Francis Bacon e a Experiência Do Século XX

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    FRANCIS BACON E AEXPERINCIA DO SCULO XX

    BARBOSA, Aline Leal Fernandes (PUCRJ)

    RESUMO : Constantin Guys, Charles Baudelaire e Walter Benjamin falaram sobre a modernidadedo sculo XIX; Francis Bacon e Gilles Deleuze sobre a do sculo XX. Neste artigo, pretendemosdiscorrer a respeito de programas ou poticas de uma pintura que pensa, bem como de umafilosofia que cria sobre sua poca e sobre o eterno que nela permanece e resiste, que seja oprprio da obra de arte.P L V R S CH V E

    : Modernidade. Multido. Histria. Arte. Real.

    BSTR CT

    : Constantin Guys, Charles Baudelaire and Walter Benjamin talked about the modernityof the XIX century; Francis Bacon and Gilles Deleuze about the XX century one. In the scope of

    this article, wed like to think about programs or poetics of a painting that thinks as well as of aphilosophy that creates about its own era and about the eternal in it that remains and resists, inwhat would consist the work of art.KEY WORDS

    : Modernity; Multitude; History; Art; Real.

    On peut certainement penser la peinture, on peut aussi peindre la pense, y compriscette forme exaltante, violante, de la pense quest la peinture1

    Constantin Guys foi, para Charles Baudelaire, o pintor da vida moderna.

    Isso porque sua obra exprimiria alguns dos aspectos definidores da modernidade: ainstantaneidade, o transitrio, o fugidio, o contingente. Foram os costumes asruas, os bailes, as mulheres, a moda que, nas gravuras de C.G., captaram a qualidadeessencial do presente, a moral e a esttica da poca. Para Guys, bem como paraBaudelaire, seu contemporneo, a modernidade se fazia, sobretudo, de umaexperincia: a multido. Nas ruas, nos bondes, nos trens, nos bares da cidade grandedo sculo XIX europeu, o homem se via em meio para usar as palavras do poeta ao grande deserto de homens. A multido e sua dimenso annima, abrangente,

    massificada: o indivduo que nela transita um eu insacivel de um no eu, suaindividualidade transformada em multiplicidade. Ao pintor da vida moderna caberia

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    dominar a multido, espos-la, para dela extrair a matria viva: a qualidade de presente seu componente histrico e sua poro de eternidade invarivel. a partir da

    obra deste pintor que Baudelaire desenvolve uma teoria racional e histrica do belo,em oposio teoria do belo nico e absoluto: O belo feito de um elementoeterno, invarivel, cuja quantidade muito difcil de ser determinada, e de um elementorelativo, circunstancial, que ser, como preferirem: um a cada vez ou todos ao mesmotempo a poca, a moda, a moral, a paixo (Baudelaire, 2010, p.17).

    Baudelaire elege Guys para tratar da modernidade e , por sua vez, matriapara Walter Benjamin no ensaio Sobre alguns temas de Baudelaire. Escrito nosanos 1930, mesma poca de Experincia e pobreza e O narrador, tambm aqui

    a modernidade a grande questo da qual outras derivam, entre elas a da perda daexperincia e a do fim da narrativa, tema caro ao pensamento benjaminiano. Seriamas mesmas caractersticas que fizeram de C.G. o pintor da modernidade aquelasresponsveis pelo enfraquecimento da experincia (Erfahrung), esta ligada a uma vidacomunitria e a uma tradio, que o homem moderno, da cidade grande e do mundocapitalista, no mais partilharia. Em seu lugar surge outro tipo de experincia, da vidaprivativa do sujeito solitrio (Erlebnis), em sua vivncia fraturada desprovida de umalinguagem e de uma memria comuns.

    Embora em meio multido, o sujeito est isolado, embora civilizado,selvagem. Disciplina e selvageria recprocas, como modelo dos estados totalitrios,onde a polcia est aliada aos delinquentes, diz Benjamin. Aliana entre a foraorganizadora/repressiva do Estado com aqueles que dele escapam, porque, na multido,h um atravessamento de fronteiras e um sentido de globalidade, em consider-la emseu conjunto; h, alm disso, uma violncia. Benjamin fala tambm de companhiasmilitares no meio de bandas carnavalescas, do senso de ordem que h em meio desordem e vice-versa. Nesse sentido Baudelaire enfatiza que, ainda que se fale tantode barbrie, a obra do pintor da vida moderna no consiste em desenhos informes,antes pelo contrrio, como podem atestar os admiradores das gravuras de C. Guys.H, entretanto, uma barbrie inevitvel, sinttica, infantil, que muitas vezes permanece

    visvel numa arte perfeita (Baudelaire, 2010, p.29).Apreender a barbrie como ordem seria extrair a beleza misteriosa de uma

    poca, que transformar o presente em passado, para que depois retorne comopresente, o circunstancial em eterno, atualizando-se continuamente, atendendo teoria histrica e racional de Baudelaire, que faz convergir os dois momentos na obrade arte. Tambm fazendo ressoar as teses Sobre o conceito de Histria de Benjamin,

    de se fazer jus ao passado, salv-lo no presente, porque as barbries condensadas naobra de arte permanecero como potenciais narrativos. Ainda que a transmisso da

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    memria no se d mais como na tradio, uma vez que as condies para a realizaoda experincia em seu sentido estrito esto ausentes no interior das cidades grandes

    de uma sociedade capitalista e tecnicista, h, nestas pinturas de circunstncias, opotencial de subtrair os acontecimentos contingncia do tempo, faz-los escapar morte. Benjamin enaltece a figura do cronista, aquele que no faz distino entre osacontecimentos grandes e pequenos, levando em conta que nada do que um diaaconteceu pode ser considerado perdido para a histria (Benjamin, 2012, p.242).

    Baudelaire e Constantin Guys, Benjamin e Baudelaire: aliados na construode uma potica e de uma filosofia. Um modo de pensar e de se estar na modernidade,de fazer da experincia do choque criao, uma espcie de defesa e de permanncia,

    de sade. Fazer da modernidade tema e experincia, cada qual com seu modo deexpresso: pintura, poesia, filosofia? E nas intercesses que essas linguagens se cruzam,sua transversalidade.

    Benjamin rejeitado por sua falta de dialtica e, no entanto, seus ensaiosecoando como atualizao do passado, na transmisso da experincia desse sujeitomoderno. No afastamento deliberado da historiografia progressista e da historiografiaburguesa em favor do historiador materialista, Benjamin tomado, entretanto, pormstico em seu modelo de leitura herdado dos textos sagrados. Profanando o sagradoao mesmo tempo que sacralizando o profano e, contudo, fiel ao mtodo do historiadormaterialista de tornar possvel a descoberta de novas camadas de sentido at entoignoradas. Como na anlise da crtica Jeanne-Marie Ganegbin:

    Na tradio teolgica judaica, e especialmente na tradio mstica da Cabala, ainterpretao no pretende delimitar um sentido unvoco e definitivo; ao contrrio, orespeito pela origem divina do texto impede sua cristalizao e sua reduo a umsignificado nico. (Ganegbin, 2012, p.35)

    Multido, enfraquecimento dos laos comunitrios, perda da experincia,fim da narrativa tradicional, transferncia do trabalho artesanal para o mecnico,rpido desenvolvimento do capitalismo e da tcnica, aceleramento da vida dissoque trata o choque da modernidade, da metade do sculo XIX at o incio do sculo

    XX europeu. Gostaramos de pensar agora no momento seguinte a este de que trataBenjamin e seus pares, e introduzir aqui tambm um pintor e um filsofo FrancisBacon e Gilles Deleuze para pensar a experincia do sujeito que viveu boa parte dosculo XX, o homem europeu que atravessou duas grandes guerras e que fez de suaexperincia uma obra de arte.

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    FRANCIS BACON E O SENTIMENTO DO SCULO

    Com Francis Bacon e Gilles Deleuze temos uma relao parecida comaquela que apresentamos no incio deste texto entre C.G., Baudelaire e Benjamin, nosentido dos programas ou poticas de uma pintura que pensa, bem como de umafilosofia que cria sobre sua poca e sobre o eterno que nela permanece e resiste, oque seria prprio da obra de arte. Se as transformaes citadas da modernidadetiveram sobre o homem do sculo XIX um efeito de fratura do sujeito da tradio, deum euna multido insacivel de um no eue, ainda assim, isolado, em que chavepodemos pensar o homem do sculo XX, tendo em vista que algumas experincias deacelerao e de tecnizao se tornaram mais agudas, mas que no se trata somentede uma progresso de tais transformaes? Pensamos que a obra de Francis Baconpode ser uma chave para pens-lo, no como uma ilustrao do seu presente, porqueisso iria de encontro sua potica, mas por meio de uma Lgica do sentido, comodiria Gilles Deleuze.

    Diante das obras de Francis Bacon, pintor irlands que viveu grande partedo sculo XX (1909-1992), deve ser comum aos espectadores sentirem-se atingidosfisicamente isto , corporalmente, em algum rgo que lhes seja mais sensvel aosistema nervoso. O prprio pintor, por diversas vezes nas muitas entrevistas que

    concedeu nas quais se pode vislumbrar um pensamento bastante elaborado sobre suaobra bem como uma reflexo filosfica sobre a vida/morte, se diz um pessimistacerebral e um otimista nervoso. Reiteradas vezes afirma a inteno de atingir o real,uma realidade mais fina e mais bruta, uma aparncia mais que a aparncia literal,que a ilustrao apenas margeasse, um real mais direto e mais contnuo. E, portanto,mais violento, porque pego de assalto, tornando essa uma leitura comum da violncia,do horror, da brutalidade , quase inescapvel, da obra de Bacon. Elabora-se, ento,o que o pintor chama de mistrio da aparncia: a questo de saber em que consiste

    propriamente a aparncia, como faz-la surgir. Tal mistrio, que tambm o darealidade, seria aproximado de forma mais bem-sucedida, estaria o mais prximopossvel do fato se acessado por vias do instinto, do acidente, pela via maisimediata do sistema nervoso, dos afetos, que pela mediao da conscincia, dainteligncia.

    Observa-se, portanto, a inverso do eu cogito cartesiano, da certeza que oeu pensante tem da sua existncia segundo uma lgica causal em que o ato de pensar o princpio de determinao que age sobre o sujeito, existncia indeterminada. O

    eu sou uma coisa que pensa substitudo por um eu desprovido de determinaoconsciente, em grande medida inacabado, que s se deixa vislumbrar no nvel mais

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    intuitivo da percepo. Opera-se em uma zona de inconscincia, irracionalidade,na aposta de que o pensamento se faz, sobretudo, contra o pensamento, e que

    justamente na fratura do encadeamento fechado deste eu cartesiano (penso, logoexisto), na acidentalidade inerente vida, nesta abertura que podem escapar fachosde realidade, de lucidez. Bacon preciso: O mistrio da realidade s ser apreendidose o pintor no souber como est procedendo (Sylvester, 1995, p.101).

    Nota-se a impotncia do pensamento na esteira da ausncia de horizontede sentido, no momento em que ele deixa de ser dado quer pelo contexto social querpela doutrina religiosa. As obras de Bacon ajudam a sentir o que para um homemsem iluses o fato de existir, afirma Michel Leiris. Se mesmo a informao jornalstica

    que supostamente forneceria alguma base de segurana quando se perde a experinciacoletiva, como disse Benjamin2, j no goza de total credibilidade, o sujeito se encontracada vez mais desamparado e isolado, e nada ser capaz de lhe dar algum conforto.

    De modo que podemos colocar Francis Bacon lado a lado de Franz Kafka,escritor que Benjamin e Deleuze tambm escolheram como aliado em seus projetosfilosficos, no tocante deficincia de sentido na experincia do sujeito moderno.Walter Benjamin aponta para a capacidade rara do autor de criar parbolas, sem, noentanto, ceder tentao de fundar uma religio. Embora os textos de Kafka pareampor vezes apontar para uma doutrina ou um ensinamento, o leitor se confrontarconstantemente com resistncias interpretao, sobretudo porque no se pode maiscontar com as instituies. Gilles Deleuze e Flix Guattari, em Por uma literaturamenor, tratam da obra de Kafka num mesmo sentido, nem imaginria nem simblica,nem estrutura nem fantasma: S acreditamos numa experimentao de Kafka, seminterpretao nem significaes, somente protocolos de experincia (Deleuze &Guattari, 2003, p. 25).

    FRANCIS BACON E A RESISTNCIA INTERPRETAO

    Em A lgica do sentido, Gilles Deleuze apresenta o conceito de Figuracomo forma referida sensao para falar da obra de Francis Bacon. Uma figura nofigurativa, porque o contrrio da forma referida ao objeto que deseja representar. nesse sentido tambm a negao da evidncia narrativa, de um enredo reconhecvel efechado, que estar mais prximo da ilustrao, que , por sua vez, outra coisa queno a criao. Portanto tambm, a falncia da interpretao: porque trata-se daquilo

    que no se reduz.Deleuze diz a respeito da pintura artstica de um pensamento que escapa

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    representao: Il y a deux manires de dpasser la figuration (cest dire la foisillustratif et narratif): ou bien vers la forme abstraite, ou bien vers la figure (Deleuze,

    2002, p.27). Bacon enftico quanto sua recusa da abstrao, para ele inteiramenteesttica e sem sentido de registro, portanto, desprovida da tenso verdadeira. Comodisse Baudelaire a respeito de Constantin Guys, trata-se de extrair da barbrie o realmais que real, do invisvel o visvel, do intangvel o tangvel, na averso que o pintorda vida moderna tem pelas coisas que constituem o reino do impalpvel, do metafsico(Baudelaire, 2010, p.30).

    Realismo clnico, como denominou Bacon, em que o real ser extrado fora de artificialidade. Alm disso, nos dois pintores h um investimento no registro,

    de trazer eternidade a transitoriedade e retratar tanto sua poca em suas vibraese intensidades quanto o que dela permanecer como fecundidade para novas histrias.Trata-se, portanto, de um novo conceito de tempo, que no ser mais homogneo elinear, vazio e progressivo, como o tempo dos relgios, mas aquele dos calendrios,irregular, carregado de presena, de memria e de atualidade, como diz Benjamin.Temporalidade pontual tal como um relmpago, portanto preciso criar uma armadilhapara agarrar o fato em todo o seu instante de plenitude. (Sylvester, 1995, p.54),nas palavras de Francis Bacon.

    Fala-se tambm do tempo da moda, aquele que no se deixa cotidianizar eque retorna em diferena, liberando histrias reprimidas, o que tanto o ideal dopensamento benjaminiano como do deleuziano. Em Benjamin, a denncia da forarepressiva de um passado irremediavelmente perdido e o ideal de recuperar osacontecimentos em toda a sua plenitude, no intuito de fazer de todas as histrias aHistria, salvando-as portanto da morte. A filosofia deleuziana no ato de liberar adiferena da representao, transformar pontos em linhas e rejeitar uma ordem fixaem privilgio de intensidades e velocidades que no cessam de se diferenciar.

    Bacon diz: o que eu pretendo fazer distorcer o objeto at um nvel queest muito alm da aparncia, mas, na distoro, voltar a um registro da aparncia(Sylvester, 1995, p.40). Distorcido, apagado, subvertido do sistema que, na figuraoou na vida corrente, mascara e oprime sua verdadeira aparncia. Ao contrrio dasgravuras de Constantin Guys, em que se privilegiam os ambientes e os contextossociais, nos quadros de Bacon o homem encontra-se predominantemente isolado,fechado, geralmente sentado ou em posio passiva. Acentuam-se a solido e aconsequente selvageria desse sujeito em estado de quase animalidade, reduzido carcaa, carne, massa em oposio ao contorno do sujeito bem delimitado,

    personificado, como zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal.A presena insistente da carne, sobretudo em seus quadros de crucificao,

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    provocativa de diversas aluses sensao de aougue, desorganizao do corpoali exposto como matria animal, contudo no por uma semelhana animalesca,

    sobretudo por uma identidade de fundo, a tal ponto que tornou-se recorrente ementrevistas a seguinte frase de Bacon: Quando vou ao aougue, acho sempresurpreendente no estar ali, no lugar dos nacos de carne. (Maubert, 2010, p.30)Carne infinita, carne sem limites: la viande est la zone commune de lhomme et de labte, leur zone dindiscernabilit (Deleuze,2002, p.30), traando linhas que induzemnovas distncias e relaes e que prolongam-se at atingir o espectador e suscitarnele a sensao nervosa j referida diante das pinturas.

    O sujeito em seu isolamento nos quadros de Bacon renuncia imposio

    de uma narratividade, de um discurso cerebral que fechasse uma histria a reconhecer,em privilgio da Figura no figurativa. Os retratos de Bacon na insistncia de capturarna distoro o real, na violncia de retirar o vu de uma existncia invariavelmente

    velada, de fazer alguma coisa fugir, algum sistema vazar. Gilles Deleuze e Flix Guattariapontam para o rosto como uma fora organizadora, seu agenciamento concreto depoder desptico e autoritrio. Existe toda uma educao dos rostos, uma gramticados rostos, de acordo com que todas as partes descodificadas, as variaes e desvianas,os traos que no esto conformes sero sobrecodificados ou apagados. Ser preciso,portanto, escapar da armadilha do rosto como redundncia: a tal ponto que, se ohomem tem um destino, esse ser mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e asrostificaes, devir imperceptvel, devir clandestino (Deleuze & Guattari, 2012,p.36).

    A recusa de um efeito de reconhecimento imediato, como aquele controladopela ilustrao: acho que daqueles dois retratos que fiz de Michel Leiris, o que fizmenos literalmente parecido com ele o que se parece com ele de uma forma maisdramtica. (Sylvester, 2010, p.146). Quando se pensa na cabea de Michel, sabe-se que ela arredondada e, no entanto, em seu retrato, tem uma forma comprida eestreita. Da o mistrio da aparncia e em como aproximar-se dela. Bacon fala dabusca em tornar seus quadros cada vez mais artificiais, cada vez mais arbitrrios.

    Alegoria em oposio ao smbolo, sua predominncia na viso barroca domundo e sua reabilitao na poca moderna, como apontava a discusso de Benjaminsobre o drama barroco alemo. Enquanto o smbolo sinnimo de totalidade, clarezae harmonia, ligando dois aspectos de uma realidade bem-sucedida, a alegoria fala deoutra coisa que no de si mesma, marcando, em funo desse desvio, as faltas e osdilaceramentos do real: A alegoria destaca essas dificuldades e est, consequentemente,

    e de certa maneira, mais prxima da verdade do que a figurao simblica, querepousa sobre a utopia de uma transparncia de sentido (Ganegbin, 1993, p.44).

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    Na viso de mundo que no compreende mais um sentido nico e umapretenso de totalidade, o sujeito est desamparado e desintegrado e caminha entre

    as runas de um mundo outrora regido por leis que j no encontram uma comunidadena qual possam tornar-se mximas, e cuja validade est, portanto, previamente sobsuspeita. O smbolo encontra no fragmento a significncia que faz vislumbrar o todoe o possibilita reconstru-lo; a alegoria, por sua vez, deve fazer outra coisa dofragmento, que no resultar em concordncia, pelo contrrio em disjuno eambiguidade. Mas da podem-se desfazer relaes estabelecidas, relanar possibilidadese, em sua potncia criativa, fazer falar coisas novas.

    Por exemplo Retrato de George Dyer num espelho(1968): como grande

    parte dos quadros de Bacon, o sujeito est sozinho, sentado, em uma postura passivade espera, situao que desde j privilegia o sujeito-objeto em detrimento do enredo.O corpo est sentado de frente, com o rosto-cabea virado para o espelho logo atrs,em uma toro que desorganiza a estrutura rosto semblante da cabea sobre ocorpo que o sustenta. Na superfcie opaca, o perfil do rosto-cabea aparece fraturado,como que destacado da cabea. Muro/tela branca, buraco negro organizador:pretende-se passar por esse buraco negro para fazer surgir algo novo dessa telabranca j previamente preenchida por clichs. Sujeito diante do espelho, rosto diantedo seu reflexo, e, no entanto, quer se ultrapassar este morno face a face dassubjetividades significantes (Deleuze & Guattari, 2012, p.36).

    Os espelhos de Bacon, por sua vez, sont tout ce quon veut sauf unesurface que rflechit (Deleuze, 2002, p.25), diz Deleuze. Os espelhos no so umlugar de apaziguamento da identificao, do reflexo/composio. Outra coisa queno o suporte para ver o que j visto. Ao contrrio, eles mostram aquilo que,figurativamente, no se v, ao acentuar as distores e a prpria desorganizao docorpo sem rgos, sem organizao. Recusa da semelhana, apostando nadesintegrao dos corpos, enviando o sujeito perda de si mesmo. Se a funoilustrativa e documental j no determina a atividade do pintor, uma vez que estapassou a ser exercida pela fotografia, que, em uma segunda mirada, tem outra pretensoque no somente a de representar, ilustrar ou narrar, por que deveria o espelhomanter-se no registro da reproduo, da duplicao? Que se possa nele retornar aofato mais violentamente, captando uma realidade mais concreta na diferena.

    Aforisma 243 de Aurora: Se tentarmos contemplar o espelho em si,acabamos por no descobrir os objetos que neles se refletem. Se quisermos agarraresses objetos, voltamos a ver somente o espelho. Essa a histria geral do

    conhecimento. Nietzsche acusa a dupla inaptido do conhecimento de acessar arealidade a partir de uma relao sujeito-objeto que esbarraria em um defeito de

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    NOTAS1Prefcio de Alain Badiou e Barbara Cassin a Francis Bacon Logique de la sensation.

    2

    Benjamin cita duas formas de narrativa predominantes na modernidade: a informaojornalstica e o romance, tendo ambos em comum a necessidade de encontrar alguma

    explicao para o acontecimento. Enquanto a informao deve ser plausvel e controlvel; o

    romance clssico visa concluso.

    3Prefcio de Obras Escolhidas I - Magia e tcnica, arte e poltica ensaios sobre literatura e

    histria da cultura. (p. 12)

    REFERNCIAS

    BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna.Belo Horizonte: Autntica, 2010.BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: EditoraBrasiliense, 2012.

    DELEUZE, Gilles. Francis Bacon Logique de la sensation. Paris : ditions du Seuil, 2002.

    DELEUZE, Gilles. Conversaes. So Paulo : Editora 34, 2012.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assrio & Alvin,2003.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats 3. So Paulo: Editora 34, 2012.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats 4. So Paulo: Editora 34, 2012.

    FICACCI, Luigi. Bacon sous la surface des choses.Paris : Taschen, 2010.

    GANEGBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin os cacos da histria. So Paulo: Editora Brasiliense,1993.

    MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon o cheiro do sangue humano no desgruda osolhos de mim. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

    NIETZCHE, Friedrich.Aurora. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    SYLVESTER, Davis. Entrevistas com Francis Bacona brutalidade dos fatos. So Paulo: Cosac &Naify, 1995.