: “Quando cheguei a ser um dos animadores da ‘Espaces Temps’, ela já ti-nha o caráter que a distingue, o caráter coletivo. Não há chefe na ‘Espaces Temps’. Não há patrão. É, por isso, muito cansativa a democracia, não como sistema, mas como condução, embora seja uma vantagem preciosa. Eu creio que se ‘Espaces Temps’ não fosse dessa maneira, os resultados seriam muito diferentes, por-que cada um compõe um comitê, não importa quem. Não há co-optação e, há diversidade no comitê, os membros forçosamente têm pontos de vista diferentes e muitas vezes divergentes e as decisões, geralmente, são tomadas por consenso. Quando há di-vergência cada um leva muito tempo a se explicar. E isso gera uma espécie de formação contínua, selvagem, de todo mundo por todo mundo. Pessoalmente, grande parte do pouco que eu conheço das outras ciências sociais, fora da geogra% a, eu devo a ‘Espaces Temps’. É lá que se tem acesso a livros importantes. Quando surgem esses livros nas diversas disciplinas, tomamos conhecimento, embora na geogra% a, infelizmente, sejam lança-das publicações em menor número. Assim % ca mais fácil saber quais são as coisas importantes que são produzidas ao lado e como se faz, como se pratica, como se desenvolve. Se não hou-vesse regularmente pessoas que falem do que se passa na Socio-logia, na Economia, sobre o Sudeste Asiático, o que se reproduz etc., eu não saberia grande coisa. A palavra é livre e não há o jogo do poder e ninguém tem poder sobre os demais. Não costuma ser assim no universo da pesquisa nas instituições. Muitas ve-zes há, infelizmente, tentação autoritária e mesmo nos grandes

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projetos hátiranos ‘iluminados’ por ambições mesquinhas. Isso é o pior de tudo, isso põe tudo a perder. As pequenas coisas, os pe-quenos sinais de poder, isso, pessoalmente, não me interessa. Por isso, tenho relações distintas, � co distante da minha instituição de pesquisa e, muitas vezes, formam-se equipes onde as pessoas se escolhem entre si e esquecem de trabalhar com outros. Na ‘Espa-ces Temps’ é um direito. As pessoas se sustentam, verdadeiramen-te, por causa do sentido democrático. É fatigante porque é um tra-balho artesanal, que não tem sustentação automática sob o plano � nanceiro, e é objetivo de todo mundo ‘vestir a camisa. Aquele que está ali está, verdadeiramente, porque quer. Foi por isso, que dediquei minha tese a esse grupo de pessoas da ‘Espaces Temps’. Porque é o lugar de pessoas que me marcaram e que têm papel importante no meu itinerário intelectual. Nessas pessoas, Espaces Temps é meu espaço legitimo. E é, em todo caso, confortável.”.

Entusiasmado com as prontas respostas do entrevistado, in-dago sobre respostas anteriores. Retomo e falo que ele havia dito que conheceu a AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, você também me perguntou sobre a ação da AGB na formação da geogra� a brasileira no que diz respeito à formação de estudantes e permutas da geogra� a no Brasil. Traçando um paralelo, o que você tem a dizer sobre a Associação dos Geógrafos Franceses ou da Associação Francesa para o Desenvolvimento da Geogra� a?

De imediato, o professor argumenta: “As instituições da geogra� a francesa são muito complexas e não há, justamente, o equivalente à AGB, infelizmente. Os alunos ultrapassaram os mestres, sejam eles P. George, Monbeig. A AGF desempenhou outrora, um papel certamente mais dinâmico. Hoje é apenas uma instituição marginal. Mas é de estranhar que sejam as ins-tituições que tenham vocação para representar a geogra� a junto às autoridades, que têm vocação para representar na geogra� a a visão que se tem do mundo exterior. A UGI (União Geográ� ca

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Internacional) e as instituições francesas governamentais, por exemplo. E, de fato, há duas exceções a essa dicotomia, traduzida na divisão que existe e não deveria existir na geogra� a francesa. Essas duas associações são a AFDG e o Comitê Nacional de Ge-ogra� a. O Comitê Nacional era o único que existia outrora e era acusado por alguns geógrafos de não atender aos seus anseios, de não ser democrático, por ser necessário o titulo de doctorat d’Etat para ingressar nesse Comitê Nacional. E isso quer dizer que não se podia optar por entrar, era discricionário, era total-mente antidemocrático, e, muito logicamente, esse Comitê Na-cional era portador de uma ideologia muito conservadora, no-tadamente em matéria de poder e disciplina internos. Em 1968 o professor catedrático era tirânico em relação aos assistentes”. Pergunto se seria ainda certa in� uência colonialista na geogra-� a. O professor con� rma e continua: “Certamente. Era domina-ção como sobre os escravos negros. Logo, ocorria uma espécie de humilhação por parte dos jovens universitários e eu estava do outro lado. Entre 1980 1982 foi criada como organismo, a AFDG (Associação Francesa para o Desenvolvimento da Geo-gra� a), aberta a todos os geógrafos, compreendendo e assimi-lando, inclusive, o ensino secundário e os estudantes. Eu � z par-te do grupo fundador. Fui o primeiro vice-presidente da AFDG, no primeiro mandato, e nós nos inspiramos na AGB. Quando do meu retorno em 1982 do Brasil, particularmente impressionado com o que vi no encontro de Porto Alegre. No regresso eu me disse - isso é formidável e devemos ter algo assim entre nós. Essa organização resultou na AFDG com a ideia de uma associação aberta que se � xe em promover todas as novidades, todas as ino-vações, todos os títulos de associações francesas para o desen-volvimento da geogra� a. Portanto, isto quer dizer que o Comitê Nacional não contribuiu para o desenvolvimento da geogra� a. Agora há uma espécie de dualidade, mas não é, verdadeiramen-

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te, uma ruptura. É pací� ca a relação entre o Comitê Nacional e a AFDG. A AFDG faz manifestação anual denominada GEO-FORUM e pouco a pouco ocupa, por vontade dos geógrafos, o lugar das Jornadas Geográ� cas que são as manifestações ha-bituais do Comitê Nacional. Atualmente, o Comitê está paci� -cado. Dele participam também os jovens, que agora formam a AFDG. Eles têm posições de poder importante, são professores, não somente assistentes, mas mestres de conferências. Assim, a Universidade francesa evoluiu num sentido de poder menos pesado, alterações na hierarquia e na geogra� a também. De fato, as posições ideológicas foram, outrora, muito fortes. Hoje são mais fracas, e, sobretudo na geogra� a, as posições ideológicas e as posições teóricas se modi� caram amplamente. Decorre da ação da esquerda política e também da corrente progressista no plano teórico. Agora as coisas são mais simples, mais evidentes e as posições entre a direita e a esquerda aparecem com maior nitidez e há progressistas e conservadores teóricos em todos os campos políticos. “Não basta ser militante da ‘esquerda’ por exemplo, para se produzir uma visão inovadora da geogra� a”. Na condição de ex-presidente da AGB, digo ao professor que gostei muito de entender essa questão. Dizer que sua explicação foi esclarecedora na compreensão do papel da AGB. Digo da im-portância da entidade em minha formação e que identi� co na AFDG, uma real semelhança com a AGB. Noto que grande par-te dos brasileiros que vêm à França não toma conhecimento da associação. Jacques Lévy se pronuncia: “É provável que os bra-sileiros desconheçam. Quanto a registros das entidades, não há livros. Mas também o outro, o Comitê Nacional é desconheci-do, totalmente desconhecido fora, e eu me pergunto � nalmente como um grupo pequeno, um grupo reduzido como RECLUS pode ser mais conhecido fora do que a AFDG. No Comitê Na-cional, de visão conservadora de geogra� a, quais são, � nalmen-

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te, os atores principais, quando se fala no projeto de mudança dos programas do ensino secundário. Há sempre conservadores de ‘lobby’ bastante particular. Eles são bem organizados, melhor estruturados do que a Associação dos Professores do Ensino Se-cundário que tem outro ‘lobby’, extremamente poderoso, que em geral, se opõe a toda mudança. Essas pessoas são mais e� ca-zes do que a AFDG e o Comitê Nacional onde podem ser todos generalistas, mas não estão su� cientemente mobilizados. Outra atividade que movimenta os geógrafos anualmente e o Festival lnternacional de Geogra� a de Saint Dié des Vosges. A questão atual é organizar um colóquio tipo festival, capaz de reunir todos os geógrafos, isto é, uma ocasião de manifestação para um gran-de público, qualquer coisa que venha operar, que pareça exterior ao coração da disciplina e que se pareça com manifestação não o� cial de geógrafos destinada a universitários.

Qualquer coisa que evolua, de forma que os geógrafos se per-cebem como “tribo”, como corporação, como se de tempo em tempo tenham uma espécie de paixão corporativa. Entretan-to, no essencial, eles estão mais interessados em suas peque-nas ‘pranchas’ de trabalho, do que na identidade abstrata do geógrafo, e ela, a geogra� a, é mais feliz do que antes, é mais forte e eles não têm mais necessidade de ritual para se a� rmar como geógrafos.

Encerrei a entrevista contente com o resultado obtido. Agradeci bastante a disponibilidade e gentileza de Jacques Lévy.

No tocante aos objetivos da pesquisa que realizava, tive certeza, ao encerrar a entrevista, que a escolha de Paul Claval e Jacques Lévy atendeu as expectativas iniciais. Elas comprovam a expressão que os dois pro� ssionais assumem no processo de re-novação das relações da França com o Brasil. O teor das entre-vistas evidencia a importância que esses dois geógrafos assumem.

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A escolha não teve o caráter de excluir outros pro� ssio-nais geógrafos que desenvolvem atividades no Brasil. Ao con-trário. Citamos Hervé � éry que foi da Maison de Géographie de Montpellier do grupo RECLUS, e que dada a sua condição de pesquisador especializado em Brasil, torna-se � gura obriga-tória quando se discute a ação de geógrafos franceses no Brasil. Ademais, o grupo RECLUS foi conveniado com o IBGE, o que reforça o contato com � éry e sua equipe. Martine Droulers, co-ordenadora do Grupo Brasil do CREDAL do IHEAL, é outra pro� ssional muito experimentada em Brasil, já tendo ocupado posto acadêmico na Universidade Federal da Paraíba e parti-cipado de várias equipes de pesquisa com brasileiros em acor-dos bilaterais. Desenvolve, entre inúmeras pesquisas, uma com equipe do Rio de Janeiro em torno de Tecnopolos e organiza-ção espacial, outra sobre agronégócios. Discípula de Monbeig desenvolveu sua tese de doutorado sabre a expansão agrícola no Maranhão mantendo produção regular sobre o país. Seus livros com temática voltada para interpretação e análise do Brasil são bem conhecidos pelo público francês. Em Paris, o Grupo Brasil do CREDAL constitui-se em importante ponto de apoio para pesquisadores brasileiros. Destaca-se também o professor Jac-ques Malezyeux que tem trabalhado, sobretudo, com urbanistas ligados à Universidade de Brasília.

Poderia citar Pebayle entre aqueles mais conhecidos que possuem uma história no quadro de relações mantidas entre os dois países. Entretanto, insiste-se em ressaltar que no caso dos dois geógrafos escolhidos, os mesmos foram inseridos na pes-quisa com o teor integral de suas entrevistas. Fica evidente de imediato as situações e contextos diferentes assumidos por eles. Paul Claval, de inserção mais recente na geogra� a brasileira, na fase de maturidade de suas re� exões. Trata-se de um pro� ssio-nal nascido em 1931. Embora declare que seus vínculos afetivos

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e/ou de interesse com o Brasil tenham tido início no período em que cursava a graduação em geogra� a na universidade, suas orientações ocorrem a partir dos anos 1980. Seus livros são sempre citados por geógrafos brasileiros, tornando-o referência obrigatória em vários temas abordados pela geogra� a. Sua obra variada abrange temas ligados à epistemologia geográ� ca, histó-ria da geogra� a, geogra� a do poder, geogra� a urbana, ensino de geogra� a e geogra� a cultural. Independentemente de suas posi-ções políticas, seus trabalhos são citados no Brasil por geógrafos de todas as tendências ideológicas. Sua maior expressão no nos-so cenário geográ� co, no que tange às relações com a França dá--se nos últimos anos, garantindo-lhe posição de destaque entre os orientadores de teses e pesquisa de brasileiros.

No tocante a Jacques Lévy, o quadro de referencial his-tórico é bem diferente. Suas posições políticas e sua produção garantem-lhe uma situação confortável no meio geográ� co bra-sileiro. Acredita-se que surgirá um � uxo em torno de Jacques Lévy que demonstrou vontade de estreitar suas relações com os geógrafos brasileiros e assume postura de extremo respeito e ad-miração pela produção geográ� ca do país.

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6O BRASIL NA FRANÇA

“Eu diria que em relação ao interesse que o Brasil levantou nos anos 70, o interesse atual é menor. Parece-me que hoje o inte-resse pelo Brasil se inscreve no interesse mais geral pela América Latina. Eu acho que até hoje, apesar de tudo, a imagem do Bra-sil na França está in� uenciada pelo que o General de Gaulle teria dito, faz muito tempo, ‘de que o Brasil não é um país sério’. Então, tanto aqui como lá, o ‘impeachement’ foi justamente o fato que mudou um pouco essa visão, e que se pensou ‘Ah, em um desses países tem um lugar onde são capazes de fazer uma coisa politica-mente coerente’ ”

Essas palavras de Marion Aubrée, antropóloga do quadro de animadores do Centro de Pesquisa sobre o Brasil Contemporâneo, da Maison des Sciences de l’Homme da Ecole de Hautes Etudes en Sciences Socialles. Trata-se de pro� ssional com muitos anos de ex-periência de pesquisa no Brasil e sobre o Brasil. Assumiu também o cargo de coordenadora de um Convênio CAPES/COFECUB. Em entrevista concedida ao autor em janeiro de 1993, sintetiza a situação da presença brasileira na França, seus efeitos, além de dis-cutir a formação da imagem do Brasil naquele país.

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Jean Tricart, conceituado geógrafo de Strasbourg, conhe-cido por suas excelentes pesquisas sabre a Amazônia assim se expressou sobre o Brasil:

“O caso Collor, prontamente, corajosamente, honesta-mente conduzido, suscita alguma esperança: aplicação da Cons-tituição de 1988 é avançada em relação a legislação de outros países, mas ela não terá lugar senão no quadro mínimo de pros-peridade”.

Esses pontos de vista abrem a discussão em torno dos efei-tos das relações mantidas pelos dois países, enfatizando as opi-niões emitidas por pesquisadores e outros pro� ssionais que, em suas atividades, geraram imagens do Brasil.

A imagem do Brasil na França foi construída por um saber cientí� co que se estruturou a partir da vinda de viajantes e artis-tas. O contato com o mundo tropical, o encontro de uma cultura diversa e adversa, e em alguns casos reconhecido e estabelecido, provocava grande interesse na Europa e na França em particular.

A França � rmou-se no Brasil enquanto referência cultu-ral tendo sido hegemônica em certos períodos. A França com o charme de sua língua, a fama de sua culinária, o luxo e a � neza de seus salões, � zeram sucesso no Brasil. O país tornou-se um grande adepto de vários aspectos da cultura francesa, abrindo amplas possibilidades de mercado para um país que vivia um período de franca expansão industrial e comercial e que contava com concorrentes de porte.

Na Geogra� a, o Brasil iniciou o contato mais amiúde com a Geogra� a francesa por intermédio de Delgado de Carvalho que introduz o pensamento e a re� exão geográ� ca no país, com tratamento cientí� co.

O Prof. Hervé � éry em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo para o caderno Cultura da edição do dia 13 de setembro de 1986 assim respondeu a pergunta: Que

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imagem do Brasil se tem em Paris, particularmente, na Ecole Normale Superieure?

“Não posso responder pela Escola, que também não ado-tou o Brasil como uma disciplina obrigatória. É facultativa a pre-sença dos alunos nos seminários de cultura geral sobre o Brasil, que ali realizo há dois anos com o economista Alain Zantmann. No entanto, é forçoso reconhecer que o interesse por essa inicia-tiva aumenta cada vez mais. Não sei se um seminário sobre um outro país despertaria a mesma curiosidade. Na verdade, existe entre a França e o Brasil uma velha relação de entusiasmo, de atração mútua, que não galvaniza as multidões de um lado e do outro do Atlântico, mas que são su� cientes para assegurar o fun-cionamento de centros de intercâmbio como o inspirado pelo seminário do professor Ignacy Sachs na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais de Paris, ou pelo nosso seminário, na Eco-le Normale. Curiosamente é bom assinalar logo que a história da simpatia, da sedução entre os dois países repousa sobre um curto número de mal-entendidos, de imagens um pouco falsas, entretidos por ambos os lados.”

O teor da entrevista permite incluí-la para explicar o que seriam esses mal-entendidos no caso especí� co da geogra� a. Para � ns de ilustração, foi selecionado no Boletim INTERGEO do CNRS, com início de edição em 1966, algumas impressões e registros que abordam as relações entre os dois países.

O Boletim INTERGEO é organizado por ano e por uni-versidades, institutos e/ou centro de pesquisa. Nos casos de dú-vida foram procurados os centros e ou universidades em Paris e adjacências para poder identi� car, na medida do possível, o nome do estudante e con� rmar a nacionalidade. Outro caso que exigiu muita acuidade na pesquisa e registro das informações foi o de pesquisadores ou estudantes franceses que � zeram suas pesquisas no Brasil. O critério utilizado foi o mesmo, sendo que

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nesse caso, foi solicitada a nacionalidade dos pesquisadores e orientadores franceses mais ligados ao tema. Nas listagens apre-sentadas, foi feita a seleção pelo nome do estudante e pelo tema na tentativa de localizar os brasileiros, visto que não há nenhu-ma identi� cação quanto à origem dos estudantes.

O assunto principal do INTERGEO N° 1 (1966) e o Pro-jeto de Programa em Aplicação da Reforma de Ensino Superior elaborado por uma comissão nomeada e constituída de oito his-toriadores e oito geógrafos. Geógrafos - professores Derruau, Dresch, Juillard, Papy, Pinchemel (ausente), Roncayolo, Taille-fer e Veyret.

Nesse período pós-64 do século XX, o Brasil não entra em evidência, não foi constatado nenhum registro.

O volume (INTERGEO N° 2, 1966) é caracterizado pelo aspecto globalizante em termos de mundo tropical e sub-desenvolvimento.

Dos professores mais ligados ao Brasil, com seus interes-ses voltados para as questões da tropicalidade tem-se no ano letivo 65/66 em Bordeaux o Prof. Guy Lasserre, que leciona en-tre outras disciplinas Geogra� a Tropical e Agricultura Tropical. Em Caen, M. André Journaux ministra um curso de Geogra� a da América Tropical. Esses cursos na verdade foram oferecidos por várias universidades francesas nesse período (Dijon, Lyon, Nancy, Paris, Strasbourg, Rouen).

Nesse mesmo ano em Montpellier, Deffontaines orga-nizou um curso sobre a América Latina. Em Paris, Monbeig ensinava Geografia da População e Agricultura dos Países Tropicais.

Enquanto a maioria dos professores tinha sua atenção vol-tada para análises regionalizadas, em Paris, P. George discutia Questões de Urbanismo e Rochefort trabalhava com Métodos de Estudo da Armadura Urbana, População Urbana e Redes Ur-

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banas e um outro curso, sobre a Produção de Bens de Equipa-mentos no Mundo.

Em Toulouse, um brasileiro, o Prof. Milton Santos, mi-nistrou um curso sobre “Geogra� a da População - Países Sub-desenvolvidos”.

A repressão política imposta pelo golpe militar de 64, se por um lado provocou a perda de pensadores do porte de Mil-ton Santos, Josué de Castro, Celso Furtado e tantos outros, por outro propiciou ao mundo, via França, perceber a capacidade intelectual de brasileiros. Segundo o Prof. Ignacy Sachs, coor-denador do Centro de Pesquisa sobre o Brasil Contemporâneo, em entrevista concedida em janeiro de 1993 a� rma:

“Milton foi o que mais contribuiu para o conhecimento do Brasil aqui. Em parte por causa de sua experiência durante muitos anos na Universidade � ancesa.”

Marion Aubrée prossegue: “Milton Santos foi exilado aqui durante um bom tempo, e não foi somente através de sua ciên-cia, que ele permitiu aos franceses conhecer melhor a realidade do Brasil. Acho que também pela pessoa dele, pela subjetividade dele. Ele vivendo num outro país e uma troca, um enriquecimen-to mútuo, que não passa só pela ciência, mas que passa também pelos modismos de cada um, quer dizer, um enriquecimento também para conhecer melhor a cultura do Brasil... sabendo o que é a realidade da outra cultura no que ela tem de eternidade.”

A produção acadêmica francesa no campo da geogra� a não privilegiou a América Latina. Um dos poucos trabalhos dedica-dos ao continente latino-americano coube ao Prof. Dollfus, “Os Andes Centrais do Peru e seus piemontes”, trabalho defendido em 12 de fevereiro de 1966. Nesse mesmo ano, Hélène Riviere D’Arc, que posteriormente alcançara expressão no Brasil, prepa-rava seu DES (Diplome D’Etudes Superieur), intitulado “Estudo de um Subúrbio do México”, dirigido por Pierre Monbeig.

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Ainda no domínio da pesquisa geográ� ca, em 1966, os professores Dollfus e Rochefort trabalharam com o projeto so-bre “Cidades Médias e sua Ação Regional na América Latina”.

O tratamento de um tema exclusivo sobre o Brasil apare-ce na INTERGEO pela primeira vez em Poitiers, com a tese de 3° Ciclo de. F. Ko� , intitulada “Brasília e sua Região”, orientada pelo Prof. Robert, com defesa realizada em outubro de 1966.

Um registro interessante da INTERGEO é o do item 5, pu-blicado também no volume 2 do ano de 1966 sobre “missões e deslocamentos”, visitas de colegas franceses e estrangeiros. Nes-se ano letivo (set. 65/ set. 66), Guy Lasserre viajou no perío do de 26 de outubro a 15 de dezembro de 1965 para São Paulo a � m de ensinar no Instituto e Departamento de Geogra� a da USP.

Bordeaux contou nesse ano com a visita do Prof. Milton Santos, da Universidade da Bahia que se encontrava, naquele momento, instalado em Toulouse. Lyon faz referência sobre M. Santos. Assinala uma conferência sobre “As características origi-nais da agricultura no Nordeste Brasileiro” que deveria se reali-zar em 1966.

Em Reims, o Prof. Demangeot previa uma viagem ao Mato Grosso patrocinada pela FAO.

Outro registro de grande interesse para a comunidade geo-grá� ca, que possibilita mapear e rastrear os eventos, é a seção IV que contém um calendário de eventos, Co1óquios e Congressos nacionais e internacionais. Registra o Co1óquio Internacional do CNRS, no período de 11 a 14 de outubro, abordando a temá-tica “Os Problemas Agrários da América Latina”.

Também de expressivo interesse para a comunidade geo-grá� ca brasileira é o rastreamento de atividades que tenham o Brasil como centro de interesse. Em seus primeiros números, o Boletim INTERGEO registra uma presença tímida do Brasil. Veri� ca-se o tratamento em bloco de temas pertinentes à Améri-

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ca Latina. O que ocorre aparece assim, tratado de forma genera-lizada. Não se considera as singularidades e diferenças do Brasil no conjunto latino-americano. A ausência de registros de brasi-leiros na França, desenvolvendo atividades de pesquisa vincula-das às necessidades do país, prende-se, acredita-se, à conjuntura política que o país atravessava naquele momento e que perdura-ria por quase 25 anos. Assim os volumes 3 e 4 não contemplam nenhum assunto de interesse do universo de pesquisa.

Nos registros para o ano de 1967, o Boletim n° 6 acusou tema que merecia registro. A temática estava centrada no con-tinente latino-americano. Persistia, entretanto, mais uma vez, o título “Mundo Tropical”. Dentre os professores, Guy Lasserre, ensinando “Geogra# a da População e Geogra# a Alimentar nos Países Tropicais”. Em Bordeaux, um curso especí# co para Amé-rica Latina é o curso do Prof. De% ontaines, em Montpellier, in-titulado “América do Sul”.

A partir desse número sinaliza-se uma mudança de porte no tratamento de temas geográ# cos, conforme a programação a seguir: no IHEAL, o Prof. Rochefort enfoca “Estudo Comparativo de Casos d’Aménagement du Territoire” e” Os Grandes Problemas da Geogra# a Humana na América Latina”. No Instituto de Geogra# a da Rue Saint Jacques, o novo era o “Estudo das Cidades” em forma de curso a ser ministrado pelo Prof. Pierre George. Ainda sobre a responsabilidade de Michel Rochefort, naquele Instituto, o registro de estudo de conceitos novos nos cursos “’Métodos de Estudos de Redes Urbanas” e “As Funções Urbanas”. Na Escola Normal Superior Saint Cloud, o Prof. Pierre George ministrou um curso sobre “As Democracias Populares”, tema a que ele dedicou um número não desprezível de obras.

A Geogra# a brasileira chega à França nesse período de análise por intermédio da Profa. Lysia Maria Cavalcante Bernar-

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des, com o curso “Tipos de redes urbanas no Brasil”, ministrado no IHEAL. O título indica o nível de atualidade da geogra� a no Brasil naquele momento. A convidada brasileira trabalhava um tema cuja estrutura conceitual ainda se constituía em novidade na França. Ocorria um raro momento de sincronia entre os dois países, em termos de temas abordados.

Em Toulouse, nesse ano, o Prof. Milton Santos lecionava “População e Alimentação”.

Discussões em torno do tema l’aménagement’, desenvol-vido por Bernard Kayser, toma corpo nos anos 1960 como tam-bém o conceito de “Organização do Espaço”. Augustin Berque72 refere-se à utilização do conceito de espaço por Jean Labasse em seu livro A Organização do Espaço, de 1966.

“Este título testemunha o efeito da apropriação caracteri-zada por uma disciplina cientí� ca de um termo tido até ali como efetivamente ‘banal’.”

Das publicações, merece destaque o livro de Rochefort e Monbeig, intitulado A América do Sul Atlântica, editado pela Magellan.

0 avanço da estrutura conceitual da geogra� a urbana apa-rece nesse ano, no livro L’Armature Urbaine Française, editado pela PUF, de autoria de Rochefort e Hautreux.

Nessa época, o Prof. F. Koit, com sua tese Brasília e sua re-gião, permanece como o único pesquisador com tema exclusivo sobre o Brasil. A nova capital torna-se um centro de interesse da pesquisa geográ� ca.

No programa de intercâmbio, em missão de cooperação técnica, viaja ao Brasil o Prof. Rochefort, no período de julho a agosto de 1967.

72 BERQUE, A. Espace, milieu, paysage, environement. In:_____. Encyclopedie de gegraphie. Paris: Economica, 1992. p. 358.

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A França redescobre o Brasil! Sim, no INTERGEO N° 10 de 1968. O Brasil que fora tema de livros, pesquisas e � lmes du-rante muito tempo, estava meio esquecido.

Anteriormente, nos idos do ano 1900, Elisée Reclus escre-veu a obra Estados Unidos do Brasil, publicada no Rio de Janeiro pela Garnier. Em 1909, Pierre Denis transforma o Brasil em ob-jeto de seu livro.

Após a fundação da USP – Universidade de São Paulo, da Universidade do Distrito Federal e do IBGE, o país alcança um destaque considerável. A presença de geógrafos do porte de Pierre De& ontaines e Pierre Monbeig, entre outros professores que ocupariam mais tarde o papel de intelectuais dos mais afa-mados na França, repercutia na construção da imagem do Brasil no exterior. No campo da geogra� a, a partir da chegada dos dois pioneiros, o Brasil inicia uma fase de intensa relação com a Fran-ça no campo da Geogra� a. INTERGEO só aparece em 1966. Até esse ano, face à falta de registros sistematizados, a única for-ma possível de se analisar a presença dos pro� ssionais geógrafos da França, que estiveram no Brasil, foi via organização cronoló-gica de suas estadias e permanências, mapeamento de suas áreas de atuação e levantamento da produção cientí� ca.

INTERGEO, como um boletim de registro das atividades desenvolvidas pela área de geogra� a na França, oferece a partir de 1966, elementos minuciosos que permitem interpretações e aná-lises mais re� nadas conforme interesse do tema e do pesquisador.

A a� rmação de que a França redescobre o Brasil está apoiada na análise de dois fatores. O primeiro quanto à escassez de pesquisadores na década de 1950, o segundo pela ausência quase que completa do Brasil, enquanto tema ou título de cur-sos e pesquisas nas universidades francesas.

A análise dos números anteriores revela essa ausência. Ao contrário, a partir de 1968 (ano letivo set. 67/set. 68), o Brasil

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aparece como tema em quase todos os centros de formação de geografia na França. Cresce consideravelmente o número de brasileiros desenvolvendo suas pesquisas nesse país. Em Bordeaux, o Prof. Milton Santos leciona “Geografia e Econo-mia Urbana nos Países em via de Desenvolvimento: Brasil”, e, junto com o Prof. B. Kayser, agora no Institut d’Etude du Developpement Economique et Social - IEDES - ministra o curso de “Urbanisation et Organisation de I ‘Espace dans les pays en voie de développement”. Neste mesmo ano, ain-da no IEDES, entra em cena outro ilustre brasileiro. Trata-se do médico e professor Josué de Castro, que ministra o curso, intitulado “Quelques problèmes alimentaires dans le monde contemporain”.

Cresce o interesse pelo Brasil nesse período. O país � ca em evidência, entra em moda “c’est la nouvelle vague”. A me-lhor maneira de se perceber as diversas abordagens, de forma direta ou indireta, foi organizar o registro do INTERGEO por universidades, centros ou institutos. Em seguida, os centros de pesquisa selecionados com os respectivos responsáveis pelas disciplinas e seus títulos.

• Clermont Ferrand: o professor Derruau, trabalhou com o tema “Japão... Brasil, Ilhas Britânicas”.

• Nancy: o professor de Planhol leciona «Le Brésil: l’habitation rurale”.

• Nantes: a professora Mesnard desenvolve o curso “La France, le Brésil, la Venezuela” e “La France, le Benelux et le Brésil”.

• Orleans-Tours: o professor Fenelon, com a disciplina Geogra� a Agrária, enfoca com “L’Afrique, Le Brésil e Le Loire”.

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• Paris: no Instituto de Geografia da Universidade de Paris, o Prof. P. Monbeig ensina “Le Brésil”. O Prof. M. Rochefort prossegue com suas pesquisas sobre “Les fonctions Urbaines” e “Géographie des Activités Tertiaires”. O Prof. P. George trabalha com a disciplina “Estudos Urbanos”. No IEDES, o tema «subdesenvolvimento» aparece nos cursos do Prof. P. George, intitulado: “Caractères géogra-phiques des pays en voie de dévéloppement”. Já o Prof. Kayser assumia a disciplina “As situações geo-gráficas do subdesenvolvimento”. No IHEAL, con-firmando o interesse pelo Brasil, naquele instituto, o Prof. Demangeot leciona “Exercices de Photo--interpretation sur le Brésil”. O Prof. M. Rochefort desenvolve os cursos: “Geografia Humana e Econô-mica da América Latina” e “O Papel das Cidades no Desenvolvimento Regional do Brasil”.

• Poitiers: o Prof. J. Cabot, ensina “Brésil, l’Agriculture Tropicale II».

• Strasbourg: o Prof. Jean Gallais leciona o curso “Le Brésil Tropical”.

• Toulouse: o Prof. Demangeot ensina “Géographie Zonale – Le Brésil”.

Fica patente esta mudança de postura dos centros de formação ligados ao ensino e à pesquisa, quando várias universidades elegem o Brasil como centro de interesse manifestado pelos títulos de várias disciplinas. Torna-se evidente que há uma conjuntura política capaz de mostrar que todo esse empenho da França em colocar o Brasil como centro de atenção ocorre num momento em que se agravam as questões internas do país. Na França, o “Maio de 68” – a rebelião

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da população estudantil que lutava por uma universidade mais aberta, mais atuante. Aqui, os estudantes se organizam e se mobilizam contra a repressão do regime militar com a passeata dos «Cem Mil» exigindo o � m da ditadura que se instalara no país a partir de abril de 1964. O ano de 1968 é marcado pelo AI5 (Ato Institucional n° 5), período em que um contingente expressivo de brasileiros é banido do país ou condenado a viver na clandestinidade. A França, além de conceder asilo político para vários exilados, mostra-se sensível à questão da luta pela redemocratização do país, condenando o regime de exceção aqui instaurado. Contraditoriamente, pelo menos à primeira vista, é nesse período de forte repressão política que o Brasil conhece um de seus momentos mais férteis na produção cultural e intelectual. Bossa Nova, Tropicalismo, Cinema Novo, grandes festivais de música popular revelam um país em busca do novo. O pulsar da modernidade inspira um grande debate no país, integra os brasileiros impedidos do uso livre de suas capacidades comunicativas e incita-os a tentar novas formas de burlar as regras ditatoriais estabelecidas.

A voz do povo não se cala! A mudança não impede que os gritos ecoem noutras plagas. A França, dentre outros países solidários à causa democrática, foi, naquele momento, uma pos-sibilidade concreta de denúncia e de expressão.

Quanto ao Boletim INTERGEO, as pesquisas agora in-dicam um maior número de cursos e atividades. Em Poitiers, o Prof. Koit conclui sua tese de 3e. cicle, sob o título «Brasí-lia e sa région: Etude de Géographie Urbains”. Completando o quadro do período, registrou-se também o desenvolvimen-to de três pesquisas de maîtrise: a de Ana Maria Montenegro, Maitre de Conférences na Universidade de Paris XII, Paris Val-de-Marne, sobre “Variações Regionais dos Níveis de Educação na América Latina e Particularmente no Brasil”, a

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de um francês, Prof. Michel Foucher, sobre “Le Développe-ment du Reseau Routier au Bresil” e o de M. Ribeiro sobre “La ville et la Région de Bahia: Colonisation et Contacts de Civilisation”.

Quanto a publicações, o Prof. Gallais publica no Cahiers des Amériques Latines “L’Aménagement Agraire de la Serra de Baturité – Brésil”, 1968.

Das Missões e Viagens, o Prof. Lasserre, de Bordeaux, segue em missão de ensino ao Brasil. A Universidade de Lyon registra a visita do Prof. Milton Santos, da Universidade de Sal-vador. A Universidade de Paris informa a viagem do Prof. Pier-re George ao Brasil para ministrar cursos na USP nos meses de abril e maio de 1968. Toulouse registra uma missão ao Brasil no verão de 1968. O quadro a seguir contém o número de teses de franceses sobre o Brasil (segundo INTERGEO).

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Tabela 2 – Teses de Franceses sobre o Brasil segundo

os Orientadores

Rochefort 06

Monbeig 04

Robert, Celso Furtado, Tricart, Leloup, Gaignard, Barbier -

Revel-Mouroz, Héléne Lamicq, Di Meo 01

Sem indicação 03

Tabela 3 – Teses de Franceses sobre o Brasil segundo

as Universidades

Paris (até 1969) 08

Após 1969

Paris I 08

Paris III 05

E.H.E.S.S 02

Paris XII 01

E.P.H.E 01

Total PARIS 25

INTERIOR

Strasbourg 03

Toulouse 02

Rouen 02

Poitiers 01

Reims 01

Lyon 01

Aix-em-Marseille 01

Pau 01

Nantes 01

Bordeaux 01

Total 14

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Tabela 4 – Temas Estudados

GEOG� FIA URBANA, CIDADE E REGIÃO, TERCIÁRIO 14

GEG� FIA AGRÁRIA, EXPANSÃO FRONTEI� AGRÌCOLA

FRENTE PIONEI� 08

INDUSTRIALIZAÇÃO, “AMÊNAGEMENT” 07

T� NSPORTE 03

CER� DO, CAATINGA 02

OUTROS TEMAS 04

Tabela 5 – Abordagem / Localização

GeralBrasil 08

RegionalNORDESTE 04AMAZONAS 03CENTRO-OESTE 02SUL 02

EstadualMINAS GE� IS 02MA� NHÃO 02PA� ÍBA, BAHIA, SÃO PAULO, RGS, RONDÔNIA 01

ValesSÃO F� NCISCO 01

CidadesB� SÍLIA 02RECIFE 02SÃO PAULO 02SALVADOR 02RIO DE JANEIRO 01

Fonte: Bulletin INTERGEO, Paris, CNRS, 1966/1991, volumes 1 a 104.

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7A PRODUÇÃO DE TESES DE BRASILEIROS

NA FRANÇA A França, naturalmente, converter-se-ia no centro de

atração de brasileiros para realização de pesquisas e teses, pois contava com centros especializados e corpo docente quali� ca-do, portanto, tinha as condições necessárias que propiciaram e deram continuidade aos laços acadêmicos institucionalmente estabelecidos, via convênios e acordos de cooperação técnico--cientí� ca entre os dois países.

No quadro político desenhavam-se cenários de moder-nização acelerada do país viabilizáveis em programas bilaterais de cooperação. A chamada era muito forte e, nessa chamada, a França destacava-se. Contemplando este assunto, Velho (1992) assim se manifesta:

[...] pode-se dizer que a elite brasileira sempre esteve fascina-da pela ‘modernização’. Pelo menos no sentido de ter como modelo os países considerados mais avançados, sobretudo, (em ordem variável), Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Alemanha. Na política, alguns dos principais episódios (como a Proclamação da República em 1889 e a Revolução

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de 30) podem mesmo ser lidos como mudanças nos mode-los hegemônicos. Embora isso não excluísse coexistência, a França, por exemplo, mantendo mais ou menos sempre um lugar privilegiado como referência no âmbito da “cultura” e dos costumes.73

A situação de dependência permanece e a França desfru-ta tranquilamente de sua posição de modelo para o mundo em diversos setores. Nas relações estabelecidas no campo da forma-ção ou estágio em Geogra� a, evidencia-se a supremacia francesa em vários níveis, acima de tudo, nas mantidas entre professor/aluno, pesquisador/estagiário e assim por diante. Ela intensi� -ca-se no período pós-34, quando nosso quadro de carência era completo, e, o discurso do progresso toma corpo. Neste aspecto, comentários e a� rmações do Prof. Orlando Valverde induzem pensar que seria mais interessante o estreitamento de laços aca-dêmicos no momento em que o país tivesse condição de troca a partir da capacidade de re� exão e produção.

Apesar da atribuição pela França de bolsas de estudos e de estágios de pesquisa a estudantes geógrafos brasileiros, é ine-gável que os laços estreitos estabelecidos antes da 2a. Guerra Mundial, não foram mais sustentados até hoje. No entanto, isso seria mais fácil atualmente, pois o ensino superior de Ge-ogra� a já produziu resultados no Brasil.74

Essa situação de dependência, de incapacidade de re� e-xão sobre teoria geográ� ca e, especialmente sobre a realidade espacial do país, vai ser superada mais tarde. A formação de um quadro competente de geógrafos brasileiros cria as condições essenciais para se pensar na formação de uma escola geográ� -

73 VELHO, Otávio. “Impedindo ou criticando o processo de modernização? O caso do Brasil”. Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992, p.199.74 VALVERDE, Orlando. Op. cit. (T.A) p. 8.4.

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ca brasileira. A problematização acerca da formação de quadros capazes de estruturar e manter no Brasil, um ambiente acadêmi-co de forma satisfatória, envolve praticamente todas as áreas do conhecimento. Ao se questionar o país sob a perspectiva do uni-verso intelectual, dos centros de excelência na produção cientí-� ca e a capacidade de pensar e re� etir o mundo e nesse mundo, o Brasil, toma-se consciência das de� ciências mas apreende-se também, avanços signi� cativos que foram obtidos. A esse res-peito, Micelli a� rma:

Durante muito tempo os intelectuais brasileiros foram redu-zidos pela qualidade das idéias cienti� cas transmitidas pelos pesquisadores franceses reputados como Fernand Braudel, Claude Levi-Strauss, Roger Bastide, Maurice Bye ou François Perroux [...] Hoje, sociólogos, economistas ou historiadores brasileiros não têm mais nada a desejar de seus homólogos franceses.75

Os geógrafos brasileiros poderiam perfeitamente ter sido citados por Micelli. O país possui há algum tempo um corpo quali� cado de pro� ssionais com produção cientí� ca que ex-trapola em muitos casos os limites das fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo, os programas de cooperação e intercâmbio com seus desenhos assimétricos alcançam resistência e provocam, ocasionalmente, políticas e medidas nacionalistas de forte teor conservador.

Espera-se um programa de cooperação que supere as práticas de supremacia e dominação de uma das partes e que evite a compe-tição acirrada entre os parceiros. Nesta direção aponta Berque:

Uma cooperação não consiste apenas em transferência, nem de objetos, nem de práticas, nem mesmo de métodos, mas de procedimentos exploratórios postulando fazer um diálogo de

75 MICELLI, Sergio. Op. cit. (T.A) p. 265

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civilizações. Deste diálogo não quer dizer que todos os ele-mentos estejam presentes no nosso próprio sistema. A médio e, mais ainda, a longo prazo e, a partir daí, a criatividade do pensamento e da pesquisa francesa e mesmo da sociedade francesa em todos os domínios, fornecerá a matéria que susci-tará a demanda de uma cooperação.76

Neste aspecto, há fortes indícios de que se caminha nesta direção. Os professores e pesquisadores entrevistados, em sua grande maioria, consideram a geogra� a brasileira amadureci-da, logo gozando de situação mais confortável nas relações de intercâmbio.

O pensar criticamente pressupõe buscar alternativas im-prescindíveis ao aprimoramento da qualidade da geogra� a bra-sileira. O emergir de um novo pro� ssional, criativo e comprome-tido com a originalidade e criticidade da geogra� a, só é possível com programas de graduação e pós-graduação de qualidade. No Brasil, tem sido crescente a expansão de centros de pós-gradu-ação em geogra� a. A criação da ANPEGE - Associação Nacio-nal de Pós-Graduação e Pesquisa em Geogra� a, viabiliza com certeza pesquisas que sistematizam e divulgam informações integradas dos programas de pós-graduação. As agências de fo-mento à pesquisa e formação de pessoal de nível superior tem incentivado as bolsas da modalidade “sanduíche”, incrementan-do a realização do curso de pós-graduação no país, oferecendo, entretanto, condições para que o pós-graduando realize parte de seu curso, no exterior. Essa modalidade tende a � rmar-se, sem, no entanto, impedir que sejam aprovadas bolsas de estudo para pós-graduação integral no exterior.

76 BERQUE, Jacques. “recherche et cooperation avec Ie Tiers Monde”. Rapport au Minisb’e de la Recherche et de I’Industrie. Paris: La Documentation Française, 1982. p. 22.

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Essa discussão vem à tona neste momento em que se dis-cute a produção geográ� ca de brasileiros na França em virtude de se avaliar o processo histórico que gerou o � uxo de brasileiros para aquele país. Esse � uxo � rmou-se diante de um quadro de carência, e foi aumentado por pro� ssionais de outras áreas, prin-cipalmente arquitetos e urbanistas que na França eram atraídos para fazer suas teses em geogra� a. O prestígio dessa ciência na França elegeu � guras de proa como Monbeig, Tricart, Roche-fort etc, que se destacaram inclusive, pelo elevado número de teses orientadas, de autoria de pro� ssionais de outras áreas do conhecimento.

O Prof. Milton Santos em entrevista realizada em Paris em janeiro/93 presta excelentes informações em rico depoimento, como nesse trecho referindo-se às várias fases das relações Fran-ça/Brasil:

“Nessa fase você tem a in� uência múltipla de geógrafos de várias partes do mundo e ainda dos franceses, porque a sedu-ção da cultura francesa, a posse da língua francesa pelas gera-ções de então, o interesse do governo francês em ‘empurrar’ a cultura francesa; tudo isso, e a força da geogra� a francesa - so-bretudo isso – porque os franceses, aos estrangeiros, nunca se apresentavam divididos, daí aparecer como escola, apesar das divergências que são normais. Nesse caso, teria que ver quem veio, quantos bolsistas tinham aqui na França, que era bem mais do que no caso da infância, e muito menos do que no caso da maturidade. Tem uma ampliação quantitativa da presença bra-sileira na França e da presença francesa no Brasil. Você tem uma agressividade das Universidades das províncias, a começar por Strasbourg, onde estava Tricart, onde passaram Rochefort, Monbeig, Dollfus, onde estava Juillard, onde estava Sau� er, en-tão um forte contingente de especialistas do mundo tropical. Toulouse se levanta, Bordeaux busca manter sua velha vocação

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colonial e tropicalista e depois se associam a essas universidades Clermont-Ferrand. Por exemplo, você tem uma abertura do le-que das in� uências digamos, pessoais, e muito mais geógrafos vêm para cá (França) e, no Brasil, você tem também uma expan-são de vida universitária e, mais tarde, a institucionalização da formação (antes de institucionalizar) de carreira, quer dizer que você tem formas que se institucionalizam de entrar na discipli-na, na universidade, muito antes que Caiena fosse instituciona-lizada. Então isso vai nos dar uma dispersão que vai se re� etir na produção e, aí, somente o que vinha no caso da juventude, vai ter manifestação unitária, primeiro através da geogra� a quanti-tativa, que é uma forma unitária, e depois através das geogra� as marxistas que também aparecem como uma forma unitária pois ambas são totalizantes, com tendência a serem totalitárias, exi-gindo, às vezes, debate, às vezes submissão, mas que vão ter um papel muito grande na recriação da geogra� a brasileira para que possa se questionar como disciplina.

É possível que essas perguntas que a geogra� a brasileira se faz estejam ligadas à a� rmação das outras disciplinas sociais e a hierarquização social de disciplinas e o planejamento, como co-meçou a ser feito, com o crescimento econômico, deve ter tido um papel também nisso porque quando as disciplinas passam a entrar no mercado então se faz uma troca porque elas têm que se rever para terem um bom preço, para serem mais ou menos apre-ciadas. Eu acho que é isso que leva a esse debate teórico dentro da Geogra� a.

O que tem isso a ver com a Geogra� a francesa? Aí você tem uma busca daqueles que tinham o que oferecer no plano do conceito. Então, os conceitos passam a ser centrais e os produ-tores de conceitos passam a ser solicitados. E aí você tem pro-longamentos. É nesse sentido que um Rochefort, um Kayser... todos na esteira do mestre George, são um traço de união entre

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os dois momentos. Eles aparecem como produtores de concei-tos. Uma região estudada em si não é o estudo de uma região, mas é a região. O crescimento dos geógrafos se con� rma com Peroux, com Boudeville que fazem o vinculo entre a geogra� a e economia só que uma outra linha vai também aparecer a partir dos anos 60, sobretudo anos 70, onde todos os grandes países passam a se preocupar com a assistência técnica e o comércio in-ternacional, passam a ter um papel muito grande na cooperação intelectual e ai é também o momento da expansão dos brasilia-nistas em todos os países, quer dizer que você tem... ao mesmo tempo que o Brasil não podia ser estudado por brasileiros por-que o regime não gostava de cientistas sociais brasileiros, pre-feria mandá-los para o estrangeiro; havia uma certa permissão aos cientistas sociais estrangeiros para virem para o Brasil. Então esse momento, que é o imediatamente anterior a este estabele-cimento de maturidade, é também o de uma dupla demanda de geógrafos franceses. Uma vem dos geógrafos que é a demanda dos que pensam os conceitos e a outra vem da própria França, que é o envio dos brasilianistas e alguns vão ter in� uência deter-minante na produção da maturidade. A maturidade é a fase em que a geogra� a brasileira produz os seus próprios compêndios teóricos, metodológicos que discutem a geogra� a, que se discu-te ela própria, que passa a ler em português que é um fenômeno muito importante, porque a geogra� a encontra o mercado edi-torial e se preocupa com ideias e que vai dar como resultado nas relações internacionais uma série de fenômenos que ainda estão por ser analisados”.

O brilhantismo com que o Prof. Milton Santos emite suas opiniões e pontos de vista permite uma multiplicidade de ele-mentos facilitadores na condução analítica da produção brasilei-ra na França. A forma como ele cruza os componentes estrutu-radores da formação geográ� ca brasileira, coloca em evidência

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pessoas-chave nesse processo, recupera o processo histórico e insere toda a dinâmica da geogra� a, perpassando a in� uência de diferentes abordagens no contexto político conturbado do Brasil. Associa o processo perverso que, ao excluir vários bra-sileiros, privilegia os estrangeiros nas leituras analíticas sobre o país.

Não foi possível localizar fonte sistemática que permitisse quanti� car o total e local de teses produzidas antes de 1966, ano em que surge o Boletim INTERGEO do CNRS, razão pela qual o histórico desse período foi estruturado sobre informações co-lhidas em entrevistas ou outras encontradas em obras esparsas. A dinâmica parcial do processo de quali� cação da geogra� a bra-sileira e a busca de referências de um momento histórico privi-legiado foram fornecidas pelo Prof. Pedro Pinchas Geiger, em entrevista realizada no Rio de Janeiro em outubro de 1993. In-dagado sobre o signi� cado da geogra� a francesa no seu percurso pro� ssional, assim se expressou:

“Fiz o vestibular em 39 e o curso começaria no ano de 1940, isto é o ano da II Grande Guerra. A Faculdade de Filoso� a tinha sido criada alguns anos antes, quer dizer, eu sou das pri-meiras turmas de um curso formal universitário, chamado geo-gra� a quando a geogra� a está aliada à história. Ao ser criada, na verdade até a II Guerra Mundial, prevalece no Brasil a in� uência cultural francesa. O francês era muito mais ensinado na escola secundária do que o inglês, pouca gente falava o inglês. A segun-da língua depois do português era o francês. Nós temos tradi-ções francesas. Então, quando a Faculdade se criou eles utiliza-ram professores franceses em diversas disciplinas. Não foi só na geogra� a. Na história o Antoine Bon foi meu professor de His-tória Antiga, o Tapier, professor de História Moderna, o Jacques Lambert dos “Dois Brasis” era professor do curso de Sociologia, houve outro da Matemática, de Filoso� a, quer dizer a in� uência

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francesa nessa época prevalece na Faculdade Nacional de Filo-so� a da Universidade do Brasil. Naquela época, tinha o Rio de Janeiro como capital do Brasil. A passagem de De� ontaines e de Martonne pelo Rio foi fundamental pois eles exercem in� uência na fundação do IBGE.

A criação do Conselho Nacional de Geogra� a nasce de uma solicitação para que o Brasil dê sua adesão à UGI. É claro que depois vem o signi� cado verdadeiro. A criação do IBGE é outra coisa, mas esse episódio histórico tem que ser registrado. Acontece que a França cai logo em 40 e então, os professores franceses que tinham vindo por prazo curto, como foi o caso dos que vieram para o Rio de Janeiro, não sei, mas talvez a mesma coisa em relação ao Prof. Monbeig, � cam impedidos de voltar à França; então eles � cam no Brasil e, no caso do Rio de Janei-ro, o Prof. Ruellan, tem um papel preponderante e na verdade é preciso compreender o seguinte: as Faculdades de Filoso� a na-quele tempo não eram centros de pesquisa. A Faculdade Nacio-nal de Filoso� a foi criada na Reforma Capanema para preparar os professores secundários, para dar um outro nível ao ensino secundário. Só mais recentemente na Geogra� a, a USP talvez antes, mas no Rio de Janeiro só mais recentemente, a Universi-dade passa a ser um local de produção do saber, no sentido de se reproduzir na Universidade, o saber, ter doutores, mestres; então essa produção de saber geográ� co durante certo tempo, concentrado no IBGE, o Prof. Ruellan, entendendo isso, co-meça a colocar alunos seus, pelos quais tem preferência, den-tro do IBGE. O segundo grupo a ingressar é o do Ruellan, ai já são pessoas mais jovens e que foram para essa carreira sem ter nenhuma pro� ssão. Muitos dos da primeira turma foram para os Estados Unidos, porque depois da Guerra há a entrada americana, mas, aqueles que na Faculdade de Filoso� a foram in� uenciados pelos professores franceses, no caso do Rio de

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Janeiro, o Ruellan, foram ser bolsistas na França. Como eu dis-se, o Ruellan era um homem de Geomorfologia. Eu mesmo fui geomorfólogo no início de minha carreira e é a linha de De Martonne que prevalecia.

Bem, ocorre que eu já tinha certo envolvimento, como es-tudante, nos movimentos políticos e, na própria França, estando eu como estudante lá, eu tive acesso à Literatura, a Economia Política e ao Marxismo. Eu conheci o Lefebvre. Meu primeiro contato com o Lefebvre foi em 1947. Ele não como cientista so-cial, não, mas o homem da lógica formal, da dialética. E, pela efervescência da França, a efervescência da esquerda é muito grande, não é verdade? Eu já tinha uma predisposição em ter-mos de visão social, e já não aceitava facilmente a visão vidalina, e já tinha uma reação, e isso foi reforçado com a minha estadia na França. Bom, quando eu volto, e eu já contei para você, nessa primeira leva de bolsistas vai o Hélvio para Strasbourg, o Miguel para Paris, em 1946. O Tricart estuda, parece que ele era profes-sor em Strasbourg, mas ainda tinha vínculos em Paris para fazer o doutorado. Então ele teve contato tanto com o Hélvio como com o Miguel de quem ele se torna colega e então surge uma relação pessoal que vai explicar depois o que aconteceu no ano de 1956.77 E a Elza vai para Montpellier, eu que fazia Geomorfo-logia, sou enviado para Grenoble... e Myriam, para Lyon”78

77 Nota do Autor Os nomes completos desses estudantes que foram à França no pós-Guerra são: Hélvio Xavier Lenz César, Miguel Alves de Lima, Elza Coelho de Souza Keller e Myriam Mesquita, o nome completo do Prof. Sternbergé Hilgard O’Reilly Sternberg.78 Nota do Autor: Recorri ao Professor Milton Santos que explicou o que viria ser esse famoso episódio de 1956, ano da UGI, envolvendo o Prof. Tricart, senão ve-jamos: “O ano de 1956 foi muito importante para a Geogra! a internacional, pois marca o balanço do movimento da geogra! a mundial, da Europa para os Estados Unidos, foi o momento em que a in" uência americana dentro da UGI, aumenta e um dos artí! ces desse movimento foi exatamente o Prof. Sternberg que, logo de-pois, seria nomeado professor nos Estados Unidos. Sternberg organiza um Con-

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O depoimento do Prof. Geiger permite a reconstituição parcial do período 1940/1950, e oferece condições para com-preender e analisar a dinâmica do processo de formação pro� s-sional em Geogra� a no Brasil.

As entrevistas constituíram fonte fundamental para o res-gate desse período. Não havia material sistematizado que possi-bilitasse a localização, quanti� cação e outras informações refe-rentes a ida de brasileiros à França até a data de 1966, quando e implantado o serviço do INTERGEO, pelo CNRS.

O material levantado ofereceu várias possibilidades de cruzamento e de análise. Do período compreendido entre 1966 ate 1991. O inventário do material computou o total de 183 teses inscritas em programas de pós-graduação na França. O número total de teses não corresponde exatamente aos valores da tabela. Há casos de teses que, durante a fase de elaboração, tiveram seu nome alterado. Entretanto, não foi possive1 checar caso a caso. Em certas situações não havia registro do nome do estudante, noutras, faltava o nome do orientador, o ano de defesa e assim

gresso de Geografia no Rio de Janeiro, com alguns colegas brasileiros, com o apoio do CNG (Conselho Nacional de Geografia) e paralelamente, ele organi-zou um curso de Altos Estudos Geográficos que foi um grande acontecimento. Na organização desse curso, ele foi uma espécie de bruxa ideológica, ele vetou de maneira nítida a participação de professores de pensamento progressista e aqui entre nós, fizeram exceção ao Prof. Monbeig, evidentemente. Eu nem sei se Monbeig estava dando esse curso. Creio que não. Entre os convidados ti-nham diversas pessoas importantes, mas o Prof. Tricart, por exemplo, não foi convidado dele. Foi convidado pela mão do Miguel Alves de Lima, que não era progressista, e convida o Prof. Tricart para dar um curso sozinho, lá no antigo Lafayette. Dessa preocupação ideológica do Prof. Sternberg, eu tenho outro exemplo, porque tendo convidado o Prof. Tricart para vir à Bahia, fui informado por meus amigos do IBGE que o Prof. Sternberg havia obtido uma circular das autoridades brasileiras dando ordem para que o Prof. Tricart não fosse acolhido em lugar nenhum. Essa circular não foi obedecida pelos funcionários federais da Bahia, com quem tínhamos relações de amizade muito estreitas”(Entrevista concedida em janeiro de 1993 em Paris).

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por diante. Mesmo assim, a fonte uti1izada com a cobertura a partir de 1966, permitiu uma aproximação da realidade. Com base nos dados foi elaborado um quadro da situação dos estu-dantes brasileiros na França.

Objetivando transmitir uma ideia do teor do Boletim, al-guns anos foram anotados. A proposta era fazer uma análise para demonstrar a qualidade e quantidade de informações disponí-veis. Os nomes das pessoas, dos orientadores e títulos das pes-quisas foram registrados da mesma forma como se encontravam no INTERGEO.

No tocante a pesquisadores brasileiros em programas de pós-graduação, os dados referentes aos anos de 1967, registram as pesquisas desenvolvidas por Catarina Vergolino Dias, sobre “As regiões agrícolas da Amazônia” e de M. da Silva, “Estudo Só-cio-econômico de um Bairro de Salvador”, ambas sob a direção do prof. Galllais, de Strasbourg.

Em Toulouse, três brasileiros desenvolviam pesquisas em torno de suas teses de doutorado de 3° ciclo. A Borracha no Esta-do da Bahia, de Lina de Brito A Rede Urbana no Estado da Bahia de P. Mo! i e a tese A Organização Regional do Sul da Bahia de S. Silva.

A presença do Prof. Milton Santos em Toulouse, na condi-ção de professor e sua passagem por Strasbourg, onde realizou sua tese de doutorado, fornece pistas para compreender a pre-sença de quatro pesquisadores da Bahia, residindo e estudando na França, nesse período após o golpe de estado, no Brasil.

Em Paris, a Prof ª. Maria Luisa Marcílio elabora sua tese La ville de S. Paulo: peuplement et population de 1750 a 1850 (d’apres les registres paroisiaux et les recensements anciens). Strasbourg permanece na condição de centro com maior nú-mero de brasileiros, neste momento. Ali desenvolvem suas pesquisas:

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• Maria A. da Silva, “Les transformations du Reconcavo da Bahia sous l’in� uence du pétrole-Brésil” – Direção: Prof. Gallais;

• Maria Novaes Pinto, “La culture du sisal dans l’est de Bahia-Brésil” – Direçao: Prof. Juillard;

• C. Peixoto, “Géomorphologie des environs de Salva-dor-Bahia - Brésil”. Direção: Prof. Tricart;

• T. Prost Ribeiro da Costa, “Aspects geémorpholo-giques du bassin du Mamanguape-Paraiba- Brésil”. Di-reção: Prof. Tricart;

• Catarina Vergolino Dias, “L’Agriculture Amazonien-ne” Direção: Prof. Gallais.

Nesse período são concluídas duas teses de brasileiros com temática sobre a Bahia: a de D. Lina Brito com o título Le caoutchouc dans l’Etat de Bahia, em Toulouse e a de Sílvio Ban-deira de Melo sobre Le Découpage Régional à Bahia.

Nessa fase inicial há uma preferência por temas nordes-tinos com a supremacia absoluta da Bahia quanto aos assuntos pesquisados.

O levantamento geral indica que das 183 teses registra-das, 80 foram defendidas nesse período. Acredita-se que esse número possa ser superior. Quanto à frequência temporal, foi detectada uma ausência de concentração. Ela se insinua no pe-ríodo 84/89, acusando o maior volume de teses inscritas no período trabalhado. A distribuição no período considerado é a seguinte:

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Paris desponta como o centro preferencial dos brasileiros com um total de 103 teses no período (1966/1991). Até 1969 o registro acusa genericamente Paris, visto que até essa data havia a uni� cação da Universidade. A tabela é a seguinte:

Tabela 2 – Universidade de ParisAté 1969- 09 estudantes

Após 1969- 94 estudantes

DISTRIBUIÇÃO SEGUNDO AS UNIVERSIDADES

Paris IParis XII 38Paris III 21Paris IV 16Paris VII 07Paris X 06Paris 02Vincennes 02E.P.H.E 01

Paris VIII 01

As três primeiras Universidades contam com 75 alunos matriculados, evidenciando o caráter de centros que possuem núcleos especializados. A Universidade de Paris I reúne um número signi� cativo de professores especialistas, dentre eles os que contam com grande número de orientandos como é o caso do Prof. Michel Rochefort. Cabe destaque especial para o Prof. Pierre Monbeig, falecido em 1987, que não aparece na lista entre os orientadores. Merece destaque, pois foi um dos mentores e patrocinadores de programas bilaterais envolvendo os dois países. A Universidade de Paris III contava também com a presença desses dois professores no seu quadro de professores orientadores de estudantes brasileiros.

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Tabela 3 – InteriorToulouse 17Strasbourg 12

Bordeaux 10

Montepellier 05

Rouen 05

Grenoble 03

Poitiers 02

Aix-em-Provence 01

Brest 01Caen 01

Lyon, Nancy 01

Fonte: Pesquisa Direta, 1992

As tabelas revelam uma distribuição que se coaduna com a opinião geral que se tem quanto ao destino de brasileiros que se dirigem à França para realizar seus estudos. Em alguns des-tes centros trabalham geógrafos que possuem e alimentam ní-veis de a� nidade, tornando-os atraentes aos alunos forasteiros. Esses pro� ssionais � caram tão conhecidos no Brasil de forma que muitas vezes confunde-se o centro com o pro� ssional, uma espécie de concretude ofertada que personi� ca o lugar. Entre os renomados professores reconhecidos no Brasil, esse fato ocorre com o Prof. Jean Tricart, que é a própria expressão de Strasbourg para a maioria dos brasileiros. O mesmo acon-tece com o Prof. Lasserre em relação a Bordeaux e, por con-seguinte, com Kayser e a cidade de Toulouse. Essa identidade permitiu a construção de vínculos com esses centros, garantin-do certa continuidade.

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Tabela 4 – Teses de Brasileiros na França segundo o

Professor Orientador

Nome do Professor N° de teses orientadas

Michel Rochefort 27

Heléne Lamicq 09

Jean Gallais 07

Paul Claval 06

Claude Collin Delavaud 06

Bernard Kayser 05

Guy Lasserre 04

Anne Collin Delavaud 04

Jean Tricart 03

Jacques Malesieux 03

C. Bataillon 03

Jean-Claude Ziv 03

Jacques Hubschman 03

Yves Babonaux 03

Yves Le Coz 03

Juillard 03

Noin, Bonnefont, Prats, Bonnamour,

Héléne Riviére d’ Arc, Chonchol, Durand

Dastes, Dupuy, Sachs, Beaujeu Garnier, Coing

Lacroix 02

Galabert, Nonn, P. Michel, Raymond,

F. Mauro, Koechlin, Revel Moroz, Prud’ Homme

Sternberg, Burgel, Rougerie, Fournie, Chaline,

Noin, Cabannes, Saussol, Pébayle, Lacoste,

Baurricaud, Huetz Le Lemps, Joly,

George, Pinchemel, Leloup, Derruau 01

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A lista contempla praticamente todos os profissionais que vieram ao país para fazer suas pesquisas e destaca a im-portância de Michel Rochefort que declarou em sua entre-vista ter viajado 26 vezes ao Brasil e orientado 27 teses. Essa procura confirma a afinidade, competência e reconhecimen-to de seu trabalho.

Tabela 5 – Teses de Brasileiros na França Segundo

Abordagem/Localização

Geral

B! SIL 31

PAÍSES DES.SUBDES. EM VIAS DE. 04

REGIÕES/G! NDES ESPAÇOS

AMAZÔNIA 03

NORDESTE 03

SUL 02

SUDESTE 01

RECÔNCAVO BAIANO 03

VALE DO SÃO F! NCISCO 01

VALE DO PARNAÍBA 01

VALE DO PA! ÍBA 01

VALE DO MAMANGUAPE 01

PROJETO CA! JÁS 01

RODOVIA BELÉM-PARÁ 01

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ESTADOS

15

BAHIA 05

MINAS GE� IS 04

PA� ÍBA 03

CEARÁ 03

SÃO PAULO 03

ACRE 02

RIO DE JANEIRO 02

SANTA CATARINA 02

PIAUÍ 02

GOIÁS 02

RIO G� NDE DO SUL 02

ESPÍRITO SANTO 01

CIDADES

SÃO PAULO 09

SALVADOR 07

BELO HORIZONTE 06

B� SÍLIA 05

RECIFE 05

RIO DE JANEIRO 04

GOIÂNIA 03

FORTALEZA 02

PORTO ALEGRE 02

VITÓRIA 01

BELÉM 01

CURITIBA 01

TERESINA 01

MACEIÓ 01

CAMPINAS 01

OLINDA 01

continuação

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TEMÁTICAS ESTUDADAS

GEOG� FIA URBNA, T� NSPORTES URBANOS

CIDADE E REGIÃO, INDUSTRIAL/ URBANIZAÇÃO

POLÍTICA URBANA, MOVIM. SOCIAS, URBANISMO

TROPICAL, HAB. POPULAR, INDÚSTRIA 61

GEO. AGRÁRIA, EXPANSÃO FRONTEI� AGRIC. 30

PERÍMETRO IRRIGADO, AÇUDAGEM

GEOG� FIA REGIONAL, ORGAN. DO ESPAÇO,

“AMENGEMENT”27

GEOG� IFA DA POPULAÇÃO/ DEMOG� FIA 11

ESPAÇO TÉCNICO/CIENTÍFICO 05

REGIÃO/ECOLOGIA 04

T� NSPORTE 03

OUTROS 11

As tabelas acima contêm números que expressam a dinâ-mica espacial brasileira por meio de temas tratados nas teses. Os títulos ajustam-se à dominância conceitual da época de realiza-ção das teses. O Brasil, enquanto totalidade, foi objeto de pes-quisa em 31 teses com temas mais generalizantes. O tratamento regional, inicialmente, tem predominância do Nordeste e, em se-guida, aparece o da Amazônia. No tocante à abordagem focada no recorte estadual, a Bahia ocupa a primeira posição, tendo sido tratada nas pesquisas que resultaram no total de 15 teses. Na se-quência, surge Minas Gerais com 5 teses, a Paraíba com 4, entre os Estados mais estudados. Quanto à abordagem urbana, há o privilégio de São Paulo, que vem à frente, enquanto tema de 9 te-ses, seguida de Salvador, com 7 e Belo Horizonte, com o total de 6. A abordagem urbana cobre grande parte de cidades brasileiras.

continuação

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O comportamento geral da situação da pós-graduação em geogra� a na França conduz a um quadro ascendente com um aumento do número de estudantes e de teses em processo de elaboração. A atualização temática e inserção de novos orientadores comprovam a dinâmica desse processo. A criação da bolsa de estudos na modalidade “sanduíche” tem intensi� cado a procura da França no processo de formação de quadros para a geogra� a brasileira. Entretanto, essa modalidade cria di� culdade de controle para � ns estatísticos e de pesquisa. Isso impediu que traçássemos sua importância e posição no quadro geral da presença e produção de brasileiros na França. Acredita-se que haverá mais interesse e procura, ampliando as possibilidades de intercâmbio entre os dois países.

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8CONCLUSÕES

A geogra� a enquanto saber dinâmico continua ativa e atuante emprestando sua contribuição para um melhor conhe-cimento de um mundo que envelhece e se rejuvenesce simul-taneamente. Assim como o Mundo, ela também envelhece e se rejuvenesce desenvolvendo novas formulações, métodos e téc-nicas passíveis de contribuir para uma melhor explicação desse mundo cada dia mais complexo. Diante da intrincada situação em que o mundo se encontra, a discussão em torno dessa ou daquela escola, parece perder sentido. O mundo, na verdade parece cada vez mais dividido entre os produtores de ciência, a chamada sociedade que domina o técnico e o cientí� co e os dependentes, seus consumidores.

Novos espaços, novas con� gurações do mundo se de� -nem. O conceito de mundo impregnado dá ideia de unicidade, de coerência, na maioria das vezes sistêmica, parece não dar con-ta da realidade face à diversidade cada vez maior na face da terra.

Etnias, línguas, religiões, culturas garantem essa diversi-dade que se complexa nas formas de organização de poder, da educação, na abertura ou fechamento em relação ao mundo ex-

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terior. Esse ou esses mundos uno e diviso ao mesmo tempo, co-nheceram mudanças tão signi� cativas neste século.

Os últimos anos foram marcados por muitas novidades: derrubada do muro de Berlim, desmonte da URSS, golpe de es-tado na Rússia, crise econômica acentuada em Cuba, ascensão do narcotrá� co, emergência de novos blocos de poder, domínio das redes sociais, smartphones, ipad, blue ray e outras tecnolo-gias surgem no mercado. A presença marcante da China no ce-nário mundial, retração do império americano. A globalização e a aparente uni� cação do mercado são, sem dúvida, a mais es-petacular. As mercadorias circulam no mundo, troca-se tudo e vende-se tudo. Fluxos e mais � uxos de capital, de pessoas e de mercadorias desenham-se no mundo, � uxos em várias direções. O avanço das técnicas de comunicação reduz distâncias, des-conhece as artimanhas do território e converte o mundo numa grande aldeia. Estruturas imensas são construídas para dar lugar aos grandes eventos. São efêmeras. Aparecem e desaparecem na paisagem, confundindo os observadores. Transmissões de competições e eventos, como os de Fórmula 1, alcançam um pú-blico formidável. São inúmeros os programas idênticos: Oscar, Olimpíadas, Copa do Mundo, entre outros. Durante a Guerra do Golfo as imagens da rede de televisão CNN no vídeo, adqui-rem feições de imagens virtuais, parecendo corromper as ideias e conceitos de espacialidade. O telespectador de qualquer parte do mundo se envolve e participa da guerra. Acompanha a trajetória dos mísseis, entra e sai de cena, como se fosse ator ou � gurante do � lme “Meia-noite em Paris”, de Woody Allen. Ogivas, caças, migs, mirage, exocet incorporam-se à linguagem do cotidiano. O mundo cabe nas telas enormes de LCD. Os episódios se sucedem em vida, morte, festa, golpes de estado, quedas da Bolsa, massa-cres. Todos participam da guerra, todos adentram no campo de operações. O tempo real do fato é o tempo da difusão da imagem.

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No bojo da modernidade que, segundo Habermas, é “um projeto inacabado”, eclode a luta das minorias, entre negros, índios, feministas, homossexuais etc. Os anos 1960 registram a mudança de valores. Democratização do corpo, liberação sexual, luta ecológi-ca. O novo mapa do mundo com con� gurações inusitadas lembra o � m da Guerra Fria que dividia o mundo entre os Estados Unidos e a extinta URSS. A nova con� guração do globo no plano econômico altera o chamado Terceiro Mundo, perde sentido enquanto bloco. O Terceiro Mundo ainda ganha visibilidade não pela importância, mas pelo gigantismo de seus problemas. Ares liberalizantes redu-zem a repressão na América Latina alternada com curtos períodos de democratização. Na África, o esfacelamento dos impérios colo-niais e posterior fragmentação de etnias. Na Ásia, a emergência da China e da Índia modi� ca o per� l do continente alterando � uxos, provocando concentrações e adensamentos. O Japão se ajusta com di� culdade, à nova con� guração da Ásia.

O neomalthusianismo é revisitado em diversos centros de pesquisa, centros de decisão política e universidades. Poucos são os países que ingressam no clube fechado dos ricos. A explo-são demográ� ca ocorre em grande escala, nas áreas mais pobres do mundo.

A compartimentação decorrente do aparato bélico e o con-trole econômico são constantes. Os recursos naturais entram na fase do esgotamento e impõem cuidados e aprimoramento da consciência ambiental. A dependência energética, pautada no petróleo, incita os centros de pesquisa à busca de novas fontes capazes de mover o mundo. A crise do petróleo gerou contra-dição em certos países com fortes receitas via exportação dessa fonte energética, mas que não resolveram suas grandes questões econômicas e sociais.

A crise do petróleo gerou um estado de alerta, deixou as nações dependentes numa situação incômoda. A tecnologia

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criada e aperfeiçoada a partir das duas grandes guerras do sécu-lo passado, evoluiu em escala jamais pensada. A indústria bélica impeliu os principais grandes blocos em competição pela con-quista espacial. As conquistas tecnológicas foram formidáveis. Novos materiais utilizados e testados nos programas espaciais foram colocados à disposição do mercado a ciência avança e com ela a certeza de novas possibilidades. Os ramos do saber se entrecruzam. Mergulha-se completamente no mundo das novas tecnologias. Artefatos confeccionados com novos materiais ou similares e outros derivados do petróleo, invadem os lares in-dependentemente de classe social. Vive-se uma verdadeira re-volução no cotidiano. Sua proliferação transforma a superfície da terra, sua utilização na substituição de produtos tidos como clássicos provoca polêmicas, rejeição. Com eles, aguçam-se os problemas ecológicos que adquirem e � rmam-se sob a forma de “questões”. Os produtos oriundos da petroquímica, não sendo biodegradáveis, geram uma esteira de problemas, que, em res-posta a essa constatação, ocasionam a organização e mobilização de grupos, instaurando-se os “movimentos ecológicos” que se proliferam rapidamente e adquirem feições variadas, ajustadas às diversas formas de agressão à Natureza e à Sociedade. A ques-tão ecológica seguiu diferentes direções. 79 Cientistas, políticos e religiosos contrapõem-se aos excessos em termos de desgaste e extinção dos recursos naturais.80

79 “Na América Latina, por exemplo, a degradação dos regimes nacionais populares proporcionou, antes de mais nada, em numerosos países o triunfo de ditaduras militares e a troca do protecionismo por uma política liberal de procura de vanta-gens comparativas sobre o mercado mundial[...]” In: TOU! INE, A. Critique de la Modernite. Paris: Fayard,1992.80 Ver GUA" ARI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus Editora, 1990; SERRES, Michel. Le Contrat Naturel. Paris: Editions François Bourin, 1990; FERRY, Luc. Le Nouvel Order Ecologique. Paris: G! S SET, 1992. MORIN, Edgar. Le paradigme Perdu: la nature humaine. Paris: Seuil, 1973.

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A Terra, nosso velho planeta conhecido, insiste em revelar novas feições. Nela, a Ciência vai adquirindo novas caracterís-ticas, tentando novas possibilidades. A Química Fina, a Infor-mática e a Engenharia Genética instauram nova concepção de Ciência. Os laboratórios empenham-se em resolver novos de-sa� os, tentando conciliar avanço técnico e questão ecológica. Desta forma, Capital e Ciência renovam suas alianças. Não obs-tante, doenças seculares como a sí� lis, o cólera, persistem. Ou-tras, como o câncer e a AIDS entram em cena. A fome assola o mundo adquirindo feições epidêmicas. A África, continente que mais necessita de ajuda, é o mais abandonado.

Os anos 1980 revelam a grande crise do capital. Uma nova ordem mundial se con� gura, de forma que o velho modelo de identi� cação de paisagens urbano-industrial com um determi-nado tipo de organização mostra-se incapaz de apreender a di-nâmica dessa nova modalidade de arranjo espacial.

A indústria moderna potente, transformadora, não tem mais chaminés, não ocupa vastos quarteirões em setores in-salubres das grandes cidades dominadas pela poluição. Nessa ambiência de penumbra com o domínio de tons acinzentados. Essa indústria nova, dos chips, da química � na instala-se em qualquer bairro das metrópoles, nos tecnopolos. Elas não têm mais em suas linhas de montagens aqueles operários com seus macacões surrados, não têm mais ambientes enfumaçados, de-sagradáveis. A indústria moderna confunde-se com outras for-mas urbanas, camu� a a realidade. Hoje, segredos industriais de fórmulas e contratos movimentam executivos, políticos, cientistas. A velha ordem com seu espaço vetusto, pesado, car-regado de poluição, mas ainda necessária, persistem. Os países do Terceiro Mundo clamam por ela e conformam-se com a de-fasagem tecnológica. Os tecnopolos e laboratórios estratégicos não se distinguem na paisagem urbana. Ao contrário, passam

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despercebidos num mimetismo que esconde seu poder � nan-ceiro e industrial.

“É assim que o Silicon Valley81 nos Estados Unidos é uma construção espontânea, ligada a uma tecnologia de ponta e de inovação criada nos laboratórios, proporcionando o surgimento de empresas dinâmicas, atraindo competência e capital produ-zindo um ambiente urbano com feições próprias. A cidade que pesquisa, encontra e produz é um tecnopolo, motor e elo princi-pal do sistema produtivo que dele toma forma, célebre por dele ter nascido uma aglomeração de empresas com nível tecnoló-gico muito forte. A major concentração mundial de “cérebros” induz um efeito de arrastamento ao nível dos processos cientí� -cos. Antes de mais nada, o ambiente intelectual desempenha um papel na criatividade cientí� ca, a informação circula melhor, as ideias novas são confrontadas entre si. Muito mais do que isto, as inovações estão muitas vezes interligadas: determinada criação de uma empresa induz ocasiões de inovação para outras.”82

Mergulhada nessa reviravolta que agita e transforma o mundo, a geogra� a, essa velha senhora respeitável, centenária, nossa velha conhecida, do alto de sua sabedoria se rejuvenesce e embrenha-se na procura da compreensão da realidade desse tempo de mudanças rápidas, bruscas.

Pierre George (1990), em seu último livro Le Métier de Géographe, a� rma:

“O sonho dos geógrafos do início do século era desenhar um álbum de imagens em várias escalas para a informação e a edi� cação de gerações futuras. Descrevendo-as, eles pensavam ter � xado o mundo”. Prosseguindo, indaga: “Resta saber se nessa

81 MANZAGOL, C. “La Localisation de activites speci� ques”. In:_____. Ency-clopedie de geographie. Paris: Economica, 1992. p. 510.82 GELEDAN, Alain e BREMOND, Ianine. Dicionário das teorias e mecanismos eco-nômicos. Lisboa: Livros Horizontes, 1988. p. 343.

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aventura acelerada a geogra� a não perdeu sua identidade”. Ter-mina seu livro dizendo que “O círculo não está fechado porque a história é uma espiral em geometria variável nas curvas das quais, a geogra� a tem sempre o seu lugar.”83

A Geogra� a construiu um saber fundamental para o co-nhecimento da terra e do mundo. Cada dia transforma-se em um conhecimento mais útil para uma melhor compreensão des-se mundo. Nos primórdios dos anos 2000 a geogra� a, enquan-to saber cientí� co, encontra fôlego para atualizar-se, superar-se, abandonando análises esgotadas, ultrapassadas, conceitos rotos e metodologias inadequadas. Esse velho mundo que se renova dia a dia impõe novos desa� os. A dinâmica desse novo tempo se dá com intensidade ocasionando o surgimento de novos mun-dos novos. Aprisioná-los, congelá-los para compreendê-los, é impossível. Cabe aos geógrafos, enquanto pro� ssionais que li-dam simultaneamente com a Natureza e a Sociedade, como su-jeitos do processo de produção do espaço, buscar a renovação e ajuste de todo um arsenal teórico-metodológico para explicar essa realidade e compreender sua dinâmica.

O mundo hoje é um conjunto de conhecimentos que evo-luiu paulatinamente. Do universo desconectado da fase inicial, uma espécie de micromundo, chega-se a uma aldeia global. O mercado e as comunicações comandam o processo.

Nessa evolução, o mundo concebido como campo de forças, passa pela guerra fria e vive a expansão capitalista com a universalização crescente dos � uxos econômicos. Dessa forma, ordenaram e hierarquizaram o espaço mundial. A modernidade foi e continua sendo a justi� cativa para a maioria das ações po-líticas e programas de governo. Segundo Touraine (1992) “O esgotamento da idéia de modernidade é inevitável posto que ele

83 GEORGE, P. Le metier de geographe. Paris: Armand Colin, 1990. p. 241.

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se de� ne não como uma nova ordem mas como um movimento, uma destruição criativa.”84

A geogra� a enfrenta grandes desa� os nesse início de milê-nio. Não importa mais falar ou questionar se existe uma escola brasileira e quais foram os estrangeiros que mais in� uenciaram a geogra� a brasileira. Concretamente, a geogra� a brasileira como as demais, questiona sua natureza, sua dualidade. Ao tentar ne-gar tudo isso, enquanto campo do conhecimento, não tem � r-meza su� ciente para dirimir como as demais escolas ligadas a outros países que apresentam as mesmas ambiguidades quanto à sua dicotomia.

A originalidade da geogra� a reside no fato de tratar si-multaneamente a natureza e a sociedade, o que deve garantir sua unidade e não dividi-la. Assim sendo, a geogra� a, diante de um mundo integrado, conectado, de � nal de milênio, que por sua vez apresenta suas contradições, deve investir o que puder para dar continuidade ao seu projeto cientí� co que é o de explicar a sociedade a partir do espaço geográ� co, produto das relações estabelecidas pela sociedade. Quanto aos estran-geiros, aqueles geógrafos pioneiros que com persistência cria-ram as bases do desenvolvimento de uma geogra� a cientí� ca no Brasil, conseguiram estabelecer políticas de formação de pessoal quali� cado que aos poucos foram substituindo-os. A substituição não signi� cou, em nenhum momento, abrir mão da contribuição de pro� ssionais estrangeiros. A permuta, a troca, o intercâmbio são fundamentais para o avanço da ciên-cia geográ� ca.

Dentre os estrangeiros, não resta a melhor dúvida que, no Brasil, os franceses ocuparam e ocupam papel destacado. As relações entre os dois países devem ser reforçadas, propiciando

84 TOU! INE, A. Op. cit.

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a troca recíproca. Hoje, nesse início de milênio, as possibilida-des de intercâmbio aumentam e nesse processo existe condição de modi� car um pouco o papel que cabe ao Brasil. A geogra� a brasileira foi aprendiz, herdou procedimentos metodológicos, linhas teóricas, bibliogra� a etc. Ao longo do tempo, mesclando a aprendizagem mais efetiva com os franceses, adicionando o que se aprendeu com os alemães, americanos, ingleses e outros, a geogra� a brasileira alcança um modo talvez peculiar de fazer Geogra� a. Cumpre-nos, como produtores de ciência, decorren-te desse amálgama, mostrá-la e divulgá-la.

Durante a pesquisa, os entrevistados foram categóricos no reconhecimento da autonomia e qualidade da geogra� a brasilei-ra. O Prof. Sachs, prosseguindo em sua entrevista a� rma:

Eu acho que uma reatualização e um debate sobre o método de Jo-sué de Castro na ‘Geogra� a da Fome’ é um problema de interesse internacional e não só brasileiro. Ab’Saber, eu acho que ele repre-senta hoje no debate sobre a Amazônia, uma voz extremamente importante pela sua capacidade de aliar a � delidade à Geogra� a no sentido estrito da palavra, com a sensibilidade aos problemas emergentes. O que eu li dele, o que eu conversei com ele me a� rma-ram que é uma personalidade de primeiro plano com um proble-ma, ele é pouco traduzido para outras línguas. Orlando Valverde é uma personalidade, é de uma outra geração e inspirou toda uma geração. Acho que a importância do Valverde está mais no papel que ele desempenhou como homem, do que nos livros dele.

Cabe à Geogra� a brasileira importante papel na explica-ção da realidade do país, da América Latina e por que não, do mundo. No Brasil a ciência geográ� ca alçou um nível razoável de re# exão. O país conta com um número considerável de pro-� ssionais que alcançam notoriedade nacional e alguns, até in-ternacional. No contexto do Mercosul, há um amplo espaço de discussão, interpretação e análise e no que tange a realidade dos

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pares envolvidos. O EGAL – Encontro de Geógrafos da Amé-rica Latina tem sido um traço de união entre os geógrafos. Os eventos da ANPEGE e da AGB têm atraído a atenção e partici-pação de geógrafos dos países vizinhos. É um bom caminho para uma efetiva integração.

A história e a realidade do cotidiano têm provado o quan-to se tem produzido em geogra� a no país. Nessa fase � nal da pesquisa, os entrevistados ganham espaços para que expressem seus pontos de vista sobre a geogra� a brasileira.

“O Brasil não esta só, mas ele é certamente, na sua condição, um dos países melhor estudado internamente, graças precisamente a qualidade e a vitalidade de sua escola geográ� ca.” (Pierre George em carta-resposta ao questionário, em novembro de 1992).

“Eu creio que a geogra� a brasileira tem seu próprio per� l e sua autonomia.” ( Jean Labasse em carta-resposta ao questioná-rio, em dezembro de 1992).

“É evidente, a geogra� a brasileira existe. Ela tem o mesmo problema epistemológico que a geogra� a tem em todos os países.” (Bernard Kayser em carta-resposta ao questionário, em novem-bro de 1992).

Eu penso, com efeito, que a geogra� a brasileira tem um per� l próprio, após se ter engajado muito nos modelos quantitativos nos anos 70, ela reintroduziu a dimensão política e a dimensão cultural em suas análises. E isso manipulando com facilidade a cartogra� a informatizada. Lugares como a USP e a UFRJ me parecem ser, ao mesmo tempo, criativos e autônomos. (Hélène Riviere D’Arc em carta-resposta ao questionário, de dezem-bro de 1992).

“Parece-me que a Geogra� a Humana, Econômica e Social, adquiriu certa autonomia em relação à geogra� a $ ancesa e a outras escolas dominantes”. ( Jacques Malezieux, em carta-resposta ao questionário, de dezembro de 1992).

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Nada melhor para concluir do que Milton Santos, o emi-nente geógrafo brasileiro, de reputação internacional, respon-dendo à pergunta sobre sua relação com a França hoje. O mes-tre dá um depoimento que expressa sentimento que perpassa o intercâmbio da geogra� a mantido entre a França e o Brasil nos últimos anos:

“A França continua tendo uma importância muito grande na minha vida, na minha carreira, nas minhas ideias. Uma relação contraditória, nem sempre pací� ca dentro de mim, mas que é ex-tremamente importante porque eu me sinto bem aqui (na Fran-ça), eu me sinto praticamente em casa e é evidente que isso cria problemas. A mesma relação contraditória, a relação que você tem com sua própria terra que é também contraditória, a relação que eu tenho com a Bahia que é também contraditória”.

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