FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS - USP · 2019. 2. 21. · O diálogo inicia com uma conversa...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS Fédon de Platão: Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Tradução Parcial São Paulo 2018

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Page 1: FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS - USP · 2019. 2. 21. · O diálogo inicia com uma conversa entre Fédon e Equécrates, o qual solicita uma narrativa detalhada sobre a morte de

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS CLAacuteSSICAS

FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS

Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial

Satildeo Paulo

2018

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS CLAacuteSSICAS

Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial

Francisco de Assis Nogueira Barros

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e

Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte

dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Letras Claacutessicas

Orientador Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes

Satildeo Paulo

2018

Nome BARROS Francisco de Assis Nogueira

Tiacutetulo Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo

Parcial

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e

Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte

dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Letras Claacutessicas

Aprovado em

Banca examinadora

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

AGRADECIMENTOS

Agrave Capes pela bolsa fornecida

RESUMO

O tema principal do Feacutedon de Platatildeo eacute a imortalidade da alma Meu objetivo

nesta tese eacute apresentar um estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no

Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo

ABSTRACT

The main topic of the Platorsquos Phaedo is the immortality of the soul My aim in

this thesis is to present a study of the arguments for immortality of the soul in the

Phaedo and a partial translation of the dialogue

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip9

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip13

3 ARGUMENTO CIacuteCLICOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip32

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip70

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADEShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip102

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOShelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip155

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITOhelliphelliphelliphelliphellip215

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip228

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIALhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip233

10 BIBLIOGRAFIA helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip286

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

Apesar da vasta literatura criacutetica destinada ao estudo dos argumentos sobre a

imortalidade da alma no Feacutedon a temaacutetica eacute sobremodo complexa e continua

desafiando os pesquisadores Temas tidos como tradicionais e consolidados sobre a

alma em Platatildeo merecem ser revisitados reavaliados e confrontados com nova

investigaccedilatildeo uma vez que a formaccedilatildeo e inclinaccedilatildeo pessoal de cada estudioso permite

investigar Platatildeo de diferentes maneiras e chegar a diferentes respostas a partir de

diferentes meacutetodos e instrumentos hermenecircuticos razatildeo pela qual Platatildeo continua

exercendo encanto duradouro sobre todos noacutes1 Sendo assim eacute natural que haja um

renovado interesse pelos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma e ele comeccedila a ser

desenvolvido a partir do primeiro estaacutegio do diaacutelogo quando Soacutecrates apresenta a sua

defesa perante seus amigos de seu modo de vida e atitude perante a morte Nesta

ocasiatildeo ele afirma a sua convicccedilatildeo de que a alma do verdadeiro filoacutesofo ndash aquele que

vive na praacutetica da morte ao longo de toda a sua vida ndash desceraacute ao Hades onde se juntaria

aos deuses Nesta primeira etapa a imortalidade eacute simplesmente assumida nas

declaraccedilotildees de Soacutecrates como lsquotenho uma boa expectativa de que haja algo reservado

para os mortosrsquo A sua convicccedilatildeo eacute conforme a tradiccedilatildeo aquilo que os antigos diziam

lsquoque haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para os mausrsquo (63c5-7) Mas

Soacutecrates natildeo convence aos amigos com a sua esperanccedila de cunho meramente religioso

Haacute pessoas que acreditam que a alma poderia ser destruiacuteda na ocasiatildeo em que se separa

1 Valditara in Fermani Migliori Valditara (org) 2007 p5

10

do corpo Esta crenccedila na aniquilaccedilatildeo da alma deve ser enfrentada com argumentaccedilatildeo

filosoacutefica Seria necessaacuterio um grande esforccedilo de Soacutecrates para mostrar que a alma da

pessoa que morre continua a existir com capacidade e conhecimento (ὡς ἔστι τε ψυχὴ

ἀποθανόντος τοῦ ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) (Cf70a1-b4) Com

esta problemaacutetica se inicia uma seccedilatildeo demonstrativa em que o tema da imortalidade

recebe tratamento filosoacutefico especializado Nesta etapa temos quatro argumentos ou

provas da imortalidade da alma (i) argumento ciacuteclico ou dos opostos (70c-72d) (ii)

argumento da reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento das afinidades (78b-80b) (iv)

uacuteltimo argumento (96a-107b) O objetivo deste trabalho eacute apresentar um estudo de cada

argumento sobre a imortalidade da alma no Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo ndash

de toda a primeira etapa do diaacutelogo e de cada argumento propriamente dito

Natildeo pretendemos fazer uma exposiccedilatildeo e anaacutelise exaustiva de cada argumento

Natildeo raramente cada linha de cada argumento eacute objeto de amplo debate e uma discussatildeo

exaustiva de cada toacutepico levantado vai aleacutem do escopo de nossa pesquisa O nosso

objetivo eacute reavaliar as provas da imortalidade com o fim de observar como cada uma

delas procura se estabelecer como prova da imortalidade da alma Em diaacutelogo com a

tradiccedilatildeo criacutetica esperamos reafirmar posiccedilotildees interpretativas jaacute consagradas mas

tambeacutem sugerir rupturas e novos caminhos de interpretaccedilatildeo sempre que possiacutevel

Sobre a nossa interpretaccedilatildeo do diaacutelogo eacute importante dizer que privilegiamos a

exegese textual e a interpretaccedilatildeo de cada argumento propriamente dito mas

considerando o contexto imediato o contexto mais amplo da obra e a relaccedilatildeo muacutetua

entre os argumentos evitando interpretar cada argumento como se fosse uma unidade

isolada Considerando o contexto amplo do diaacutelogo apresentamos um breve estudo

11

sobre a doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico que eacute um dos saberes tradicionais com os

quais Platatildeo dialoga com frequecircncia no Feacutedon

Teremos o cuidado de dialogar com a tradiccedilatildeo interpretativa cujo esforccedilo para a

compreender o Feacutedon eacute notaacutevel e sua contribuiccedilatildeo para a compreensatildeo do diaacutelogo eacute

inestimaacutevel Mas evitaremos ao maacuteximo transportar projetar e impor ao diaacutelogo

posiccedilotildees filosoacuteficas desenvolvidas posteriormente evitando interpretaccedilotildees anacrocircnicas

Aleacutem disso eacute importante reconhecer que em geral a interpretaccedilatildeo de um

diaacutelogo platocircnico eacute em parte predeterminada e moldada pelo que jaacute ouvimos a respeito

dele Um exemplo disso eacute a tendecircncia de acompanhar a literatura criacutetica em sua

costumeira propagaccedilatildeo da ideia de que o Feacutedon pretende ser uma exposiccedilatildeo e defesa

dos lsquopilares gecircmeosrsquo do Platonismo imortalidade da alma e teoria das Formas A

propagaccedilatildeo dessa ideia tem levado inteacuterpretes a conceber ou pelo menos sugerir a

existecircncia de uma dupla temaacutetica de igual importacircncia no Feacutedon2 Nossa tese diverge

desta tendecircncia reconhecendo que o tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma

individual e que o diaacutelogo natildeo pretende apresentar uma exposiccedilatildeo e defesa da teoria

das Formas como a tradiccedilatildeo interpretativa consagrou mas sim uma sistemaacutetica defesa

da imortalidade da alma Embora lsquoFormasrsquo e outros temas tenham importacircncia no

diaacutelogo do iniacutecio ao fim o Feacutedon estaacute voltado para o problema da imortalidade da alma

Portanto procuramos reler o Feacutedon sem excessiva dependecircncia daquilo que jaacute se

disse a respeito dos argumentos sobre a imortalidade da alma Nem mesmo abraccedilaremos

a ideia de que Platatildeo espera que o leitor entreveja teorias filosoacuteficas complexas em

passagens nas quais o filoacutesofos natildeo apresenta uma exposiccedilatildeo consistente sobre elas

2 Cf Burger 1984 p2 Cf Bluck 1955 p2 Cf Gallop 2002 p97 ldquoA doutrina da imortalidade

eacute logicamente dependente da Teoria das Formasrdquo

12

Tambeacutem evitamos incorrer na tentativa de complementar o que Platatildeo deixou

(deliberadamente ou natildeo) vago e inconcluso no Feacutedon

Aleacutem do estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon esta

tese tambeacutem apresenta uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo uma traduccedilatildeo de toda a

primeira etapa do Feacutedon (57a-70c) e a traduccedilatildeo de cada argumento propriamente dito

Noacutes apresentamos um comentaacuterio sobre as seccedilotildees que circundam cada argumento e

todas as citaccedilotildees do Feacutedon apresentadas na tese inclusive das seccedilotildees que natildeo

traduzimos integralmente satildeo de nossa autoria Nossa traduccedilatildeo seraacute baseada na mais

recente ediccedilatildeo do texto grego a ediccedilatildeo inglesa de E A Duke W F Hicken W S M

Nicoll D B Robinson e J C G Strachan (Oxford Classical Texts 1995)

13

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)

21 Panorama Geral

O diaacutelogo inicia com uma conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates o qual solicita

uma narrativa detalhada sobre a morte de Soacutecrates Ele quer saber minuciosamente tudo

que Soacutecrates conversou com seus amigos e tudo que aconteceu no caacutercere horas antes

de sua execuccedilatildeo (58d) Jaacute se passou algum tempo entre a morte de Soacutecrates e a conversa

entre Feacutedon e Equeacutecrates (57a-b) Feacutedon entatildeo assume o papel de narrador e se dispotildee a

satisfazer o pedido de Equeacutecrates Antes de comeccedilar a extensa narrativa Feacutedon revela

algo de fundamental importacircncia e que geralmente passa despercebido pelos

inteacuterpretes o proacuteprio narrador declara a sua crenccedila particular de que a alma de Soacutecrates

iria para o Hades com uma divina Moira (58e-59a) Soacutecrates faraacute uma afirmaccedilatildeo

semelhante em breve Sobretudo na primeira etapa do diaacutelogo a imortalidade da alma

individual (alma de Soacutecrates) eacute simplesmente assumida pelo narrador e pelo proacuteprio

Soacutecrates a partir de um discurso de cunho religioso

Conforme o relato de Feacutedon antes de beber o veneno Soacutecrates sustenta que o

verdadeiro filoacutesofo encara a morte com naturalidade Os amigos de Soacutecrates querem

saber por que o filoacutesofo estaacute contente em morrer o que lhes parece absurdo O filoacutesofo

entatildeo oferece-lhes uma defesa que pretende ser mais convincente do que aquela

apresentada aos juiacutezes e que visa justificar sua presente atitude diante da morte seu

desejo de morrer (60c-62c)3 Enquanto apresenta sua defesa Soacutecrates desenvolve o

3 Enquanto na Apologia de Soacutecrates o filoacutesofo discursa para a cidade e tenta se defender da

acusaccedilatildeo de corromper a juventude e de introduzir novas divindades na cidade na segunda

14

tema da vida filosoacutefica afirmando que o legiacutetimo filoacutesofo dedica a vida ao exerciacutecio da

filosofia que consiste num exerciacutecio de morrer e de estar morto que antecipa os

benefiacutecios advindos com a morte a saber a liberaccedilatildeo do corpo o rival da alma o qual

oblitera a insaciaacutevel busca do filoacutesofo pela verdade (64a-65a) Vivendo assim o

legiacutetimo filoacutesofo jamais receia a morte pois eacute ela que lhe abre as portas para uma

melhor existecircncia4

Enquanto desenvolve a defesa da atitude do legiacutetimo filoacutesofo frente agrave morte

Soacutecrates simplesmente assume a sobrevivecircncia de sua alma post mortem com base tatildeo

somente na esperanccedila (ἐλπίς) de que em lugar algum a natildeo ser no Hades eacute que o

verdadeiro filoacutesofo alcanccedilaraacute de modo pleno e digno a sabedoria que almeja concluindo

que o filoacutesofo deve crer nisso (οἴεσθαί γε χρή) (68a-b) Dessa forma Soacutecrates alinha sua

crenccedila na sobrevivecircncia da alma post mortem com a crenccedila de Feacutedon no proacutelogo do

diaacutelogo Portanto a imortalidade da alma eacute simplesmente assumida nesta etapa do

diaacutelogo como uma ideia do acircmbito da religiatildeo Platatildeo dialoga com os saberes

tradicionais jaacute estabelecidos A proposta do diaacutelogo desde o iniacutecio se delineia a

discussatildeo sobre a imortalidade da alma deveraacute passar do niacutevel da crenccedila religiosa

baseada na ἐλπίς para um patamar de discussatildeo filosoacutefica

A postura de Soacutecrates imediatamente provoca a reaccedilatildeo de seu amigo Cebes que

embora elogie a fala do filoacutesofo exibe sua insatisfaccedilatildeo no que foi dito concernente agrave

alma Soacutecrates natildeo deu garantia de que a alma ao separar-se do corpo continuaria

existindo em algum lugar Cebes menciona a duacutevida que as pessoas nutrem de que a

morte traria consigo a destruiccedilatildeo da alma a qual desvaneceria tal qual sopro ou fumo na

defesa ele tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que natildeo estaacute convencido de que a morte

eacute o melhor para o filoacutesofo

4 No Feacutedon a morte eacute definida como a separaccedilatildeo da alma e do corpo (64c4-9)

15

ocasiatildeo em que se separa do corpo (69e-70a) A personagem Cebes eacute quem reclama o

tratamento filosoacutefico da temaacutetica da imortalidade da alma e em resposta agrave sua

colocaccedilatildeo eacute que Soacutecrates se dispotildee a mostrar que a alma da pessoa que morre continua

existindo mantendo capacidade e sabedoria (ὡς ἔστι τε ψυχὴ ἀποθανόντος τοῦ

ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) mas adverte que essa empresa natildeo seria

faacutecil (69e-70b) Daacute-se iniacutecio a uma longa etapa argumentativa no diaacutelogo na qual

Soacutecrates apresenta quatro argumentos ou provas da imortalidade da alma no Feacutedon (i)

argumento ciacuteclico (ou argumento dos opostos) (70c-72d) (ii) argumento da

reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento da afinidade (78b-80b) (iv) uacuteltimo argumento

(96a-107b)

22 A alma e o alcance das coisas em si

Antes de tratarmos especificamento do nosso objeto de estudo ndash as provas da

imortalidade da alma ndash vejamos alguns toacutepicos importantes na primeira etapa do

diaacutelogo comeccedilando pela alma e o alcance das coisas em si Enquanto desenvolve o

tema da vida filosoacutefica Soacutecrates considera que haacute coisas como lsquoo justo em si mesmorsquo

(δίκαιον αὐτὸ) (65d4-5) que ele tambeacutem chama de essecircncia (ἡ οὐσία) (65d13) lsquoas

coisas que satildeorsquo (τά ὄντα) (66a3) ou lsquocoisas em si mesmasrsquo (αὐτὰ τὰ πράγματα) (66e1-

2) O filoacutesofo vive agrave caccedila dessas coisas almejando apoderar-se da verdade (ἀλήθειά) e

do conhecimento (φρόνησις) (66a5-6) mas o corpo se impotildee como rival da alma porque

oblitera essa busca do filoacutesofo Em suma essa busca da lsquocoisa em sirsquo envolve o objeto

de conhecimento definido a purificaccedilatildeo filosoacutefica e o instrumento de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Segue uma breve explicaccedilatildeo de cada um deles

16

(i) O objeto de conhecimento satildeo lsquoas coisas em sirsquo Quando Soacutecrates comeccedila a

explicar que o corpo eacute um obstaacuteculo para a alma alcanccedilar a verdade ele diz

que soacute atraveacutes do exerciacutecio da razatildeo eacute que τι τῶν ὄντων lsquoalgo dessas coisasrsquo

se mostram para a alma (65c2-3)5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τά

ὄντα) e logo depois no singular (τὸ ὄν) (65c3 9) Soacutecrates apresenta vaacuterios

exemplos de lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em si mesmorsquo lsquoo belorsquo e lsquoo bomrsquo (65d4-

7) e imediatamente estende a questatildeo a toda classe de coisas desse tipo ldquoEu

estou falando de todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa

eacuterdquo (65d11-65e1)

(ii) A purificaccedilatildeo (κάθαρσις) filosoacutefica eacute o maacuteximo afastamento possiacutevel da

alma do corpo 6 Isto equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (64a) e

eacute necessaacuterio porque o corpo (τὸ σῶμα) eacute obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do

conhecimento (φρόνησις) uma vez que os sentidos natildeo satildeo confiaacuteveis

visatildeo audiccedilatildeo e os demais sentidos do corpo (αἴσθησις) natildeo oferecem

precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) (65a9-65b7)

(iii) A aquisiccedilatildeo do conhecimento ocorre atraveacutes do pensamento sozinho (αὐτῇ

τῇ διανοίᾳ) sem mistura ou sem interaccedilatildeo com os sentidos (65e7 66a1-2) A

5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τῶν ὄντων) e no singular (τοῦ ὄντος) (65c3 9) Conforme

Rowe (1993 p 140) o termo singular τοῦ ὄντος eacute o coletivo equivalente de τῶν ὄντων

6 ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o mais possiacutevel a

alma do corpo e acostumaacute-la sozinha por si mesma concentrando-se e recolhendo-se agrave parte de

cada membro do corpo e vivendo o maacuteximo possiacutevel sozinha por si mesma tanto agora como

no porvir num ato de constante libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de

cadeiasrdquo (67c5-d1)

17

alma deve raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν)

para que possa alcanccedilar as coisas em si mesmas (65c2-9 Cf 65e-66a)

Soacutecrates sugere que eacute possiacutevel utilizar a faculdade cognitiva da alma sem a

interferecircncia do corpo e seus sentidos de modo que a alma funcione com

independecircncia7 Eacute somente quando algum de noacutes se puser a pensar com rigor

e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber cada coisa em si que se

poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Essa apresentaccedilatildeo da busca da alma pelas lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em sirsquo lsquoo belo

em sirsquo lsquoo bom em sirsquo (64e-66a) leva inteacuterpretes a pensar que uma doutrina das Formas

jaacute estaacute presente na primeira etapa do diaacutelogo Eacute largamente aceito que a chamada teoria

das Formas eacute introduzida pela primeira vez no diaacutelogo em 65d4-5 8 Mas essa

compreensatildeo geralmente se baseia no contexto posterior do Feacutedon uma vez que em

65d4-5 ainda natildeo haacute elementos suficientes para sustentar essa conclusatildeo Natildeo haacute duacutevida

que uma teoria das Formas ou o esboccedilo do que seria uma teoria das Formas

desenvolve-se a partir da formulaccedilatildeo que aparece em 65d mas isto natildeo significa que

neste ponto do diaacutelogo e com base nesta incipiente apresentaccedilatildeo de coisas como o justo

7 Cf Chen 1990 p5455 o qual esclarece que vaacuterios lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo (alguns usados

figurativamente como lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo) satildeo utilizados para denotar cogniccedilatildeo intelectual das

coisas em si mesmas reforccedilando a ideia de que a alma pode trabalhar de modo independente

para alcanccedilar as coisas em si γιγνώσκω (65e4) φρονέω (66c5) ἅπτω (65b9 c9) ἐφάπτω

(65d11 67b2) λογίζομαι (65c2 66a1 substantivo λογισμός) διανοέομαι (65e3 66a2

substantivo διάνοια) θεατέον (θεάομαι 66e1) θεωρέω (65e2) καθοράω (66d7)

8 Bostock 1989 p 194 Gallop 2002 p93 Hackfort 1998 p 50 Silverman 2002 p49

18

em si que a alma anseia alcanccedilar jaacute possamos falar de uma complexa teoria metafiacutesica

uma teoria das Formas no Feacutedon9 Eis algumas razotildees para isto

(i) A terminologia eacute imprecisa

(ii) Natildeo haacute indiacutecios suficientes de que lsquocoisas em sirsquo sejam entidades

metafiacutesicas Eacute difiacutecil que Platatildeo jaacute estivesse introduzindo algum termo

teacutecnico nessa altura do diaacutelogo e noacutes natildeo devemos importar qualquer

noccedilatildeo filosoacutefica posterior para tentar entender essa passagem10

(iii) Em 65d4 temos a pergunta φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν

(ldquoafirmamos que existe um justo em si mesmo ou natildeordquo) a qual tem

sido largamente considerada como pergunta-chave para a introduccedilatildeo da

chamada teoria das Formas no diaacutelogo Contudo essa pergunta segue

uma formulaccedilatildeo ordinaacuteria da liacutengua grega Pouco antes disso Soacutecrates jaacute

havia formulado uma pergunta semelhante em relaccedilatildeo agrave morte em 64c2

ἡγούμεθά τι τὸν θάνατον εἶναι (ldquoConsideramos que a morte eacute alguma

coisardquo) Nesta passagem temos apenas um ordinaacuterio modo de expressatildeo

da liacutengua grega sem qualquer alusatildeo agrave existecircncia de entidades

metafiacutesicas De modo algum Soacutecrates estaacute se referindo a uma Forma da

morte mas apenas agrave ordinaacuteria existecircncia do evento morte neste contexto

pessoas morrem logo existe um tipo de coisa que chamamos morte

Neste contexto Soacutecrates estaacute preparando os amigos para admitirem que

morte eacute a separaccedilatildeo da alma de seu corpo (64c4-5) Em 65d4 o filoacutesofo

9 Rowe 1993 p 140-141

10 Rowe 1993 p141

19

repete a formulaccedilatildeo da pergunta mas agora falando das lsquocoisas em sirsquo

Portanto esse tipo de pergunta natildeo eacute necessariamente uma formulaccedilatildeo

teacutecnica para inquirir sobre a existecircncia de Formas metafiacutesicas

(iv) Seria estranho que Platatildeo introduzisse Formas metafiacutesicas sem que

discutisse as suas qualidades como faz no argumento das afinidades

onde Platatildeo qualifica essas lsquocoisas em sirsquo de maneira clara satildeo puras

distintas e superiores aos objetos particulares invisiacuteveis eternas

imortais permanecem sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo existem agrave

parte dos objetos sensiacuteveis e somente a alma sozinha por si mesma pode

alcanccedilar Neste contexto expressotildees como τὸ ὄν (78d4) podem ser pela

primeira vez admitidas como clara referecircncia a certas entidades

metafiacutesicas

(v) Uma abrupta inclusatildeo de uma teoria metafiacutesica neste ponto do diaacutelogo

seria improvaacutevel

(vi) Seria estranho que Platatildeo jaacute estivesse apresentando uma teoria das

Formas na primeira etapa do diaacutelogo e inicie a etapa demonstrativa com

o argumento ciacuteclico onde natildeo temos qualquer referecircncia a lsquoFormasrsquo

23 Transiccedilatildeo para a etapa demonstrativa

Quando Soacutecrates apenas assume a crenccedila de que a sua alma continuaria a existir

no Hades depois da morte e a imortalidade eacute asssumida conforme os padrotildees de uma

tradiccedilatildeo religiosa Cebes coloca em conflito duas tradiccedilotildees diacutespares a respeito da alma

post mortem ndash uma admitia que a alma eacute aniquilada e desvanece como sopro ou fumo

20

por ocasiatildeo da morte enquanto a outra afirma que a alma continua existindo mantendo

capacidade e sabedoria (69e-70b) Este conflito ou noacute dramaacutetico na narrativa deve ser

solucionado por Soacutecrates a partir de uma longa investigaccedilatildeo que se desenrola na etapa

demonstrativa do diaacutelogo na qual Soacutecrates toma posiccedilatildeo e ataca vigorosamente a ideia

de que a alma pode ser destruiacuteda quando se separa do corpo Portanto esse conflito que

Platatildeo coloca bem na etapa de transiccedilatildeo entre o primeiro estaacutegio do diaacutelogo e a etapa

demonstrativa eacute de suma importacircncia no Feacutedon tudo o que foi dito antes prepara o

leitor para a apresentaccedilatildeo desse conflito e tudo que seraacute dito posteriormente propotildee a

soluccedilatildeo desse conflito (Cf 69e-70c)

Este ponto de tensatildeo do diaacutelogo eacute agravado por aquilo que Sedley chama de

espetaacuteculo paradoxal no Feacutedon Soacutecrates tenta persuadir seus amigos pitagoacutericos sobre

a verdade de sua proacutepria doutrina11 Sedley afirma que Cebes e Siacutemias satildeo pitagoacutericos e

que a doutrina da sobrevivecircncia da alma depois da morte eacute uma inalienaacutevel parte do

pensamento pitagoacuterico12 Antes de avaliarmos os argumentos sobre a imortalidade da

alma no Feacutedon conveacutem apresentar algumas evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no

Feacutedon e conhecer melhor os amigos de Soacutecrates que estatildeo extremamente interessados

em confrontar essa doutrina popular segundo a qual a alma eacute passiacutevel de aniquilaccedilatildeo na

ocasiatildeo em que se separa da morte

24 Evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

241 Temas pitagoacutericos presentes no diaacutelogo

11 Sedley 1995 p11

12 Sedley 1995 p12

21

Ao final da antiguidade havia uma visatildeo generalizada de que Orfeu e Pitaacutegoras

tinham ensinado a mesma doutrina teoloacutegica e que Pitaacutegoras havia aprendido de Orfeu

discursos e misteacuterios Os antigos acreditavam que Pitaacutegoras seria um devoto de Orfeu e

do mestre havia recebido suas doutrinas esoteacutericas A associaccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo passa a ser tatildeo comum que foi cunhada a expressatildeo oacuterfico-pitagoacuterico para

fazer referecircncia a praacuteticas cuacutelticas teorias da alma e ideias escatoloacutegicas compartilhadas

por orfismo e pitagorismo13

Pesquisadores recentes e contemporacircneos tendem a associar pitagoacutericos e oacuterficos

e a transmigraccedilatildeo da alma como principal ponto de encontro entre os dois grupos

Alguns propotildeem que Pitaacutegoras teria sido um tipo de mestre de religiatildeo e miacutestico mais

do que um filoacutesofo Essa tese foi defendida por Rohde para quem os primeiros

pitagoacutericos adotaram teorias de natureza puramente religiosa as quais se aproximavam

das religiotildees de misteacuterio como o Orfismo Rohde apresenta vaacuterios temas

compartilhados por oacuterficos e pitagoacutericos

(i) a crenccedila na necessidade de a alma expiar uma culpa atraveacutes de

transmigraccedilotildees e puniccedilotildees infernais

(ii) a doutrina da alma prisioneira de um corpo

(iii) a nova encarnaccedilatildeo seria condicionada pela vida passada

(iv) a vida em comunidades isoladas

(v) praacutetica do ascetismo iniciaccedilotildees e purificaccedilotildees como meio de salvaccedilatildeo 14

13 Bernabeacute 2014 p141

14 Cf Rohde 1950 p375

22

Pesquisadores contemporacircneos como Kingsley tambeacutem acreditam que os

primeiros pitagoacutericos estavam ligados agrave religiatildeo

(i) eles mantinham profundas afinidades com oraacuteculos e revelaccedilotildees

(ii) a casa de Pitaacutegoras tinha a reputaccedilatildeo de casa de misteacuterios

(iii) eles seguiam preceitos rituais como dogmas a serem obedecidos

(iv) pitagoacutericos como Empeacutedocles apresentaram seu ensino como uma forma

de revelaccedilatildeo divina15

Pesquisas mais recentes tendem a apontar temas compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos na antiguidade mas tambeacutem ressaltam as suas distinccedilotildees Bernabeacute acredita

que Pitaacutegoras provavelmente tomou componentes de sua doutrina da literatura teoloacutegica

oacuterfica poreacutem eacute bem mais comedido em sua apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e

oacuterficos na antiguidade16 Ele apresenta vaacuterios temas em que oacuterficos e pitagoacutericos

coincidiam o quais resumimos aqui

(i) o tema da vida oacuterfica e da vida pitagoacuterica

(ii) o papel de destaque da deusa Memoacuteria na escatologia oacuterfica e a

importacircncia que pitagoacutericos atribuem agrave deusa Memoacuteria

(iii) a utilizaccedilatildeo de frases ou senhas difiacuteceis e que tem um profundo sentido

para os iniciados

15 Kingsley 1995 p 319

16 Bernabeacute 2014 p 143

23

(iv) a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma17

Por outro lado Bernabeacute tambeacutem ressalta as diferenccedilas apontando vaacuterios temas

da tradiccedilatildeo oacuterfica que estatildeo ausentes no pitagorismo como

(i) pessimismo em relaccedilatildeo ao corpo

(ii) a culpa que mancha alma

(iii) a busca por uma salvaccedilatildeo da alma individual alheia ao mundo poliacutetico

(iv) a relaccedilatildeo com o deus Dioniso e com os misteacuterios baacutequicos

(v) a purificaccedilatildeo por meios religiosos18

Zhmud ainda eacute mais contundente na distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

tentando reconstruir a figura mais filosoacutefica do Pitaacutegoras histoacuterico Conforme Zhmud a

primeira referecircncia ao personagem histoacuterico Pitaacutegoras eacute feita por Xenoacutefanes num

contexto em que satiriza a doutrina da metempsicose tal como Pitaacutegoras ensinava a

qual incluiacutea a possibilidade de a alma renascer em corpos de animais Portanto esse

testemunho conecta o nome de Pitaacutegoras com a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma

numa eacutepoca anterior agrave eacutepoca de Platatildeo19 Zhmud afirma que os pitagoacutericos se

apropriaram da doutrina oacuterfica da transmigraccedilatildeo da alma e a transformaram mas

acentua que a doutrina puramente religiosa natildeo teve consideraacutevel influecircncia na

construccedilatildeo pitagoacuterica de noccedilotildees filosoacuteficas da alma20 Ele tenta separar ao maacuteximo a

17 Bernabeacute 2014 p 144-146

18 Bernabeacute 2014 p147

19 Zhmud 2012 p30-31

20 Zhmud 2012 p388

24

figura de Pitaacutegoras das religiotildees de misteacuterios enquanto buscar recuperar uma

interpretaccedilatildeo mais ldquofilosoacuteficardquo de Pitaacutegoras Segundo ele esses satildeo os pontos decisivos

para uma distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

(i) os oacuterficos tem o seu proacuteprio culto os pitagoacutericos natildeo

(ii) os pitagoacutericos adotam a doutrina oacuterfica da metempsicose mas a

divorciaram da escatologia e antropogonia oacuterfica deixando de ser uma

doutrina religiosa de salvaccedilatildeo

(iii) o motivo da culpa ancestral natildeo estaacute presente no antigo pitagorismo21

(iv) os pitagoacutericos natildeo veem a transmigraccedilatildeo da alma como puniccedilatildeo por

culpas preacutevias mas como sendo natural e apropriado que as almas se

alojem em corpos de humanos e de animais

(v) a transmigraccedilatildeo cumpre um ciclo de necessidade sendo bem diferente da

ideia oacuterfica de um ciclo de dores do qual a alma do iniciado anseia

escapar

(vi) aleacutem disso natildeo estaacute claro que para os pitagoacutericos a alma se libertaria do

ciclo de renascimentos e retornariam para os deuses como era o anseio

dos oacuterficos sendo possiacutevel que a versatildeo pitagoacuterica da metempsicose

implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da alma22

21 Em outras palavras os pitagoacutericos natildeo sustentam a ideia oacuterfica da culpa e impureza ancestral

fundamentada pelo mito oacuterfico de Dioniso e os Titatildes o qual servia de base para explicar a razatildeo

pela qual as almas tinham de transmigrar e seguir um caminho de salvaccedilatildeo por meio da

purificaccedilatildeo da alma

22 Zhmud 2012 p 228-230

25

Ao mesmo tempo que novas pesquisas ressaltam a distinccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo elas ratificam pontos fundamentais de contato entre eles como a doutrina

da transmigraccedilatildeo da alma embora cada ciacuterculo tivesse a sua proacutepria versatildeo e a

preocupaccedilatildeo com a purificaccedilatildeo embora os meios e objetivos de purificaccedilatildeo pudessem

ser diferentes 23 Satildeo justamente esses temas baacutesicos compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos que aparecem no Feacutedon onde temos uma mistura de versotildees oacuterficas e

pitagoacutericas desses temas comuns

Vejamos algumas evidecircncias para um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

242 Cenaacuterio

A conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates acontece em Fliunte uma pequena cidade

do Peloponeso centro da filosofia pitagoacuterica onde viveram vaacuterios dos uacuteltimos

pitagoacutericos24 Os historiadores dizem que com a perseguiccedilatildeo aos pitagoacutericos por volta

de 450 os lugares onde os pitagoacutericos se reuniam foram incendiados adeptos do ciacuterculo

pitagoacuterico foram mortos no nordeste da Itaacutelia e logo novos centros do pitagorismo

surgiram na Greacutecia central especialmente em Tebas e Fliunte 25 Natildeo sabemos ao certo

se o cenaacuterio teve alguma relevacircncia histoacuterica para Platatildeo

23 Natildeo haacute consenso sobre quem foram os primeiros a aderir agrave doutrina da metempsicose se

oacuterficos ou pitagoacutericos Ao que parece nem mesmo os antigos estavam seguros se os oacuterficos

haviam tomado suas doutrinas de Pitaacutegoras como sustentava Heroacutedoto ou se os pitagoacutericos dos

oacuterficos como propunham Jacircmblico e os neoplatocircnicos (Cf Bernabeacute 2004 p137)

24 Gallop p 2002 p74 Hackforth 1998 p29

25 Zhmud 2012 p107

26

243 Narrador

A histoacuteria eacute narrada por Feacutedon a Equeacutecrates O diaacutelogo inicia com a uma

enfaacutetica apresentaccedilatildeo do narrador Feacutedon ldquo Feacutedon vocecirc mesmo (αὐτός ὦ Φαίδων)

estava presente no dia em que Soacutecrates bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por

outra pessoardquo ldquoEu mesmo estava presente Equeacutecratesrdquo (αὐτός ὦ Ἐχέκρατες) (57a1

4) A figura histoacuterica parece ter sido um escravo que ao libertar-se aderiu ao ciacuterculo

socraacutetico e posteriormente fundou a sua proacutepria escola filosoacutefica26

Feacutedon eacute um disciacutepulo de Soacutecrates que natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo direta com o

pitagorismo Ele adere completamente agrave posiccedilatildeo de Soacutecrates de que a alma do filoacutesofo

desceraacute ao Hades ao contraacuterio dos pitagoacutericos que apresentam objeccedilotildees a essa crenccedila

(Cf 58e-59a) Apesar das suas raacutepidas intervenccedilotildees ao longo do diaacutelogo Feacutedon figura

como um aliado uacutetil para Soacutecrates na refutaccedilatildeo de Simmias e Cebes (89b-90d)

244 Testemunhas da morte de Soacutecrates

Feacutedon apresenta os amigos que estavam presente no dia da morte de Soacutecrates

Os atenienses satildeo Apolodoro Criacuteton Critoacutebulo com seu pai Hermoacutegenes Epiacutegenes

Eacutesquines Antiacutestenes Ctesipo Menexeno e mais alguns Platatildeo estava doente diz

Feacutedon (59b) Os estrangeiros eram Feacutedon Siacutemias Cebes Fedondes Euclides e

Teacuterpsion Estavam ausentes Aristipo e Cleocircmbroto (59c) Xenofonte reconhece a

distinccedilatildeo desse grupo ao dizer que Criacuteton Hermoacutegenes Siacutemias Cebes Fedondes e

outros estavam associados com Soacutecrates natildeo com o fim de se tornarem demagogos ou

26 Dorter 1982 p 9 10

27

para vencer demandas judiciais mas para se tornarem homens bons e nobres capazes

de prestar um bom serviccedilo agrave famiacutelia parentes amigos e concidadatildeos27

Entre essas personalidades estatildeo pelos menos trecircs pitagoacutericos Filolau de

Crotona e seus disciacutepulos Siacutemias e Cebes de Tebas os principais interlocutores de

Soacutecrates no diaacutelogo Embora Filolau seja apenas mencionado no diaacutelogo ele requer

mais atenccedilatildeo por causa da sua relaccedilatildeo com os principais interlocutores de Soacutecrates no

diaacutelogo

245 Filolau

O texto crucial para qualquer reconstruccedilatildeo da vida de Filolau eacute a passagem do

Feacutedon 61d a qual sugere que Filolau passou um tempo em Tebas onde ensinou a

Siacutemias e Cebes em algum momento anterior agrave morte de Soacutecrates em 39928 Os

testemunhos antigos recolhidos por Huffman sobre a vida de Filolau relatam

basicamente o seguinte

(i) Filolau foi um mestre pitagoacuterico de renome o qual teria nascido em

algum momento antes de 440 e poderia inclusive ter sido contemporacircneo

de Soacutecrates

(ii) Testemunhos divergem sobre a sua origem Crotona ou Tarento

27 Memoraacuteveis 1248 31117 312

28 Hufmann 1993 p1

28

(iii) Filolau e um amigo tiveram de deixar a Itaacutelia para fugir de um atentado ndash

puseram fogo no lugar onde os pitagoacutericos se reuniam29

(iv) Os antigos costumavam associar Filolau e Platatildeo 30

Apesar do problema da confiabilidade dos testemunhos antigos parece natildeo

haver duacutevida de que o Filolau a quem Platatildeo se refere no Feacutedon era realmente o famoso

mestre pitagoacuterico conhecido agrave eacutepoca de Platatildeo o qual teria nascido na estimativa de

Ruffman por volta de 470 31 Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve

vaacuterios pupilos dentre os quais Siacutemias e Cebes como sugere o Feacutedon32 Huffman

acredita que depois de Pitaacutegoras existem trecircs proeminentes nomes no pitagorismo

Hipaso (c 530-450) Filolau (c 470-385) e Arquitas (430-350) 33

246 Principais Interlocutores de Soacutecrates ndash Cebes e Siacutemias

Os principais interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon natildeo satildeo atenienses mas

tebanos (59c) Como diz Sedley eles satildeo filoacutesofos hiacutebridos disciacutepulos de Soacutecrates e

Filolau (61d)34 A relaccedilatildeo entre Filolau reconhecido mestre pitagoacuterico e Siacutemias e

Cebes eacute forte indiacutecio de que os amigos de Soacutecrates tambeacutem satildeo adeptos do pitagorismo

29 Hufmann 1993 p3-4 6-7

30 Hufmann 1993 p3-4 6-7

31 Hufmann 1993 p6

32 Zhmud 2012 p128

33 Zhmud 2012 p8

34 Sedley 1995 p13

29

Contra esta ideia Rowe afirma que a simples associaccedilatildeo com Filolau natildeo torna Siacutemias e

Cebes pitagoacutericos nem haacute registros fora do Feacutedon que testemunhem que eles satildeo

pitagoacutericos35 Mas eacute difiacutecil negar que Soacutecrates sugere uma relaccedilatildeo menor do que a de

mestre-disciacutepulo quando fala do processo de aprendizagem ao qual seus amigos se

submeteram quando estiveram aos peacutes de Filolau em Tebas Como explica Zhmud

Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve vaacuterios pupilos dentre os

quais Siacutemias e Cebes36

Siacutemias e Cebes tambeacutem satildeo fieacuteis membros do ciacuterculo socraacutetico eles satildeo

mencionados no Criacuteton (45a-b) como estrangeiros dispostos a coletar fundos para

subornar o guarda e comprar a fuga de Soacutecrates da prisatildeo

No Feacutedon Cebes eacute certamente o principal interlocutor de Soacutecrates

(i) Tem um gecircnio agradaacutevel ele ri em pelo menos trecircs ocasiotildees no diaacutelogo

(62a 77e 103b) Sua postura ceacutetica diante da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates

eacute fundamental para o desenvolvimento do diaacutelogo (81d-82b 102b-107a)

(ii) Ele eacute apresentado como algueacutem difiacutecil de convencer pelos argumentos

(63a)

(iii) Eacute um interlocutor capaz e interveacutem com frequecircncia no diaacutelogo pede que

Soacutecrates explique o que deveria responder a Eveno o qual deseja saber

por que Soacutecrates se dedica agrave composiccedilatildeo de poemas na cadeia (60d) ele

confronta a tese de que os filoacutesofos desejam morrer (63a-d) e confronta a

crenccedila de Soacutecrates na descida da alma ao Hades o que daacute iniacutecio agrave etapa

35 Rowe 1993 p7 36 Zhmud 2012 p128

30

demonstrativa (69e-70a) suas objeccedilotildees datildeo iniacutecio agrave etapa demonstrativa

(70a) e ao uacuteltimo argumento (95b-e) praticamente introduz o segundo

argumento no Feacutedon (72e-73b)

Siacutemias eacute mencionado no Fedro (242b) como algueacutem que ama os discursos No

Feacutedon ele eacute apresentado como um jovem bem interessado em filosofia (89a4) e o

proacuteprio Soacutecrates o reconhece como interlocutor inteligente (86d) Ele tem vaacuterias

participaccedilotildees importante no diaacutelogo

(i) Apresenta uma interessante teoria da alma-harmonia (61d7 86d2)

(ii) Apresenta objeccedilotildees em pontos-chave do diaacutelogo mas em geral tende a

concordar e reforccedilar o discurso de Soacutecrates ou o de Cebes (Cf77a-b)

(iii) Siacutemias ri em uma ocasiatildeo quando dialoga com Soacutecrates (64a)

(iv) Vaacuterias vezes o diaacutelogo ocorre entre ele e Soacutecrates (63c-69e 73b-77b

92b-95a)

(v) Uma das participaccedilotildees mais polecircmicas de Siacutemias ocorre depois da

apresentaccedilatildeo da conclusatildeo do uacuteltimo argumento enquanto Cebes natildeo

tem objeccedilotildees e nem razotildees para desconfiar do argumento de Soacutecrates

Siacutemias diz que natildeo tem nenhuma objeccedilatildeo ao argumento contudo por

causa da grandeza do assunto da debilidade humana ele se vecirc obrigado a

cultivar em seu iacutentimo alguma desconfianccedila (107a-107b)

31

247 Equeacutecrates

Equeacutecrates eacute cidadatildeo de Fliunte (57a) e ceacutelebre filoacutesofo pitagoacuterico Feacutedon narra

o diaacutelogo para um pitagoacuterico Equeacutecrates tem algumas participaccedilotildees importantes no

diaacutelogo

(i) No proacutelogo ele se mostra muito interessado em saber com detalhes o que

aconteceu com Soacutecrates na prisatildeo e requer uma explicaccedilatildeo com a

maacutexima exatidatildeo dos fatos ocorridos (58c) Ele quer saber tudo que se

passou com Soacutecrates na cadeia (57a-b 58c) inclusive quais amigos

estavam presentes (58c 59b)

(ii) Ele interrompe a narraccedilatildeo de Feacutedon em dois pontos importantes do

diaacutelogo (88c-89a 102a4-10)

(iii) Eacute uma personagem importante porque todo o diaacutelogo eacute narrado para ele

25 Conclusatildeo

Portanto tudo indica que as personagens principais do diaacutelogo estatildeo pelo menos

envolvidas com pitagoacutericos

32

3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)

31 Antigo Relato

A etapa demonstrativa oferece uma soluccedilatildeo para o problema apresentado no

estaacutegio de transiccedilatildeo do diaacutelogo certa ideia de que a alma poderia ser dispersa e

destruiacuteda na hora da morte (69e-70b) Em resposta agrave objeccedilatildeo de Cebes Soacutecrates se

propotildee a examinar o seguinte problema ldquo() se de algum modo as almas das pessoas

que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Aparentemente Soacutecrates considera que

se as almas dos que morrem estatildeo no Hades seria falsa a afirmaccedilatildeo de que as almas

podem ser destruiacutedas bem na hora em que a alma se separa do corpo Soacutecrates logo

introduz no diaacutelogo um antigo relato segundo o qual as almas passam por um ciclo de

transmigraccedilotildees

ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual as

almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute vindo

a ser dos mortosrdquo (70c5-8)

Esse antigo relato eacute apresentado em tom solene Soacutecrates evoca a autoridade da

lsquoantiga tradiccedilatildeorsquo (παλαιὸς τις λόγος) Platatildeo ressalta o tom solene da doutrina bem

como a forccedila peso e autoridade da tradiccedilatildeo com a qual estaacute lidando O conteacuteudo do

relato eacute basicamente a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma compartilhada especialmente

por oacuterficos e pitagoacutericos na antiguidade

33

Portanto Platatildeo estaacute em diaacutelogo com a crenccedila sustentada especialmente por

seitas de misteacuterios e natildeo pela religiatildeo tradicional certamente uma doutrina

compartilhada por oacuterficos e pitagoacutericos37 Aleacutem de um contexto pitagoacuterico haacute vaacuterias

alusotildees a crenccedilas sustentadas por religiotildees de misteacuterio como o Orfismo no Feacutedon Por

exemplo em 62b Soacutecrates fala do lsquoconteuacutedo que se encontra nos textos secretosrsquo e em

69c fala lsquodos que instituiacuteram os ritos iniciaacuteticosrsquo A proacutepria crenccedila na descida ao Hades

depois que a alma se separa do corpo eacute tipicamente oacuterfica (e pitagoacuterica) O que temos

no relato antigo e no argumento ciacuteclico ndash a ideia de transmigraccedilatildeo juntamente com a

descida ao Hades ndash eacute algo diferente da concepccedilatildeo homeacuterica e da religiatildeo grega

tradicional Esse dado diverge do ideaacuterio religioso homeacuterico e tradicional e identifica o

antigo relato e o contexto em que Platatildeo constroi o argumento ciacuteclico como sendo

tipicamente oacuterfico e pitagoacuterico 38

O Orfismo se estabelece como uma religiatildeo de misteacuterio cujo conteuacutedo

doutrinaacuterio e rituais sagrados eram mantidos em segredo Era uma religiatildeo livre

independente da estrutura social e ligada agraves camadas populares Vejamos algumas

crenccedilas oacuterficas e evidecircncias para um contexto oacuterfico no Feacutedon

32 Orfismo e o Feacutedon

321 Hades

37 Cf Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p91-92

38 Cf Bernabeacute 2011 p163

34

A mitologia do Hades estaacute no centro da crenccedila oacuterfica e ocupa lugar de relevacircncia

no contexto amplo do Feacutedon No Orfismo o Hades eacute tanto o senhor da morada do

mundo inferior como tambeacutem por extensatildeo o nome desse mundo do aleacutem 39 Sendo o

Orfismo uma religiatildeo que sustenta a transmigraccedilatildeo da alma e as recompensas e castigos

poacutestumos a descida ao Hades eacute um tema fundamental na tradiccedilatildeo oacuterfica40

Entre os documentos oacuterficos as lacircminas de ouro (as quais eram enterradas com

os mortos) satildeo uma das mais importantes fontes para o estudo da crenccedila oacuterfica sobre o

Hades A partir delas eacute possiacutevel reconstruir em linhas gerais a topografia infernal oacuterfica

o Hades oacuterfico eacute um lugar subterracircneo para onde se conduzem as almas e eacute tambeacutem a

mansatildeo de Hades Essa topografia infernal estaacute relacionada diretamente com a crenccedila

oacuterfica em puniccedilotildees e julgamento apoacutes a morte Os impuros seriam punidos no Hades de

acordo com a sua maacute conduta sobre a Terra Posteriormente eles retornariam agrave vida na

Terra como mais um tipo de puniccedilatildeo e tambeacutem como periacuteodo de provaccedilatildeo uma nova

oportunidade para aderir ao estilo de vida oacuterfica e assim purificar-se e preparar-se para

a descida ao Hades Platatildeo estaacute bem familiarizado com o tema dos castigos infernais os

quais aparecem em vaacuterias obras aleacutem do Feacutedon Na Repuacuteblica 330d eacute dito que

segundo os mitos sobre o Hades quem comete injusticcedila aqui deve pagar laacute a pena Nas

Leis 870d os que se ocupam dos misteacuterios dizem que no Hades haacute um castigo para os

delitos e que eacute obrigatoacuterio voltar ao mundo dos vivos para a pena exigida

Os iniciados aguardavam uma vida bem-aventurada no Hades e a libertaccedilatildeo final

do ciclo de transmigraccedilotildees vivendo o estilo de vida oacuterfico na esperanccedila de descer ao

39 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p509

40 Guthrie 1970 p165

35

Hades e desfrutar da recompensa41 Como veremos adiante Soacutecrates possui uma

expectativa semelhante agrave dos oacuterficos para ele seria natural que o filoacutesofo que dedica a

vida agrave filosofia deseje a morte uma vez que o legiacutetimo filoacutesofo deve esperar a definitiva

bem-aventuranccedila no Hades

Esse grupo de lacircminas de ouro testemunham inclusive instruccedilotildees aos iniciados

sobre como proceder corretamente na morada do Hades42 Elas apresentam orientaccedilotildees

como a necessidade de seguir pela direita e de beber da aacutegua da fonte correta a qual

permitiria que o iniciado permanecesse no Hades e desfrutasse da bem-aventuranccedila

definitiva em vez de voltar ao ciclo de transmigraccedilotildees43 As lacircminas tambeacutem trazem

foacutermulas ou senhas a serem pronunciadas pelos iniciados quando questionados pelos

guardiatildees as quais permitiam que o morto fosse reconhecido como puro e iniciado 44 A

Lacircmina de Farsalo por exemplo afirma que os guardiatildees que laacute estatildeo perguntaratildeo ao

iniciado por que motivo ele veio Outras perguntas comuns satildeo ldquoMas quem eacute vocecirc e de

onde eacuterdquo ou ldquoO que busca nas trevas do Hades sombriordquo 45 A resposta mais frequente

a essas perguntas eacute ldquoSou filho da Terra e do Ceacuteu estreladordquo 46

Aleacutem de instruccedilotildees aos iniciados tambeacutem eacute possiacutevel encontrar nessas lacircminas

de ouro a antecipaccedilatildeo do destino final no Hades Nas lacircminas de Turi e Pelina temos

inclusive o que espera o iniciado no Hades antecipando-lhes basicamente a bem-

41 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500 Guthrie 1970 p157-158

42 Albinus 2000 p147

43 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500-501

44 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Cf Gazzinneli 2007 p17

45 Gazzinelli 2007 p 75-76

46 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Gazzinelli 2007 p 75-76

36

aventuranccedila a ser desfrutada pela alma do iniciado a saber o abandono definitivo da

esfera humana e o acesso ao reino dos bem-aventurados47

Esse breve apanhado revela um pouco da centralidade e importacircncia do Hades

na crenccedila oacuterfica O leitor do Feacutedon pode perceber que natildeo apenas o Hades ocupa lugar

de importacircncia ao longo de todo o diaacutelogo mas que o tipo de expectativa que Soacutecrates

nutre pelo Hades em muito se assemelha agraves expectativas dos iniciados oacuterficos A crenccedila

no Hades estaacute presente em todo o diaacutelogo inclusive na conclusatildeo do argumento ciacuteclico

as almas dos que morrem vatildeo para o Hades (cf71e72a 72d)

Portanto no Feacutedon a personagem Soacutecrates eacute portadora de uma concepccedilatildeo do

destino humano que aponta para aleacutem do mundo visiacutevel e para aleacutem do corpo mortal

para uma forma superior de vida no Hades concepccedilatildeo compartilhada pelos oacuterficos e

pitagoacutericos48

Eacute possiacutevel identificar a existecircncia de pontos de encontro entre o Hades oacuterfico e o

Hades apresentado no Feacutedon assim como tambeacutem existe forte semelhanccedila entre a

expectativa oacuterfica da descida ao Hades e a expectativa de Soacutecrates da descida ao Hades

Eacute plausiacutevel que Platatildeo esteja realmente se apropriando e se utilizando de conceitos

oacuterficos de retribuiccedilotildees no Hades aos iniciados como conveacutem agrave sua filosofia O iniciado

oacuterfico enxerga a morte como algo bom e se prepara a vida inteira para essa ocasiatildeo que

se traduz na oportunidade de alcanccedilar a redenccedilatildeo final a separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo a libertaccedilatildeo do ciclo de transmigraccedilotildees Soacutecrates tambeacutem vecirc a morte sob uma

oacutetica natildeo muito diferente De acordo com a utilizaccedilatildeo platocircnica da ideia oacuterfica da

descida ao Hades a morte e a chegada ao Hades representam a redenccedilatildeo final do

47 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p518

48 Kahn 2007 p18 19

37

legiacutetimo filoacutesofo Eacute a ocasiatildeo em que ele livre dos impedimentos do corpo teraacute livre

acesso agrave verdade que busca durante toda a vida (Cf 68a-b) A realidade do Hades como

destino das almas continua presente no final do uacuteltimo argumento quando Soacutecrates

conclui natildeo apenas que a alma eacute imortal e impereciacutevel mas tambeacutem que ldquoas nossas

almas existiratildeo no Hadesrdquo (106e-107a)

322 Purificaccedilatildeo mito de Dioniso e praacuteticas oacuterficas

As crenccedilas oacuterficas se fundamentam sobre o mito de Dioniso e os Titatildes o mito

fundante da antropogonia oacuterfica Apesar de alguns pesquisadores questionarem a

antiguidade desse mito uma soacutelida tradiccedilatildeo de estudiosos do Orfismo vem sustentando

que se trata realmente de um mito fundamental na articulaccedilatildeo das crenccedilas da religiatildeo

oacuterfica Segundo uma soacutelida e difusa tradiccedilatildeo de um relacionamento incestuoso entre

Zeus e a filha Perseacutefone se origina o deus Dioniso o qual eacute destinado a se tornar o novo

rei dos deuses O nascimento suscita o ressentimento de Hera esposa de Zeus a qual

instiga os Titatildes contra Dioniso Os Titatildes enganam Dioniso com brinquedos com o

objetivo de o atrair Assim eles o matam desmembram em sete partes cozinham e o

devoram Contudo Atena descobre o fito em tempo de resgatar o coraccedilatildeo ainda

batendo o qual a deusa leva ateacute Zeus num cesto Indignado Zeus fulmina os Titatildes

ressuscita um novo Dioniso a partir de um coraccedilatildeo sobrevivente e cria a humanidade49

Sendo assim o homem possui um elemento mau impuro como heranccedila dos Titatildes e um

49 Albinus 2000 p112

38

elemento bom (a alma uma centelha do divino) como heranccedila de Dioniso Esses dois

elementos constituem a dual natureza humana representada pelo corpo e alma50

As praacuteticas oacuterficas buscam libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do

ciclo de reencarnaccedilotildees fazendo com que a alma retorne completamente agrave sua origem

dionisiacuteaca (a alma divina) Por causa da natureza titacircnica a alma estaacute obrigada a expiar

a culpa presa ao corpo ao longo de vaacuterias vidas Sendo de divina e imortal a alma

transmigra a outro corpo quando aquele em que estaacute alojada morre Para libertar-se da

maacutecula titacircnica o fiel deve seguir um estilo de vida governado por uma seacuterie de rituais e

observacircncias ateacute que cumpridas as condiccedilotildees a alma divina e imortal se liberta do ciclo

de transmigraccedilotildees e se reintegra a sua comunidade com os deuses Enquanto natildeo

cumpre as condiccedilotildees necessaacuterias prossegue o ciclo de males e transmigraccedilotildees a que a

alma impura estaacute sujeita51

323 O corpo como tumba da alma puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo

A partir do mito de Dioniso Zagreu se desenvolveu a ideia de que o corpo eacute vil

enquanto de natureza titacircnica e a alma divina e imortal enquanto de natureza

dionisiacuteaca Drsquoanna explica que desse mito procede a doutrina oacuterfica que concebe o

corpo como uma tumba ou sepulcro da alma bem como a crenccedila soterioloacutegica num tipo

de lsquoredenccedilatildeo finalrsquo do homem que consistiria na libertaccedilatildeo completa da alma de seu

caacutercere corporal52 Para os oacuterficos o corpo oblitera a libertaccedilatildeo da natureza dionisiacuteaca

50 Rohde 1950 p 341-342

51 Cf Drsquoanna 2010 p 77-78 Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p591-592

52 Drsquoanna 2010 p 98

39

do ser humano razatildeo pela qual eles parecem ter abraccedilado uma doutrina de que a alma eacute

um tipo de prisatildeo ou tumba do corpo53 Essa ideia de que o corpo eacute uma prisatildeo da alma

eacute identificada como um ensino oacuterfico no Craacutetilo 400c e tambeacutem aparece no Goacutergias

493a onde se diz que o corpo eacute para noacutes uma sepultura

De acordo com a doutrina oacuterfica o trabalho do ser humano eacute libertar-se das

cadeias desse corpo mortal no qual a alma estaacute atada como um prisioneiro numa cela A

morte liberta a alma apenas por um curto periacuteodo de tempo pois a alma deve voltar a

sofrer o aprisionamento em outro corpo mortal continuando a sua jornada submetendo-

se a um lsquociacuterculo de necessidadersquo Contudo existe um meio pelo qual o ser humano pode

livrar-se desse perpeacutetuo ciclo de renascimentos O ser humano precisa da revelaccedilatildeo dos

misteacuterios de Orfeu para encontrar um caminho de salvaccedilatildeo o fiel deve seguir as

ordenanccedilas previstas pela religiatildeo Os fieacuteis natildeo devem seguir apenas os sacros misteacuterios

da parte de Orfeu mas uma completa vida oacuterfica deve ser observada renunciando tudo

que relaciona a pessoa agrave mortalidade e agrave vida corporal Tambeacutem o Hades exerce um

papel nesse processo de purificaccedilatildeo da natureza mortal ali os impuros sofrem puniccedilatildeo e

satildeo purgados como um tipo de justiccedila compensatoacuteria A transmigraccedilatildeo tambeacutem eacute

fundamental para a purificaccedilatildeo uma vez que os atos de uma vida passada satildeo

recompensados uma proacutexima vida Tudo isso capacita o fiel a obter o favor e

purificaccedilatildeo da divindade 54

As praacuteticas oacuterficas para a purificaccedilatildeo eram transmitidas pelos orfeotelestaiacute

(ὀρφεοτελεσταί) sacerdotes que viviam um estilo de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός) Orfeu

53 Cf Craacutetilo 400c onde Platatildeo menciona semelhante doutrina antiga e a atribui aos oacuterficos

54 Rohde 1950 p342-344

40

era crido na antiguidade por ter introduzido os ritos (ὄργια) de iniciaccedilatildeo (τελετή) na

Greacutecia O objetivo dessa praacutetica cultual era esoteacuterico e soterioloacutegico visando a salvaccedilatildeo

escatoloacutegica55 Havia uma lista austera de normas de conduta e observacircncias como

ausecircncia dos ciacuterculos sociais ritos fuacutenebres ascetismo e abstinecircncia rituais para

purificaccedilatildeo da culpa e expiaccedilatildeo abstinecircncia de carne proibiccedilatildeo de matar animais

associada a uma dieta estritamente vegetariana56 Essa vida austera com todo rigor

asceacutetico se justifica porque para o oacuterfico o corpo com seus apetites e paixotildees eacute a fonte

de toda sorte de mau a natureza titacircnica que aprisiona a alma Sendo assim o estilo de

vida oacuterfico visa libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo Nesse processo de

purificaccedilatildeo o iniciado exalta e libera cada vez mais a sua natureza dionisiacuteaca (a alma

divina e imortal) de sua prisatildeo corporal ateacute que finalmente alcance uma condiccedilatildeo

suficiente para a definitiva descida ao Hades quando ele finalmente se juntaria aos

deuses imortais Cada reencarnaccedilatildeo traz uma oportunidade para abreviar o ciclo de

encarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo

Em suma existe uma lista de praacuteticas que cooperam para a redenccedilatildeo final do

iniciado as penas infernais as reencarnaccedilotildees o estilo de vida oacuterfica as praacuteticas dos

rituais de misteacuterios e o correto procedimento ao chegar ao Hades satildeo meios para a

obtenccedilatildeo da redenccedilatildeo final que basicamente consiste na separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo quando cessa o ciclo de reencarnaccedilotildees e a alma se une aos deuses no Hades

Encontramos vaacuterias referecircncias aos iniciados nos documentos oacuterficos como

mostramos nos seguintes exemplos

55 Albinus 2000 p103

56 Alderink 1981 p80-81 Albinus 2000 p103-104

41

(i) O Papiro de Gurob traz o seguinte verso 57 ldquoatraveacutes da iniciaccedilatildeo a mim

mutila para as penas dos pais descontarrdquo 58

(ii) Na lacircmina de ouro Feres haacute uma declaraccedilatildeo de que o iniciado que acaba

de chegar ao Hades natildeo mais teria penas a cumprir ficando assim livre

do ciclo de transmigraccedilatildeo ldquoEntre no campo sagrado Pois o iniciado

natildeo (tem) penardquo59

(iii) Na Lacircmina de Hipocircnio os iniciados eacute que satildeo dirigidos por um caminho

singular no Hades ldquoE vocecirc tendo bebido iraacute pelo caminho sagrado pelo

qual os outros iniciados (mystai) e baacutequicos (baacutecchoi) seguem

renomadosrdquo 60

(iv) Nas lacircminas de Turi I II III os iniciados se identificam como puros na

chegada ao Hades ldquoVenho dentre os puros oacute pura Rainha dos Infernosrdquo

Nas lacircminas de Turi I e II o iniciado solicita que por ser puro ele seja

enviado para ldquoo assento dos purosrdquo 61 62

57 Gazzinneli 2007 p67

58 Gazzinneli 2007 p67

59 Gazzinneli 2007 p81

60 Gazzinneli 2007 p73

61 Gazzinneli 2007 p78 79

62 A Repuacuteblica de Platatildeo faz alusatildeo aos oacuterficos e seus ritos de purificaccedilatildeo os quais envolveriam

sacrifiacutecios e conjuros durantes as festas denominadas misteacuterios As praacuteticas seriam chamadas de

expiaccedilatildeo e poderiam reparar as faltas pessoais e dos antepassados livrando os iniciados dos

males do Hades (Cf R 2 364b-365a)

42

324 Puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo no Feacutedon

Haacute vaacuterios exemplos claros da utilizaccedilatildeo das ideias oacuterficas de purificaccedilatildeo e

iniciaccedilatildeo no Feacutedon Platatildeo se utiliza do tema de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός)

especialmente a ideia da iniciaccedilatildeo purificaccedilatildeo e redenccedilatildeo Temos um bom exemplo em

69a-d pouco antes de Soacutecrates fazer referecircncia agrave antiga tradiccedilatildeo Nos ritos de

purificaccedilatildeo oacuterfica os iniciados geralmente passavam lama ou lodo no corpo com o

objetivo de limpar ou apagar a maacutecula63 No Feacutedon Soacutecrates afirma que os homens que

instituiacuteram os misteacuterios natildeo eram mediacuteocres e que eles estavam certos ao dizer que ao

chegar ao Hades os iniciados e purificados iratildeo habitar com os deuses enquanto os

natildeo-iniciados e impuros vatildeo jazer na lama (69c 110a5-6 111d5-e2 113a6-b6 c3-7

81a4-6) A lama ou lodo portanto tanto servia para propoacutesitos de purificaccedilatildeo nos

rituais oacuterficos conforme os testemunhos antigos quanto no Hades no caso de pessoas

natildeo-iniciadas

Soacutecrates nutre a esperanccedila de que seraacute recompensado no Hades e natildeo somente

ele mas todo aquele cuja mente estaacute pronta e purificada (67c) No Hades os iniciados

habitaratildeo com os deuses e os natildeo-iniciados jazeratildeo na lama (69c) Eacute bem provaacutevel que

Platatildeo esteja utilizando ideias escatoloacutegicas oacuterficas64

Tambeacutem eacute importante notar que a ideia de iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo no Feacutedon estaacute

conectada com a concepccedilatildeo oacuterfica do corpo como prisatildeo da alma Semelhante doutrina

do aprisionamento da alma no corpo eacute introduzida no Feacutedon em 62b por ocasiatildeo da

discussatildeo sobre o suiciacutedio e eacute apresentada por Soacutecrates como sendo uma doutrina

63 Albinus 2000 p 135

64 Bernabeacute in Adluri 2013 p127-128

43

extraordinaacuteria e natildeo faacutecil de entender completamente ldquoA propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e que

ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendarrdquo (Cf 67d1-2 81e2 92a1) Em 82e Soacutecrates

retoma a ideia de que a alma estaacute presa ao corpo dizendo que mesmo os filoacutesofos satildeo

obrigados a considerar as realidades atraveacutes do corpo como que atraveacutes de uma prisatildeo

em vez de fazecirc-lo estritamente por meio de si mesma Soacutecrates ainda ressalta que a

proacutepria filosofia percebe que o pior dessa prisatildeo eacute que ela opera por meio dos desejos

de modo que o encarcerado pode se tornar o maior cuacutemplice de seu encarceramento

(82e)

Essa central doutrina oacuterfica que divide alma e corpo fazendo do corpo um mero

obstaacuteculo para a alma natildeo apenas exerceu uma tremenda fascinaccedilatildeo sobre Platatildeo como

tambeacutem permeia todo o Feacutedon juntamente com o uso da linguagem oacuterfica de iniciaccedilatildeo

A inovaccedilatildeo platocircnica no Feacutedon prevecirc novos meios de redenccedilatildeo para o iniciado e

uma nova ideia de salvaccedilatildeo Platatildeo desenvolve sua visatildeo de que filosofia eacute um meio de

purificaccedilatildeo da alma65 A purificaccedilatildeo filosoacutefica consiste na praacutetica de separar a alma do

corpo o quanto for possiacutevel evitando ao maacuteximo qualquer comunhatildeo com ele Essa

kaacutetharsis filosoacutefica equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (Feacutedon 64a) Sendo

assim o novo caminho para a iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo eacute a praacutetica da filosofia (69d) em

vez dos atos de redenccedilatildeo oacuterficos 66

Enquanto os iniciados seguem um estilo de vida oacuterfico e praacuteticas rituais para

expurgar a penalidade ancestral e a natureza titacircnica Soacutecrates prescreve o cultivo de

6565 Cf Dilman 1992 p20-21

66 Cf Albinus 2000 p139

44

virtudes associadas agrave sabedoria e o exerciacutecio da razatildeo como meios de purificaccedilatildeo Em

suma tudo isso pode ser resumido na praacutetica ou exerciacutecio da filosofia que Soacutecrates

chama de exerciacutecio de morte (81a)

Os iniciados oacuterficos devem descer ao Hades munidos de foacutermulas maacutegicas e

senhas para serem reconhecidos pelos guardiatildees da morada infernal e conseguirem

acesso aos lugares excelentes na versatildeo platocircnica de salvaccedilatildeo a alma deve manter-se

na melhor condiccedilatildeo possiacutevel de modo que a pessoa viva da melhor maneira possiacutevel

pois o que mais ajuda ao moribundo do iniacutecio ao fim de sua jornada ao Hades eacute a

educaccedilatildeo e treinamento que carrega consigo (107c-d) Como este estilo de vida a qual

Soacutecrates se refere sempre eacute o estilo de vida daquele que cuida da alma atraveacutes da praacutetica

da verdadeira filosofia que no Feacutedon consiste em rejeitar o corpo e dedicar-se a

alcanccedilar a sabedoria pelo exerciacutecio do intelecto somente

Os oacuterficos almejam um tipo de salvaccedilatildeo que consiste na liberaccedilatildeo do ciclo de

renascimentos No Feacutedon Soacutecrates se apropria dessa ideia oacuterfica e a aplica agrave esperanccedila

do filoacutesofo de alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo de renascimento e morte No Feacutedon natildeo se

diz explicitamente que todas as almas vatildeo alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo tal como os

filoacutesofos alcanccedilaratildeo No entanto Soacutecrates deixa evidente a distinccedilatildeo entre as almas que

satildeo definitivamente liberadas e aquelas que continuam a transmigrar A liberaccedilatildeo

definitiva do ciclo de renascimento e morte e a subsequente recompensa do filoacutesofo eacute

geralmente expressa em termos miacutetico-religiosos como lsquohabitar com as divindadesrsquo

(69C 81a4-6 82b10) ou obter a suprema bem-aventuranccedila em lsquomoradas bem

construiacutedasrsquo que vatildeo aleacutem de qualquer descriccedilatildeo (114c) Portanto Platatildeo se utiliza de

estruturas da doutrina oacuterfica para construir um tipo de ldquosoteriologia filosoacuteficardquo cujo

fundamento da salvaccedilatildeo eacute a praacutetica da verdadeira filosofia O tema da recompensa

45

poacutestuma eacute utilizado por Platatildeo para expressar os benefiacutecios a serem desfrutados por

aqueles que dedicam a vida agrave filosofia

Jaacute que a purificaccedilatildeo filosoacutefica eacute o exerciacutecio ou praacutetica da filosofia o iniciado

natildeo eacute mais o adepto das praacuteticas oacuterficas mas o filoacutesofo Soacutecrates declara explicitamente

isto quando lembra dos ritos oacuterficos em honra a Dioniso Ele explica que os adeptos dos

Misteacuterios costumam dizer que muitos carregam o tirso mas poucos satildeo os Bacantes

numa referecircncia aos que aderem ao culto a Dioniso mas natildeo se comprometem

totalmente com o deus Ao contraacuterio dos religiosos de aparecircncia existem os Bacantes

iniciados que estatildeo intimamente ligados ao deus praticando os Misteacuterios conforme o

deus requer Soacutecrates entatildeo utiliza a ideia oacuterfica em tom de paroacutedia afirmando que os

poucos Bacantes que existem natildeo satildeo aqueles religiosos que se exercitam nos Misteacuterios

mas os filoacutesofos ndash aqueles que realmente dedicam a vida agrave filosofia Aleacutem de definir o

iniciado como aquele que pratica a filosofia Soacutecrates provavelmente estaacute fazendo uma

distinccedilatildeo entre verdadeiros e falsos filoacutesofos dando a entender que haacute muitos ditos

filoacutesofos mas assim como poucos satildeo os Bacantes poucos tambeacutem satildeo os verdadeiros

filoacutesofos (Cf69c-d) Platatildeo estaacute oferecendo filosofia como substituto para os

misteacuterios67 Ele faz isso utilizando estruturas e siacutembolos oacuterfico-pitagoacutericos como forma

de instruccedilatildeo sobre a vida filosoacutefica e sobre a vida apoacutes a morte68

67 Menn in Adluri 2013 p214

68 Bussanich in Adluri 2013 p250

46

325 Transmigraccedilatildeo da Alma

Ao longo do Feacutedon Soacutecrates estabelece uma relaccedilatildeo entre iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo (meios de redenccedilatildeo) recompensas no Hades (redenccedilatildeo final) e a teoria da

transmigraccedilatildeo das almas69 A transmigraccedilatildeo das almas eacute o conteuacutedo do antigo relato

segundo o qual as almas vatildeo para o Hades depois da morte e de laacute voltam (70c)

Conforme este relato o Hades eacute a origem e destino da alma dos vivos Natildeo temos

nenhuma informaccedilatildeo sobre a origem uacuteltima da alma de onde ela viria antes de iniciar

esse ciclo em que passa alternadamente pelo mundo dos vivos e pelo Hades o qual

figura como um tipo de lugar obrigatoacuterio para a alma desencarnada seja para uma

passagem temporaacuteria ou para uma estada permanente

O conteuacutedo baacutesico do antigo relato eacute a transmigraccedilatildeo das almas ou

metempsicose (i) a alma se separa do corpo por ocasiatildeo da morte e desce ao Hades

onde permanece por algum tempo (ii) a alma volta do Hades ao mundo dos vivos e

aloja-se em novo corpo A crenccedila de que a alma transmigra de um corpo a outro de

acordo com um ciclo de nascimentos eacute uma doutrina oacuterfica antiga mas na antiguidade

tambeacutem se costuma atribuir a sua origem a Pitaacutegoras e pitagoacutericos 70 No contexto da

religiatildeo oacuterfica a transmigraccedilatildeo estaacute relacionada com um culpa antiga que remonta ao

mito de Dioniso Zagreu Os Titatildes satildeo antepassados dos seres humanos e suas culpas

devem ser expiadas por eles O pagamento do castigo implica a liberaccedilatildeo do ciclo de

69 Cf Bernabeacute in Adluri 2013 p128

70 Albinus 2000 p117

47

transmigraccedilotildees 71 Haacute vaacuterios documentos oacuterficos da antiguidade que testemunham o

caraacuteter oacuterfico dessa doutrina como os seguintes

(i) As placas de osso de Oacutelbia apresenta a sequecircncia ldquovida morte

vidardquo um testemunho da crenccedila oacuterfica no ciclo contiacutenuo de vida e

morte 72

(ii) As Lacircminas de Pelina I e II (B2) tambeacutem registram a crenccedila no ciclo

de vida e morte ldquoOra vocecirc morre ora nasce trecircs vezes afortunado

neste dia

(iii) A lacircmina de Turi II o iniciado afirma que eacute da ldquoraccedila afortunadardquo e

reivindica o fim do ciclo de transmigraccedilotildees com base nas penas que

jaacute cumprira ldquoServi a pena relativa a obras em nada justasrdquo

(iv) A Lacircmina de Turi III testemunha ldquoVoei para longe do ciclo de

doloroso e pesado lamentordquo73

A doutrina da metempsicose seguiu sendo reconhecida como oacuterfica ao longo de

toda a antiguidade74

No Feacutedon a ideia da transmigraccedilatildeo da alma eacute bastante explorada por Soacutecrates

inclusive a doutrina do renascimento em animais geralmente atribuiacuteda a pitagoacutericos

Aqueles que natildeo se purificam durante a vida reencarnariam num corpo de acordo com o

71 Cf Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p601

72 Gazzinneli 2007 p 81 82

73 Gazzinneli 2007 p 81 82

74 Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p611

48

gecircnero de vida praticado alguns voltam agrave vida em corpos de variados animais outros

em corpos de seres humanos (Cf62b 67d 69c-d 80d) Almas que se libertam do corpo

manchadas impuras e contaminadas pelo elemento corporal temem de tal modo o

Hades que satildeo arrastadas de volta ao mundo visiacutevel passando a perambular em

monumentos fuacutenebres e sepulturas (81c-81d) Essas satildeo as almas dos maus os quais satildeo

obrigadas a perambular assim como castigo por causa do modo vida que havia levado

as quais andam errantes ateacute que possa alojar-se novamente em um corpo com os

mesmos viacutecios de outrora como glutonaria e desejo desmedido pela bebida Almas

assim podem renascer em asnos ou animais de semelhante natureza (81d-e) Almas

responsaacuteveis por injusticcedilas tiranias e roubos renasceriam na linhagem de lobos falcotildees

e abutres (82a) Dentre essas almas que natildeo se dedicaram agrave filosofia as que vatildeo para um

corpo melhor satildeo as pessoas sociais e civilizadas as quais praticaram a virtude popular

e ciacutevica a temperanccedila e a justiccedila as quais tanto podem retornar em corpos de abelhas

vespas ou formigas quanto podem retornar ao gecircnero humano para serem pessoas de

bem (82a-b) A praacutetica de virtudes sem a cooperaccedilatildeo da filosofia eacute proveitosa chegando

a interferir no processo de transmigraccedilatildeo mas nunca pode oferecer a redenccedilatildeo final a

libertaccedilatildeo do ciclo de renascimentos juntamente com as recompensas no Hades A

mensagem platocircnica central eacute que soacute via filosofia eacute possiacutevel se purificar durante a vida e

partir puro para o Hades Essas satildeo as almas dos filoacutesofos o verdadeiro filoacutesofo

(iniciado) chegaraacute agrave linhagem dos deuses e habitaraacute com eles uma vez que alcanccedilaram

a libertaccedilatildeo e purificaccedilatildeo que se efetuam por meio da praacutetica de uma vida dedicada agrave

filosofia (82b-d) A alma do filoacutesofo sendo purificada iraacute se encontrar com aquilo com

o que guarda afinidade de modo algum se esvaindo no momento da separaccedilatildeo do corpo

ou mesmo dissipada pelos ventos sem existir em parte alguma (84b) Contudo a alma

49

afeita ao corpo passa a incorporar o tipo de vida corporal e desse jeito nunca pode

chegar ao Hades no estado de pureza razatildeo pela qual logo volta a alojar-se em outro

corpo ficando privada da companhia do divino puro e uniforme (83d-e)

Ainda no mito escatoloacutegico final existe uma passagem que alude agrave

transmigraccedilatildeo da alma Soacutecrates fala do Taacutertaro o mais profundo abismo para onde

confluem todas as correntes dos rios e onde todas elas se originam As almas dos

mortos permanecem ali por um tempo determinado alguns permanecendo mais tempo

outras menos Cumprido o tempo as almas satildeo novamente enviadas para as geraccedilotildees

dos seres vivos (112a 113a)

Portanto a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma faz parte da estrutura baacutesica da

argumentaccedilatildeo no Feacutedon A essa doutrina esoteacuterica estatildeo relacionados outros temas

proacuteprios das religiotildees de misteacuterios como a divisatildeo entre corpo e alma a iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo dos fieacuteis e a descida ao Hades com as respectivas recompensas e puniccedilotildees

infernais

326 Imortalidade da alma

Para os adeptos dos ciacuterculos oacuterficos seria natural pensar que alma eacute imortal por

causa do seu caraacuteter divino dionisiacuteaco em oposiccedilatildeo ao elemento mortal do corpo de

natureza titacircnica Como diz Taylor a imortalidade da alma eacute uma mera consequecircncia de

uma heranccedila divina75 No escopo da religiatildeo grega se a alma eacute imortal deve ser no

75 Taylor 1922 p177

50

sentido de sua essencial natureza divina Ela por si mesma pertence agrave realidade divina

de modo que os termos imortal e divino satildeo intercambiaacuteveis76

Portanto na religiosidade grega de modo geral a afirmaccedilatildeo de que a alma eacute

imortal quer dizer para um grego natildeo soacute que manteacutem a capacidade de sentir de

entender e de estar verdadeiramente viva apoacutes a morte mas tambeacutem que a alma eacute

divina77 O Feacutedon dialoga com essa fonte e tradiccedilatildeo religiosa grega

Mais especificamente no contexto da religiosidade oacuterfica Albinus esclarece que

os antigos natildeo consideram a mitologia oacuterfica apenas como um tipo de histoacuteria ou mito

mas tambeacutem como um relato (λόγος) que expressa a relaccedilatildeo entre humanidade e

divindade mortalidade e imortalidade78 O ciclo de transmigraccedilotildees certamente

representa essa dupla ligaccedilatildeo da alma com o humano e mortal (quando encarnadas) e

divino e imortal (quando desencarnadas) Portanto o tema da imortalidade estaacute

associado ao tema da transmigraccedilatildeo na mitologia oacuterfica Eacute necessaacuterio compreender este

ponto para uma correta compreensatildeo do argumento ciacuteclico como prova da imortalidade

da alma provar que as almas transmigram eacute tambeacutem provar que elas satildeo imortais num

contexto religioso oacuterfico no qual natildeo temos aniquilaccedilatildeo completa da alma mas apenas

rompimento do ciclo de reencarnaccedilotildees Em suma

(i) Imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma satildeo temas indissociaacuteveis na

religiatildeo oacuterfica

76 Rohde 1950 p254

77 Bernabeacute 2000 p 171

78 Albinus 2000 p117

51

(ii) A transmigraccedilatildeo pode ser entendida como um importante aspecto da

doutrina da imortalidade da alma sendo a alma imortal o ser humano

natildeo escapa da penalidade que deve pagar ao longo do ciclo de

renascimentos79

(iii) Eacute tambeacutem a crenccedila na imortalidade da alma que sustenta toda a ideia de

purificaccedilatildeo e conseguinte libertaccedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilotildees quando o

oacuterfico alcanccedila um tipo de redenccedilatildeo final livre do corpo e do ciclo de

renascimentos ele passa a viver como uma divindade80

Portanto eacute natural que os oacuterficos combinem doutrina da transmigraccedilatildeo da alma e

a crenccedila na divindade e imortalidade da alma Ao que parece os pitagoacutericos tambeacutem

fizeram uma associaccedilatildeo semelhante entre a transmigraccedilatildeo e imortalidade da alma81 Eacute

esta concepccedilatildeo de imortalidade atrelada agrave doutrinda da transmigraccedilatildeo da alma que estaacute

presente no argumento ciacuteclico

Eacute razoaacutevel pensar que agrave eacutepoca de Platatildeo os gregos possuiacuteam uma seacuterie de teses

inconsistentes sobre a alma de modo que dogmas como o da imortalidade da alma natildeo

estavam bem claros para todas as pessoas Aleacutem disso ideias como a que Cebes

apresenta ndash a desintegraccedilatildeo da alma que se separa do corpo ndash poderiam tambeacutem ser

sustentadas pelo menos por algum grupo de pessoas

79 Bussanich in Adluri 2013 p243

80 Rohde 1950 p345

81 Bernabeacute 2000 p 172

52

327 Conclusatildeo

Noacutes encontramos uma rica presenccedila de doutrinas tipicamente oacuterficas no Feacutedon

e tudo indica que Platatildeo estaacute utilizando doutrinas oacuterficas e pitagoacutericas em seu diaacutelogo

Os motivos oacuterficos aparecem na primeira parte do Feacutedon e se manteacutem em cena no

diaacutelogo ateacute o mito escatoloacutegico final A pesquisa de Kingsley mostra que alusotildees a

crenccedilas oacuterficas no estaacutegio inicial do diaacutelogo satildeo retomadas no mito escatoloacutegico final

Ele utiliza dois temas oacuterficos para justificar a sua tese castigo poacutestumo dos impuros e a

recompensa dos puros A ideia de jazer na lama que eacute uma imagem das puniccedilotildees

infernais aos natildeo-iniciados cedo eacute introduzida no diaacutelogo e volta a aparecer trecircs vezes

no mito escatoloacutegico final no contexto dos vastos rios de lama infernais (Cf 69c5-6

110a5-6 11d5-e2 113a6-b6) O mais interessante eacute que o material apresentado

previamente no diaacutelogo oferece uma breve antecipaccedilatildeo do que viraacute pela frente

revelando que existe um tipo de exposiccedilatildeo sistemaacutetica dessa crenccedila oacuterfica no Feacutedon O

tema da recompensa no Hades para os iniciados e purificados apresenta o mesmo

padratildeo de antecipaccedilatildeo e posterior explanaccedilatildeo complementaacuteria no contexto do mito final

A imagem do impuro que sofre a pena de jazer na lama tem a sua contraparte na

imagem da alma pura que desce ao Hades para desfrutar da recompensa de viver com os

deuses imortais (69c6-7 111b6-c1 114b7-c2 114d3) Tambeacutem nesse caso as alusotildees

oacuterficas da etapa inicial do diaacutelogo voltam a aparecer no mito final e tornam-se uma

chave valiosa para a compreensatildeo da estrutura linguagem e significado do mito82

Tudo isso leva a crer que existe a presenccedila meticulosa das ideias oacuterficas na

estrutura fundamental do Feacutedon

82 Cf Kingsley 1992 p119-120

53

4 Anaacutelise do argumento ciacuteclico propriamente dito

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma Platatildeo define morte como

lsquoseparaccedilatildeo da alma do corporsquo(64c) Ainda no primeiro estaacutegio do diaacutelogo a personagem

Soacutecrates defende que a alma que se separa do corpo natildeo se dispersa e perece como as

pessoas afirmam mas continua a existir sozinha por si mesma (Cf 64c 70a-b) Ainda

que a palavra lsquoimortalrsquo natildeo apareccedila no diaacutelogo ateacute 73a introduzida por Cebes e

Soacutecrates soacute a empregue pela primeira vez no contexto do argumento das afinidades

(Cf79d) a ideia de que a alma eacute imune agrave morte aparece bem cedo no diaacutelogo e as

provas do Feacutedon tecircm o objetivo de provar que a alma eacute imortal Natildeo seria possiacutevel

avaliar se as provas satildeo suficientes ou natildeo se os amigos de Soacutecrates natildeo tivessem bem

definido o que elas satildeo destinadas a provar ou pelo menos aquilo que eles esperam que

elas provem Eles natildeo apenas tecircm em mente o que o mestre precisa provar mas tambeacutem

satildeo capazes (ateacute certo ponto) de apontar a insuficiecircncia dessas provas

O argumento ciacuteclico jaacute eacute visto por Cebes como prova da imortalidade da alma

ele associa o primeiro argumento e o ensino da reminiscecircncia com a ideia de que ele

talvez pudesse tambeacutem mostrar que a alma eacute imortal (72e1-73a3) Cebes natildeo afirma que

o argumento ciacuteclico havia provado que a alma eacute imortal nem mesmo estaacute certo de que o

argumento da reminiscecircncia pode fazecirc-lo mas indica que eacute necessaacuterio uma nova prova

Desde o iniacutecio da etapa demonstrativa apenas uma prova da imortalidade da

alma poderaacute contrapor a crenccedila de que a alma perece na ocasiatildeo em que se separa do

corpo (70a) que eacute o problema motriz da etapa demonstrativa Esta crenccedila doutrina ou

posiccedilatildeo filosoacutefica eacute enfrentada por Platatildeo no diaacutelogo O termo εὐθύς colabora com essa

54

ideia de que a alma seria passiacutevel de desintegraccedilatildeo na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do

corpo Vejamos algumas passagens

(i) Antes de comeccedilar a etapa demonstrativa o que atormenta inicialmente os

amigos de Soacutecrates eacute a possibilidade de que a alma do mestre seja

destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo (70a4-5) (εὐθὺς

ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος)

(ii) Na transiccedilatildeo entre argumento da reminiscecircncia e das afinidades Soacutecrates

ainda tem em mente a problemaacutetica seria necessaacuterio continuar a

discussatildeo porque os amigos possuem um ldquotemor pueril de que o vento

realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania e natildeo

de brisardquo (77d) Apesar de o termo εὐθύς natildeo aparecer aqui a ideia

continua sendo desintegraccedilatildeo que ocorre na ocasiatildeo da morte O que

parece uma ironia socraacutetica na verdade estaacute de acordo com a concepccedilatildeo

de certas pessoas de a alma poderia ser dispersa pelo vento

especialmente por um vento forte

(iii) Na etapa que segue o argumento das afinidades Soacutecrates retoma o

problema que gera toda a etapa demonstrativa mas agora coloca duas

ideias em contraste e em ambos os casos Soacutecrates utiliza εὐθύς

bull Nem mesmo o cadaacutever que eacute material e assim a ele pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ

διαπίπτειν καὶ διαπνεῖσθαι) sofre todas essas coisas

55

imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν πέπονθεν) mas

lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado

Certas partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά

ἐστιν) (80c2-d4)

bull Em contraste com o cadaacutever cuja natureza eacute passiacutevel de

dissoluccedilatildeo Soacutecrates lembra que a alma eacute de natureza distinta ela

eacute a parte invisiacutevel da pessoa e possui afinidades com o nobre

puro e invisiacutevel e desceraacute ao Hades para se reunir com um deus

Sendo assim questiona se os amigos acham que a alma seria

dispersa e pereceria na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo

(ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ

ἀπόλωλεν) (80d) Aqui Soacutecrates mostra o absurdo de acreditar

que a alma que possui a mesma natureza imaterial das lsquoFormasrsquo

e do lsquodivinorsquo seria desintegrada na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo

do corpo enquanto o corpo ainda seria mais resistente agrave

destruiccedilatildeo do que a proacutepria alma Soacutecrates procura mostrar o

absurdo desta posiccedilatildeo com base nos argumentos jaacute apresentados

os quais jaacute haviam deixado claro que a alma eacute algo superior ao

corpo e de natureza diferente Ainda que natildeo tivesse ainda

oferecido uma prova suficiente da imortalidade da alma os trecircs

primeiros argumentos jaacute haviam mostrado que a alma natildeo eacute tal

como o corpo Soacutecrates critica a crenccedila que acaba tornando o

corpo mais duraacutevel do que a proacutepria alma

56

bull Pouco depois Siacutemias tenta responder agrave questatildeo de Soacutecrates com

a sua teoria da alma-harmonia e insiste em comprovar que a

alma sendo uma mistura de elementos corporais eacute a primeira a

perecer naquilo que chamamos de morte enquanto o corpo

perdura algum tempo (86c-d) Esta passagem nos revela mais um

detalhe da concepccedilatildeo da natureza da alma que estaacute em cena no

Feacutedon o receio de que a alma seja uma mistura de elementos

corporais e que ela seria passiacutevel agrave dispersatildeo e desintegraccedilatildeo na

ocasiatildeo da morte

bull Cebes ficaraacute contra a posiccedilatildeo de Siacutemias de que o corpo dura mais

do que a alma e com o seu argumento do tecelatildeo e seu manto

tenta mostrar que a alma dura mais do que o corpo mas nada

garante que ela eacute completamente imune agrave morte Desintegraccedilatildeo e

perecimento instantacircneo podem natildeo ocorrer mas nada garante

que natildeo haja a possibilidade de que a alma seja destruiacuteda no seu

uacuteltimo ciclo de reencarnaccedilatildeo (Cf 87-88b)

O argumento ciacuteclico eacute inserido num contexto em que se busca provar que a alma

eacute imune agrave morte contra a crenccedila numa alma passiacutevel a dissoluccedilatildeo e perecimento Mas

de iniacutecio o tema da imortalidade eacute tratado a partir de uma matriz baacutesica da religiosidade

oacuterfica imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma A abertura do argumento

ciacuteclico se daacute com um convite de Soacutecrates para examinar ldquo() se de algum modo as

almas das pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Este objeto de

investigaccedilatildeo coincide com o conteuacutedo do relato de uma tradiccedilatildeo religiosa de cunho

57

oacuterfico e pitagoacuterico ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o

qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

proveniente dos mortosrdquo (70c5-8)

O antigo relato tem em vista basicamente que a alma se engaja no ciclo de

reencarnaccedilatildeo ndash a alma deixa um corpo desce ao Hades e de laacute volta a reencarnar No

orfismo e pitagorismo natildeo existe a possibilidade de a alma ser desintegrada ou

destruiacuteda Se for verdade o que diz o relato lsquoque os vivos provecircm dos mortosrsquo Soacutecrates

entende que eacute necessaacuterio concluir que lsquoas nossas almas estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) Se

coisas vivas e pessoas vivas (tentativa de generalizar ndash tudo que eacute vivo) procedem

daqueles que estatildeo mortos (ἐκ τῶν τεθνεώτων τὰ ζῶντά τε καὶ οἱ ζῶντες γίγνονται) eacute

necessaacuterio concluir que as nossas almas estatildeo no Hades (εἰσὶν αἱ ψυχαὶ ἡμῶν ἐν

Ἅιδου) (71d14-e2) Portanto eacute necessaacuterio provar que os vivos provecircm dos mortosrsquo

Para isto eacute necessaacuterio um argumento com base no princiacutepio de que todos os opostos

provecircm dos opostos (70e1-2) A terminologia do argumento ciacuteclico deriva diretamente

daquela utilizada no antigo relato ndash verbo γίγνομαι seguido de ἐκ + genitivo ndash como se

pode observar

(i) ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual

as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

provenientes dos mortosrdquo ( γίγνονται ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c8)

(ii) ldquoSe realmente eacute verdade que os vivos provecircm dos mortos ()rdquo

(γίγνεσθαι ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9)

(iii) ldquoSe realmente ficasse evidente que os vivos provecircm de nenhum lugar a

natildeo ser dos mortosrdquo (γίγνονται οἱ ζῶντες ἢ ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c9)

58

(iv) ldquoTodas as coisas tecircm origem assim opostos dos opostosrdquo (γίγνεται πάντα

ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

Apresentado o princiacutepio de que todos os opostos provecircm dos opostos Soacutecrates

convida ao exame

(i) ldquoVejamos se todas essas coisas satildeo geradas da seguinte maneira opostos dos

opostos (γίγνεται πάντα ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

(ii) ldquoPortanto examinaremos se tudo que tem um oposto proveacutem

necessariamente de seu oposto e de nenhum outrordquo (70e5-6) (τοῦτο οὖν

σκεψώμεθα ἆρα ἀναγκαῖον ὅσοις ἔστι τι ἐναντίον μηδαμόθεν ἄλλοθεν αὐτὸ

γίγνεσθαι ἢ ἐκ τοῦ αὐτῷ ἐναντίου)

(iii) ldquoTemos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina desta maneira as

coisas opostas procedem de seus opostosrdquo (71a9-10) (ἱκανῶς οὖν ἔφη

ἔχομεν τοῦτο ὅτι πάντα οὕτω γίγνεται ἐξ ἐναντίων τὰ ἐναντία πράγματα)

Eis em linhas gerais a estrutura baacutesica do argumento seguida de comentaacuterio

[1] Tudo que tem um oposto proveacutem necessariamente de seu oposto (70e-71a)

[2] Para cada par de opostos existem dois processos opostos se um oposto x

passa a y haacute tambeacutem um processo de um oposto y que passa a x por exemplo

aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um processo do

quente ao frio (71a11-b10)

59

[3] Se os dois processos natildeo se equilibrassem (se algo viesse a ser quente a partir

de ser frio mas natildeo frio a partir de ser quente tudo findaria quente) tudo

acabaria no mesmo estado) (72a-b)

[4] Tudo natildeo acaba por ficar no mesmo estado (72a-d)

[5] Portanto se algo vem a ser um oposto y a partir de um oposto x ele tambeacutem

viraacute a ser um oposto x a partir de um oposto y (se algo vem a ser quente a partir

de frio ele tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

[6] Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

[7] Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que

estaacute vivo (71e-72a)

[8] As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

[9] Portanto as almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

[10] Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar)

(71e72a 72d)

A prova eacute estabelecida sobre o princiacutepio de que pares de opostos

obrigatoriamente sofrem determinados processos ciacuteclicos83 O termo ἀναγκαῖον eacute

fundamental na exegese do argumento porque marca esta necessidade ou

obrigatoriedade de que este princiacutepio de mudanccedila ocorra entre pares de opostos natildeo

deixando espaccedilo para exceccedilotildees (Cf70e 71b 72a) Visto dessa maneira o processo

ciacuteclico que ocorre entre pares de opostos eacute perpeacutetuo natildeo tem fim Mas Soacutecrates natildeo

apresenta nenhum argumento vaacutelido para sustentar esta posiccedilatildeo apenas assume que se

83 Gallop 2002 p 103

60

natildeo houvesse um balanccedilo nesse processo ciacuteclico todas as coisas acabariam no mesmo

estado entatildeo tudo chegaria ao fim (72a-d) Portanto o argumento inteiro repousa sobre

uma ideia assumida por Soacutecrates a ideia de que eacute impossiacutevel que tudo acabe no mesmo

estado

Este processo ciacuteclico obrigatoacuterio consiste no seguinte

Para cada par de opostos existem dois processos opostos um processo pelo qual

um oposto x passa a y e um processo pelo qual um oposto y passa a x por

exemplo aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um

processo do quente ao frio (71a11-b10)

Portanto se algo vem a ser oposto y a partir de oposto x ele tambeacutem viraacute a ser

oposto x a partir de oposto y (se algo vem a ser quente a partir de frio ele

tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

A afirmaccedilatildeo de que deve haver processos em ambas as direccedilotildees eacute vital para

qualquer uso efetivo do princiacutepio de que os opostos vecircm dos opostos Este princiacutepio eacute

essencial para o funcionamento do argumento ciacuteclico como um todo84 Caso este

processo ciacuteclico natildeo seja obrigatoriamente mantido ad eternum o argumento possui

uma falha irreparaacutevel Este eacute um dos problemas vitais do argumento como voltaremos a

mencionar adiante Soacutecrates assume a obrigatoriedade do processo com base num

argumento invaacutelido a mera observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto

Em seguida Soacutecrates aplica o princiacutepio ao caso dos opostos vida e morte (71c6-

d3) a fim de provar que o que eacute vivo proveacutem do que eacute morto e o que eacute morto do que eacute

84 Gallop 2002 p109

61

vivo o que segundo ele levaria a uma necessaacuteria conclusatildeo de que lsquoas nossas almas

estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) O filoacutesofo afirma que existe um processo de tornar-se vivo

novamente (o reviver passar a viver novamente) (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute vivo

(71e-72a) Este ponto eacute fundamental para a compreensatildeo do argumento e deve ser

entendido a partir de duas ideias que Platatildeo explora no argumento (i) a sua noccedilatildeo de

morte como separaccedilatildeo da alma e corpo e sua admissatildeo de que morte eacute um estado em

que a alma existe separadamente do corpo (64c4-8) (ii) a doutrina da transmigraccedilatildeo da

alma segundo a qual passar a viver novamente (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) significa que a alma

que jaacute havia alojado um corpo e lsquomorreursquo (desencarnou) reencarna volta a alojar-se

num corpo No antigo relato e no comentaacuterio seguinte temos o termo πάλιν (70c7-8d1)

para marcar a recorrecircncia a repeticcedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilatildeo e implica a ideia de

uma vida preacutevia Platatildeo tambeacutem emprega a expressatildeo lsquoaqueles que vivemrsquo como uma

referecircncia agrave pessoa composta de corpo e alma e lsquoaqueles que morreramrsquo para designar

aquele que jaacute esteve em vida e morreu (a alma desencarnou) (70c8-9)

Portanto quando Soacutecrates diz lsquoo que estaacute morto proveacutem do que estaacute vivorsquo

(71d10-11 72a5-6) seguindo ideia semelhante agravequela que aparece no antigo relato ndash os

vivos provecircm dos que jaacute morreram (ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9) ndash ele

reconhece que a alma que se aloja num corpo estaacute na verdade reencarnando porque

antes de se separar do corpo e descer ao Hades ela jaacute habitava um corpo e chama este

regresso ao corpo de lsquoreviverrsquo (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) que eacute o retorno da alma para o

corpo a reencarnaccedilatildeo Em algumas ocasiotildees Soacutecrates faz referecircncia agrave morte da alma e

isto deve ser meramente entendido como a sua separaccedilatildeo do corpo (77d2-4 84b2

88a6)

62

Estabelecido o processo ciacuteclico obrigatoacuterio que ocorre entre os opostos lsquovivorsquo e

lsquomortorsquo ndash lsquotornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute mortorsquo e lsquotornar-se

morto a partir do que estaacute vivorsquo Soacutecrates vecirc a necessidade de concluir que as nossas

alma existem (no Hades)

Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute

morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute

vivo (71e-72a)

As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

As almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar) (71e72a

72d)

A conclusatildeo eacute de que as almas dos mortos existem Ao final do argumento

Soacutecrates revisa pontos essenciais que foram tratados e provados segundo ele reviver

os vivos nascem dos mortos e as almas dos mortos existem (72d8-10)

O argumento eacute cheio de problemas e dificilmente pode se estabelecer como

prova suficiente da imortalidade da alma Dentre os problemas destacamos os

seguintes

(i) Para cada par de opostos existem obrigatoriamente dois processos opostos e

com base neles o argumento ciacuteclico visa mostrar que o ciclo de morte e de

renascimento deve continuar ad infinitum porque de outro modo tudo

63

acabaria morto Como diz Hackfort em nenhuma outra hipoacutetese a

continuaccedilatildeo da vida poderia ser explicada sem o processo reverso da morte

para a vida tudo mais cedo ou mais tarde estaria permanentemente morto

Mas ele lembra que esse argumento soacute pode ter forccedila se supormos que natildeo

pode haver vida nova que haacute por exemplo um nuacutemero limite de almas Se

os vivos pudessem ter alguma outra origem que natildeo os mortos a necessidade

loacutegica desse princiacutepio desapareceria Mas Soacutecrates simplesmente assume que

seria impossiacutevel pensar que o processo ciacuteclico obrigatoacuterio natildeo existiria com

base na sua observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto (Cf72a-d)85 Assim a

obrigatoriedade deste processo natildeo parece vaacutelida (72a-d) Eacute plenamente

possiacutevel que haacute coisas que passam de quente a frio e findam neste estado

sem que passem de frio a quente novamente No caso de vida e morte algo

pode vir a morrer a partir de estar vivo e simplesmente findar morto A alma

pode vir a morrer a partir de estar viva e simplesmente terminar morta sem

que necessariamente venha a reencarnar O argumento de que haacute um

necessaacuterio equiliacutebrio no processo natildeo eacute provado

(ii) Alguns termos essenciais para o argumento natildeo satildeo definidos por exemplo

Platatildeo natildeo explica o que ele chama de opostos Aleacutem disso vaacuterios supostos

pares de opostos na verdade natildeo satildeo opostos os adjetivos em forma

comparativa ndash maior e menor mais justo e menos justo ndash natildeo satildeo pares de

opostos (70e4-71a11)

(iii) O argumento apresenta inconsistecircncias lsquoo que estaacute morto proveacutem do que

estaacute vivorsquo (71d10-11 72a5-6) A prova da existecircncia de nossas almas no

85 Hackforth 1998 p64

64

Hades se baseia na ideia de que lsquoas almas provecircm dos mortosrsquo Esta linha

central do argumento eacute problemaacutetica porque estaacute relacionado com a noccedilatildeo de

morte que Soacutecrates apresenta e com a ideia de reencarnaccedilatildeo com base na

qual Soacutecrates emprega a expressatildeo lsquoreviverrsquo A definiccedilatildeo de morte como

separaccedilatildeo da alma e corpo e o reconhecimento de que eles podem existir

separadamente eacute bastante questionaacutevel Em primeiro lugar natildeo se explica e

comprova que alma e corpo podem viver separadamente O corpo comeccedila a

degenerar assim que a alma deixa o corpo seria entatildeo o caso de acontecer o

mesmo com a alma Especialmente depois do argumento das afinidades

Soacutecrates e os amigos discutiratildeo este problema seria o cadaacutever mais

duradouro do que a alma Siacutemias propotildee que o corpo eacute mais duradouro do

que a alma (argumento da alma-harmonia) enquanto Cebes propotildee que a

alma seria mais longeva do que o corpo (argumento do tecelatildeo e seu manto)

mas sofreria degeneraccedilatildeo ao longo dos ciclos de reencarnaccedilatildeo (Cf91d

quando Soacutecrates faz um resumo das duas posiccedilotildees) Todos esses problemas

levantados pelos amigos decorrem em parte desta concepccedilatildeo vaga de morte

apresentada no primeiro estaacutegio do diaacutelogo e com base na qual pelo menos

os primeiros argumentos operam No uacuteltimo argumento a noccedilatildeo de lsquomortersquo eacute

diferente da simples ideia de lsquoseparaccedilatildeo do corporsquo Em segundo lugar no

argumento ciacuteclico a alma viva procede dos que estatildeo mortos a alma que

aloja-se num corpo jaacute se alojara num corpo de algueacutem que morreu Soacutecrates

entende que o processo ciacuteclico do morto para o vivo soacute funciona se lsquomortorsquo

aqui natildeo significa lsquoaniquiladorsquo porque soacute seria possiacutevel vir a estar viva a

partir de estar morta se a alma existisse mesmo quando estaacute morta

65

(desencarnada) (Cf70d1-2) e Soacutecrates natildeo explica por que razatildeo a alma

continua a existir quando deixa o corpo A ideia simultacircnea de lsquomortersquo e

lsquoexistecircnciarsquo (uma alma que morre existe) eacute por demais obscura A alma eacute

morta (separada do corpo) e viva (no sentido de que continua a existir) mas

o se espera eacute que morte implica deixar de existir e natildeo que algo morto

continua a existir Sendo assim o argumento dificilmente se estabelece com

base numa ideia que depende da ideia baacutesica da transmigraccedilatildeo O proacuteprio

Cebes levantaraacute um argumento para mostrar que nada garante ateacute o momento

que a alma que passa por um ciclo de reencarnaccedilotildees natildeo seja aniquilada num

desses ciclos (87d-e)

(iv) O argumento ciacuteclico sustenta que as almas devem oscilar perpetuamente

entre o estado de estar ldquovivordquo (unido a um corpo) e ldquomortordquo (separado de um

corpo) mas enquanto ele visa provar que esses ciclos de reencarnaccedilotildees

ocorrem para sempre Platatildeo natildeo tem nada a dizer propriamente sobre a

natureza da alma se ela eacute realmente imortal imune agrave morte e destruiccedilatildeo O

argumento ciacuteclico acaba sendo uma primeira tentativa malograda de

contrapor a crenccedila de que a alma que se separa do corpo imediatamente

perece com base numa conclusatildeo simples se a alma continua existindo ela

natildeo eacute destruiacuteda na hora da morte

(v) O argumento oferece uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma mas ao mesmo tempo estaacute em conflito com ela a

doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico admite a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees enquanto o argumento ciacuteclico sugere a continuidade perpeacutetua

deste processo ciacuteclico entre pares de opostos Aleacutem disso Soacutecrates contradiz

66

a si mesmo no diaacutelogo Soacutecrates menciona a libertaccedilatildeo do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes da purificaccedilatildeo o filoacutesofo que se separa do corpo em

estado de pureza sem arrastar consigo elementos corporais rompe o ciclo de

reencarnaccedilotildees e passa a viver com a divindade no Hades (80d-81a) O

proacuteprio mito final tambeacutem contempla a possibilidade de que o ciclo seja

rompido (104c) Talvez Platatildeo queira alinhar o argumento com algum tipo

de versatildeo pitagoacuterica da metempsicose que implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da

alma Zhmud sugere a possibilidade de que oacuterficos e pitagoacutericos divergiam

neste ponto86 Mas isto eacute bastante questionaacutevel

(vi) Os comentaacuterios apresentados jaacute satildeo suficientes para mostrar que o

argumento ciacuteclico falha em estabelecer os trecircs pontos que Soacutecrates considera

ter sido provado o reviver os vivos nascem dos mortos e as almas dos

mortos existem (72d8-10)

Por fim conveacutem apresentar alguns comentaacuterios adicionais sobre o argumento

ciacuteclico como prova da imortalidade da alma

(i) O argumento visa provar que a alma eacute imortal a partir de uma concepccedilatildeo

oacuterifica e pitagoacuterica de imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma

O processo ciacuteclico apresentado eacute perpeacutetuo infindaacutevel inquebraacutevel

Soacutecrates natildeo considera qualquer possibilidade de que pudesse haver uma

ruptura num dos ciclos de morte (desencarnaccedilatildeo) e vida (encarnaccedilatildeo) ou

que a alma possa perecer num deles

86 Zhmud 2012 p 228-230

67

(ii) O que o argumento tenta provar de modo especiacutefico eacute que a alma existe

depois da morte por algum tempo indefinido curto espaccedilo de tempo

longo tempo ou por uma duraccedilatildeo infinita87 Portanto somente uma

limitada sobrevivecircncia post-mortem da alma88

O argumento possui um ponto a se considerar se a alma existe depois da morte

isto significa que a alma natildeo eacute dispersa e destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave sua separaccedilatildeo

da morte (Cf 70a) Esta eacute a primeira tentativa de atacar o problema apresentado Mas os

amigos aperfeiccediloam a exigecircncia seraacute necessaacuterio provar que a alma eacute imortal e natildeo que

possui existecircncia limitada

Tambeacutem eacute importante lembrar que o argumento ciacuteclico no Feacutedon vem sendo

interpretado por muito tempo como sendo um esforccedilo platocircnico para dar

respeitabilidade filosoacutefica agrave antiga doutrina religiosa da transmigraccedilatildeo da alma como jaacute

pensava Wolfe89 Esta posiccedilatildeo eacute seguida por alguns inteacuterpretes contemporacircneos como

Sedley para quem o projeto platocircnico natildeo eacute provar a imortalidade da alma de iniacutecio

mas confirmar a respeitabilidade cientiacutefica de uma tradiccedilatildeo religiosa providenciando

evidecircncias de que ela se conforma com uma lei universal que governa a natureza da

87 O neoplatocircnico Siriano afirma que o objetivo do argumento seria provar apenas que a alma

permanece no Hades seja por um curto espaccedilo de tempo por um longo tempo ou por uma

duraccedilatildeo infinita (Dam I1834-6 Olimp10111-12) (Cf Gertz 2011 p86)

88 Uma opiniatildeo que predominou entre os uacuteltimos inteacuterpretes neoplatocircnicos (Cf Gertz 2011

p95) Barnes (Cf Barnes amp Bonelli (ed) 2011 p306) segue essa posiccedilatildeo entre os

contemporacircneos ele acredita que nada no argumento implica imortalidade da alma concluindo

que o argumento natildeo foi designado para provar a imortalidade mas apenas uma duraccedilatildeo finita

da alma O argumento estaria comprometido em provar a existecircncia da alma em algum lugar

depois da morte e por algum tempo que eacute diferente de provar a imortalidade da alma Ele

ressalta que essa ideia de uma temporaacuteria sobrevivecircncia da morte estaacute presente no contexto mais

geral do Feacutedon como eacute o caso de Cebes a respeito do tecelatildeo e dos mantos que produz (cf 87d-

88b) e natildeo pode ser ignorada no contexto especiacutefico do argumento ciacuteclico

89 Cf Wolfe 1966 p237

68

mudanccedila90 Isto decorre da observaccedilatildeo de que o argumento ciacuteclico confirma o antigo

relato ndash a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma As duas premissas que o argumento ciacuteclico

visa provar satildeo (i) as almas dos que morrem existem no Hades (ii) as almas dos que

partiram existem no Hades de onde regressam para a vida terrena (70c) Vejamos a

comparaccedilatildeo

Antigo relato

As almas dos que morrem existem

no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem existem

no Hades (existecircncia post mortem

da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Mas eacute importante dizer que o argumento natildeo eacute incorporado ao Feacutedon porque

Platatildeo tem o objetivo de defender a crenccedila numa doutrina religiosa como se fosse um

religioso se utilizando da filosofia para fundamentar a sua crenccedila O objetivo claro do

diaacutelogo eacute provar a imortalidade da alma mas nesta primeira tentativa a concepccedilatildeo de

imortalidade se confunde com a de transmigraccedilatildeo

90 Sedley 2012 p147 148

69

Por fim natildeo haacute qualquer sinal de que o argumento ciacuteclico tenha sido bem

avaliado ou aceito pelos amigos de Soacutecrates No decorrer do diaacutelogo fica claro que

Platatildeo se distancia desse tipo de prova e busca desenvolver uma doutrina platocircnica da

imortalidade da alma a partir de uma concepccedilatildeo de imortalidade que independe da

transmigraccedilatildeo da alma embora possa servir agravequeles que sustentam a doutrina Eacute assim

que no uacuteltimo argumento depois de uma discussatildeo que independe do componente

religioso ao final depois de estabelecido que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Soacutecrates

acrescenta e estaacute no Hades (107a1)

A nossa anaacutelise indica que o argumento ciacuteclico natildeo prova efetivamente nem a

existecircncia da alma depois da morte nem a imortalidade da alma

70

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)

41 Introduccedilatildeo

Concluiacutedo o argumento ciacuteclico Cebes imediatamente conduz a discussatildeo para o

ensino da reminiscecircncia

ldquoAinda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que

vocecirc ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute

do que reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido

em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos Mas isto

seria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum lugar

antes de assumir essa forma humana De modo que tambeacutem de acordo

com esse ensino a alma parece ser imortalrdquo (72e1-73a3)

Cebes eacute quem dessa vez sugere a segunda prova da imortalidade da alma De

acordo com a teoria da reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em

alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora simplesmente recordamos A doutrina

da reminiscecircncia tem um papel central em trecircs diaacutelogos platocircnicos Mecircnon Feacutedon e

Fedro mas em cada diaacutelogo a doutrina se mostra peculiar91 O Feacutedon inova com a

vinculaccedilatildeo da doutrina da reminiscecircncia e a ideia das lsquoFormasrsquo uma posiccedilatildeo que natildeo

existe no Mecircnon Como diz Kahn no Mecircnon a imortalidade da alma foi tomada como

91 Cf Kahn in Benson 2011 p 120

71

certa pela autoridade de saacutebios sacerdotes e sacerdotisas enquanto no Feacutedon ela deve

ser provada92

Se a doutrina apresentada no Feacutedon eacute uma continuaccedilatildeo ou natildeo do toacutepico

apresentado no Mecircnon ou se temos ou natildeo no Feacutedon uma apresentaccedilatildeo parcial de uma

soacute teoria desenvolvida ao longo dos trecircs diaacutelogos ndash Mecircnon Feacutedon Fedro ndash eacute uma

questatildeo que fica de fora do escopo de nosso estudo

42 Participaccedilatildeo positiva dos amigos

Com a participaccedilatildeo de Cebes introduzindo o ensino da reminiscecircncia e assim a

segunda prova da imortalidade da alma conveacutem salientar que essa postura positiva e

engajada marca os interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon O problema que vai se

revelando ao longo da conversa eacute que os argumentos apresentados por Soacutecrates satildeo

insuficientes para provar a imortalidade da alma e cada uma dessas tentativas frustradas

de provar a imortalidade da alma convida os amigos de Soacutecrates para uma participaccedilatildeo

mais efetiva como acontece quando Cebes pede para Soacutecrates mostrar se o ensino

bastante conhecido pelo ciacuterculo socraacutetico ndash reminiscecircncia ndash poderia provar a

imortalidade da alma (72e-73a) Os amigos de Soacutecrates tecircm uma participaccedilatildeo positiva

no diaacutelogo incentivam Soacutecrates a continuar a discussatildeo avaliam e rejeitam argumentos

apresentam consideraccedilotildees e objeccedilotildees sempre com o fim de obter a prova da

imortalidade da alma Eles satildeo muito mais do que supostos saacutebios que desconhem

aquilo que julgam conhecer com maestria Vejamos alguns exemplos

92 Kahn in Benson 2011 p 123

72

(i) Na primeira etapa do Feacutedon Cebes confronta a atitude de Soacutecrates diante

da morte baseada apenas em sua convicccedilatildeo de cunho religioso o que o

mestre havia dito sobre a alma produz duacutevidas sobretudo naqueles que

acolhem a crenccedila popular de que a alma se dispersaria e seria destruiacuteda

por ocasiatildeo da morte Eacute tambeacutem Cebes quem sugere que seria nessaacuteria

lsquouma demonstraccedilao natildeo muito pequenarsquo para satisfazer a necessidade de

provar que a alma natildeo se dispersa e eacute destruiacuteda como essas pessoas

dizem (69e-70a)

(ii) O segundo argumento eacute na verdade introduzido por Cebes que

certamente entende que haacute necessidade de que Soacutecrates apresente outra

prova da imortalidade da alma uma vez que a primeira natildeo o havia

convencido (72e-73a)

(iii) Ao final do segundo argumento Siacutemias e Cebes tem uma participaccedilatildeo

essencial em apontar falhas no argumento da reminiscecircncia e desafiar

Soacutecrates a construir um novo argumento porque ainda natildeo se havia dado

uma resposta capaz de responder agrave crenccedilas das pessoas comuns de que a

alma se dispersaria e pereceria por ocasiatildeo da morte (77b-c)

(iv) Ainda na transiccedilatildeo para o terceiro argumento eacute Cebes quem pede que

Soacutecrates os liberte do temor pueril de que a alma eacute passiacutevel de dispersatildeo

e destruiccedilatildeo o que nada mais eacute do que um claro apelo para que o mestre

Soacutecrates o uacutenico capaz de provar que a alma eacute imortal conceda-lhes

uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma (77e)

(v) Depois do argumento das afinidades os amigos de Soacutecrates ressaltam

que natildeo havia sido apresentada uma prova suficiente e Cebes ao final

73

exige que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον)

(88b5-6) Essa exigecircncia de Cebes eacute acolhida por Soacutecrates e o argumento

final tenta responder precisamente a esta exigecircncia o que se pode ver na

sua conclusatildeo de que lsquoa alma eacute imortal e indestrutiacutevelrsquo (ψυχὴ ἀθάνατον

καὶ ἀνώλεθρον) (106e-107a)

Analisando os trecircs primeiros argumentos a partir das intervenccedilotildees dos amigos eacute

possiacutevel observar que eles ajudam a entender o que natildeo eacute uma prova suficiente e

satisfatoacuteria da imortalidade da alma

(i) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da existecircncia da alma

post mortem (argumento ciacuteclico)

(ii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da preexistecircncia da

alma (argumento da reminiscecircncia)

(iii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova de que a alma eacute

semelhante ao que eacute completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

(argumento das afinidades)

Adiante Cebes deixaraacute claro que eacute necessaacuterio provar que a alma eacute

completamente imortal e indestrutiacutevel e natildeo apenas que ela eacute capaz de existir por um

tempo determinado (88a) Soacutecrates acolheraacute a sua exigecircncia e no uacuteltimo argumento

tenta provar justamente que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ

ἀνώλεθρον) (Cf 106d8-107a1)

74

43 Fundamento e condiccedilotildees para reminiscecircncia (72e-74a)

O nosso aprendizado nada mais eacute do que reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute

tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos

(Cf72e1-73a3) Em suma reminiscecircncia ocorre basicamente quando algueacutem se recorda

de x atraveacutes de y Por exemplo quando algueacutem se recorda de Siacutemias atraveacutes do retrato

de Siacutemias Mas Platatildeo apresenta uma seacuterie de condiccedilotildees que devem acompanhar este

ato cognitivo para que seja propriamente caracterizado como reminiscecircncia

Depois que Cebes propotildee o novo argumento e Soacutecrates preliminarmente

conversa com Siacutemias e revisa o essencial sobre o ensino da reminiscecircncia Soacutecrates

apresenta um tipo de prefaacutecio ao argumento propriamente dito no qual ele introduz

condiccedilotildees gerais para que ocorra a reminiscecircncia em 73c-74a como indica Soacutecrates

dizendo que lsquose algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio quersquo (εἴ τίς τι ἀναμνησθήσεται

δεῖν) (73c1-3) Um determinado ato cognitivo soacute poderaacute ser apropriadamente

chamado de reminiscecircncia ndash em 73c temos o verbo ἀναμιμνήσκω e o substantivo

ἀνάμνησις ndash se cumpridas essas condiccedilotildees apresentadas em 73c-74a Seguimos a

sugestatildeo de Scott que identifica quatro condiccedilotildees93

(i) Noacutes devemos ter conhecido x antecipadamente (73c1-3) lsquose algueacutem for

recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimentorsquo

(ii) Noacutes devemos natildeo apenas reconhecer y mas tambeacutem pensar sobre x

(73c6-8) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

93 Scott 1995 p 55

75

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item ()rsquo

(iii) x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

(73c8-9) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto

do primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que

lhe veio agrave mentersquo A partir de 73d temos vaacuterios exemplos de

reminiscecircncia

bull amantes veem uma lira um manto ou algum outro objeto de seus amados

e recordam-se da imagem do amado

bull algueacutem vecirc a pintura de um cavalo ou a pintura de uma lira e recorda-se

de uma pessoa

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Cebes

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Siacutemias

(iv) quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma

coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7) lsquomas sempre que se recorda de algo a

partir de coisas semelhantes natildeo passa necessariamente pela experiecircncia

de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se recordou e o objeto

recordado se assemelhamrsquo

Essas condiccedilotildees teratildeo crucial importacircncia no desenvolvimento do argumento

mas agora vejamos a quarta condiccedilatildeo com mais cuidado Soacutecrates fala que pode haver

dois tipos de reminiscecircncia aquela a partir de itens semelhantes ao que foi recordado e

76

a partir de itens dissemelhantes (74a2-3) Soacutecrates passa a discorrer sobre a

reminiscecircncia a partir de itens semelhantes (ἀφ ὁμοίων) e apresenta seu exemplo

emblemaacutetico quando algueacutem vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias e recorda-se do proacuteprio

Siacutemias (73e9-10) Nesse caso o filoacutesofo impotildee uma experiecircncia adicional (προσπάσχω)

e necessaacuteria (ἀναγκαῖον) no processo de recordaccedilatildeo uma condiccedilatildeo sine qua non

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x (74a5-7) No caso do retrato por exemplo a reminiscecircncia tem que cumprir a

seguinte condiccedilatildeo eacute necessaacuterio perceber (ἐννοέω) se a semelhanccedila entre o retrato e

Siacutemias apresenta uma deficiecircncia no que concerne agrave similaridade (τι ἐλλείπει κατὰ

τὴν ὁμοιότητα) em relaccedilatildeo ao que a pintura recorda ndash Siacutemias (74a5-7) Aquele que olha

para o retrato de Siacutemias e recorda Siacutemias deve perceber a semelhanccedila que existe entre

Siacutemias o seu retraro mas tambeacutem perceber a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Neste caso Platatildeo certamente tenta

estabelecer o que a leitura natural do texto indica natildeo importa quatildeo bom seja o retrato

seraacute uma coacutepia do ldquooriginalrdquo e para que haja reminiscecircncia eacute necessaacuterio que se perceba

natildeo apenas a semelhanccedila evidente entre um retrato de boa qualidade e a pessoa que ele

lembra mas eacute imperativo que se perceba a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Eacute com essa uacuteltima condiccedilatildeo em curso

que Platatildeo introduz o ceacutelebre e paradigmaacutetico exemplo no argumento a reminiscecircncia

que ocorre quando algueacutem vecirc coisas iguais e se recorda do igual em si

77

44 Igual em si e coisas iguais (74a-74e)

O apelo inicial de Soacutecrates eacute para que se examine (σκοπέω) se lsquoo igual existersquo

ou se lsquoo igual eacute algorsquo (τι εἶναι ἴσον) que eacute em essecircncia uma questatildeo variante de 65d4-5

φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν (65d4-5)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10)

Em seguida comeccedila o processo de caracterizaccedilatildeo daquilo que se afirma existir

comeccedilando com a distinccedilatildeo baacutesica entre lsquoo igual em sirsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e lsquoas coisas ditas

iguai como um pedaccedilo de madeira igual a outro uma pedra igual a outra ou a qualquer

coisa desse tipo sendo coisas de natureza diferente (74a9-12) Platatildeo desenvolve esta

distinccedilatildeo ao longo do argumento sobretudo explorando a condiccedilatildeo para reminiscecircncia

que mencionamos antes quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em

alguma coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7)

Embora a questatildeo φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10) ainda continua obscura de

iniacutecio no argumento da reminiscecircncia ou seja nas primeiras linhas do argumento ainda

natildeo estaacute claro o que se quer dizer com lsquoo igual eacute algorsquo ou lsquoo igual existersquo ao longo do

argumento da reminiscecircncia o leitor percebe a tentativa consistente de estabelecer a

existecircncia de coisas como lsquoo igual em sirsquo de distinguir lsquoo igual em sirsquo das coisas

sensiacuteveis enquanto se estabelece a tese epistemoloacutegica de que conhecer eacute recordar o

conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo eacute apenas rememoraccedilatildeo daquele

conhecimento que a alma adquiriu antes do nascimento o que para Soacutecrates e seus

amigos prova que a alma jaacute existia antes de reencarnar

78

Portanto eacute neste contexto do argumento da reminiscecircncia que uma corrente

majoritaacuteria de interpretaccedilatildeo aponta pela primeira vez o que se entende por teoria das

Formas sendo lsquoigual em sirsquo uma Forma metafiacutesica que a alma conhece antes de nascer

numa condiccedilatildeo de pureza separada do corpo Vejamos o posicionamento de alguns

inteacuterpretes

(i) Gallop acredita que

bull A Teoria das Formas eacute introduzida em 65d e estaacute em cena no

argumento da reminiscecircncia

bull A pergunta φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (lsquoo igual eacute algorsquo) remete agrave

existecircncia de Formas metafiacutesicas

bull A doutrina da imortalidade eacute logicamente dependente da Teoria

das Formas e isto eacute declarado claramente em 76e-77a 92d-e and

l00b) firmando-se como teoria fundamental para o argumento da

reminiscecircncia

bull A Teoria das Formas eacute assumida em todo o diaacutelogo mas natildeo

provada94

(ii) Kahn por semelhante modo

94 Gallop 2002 p93 Cf Hackfort 1998 p69 97

79

bull A doutrina das Formas jaacute estaacute impliacutecita na descriccedilatildeo do objetivo

do filoacutesofo de ldquocontemplar as coisas em si com a proacutepria almardquo

(68e)

bull Eacute somente no argumento da reminiscecircncia que Soacutecrates comeccedila a

especificar a distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e Participantes

(74b-c) e eacute fundamental para a concepccedilatildeo da alma implicada no

argumento da imortalidade

bull A funccedilatildeo preciacutepua da teoria da reminiscecircncia consiste em

estabelecer a condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu

elo cognitivo com o ser transcendente 95

Agora voltaremos ao argumento e retomaremos esta questatildeo da teoria das

Formas posteriormente

Existe um igual

A primeira questatildeo ndash Existe um igual ndash eacute respondida por Siacutemias com grande

convicccedilatildeo (74a) A existecircncia dessas coisas que Soacutecrates chama agora de lsquoigual em sirsquo eacute

simplesmente assumida no argumento O argumento da reminiscecircncia depende em sua

origem de algo que as personagens simplesmente assumem que existe lsquoo igual em sirsquo

Ao longo de sua explanaccedilatildeo do mecanismo da reminiscecircncia Platatildeo caracteriza

lsquoo igual em sirsquo em contraste com as coisas sensiacuteveis e nos daacute uma compreensatildeo melhor

95 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

80

do objeto em questatildeo Eacute importante observar como esta estapa introdutoacuteria do

argumento eacute de iniacutecio conduzida a partir de pelo menos trecircs questotildees encadeadas

(i) Diriacuteamos como presumo que existe um igual () o igual em si

Diremos que isso existe ou natildeo (74a)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον () αὐτὸ τὸ ἴσον φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν

(ii) E tambeacutem sabemos o que eacute isso (74b)

ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν

(iii) De onde adquirimos o conhecimento disso (74b)

πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην

E tambeacutem sabemos o que eacute isso

A segunda questatildeo ndash lsquoE tambeacutem sabemos o que eacute issorsquo (74b) levanta um

problema sobre quem pode rememorar A primeira pessoa do plural ndash lsquoE tambeacutem

sabemos o que eacute issorsquo (74b) ndash e as condiccedilotildees para a reminiscecircncia apresentadas no

argumento sugerem que apenas os filoacutesofos podem rememorar Encontramos pelo

menos trecircs possiacuteveis interpretaccedilotildees de reminiscecircncia

(i) Interpretaccedilatildeo sofisticada lsquonoacutesrsquo em 74b indica um grupo seleto de

filoacutesofos iluminados que conhecem as Formas e com a posse desse

conhecimento esses filoacutesofos somente (no Feacutedon o ciacuterculo socraacutetico)

podem atender agraves condiccedilotildees para a reminiscecircncia dentre elas a condiccedilatildeo

crucial o reconhecimento da deficiecircncia de pedras e paus em contraste

81

com o Igual em si mesmo Reminiscecircncia ocorre quando em resposta agrave

percepccedilatildeo sensorial recordamos de uma Forma Scott acredita que em

74b Soacutecrates se concentra no conhecimento de uma uma entidade muito

distante do pensamento da maioria das pessoas a Forma da igualdade

Reminiscecircncia requer o conhecimento de Formas transcendentes e

apenas os filoacutesofos tecircm acesso a esse tipo niacutevel de conhecimento96

Franklin aponta um dos grandes problemas desta interpretaccedilatildeo se a

recordaccedilatildeo eacute restrita a uma classe seleta de aprendizes o argumento da

reminiscecircncia seria destinado a mostrar a preacute-existecircncia da alma somente

para aqueles que cumprem os requisitos97

(ii) Interpretaccedilatildeo ordinaacuteria lsquonoacutesrsquo em 74b remete ao ato cognitivo realizado

por todas as pessoas Reminiscecircncia diz respeito ao aprendizado

ordinaacuterio que qualquer pessoa pode experienciar O contexto do diaacutelogo

que visa provar a imortalidade da alma das pessoas em geral natildeo apenas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos favorece essa leitura98 Embora esta leitura

seja favorecida pelo contexto geral do diaacutelogo o contexto imediato

parece deixar claro que apenas filoacutesofos podem praticar reminiscecircncia

nos moldes apresentados aqui conhecimento do lsquoigual em sirsquo e

capacidade para cumprir as condiccedilotildees de reminiscecircncia

(iii) Interpretaccedilatildeo conciliatoacuteria estamos chamando de interpretaccedilatildeo

conciliatoacuteria aquela proposta por Kahn que tenta harmonizar as

interpretaccedilotildees sofisticada e ordinaacuteria Ele acredita que haacute duas teses em

96 Scott 1995 p56 97 Franklin 2005 p290 98 Franklin 2005 p289290

82

questatildeo no argumento uma a respeito da cogniccedilatildeo de todas as pessoas

todas rememoram todas se referem agraves Formas em todo juiacutezo perceptivo

mas apenas de modo inconsciente se referem ao Igual em si quando

julgam que pedaccedilotildees de paus e pedras satildeo iguais a outra tese diz respeito

agrave reminiscecircncia para filoacutesofos somente filoacutesofos quando rememoram

podem distinguir entre Formas e particulares e reconhecer a deficiecircncia

dos uacuteltimos99

A tentativa de conciliaccedilatildeo de Kahn parece a mais prudente Eacute inegaacutevel que

Platatildeo esteja apresentando condiccedilotildees para reminiscecircncia que apenas os filoacutesofos

(ciacuterculo socraacutetico) podem cumprir por outro lado a interpretaccedilatildeo estritamente

sofisticada eacute improvaacutevel porque natildeo se pode esperar que Platatildeo esteja querendo provar

apenas a imortalidade da alma de Soacutecrates e seus amigos Ao que parece todas as

pessoas podem lsquorememorarrsquo aquilo que a alma conheceu antes do nascimento mas

nigueacutem exceto o filoacutesofo saberia dar um relato (διδόναι λόγον) a respeito da

reminiscecircncia (76b) Portanto as condiccedilotildees para a reminiscecircncia devem ser cumpridas

por todas as pessoas mas de modo consciente pelos filoacutesofos

De onde adquirimos o conhecimento disso

A terceira questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o conhecimento dissorsquo (74b) ndash visa

esplicar o mecanismo de reminiscecircncia dando atenccedilatildeo especial para a seguinte condiccedilatildeo

para reminiscecircncia x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

99 Kahn in Benson 2011 p 124

83

O emprego do verbo lsquoconhecerrsquo (ἐπίσταμαι) e do substantivo lsquoconhecimentorsquo

(ἐπιστήμη) (74b) revela que Platatildeo estaacute tratando de atos cognitivos lsquoE tambeacutem sabemos

o que eacute issorsquo (καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν) lsquoDe onde adquirimos o conhecimento

dissorsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) (74b) Vejamos a explicaccedilatildeo de

Soacutecrates recordando tambeacutem a condiccedilatildeo apresentada haacute pouco antes

ldquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo

somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo item

mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto do

primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que lhe

veio agrave menterdquo(73c)

ldquoQuando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso trazemos agrave

mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delasrdquo (74b)

ldquoEntatildeo perguntou eacute mesmo a partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave

mente e adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais

sejam diferentesrdquo (74c)

Agora a questatildeo especiacutefica eacute como recordamos a lsquoo igual em sirsquo cujo

conhecimento adquirimos antes do nascimento O problema inicial que temos eacute

o papel dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia Quando utilizamos os

sentidos (αἴσθησις) natildeo somente conhecemos (γιγνώσκω) os objetos sensiacuteveis

(paus e pedras iguais por exemplo) mas tambeacutem nos vem agrave mente (ἐννοέω) um

84

segundo item (lsquoFormarsquo) (Cf 73c) Ao que parece existem dois atos cognitivos

integrados no mecanismo de reminiscecircncia o primeiro ato eacute o de conhecer

(γιγνώσκω) um objeto sensiacutevel pelo uso de αἴσθησις Quando isto ocorre um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto mas tambeacutem vem agrave mente

(ἐννοέω) um segundo item (73c) Eacute assim que deve acontecer quando

recordamos o lsquoigual em sirsquo cujo conhecimento obtemos antes de nascer pelo uso

de αἴσθησις vemos gravetos pedras e outras coisas iguais e a partir disso um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto a partir dessas coisas (ἐκ τούτων)

trazemos agrave mente aquilo (ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) (74b) Em 74c Soacutecrates repete a

ideia dizendo que eacute a partir dessas coisas iguais (ἐκ τούτων τῶν ἴσων) que se

traz agrave mente (ἐννοέω) e se toma (λαμβάνω) o conhecimento (ἐπιστήμη) do Igual

Esta ideia de que pensamos ou adquirimos conhecimento do Igual a

partir das coisas sensiacuteveis eacute recorrente no argumento (74c710 75a5-7 75a11-

b3 cf75e3-5) o seu significado remete agrave questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o

conhecimento disso (74b)rsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) ndash mas

ainda eacute difiacutecil entender precisamente o que significam expressotildees como

πόθενἐκ τούτωνἐκ τούτων τῶν ἴσων Se Platatildeo estiver realmente assumindo

que natildeo haacute outra maneira de adquirir o conhecimento do Igual mas por meio

dos sentidos somente sugere-se uma ideia diferente daquela apresentada ao

longo do diaacutelogo a de que os sentidos satildeo despreziacuteveis obstaacuteculos na busca do

filoacutesofo pelas lsquoFormasrsquo Essa caracterizaccedilatildeo extremamente pejoritaacuteria dos

sentidos e dos sensiacuteveis permanece no diaacutelogo ateacute a autobiografia intelectual de

Soacutecrates quando o filoacutesofo declara que seu novo modo de investigaccedilatildeo exclui a

utilizaccedilatildeo de αἴσθησις (99d4-e6)

85

Na primeira etapa do diaacutelogo em 65andash66a Platatildeo explica como

podemos adquirir conhecimento e parece ficar claro que natildeo pode ser atraveacutes

dos sentidos Fine apresenta assim a estrutura do argumento na primeira parte do

diaacutelogo (65a9ndashc10)

1 Os sentidos corporais natildeo satildeo precisos nem claros

2 Portanto natildeo podemos perceber nada com precisatildeo ou clareza

3 Portanto a percepccedilatildeo natildeo conteacutem qualquer verdade

4 Portanto sempre que a alma indaga (zetein 65a10) ou considera

(skopein 65b10) algo junto com o corpo ela eacute enganada pelo corpo

5 Portanto a alma natildeo pode alcanccedilar a verdade quando indaga ou

considera algo junto com o corpo

6 Se algueacutem natildeo consegue alcanccedilar a verdade natildeo pode alcanccedilar a

sabedoria

7 Portanto a percepccedilatildeo natildeo pode atingir a sabedoria nem a alma pode

alcanccedilar a sabedoria se investigar ou considerar algo junto com o

corpo

8 Portanto eacute pelo raciociacutenio que qualquer uma das coisas que satildeo se

torna manifesta para a alma

9 Portanto se a alma pode atingir a sabedoria seraacute pelo raciociacutenio100

No argumento da reminiscecircncia os sentidos desempenham um papel no

mecanismo de reminiscecircncia que permite a algueacutem rememorar a lsquoFormarsquo a partir

100 Fine 2016 p559

86

das coisas sensiacuteveis Por outro lado eacute pouco provaacutevel que por πόθενἐκ

τούτωνἐκ ἐκ τούτων τῶν ἴσων Platatildeo queira enfatiza a suficiecircncia das coisas

sensiacuteveis como objetos capazes de nos fazer trazer as lsquoFormasrsquo agrave mente

Provavelmente os objetos particulares oferecem um primeiro estiacutemulo para um

segundo ato cognitivo em que a alma utiliza o intelecto para alcanccedilar aquele

conhecimento esquecido das lsquocoisas em sirsquo Quando algueacutem vecirc paus e pedras

iguais o estiacutemulo dos sensiacuteveis como que aperta o gatilho para um segundo ato

cognitivo quando a alma atraveacutes da atividade intelectiva traz agrave mente o

conhecimento das lsquoFormasrsquo (75a4) o qual jaacute possuiacuteamos originalmente antes do

nascimento e que esquecemos ao nascer na ocasiatildeo em que a alma se aloja num

corpo (Cf75b-77a) Ainda assim enquanto presa ao corpo o maacuteximo que a

alma faz eacute rememorar o conhecimento adquirido previamente e natildeo adquirir o

conhecimento original da lsquoFormarsquo em primeira matildeo Portanto o papel da

percepccedilatildeo sensiacutevel eacute importante mas bastante restrito Na ausecircncia do corpo a

alma pode ter contato direto com as lsquoFormasrsquo

Ainda assim a participaccedilatildeo dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia

continua sendo difiacutecil de conciliar com a caracterizaccedilatildeo extremamente negativa

dos sentidos no diaacutelogo No argumento da afinidade a alma que se utiliza do

corpo para fazer qualquer tipo de consideraccedilatildeo eacute arrastada por ele para os

objetos sensiacuteveis e logo entra em estado de confusatildeo como se estivesse becircbada

por estar em contato com objetos desse tipo (Cf79c) A soluccedilatildeo parece

abandonar completamente os sentidos o que Soacutecrates faraacute com o seu novo modo

de investigaccedilatildeo (99d4-e6)

87

Distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo

Para que haja reminiscecircncia lsquoo igual em sirsquo que eacute rememorado deve ser um

objeto de conhecimento diferente das coisas sensiacuteveis Aleacutem disso eacute necessaacuterio

reconhecer a deficiecircncia das coisas sensiacuteveis em contraste com lsquoo igual em sirsquo A

distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo eacute fundamental para o mecanismo de

reminiscecircncia Esta distinccedilatildeo eacute basicamente expressa a partir da caracterizaccedilatildeo da

inferioridade ou deficiecircncia de coisas sensiacuteveis com o lsquoigual em sirsquo (74d-75b) A

reminiscecircncia requer que noacutes apontemos a diferenccedila entre τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x Aquele que rememora deve reconhecer que (75b5-8)

(i) Todas as coisas sensiacuteveis querem (προθυμέομαι) ser tal como (οἷον) lsquoo

igualrsquo

(ii) mas satildeo inferiores (φαῦλος) a ele

Aqui o texto eacute obscuro e natildeo fornece detalhes para a compreensatildeo dessa ideia de

deficiecircncia entre as lsquocoisas sensiacuteveisrsquo e lsquoo igual em sirsquo Natildeo apenas a ideia de

lsquodeficiecircnciarsquo lsquoinferioridadersquo (φαῦλος) eacute vaga mas tambeacutem a ideia de que coisas

sensiacuteveis como paus e pedras iguais tecircm um desejo ardoroso por ser do mesmo tipo do

igual em si O que fica claro eacute que Platatildeo estaacute tratando de duas classes de coisas e que

uma eacute nobre (igual em si) a outra vulgar (φαῦλος) (coisas iguais) Essa distinccedilatildeo seraacute

bem desenvolvida no argumento das afinidades Mas por enquanto Platatildeo nos priva de

88

mais informaccedilotildees A obscuridade da noccedilatildeo de lsquodeficiecircnciarsquo e de lsquozelo ardorosorsquo eacute

realmente uma fraqueza na exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo a ser cumprida por quem rememora

45 Estrutura Baacutesica do Argumento da Reminiscecircncia

Depois de explicar em linhas gerais o mecanismo de reminiscecircncia eacute possiacutevel

agora observar a estrutura geral do argumento e em seguida desenvolver o ponto preciso

do qual decorre a conclusatildeo de que a alma continua a existir depois da morte Eis a

estrutura do argumento seguida de um comentaacuterio

[1] Noacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o

Igual quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que

elas tentam ser como o Igual mas satildeo inferiores a elas (74e9-75a3)

[2] Noacutes natildeo pensamos no Igual nem haacute chance de isso ter acontecido exceto

pelos sentidos (τῶν αἰσθήσεων) (75a5-7)

[3] Tudo percebido pelos sentidos se esforccedila para ser como o Igual mas eacute

inferior (75b12)

[4] Noacutes devemos necessariamente ter adquirido o conhecimento (λαμβάνειν

ἐπιστήμην) original do Igual antes mesmo de utilizar os sentidos (75b4-8)

[5] Noacutes natildeo podemos ter adquirido o conhecimento original do Igual a partir

dessas coisas inferiores (sensiacuteveis) (75b4-8)

[6] Noacutes devemos ter adquirido o conhecimento original do Igual (e de todas as

outras coisas desse tipo) antes mesmo de utilizar os sentidos (75c4-5)

[7] Noacutes comeccedilamos a utilizar os sentidos quando nascemos (75b10-11)

89

[8] Portanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea conhecimento

do Igual (76c)

A ideia central do argumento eacute a necessidade de termos adquirido conhecimento

do igual em si antes do uso dos sentidos porque nem os sentidos nem os objetos

sensiacuteveis podem fornecer esse conhecimento Jaacute que comeccedilamos a usar os sentidos na

ocasiatildeo do nascimento a alma deve ter conhecido o igual em si antes do nascimento e

portanto a alma existe (e tem conhecimento do igual) antes do nascimento

Embora a rememoraccedilatildeo ocorra a partir dos sentidos a aquisiccedilatildeo original do

conhecimento das lsquoFormasrsquo natildeo pode ocorrer a partir do domiacutenio das coisas sensiacuteveis

porque eacute um domiacutenio de coisas inferiores deficientes que natildeo podem servir de fonte

primaacuteria para a obtenccedilatildeo do conhecimento original da lsquoFormarsquo Ateacute mesmo a

rememoraccedilatildeo do conhecimento adquirido previamente eacute difiacutecil e nem mesmo a

explanaccedilatildeo de como isto ocorre eacute bem clara O conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo natildeo

pode ser obtido enquanto alma reencarnada e nem mesmo eacute faacutecil recuperar o

conhecimento jaacute adquirido Apenas quando a alma estaacute separada do corpo eacute que poderia

ganhar conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo

A ideia de que eacute impossiacutevel adquirir conhecimento das coisas em si atraveacutes do

estiacutemulo dos objetos particulares eacute um dos pontos essenciais que levaratildeo agrave conclusatildeo de

que a alma soacute pode ter adquirido este conhecimento antes de nascer Quando relata a

inferioridade dos objetos sensiacuteveis em contraste com o igual em si Soacutecrates reconhece

que natildeo eacute possiacutevel que por meio da nossa percepccedilatildeo de objetos sensiacuteveis deficientes

possamos ter um conhecimento original do Igual em si A proacutepria capacidade de

observar que lsquosensiacuteveisrsquo querem ser tal como lsquoa coisa em sirsquo mas satildeo inferiores requer

90

obrigatoriamente um conhecimento preacutevio da lsquocoisa em sirsquo que se assemelha com o

objeto sensiacutevel o qual eacute deficiente e inferior em contraste com a lsquocoisa em sirsquo Por meio

da nossa percepccedilatildeo do domiacutenio dos sensiacuteveis seria impossiacutevel reconhecer a deficiecircncia

de pedras e paus iguais em contraste com o igual em si A proacutepria natureza deficiente do

domiacutenio dos sensiacuteveis eacute incapaz de providenciar conhecimento daquilo que eacute nobre

superior Pelo seu caraacuteter coisas sensiacuteveis natildeo podem ser fonte suficiente para o

conhecimento da lsquoFormarsquo A uacutenica resposta plausiacutevel para este problema segundo a

personagem Soacutecrates eacute que a nossa alma deve ter obtido o conhecimento do lsquoigual em

sirsquo antes mesmo de utilizar os sentidos porque ao utilizar os sentidos e perceber que a

deficiecircncia de paus e pedras em contraste com o igual em si a pessoa jaacute estaacute fazendo

uso desse conhecimento original do lsquoigual em sirsquo Essa ideia central jaacute comeccedila a ser

desenvolvida depois do mecanismo de reminiscecircncia ter sido explicado a partir de 74e

ldquoNoacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o Igual

quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que elas tentam

ser como o Igual mas satildeo inferiores a elasrdquo (74e9-75a3) Quando pela primeira vez

utilizamos os sentidos e jaacute podemos reconhecer a diferenccedila entre lsquosensiacuteveisrsquo e lsquoFormasrsquo

eacute necessaacuterio que nesta ocasiatildeo jaacute tenhamos obtido previamente o conhecimento da

lsquoFormarsquo Conforme Soacutecrates se jaacute comeccedilamos a utilizar os sentidos ao nascer

possuiacutemos conhecimento do igual em si antes mesmo do nascimento e as nossas almas

jaacute existiam antes do nascimento (75c)

91

46 Avaliaccedilatildeo do argumento

Ao final do argumento Soacutecrates acredita que provou que a alma existe antes do

nascimento lsquoPortanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea

conhecimento do Igualrsquo (76c) Eis algumas falhas do argumento

(i) A prova da reminiscecircncia falha porque se estabelece a partir de uma

mera pressuposiccedilatildeo de que lsquoFormasrsquo existem

(ii) A prova da reminiscecircncia falha porque natildeo estaacute claro que a alma natildeo

possa adquirir um conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo a partir

da reencarnaccedilatildeo

(iii) Soacutecrates conclui que fica provado que lsquoFormasrsquo e almas existem antes do

nascimento (76e5-7) mas em momento algum o argumento procura

provar que lsquoFormasrsquo existem

(iv) O argumento da reminiscecircncia natildeo prova que a alma eacute imortal Ainda

que o argumento se estabelecesse nada garantiria que a alma que

conhece as lsquoFormasrsquo no aleacutem natildeo seria destruiacuteda ainda antes de

reencarnar A doutrinda da reminiscecircncia soacute provaria que a nossa alma

sobreviveu no periacuteodo de tempo que vai do aleacutem quando a alma

conheceu as lsquoFormasrsquo ateacute o momento em que as recordamos Estaacute bem

claro que a alma poderia entatildeo se dispersar e destruir na hora da morte

92

47 Observaccedilotildees finais

O argumento eacute bastante difiacutecil e apresenta muitos problema de interpretaccedilatildeo

sobretudo porque Platatildeo deixa boa parte dos pontos centrais do argumento sem uma

explicaccedilatildeo suficiente Haacute muitas sentenccedilas ambiacuteguas e vagas e conceitos essenciais para

o argumento natildeo satildeo esclarecidos como o que significa dizer que as coisas sensiacuteveis

tecircm um forte desejo de ser como as lsquoFormasrsquo

Nestas consideraccedilotildees finais comentamos trecircs toacutepicos relacionados ao argumento

teoria das Formas imortalidade da alma e a sugestatildeo de Soacutecrates de que devemos

combinar argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

471 Teoria das Formas e a prova da imortalidade da alma

O problema da teoria das Formas eacute alvo de grande debate e a interpretaccedilatildeo

majoritaacuteria como apresentamos no estudo tende a reconhecer que a imortalidade da

alma depende da Teoria das Formas apresentada no argumento da reminiscecircncia A

nossa avaliaccedilatildeo do argumento sugere que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o

fim de apoiar a sua exposiccedilatildeo de uma mecanismo de reminiscecircncia que levaraacute a uma

prova de que a alma existe antes de nascer Natildeo temos aqui uma terminologia teacutecnica

para Formas e a distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo estaacute longe de ser clara

Portanto o maacuteximo que podemos reconhecer eacute uma teoria incipiente uma primeira

tentativa no diaacutelogo de estabelecer a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo e

que nos leva a reconhecer uma discreta tentativa de estabelecer ou esboccedilar uma teoria

das Formas Aleacutem disso esta tentativa visa dar suporte agrave explanaccedilatildeo sobre o mecanismo

93

de reminiscecircncia Alguns comentadores tendem a explorar a temaacutetica da teoria das

Formas no argumento das reminiscecircncia e chegam a conclusotildees exageradas como

Kahn segundo o qual Platatildeo comeccedila a desenvolver a noccedilatildeo de lsquoparticipaccedilatildeorsquo no

contexto do argumento da reminiscecircncia 101 Portanto a nossa avaliaccedilatildeo do argumento

indica que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o fim de dar suporte agrave sua

exposiccedilatildeo sobre o mecanismo de reminiscecircncia que fornece a prova para a preexistecircncia

da alma

472 Imortal (ἀθάνατος)

Temos no argumento da reminiscecircncia a primeira menccedilatildeo expliacutecita da palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) no diaacutelogo (73a2) Cebes afirma que a doutrina da reminiscecircncia

natildeo seria plausiacutevel se a nossa alma natildeo existisse em algum lugar antes de assumir a

forma humana (τοῦτο δὲ ἀδύνατον εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) e finaliza dizendo que a alma parece ser algo

imortal tambeacutem dessa maneira (ὥστε καὶ ταύτῃ ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι) (Cf

72e1-73a3) Cebes estimula Soacutecrates a construir uma prova da imortalidade da alma

com base na doutrina da reminiscecircncia que lhe parece tambeacutem tratar da imortalidade da

alma Note-se que o emprego da expressatildeo τι ἔοικεν εἶναι (73e2-3) indica que Cebes

natildeo tem qualquer convicccedilatildeo sobre isso A sua observaccedilatildeo eacute um convite para que

Soacutecrates lhe mostre se realmente o ensino da reminiscecircncia pode ser tomado como

prova da imortalidade da alma ou natildeo Cebes eacute o responsaacutevel por vincular incialmente

imortalidade da alma e argumento da reminiscecircncia

101 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

94

Mas a intervenccedilatildeo inicial de Soacutecrates visa ratificar a tese central da doutrina da

reminiscecircncia para Siacutemias aprender eacute recordar O filoacutesofo acha que Siacutemias natildeo estaacute

convencido de que o aprendizado pode ser reminiscecircncia e o convida a examinar a

doutrina a partir de outro acircngulo Siacutemias nega que tenha essa duacutevida mas reconhece que

precisa experimentar o ensino da reminiscecircncia (73b) Eacute a partir daiacute que Soacutecrates

introduz o segundo argumento da imortalidade da alma no Feacutedon em 73c Soacutecrates

sequem menciona a palavra lsquoimortalrsquo ao longo do argumento e a sua conclusatildeo aponta

para o que Cebes apresenta desde o iniacutecio a doutrina da reminiscecircncia soacute funciona ou

seja reminiscecircncia soacute lsquoseria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum

lugar antes de assumir essa forma humanarsquo (73a1-2) Ao final o argumento da

reminiscecircncia nem prova que a alma eacute imortal A insistecircncia de Soacutecrates de que

argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia juntos consistiria na prova completa que os

amigos esperam natildeo eacute acolhida pelos amigos (77c-d) que continuam assombrados com

a possibilidade de teestemunha em breve natildeo apenas a morte de Soacutecrates a separaccedilatildeo

entre alma e corpo mas a destruiccedilatildeo da sua alma (77e) O argumento ciacuteclico havia

mostrado que as almas existem depois da morte de onde voltam para alojar-se num

corpo A conclusatildeo do argumento da reminiscecircncia reforccedila apenas algo que jaacute havia

sido mencionado no argumento ciacuteclico ndash as almas existem antes de reencarnar ndash mas

agora a partir de um argumento aceito pelos amigos no que concerne agrave existecircncia da

alma antes do nascimento

A sugestatildeo para combinar os argumentos mostra que Soacutecrates entende que

preexistecircncia da alma (argumento da reminiscecircncia) + existecircncia post mortem da alma

(argumento ciacuteclico) = imortalidade da alma Mas a existecircncia da alma antes do

nascimento e a existecircncia da alma depois da morte tomadas juntas natildeo provam que a

95

alma eacute imortal A sugestatildeo de Soacutecrates deve ser entendida com base na concepccedilatildeo de

imortalidade vinculada agrave reencarnaccedilatildeo apresentada no antigo relato a qual Soacutecrates

ainda tem em mente quando sugere essa combinaccedilatildeo como veremos adiante

Tambeacutem vale lembrar que o uso de ὥστε καὶ (73e2) sugere que a discussatildeo

anterior no entendimento de Cebes jaacute poderia ser vista como uma tentativa de provar a

imortalidade da alma mas de modo algum ele considera que o argumento teve sucesso

nisso No Feacutedon natildeo encontramos qualquer sugestatildeo de que Cebes ou Siacutemias aceitam o

argumento ciacuteclico como prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma Tudo indica que

natildeo

(i) A introduccedilatildeo abrupta do ensino da reminiscecircncia com uma esperanccedila de

que pudesse provar a imortalidade da alma parece muito mais uma

admissatildeo velada de que Cebes natildeo estaacute satisfeito com a prova

apresentada do que simplesmente um reconhecimento de que o

argumento ciacuteclico prova a imortalidade da alma

(ii) Depois do argumento das afinidades em 85d as personagens se privam

de apresentar as suas criacuteticas natildeo pretendem importunar Soacutecrates na

ocasiatildeo adversa em que se encontra Essa deve ser uma das razotildees pelas

quais pelo menos na transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia Cebes

prefere incitar Soacutecrates a um novo argumento em vez de importunar o

mestre com suas objeccedilotildees diretas

(iii) A reaccedilatildeo esperada de Cebes caso estivesse de acordo com a primeira

prova apresentada seria a expressatildeo de sua satisfaccedilatildeo como ocorre no

96

final do uacuteltimo argumento (107a) quando ele simplesmente afirma que

natildeo tem nada para objetar

(iv) Ao final do proacuteprio argumento da reminiscecircncia mesmo depois da

sugestatildeo de que a uniatildeo do argumento ciacuteclico e do argumento da

reminiscecircncia provaria o que eles requerem o temor dos amigos diante

da possibilidade de que a alma de Soacutecrates pudesse ainda ser dissipada e

destruiacuteda e o clamor para que Soacutecrates pudesse ainda persuadi-lo a natildeo

temer por meio um novo argumento tambeacutem indicam que Cebes e Siacutemias

rejeitam o argumento ciacuteclico (e tambeacutem o da reminiscecircncia) como prova

da imortalidade da alma (77e)

(v) Tambeacutem depois do argumento das afinidades Soacutecrates pergunta se os

amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns dos argumentos

apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam apenas alguns e

rejeitam outros ressaltando que aceitam o argumento da reminiscecircncia

no que diz respeito agrave preexistecircncia da alma (91e-92a) Eacute bem provaacutevel

que o argumento ciacuteclico esteja na lista dos rejeitados

Ao dizer que a alma parece ser algo imortal (ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι)

(73a) Cebes estaacute reconhecendo que a discussatildeo que toma lugar na etapa demonstrativa

eacute especialmente sobre a imortalidade da alma Desde que ele mesmo apresenta a crenccedila

comum de que a alma pode ser destruiacuteda na separaccedilatildeo do corpo (70a) eacute especialmente

sobre a imortalidade da alma No Feacutedon os amigos de Soacutecrates natildeo aceitam um

argumento filosoacutefico que natildeo seja capaz de provar nada mais do que a imortalidade da

alma Esta transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia eacute sem duacutevida a ocasiatildeo precisa

97

em que Platatildeo emprega a palavra lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) pela primeira vez no diaacutelogo na

voz de Cebes com o fim de nos deixar saber que o tema da imortalidade da alma

individual (o contexto do Feacutedon deixa claro que o problema em questatildeo eacute provar que a

alma de Soacutecrates natildeo seraacute destruiacuteda assim que beber o veneno) se estabelece como tema

central do diaacutelogo

473 Eacute necessaacuterio combinar argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia

Haacute alguns indiacutecios textuais que mostram que Platatildeo se preocupa em relacionar o

argumento ciacuteclico e o argumento da reminiscecircncia Ao final do argumento da

reminiscecircncia Cebes concorda com Siacutemias de que soacute fora demonstrado (ἀποδείκνυμι)

metade (ἥμισυς) daquilo que seria necessaacuterio que a alma existe antes do nascimento

(ὅτι πρὶν γενέσθαι ἡμᾶς ἦν ἡμῶν ἡ ψυχή) (Cf77b1 77c2-3) Agora seria necessaacuterio

provar que a alma continua a existir depois da morte (77c) Soacutecrates entatildeo trata os dois

argumentos como unidade e pede que os amigos os combinem (συντίθημι) para obter

uma uacutenica prova (77c)

Alguns comentadores admitem pelo menos uma relaccedilatildeo complementaacuteria entre os

dois argumentos e ateacute que uma completa prova da imortalidade da alma dependeria da

combinaccedilatildeo dos dois102 Mas geralmente natildeo se oferece uma resposta convincente para

esse tratamento singular e relaccedilatildeo dos dois argumentos A nossa anaacutelise procura mostrar

que o elo de ligaccedilatildeo dos dois argumentos eacute a doutrina religiosa de cunho oacuterfico

pitagoacuterico apresentada no relato antigo em 70a e que eacute um componente fundamental da

doutrina da reminiscecircncia no Mecircnon As duas primeiras provas da imortalidade

102 Cf Bluck 1955 p62 Dorter 1982 p45 Hackfort 1955 p1998 White 1989 p80

98

oferecem uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a mesma crenccedila apresentada no antigo

relato Vejamos como isto ocorre

O argumento ciacuteclico eacute introduzido a partir de um lsquoantigo relatorsquo de cunho oacuterfico

e pitagoacuterico ndash a transmigraccedilatildeo da alma ndash e a doutrina da reminiscecircncia tal como vemos

no Mecircnon estaacute intrinsecamente ligada com a ideia de imortalidade e transmigraccedilatildeo da

alma Como diz Kahn no pensamento oacuterfico e pitagoacuterico a imortalidade eacute concebida

em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo das almas103 A doutrina da reminiscecircncia eacute apresentada no

Mecircnon 81a-e como doutrina que tem origem em autoridades ndash sacerdotes sacerdotisas e

poetas divinamente inspirados ndash que dizem que a alma humana eacute imortal e agraves vezes

chega ao fim o que eles chamam morrer e agraves vezes reencarna mas nunca perece A

alma eacute imortal e estaacute sujeita agrave reencarnaccedilatildeo e disso decorre a necessidade de viver de

modo tatildeo piedoso quanto possiacutevel (81b 86b) e de recordar tudo o que ainda natildeo foi

recordado (86b1-4) Fica claro que argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia manteacutem uma

relaccedilatildeo com aquela mesma crenccedila religiosa apresentada com o nome de lsquorelato antigorsquo ndash

a transmigraccedilatildeo da alma ndash a qual estaacute intrinsecamente ligada como a crenccedila na

imortalidade da alma O relato antigo diz basicamente o seguinte (70c-d)

(i) a alma dos que morrem existem no Hades

(ii) a alma dos que partiram existem no Hades de onde regressam para a vida

terrena

103 Cf Kahn 2007 p18

99

Natildeo eacute difiacutecil perceber que as duas premissas que constituem o antigo relato

estaratildeo presentes na conclusatildeo do argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

respectivamente

Antigo relato

As almas dos que morrem

existem no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem

existem no Hades (existecircncia post

mortem da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Reminiscecircncia As almas dos que morrem

existes antes do nascimento

A soluccedilatildeo de Soacutecrates para combinar os dois argumentos natildeo muda a prova

porque o argumento da reminiscecircncia simplesmente prova algo que jaacute estaacute presente no

argumento dos opostos almas existem antes do nascimento e reencarnam

100

O argumento eacute destinado a provar a imortalidade desde o iniacutecio com a clara

indicaccedilatildeo de Cebes mas a concepccedilatildeo de imortalidade em funccedilatildeo da doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma natildeo eacute aquilo que os amigos de Soacutecrates desejam como prova da

imortalidade da alma O tema da imortalidade deve ser tratado num sentido platocircnico

ldquoinovadorrdquo sem a dependecircncia ou vinculaccedilatildeo com a ideia de transmigraccedilatildeo No

decorrer do diaacutelogo os interlocutores apelam para a necessidade de que se fique claro

que natildeo eacute provando que as almas transmigram que podemos provar que as almas satildeo

imortais Transmigraccedilatildeo pode ocorrer por um periacuteodo de tempo e ao final a alma poderaacute

ser destruiacuteda Eacute necessaacuteria uma radical ruptura desta ideia para que se prove que a alma

eacute imortal nos termos de uma nova compreensatildeo filosoacutefica que natildeo depende do

componente religioso de cunho oacuterfico e pitagoacuterico Ao final dos dois primeiros

argumentos o problema continua o mesmo a alma existe antes e depois da morte mas

ateacute quando

Em suma argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia estatildeo vinculados

especialmente pelo antigo relato Esta observaccedilatildeo nos ajuda a entender por que esses

dois argumentos estatildeo interligados no Feacutedon

(i) a uacutenica ocasiatildeo em que temos uma transiccedilatildeo imediata para o argumento

seguinte

(ii) os uacutenicos argumentos em que Soacutecrates nunca emprega a palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος)

(iii) os uacutenicos que Soacutecrates trata como se fossem uma unidade cada um

prova uma metade ndash o ciacuteclico que a alma existe depois da morte o da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento (77c)

101

(iv) os uacutenicos argumentos que Soacutecrates diz que devem ser combinados

(συντίθημι) (77c)

(v) os uacutenicos argumentos especialmente conectados pela doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma (o relato antigo eacute um componente religioso da

doutrina da reminiscecircncia)

102

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)

51 Introduccedilatildeo

A literatura secundaacuteria costuma tratar o argumento das afinidades como sendo o

menos atrativo o mais fraco e o mais negligenciado pelos comentadores 104

O argumento das afinidades em si eacute apresentado em 78b-80b e eacute seguido por

uma discussatildeo de cunho miacutetico e especulativo em 80c-84b a qual Platatildeo utiliza para

defender o modo filosoacutefico de viver O argumento eacute bastante diferente dos demais ele

se constitui basicamente de duas analogias uma que estabelece a relaccedilatildeo entre almas e

Formas e outra entre almas e deuses com base nas quais se defende que a alma seria

mais como as Formas e como os deuses concluindo-se entatildeo que ela seria indissoluacutevel

imune agrave desintegraccedilatildeo por ocasiatildeo da morte ou algo proacuteximo disso

52 Contexto

Ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias acreditam que Soacutecrates

conseguira provar apenas que a alma continuaria a existir antes do nascimento mas

restaria ainda a necessidade de provar se a alma haveraacute de existir depois da morte

Siacutemias esclarece que a objeccedilatildeo levantada por Cebes no ponto de transiccedilatildeo entre a

primeira e a segunda parte do diaacutelogo ainda permanece sem soluccedilatildeo a crenccedila popular

de que na ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua

104 Cf Apolloni 1996 p5 Elton 1997 p313

103

existecircncia Ao final do argumento da reminiscecircncia os amigos de Soacutecrates parecem

convencidos de que Soacutecrates natildeo havia provado que a alma continua a existir depois da

morte

Platatildeo parece ter um interesse especial em enfatizar ao longo do diaacutelogo que os

amigos de Soacutecrates natildeo possuem nenhuma reserva em relaccedilatildeo ao argumento da

reminiscecircncia desde que ele natildeo seja utilizado para provar que a alma continua a existir

depois da morte

(i) Ao final do argumento da reminiscecircncia Siacutemias manifesta absoluta

confianccedila na conclusatildeo de que as almas existem antes do nascimento e

que Formas existem e diz que seu amigo Cebes natildeo rejeita o argumento

soacute natildeo concorda assim como ele mesmo que o argumento possa provar

que a alma continua a existir quando se separa do corpo (77a-b)

(ii) Depois do argumento das afinidades quando os amigos de Soacutecrates

apresentam suas famosas objeccedilotildees Cebes afirma que manteacutem a mesma

posiccedilatildeo de outrora ele acredita que estaacute completamente demonstrado que

a alma existia antes de nascer (conclusatildeo do argumento da

reminiscecircncia) mas natildeo estaacute convencido de que ela continua a existir

depois da morte (76e-77a)

(iii) Quando Soacutecrates refuta o argumento de Siacutemias (alma eacute harmonia) o

filoacutesofo pergunta se os amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns

dos argumentos apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam

apenas alguns e rejeitam outros Soacutecrates pergunta abertamente se eles

aceitam o argumento da reminiscecircncia e sua conclusatildeo de que as almas

104

existem em algum lugar antes de alojar-se num corpo e ambos

respondem positivamente Cebes diz que na ocasiatildeo em que Soacutecrates

apresentara o argumento ele estava completamente convencido e que

agora ele aceita o argumento mais do que qualquer outro Siacutemias por sua

vez concorda com o amigo e afirma que se surpreenderia se um dia

tivesse de mudar de opiniatildeo acerca desse argumento (91e-92a)

(iv) Pouco depois Soacutecrates convence Siacutemias de que o argumento de que a

alma eacute harmonia conflita com o argumento da reminiscecircncia (aprender eacute

recordar) jaacute que o argumento da reminiscecircncia requer que a alma tenha

existido antes de alojar-se no corpo enquanto a harmonia de uma lira natildeo

pode existir antes de uma lira ser construiacuteda Sendo assim Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos Sem titubear ele abandona o proacuteprio

argumento (alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e fica com o argumento da reminiscecircncia o

qual deriva de uma hipoacutetese digna de aceitaccedilatildeo e para que natildeo reste

nenhuma duacutevida ele ratifica que eacute certo que a alma existe antes de entrar

num corpo assim como existe a lsquoFormarsquo aquilo que eacute (92c-92d)

(v) Posteriormente Soacutecrates afirma que Cebes busca uma prova de que a

alma eacute imortal e indestrutiacutevel mas que segundo Cebes provar que a

alma eacute robusta divina e que jaacute existia antes do nascimento natildeo implica

que ela eacute imortal (ἀθάνατος) (95c)

105

Pelo menos ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias seratildeo

consistentes no seu posicionamento de que o argumento da reminiscecircncia demonstra a

existecircncia da alma antes do nascimento mas de modo algum a sua imortalidade (77b-c)

Jaacute que os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento da reminiscecircncia como prova

da existecircncia da alma depois da morte Soacutecrates apresenta uma soluccedilatildeo bem

controversa a combinaccedilatildeo dos dois argumentos num soacute Mas a conclusatildeo do argumento

da reminiscecircncia ndash a preexistecircncia da alma ndash jaacute estaacute presente na conclusatildeo do argumento

ciacuteclico os vivos procedem dos mortos e as almas dos mortos continuam a existir (72d8-

10) Se o argumento ciacuteclico fosse aceito ele por si soacute provaria as duas metades a que

Soacutecrates se refere a preexistecircncia da alma e a existecircncia da alma depois da morte Mas

se os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento ciacuteclico como eacute o que tudo indica a

combinaccedilatildeo dos argumentos natildeo resolve o problema colocado por Siacutemias e Cebes Eles

acreditam que o argumento da reminiscecircncia prova a preexistecircncia da alma mas por

outro lado natildeo se comprometem com o argumento ciacuteclico Soacutecrates parece entender a

posiccedilatildeo dos seus interlocutores porque nem mesmo espera que eles avaliem a sua nova

proposta (combinaccedilatildeo dos argumentos) como se jaacute soubesse que seria rejeitada pelos

amigos mas logo assume que seus amigos requerem um argumento ainda melhor (77c-

d)

Soacutecrates imediatamente desqualifica a motivaccedilatildeo dos amigos para continuar a

discussatildeo ele despreza a possibilidade de que os amigos tenham simplesmente rejeitado

a sua proposta de que os argumentos juntos provariam a imortalidade da alma e logo

assume que a necessidade de fundamentar melhor a questatildeo decorre meramente de um

temor pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo

especialmente se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) O argumento das

106

afinidades eacute introduzido por Platatildeo no Feacutedon para responder ao temor de Cebes de que

mesmo que a alma possa existir antes de nascermos (como demonstra o argumento da

reminiscecircncia) ela ainda poderia ser destruiacuteda quando morrermos retomando a a

questatildeo essencial que Cebes apresenta em 70 a

Em resposta agrave afirmaccedilatildeo do mestre Cebes ri e pede que Soacutecrates os liberte do

temor o qual por sua vez afirma que para isso seriam necessaacuterios encantamentos

diaacuterios (77e) A ocasiatildeo se torna notadamente laudatoacuteria Cebes exalta Soacutecrates como o

uacutenico capaz de livraacute-los do temor da morte ao mesmo tempo em que lamenta a sua

partida iminente Soacutecrates por sua vez louva a grandeza da Greacutecia e de seus cidadatildeos

onde eles encontrariam ldquoencantadoresrdquo capazes e aptos a substituiacute-lo depois de sua

partida especialmente se buscassem no proacuteprio ciacuterculo socraacutetico (78a) Numa grande

Greacutecia e entre muitos cidadatildeos Soacutecrates e seus disciacutepulos satildeo aqueles capazes de

realizar os encantamentos necessaacuterios para expurgar temores infundados numa clara

indicaccedilatildeo de que ainda que morra seu legado continuaraacute por meio dos seus amigos que

estatildeo ali presentes aguardando a ocasiatildeo fatiacutedica Mas Cebes tem pressa e natildeo responde

ao elogio do mestre Em vez disso impele-o a continuar e retomar a discussatildeo na acircnsia

de que Soacutecrates antes de partir apresente o argumento suficiente que acabara de

prometer (78b)

Portanto neste ponto do diaacutelogo tudo leva a crer que os amigos de Soacutecrates

acreditam que argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia ndash juntos ou separados ndash

natildeo demonstram a imortalidade da alma e que eles ainda esperam uma prova

satisfatoacuteria de Soacutecrates O filoacutesofo prontamente inicia um novo argumento o qual se

convencionou chamar de argumento das afinidades

107

53 O argumento propriamente dito

O argumento das afinidades trata diretamente do problema levantado por Cebes

em 70a ndash a possibilidade de a alma se dispersar O argumento ciacuteclico lida com o antigo

relato miacutetico da transmigraccedilatildeo das almas enquanto o segundo argumento eacute introduzido

no diaacutelogo por uma lembranccedila e sugestatildeo de Cebes de que a doutrina da reminiscecircncia

tambeacutem serviria para provar a imortalidade da alma mas agora Soacutecrates se dispotildee a

examinar se a alma eacute um tipo de coisa suscetiacutevel a dispersatildeo (mortal) ou natildeo (imortal)

Portanto o argumento tem o meacuterito de reorientar a discussatildeo para o problema crucial do

diaacutelogo ndash a imortalidade da alma ndash o qual requer uma prova satisfatoacuteria de que a alma

seria imune agrave dispersatildeo e assim imortal

Soacutecrates comeccedila apresentando o que seria um programa resumido do argumento

em 78b4-9

(i) Primeiro Soacutecrates apresenta uma questatildeo essencial que pode ser

dividida em duas partes (i) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que sofre

dispersatildeordquo (ii) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo sofre

dispersatildeordquo Essa questatildeo seraacute respondida inicialmente em 78c1-4

Posteriormente ele estende a sua explanaccedilatildeo em 78c5-79a11

(ii) Segundo Soacutecrates pergunta ldquoa qual desses dois tipos de coisas pertence a

almardquo Essa questatildeo receberaacute tratamento em 78b1-80ab

(iii) Por fim a conclusatildeo diraacute se a alma pertence a uma classe de coisas

suscetiacuteveis a dispersatildeo ou natildeo com base na qual os amigos de Soacutecrates

108

confiaratildeo ou temeratildeo por suas almas Essa conclusatildeo aparece em 80a10-

81a3

Vejamos entatildeo roteiro geral de como o argumento se desenvolve seguido de uma

comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

5 Existem duas ldquoclasses de seres uma visiacutevel e que nunca permanece no

mesmo estado uma invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado (79a6-

11)

6 A alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

109

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

110

A pergunta apresentada no programa inicial de Soacutecrates eacute respondida em 78c1-4

(i) a que tipo de coisa pertence aquilo que pode sofrer dispersatildeo

Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto agravequilo que eacute composto por natureza

sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto juntordquo (78c1-3)

(b) a que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo pode sofrer dispersatildeo

ldquoPor outro lado se haacute algo simples natildeo pertence somente a isso mais do que a

qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a sofrer decomposiccedilatildeordquo (78c 3-4)

Soacutecrates simplestemente assume que haacute coisas que sofrem dispersatildeo e coisas que

natildeo sofrem coisas que deixam de existir e outras natildeo natildeo havendo necessidade de

exposiccedilatildeo a esse respeito Cebes tambeacutem concorda que devem considerar esses dois

tipos de coisa O problema que se haacute de enfrentar natildeo eacute se haacute coisas que sofrem

dispersatildeo ou natildeo mas se a alma eacute suscetiacutevel agrave dispersatildeo Ao trazer essa questatildeo da

dispersatildeo ou natildeo das coisas no argumento das afinidades Soacutecrates estaacute lidando

diretamente com a alegaccedilatildeo de Cebes de que muitos temem que a alma se dispersa e se

esvai como fumo na ocasiatildeo da morte Portanto o argumento traz uma expectativa de

que Soacutecrates possa mostrar que alma natildeo estaacute entre o tipo de coisas que se dispersa

quando finalmente se teria um argumento suficiente

Com base na suscetibilidade ou natildeo agrave dispersatildeo a sua preocupaccedilatildeo agora eacute

estabelecer a existecircncia de duas classes de coisas (i) coisas compostas as quais satildeo

suscetiacuteveis a dispersatildeo (ii) coisas simples as quais satildeo imunes a dispersatildeo

111

As coisas compostas podem ser de dois tipos (i) aquelas que naturalmente tecircm

partes ndash compostas por natureza (ii) e aquelas cujas partes satildeo postas juntas num

proceso diferente daquele que as coisas naturalmente compostas experimentam (78c1)

A essas coisas compostas ldquopertencerdquo (προσήκω) o sofrer dispersatildeo (διαιρέω)

(78c2) Nesse contexto dispersatildeo eacute a decomposiccedilatildeo desagregamento ou divisatildeo dos

elementos que compotildeem algo composto Soacutecrates explica que assim como eacute possiacutevel a

composiccedilatildeo de elementos para a formaccedilatildeo de algo composto o processo contraacuterio ndash a

decomposiccedilatildeo ndash eacute plenamente possiacutevel a qual implica em destruiccedilatildeo do objeto (78c2-

3) Sendo assim sugere-se que um item composto pode sofrer destruiccedilatildeo enquanto um

item simples seria imune agrave destruiccedilatildeo

Assim o argumento sugere uma relaccedilatildeo entre composiccedilatildeo e destrutibilidade

simplicidade e indestrutibilidade Mas essa relaccedilatildeo encontra dificuldades se o escopo do

diaacutelogo contempla objetos materiais e imateriais seria razoaacutevel pensar que objetos

materiais compostos seriam suscetiacuteveis agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando sofre a

decomposiccedilatildeo das suas partes mas a ideia de que uma entidade imaterial e composta

poderia ser destruiacuteda ao sofrer decomposiccedilatildeo eacute bem diferente Tambeacutem seria difiacutecil

entender como o argumento ajudaria a provar que uma entidade imaterial e simples

seria imune agrave destruiccedilatildeo

Embora o termo ldquopertencerdquo (προσήκω) seja vago eacute plausiacutevel que Soacutecrates natildeo

esteja propondo que as coisas compostas devem necessariamente sofrer dispersatildeo mas

simplesmente que elas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo Portanto o que fica estabelecido eacute

que coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo enquanto coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo o que acaba criando uma expectativa inevitaacutevel de que a alma seria em breve

tida como algo simples e imune agrave dispersatildeo Mas a ideia eacute construir um argumento

112

analoacutegico baseado na lsquosemelhanccedilarsquo entre a alma e as lsquoFormasrsquo Sendo assim eacute

necessaacuterio apresentar paulatinamente os atributos da lsquoFormarsquo e estabelecer a afinidade

entre almas e lsquoFormasrsquo No proacuteximo passo Soacutecrates afirma que as coisas lsquosimplesrsquo satildeo

as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo e logo depois identifica essas

coisas como sendo as lsquoFormasrsquo enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees

diferentes e nunca se encontram no mesmo estado satildeo as lsquocompostasrsquo os lsquoobjetos

particularesrsquo (Cf 78c-d)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

No proacuteximo passo em 78c6-8 Soacutecrates faz a seguinte associaccedilatildeo

(i) coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes (τὰ δὲ ἄλλοτ᾽ ἄλλως) e

nunca se encontram no mesmo estado (μηδέποτε κατὰ ταὐτά) coisas compostas

(ii) coisas que estatildeo sempre no mesmo estado (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) e condiccedilatildeo

(ὡσαύτως ἔχει) coisas simples

O argumento se baseia numa associaccedilatildeo bastante plausiacutevel (μάλιστα εἰκός)

(78c7) O contexto imediato sugere que a associaccedilatildeo eacute razoaacutevel porque as coisas

compostas sofrem dispersatildeo que eacute um tipo de variaccedilatildeo um tipo de mudanccedila no estado

e condiccedilatildeo do objeto Sendo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo dos seus componentes as coisas

113

compostas estatildeo fadadas agrave mutaccedilatildeo e inconstacircncia As coisas simples por sua vez satildeo

imunes agrave dispersatildeo sendo plausiacutevel associaacute-las com aquilo que eacute constante e natildeo varia

Dando um novo passo na construccedilatildeo dessa cadeia de associaccedilotildees Soacutecrates

busca um grupo de coisas que pode ser identificado como lsquocoisas que estatildeo sempre no

mesmo estadorsquo O filoacutesofo entatildeo faz um convite aberto para retomar as coisas que

discutiam no argumento anterior lsquoas coisas em sirsquo (lsquoFormasrsquo) lsquoFormasrsquo satildeo o que

Soacutecrates identificaraacute como o tipo de coisa que natildeo sofre alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

(78c10-78d1) e aquilo que serviraacute de base para a construccedilatildeo da analogia central do

argumento Com a introduccedilatildeo das lsquoFormasrsquo na discussatildeo os termos lsquocompostorsquo

(σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) satildeo completamente abandonados

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

Agora Soacutecrates pede para voltar agravequelas coisas sobre as quais jaacute haviam

conversado no argumento anterior a essecircncia (ἡ οὐσία) cujo ser ou existecircncia (τοῦ

εἶναι) se apresenta por meio de um loacutegos que consiste de perguntas e respostas (78c10-

78d2) Segundo Gallop lsquodar um loacutegosrsquo nesse contexto pode significar tanto lsquodar uma

definiccedilatildeorsquo como lsquoapresentar uma provarsquo podendo significar tanto lsquodefinir a natureza

essencial das lsquoFormasrsquo como lsquoprovar que elas existemrsquo105 Neste contexto Soacutecrates

retoma esse grupo de coisas apresentados antes como ldquoo igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em si aquilo que eacuterdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d3-4) que desde o contexto do argumento das

105 Gallop 2002 p139

114

reminiscecircncias estamos chamando de lsquoFormasrsquo apenas de uma terminologia teacutecnica

ainda natildeo aparecer nesta fase do diaacutelogo

Expressotildees como ἡ οὐσία τὸ ὄν αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ τὸ ἴσον e αὐτὸ ὃ ἔστιν

natildeo satildeo novas no diaacutelogo mas ganham um significado especial no contexto do

argumento das afinidades No argumento da reminiscecircncia a expressatildeo αὐτὸ ὃ ἔστιν ou

apenas ὃ ἔστιν (a qual aparece agora em αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) jaacute se destaca como

foacutermula usual para designar de modo geral o objeto da discussatildeo (Cf74b2 74d6

75b1) o que reflete uma tentativa de fixar uma foacutermula ndash ὃ ἔστιν (o que eacute) ndash para

designar objetos que ele costuma apresentar pelo uso de exemplos como τὸ καλόν e τὸ

ἴσον Os termos εἶδος e ἰδέα conhecidos como termos teacutecnicos para designar lsquoFormasrsquo

ainda natildeo foram introduzidos no diaacutelogo exceto quando εἶδος eacute empregado em sua

acepccedilatildeo comum como em 73d9 a imagem do amado (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς)

Nesta etapa do argumento das afinidades Soacutecrates identifica lsquoaquilo que eacutersquo as

lsquoFormasrsquo como sendo coisas cujo estado natildeo muda ou altera e esta passagem visa

estabelecer justamente isso em 78d10-d9 depois de estabelecer que nenhum elemento

da classe em questatildeo deve ser posto de fora do exame ndash eacute necessaacuterio considerar lsquocada

um deles que eacutersquo (αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι) cada membro da classe em questatildeo ndash ele

estabelece que cada membro dessa classe eacute o tipo de coisa que

(i) cada coisa que eacute sendo uniforme e sozinha por si soacute permanece sempre na

mesma condiccedilatildeo e estado

(ii) em hipoacutetese alguma cada coisa que eacute se sujeitaria a qualquer tipo de

mudanccedila

115

Duas expressotildees merecem particular atenccedilatildeo lsquouniformersquo (μονοειδής) e lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) A primeira ndash lsquouniformersquo ndash pode ser entendida como algo

que possui apenas um componente ou parte ou simplesmente como algo de uma soacute

aparecircncia Se a primeira ideia prevalece o termo μονοειδής pode ser entendido como

sinocircnimo para o termo lsquosimplesrsquo o qual natildeo aparece novamente no decorrer do

argumento Mas essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute completamente segura ou definitiva

Platatildeo certamente tem uma razatildeo especial para incorporar a expressatildeo lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) neste ponto da discussatildeo dada a sua frequecircncia no diaacutelogo e

o contexto imediato Temos no diaacutelogo dois empregos frequentes da expressatildeo uma em

referecircncia agraves lsquoFormasrsquo outra em referecircncia agraves almas

(i) lsquoa Forma sozinha por si mesmorsquo a expressatildeo jaacute havia sido empregada em

relaccedilatildeo a essas coisas que Soacutecrates chama de lsquoaquilo que eacutersquo na primeira etapa do

diaacutelogo quando o filoacutesofo fala da necessidade de utilizar o pensamento sozinho

por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) para

perseguir cada coisa em si a qual eacute sozinha por si mesma (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ) e

sem mistura (66a1-3)

(ii) a alma sozinha sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν ἡ ψυχὴ) a expressatildeo

eacute empregada com frequecircncia para a alma na ocasiatildeo em que se afasta do corpo e

pode finalmente sozinha por si mesma alcanccedilar lsquoaquilo que eacutersquo a verdade ou o

conhecimento puro 64c7-8 65d1 66e6-67a1 Em 70a7 depois de Cebes

apresentar a crenccedila popular na dispersatildeo da alma como fumo a questatildeo crucial eacute

saber se a alma realmente existiria em algum lugar sozinha por si mesma (αὐτὴ

καθ᾽ αὑτὴν) quando viesse a separar-se do corpo e de suas mazelas

116

(iv) Portanto quando Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute uniforme e lsquosozinha por si

mesmarsquo neste ponto do argumento das afinidades ele traz de volta toda a

discussatildeo anterior e prepara a introduccedilatildeo da analogia entre lsquoalmarsquo e

lsquoFormarsquo Posteriormente em 79dc-d Soacutecrates diz abertamente que jaacute

haviam discutido sobre a necessidade de a alma se separar do corpo e

sozinha por si mesma alcanccedilar aquilo que eacute puro Depois de apresentado

o argumento das afinidades em si em 83a-b Soacutecrates volta a lembrar que

a filosofia tem o papel de persuadir a alma a distanciar-se do corpo e dos

sentidos e sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) refletir naquilo que

eacute sozinho por si mesmo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ)

No proacuteximo passo em 78d10-e6 o desafio eacute identificar o tipo de coisa que

nunca eacute constante e entatildeo estabelecer o contraste entre as coisas que satildeo sempre

constantes (lsquoFormasrsquo) e as coisas que natildeo satildeo (objetos particulares)

Soacutecrates entatildeo introduz uma multiplicidade de objetos particulares (i) as muitas

coisas belas ndash pessoas belas cavalos belos roupas belas e tudo mais desse tipo (ii) as

coisas iguais (iii) as coisas que compartilham o mesmo nome das coisas mencionadas

antes Esses objetos particulares ao contraacuterio daqueles ldquonunca e de modo algum

permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre sirdquo Desse modo em

contraste com aslsquoFormasrsquo os particulares apresentam dois tipos de variaccedilatildeo eles

variam em relaccedilatildeo a si mesmos ndash num dado momento um cavalo belo pode se tornar

menos belo do que era antes e variam entre si ndash num dado momento um cavalo belo

pode se tornar menos belo do que outros cavalos belos O ponto que se estabelece eacute a

mutabilidade dos objetos particulares os quais estatildeo sujeitos a serem caracterizados por

117

atributos diferentes em ocasiotildees diferentes Aleacutem disso eacute razoaacutevel considerar que os

objetos particulares variam porque satildeo passiacuteveis agrave dispersatildeo eles passam a existir pela

composiccedilatildeo de suas partes e chegam ao fim com a desintegraccedilatildeo das suas partes Fica

entatildeo estabelecido o contraste entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares lsquoFormasrsquo

permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos particulares estatildeo

sempre mudando O terreno foi preparado para a apresentaccedilatildeo da semelhanccedila entre

almas e lsquoFormasrsquo

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

Soacutecrates manteacutem a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares agora

apresentando mais um elemento de contraste entre ambos as coisas particulares satildeo

percebidas pelos sentidos as coisas que permanecem no mesmo estado satildeo apreendidas

somente pelo raciociacutenio do pensamento (τῆς διανοίας λογισμῷ) Mais uma vez fica

claro que o argumento das afinidades retoma a discussatildeo apresentada na primeira etapa

do Feacutedon especialmente em 65b-e Soacutecrates jaacute havia estabelecido que a alma deve

raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) atraveacutes do pensamento

sozinho (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) e sem a interaccedilatildeo dos sentidos para que possa alcanccedilar as

coisas em si mesmas (Cf 65c2-9 65e7 66a1-2)

Soacutecrates esclarece entatildeo que coisas invisiacuteveis ndashlsquoFormasrsquondash soacute podem ser

apreendidas pelo pensamento da razatildeo e sugere que apenas coisas visiacuteveis ndash objetos

particulares ndash satildeo percebidos pelos sentidos Agora a ecircnfase recai sobre a invisibilidade

das lsquoFormasrsquo e natildeo sobre a vilania do corpo e seus sentidos

118

5 Existem duas ldquoclasses de seresrdquo (εἴδη τῶν ὄντων) uma visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e

que nunca permanece no mesmo estado uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que sempre

permanece no mesmo estado (79a6-11)

A distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo invisiacuteveis e particulares visiacuteveis serve de base para

que Soacutecrates estabeleccedila a existecircncia de duas classes de coisas ndash as invisiacuteveis e as

visiacuteveis ndash e relacione essa informaccedilatildeo com aquilo que havia apresentado antes que

lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos

particulares estatildeo sempre mudando Assim em 79a6-11 ele estabelece que existem duas

ldquoclasses de seresrdquo sendo uma delas visiacutevel e que nunca permanece no mesmo estado e

a outra invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado O proacuteximo passo eacute

introduzir dois elementos no argumento das afinidades ndash corpo e alma ndash e identificar

com base na semelhanccedila e afinidade a classe a qual cada um deles possa pertencer

6 A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

Pela primeira vez os termos lsquocorporsquo e lsquoalmarsquo satildeo introduzidos no argumento das

afinidades O ponto de partida de Soacutecrates eacute a ideia da composiccedilatildeo baacutesica do ser

humano em corpo e alma o que natildeo enfrenta qualquer objeccedilatildeo no diaacutelogo (79b1-3)

Essa concepccedilatildeo de que somos parte corpo e parte alma serve de base para praticamente

toda a discussatildeo que segue Jaacute fora estabelecido que haacute duas ldquoclasses de seresrdquo ndash uma

visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que objetos particulares satildeo membros

119

da classe de coisas visiacuteveis que satildeo passiacuteveis de mudanccedila e que no contexto geral do

argumento mudanccedila inclui dispersatildeo e destruiccedilatildeo

Jaacute fora estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo membros da classe de coisas invisiacuteveis e

que permanecem sempre no mesmo estado ndash natildeo satildeo passiacuteveis a mudanccedila e assim natildeo

podem sofrer dispersatildeo e destruiccedilatildeo Se assim como as lsquoFormasrsquo a alma fosse um

membro da classe de coisas invisiacuteveis e nunca sofresse alteraccedilatildeo ficaria demonstrado

que ela natildeo sofreria dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando deixa o corpo natildeo havendo razatildeo

para temer Embora o argumento gere a expectativa de que Soacutecrates simplesmente

coloque almas na classe de coisas invisiacuteveis e corpo na classe de coisas visiacuteveis ele

introduz a ideia de semelhanccedila e afinidade

(i) o tipo de coisa visiacutevel eacute mais semelhante e tem mais afinidade (ὁμοιότερον

καὶ συγγενέστερον) com o corpo (79b4-5)

(ii) a alma seria invisiacutevel pelo menos para as pessoas (79b6-7)

(iii) a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo

enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a almardquo (79b16-17)

Portanto a conclusatildeo considera as duas partes constitutivas do indiviacuteduo natildeo se

diz simplesmente que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel e que o corpo eacute mais

semelhante ao visiacutevel mas que a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do

que o corpo enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma Isto levanta

o problema do grau de semelhanccedila entre alma e invisiacutevel O que temos aqui natildeo eacute uma

declaraccedilatildeo de que a alma eacute ao maacuteximo semelhante ao invisiacutevel mas apenas que a alma

eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo Isso pode ser um ponto de fraqueza do

120

argumento se considerarmos que corpo e o invisiacutevel satildeo extremamente dissemelhantes

admitir que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo pode continuar sendo

uma fraca declaraccedilatildeo da semelhanccedila entre alma e o invisiacutevel A alma poderia ter pouca

semelhanccedila com o invisiacutevel embora continuasse sendo mais semelhante ao invisiacutevel do

que o corpo

Aleacutem disso a invisibilidade da alma natildeo garante a sua imutabilidade Platatildeo jaacute

havia estabelecido a existecircncia de uma classe de seres visiacuteveis e que nunca permanecem

no mesmo estado e uma classe de seres invisiacuteveis e que sempre permanecem no mesmo

estado (79a6-11) Mas agora ainda que se consiga estabelecer que ldquoa alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo ou que a alma eacute invisiacutevel e o

corpo natildeo a invisibilidade da alma natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade

As lsquoFormasrsquo satildeo membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e

natildeo as almas

Eis algumas outras fraquezas do argumento

(i) A ideia de semelhanccedila eacute essencial no argumento mas em momento algum

Platatildeo apresenta uma clara definiccedilatildeo de lsquosemelhanccedilarsquo ou lsquoafinidadersquo o que faz

com que o argumento se estabeleccedila sobre uma vaga noccedilatildeo de semelhanccedila

(ii) Talvez a ideia baacutesica de lsquosemelhanccedilarsquo seja a de lsquoter caracteriacutesticas em

comumrsquo Neste caso a caracteriacutestica comum que alma e o tipo de coisa invisiacutevel

(lsquoFormasrsquo) possuem eacute a invisibilidade e a caracteriacutestica comum que o corpo e o

tipo de coisa visiacutevel (objetos particulares) compartilham eacute a visibilidade

Contudo ainda que alma e o tipo de coisa invisiacutevel possuam essa caracteriacutestica

em comum a qual estaacute ausente no corpo isto natildeo eacute suficiente para concluir que

121

a alma eacute mais semelhante ao tipo de coisa invisiacutevel (lsquoFormasrsquo) do que o corpo

eacute106 Ainda que se possa dizer que a alma eacute invisiacutevel assim como a lsquoFormarsquo eacute

invisiacutevel natildeo eacute possiacutevel dizer que a alma permanece sempre na mesma

condiccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo permanece na mesma condiccedilatildeo Aina que a

alma seja invisiacutevel isto natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade ela

continua passiacutevel a mudanccedila que no contexto do argumento inclui destruiccedilatildeo

Os amigos ainda podem temer que a alma se desintegre quando deixa o corpo

(iii) Outro problema para o estabelecimento de uma analogia eficiente eacute o

desbalanccedilo na relaccedilatildeo entre corpo e os membros da classe de coisas visiacuteveis e

alma e os membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis Eacute evidente que

o corpo eacute um objeto particular razatildeo pela qual em 81d10 pessoas belas

aparecem na lista de coisas particulares ao lado de cavalos belos e roupas belas

Portanto ele natildeo apenas possui maacutexima semelhanccedila com objetos particulares

visiacuteveis e mutaacuteveis mas que ele eacute um objeto particular visiacutevel e mutaacutevel No

caso da alma pode-se dizer que ela eacute mais semelhante agrave classe de coisas

invisiacuteveis do que o corpo eacute mas natildeo eacute possiacutevel dizer que ela eacute uma lsquoFormarsquo

invisiacutevel e imutaacutevel

(iv) A hesitaccedilatildeo de Cebes em aceitar que a alma eacute invisiacutevel pode gerar

dificuldades no estabelecimento de uma analogia coerente Ele concorda

plenamente com a ideia de que o corpo possui semelhanccedila com o tipo de coisa

visiacutevel ldquoeacute bem evidente a qualquer pessoardquo assevera Cebes (79b6) Contudo

quando Soacutecrates pergunta se a alma seria visiacutevel ou invisiacutevel Cebes apresenta

uma reserva ldquoPelo menos ao ser humano eacute invisiacutevelrdquo (79b8) Soacutecrates entatildeo

106 Gallop 2002 p140

122

necessita esclarecer que estatildeo considerando coisas que satildeo visiacuteveis ou invisiacuteveis

ao ser humano (79b9-11) Esta hesitaccedilatildeo de Cebes tem gerado diferentes

interpretaccedilotildees Gallop afirma que seria uma maneira de anunciar a possiacutevel

objeccedilatildeo de que a alma natildeo seria invisiacutevel para os deuses107 Rowe dize que

Cebes estaria representando a tradicional perspectiva homeacuterica da morte

segundo a qual as almas satildeo invisiacuteveis apenas para os vivos108 Bostock sugere

uma perspectiva materialista da alma ele diz que embora Platatildeo acredite que a

alma eacute totalmente imaterial ele natildeo esperaria unanimidade a esse respeito e

lembra que agrave eacutepoca de Platatildeo havia concepccedilotildees filosoacuteficas segundo as quais a

alma seria material embora composta de elementos extremamente pequenos

invisiacuteveis pelo menos para os ordinaacuterios olhos humanos Se este for realmente o

caso Cebes hesita em concordar plenamente com a idea assim como o fez em

relaccedilatildeo ao corpo e precisa enfatizar que a alma eacute invisiacutevel pelo menos para os

seres humanos109

Agora Soacutecrates busca ratificar a semelhanccedila entre almas e a classe de coisas

invisiacuteveis Essa etapa de 79c2-79d9 retoma a discussatildeo sobre a aquisiccedilatildeo do

conhecimento das lsquoFormasrsquo a qual aparece na primeira etapa do Feacutedon e agora aparece

no argumento das afinidades Mais uma vez o leitor eacute convidado a considerar a

discussatildeo anterior e que o argumento individual natildeo estaacute isolado do contexto geral da

obra

107 Gallop 2002 p140 108 Rowe 1993 p185 109 Cf Bostok 1989 p118

123

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

Na etapa anterior em 79b Soacutecrates apresenta a sua primeira consideraccedilatildeo sobre

a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis Agora ele apresenta a sua

segunda consideraccedilatildeo sobre a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis

mas num contexto bem mais complexo

Esta complexa passagem retoma a discussatildeo anterior sobre a busca do

conhecimento Na primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates afirma que o corpo (τὸ σῶμα) eacute

obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do conhecimento (φρόνησις) porque os sentidos corporais

natildeo satildeo confiaacuteveis e natildeo garantem nem precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) no

exame (65a9-65b7) O argumento das afinidades retoma toda essa discussatildeo num

contexto mais complexo e com implicaccedilotildees adicionais e a passagem termina justamente

com um esclarecimento de que essa experiecircncia da alma em contato com as lsquoFormasrsquo eacute

o que se pode chamar de conhecimento (φρόνησις) (79d6-7)

Em 79c2-9 Soacutecrates explica que alma que examina por meio do corpo e dos

sentidos eacute arrastada pelo corpo diretamente para objetos particulares Aqui

provavelmente se estabelece a mesma ideia de relaccedilatildeo ou afinidade que Soacutecrates

descreve em seguida quando fala da relaccedilatildeo entre alma e lsquoFormarsquo (Cf 79d3 συγγενὴς)

124

Como o corpo possui uma lsquorelaccedilatildeorsquo com os objetos fiacutesicos a alma deve examinaacute-los

lsquopor meio do corporsquo (διὰ τοῦ σώματος) lsquopor meio dos sentidos corporaisrsquo (δι᾽

αἰσθήσεως) Essa lsquorelaccedilatildeorsquo eacute tatildeo forte que a alma natildeo tem escolha e passivamente eacute

arrastada pelo corpo (ἕλκεται ὑπὸ τοῦ σώματος) para aquilo com que tem afinidade

para as coisas que nunca permanecem no mesmo estado (εἰς τὰ οὐδέποτε κατὰ ταὐτὰ

ἔχοντα) Desse modo a alma perde o controle do processo cognitivo nessa ocasiatildeo em

que o corpo assume a lideranccedila

Pouco antes havia sido estabelecido que objetos particulares satildeo membros da

classe de coisas visiacuteveis (Cf 79a6-11) Assim a forte relaccedilatildeo entre corpo e objetos

particulares decorre da filiaccedilatildeo de ambos na mesma classe de coisas Para examinar os

membros dessa classe de coisas visiacuteveis a alma teraacute de se utilizar do corpo Por outro

lado Soacutecrates ressalta a discrepacircncia entre a alma e os objetos particulares quando

entra em contato com eles a alma anda errante confusa trocircpega porque esta eacute a

natureza dessas coisas com as quais estaacute em contato Soacutecrates havia estabelecido que ldquoa

alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo (79b16-17) e agora

ratifica que as almas natildeo tecircm afinidades com a classe de coisas visiacuteveis Por um lado o

corpo e os sentidos corporais satildeo a via para o exame dos objetos sensiacuteveis por outro eacute

um empecilho para o alcance dos membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis

as lsquoFormasrsquo

Soacutecrates emprega forte linguagem pejorativa para enfatizar a natureza inferior

dos objetos particulares a alma anda erraacutetica confusa trocircpega como se estivesse

embriagada porque estaacute em contato com objetos dessa natureza O corpo jaacute foi

apresentado como um vilatildeo que oblitera o percurso da alma que tenta alcanccedilar as

lsquoFormasrsquo e agora natildeo apenas os sentidos corporais mas tambeacutem os objetos particulares

125

satildeo apresentados como algo vil de natureza inferior O objeto de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo eacute

a lsquoFormarsquo e para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio que a alma se dissocie do corpo e se dirija aos

objetos congecircneres

Em busca de estabelecer a familiaridade entre a alma e as lsquoFormasrsquo Platatildeo

apresenta a discrepacircncia entre alma e objetos particulares quando a alma examina

atraveacutes do corpo ela eacute arrastada para objetos particulares e fica em estado de

perturbaccedilatildeo Isso acontece porque a alma entra em contato com aquilo com que natildeo

possui lsquoafinidadersquo ela eacute arrastada pelo corpo para aquilo que tem lsquoafinidadersquo com ele

mesmo natildeo com a alma (79c2-9) Em 79d1-9 Soacutecrates explica o que acontece quando

a alma examina lsquosozinha por si mesmarsquo (αὐτὴ καθ᾽ αὑτήν) sem a mediaccedilatildeo do corpo e

de seus sentidos ela se encaminha para aquilo com que tem relaccedilatildeo familiaridade ou

afinidade (συγγενής) ndash o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo

Enquanto a alma que examina por meio do corpo eacute arrastada por ele para objetos

particulares a alma que examina sem interaccedilatildeo com o corpo (sozinha por si mesma)

encaminha a si mesma (οἴχεται) para os objetos com os quais tem lsquoafinidadersquo

recuperando o papel ativo que lhe eacute natural no processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento

Ela entatildeo alcanccedila as lsquoFormasrsquo e fica em harmonia com elas porque alma e lsquoFormasrsquo satildeo

afins e essa dita lsquoafinidadersquo possibilita que a alma conheccedila seu afim e se relacione

harmonicamente com ele Com base na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e

no livre acesso e harmonia entre a alma sozinha e a lsquolsquoFormarsquoque repousa a conclusatildeo de

que ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que ao que natildeo estaacuterdquo (79d10-e6)

A ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre alma e lsquoFormasrsquo eacute

expressamente estabelecida pelo termo συγγενής (79d3 Cf 79e1-2 84b2) Jaacute na

126

primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates apresenta uma vaga ideia de que o que eacute lsquopurorsquo pode

conhecer o que eacute puro e o que eacute impuro natildeo pode conhecer o que eacute puro A alma pura

(sozinha por si mesma dissociada do corpo e dos sentidos corporais) pode conhecer

aquilo que eacute puro (sem mistura) mas quando impura (em comunhatildeo com o corpo) natildeo

pode ter acesso agravequilo eacute puro ndash as lsquoFormasrsquo (Cf 67a-b) Conforme essa ideia a alma

por si soacute sem mistura tem direto acesso aos objetos de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo Por outro

lado quando estaacute impura o corpo lhe oblitera o acesso agraves lsquoFormasrsquo Ao que parece essa

ideia eacute retomada e desenvolvida no argumento das afinidades sendo alma e lsquoFormasrsquo

entidades congecircneres a alma tem livre acesso cognitivo a elas

Mas a ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo ou lsquoafinidadersquo eacute tambeacutem vaga e obscura

no contexto do argumento das afinidades Existe uma forte evidecircncia textual de que os

termos lsquorelaccedilatildeorsquo e lsquosemelhanccedilarsquo satildeo utilizados como sinocircnimos no argumento Em

79b4-5 Soacutecrates pergunta ldquoqual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e

ter mais afinidade (ὁμοιότερον καὶ συγγενέστερον) com o corpordquo Pouco depois

apenas a expressatildeo ὁμοιότερον eacute empregada na resposta (no lugar de ὁμοιότερον καὶ

συγγενέστερον) ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo

(79b16-17) Esse padratildeo se repete pouco depois com a pergunta formulada com os dois

termos ndash ldquo() com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e

afinidade (ψυχὴ ὁμοιότερον εἶναι καὶ συγγενέστερον)rdquo (79e1-2) ndash e a resposta apenas

com um termo ndash ldquo() a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (ὁμοιότερόν ἐστι ψυχὴ τῷ ἀεὶ ὡσαύτως ἔχοντι μᾶλλον ἢ

τῷ μή) (79e5-6) Gallop afirma que Platatildeo se baseia na ideia empedocleana de que

lsquosemelhante conhece semelhantersquo com base na qual para uma coisa conhecer outra as

127

duas devem possuir algumas caracteriacutesticas ou componentes compartilhados110

Contudo o contexto natildeo deixa claro que Platatildeo realmente emprega essa ideia de

maneira consistente no argumento das afinidades Dizer que ldquoa alma se assemelha mais

ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (79e5-6) natildeo eacute o

mesmo que dizer que alma e lsquoFormasrsquo compartilham a mesma caracteriacutestica a

imutalibilidade Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute pura eterna imutaacutevel mas hesita em dizer

que a alma eacute pura eterna imutaacutevel imortal A linguagem da lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo

no argumento das afinidades eacute sempre uma linguagem que apela mais para algum niacutevel

de aproximaccedilatildeo do que para a ideia de compartilhamento de caracteriacutesticas essenciais

Portanto o que se pode afirmar com base no texto eacute que deve existir um tipo de

profunda relaccedilatildeo de lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo entre almas e lsquoFormasrsquo o que confere agraves

almas acesso cognitivo privilegiado a lsquoFormasrsquo

Eacute tambeacutem importante notar que ao contraacuterio dos objetos particulares as

lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas como uma classe de coisas superiores que exerce impacto

positivo sobre as almas no contato da alma com a lsquoFormarsquo a alma deixa seu andar

erraacutetico e passa a comportar-se como uma lsquoFormarsquo ela permanece no mesmo estado e

condiccedilatildeo relativamente agraves Formas (79d1-9)

Em 79d1-2 temos uma caracterizaccedilatildeo mais completa das lsquocoisas que satildeorsquo

Cada lsquolsquoFormarsquo eacute

110 Cf Gallop 2002 p140 No De Anima 404b16-18 Aristoacuteteles afirma que Platatildeo no Timeu

sustenta que a alma e as coisas que ela conhece seriam compostas pelos mesmos componentes

particulares pois ldquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhanterdquo

128

(i) invisiacutevel (τὸ ἀιδές) embora a lsquoinvisibilidadersquo das lsquolsquoFormasrsquo natildeo apareccedila

nesta lista em 79d1-2 haacute pouco havia ficado estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo

membros da classe de coisas invisiacuteveis (79a6-11)

(ii) pura (τὸ καθαρόν) na primeira etapa do diaacutelogo Platatildeo utiliza a expressatildeo

lsquosem misturarsquo para comunicar a ideia de pureza Nesse contexto apenas

utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν

εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ χρώμενος) eacute possiacutevel perseguir cada uma das coisas que

satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ εἰλικρινὲς ἕκαστον

τῶν ὄντων) (66a1-3) Agora Platatildeo utiliza o termo τὸ καθαρόν para caracterizar

essa qualidade permanente da lsquoFormarsquo certamente enfatizando que a lsquoFormarsquo

estaacute completamente separada da classe de coisas visiacuteveis Eacute interessante

observar que embora na primeira etapa do diaacutelogo a expressatildeo lsquosem misturarsquo

possa ser empregada para lsquoo pensamentorsquo e para lsquoas coisas que satildeorsquo em

momento algum eacute dito que a alma eacute pura (τὸ καθαρόν) Platatildeo estaacute

provavelmente tentando estabelecer uma terminologia proacutepria para lsquoaquilo que

eacutersquo Eacute interessante observar que ele continua utilizando a expressatildeo lsquoa alma

sozinha por si mesmo e sem misturarsquo (ψυχὴν αὐτὴν καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινῆ) com

referecircncia agrave alma que se dissocia do corpo no contexto da etapa especulativa que

segue o argumento em si (81c1-2)

(iii) eterna (ἀεὶ ὂν) a lsquoFormarsquo sempre eacute Essa eacute uma caracteriacutestica esperada

porque o argumento jaacute havia estabelecido que lsquoFormasrsquo estatildeo sempre no mesmo

estado e condiccedilatildeo sendo dispersatildeo e destruiccedilatildeo mudanccedilas no estado e condiccedilatildeo

do ser O problema que motiva o argumento das afinidades eacute justamente o receio

129

de que a alma natildeo seja o tipo de coisa que lsquosempre eacutersquo o temor de que ela exista

apenas por um tempo e em seguida seja destruiacuteda

(iv) imortal (ἀθάνατον) Platatildeo coroa a sua caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo com o

reconhecimento de que elas satildeo imortais o que eacute de suma importacircncia num

diaacutelogo cujo tema eacute a imortalidade da alma O termo ἀθάνατον aparece pela

primeira vez no diaacutelogo na transiccedilatildeo entre o primeiro e o segundo argumento

quando Cebes de modo casual sugere que tambeacutem segundo o ensino da

reminiscecircncia a alma parece ser imortal (73a2-3) Depois disso ἀθάνατον volta

a aparecer novamente apenas no argumento das afinidades Esta passagem

(79d1-2) eacute o primeiro registro de uso da palavra ἀθάνατον por Soacutecrates e ele o

faz para caracterizar a lsquoFormarsquo Mas assim como Soacutecrates nunca diz no

contexto do argumento das afinidades que a alma eacute pura (καθαρόν) ou eterna

(ἀεὶ ὂν) em nenhum momento a personagem afirma que a alma eacute imortal

(ἀθάνατον) O que se conclui no argumento das afinidades eacute que a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότατον εἶναι ψυχή) ao que eacute imortal (Cf 80a1-b3) E esta eacute

pela primeira vez no diaacutelogo em que Soacutecrates se utiliza da palavra lsquoimortalrsquo na

conclusatildeo do argumento Ao que parece a discussatildeo se movimento rumo agravequilo

que finalmente se pretende provar a imortalidade da alma o argumento ciacuteclico

conclui que a alma continua a existir depois morte o argumento das

reminiscecircncias que a alma existe antes do nascimento e o das afinidades que a

alma eacute mais semelhante ao que eacute imortal Posteriormente depois de ouvir as

objeccedilotildees dos amigos a respeito do argumento das afinidades Soacutecrates faz um

resumo de todas as objeccedilotildees e criacuteticas levantadas contra os trecircs argumentos que

ele havia apresentado e reconhece que ningueacutem pode morrer confiante a menos

130

que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι

ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον) (88b5-6) Se natildeo fosse possiacutevel

provar seria plausiacutevel temer que na ocasiatildeo da morte a alma poderia ficar

completamente destruiacuteda (88b6-8) Pela primeira vez no diaacutelogo Soacutecrates

formula uma questatildeo que exige nada menos do que uma conclusatildeo de que a

alma eacute imortal a qual seraacute apresentada no uacuteltimo argumento

(v) algo que permanece na mesma condiccedilatildeo (ὡσαύτως ἔχον) por fim Soacutecrates

retoma a ideia jaacute apresentada em 78c10-d9 onde diz que as lsquoFormasrsquo satildeo coisas

lsquoque estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estadorsquo (ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ)

Sendo algo que permenece sempre na mesma condiccedilatildeo a lsquoFormarsquo eacute tambeacutem

imune a destruiccedilatildeo

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

Agora temos uma mudanccedila na forma da conclusatildeo111

i Em 79b1-b17

ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacuterdquo

ii Em 79d10-e6

ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacuterdquo

111 Gallop 2002 p 140

131

Como jaacute dissemos a conclusatildeo de que as almas devem ter maior semelhanccedila

com as lsquoFormasrsquo (aquilo que eacute puro eterno imortal e permanece na mesma condiccedilatildeo)

do que com os lsquoobjetos particularesrsquo (aquilo que nunca estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

se baseia na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e no acesso livre e relaccedilatildeo

harmocircnica entre a alma sozinha e a lsquoFormarsquo Isto se explica em termos de

lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre a alma que conhece e o objeto que eacute conhecido (a

lsquoFormarsquo)

Esta etapa do argumento e a conclusatildeo a que chega eacute passiacutevel de criacuteticas aleacutem

das que jaacute foram apresentadas

(i) O argumento eacute inconsistente Apresenta-se a alma como ser passiacutevel de

mudanccedila quando em contato com o mundo fiacutesico ndash ldquoanda erraacutetica confusa e

trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a natureza das coisas que

ela estaacute alcanccedilandordquo (79c7-8) ndash ao mesmo tempo em que afirma que a alma

apresenta maacutexima semelhanccedila e afinidade com aquilo que natildeo muda de modo

algum (79d10-e6) Eacute difiacutecil conciliar essa dupla caracterizaccedilatildeo da alma no

argumento razatildeo pela qual Bostock assevera que Platatildeo apresenta a alma com

caraacuteter camaleocircnico porque assume a natureza daquilo com que estaacute em contato

Sendo assim o argumento mostraria que a alma tem maior afinidade com aquilo

que sofre variaccedilatildeo (o corpo por exemplo) do que com aquilo que estaacute sempre na

mesma condiccedilatildeo112

(ii) A linguagem eacute bastante imprecisa Termos-chave como lsquosemelhanccedilarsquo e

lsquoafinidadersquo natildeo satildeo definidos e o contexto natildeo oferece suporte suficiente para

112 Bostock 1989 p 119

132

uma compreensatildeo satisfatoacuteria Eacute possiacutevel que o argumento se baseie no

princiacutepio de que lsquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhantersquo mas o contexto

natildeo fornece uma evidecircncia definitiva de que Platatildeo estaacute recorrendo

especificamente a essa ideia

(iii) O argumento apresenta fraquezas O fato de a alma compartilhar com as

lsquoFormasrsquo uma dada caracteriacutestica que o corpo natildeo possui natildeo mostra que a alma

eacute mais semelhante a elas do que o corpo eacute o fato de a alma sozinha poder

alcanccedilar as lsquoFormasrsquo e ter harmonia em contato com elas natildeo eacute suficiente para

estabelecer que as almas satildeo ao maacuteximo semelhantes agraves Formas imutaacuteveis e

com isso concluir que a alma assim como a lsquoFormarsquo eacute imune a qualquer

variaccedilatildeo e consequente destruiccedilatildeo

Soacutecrates agora oferece um argumento suplementar em favor da semelhanccedila entre

a alma e lsquoFormasrsquo O argumento assume a existecircncia de certa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre

alma e corpo em que o corpo se subordina ao governo da alma e entre divino e mortal

em que o mortal se subordina ao governo do divino

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

133

Platatildeo introduz uma terminologia nova no argumento o divino (τὸ θεῖον) e o

mortal (τὸ θνητόν) A terminologia divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) natildeo foi usada

ateacute agora no argumento Platatildeo entatildeo alinha a alma com o divino (τὸ θεῖον) os quais

exercem papel de governantes e o corpo com o mortal (τὸ θνητόν) os quais exercem

papel de governados estabelecendo uma relaccedilatildeo de semelhanccedila bastante vaga o divino

e a alma devem ser parecidos porque ambos dominam e governam enquanto o corpo e

o mortal dever ser parecidos porque ambos satildeo dominados e governados (79e-80a2-6)

A distinccedilatildeo entre divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) revela que o termo

lsquodivinorsquo eacute equivalente ao termo lsquoimortalrsquo113 Para a mente grega eacute natural que o lsquodivinorsquo

traga consigo a ideia de imortalidadersquo114 Contudo natildeo fica claro se Platatildeo introduz uma

nova linha de pensamento no argumento e dessa forma lsquodivinorsquo se refere a lsquodeusesrsquo ou

se essa passagem eacute uma extensatildeo da ideia em progresso e nesse caso lsquodivinorsquo poderia

ser uma referecircncia agraves lsquoFormasrsquo

A Forma jaacute foi apresentada como aquilo que eacute lsquoeternorsquo (ἀεὶ ὂν) e lsquoimortalrsquo

(ἀθάνατον) (79d2) e agora Platatildeo utiliza o termo divino (τὸ θεῖον) provavelmente

como equivalente ao termo lsquoimortalrsquo Platatildeo costuma tomar de empreacutestimo termos

comuns no acircmbito da religiatildeo grega para caracterizar a lsquolsquoFormarsquorsquo Ao utilizar o termo

lsquodivinorsquo ele procura estabelecer a distinccedilatildeo entre dois tipos de existecircncia o mortal

caracterizaria os objetos particulares os quais satildeo inferiores subjugados cuja existecircncia

eacute passageira suscetiacutevel agrave destruiccedilatildeo o lsquodivinorsquo (imortal) caracterizaria as lsquoFormasrsquo que

satildeo governantes ndash membros de um domiacutenio superior imunes agrave mudanccedila e destruiccedilatildeo

Talvez Platatildeo esteja utilizando agora o termo lsquodivinorsquo justamente para comunicar a

113 Rowe 1993 p187

114 Cf Taylor 1922 p176

134

ideia ainda que inacabada e imprecisa da superioridade das lsquoFormasrsquo sobre os objetos

particulares assim como os deuses imortais estatildeo acima dos mortais e os governam as

lsquoFormasrsquo divinas (imortais) satildeo superiores a tudo que pertence ao domiacutenio das coisas

mortais e de alguma maneira pode-se dizer que governam e dominam os objetos

particulares

Aleacutem disso Platatildeo coloca o lsquodivinorsquo no grupo de termos que qualificam as

lsquoFormasrsquo em (80b1-3) Se lsquodivinorsquo dificilmente se refere agraves Formas teriacuteamos uma

divisatildeo entre (i) lsquoo divinorsquo e (ii) a Forma lsquoaquilo que eacute imortal inteligiacutevel uniforme

indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo Mas o texto natildeo

sugere essa divisatildeo e aparentemente a lsquoFormarsquo eacute apresentada como aquilo que eacute divino

imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo Ao final a ideia de que lsquoa alma eacute como o divinorsquo necessariamente traz

consigo duas ideias inseparaacuteveis nesse contexto natureza superior (natureza divina) e

imortalidade A ideia de governo e domiacutenio em si mesmas natildeo ajudariam o argumento a

provar que a alma seria diferente dos objetos fiacutesicos e que ao contraacuterio deles natildeo estaacute

sujeita agrave destruiccedilatildeo A analogia serve apenas para mostrar que a alma eacute como o divino

superior e imortal

Contudo os comentadores geralmente acreditam que dificilmente o termo

lsquodivinorsquo se refere a Formas por causa da ideia baacutesica de lsquogovernarrsquo115 Realmente eacute

difiacutecil entender em que sentido lsquoFormasrsquo exercem algum tipo de domiacutenio sobre objetos

mortais Isso natildeo fica claro no argumento

Uma das maiores fraquezas do argumento eacute a ausecircncia da ideia de hegemonia

absoluta da alma sobre o corpo Haacute vaacuterios exemplos no diaacutelogo em que a lsquoalma

115 Cf Rowe 1993 p187

135

governantersquo e lsquoo corpo governadorsquo trocam de papel Na primeira etapa do diaacutelogo a

personagem Soacutecrates menciona a crenccedila das religiotildees de misteacuterio segundo a qual ldquonoacutes

seres humanos estamos num tipo de prisatildeordquo (62b) Nesse caso a alma estaria

subordinada ao corpo em que se aloja do qual natildeo poderia deliberadamente se libertar

Adiante eacute dito que a alma se subordina agraves demandas corporais ndash fome doenccedilas desejos

eroacuteticos apetites temores fantasias futilidade (66b-d) Por exemplo ldquoeacute o corpo que

nos forccedila a adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircnciardquo (66d) No

contexto do argumento das afinidades a alma eacute arrastada passivamente pelo corpo para

os objetos particulares (79c) Pelo menos nesses casos natildeo se vecirc com clareza a alma

exercendo um papel soberano sobre o corpo aparentemente contradizendo o que a

passagem afirma sobre a alma que domina e governa o corpo Ainda que a ideia de

governar lsquopor naturezarsquo pode ser entendida como um conceito meramente normativo em

Platatildeo ndash algo que deve ser feito mas que nem sempre eacute ndash a ideia natildeo deixa de ser

estranha num diaacutelogo em que se enfatiza a constante submissatildeo da alma agraves demandas

corporais116 Se governar o corpo significa disciplinaacute-lo resistir aos seus desejos e

examinar com independecircncia a alma costuma falhar no exerciacutecio da sua natural

condiccedilatildeo de governante117

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

116 Gallop 2002 p139

117 Cf Bostock 1989 p 119

136

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

Nesta etapa final Soacutecrates conduz o argumento para uma conclusatildeo com base

em tudo que foi dito (ἐκ πάντων τῶν εἰρημένων) (80a10-80b1) Aqui fica bem claro que

o argumento eacute do tipo analoacutegico baseia-se na extrema semelhanccedila (ὁμοιότατον) entre

alma e a lsquoFormarsquo Ao dizer que a alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) agravequilo

que eacute divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmo Soacutecrates retoma vaacuterios aspectos em que a alma e Forma satildeo

semelhantes

Em suma o argumento apresenta trecircs pontos cruciais de semelhanccedila entre alma

e lsquoFormarsquo

(i) Invisibilidade

Existem duas classes de coisas visiacutevel e invisiacutevel

A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute

(ii) Inteligibilidade

O corpo arrasta a alma para objetos particulares e em contato com eles fica

confusa Sozinha por si a alma alcanccedila a lsquoFormarsquo (aquilo que eacute puro eterno

imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo) e fica em harmonia com ela

A alma possui maior semelhanccedila e afinidade (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) com a Forma (aquilo que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo) do

que com o objeto particular (aquilo que natildeo estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

(iii) Divindade

137

Ao divino e agrave alma compete o governar e dominar

A alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal)

Essas trecircs etapas do diaacutelogo estabelecem a semelhanccedila baacutesica entre alma e

lsquoFormarsquo e mostram que almas e lsquoFormasrsquo possuem apenas alguns atributos em comum

Apesar disso o argumento analoacutegico de Platatildeo parece tomar por certo que o fato de

alma e lsquoFormarsquo sejam semelhantes em alguns aspectos isso garantiria que alma e

lsquoFormarsquo seriam extremamente semelhante pelo menos em todos os aspectos que

Soacutecrates alista em 80b1-3

A conclusatildeo traz uma forte declaraccedilatildeo de semelhanccedila no argumento em vez de

simplesmente falar na lsquomaior semelhanccedila e afinidadersquo (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) da alma com a Forma (79c1-2) que a lsquoalma se assemelha (ὁμοιότερόν)

mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacutersquo (79c5) ou que

a alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal) (80a7) agora se enfatiza a semelhanccedila entre

alma e lsquoFormarsquo pelo uso do superlativo ὁμοιότατον Gallop esclarece que o superlativo

ὁμοιότατον pode ter um sentido intensivo ndash lsquomuito ou extremamente semelhantersquo ndash ou

pode significar lsquomais semelhante do que qualquer outra coisarsquo118 Embora o argumento

natildeo persuada o leitor de que a alma eacute lsquoextremamentersquo semelhante agraves lsquoFormasrsquo isso natildeo

significa que em seu cliacutemax a ideia apresentada natildeo seja justamente aquela da

intensidade O anuacutencio de que estatildeo chegando a uma conclusatildeo com base em tudo que

fora dito a apresentaccedilatildeo de um complexo cataacutelogo de atributos das Formas com as

quais as almas se assemelham (80a10-b3) e a conhecida convicccedilatildeo de Soacutecrates de que a

alma de modo algum se dissolve por ocasiatildeo da morte podem indicar que a personagem

118 Gallop 2002 p142

138

procura afirmar nada menos do que uma grande ou extrema semelhanccedila entre alma e

lsquoFormasrsquo Se este for o caso a ideia eacute realmente de que a alma eacute extremamente

semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e

sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo (80b1-3)

Quase todos os itens dessa lista em 80b1-3 aparecem ao longo do argumento

Trecircs itens satildeo mais importantes para o proacutepoacutesito especiacutefico do argumento que eacute o de

afastar o temor de que a alma se desintegra na hora da morte imortal lsquosempre na

mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo e indissoluacutevel Mas eacute o termo indissoluacutevel

(ἀδιάλυτος) que chama atenccedilatildeo nessa etapa de conclusatildeo ele aparece pela primeira vez

no argumento e provavelmente tem alguma ligaccedilatildeo ou talvez ateacute sirva de substituto do

termo lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) que aparece no iniacutecio do argumento em 78c O termo

ἀδιάλυτος pode expressar aquilo que eacute impossiacutevel de ser dissolvido (ou desintegrado)

ou aquilo que embora possa ser dissolvido natildeo o seraacute119 Mas se o termo realmente

retoma a ideia de que coisas simples (ἀσύνθετος) satildeo imunes agrave dispersatildeo enquanto as

compostas somente satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo (Cf 78c1-4) a ideia natildeo pode ser nada

menos do que impossibilidade de dissoluccedilatildeo As coisas compostas podem ser

dissolvidas ou dispersas num processo inverso ao que colocou as suas partes juntas mas

isto natildeo significa elas necessariamente seratildeo dissolvidas As almas satildeo extremamente

semelhantes (seja laacute o que isso significa) agraves Formas entatildeo elas devem ser indissoluacuteveis

imunes agrave desintegraccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo eacute

Enquanto a alma eacute insoluacutevel o corpo eacute soluacutevel (διάλυτος) (80b4) e o termo

soluacutevel (διάλυτος) provavelmente recupera ou estaacute relacionado ao termorsquocompostorsquo

(σύνθετος) que aparece em 78c Logo depois de serem introduzidos no diaacutelogo os

119 Rowe 1993 p188

139

termos lsquocompostorsquo (σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) natildeo aparecem novamente no

argumento mas curiosamente Soacutecrates termina o argumento em si com termos que

recuperam a ideia de lsquosimplesrsquo e lsquocompostorsquo A ideia de solubilidade e insolubilidade

que aparecem na lista em 80b1-5 passam a ser cruciais na conclusatildeo final em 80b9-c1

onde satildeo empregados διαλύω e ἀδιάλυτος ldquo() acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissordquo (ἆρ᾽ οὐχὶ σώματι μὲν ταχὺ

διαλύεσθαι προσήκει ψυχῇ δὲ αὖ τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι ἢ ἐγγύς τι τούτου)

O argumento das afinidades enfrenta a criacutetica de ser o uacutenico argumento

analoacutegico no Feacutedon por ser de natureza analoacutegica natildeo eacute probatoacuterio Como lembra

Bostock o proacuteprio Platatildeo certamente sabia que analogias natildeo podem ser consideradas

como provas conclusivas E embora analogias possam ser bastante persuasivas quando

completas e propriamente detalhadas isso natildeo acontece com o argumento das

afinidades120 Assim como Bostock os comentadores em geral criticam o argumento

das afinidades por ser o uacutenico do tipo analoacutegico no diaacutelogo e como argumento

analoacutegico eacute fraco pouco persuasivo

(a) Bluck assevera que o argumento das afinidades natildeo constitui uma prova ele

eacute um mero argumento de probabilidade sem rigor loacutegico cuja funccedilatildeo eacute

simplesmente preparar o terreno para o uacuteltimo argumento o qual Platatildeo

considera como sendo uma prova real e final da imortalidade da alma121

120 Bostock 1989 p120-121

121 Bluck 1955 p73

140

(b) Dorter observa que enquanto os outros argumentos satildeo estabelecidos com

uma boa dose de rigor formal o argumento das afinidades eacute baseado meramente

em analogia estando assim aberto agrave rejeiccedilatildeo por qualquer pessoa que natildeo aceite

analogia122

(c) Elton afirma que Platatildeo inclui o argumento das afinidades para expor as

armadilhas do raciociacutenio analoacutegico e natildeo para apoiar a defesa da imortalidade

Assim o argumento funcionaria como liccedilatildeo objetiva sobre como natildeo fazer boa

filosofia isto eacute sobre como natildeo argumentar em favor da imortalidade da

alma123

(d) Gallop entende que o argumento tomado como analogia eacute fraco apresenta

uma fraca cadeia de argumentos que tenta estabelecer a analogia entre almas e

Formas124

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Com base na extrema semelhanccedila entre alma e lsquoFormarsquo a personagem Soacutecrates

chega a uma conclusatildeo final ldquoao corpo pertence (προσήκει) a raacutepida dissoluccedilatildeo (τάχυ

διαλύεσθαι) enquanto agrave alma por sua vez ser inteiramente indissoluacutevel (τὸ παράπαν

ἀδιαλύτῳ) ou algo proacuteximo disso (ἤ ἐγγύς τι τούτου)rdquo (80b8-11)

Platatildeo retoma a ideia vaga de lsquopertencerrsquo (προσήκω) que ele emprega

anteriormente em 78c Agora ele diz que pertence ao corpo o sofrer dissoluccedilatildeo

122 Dorter 1982 p 72

123 Elton 1997 p 313316

124 Gallop 2002 p 140

141

(διαλύω) antes que pertence agraves coisas compostas o sofrer dispersatildeo (διαιρέω) (78c2)

Agora pertence agrave alma o ser completamente indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) antes ao simples o

natildeo se sujeitar a sofrer dispersatildeo (78c3-4) O verbo προσήκω e as palavras com mesmo

campo semacircntico ndash διαιρέω διαλύω ἀδιάλυτος ndash sugerem que Platatildeo aproxima

intencionalmente os dois contextos (78c e 80b) A ideia de que haacute coisas simples e

compostas eacute crucial no iniacutecio do argumento mas depois de 78c ela eacute abandonada Logo

depois que Soacutecrates relaciona as coisas simples com lsquoas coisas que estatildeo sempre no

mesmo estado e condiccedilatildeorsquo (Formas) e as compostas com lsquoaquelas cuja condiccedilatildeo varia

em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estadorsquo (objetos particulares)

(78c6-8) ele introduz definitivamente as lsquoFormasrsquo no argumento (78c10-d7) A partir

daiacute Soacutecrates natildeo menciona a distinccedilatildeo entre lsquocoisas simplesrsquo e lsquocoisas compostasrsquo

novamente mas fica claro que as lsquoFormasrsquo satildeo as coisas simples e imunes agrave dispersatildeo e

as compostas e suscetiacuteveis agrave dispersatildeo satildeo lsquoobjetos particularesrsquo A ideia de sofrer

dissoluccedilatildeo (διαλύω) sofrer dispersatildeo (διαιρέω) e ser indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) natildeo se

sujeitar a sofrer dispersatildeo satildeo cruciais para o argumento que visa confrontar a crenccedila

popular de que a alma seria destruiacuteda (διαφθείρω) e pereceria (ἀπόλλυμι) na ocasiatildeo da

separaccedilatildeo do corpo ocasiatildeo em que seria dispersa (διασκεδάννυμι) como vento e

fumaccedila (70a3-6) que na compreensatildeo de Soacutecrates natildeo passa de uma crenccedila ldquopueril de

que o vento realmente dissipe (διαφύομαι) e disperse (διασκεδάννυμι) a alma na ocasiatildeo

em que ela deixa o corpordquo (77d7-e1)

Dentre outras coisas a conclusatildeo desponta por causa falta de clareza O proacuteprio

termo lsquopertencerrsquo eacute vago sem qualquer sentido especializado O argumento utiliza uma

linguagem de confianccedila seguranccedila e certeza apenas quando caracteriza as lsquoFormasrsquo

elas satildeo imortais indissoluacuteveis Mas quando se refere agrave alma diz-se vagamente que a

142

ela lsquopertencersquo o ser completamente indissoluacutevel A ideia de lsquopertencerrsquo (προσήκει) natildeo

traz qualquer certeza ou garantia e apenas atenua a conclusatildeo

A expressatildeo lsquoou algo proacuteximo dissorsquo (ἤ ἐγγύς τι τούτου) (80b11) conduz o leitor

para um mar de incertezas Ao que parece o texto faz um tipo de confissatildeo mais ou

menos aberta de que o argumento das afinidades repousa no terreno da incerteza A

conclusatildeo reflete uma maneira platocircnica de reconhecer a inseguranccedila do argumento

como se fosse uma admissatildeo mais ou menos velada de que o argumento apresenta

problemas125

Como jaacute foi dito o argumento procurar estabelecer que (i) a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute (ii) que a alma deve possuir

maior afinidade com a Forma do que com o objeto particular porque quando examina

sozinha alcanccedila a lsquoFormarsquo e fica em harmonia com ela (iii) que a alma eacute como (ἔοικεν)

o divino (imortal) porque compete a ambos governar e dominar Com base nessas trecircs

comparaccedilotildees Soacutecrates conclui que lsquoa alma eacute extemamente semelhante ao que eacute ao

divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmorsquo portanto lsquoa alma seria o tipo de coisa completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissorsquo Contudo as trecircs comparaccedilotildees baacutesicas soacute

providenciam base para a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevelrsquo ou

algo proacuteximo dissorsquo se aceitarmos que a semelhanccedila em alguns aspectos entre alma e

lsquoFormasrsquo ndash invisibilidade inteligibilidade divindade ndash pode garantir a semelhanccedila em

vaacuterios outros aspectos como indissolubilidade Se isso natildeo for aceito dificilmente

algueacutem poderia afirmar que a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevel

ou algo proacuteximo dissorsquo decorre das trecircs comparaccedilotildees baacutesicas do diaacutelogo

125 Rowe 1993 p189

143

Por fim resta apenas reconhecer todas as deficiecircncias do argumento apontadas

ao longo desta seccedilatildeo para concluir que o argumento das afinidades falha em provar que

a alma eacute imortal Por outro lado o argumento eacute extremamente importante para

convencer os amigos de que a alma eacute um tipo de ser ldquointermediaacuteriordquo o argumento deixa

claro que ela natildeo eacute nem possui afinidades com os objetos particulares mas mesmo

assim consegue interagir com eles a ponto de carregar consigo elementos corporais Por

outro lado ela se assemelha ao maacuteximo com as lsquoFormasrsquo mas ainda assim natildeo eacute uma

delas Portanto a uacutenica saiacuteda para entender essa forte e consistente caracterizaccedilatildeo da

alma no argumento das afinidades eacute concluir que ela eacute um ente que se coloca entre

lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos particularesrsquo o que poderiacuteamos chamar de ente intermediaacuterio

bull Formas

bull Alma

bull Objetos sensiacuteveis

Embora seja um argumento analoacutegico que natildeo eacute suficiente para persuadir os

amigos de que a alma eacute completamente indissoluacutevel o argumento tem os seguintes

meacuteritos geralmente desprezados pela literatura criacutetica

(i) O argumento eacute a primeira tentativa direta de provar que a alma eacute por

natureza imune agrave morte A exigecircncia que Cebes apresentaraacute adiante eacute

basicamente que se apresente um argumento capaz de provar aquilo que

o argumento das afinidades pelo menos aponta provar que a alma eacute

completamente indissoluacutevel ou seja imortal e indestrutiacutevel

144

(ii) O argumento eacute a primeira tentativa de provar a imortalidade da alma sem

qualquer vinculaccedilatildeo com a doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo

(iii) O argumento apresenta pela primeira vez uma caracterizaccedilatildeo consistente

das lsquoFormasrsquo em contraste com os objetos particulares Pela primeira vez

podemos vislumbrar com maior clareza que Platatildeo considera a existecircncia

de trecircs coisas lsquoFormasrsquo lsquoalmasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo Eacute precisamente

neste ponto do diaacutelogo que jaacute temos uma caracterizaccedilatildeo suficiente das

lsquoFormasrsquo para reconhecermos que Platatildeo possui uma teoria segundo a

qual existem entidades ldquosuperioresrdquo distintas das almas e dos sensiacuteveis

(iv) A caracterizaccedilatildeo da alma como ente lsquointermediaacuteriorsquo eacute de fundamental

importacircncia para a correta interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento Platatildeo

certamente espera que interpretemos o uacuteltimo argumento a partir desta

compreensatildeo da alma como ente cuja existecircncia estaacute entre lsquoFormasrsquo e

lsquosensiacuteveisrsquo

54 Etapa Especulativa (80c-84b)

O argumento em si finda em 80b mas daacute margem para que Soacutecrates introduza

imediatamente um tipo de discussatildeo complementar com base no que foi dito no

argumento das afinidades em si Mas essa etapa que inicia em 80c consiste numa

elaboraccedilatildeo especulativa e miacutetica A passagem do argumento em si para essa nova etapa

eacute bastante sutil O primeiro tema desenvolvido nessa etapa trata da distinccedilatildeo baacutesica do

ser humano ndash corpo e alma ndash e manteacutem uma especial ligaccedilatildeo com a conclusatildeo final do

argumento das afinidades Contudo natildeo deve ser tomado como parte ou extensatildeo do

145

argumento em si porque fica claro que o argumento natildeo acomoda qualquer especulaccedilatildeo

de cunho miacutetico-religioso Aleacutem disso a nova etapa se volta para a glorificaccedilatildeo do

modo de vida filosoacutefico e finda com a conclusatildeo de que esse modo de vida eacute o que

finalmente garante a ausecircncia dos temores do filoacutesofo

541 Corpo e alma (80c-d)

bull Corpo (80c2-d4)

No argumento das afinidades fica estabelecido que haacute duas classes de coisas

visiacutevel e invisiacutevel sendo a alma mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17) Agora Soacutecrates retoma

parte dessa ideia reafirmando a distinccedilatildeo baacutesica do ser humano em corpo que eacute a parte

visiacutevel (τὸ ὁρατὸν) da pessoa e pouco depois falaraacute da alma que eacute a parte invisiacutevel (τὸ

ἀιδές) (80d5)

Na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates afirma que o corpo se

dissolve rapidamente (τάχυ διαλύεσθαι) (80b9) mas agora a personagem Soacutecrates

parece confrontar o proacuteprio argumento com a ideia de que o cadaacutever ao qual pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ διαπίπτειν καὶ

διαπνεῖσθαι) natildeo sofre todas essas coisas imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν

πέπονθεν) mas lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado Aleacutem disso certas

partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά ἐστιν) (80c2-d4) Sendo assim a

146

dissoluccedilatildeo do corpo eacute vista agora mais como um processo que varia em cada caso do

que algo imediato como foi apresentado na conclusatildeo do argumento das afinidades

Talvez esse remendo visa reforccedilar a ideia de que a alma natildeo eacute imediatamente

desintegrada na hora da morte se nem mesmo o corpo ndash a parte visiacutevel do ser humano ndash

eacute dissolvido imediatamente apoacutes a morte quanto mais a alma a parte invisiacutevel do ser

humano

Apesar dessa constataccedilatildeo da durabilidade do cadaacutever que de algum modo

aponta para uma imprecisatildeo na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates

reafirma a sua convicccedilatildeo de que lsquodissolver-se desintegrar-se dissipar-sersquo satildeo proacuteprios

do corpo natildeo da almarsquo (80c4-5) como se estivesse reforccedilando ou dando um suporte

adicional para a ideia jaacute apresentada pelo argumento das afinidades

bull Alma (80d5-e1)

Platatildeo tambeacutem se utiliza da ideia de semelhanccedila entre almas e lsquoFormasrsquo

apresentada no argumento das afinidades nessa etapa especulativa No argumento das

afinidades a alma que examina sem a mediaccedilatildeo corporal se encaminha para as Formas

aquilo com que ela possui semelhanccedila e afinidade e fica em harmonia com elas (79c-d)

no acircmbito especulativo miacutetico-religioso a alma que se liberta do corpo vai para um

lugar da mesma natureza um lugar nobre puro invisiacutevel (γενναῖον καὶ καθαρὸν καὶ

ἀιδῆ) chamado Hades onde fica junto a uma divindade boa e saacutebia (παρὰ τὸν ἀγαθὸν

καὶ φρόνιμον θεόν) (80d5-7) A alma que vive em constante afastamento do corpo parte

para o aleacutem pura (sem carregar elementos corporais consigo) e desse modo lsquose

147

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5)

Aleacutem disso assim como no argumento das afinidades a alma que se utilizada do

corpo eacute arrastada para o mundo fiacutesico e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se

estivesse embriagada e soacute cessa o desvio quando entra em contato com lsquoaquilo que

permanece sempre na mesma condiccedilatildeorsquo (79c6-8) na versatildeo miacutetico-religiosa de Platatildeo a

alma soacute encontra plena realizaccedilatildeo (εὐδαίμων) quando deixa o mundo fiacutesico e natildeo eacute mais

afetado pelas mazelas oriundas do corpo como lsquoo desvio insensatez tipos selvagens de

amor e os outros males humanosrsquo (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀγρίων ἐρώτων καὶ

τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων) (81a6-8)

Como lida agora com o domiacutenio miacutetico-religioso e especulativo Soacutecrates

concede agrave divindade seu lugar de primazia apenas se a divindade quiser (ἂν θεὸς θέλῃ)

a sua alma tambeacutem percorreraacute esse mesmo caminho em direccedilatildeo ao divino e agrave completa

realizaccedilatildeo (80d7-8) No entanto ele nutre uma boa esperanccedila de que o divino lhe

permitiraacute desfrutar desse destino assim como havia manifestado antes ao falar da

esperanccedila (ἐλπίς) que os filoacutesofos nutrem de que apenas no Hades alcanccedilariam a

sabedoria que desejaram ao longo de uma vida inteira (68a7-b6) Vale lembra que o

Hades que havia sido completamente excluiacutedo do argumento das afinidades eacute

retomado nessa etapa especulativa

Por fim assim como no argumento das afinidades Soacutecrates confronta o temor

pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo especialmente

se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) a etapa especulativa tambeacutem visa

confrontar a ideia de que na ocasiatildeo da morte a alma seria lsquoimediatamente dissipada e

destruiacuteda como afirmam as pessoasrsquo (εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ ἀπόλωλεν ὥς φασιν οἱ

148

πολλοὶ ἄνθρωποι)rsquo Soacutecrates reforccedila que isso natildeo aconteceria lsquolonge disso caros

Siacutemias e Cebesrsquo (80d9-e2) E a sua apresentaccedilatildeo do percurso da alma depois da morte

com base na doutrina da reencarnaccedilatildeo ilustra a sua posiccedilatildeo de que a alma natildeo eacute

aniquilada na hora da morte mas experimenta diferentes tipos de existecircncia de acordo

com a vida que teve unificando todas essas temaacuteticas

542 Vida Filosoacutefica

Um dos objetivos dessa etapa especulativa eacute a defesa da vida dedicada agrave

filosofia Platatildeo explora o tema da vida filosoacutefica e o relaciona a diversos temas

especiacuteficos

bull Filosofia e Reencarnaccedilatildeo

Se por um lado o destino do filoacutesofo depende da vontade divina por outro

depende do modo de vida ndash filosoacutefico ou natildeo ndash que a pessoa leva O destino da alma e o

modo de vida de uma pessoa satildeo diretamente ligados ao tema da reencarnaccedilatildeo nesta

etapa O objetivo desta longa seccedilatildeo em que Platatildeo utiliza a doutrina da reencarnaccedilatildeo

conforme seus interesses eacute apresentar uma vigorosa defesa da vida filosoacutefica mais do

que propagar a crenccedila na reencarnaccedilatildeo

A reencarnaccedilatildeo eacute experimentada por aqueles que natildeo se dedicam agrave filosofia e

assim natildeo se purificam durante a vida Aqueles que se entregam ao modo de vida

corporal entregando-se aos seus deleites nunca podem chegar ao Hades no estado de

pureza e a sua alma parte para o aleacutem contaminada e carregada com os resiacuteduos

149

corporais e logo reencarna em outro corpo porque o Hades natildeo lhe permite ali ficar em

contato com os deuses (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) Isto levaria a uma consequente

reencarnaccedilatildeo num corpo de acordo com o gecircnero de vida praticado ( Essa temaacutetica eacute

desenvolvida e ilustrada atraveacutes de trecircs grupos cada grupo caracterizado pela

reencarnaccedilatildeo correspondente ao modo de vida que teve

(i) Aqueles que se entregam agrave glutonaria e embriaguecircs reencarnam como

burros e animais dessa natureza (81e)

(ii) Aqueles que praticam injusticcedilas tiranias e roubos retornam como lobos

falcotildees e abutres (82a)

(iii) Aqueles que praticam a virtude popular e poliacutetica ndash temperanccedila e justiccedila

ndash mas por mero haacutebito sem o exerciacutecio consciente da filosofia e

inteligecircncia nascem como uma espeacutecies sociais como eles satildeo podem

voltar como abelhas vespas formigas ou novamente como humano

(82b-c)

Todo o cenaacuterio em que a personagem principal discute a reencarnaccedilatildeo da alma eacute

construiacutedo para uma seguinte exaltaccedilatildeo do modo de vida filosoacutefico e tudo que se

relaciona a ele

543 Filosofia e salvaccedilatildeo da alma

Filosofia eacute o uacutenico meio de salvaccedilatildeo de um interminaacutevel ciclo de reencarnaccedilotildees

Eacute impossiacutevel quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees e chegar agrave linhagem dos deuses sem o

150

exerciacutecio da Filosofia a qual prepara os filoacutesofos para partirem completamente

purificados para o Hades (82b10-c1) Esse modo de vida filosoacutefico no qual a alma

encontra redenccedilatildeo eacute exemplificado em 82c3-8 os filoacutesofos se afastam e se manteacutem

afastados de todos os desejos que dizem respeito ao corpo como o desejo daquele que

ama o dinheiro e receia pobreza e o daquele que ama poder e honra e receia desonra e

maacute reputaccedilatildeo Platatildeo se utiliza da ideia religiosa da metempsicose e da quebra dos

ciclos de renascimentos ao seu interesse de propagar a sua proacutepria praacutetica filosoacutefica

como via uacutenica de salvaccedilatildeo No Feacutedon vemos um tipo de ldquoproselitismo filosoacuteficordquo jaacute

que natildeo haacute outro meio de quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees o melhor a se fazer eacute

dedicar a vida agrave praacutetica de morrer e estar morto ou seja tornar-se um filoacutesofo

544 Filosofia e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo

O tema da lsquosalvaccedilatildeo da almarsquo (entendida como a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees) e o tema da lsquopurificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo da almarsquo estatildeo intrinsecamente

relacionados A vida de reclusatildeo da alma dissociada do corpo e dedicada agrave filosofia o

que o filoacutesofo chama de verdadeiro filosofar (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e exerciacutecio de

morte (μελέτη θανάτου) (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) eacute basicamente o que Platatildeo

apresenta como purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo (καθαρμός) e libertaccedilatildeo (λύσις) se

efetuam por meio da filosofia (82d5-6) Semelhante ideia eacute apresentada no primeiro

estaacutegio do diaacutelogo onde lsquopurificarrsquo eacute a alma afastar-se ao maacuteximo do corpo e viver

longe dele (67c5-d1) O corpo eacute como uma prisatildeo e somente a filosofia pode efetuar a

libertaccedilatildeo da alma encarcerada em seu proacuteprio corpo Sem a praacutetica da filosofia a alma

eacute cativa do corpo e obrigada a examinar as lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) por meio dele

151

como atraveacutes de uma prisatildeo (82e3-4) Tambeacutem no primeiro estaacutegio do Feacutedon o tema

da purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo eacute desenvolvido juntamente com a ideia de que o corpo eacute um

tipo de prisatildeo da alma a constante reclusatildeo da alma ldquoeacute um um ato de constante

libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de cadeiasrdquo (67d1-2)

Quando algueacutem eacute iniciado na filosofia o processo de libertaccedilatildeo comeccedila a tomar

lugar paulatinamente (83a9-b1)

bull Filosofia gentilmente aconselha a alma

bull Filosofia tenta libertar a alma do exame atraveacutes dos sentidos

bull Filosofia persuade a distanciar a alma dos sentidos exceto

quando eacute imperativo usaacute-los

bull Filosofia encoraja a alma a recolher-se em si mesma e a confiar

apenas em si mesma quando usa a inteligecircncia para captar as

coisas que satildeo sozinhas por si mesmas (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν

ὄντων)

bull Filosofia encoraja a alma a considerar falso tudo que examine por

outros meios

bull Filosofia ajuda a identificar o que eacute sensiacutevel e visiacutevel e o que eacute

inteligiacutevel e invisiacutevel

152

545 Afinidade entre alma e o divino

O argumento das afinidades em si procura estabelecer a afinidade entre almas e

lsquoFormasrsquo enquanto a etapa especulativa procura estabelecer a versatildeo miacutetico-religiosa da

lsquoafinidadersquo ou seja a afinidade entre alma e o domiacutenio do divino que inclui o lugar as

divindades e tudo que faccedila parte desse domiacutenio Esta etapa chega ao fim com a

declaraccedilatildeo de que ao findar a vida a alma vai alcanccedilar aquilo que com ela possui

lsquoafinidadersquo e que eacute do mesmo tipo dela (εἰς τὸ συγγενὲς καὶ εἰς τὸ τοιοῦτον) (84b2-3)

Platatildeo utiliza vaacuterias expressotildees e termos para expressar a ideia de semelhanccedila relaccedilatildeo

afinidade familiaridade mesma natureza O termo συγγενής em particular eacute aparece

duas vezes no argumento das afinidades em si uma para estabelecer a familiaridade ou

afinidade entre corpo e a classe de coisas visiacuteveis e a alma e a classe de coisas

invisiacuteveis (79d3) outra para estabelecer a afinidade entre lsquoo que eacute puro eterno imortal

e permanece na mesma condiccedilatildeorsquo e a alma (79e1-2) Nesta conclusatildeo em 84b2-3 na

qual eacute dito apenas que a alma que deixa o corpo vai alcanccedilar aquilo com que ela possui

lsquoafinidadersquo (συγγενής) o contexto miacutetico-religioso sugere o encontro entre alma e o

domiacutenio do divino como jaacute havia sido sugerido pelo menos em duas ocasiotildees em

80d5-7 a alma que se liberta do corpo vai para outro lugar da mesma natureza que a sua

(εἰς τοιοῦτον τόπον ἕτερον) um lugar nobre puro invisiacutevel chamado Hades onde fica

junto a uma divindade boa e saacutebia em 81a4-5 a alma que parte para o aleacutem pura lsquose

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5) Toda

aspiraccedilatildeo post mortem do filoacutesofo nesta etapa especulativa diz respeito ao mundo

idealizado pela perspectiva miacutetico-religiosa e a semelhanccedila entre a alma e o domiacutenio do

153

divino e imortal parece tentar reforccedilar aquilo que foi apresentado no argumento das

afinidades em si Mas eacute importante lembrar que as lsquoFormasrsquo ainda satildeo objeto de desejo

do filoacutesofo durante a vida na etapa especulativa em 82e3-4 menciona-se o exame das

lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) e pouco depois a utilizaccedilatildeo da inteligecircncia para captar lsquoas

coisas que satildeo sozinhas por si mesmasrsquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν ὄντων) Nesse caso o

objetivo eacute reforccedilar a ideia de que eacute necessaacuterio examinar as lsquoFormasrsquo sem a

intermediaccedilatildeo corporal

546 Vida filosoacutefica e o temor da desintegraccedilatildeo da alma

No argumento das afinidades em si a extrema semelhanccedila entre almas e

lsquoFormasrsquo leva agrave conclusatildeo final de que a alma deve ser algo indissoluacutevel e assim natildeo

haveria razatildeo para nutrir os temores pueris de Cebes e Siacutemias de que a alma se

desintegraria assim que deixasse o corpo Por semelhante modo na etapa especulativa a

ideia de semelhanccedila entre a alma do filoacutesofo e o domiacutenio do divino eacute imediatamente

seguida pela afirmaccedilatildeo de que de modo algum a alma vai ser dissipada pelo vento e

destruiacuteda por ocasiatildeo da morte Mas nesse contexto especulativo natildeo eacute a afinidade da

alma com o divino que fundamenta a ideia de que a alma natildeo se desintegra na hora da

morte as a vida vida filosoacutefica eacute o que assegura que a alma natildeo seraacute desintegrada na

ocasiatildeo da morte eacute com base no modo de vida filosoacutefico (ἐκ δὴ τῆς τοιαύτης τροφῆς)

que natildeo haacute risco algum de que se tema que a alma possa ser dissolvida por ocasiatildeo da

morte esvaindo-se conforme o vento passando a natildeo mais existir em lugar algum

(84b3-7)

154

Esta seccedilatildeo especulativa retoma em grande parte a defesa de Soacutecrates na primeira

parte do diaacutelogo pela qual Soacutecrates tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que

natildeo estaacute convencido de que a morte eacute o melhor para o filoacutesofo procurando justificar sua

confianccedila e intrigante atitude diante da morte iminente e ateacute mesmo seu desejo de

morrer (60c-62c) Tanto em sua defesa como nessa etapa especulativa a vida filosoacutefica

eacute o que fundamenta qualquer esperanccedila no porvir

155

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)

61 Introduccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento eacute bastante discordante Ele tem a reputaccedilatildeo

de ser difiacutecil e insatisfatoacuterio e qualquer nova proposta de interpretaccedilatildeo tende a ser

tomada como mais uma maneira possiacutevel de lecirc-lo126

A etapa que vem depois do argumento das afinidades aparentemente prepara o

terreno para a introduccedilatildeo do argumento final propriamente dito mas a relaccedilatildeo entre ela

e o argumento final estaacute longe ser clara Esta longa estapa se desenvolve ateacute a

introduccedilatildeo do uacuteltimo argumento propriamente dito em 105c

61 O impacto do Argumento das Afinidades

Com base na afinidade entre alma e lsquoFormarsquo o argumento das afinidades conclui

que a alma eacute algo completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11) O

argumento natildeo consegue estabelece a prova definitiva da imortalidade mas representa

um grande avanccedilo na discussatildeo que evolui de duas provas vinculadas a uma concepccedilatildeo

de imortalidade da alma vinculada a uma crenccedila de cunho oacuterfico e pitagoacuterico segundo a

qual imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma se confundem para um argumento que

apesar de analoacutegico ataca o cerne de questatildeo a natureza da alma a sua imunidade agrave

126 Sedley 2011 p 31

156

morte O argumento provoca um forte impacto nos amigos pela primeira vez

apresentam suas proacuteprias ideias a teoria da alma-harmonia o tecelatildeo e seus mantos

Sobretudo Cebes poderaacute reconhecer que a alma eacute um ser especial diferente dos objetos

particulares divina longeva mais duradoura do que o corpo Mesmo assim a sua

afinidade com as lsquoFormasrsquo no argumento analoacutegico natildeo consegue convencecirc-lo de que

ela seria imortal completamente indissoluacutevel O proacuteprio Soacutecrates reconhece a fraqueza

do argumento ao concluir que a alma poderia ser algo proacuteximo de indissoluacutevel

Dialogando com a conclusatildeo do argumento das afinidades Cebes exigiraacute uma prova de

que a alma eacute imortal e completamente indestrutiacutevel A expressatildeo completamente

indestrutiacutevel visa explicar o tipo de concepccedilatildeo de imortalidade que eacute requerida agora

imortal natildeo apenas com o sentido de divino na religiatildeo tradicional ou vinculada agrave

doutrina da transmigraccedilatildeo da alma na tradiccedilatildeo oacuterfica e pitagoacuterica ou a quase

indissolubilidade da alma como uma admissatildeo de sua imortalidade mas a imortalidade

num sentido filosoacutefico especializado ndash a alma imortal eacute a alma completamente imune a

destruiccedilatildeo a alma cuja natureza eacute essencialmente viva e natildeo admite morte e destruiccedilatildeo

em hipoacutetese alguma Ateacute o momento Soacutecrates natildeo apresenta uma resposta para o

problema apresentado inicialmente por Cebes em 70a a desintegraccedilatildeo da alma na

ocasiatildeo em que se desaloja do corpo O argumento ciacuteclico estabelece apenas a

continuidade da vida em geral e a continuidade da alma em particular O argumento da

reminiscecircncia estabelece a existecircncia da alma antes de alojar-se no corpo e os amigos de

Soacutecrates enfaticamente apoiam essa tese em vaacuterias partes do diaacutelogo mas o maacuteximo

que isto poderia provar seria que a existecircncia da alma do momento em que no aleacutem

capta as lsquoFormasrsquo para a corrente reencarnaccedilatildeo sem qualquer garantia de que ao deixar

novamente o corpo a alma seria destruiacuteda e o argumento das afinidade como

157

acabamos de relatar acentua a duacutevida de que a alma seria completamente indissoluacutevel

O problema continua o mesmo ainda existe a possibilidade de dispersatildeo e aniquilaccedilatildeo

da alma

Mas sem duacutevida o argumento das afinidades provoca um especial impacto nos

amigos de Soacutecrates como acabamos de sugerir Soacutecrates silencia por um longo periacuteodo

e os amigos conversam em voz baixa O filoacutesofo entatildeo pergunta o que se passa A

verdade eacute que Siacutemias e Cebes tecircm algumas dificuldades com o argumento mas natildeo

querem perturbaacute-lo em sua presente desgraccedila (84c-d) O argumento analoacutegico natildeo

persuade os amigos de que a alma eacute imune agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo O temor persiste

Soacutecrates quebra o silecircncio para reforccedilar que natildeo vecirc a sua situaccedilatildeo que enfrenta como

infortuacutenio e ateacute evoca dotes divinatoacuterios com o fim de expressar a sua confianccedila de que

se reuniraacute com os deuses no Hades (84e-85a) e para pedir que os amigos apresentem

suas consideraccedilotildees (85a) O argumento das afinidades inspira os amigos de Soacutecrates a

apresentar as suas proacuteprias objeccedilotildees baseadas em algum tipo de analogia entre a alma e

a harmonia produzia por um instrument musical e a alma e o tecelatildeo com os mantos

que fabrica e com os quais se veste

62 Objeccedilotildees de Siacutemias e Cebes

Siacutemias e Cebes apresentam suas proacuteprias objeccedilotildees

(i) Siacutemias (85e-86d) a alma eacute como uma harmonia e o corpo eacute como uma

lira e suas cordas A harmonia eacute algo invisiacutevel incorpoacutereo e

158

absolutamente belo e divino na lira afinada enquanto a proacutepria lira e

suas cordas satildeo corpos e semelhantes ao mortal A alma perece com o

corpo assim como a harmonia deixa de existir quando a lira for destruiacuteda

(ii) Cebes (87a-88b) a analogia involve um tecelatildeo e seu manto Cebes estaacute

convencido de que alma existe antes do nascimento (argumento da

reminiscecircncia) mas ainda duvida que ela continue existindo apoacutes a

morte O tecelatildeo representa a alma e o manto representa os corpos nas

vaacuterias reencarnaccedilotildees Jaacute que o manto eacute mais fraacutegil do que o tecelatildeo ele

precisaraacute fazer e vestir vaacuterios mantos ao longo da vida assim como a

alma precisaraacute reencarnar em vaacuterios corpos sendo assim mais duraacutevel do

que o corpo mas natildeo imortal

Soacutecrates Soacutecrates faz uma breve revisatildeo dos dois argumentos em 91c7ndashd7 com o

sutil propoacutesito de revelar que os problemas das objeccedilotildees dos amigos O primeiro deles eacute

a discordacircncia dos proacuteprios amigos

(i) Os amigos natildeo concordam sequer no seguinte ponto fundamental

quando a alma deve perecer Siacutemias acredita a alma perece com ou antes

do corpo (86b2) Cebes acredita que a alma deve ter uma consistecircncia e

duraccedilatildeo maior do que a do corpo vindo a perecer apoacutes o corpo num dos

ciclos de reencarnaccedilotildees (87d1 e2)

(ii) Os amigos tambeacutem discordam na compreensatildeo da relaccedilatildeo de

interdependecircncia entre alma e corpo Com a sua teoria da alma-

159

harmonia Siacutemias tende a pensar que eacute a alma que depende do corpo

sendo destruiacuteda a lira (corpo) a harmonia que produz (a alma) tambeacutem

perece (86c5) Quando Cebes retrata o tecelatildeo (alma) como fazedor de

sua proacutepria vestimenta (corpo) ele daacute a entender que a alma deve durar

mais do que o corpo (87e1)

Quando confronta diretamente Siacutemias Soacutecrates facilmente lhe mostra que a sua

posiccedilatildeo eacute inconsistente e contraditoacuteria porque ele tenta sustentar o argumento da

reminiscecircnca e a teoria da alma-harmonia ao mesmo tempo Por um lado ele concorda

que a alma eacute como uma harmonia e assim sua existecircncia estaacute completamente

dependente do corpo ndash a harmonia de uma lira natildeo pode existir independentemente da

lira Por outro ele concorda com o argumento da reminiscecircncia segundo o qual a alma

existe independentemente do corpo antes mesmo do nascimento (92bndashe) Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos e sem titubear ele abandona o proacuteprio argumento

(alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e

reafirma o argumento da reminiscecircncia o qual deriva de uma hipoacutetese digna de

aceitaccedilatildeo Como o proacuteprio Siacutemias admite natildeo se trata propriamente de um argumento

uma demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) mas sim de uma objeccedilatildeo baseada numa imagem e

verossimilhanccedila (μετὰ εἰκότος τινὸς καὶ εὐπρεπείας) Para que natildeo reste nenhuma

duacutevida ele termina ratificando que eacute certo que a alma existe antes de entrar num corpo

assim como existe a Forma aquilo que eacute (92c-92d) Platatildeo deixa claro que a noccedilatildeo de

da alma-harmonia eacute completamente insustentaacutevel

No argumento do tecelatildeo e seus mantos a alma sobrevive a vaacuterios ciclos de

reencarnaccedilotildees mas perece no final sendo apenas mais resistente do que o corpo mas

160

natildeo imortal (87a-88b) A partir deste argumento Cebes apresenta objeccedilotildees gerais

essenciais para corrigir o rumo do diaacutelogo e para a construccedilatildeo do uacuteltimo argumento Em

suma eis a suas objeccedilotildees

(i) Cebes aponta o problema natildeo estaacute demonstrado que a alma continua a

existir em algum lugar depois da morte (87a4-5) Com essa consideraccedilatildeo

ele aponta a falha dos trecircs argumentos em providenciar uma prova final

da imortalidade da alma

(ii) Cebes critica a insuficiecircncia dos argumentos apresentados ainda que se

suponha que a alma eacute de natureza robusta (αὐτὸ φύσει ἰσχυρὸν εἶναι) e

resiste a uma seacuterie de ciclos de renascimentos (πολλάκις γιγνομένην

ψυχὴν ἀντέχειν) ainda assim natildeo haacute garantia de que ela natildeo se

desgastaria e numa das mortes ficaria totalmente aniquilada (ἔν τινι τῶν

θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) sem que ningueacutem saiba em qual

dessas mortes isso poderia ocorrer (88a1-10) A sua observaccedilatildeo estaacute

imediatamente relacionada ao seu argumento do tecelatildeo e do manto mas

parece se aplicar tambeacutem a todos os argumentos apresentados ateacute agora

a comeccedilar pelo argumento ciacuteclico o qual tenta provar que a alma

sobrevive atraveacutes dos ciclos de reencarnaccedilotildees mas natildeo garante que num

desses ciclos a alma simplesmente seria destruiacuteda

(iii) Cebes apresenta a necessidade lsquoprovar que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevelrsquo (ἀποδεῖξαι ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε

καὶ ἀνώλεθρον) (88b3-6)

161

(iv) Cebes critica a confianccedila e atitude de Soacutecrates diante da morte iminente

eacute insensato se mostrar confiante perante a morte a natildeo ser que se possa

lsquoprovar que a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrsquo (88b3-6)

Sem isso aquele que estaacute na iminecircncia da morte deve temer

constantemente que a sua alma seja completamente destruiacuteda

(παντάπασιν ἀπόληται) na ocasiatildeo em que ela se separa do corpo (88b6-

8) Mais uma vez essa criacutetica contempla a atitude de Soacutecrates diante da

morte em todo o diaacutelogo

(v) Cebes conduz a discussatildeo para um momento dramaacutetico de crise depois

de sua explanaccedilatildeo os amigos ficam tristes confusos increacutedulos (88c1-

5)

(vi) Cebes cria ocasiatildeo para o narrador Feacutedon exaltar Soacutecrates o qual se

posiciona para continuar a discussatildeo o filoacutesofo recebe a criacutetica com

maestria e como um general cujo exeacutercito foi disperso realinha as

fileiras de batalha e convoca os soldados para retornar ao campo de

batalha ndash o campo da argumentaccedilatildeo (88e-89a)

O problema da mortalidade da alma ainda persiste Se a alma for mortal a alma

de Soacutecrates corre o risco de ser destruiacuteda em breve assim que tomar o veneno e o corpo

perecer

A discussatildeo vem se desenrolando passo a passo O primeiro argumento que

aponta para a necessidade de provar que a alma eacute lsquoo tipo de coisa completamente

indissoluacutevelrsquo (τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι) eacute o argumento das afinidades mas ele

mesmo falha com a conclusatildeo de que a alma pode ser lsquoalgo proacuteximo de ser

162

completamente indissoluacutevelrsquo (80b10-11) O argumento do tecelatildeo e seus mantos

desenvolve semelhante problemaacutetica a ideia de uma alma robusta longeva quase

imortal e indestrutiacutevel mas que depois de uma sobreviver a uma seacuterie de reencarnaccedilotildees

se desgasta e num desses ciclos acaba aniquilada

Sendo assim Cebes requer uma prova definitiva de que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevel o que fica claro pela adiccedilatildeo das palavras lsquocompletamentersquo e

lsquoindestrutiacutevelrsquo O risco de que a alma lsquoficasse completamente aniquilada em uma das

mortesrsquo (ἔν τινι τῶν θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) (88a9-10) exige um argumento

que prove que ela eacute completamente imortal e indestrutiacutevel (παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ

ἀνώλεθρον) (88b5-6) Esta reivindicaccedilatildeo eacute essencial neste ponto do diaacutelogo porque

Soacutecrates a acolhe e o argumento final busca satisfazecirc-la ldquoa alma eacute imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ ἀνώλεθρον (106e8-107a1)

Essa lista de observaccedilotildees de Cebes eacute acolhida recapitulada e utilizada por

Soacutecrates como paracircmetro a ser seguido na construccedilatildeo do proacuteximo argumento Eis a

recapitulaccedilatildeo que Soacutecrates faz das objeccedilotildees de Cebes (95b-e)

(i) Deve ser demonstrado que a nossa alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ἀξιοῖς

ἐπιδειχθῆναι ἡμῶν τὴν ψυχὴν ἀνώλεθρόν τε καὶ ἀθάνατον οὖσαν)

(ii) Sem uma demonstraccedilatildeo da imortalidade da alma a mera confianccedila e

esperanccedila do filoacutesofo de ter um vida feliz e melhor no aleacutem eacute nada mais

do que uma confianccedila insana e vatilde

(iii) Apresentar a alma como algo resistente e divino (τὸ δὲ ἀποφαίνειν ὅτι

ἰσχυρόν τί ἐστιν ἡ ψυχὴ καὶ θεοειδὲς) e que existia antes mesmo de nos

163

tornarmos seres humanos natildeo prova a sua imortalidade mas apenas a sua

longa duraccedilatildeo em algum lugar

(iv) A entrada da alma num corpo humano jaacute eacute para ela como se fosse uma

doenccedila o iniacutecio da sua ruiacutena ateacute que se extinga na morte

(v) Sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι ὡς

ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou

vaacuterias vezes num corpo

(vi) Toda pessoa que tem bom senso deve temer a morte se natildeo souberem o

que eacute imortal e natildeo poderem oferecer um argumento sobre isso

Quando Soacutecrates pergunta se os amigos aceitaram todos os argumentos

apresentados ou apenas alguns (πότερον οὖν ἔφη πάντας τοὺς ἔμπροσθε λόγους οὐκ

ἀποδέχεσθε ἢ τοὺς μέν τοὺς δ᾽ οὔ) Cebes e Siacutemias revelam que apenas alguns haviam

sido aceitos outros natildeo mas ambos salientam que aceitam completamente o argumento

das reminiscecircncias ndash as almas existem antes do nascimento (91e-92a) Cebes aceita

algumas das demonstraccedilotildees anteriores o que significa que em sua perspectiva o

diaacutelogo havia progredido na explanaccedilatildeo sobre a natureza da alma ndash os argumentos

anteriores (pelo menos alguns) ajudam a entender a superioridade da alma em relaccedilatildeo

ao corpo ndash mas natildeo satildeo suficientes para provar o que se requer nesta ocasiatildeo ndash a

imortalidade da alma Eles ajudam a entender a alma em parte principalmente a sua

superioridade em relaccedilatildeo ao corpo mas ainda natildeo satildeo suficientes para atender as

exigecircncias de Cebes provar que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Em suma Cebes

admite que a alma eacute (91e-92a95c)

164

A alma eacute lsquorobustarsquo (ἰσχυρός) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquodivinarsquo (θεοειδής) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquolongevarsquo (πολυχρόνιος) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquopreexistentersquo (argumento

da reminiscecircncia)

Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

Apesar de o argumento de Cebes ndash tecelatildeo e o seu manto ndash seja tambeacutem baseado

numa mera lsquoimagemrsquo ou lsquoilustraccedilatildeorsquo sem demonstraccedilatildeo (assim como o de Siacutemias) que

eacute como a maioria das pessoas fundamental suas opiniotildees (τοῖς πολλοῖς δοκεῖ

ἀνθρώποις) (92d) e mesmo assim a ideia apresente claras inconsistecircncias ndash natildeo haacute

razatildeo para pensar que a alma pode sofrer um processo de desgaste vestindo o corpo ao

longo de diversas reencarnaccedilotildees porque natildeo eacute o manto que veste o tecelatildeo mas o

tecelatildeo o manto e assim o que se deteriora pelo uso eacute o mantocorpo natildeo o

tecelatildeoalma ndash ainda assim as objeccedilotildees gerais que Cebes levanta satildeo bem colocadas e

Soacutecrates afirma que lsquoisto requer uma exposiccedilatildeo sobre a causa da geraccedilatildeo e da

destruiccedilatildeorsquo (95e-96a) A nova etapa inicia com a autobiografia intelectual de Soacutecrates

que nos apresenta a busca inicial de Soacutecrates pela verdadeira lsquocausarsquo das coisas Durante

este estaacutegio Soacutecrates encontra uma resposta completamente sem sentido para a sua

busca da causa verdadeira Isto faz com que ele apele para uma outro tipo de

investigaccedilatildeo da causa

A cuidadosa leitura do texto sugere que a etapa entre as objeccedilotildees de Cebes e o

argumento final apresenta trecircs tipos de resposta concernentes agrave lsquocausarsquo das coisas

165

Quando em sua juventude Soacutecrates se decepciona com aquilo que os filoacutesofos da

natureza consideram como αἴτια Soacutecrates diz que ldquo(hellip) chamar esse tipo de coisa de

causa eacute completamente sem sentidordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

(99a4-5) Soacutecrates entatildeo busca outra resposta Na seccedilatildeo seguinte temos duas tentativas

de desenvolver uma noccedilatildeo platocircnica de causa Quando a personagem Soacutecrates expressa

a sua primeira formulaccedilatildeo de uma noccedilatildeo proacutepria de causa nos termos lsquoeacute por causa da

beleza que todas as coisas satildeo belasrsquo (100d7-8)rsquo ele diz que ele pensa que esta lhe

parece a afirmaccedilatildeo lsquomais segurarsquo (τοῦτο γάρ μοι δοκεῖ ἀσφαλέστατον εἶναι) (100d8-9)

Ele repete a ideia para deixar claro o tipo de resposta que ele chama de mais segura

lsquocontudo eacute seguro responder tanto a mim mesmo quanto a qualquer outra pessoa que eacute

por causa da beleza que as coisas belas se tornam belasrsquo (ἀλλ᾽ ἀσφαλὲς εἶναι καὶ ἐμοὶ

καὶ ὁτῳοῦν ἄλλῳ ἀποκρίνασθαι ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ γίγνεται καλά) (100e1-3) Mas

depois desta primeira tentativa Platatildeo desenvolve ainda mais a sua noccedilatildeo de causa

preparando terreno para a introduccedilatildeo do argumento final Portanto achamos razoaacutevel

dividir a etapa entre as objeccedilotildees gerais de Cebes e o uacuteltimo argumento da seguinte

maneira em trecircs ocasiotildees

(i) Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras127 ndash 96a-99c

(ii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo segura de causa ndash 99d-101e

(iii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c128

127 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

128 O texto natildeo traz a palavra lsquointeligentersquo mas apenas lsquooutra resposta segurarsquo (Cf 105b5-c1)

166

Essa etapa eacute desenvolvida ateacute a introduccedilatildeo do argumento final em 105c

63 Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras129 ndash 96a-99c

Soacutecrates apresenta sua chamada autobiografia intelectual que eacute introduzida no

diaacutelogo logo depois que a personagem recapitula as objeccedilotildees gerais de Cebes O

filoacutesofo imediatamente silencia por um tempo e quando retoma a discussatildeo louva a

busca de Cebes por algo que natildeo eacute trivial (95e8-9) e reconhece que diante das objeccedilotildees

eacute necessaacuterio discutir como um todo sobre a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (ὅλως γὰρ

δεῖ περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς τὴν αἰτίαν διαπραγματεύσασθαι) (95e10-96a3)

Nesta seccedilatildeo autobiograacutefica a personagem fala das suas proacuteprias experiecircncias (τά

γε ἐμὰ πάθη) em busca de conhecer a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (96a2) Em sua

mocidade era dado agrave lsquoinvestigaccedilatildeo sobre a naturezarsquo (περὶ φύσεως ἱστορίαν) buscando

conhecer as causas das coisas Parecia-lhe maravilhoso conhecer as causas de casa coisa

(εἰδέναι τὰς αἰτίας ἑκάστου) ldquopor que cada coisa eacute gerada perece e subsisterdquo (96a6-10)

Mas ele percebeu que o conhecimento sobre as causas era insatisfatoacuterio A sua

esperanccedila de que o livro de Anaxaacutegoras lhe ensinaria sobre as lsquocausasrsquo terminou numa

grande decepccedilatildeo e ao final ele rejeitou o modo de investigaccedilatildeo que os filoacutesofos da

natureza empregaram na busca da causa

129 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

167

Ao longo desta etapa a personagem Soacutecrates apresenta vaacuterios exemplos de

lsquocausasrsquo de acordo com os filoacutesofos da natureza Eis alguns alguns deles

OBSERVACcedilAtildeO CAUSA

96d-e

Um homem eacute maior do que o outro Cabeccedila

Um cavalo eacute maior do que o outro Cabeccedila

Dez eacute mais numeroso do que oito Adiccedilatildeo do dois

Dois cuacutebitos eacute maior do que um Dois cuacutebito excede um cuacutebito pela

metade

100c-d

Algo eacute belo Brilho da cor forma outra desse tipo

Soacutecrates rejeita este tipo de abordagem dos fiacutesicos contemporacircneos elas natildeo

podem ser a verdadeira αἰτίαι das coisas Soacutecrate sugere que a resposta dos filoacutesofos da

natureza para a sua busca pela causa verdadeira eacute algo do tipo completamente sem

sentido ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽

αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον) (99a4-5)

Decepcionado o filoacutesofo recorre a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele

chama de lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς

αἰτίας) (99c-d) Na seccedilatildeo que se inicia Platatildeo apresenta duas tentativas de resposta para

a questatildeo da causa verdadeira

168

64 Modo proacuteprio de investigaccedilatildeo (99c-101e)

Quando Soacutecrates ainda jovem busca a verdadeira causa das coisas fica

decepcionado com o tipo de resposta totalmente sem sentido apresentada pelos filoacutesofos

da natureza e resolve recorrer a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele chama de

lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς αἰτίας) (99c-

d) O novo modo de investigaccedilatildeo ao contraacuterio do anterior natildeo se baseia nos sentidos

corporais (99d-e) mas em argumentos (εἰς τοὺς λόγους) (99e) Ao longo do diaacutelogo

Platatildeo salienta que haacute coisas como o Belo em si cujo alcance pleno soacute pode ocorrer

atraveacutes da alma sozinha sem a mediaccedilatildeo corporal De alguma maneira a nova

abordagem tem uma ligaccedilatildeo direta com aquilo que jaacute havia sido apresentado ao longo

do diaacutelogo A ligaccedilatildeo fica clara posteriormente a nova abordagem tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de coisas como o belo em si e sabemos que jaacute em 65d Platatildeo

fala da existecircncia de coisas desse tipo

A partir deste ponto Soacutecrates se dispotildee a explicar com mais clareza esse novo

modo de investigaccedilatildeo A chamada autobiografia intelectual de Soacutecrates inicia com o

problema da αἰτία e nesta nova seccedilatildeo o texto deixa claro que a busca de Soacutecrates pela

verdadeira αἰτία continua A partir de agora Platatildeo poderaacute apresentar a sua tentativa de

contruir uma noccedilatildeo platocircnica de αἰτία com o fim de provar a imortalidade da alma

Antes de tudo eacute necessaacuterio observar que Platatildeo procurar deixar claro que toda a

seccedilatildeo que se inicia tem o compromisso expresso de estabelecer princiacutepios para provar a

imortalidada da alma Em 100b8-9 ele explica o objetivo desta seccedilatildeo lsquodemonstrar a

169

causa e descobrir que a alma eacute imortalrsquo (τὴν αἰτίαν ἐπιδείξειν καὶ ἀνευρήσειν ὡς

ἀθάνατον ἡ ψυχή) (100b8-9) Portanto a demonstraccedilatildeo da causa estaacute a serviccedilo da prova

da imortalidade da alma que eacute sem duacutevida o objetivo principal do diaacutelogo Outro

elemento importante nesta seccedilatildeo eacute o estabelecimento de uma hipoacutetese essencial ou

fundamental que eacute introduzida e reafirmada no diaacutelogo

O novo modo de investigaccedilatildeo que rompe completamente com os filoacutesofos da

natureza parte do pressuposto de uma hipoacutetese essencial lsquoFormasrsquorsquoFormasrsquo existem e

as coisas recebem os seus nomes pela sua participaccedilatildeo nelas A hipoacutetese de que existem

coisas como o belo em si nas quais as demais coisas participam passa a ser a condiccedilatildeo

sine qua non para a busca da causa verdadeira Em suma Soacutecrates considera o seguinte

(102a-d)

(i) Deve-se partir da hipoacutetese de que existe algo que eacute belo em si e por si

bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo(ὑποθέμενος εἶναί τι

καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7)

(ii) Admitindo a existecircncia dessas coisas eacute necessaacuterio considerar o seguinte

ldquose existe outra coisa bela aleacutem do que eacute belo em si natildeo eacute bela por causa

de coisa alguma a natildeo ser porque participa daquele belo em sirdquo (εἴ τί

ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ

διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ) (100c3-6) Depois Soacutecrates diz que lsquoeacute

pela beleza que as coisas belas satildeo belasrsquo (100d4-6)

(iii) Platatildeo desenvolve uma ideia de partipaccedilatildeo eacute por participar no belo em

si que as coisas belas satildeo belas Platatildeo desenvolve a sua ideia de

170

participaccedilatildeo utilizando principalmente trecircs palavras lsquoparticipaccedilatildeorsquo

(μετέχω) (100c5) lsquopresenccedilarsquo (παρουσία) (100d5) e lsquocomunhatildeorsquo

(κοινωνία) (100d6)

Com a hipoacutetese fundamental Platatildeo deixa claro que estaacute estabelecendo a noccedilatildeo

de lsquocausarsquo quando Soacutecrates diz que as coisas belas satildeo belas porque participam daquele

belo em sirdquo (100c3-6) finaliza com a pergunta ldquoconcordas com esse tipo de causardquo (τῇ

τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς) (100c6-7) Apesar da nossa divisatildeo para fins didaacuteticos entre

hipoacutetese fundamental e lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo na verdade a hipoacutetese

fundamental eacute a condiccedilatildeo baacutesica para o estabelecimento da lsquoresposta mais segura

poreacutem ignorantersquo

Tendo como base a hipoacutetese fundamental a noccedilatildeo de causa eacute desenvolvida

principalmente a partir das seguintes formulaccedilotildees

(i) Dativo de causa ndash lsquopor causa dersquo eacute bem comum especialmente no

contexto da resposta lsquomais segura poreacutem ignorantersquo para se referir agrave

lsquoFormarsquo como causa τῷ καλῷ (100d7 e2) πλήθει (101b6) and ἡμίσει

(101b7)

(ii) A preposiccedilatildeo διά + accusativo a construccedilatildeo pode ser encontrada em

101a onde Soacutecrates diz que coisas grandes satildeo grandes lsquopor causa da

grandezarsquo (διὰ τὸ μέγεθος) e coisas pequenas satildeo pequenas lsquopor causa da

pequenezrsquo (διὰ τὴν σμικρότητα) e em 101b quando Soacutecrates diz que dez

excede oito διὰ τὸ πλῆθος

171

(iii) O substantivo αἰτίααἴτιον no contexto da autobiografia intelectual de

Soacutecrates em 97c-99c αἰτία aparece pelo menos 19 vezes A partir do

momento em que Soacutecrates afirma que recorreu a uma lsquosegunda

navegaccedilatildeorsquo e ao longo do primeiro esboccedilo de uma noccedilatildeo de causa

(resposta mais segura poreacutem ignorante) αἰτία eacute empregada pelo menos 9

vezes em 99d 100-c 101b-101c

(iv) O verbo ποιέω em 99b100d130

O uso de todas essas formulaccedilotildees nessa etapa do Feacutedon deve indicar que Platatildeo

tem um interesse especial em construir uma noccedilatildeo de lsquocausarsquo embora isto ocorra de

maneira progressiva ao longo desta etapa comeccedilando com uma trivial ideia de αἰτία

especialmente no contexto da lsquoresposta segura poreacutem ignorantersquo e desenvolvendo a

noccedilatildeo no contexto da resposta lsquosegura e inteligentersquo onde Formas realmente produzem

algo nos objetos particulares Mesmo que o mecanismo de causaccedilatildeo natildeo seja

completamente expliacutecito nesse contexto veremos que a ideia de Formas como causa

passa a ser bem mais do que a de mera lsquoculparsquo lsquoresponsabilidade porrsquo Todo esse

esforccedilo platocircnico utilizando todos os meios possiacuteveis para expressar uma noccedilatildeo de

lsquocausarsquo numa soacute etapa do diaacutelogo nos faz rejeitar o pensamento de Vlastos de que

nenhuma dessas formulaccedilotildees eacute utilizada por Platatildeo com o fim de expressar qualquer

noccedilatildeo de causa131

130 Hackfort 1998 p 143-144

131 Vlastos 1969 p 146

172

Nesta etapa a noccedilatildeo fraca trivial de lsquocausarsquo eacute amparada principalmente pelo uso

do dativo numa lista de exemplos apresentados por Platatildeo que satildeo a principal fonte de

explicaccedilatildeo da ideia de lsquoFormarsquo como causa

(i) Beleza ldquoEacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι

τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ καλά) (100d7-8)

(ii) Beleza Grandeza Pequenez ldquoEacute por causa da beleza que as coisas belas

satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ καλά) e ldquoeacute por causa da grandeza que as

coisas grandes se tornam grandes as maiores e por causa da pequenez

que as coisas menores se tornam menoresrdquo (καὶ μεγέθει ἄρα τὰ μεγάλα

μεγάλα καὶ τὰ μείζω μείζω καὶ σμικρότητι τὰ ἐλάττω ἐλάττω) (100e2-

6)

(iii) Dois ldquoE vocecirc gritaria bem alto que natildeo conhece qualquer outra maneira

de cada coisa se originar exceto pela participaccedilatildeo em cada Forma

apropriada na qual venha a participar e nesses casos vocecirc natildeo possui

qualquer outra causa para algo tornar-se dois a natildeo ser a sua participaccedilatildeo

no doisrdquo (καὶ μέγα ἂν βοῴης ὅτι οὐκ οἶσθα ἄλλως πως ἕκαστον

γιγνόμενον ἢ μετασχὸν τῆς ἰδίας οὐσίας ἑκάστου οὗ ἂν μετάσχῃ καὶ ἐν

τούτοις οὐκ ἔχεις ἄλλην τινὰ αἰτίαν τοῦ δύο γενέσθαι ἀλλ᾽ ἢ τὴν τῆς

δυάδος μετάσχεσιν) (101c2-5)

Ainda que todos os indiacutecios textuais sugiram que Platatildeo estaacute desenvolvendo uma

noccedilatildeo de αἰτία eacute realmente difiacutecil entender com precisatildeo o que exatamente significa

173

dizer que ldquoeacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ

πάντα τὰ καλὰ καλά)rdquo (100d7-8) Agrave luz da lsquohipoacutetese das Formasrsquo que o contexto sugere

que se considere o que Platatildeo procura dizer com isto eacute que existe uma uacutenica Forma ndash o

belo em si ndash que eacute causarazatildeoresponsaacutevel (αἰτία) por fazer com que tudo que eacute belo

seja belo por causa da sua participaccedilatildeo na beleza Mas ainda assim natildeo fica claro que

tipo de αἰτία eacute esta e nem como ela seraacute uacuteltil para provar a imortalidade da alma Natildeo haacute

nenhuma indicaccedilatildeo de como entidades metafiacutesicas atuam no mecanismo de causaccedilatildeo

que Platatildeo por alguma razatildeo natildeo explicita

Neste contexto se Forma eacute uma αἰτία ndash e tudo indica que ela eacute ndash isto significa

apenas que as coisas satildeo e se tornam o que elas satildeo atraveacutes da participaccedilatildeo nas Formas

(100b-e 101c) Assim na ausecircncia de informaccedilatildeo suficiente sobre o mecanismo de

causaccedilatildeo apresentado por Platatildeo parece prudente consentir que o filoacutesofo estaacute

trabalhando com o sentido primaacuterio de αἰτία neste contexto que eacute a ideia de

lsquoresponsabilidadersquo ou lsquoacusaccedilatildeorsquo Gallop explica que aplicado a agentes humanos αἰτία

significa responsaacutevel ou culpado (cf 116c8) e o verbo cognato significa acusar

ou culpar Este conceito que estaacute enraizado na noccedilatildeo de responsabilidade humana (cf

98e2-99a4) eacute provavelmente a ideia baacutesica no contexto da primeira resposta ndash a mais

segura poreacutem ignorante132 Portanto quando dizemos que a lsquoFormarsquo eacute a αἰτία estamos

dizendo simplesmente que ela eacute lsquoresponsaacutevel por fazer com que algo seja ou se torne o

que ele eacute pela sua participaccedilatildeo ou comunhatildeo nela como na ideia de que as coisas belas

participam no belorsquo (μετέχει τοῦ καλοῦ) (100c5-6) Essa parece a opccedilatildeo mais razoaacutevel

na ausecircncia de explicaccedilotildees mais detalhadas que possam garantir uma noccedilatildeo de αἰτία

132 Gallop 2002 p169

174

ainda sem um compromisso metafiacutesico profundo Portanto a noccedilatildeo de lsquocausarsquo eacute

bastante limitada e chega ateacute a ser tautoloacutegica lsquoeacute por causa da beleza que todas as

coisas belas satildeo belasrsquo lsquotodas as coisas belas satildeo belas por causa da belezarsquo Certamente

por causa desse vaacutecuo de informaccedilotildees suficientes sobre a noccedilatildeo de lsquocausarsquo e seu

mecanismo de causaccedilatildeo eacute que Platatildeo sugere que essa resposta eacute a mais segura no

sentido de que jaacute aponta para lsquoFormasrsquo como causa rompendo completamente com a

ideia de causa dos filoacutesofos da natureza mas ainda assim eacute ignorante por natildeo ter

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente sendo assim vaga inconsistente e tautoloacutegica

Mas eacute importante lembrar que a maioria dos comentadores acredita que neste

contexto da lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo a noccedilatildeo de causa jaacute deve ser

interpretada agrave luz de uma teoria metafiacutesica completa das Formas sendo as Formas

objetos com existecircncia133 Hackfort em seu comentaacuterio canocircnico do Feacutedon sugere que

a noccedilatildeo de causa que Platatildeo apresenta neste contexto deve ser entendida agrave luz da

doutrina das Formas134

A nossa pesquisa confirma que agora lsquoFormasrsquo podem ser interpretadas como

lsquoFormasrsquo com base no contexto anterior (argumento das afinidades) e contexto imediato

(no proacuteximo passo Platatildeo estabelece uma terminologia padratildeo para lsquoFormasrsquo)

Portanto quando Soacutecrates pela primeira vez hipotetiza a existecircncia de coisas como

lsquobelo em si e por si bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo (100b5-7) ele

mesmo lembra que natildeo estaacute falando de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas daquilo natildeo

havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) No argumento das afinidades as lsquoFormasrsquo satildeo

133 Cf Vlastos 1969 p298

134 Hackfort 1998 p146

175

consistentemente caracterizadas como entidades metafiacutesicas Antes de avanccedilar com a

noccedilatildeo de causa vejamos novamente um breve apanhado de algumas passagens em que

as personagens tratam lsquoFormasrsquo como se jaacute fossem velhas conhecidas e as personagens

pressupotildee um saber a respeito delas como facilmente compreensiacutevel e sem necessidade

de uma fundamentaccedilatildeo detalhada135

bull Primeiro estaacutegio do diaacutelogo pela primeira vez Soacutecrates introduz coisas

como o justo em si no diaacutelogo ldquoafirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo (φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν) (65d4-5) Ainda

que seja a primeira vez que o filoacutesofo apresente esse tipo de coisa e sem

qualquer explicaccedilatildeo adicional Siacutemias parece conhecer bem essas coisas

ldquoPor Zeus claro que simrdquo Soacutecrates complementa ldquoestou falando de

todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila e todas as

demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacuterdquo (τῆς

οὐσίας ὅ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) (65d13-e1) Juntamente com isto haacute

duas questotildees fundamentais sobre essas coisas em si ldquoE alguma vez

vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo ldquoE vocecirc jaacute

alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por meio

do corpordquo(65d-e) Neste contexto as perguntas ainda natildeo estatildeo

comprometidas com uma teoria metafiacutesica A questatildeo levantada eacute

concernente agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento lsquoverrsquo eacute simplesmente uma

135 Schafer 2012 p152

176

referecircncia aos sentidos As coisas sobre as quais fala satildeo captadas pela

alma pura sem a mediaccedilatildeo corporal136

bull Argumento da reminiscecircncia a mesma questatildeo do tipo φαμέν τι εἶναι

volta a ser empregada em 74a9-13 Digamos como presumo que existe

um Igual (φαμέν πού τι εἶναι ἴσον) Soacutecrates se refere ao lsquoigual em si

mesmorsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) que passa a ser o exemplo principal no

argumento (74a 74c 74e) Siacutemias fala que eles natildeo cessam de falar de

coisas como ldquoo Belo o Bom e toda essecircncia dessa naturezardquo (καλόν τέ τι

καὶ ἀγαθὸν καὶ πᾶσα ἡ τοιαύτη οὐσία) (76d) Ao final do argumento

Siacutemias afirma que as duas coisas satildeo necessaacuterias as coisas das quais eles

falavam devem existir (ταῦτα ἔστιν) assim como tambeacutem as nossas

almas antes do nosso nascimento (καὶ τὴν ἡμετέραν ψυχὴν εἶναι καὶ πρὶν

γεγονέναι ἡμᾶς) (76e) Neste contexto jaacute haacute indiacutecios de que Platatildeo estaacute

utilizando uma teoria para apoiar o argumento da reminiscecircncia mas

ainda eacute difiacutecil entender com clareza a distinccedilatildeo entre igual em si e coisas

iguais entre aquilo que eacute nobre e as coisas vulgares e deficientes Eacute

possiacutevel reconhecer no maacuteximo um esboccedilo incipiente de uma teoria

segundo a qual haacute duas classes de coisas uma representada no diaacutelogo

pelo lsquoigual em sirsquo em contraste com a outra classe representa pelas

multiplicidade de lsquocoisas iguaisrsquo as quais satildeo vulgares e deficientes

quando comparadas com o lsquoigual em sirsquo

bull Argumento das afinidades o argumento inicia com um lembrete de

que vatildeo tratar daquela mesma essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) sobre a qual

136 Dancy 2007 p246

177

estavam discutindo antes Mas neste contexto pela primeira vez Platatildeo

apresenta uma consistente caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo O exemplo

primordial no argumento da reminiscecircncia ndash αὐτὸ τὸ ἴσον ndash volta a ser

mencionado ao lado de outros exemplos ldquoO igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em sirdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d) mas agora se sabe que essas coisas fazem

parte de uma classe de entidades especiais que Platatildeo caracteriza bem

neste argumento porque a prova da imortalidade da alma depende da

semelhanccedila e afinidade entre alma e lsquoFormasrsquo Eacute neste contexto em que

pela primeira vez no diaacutelogo as propriedades de trancendecircncia

invisibilidade imortalidade eternidade uniformidade imutabilidade e

outras propriedades das lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas com detalhes

inclusive num viacutevido contraste com as coisas que integram uma outra

classe de objetos as coisas sensiacuteveis

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento antes de apresentar a sua

hipoacutetese Soacutecrates lembra que vai falar de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas

daquilo natildeo havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) Entatildeo Soacutecrates

hipotetiza que ldquohaacute algo como belo em si e por si bom grande e todas as

demais coisas como essasrdquo (εἶναί τι καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν

καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7) O contexto anterior (argumento

das afinidades) e o contexto imediato (a introduccedilatildeo de uma terminologia

especializada para Formas) indicam que Platatildeo estaacute tratando de entidades

metafiacutesicas

178

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento o narrador Feacutedon fala que

os amigos de Soacutecrates concordaram com ele de que cada uma das

Formas existe (εἶναί τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b)

Apesar de jaacute termos suporte textual suficiente para entendermos que lsquoFormasrsquo

satildeo entidades metafiacutesicas Formas platocircnicas ainda estamos limitados pela texto que na

ausecircncia de detalhes nos convida a interpretar a noccedilatildeo de causa como sendo a mais

baacutesica possiacutevel ateacute que Platatildeo desenvolva uma noccedilatildeo mais sofisticada

Portanto no iniacutecio natildeo eacute plausiacutevel afirmar que uma ordem superior de realidade

literalmente causa um determinado evento Na ausecircncia de suporte textual e filosoacutefico o

sentido regular da palavra αἰτία ndash ser responsaacutevel ou culpado ndash deve ser preferido

Na proacutexima etapa teremos um contexto renovado sobretudo no que tange agraves Formas

um vocabulaacuterio especializado uma terminologia especiacutefica para Formas aparece pela

primeira vez e se firma no diaacutelogo Aleacutem disso uma explanaccedilatildeo sobre lsquoFormas em sirsquo e

lsquoFormas opostasrsquo traratildeo uma nova compreensatildeo da noccedilatildeo de causa no diaacutelogo

65 Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c

Ateacute agora eacute importante reconhecer que a primeira tentativa de contruir uma

noccedilatildeo de αἰτία aponta para a lsquoFormarsquo como sendo a αἰτία de cada coisa Imputa-se ao

lsquobelo em sirsquo a responsabilidade pelas coisas serem ou tornarem-se o que elas satildeo A

ideia ainda eacute limitada imprecisa e o proacuteprio Platatildeo faz questatildeo de mostrar isto no texto

chamando essa primeira tentativa de mais segura do que qualquer outra tentativa de

encontrar uma causa apresentada pelos filoacutesofos da natureza mas ainda assim

179

lsquoignorantersquo sem fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente Eacute necessaacuterio passar a uma nova

tentativa de construccedilatildeo da noccedilatildeo de causa a partir de 102a Este posterior

desenvolvimento seraacute fundamental para a compreensatildeo do argumento final em si que eacute

introduzido no dialogo apenas em 105c

O texto indica o momento de transiccedilatildeo da primeira para a segunda tentativa de

construir uma noccedilatildeo de causa A conversa inesperada entre Equeacutecrates e o narrador

Feacutedon indicam essa transiccedilatildeo em 102a-b

(i) Equeacutecrates elogia o filoacutesofo pelo brilhante raciociacutenio apresentado

(ii) O narrador Feacutedon ratifica que todos os presentes concordaram com a

exposiccedilatildeo e Equeacutecrates acrescenta que eles que natildeo estiveram laacute

tambeacutem concordaram

(iii) Equeacutecrates pede que o narrador revele o que aconteceu depois

(iv) Antes de revelar o que aconteceu depois o narrador Feacutedon salienta que a

discussatildeo seguinte (uacuteltimo argumento) soacute ocorreu depois que os amigos

concordaram que Formas existem e que por participar nelas as demais

coisas recebem o seu nome

O primeiro passo para o desenvolvimento desta seccedilatildeo eacute a reafirmaccedilatildeo da

hipoacutetese receacutem-apresentada mas agora com uma designaccedilatildeo especial para lsquoFormasrsquo

bull lsquoE foi acordado que cada uma das Formas existersquo (καὶ ὡμολογεῖτο εἶναί

τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b1) e que as demais coisas participando delas

180

(Formas) levam o seu nomersquo (καὶ τούτων τἆλλα μεταλαμβάνοντα αὐτῶν

τούτων τὴν ἐπωνυμίαν ἴσχειν (102b2-3)

Portanto a primeira coisa que Platatildeo procura estabelecer eacute que a hipoacutetese das

lsquoFormasrsquo lsquoFormasrsquo continua sendo essencial nesta nova etapa A lsquooutra respostarsquo que

seraacute apresentada tambeacutem depende dessa hipoacutetese essencial que se estabelece como

condiccedilatildeo sine qua non para a construccedilatildeo de uma noccedilatildeo de causa que sirva de base para

a prova final da imortalidade da alma em 105c-107b)

A outra observaccedilatildeo fundamental eacute que pela primeira vez no diaacutelogo Platatildeo

utiliza o termo εἶδος no diaacutelogo para designar aquilo que ele vinha chamando de lsquocoisa

em sirsquo lsquoessecircnciarsquo lsquoaquilo que eacute lsquoo belo em sirsquo Portanto as formulaccedilotildees natildeo

terminoloacutegicas satildeo utilizadas ateacute o contexto da lsquoresposta segura mas ignorantersquo e

somente a partir de 102b observamos a tentativa de fixaccedilatildeo da terminologia Platatildeo

finalmente utiliza um termo especiacutefico ndash εἶδος ndash para marcar a especificidade da

entidade que eacute a lsquocausarsquo das coisas Os termos εἶδος e ἰδέα satildeo os principais termos para

designar essas entidades neste contexto Em 102b-106d temos a sugestatildeo de que satildeo

termos intercambiaacuteveis Aleacutem deles a palavra μορφή tambeacutem aparece carregada do

mesmo significado numa passagem em que Platatildeo fala de τὸ εἶδος e μορφή (103e2-7)

O termo εἶδος jaacute havia aparecido antes no diaacutelogo mas em momento algum para

designar diretamente os elementos singulares da filosofia platocircnica ndash as Formas

inteligiacuteveis

181

bull lsquoa imagem do amadorsquo (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς) (72d9) nesta passagem o

termo possui a sua ideia baacutesica ndash o aspecto exterior a forma visiacutevel de

algo

bull lsquoexistem duas classes de seres a visiacutevel e a invisiacutevelrsquo (δύο εἴδη τῶν

ὄντων τὸ μὲν ὁρατόν τὸ δὲ ἀιδές) (79a6) o termo εἶδος eacute utilizado para

expressar a ideia de lsquoclassesrsquo ou lsquogecircnerosrsquo de existecircncia

bull lsquoa menos que a nossa alma existisse em algum lugar antes de assumir

essa forma humana (εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) vaacuterias vezes εἶδος eacute empregado para

expressar a ideia que fica estabelecida no argumento das reminiscecircncias

ndash a alma existe antes de passar a adquirir a lsquoformarsquo o lsquoaspectorsquo ou

mesmo a lsquoespeacuteciersquo humana (Cf76c 79b 87a 92b)

bull lsquoSiacutemias tem duacutevidas e tambeacutem receia que a alma seja algo mais divino e

mais belo do que o corpo e ainda assim pereccedila por ser um tipo de

harmoniarsquo (Σιμμίας ἀπιστεῖ τε καὶ φοβεῖται μὴ ἡ ψυχὴ ὅμως καὶ

θειότερον καὶ [91d] κάλλιον ὂν τοῦ σώματος προαπολλύηται ἐν

ἁρμονίας εἴδει οὖσα) (91c9-d1-2) Aqui εἶδος expressa mais uma vez a

ideia de um lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de existecircncia A alma poderia perecer pelo

seu gecircnero de existecircncia ser lsquoum tiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de harmonia

bull lsquoSe ele me mostrasse essas coisas eu estaria pronto a parar de buscar

qualquer outro tipo de causarsquo (καὶ εἴ μοι ταῦτα ἀποφαίνοι

παρεσκευάσμην ὡς οὐκέτι ποθεσόμενος αἰτίας ἄλλο εἶδος) (98a1-2)

Esta eacute uma referecircncia a Anaxaacutegoras segundo o qual o νοῦς seria o

responsaacutevel pela ordenaccedilatildeo e causa de todas as coisas (νοῦς ἐστιν ὁ

182

διακοσμῶν τε καὶ πάντων αἴτιος) (Cf 97c1-2) O termo εἶδος expressa

meramente um lsquotiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de causa Se Anaxaacutegoras pudesse

demonstrar a αἰτία de todas as coisas Soacutecrates dispensaria a busca por

outro lsquotiporsquo de causa Mas o filoacutesofo se desponta com Anaxaacutegoras e

pouco depois utiliza o termo εἶδος com o mesmo sentido para falar de um

lsquooutro tipo de causarsquo aquele que Soacutecrates encontra por si mesmo

Soacutecrates entatildeo passa a demonstrar o lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de causa (τῆς

αἰτίας τὸ εἶδος) que descobriu a partir de proacutepria investigaccedilatildeo

investigaccedilatildeo (100b4-6) lsquoesse outro tipo de causarsquo tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de algo como lsquoo Belo em sirsquo lsquoo Bom em sirsquo

Portanto a partir de 102b temos pela primeira vez no diaacutelogo os termos εἶδος e

ἰδέα (utilizados intercambiavelmente) para falar de entidades inteligiacuteveis que satildeo

responsaacuteveis por fazer com que as coisas sejam ou se tornem o que elas A partir de

agora os termos εἶδος e ἰδέα satildeo empregados consistentemente como terminologia

especializada para Formas Vejamos uma tabela com as ocorrecircncias de termos para

Formas neste contexto e depois uma breve apreciaccedilatildeo considerando o contexto de cada

passagem

102b1 τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν

102d6 αὐτὸ τὸ μέγεθος

183

103e3 αὐτὸ τὸ εἶδος

103e5 τὴν ἐκείνου μορφὴν

104d9-10 ἐκείνῃ τῇ μορφῇ

104b9 ἐκείνην τὴν ἰδέαν

104c7 τὰ εἴδη τὰ ἐναντία

104d2 τὴν αὑτοῦ ἰδέαν

104d6 ἡ τῶν τριῶν ἰδέα

104d9 ἡ ἐναντία ἰδέα

104e1 ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα

105d13

τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν

106d6 τὸ τῆς ζωῆς εἶδος

184

Vejamos de forma bastante resumida cada exemplo em seu contexto antes de

passarmos agrave anaacutelise desta seccedilatildeo

bull 102b1 esta primeira ocorrecircncia de εἶδος revela o termo aplicado

diretamente a entidades que possuem existecircncia (cada εἶδος existe) e

Platatildeo procura mostrar a relaccedilatildeo entre εἶδος e as coisas a participaccedilatildeo

das coisas em um εἶδος eacute a causa delas possuiacuterem as suas qualidades e

assim puderem ser chamadas pelo seu nome apropriado

bull 103e2-5 Platatildeo explica a relaccedilatildeo entre a entidade inteligiacutevel e as coisas

A Forma em si (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de levar o seu nome para sempre

(εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον) Mas existe tambeacutem outra coisa que natildeo eacute uma

lsquoForma em sirsquo (αὐτὸ τὸ εἶδος) mas tem o privileacutegio de levar um nome

porque possui sempre aquela μορφή (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί) O

contexto sugere que αὐτὸ τὸ εἶδος e μορφή se referem a Formas Esse

jogo entre palavras de mesmo domiacutenio semacircntico eacute repetido novamente

em 104d9-10 mas com ἰδέα e μορφή

bull 104b9-c1 Platatildeo introduz o termo ἰδέα para designar lsquoFormarsquo as coisas

que carregam consigo uma ἰδέα oposta tambeacutem natildeo toleram a ἰδέα

oposta rival Em 104c7 ele desenvolve a explicaccedilatildeo dizendo que natildeo satildeo

apenas τὰ εἴδη τὰ ἐναντία (as Formas opostas) que natildeo toleram a

aproximaccedilatildeo do oposto rival mas os objetos particulares que participam

numa Forma oposta

bull 104d1-3 Quando uma lsquoForma em sirsquo ocupa algo ela lhe impotildee a proacutepria

Forma dela (τὴν αὑτοῦ ἰδέαν αὐτὸ) e uma Forma oposta Em 104d9-10

185

Soacutecrates salienta que a respeito desse tipo de coisa (as coisas ocupadas

por lsquoFormas em sirsquo) a Forma oposta (ἡ ἐναντία ἰδέα) jamais viraacute sobre

aquela Forma rival (ἐκείνῃ τῇ μορφῇ) que estaacute nela Aqui temos ἰδέα e

μορφή como termos intercambiaacuteveis

bull 104d6 A etapa seguinte providencia um exemplo numeacuterico que figura

como chave hermenecircutica para a compreensatildeo da passagem Pela

primeira vez se apresenta de maneira especiacutefica a Forma de algo a

Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) Acompanhando a ideia anterior

quando Forma do trecircs ocupa algo ela faz com que ele seja

necessariamente trecircs e iacutempar A Forma do trecircs traz para a coisa que

ocupa (i) a proacutepria Forma ndash razatildeo pela qual ela eacute necessaacuteriamente trecircs

(ii) a Forma oposta correspondente ndash a Forma Iacutempar A Forma rival do

par natildeo poderaacute vir sobre a Forma oposta que nela estaacute Formas opostas

natildeo podem coexistir naquilo que eacute ocupado pela Forma em si e pela

Forma oposta que a Forma em si traz Temos um exemplo claro em

104e1 lsquoassim a Forma do par jamais sobreviraacute ao trecircsrsquo (ἐπὶ τὰ τρία ἄρα

ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει)

bull 105d13-14 o mesmo exemplo ndash a Forma do par ndash eacute relembrado no

argumento final lsquoO que haacute pouco concordaacutevamos que natildeo admite a

Forma do parrsquo (τὸ μὴ δεχόμενον τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν τί νυνδὴ

ὠνομάζομεν) Cebes responde o iacutempar (105d13-14) Este exemplo daacute

iniacutecio a uma lista que finda com a conclusatildeo de que a alma eacute imortal o

justo natildeo admite a injusticcedila a cultura natildeo admite o inculto o imortal natildeo

186

admite a morte a alma natildeo admite a morte Jaacute que a alma natildeo admite a

morte ela eacute imortal (105d16-e7)

bull 106d5-7 ao final Soacutecrates relaciona a alma com trecircs coisas que satildeo

imortais e nunca perecem o deus (ὁ θεὸς) a proacutepria Forma de vida (αὐτὸ

τὸ τῆς ζωῆς εἶδος) e tudo mais que seja imortal (τι ἄλλο ἀθάνατόν ἐστιν)

(106d5-7) Esse tipo de contruccedilatildeo lsquoa Forma de Xrsquo aparece apenas trecircs

vezes (i) a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) (104d6) A Forma do par (ἡ

τοῦ ἀρτίου ἰδέα) (104e1 105d13-14) A Forma da vida (τὸ τῆς ζωῆς

εἶδος) (106d5-6)

651 A grandeza casual (102b-d)

A questatildeo inicial nesta etapa eacute lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor

do que Feacutedonrsquo (102b) Antes de prosseguir na anaacutelise conveacutem observar que ela nos

remete ao contexto anterior e sugere a evoluccedilatildeo filosoacutefica da argumentaccedilatildeo quando

Soacutecrates buscava as causas das coisas sob a influecircncia dos filoacutesofos da natureza

acreditava que estava correto quando pensava que ao colocar um homem alto ao lado de

um homem baixo aquele se apresentava maior do que o menor pela altura da cabeccedila

(96e) Mas quando descobre seu proacuteprio modo de filosofar e descobre a verdadeira

causa das coisas ele sugere que natildeo se deve admitir que algueacutem eacute maior do que outro

pela cabeccedila mas lsquoeacute por causa da grandeza que as coisas grandes satildeo grandesrsquo (μεγέθει

ἄρα τὰ μεγάλα μεγάλα) (100e-101a) Essa questatildeo eacute retomada no uacuteltimo argumento Eis

os trecircs estaacutegios da discussatildeo

187

(i) X eacute maior do que Y pela cabeccedila (resposta completamente sem sentido)

(96d-e 101a)

(ii) X eacute maior do que Y pela grandeza (lsquoresposta mais segura poreacutem

ignorantersquo) (100e-101a)

(iii) X eacute maior do que Y pela grandeza acidental (102c-d)

(iv) lsquoA Grandeza essencialrsquo (resposta segura e inteligente) (102d-e)

O problema que se coloca agora eacute que Siacutemias eacute ao mesmo tempo maior do que

Soacutecrates e menor do que Feacutedon Platatildeo procura explicar em termos da relaccedilatildeo entre as

coisas como no caso em que X (Siacutemias) eacute maior do que Y (Soacutecrates) e Y (Soacutecrates) eacute

menor do que X (Siacutemias) O primeiro ponto eacute reafirmar a rejeiccedilatildeo do tipo de lsquocausarsquo

apresentado pelos filoacutesofos da natureza Natildeo eacute pela cabeccedila que algueacutem eacute maior do que

outro Esta rejeiccedilatildeo eacute expressa nos termos

bull Natildeo eacute pela natureza de Siacutemias natildeo eacute por Siacutemias ser Siacutemias (ou nos

termos dos filoacutesofos da natureza natildeo eacute simplesmente pela cabeccedila de

Siacutemias) que ele eacute maior

bull Natildeo eacute por Feacutedon ser Feacutedon (natildeo eacute por Feacutedon ser maior natildeo eacute pela

cabeccedila de Feacutedon) que Siacutemias eacute menor do que ele

Existe outro erro que Platatildeo nos previne de cometer achar que ao dizer

lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor do que Feacutedonrsquo isto corresponde

188

literalmente agrave verdade (102b9-c1) Neste ponto Platatildeo introduz uma ideia de lsquograndeza

casualrsquo que natildeo pode ser tomada como a verdade final

bull Siacutemias eacute maior do que Soacutecrates mas lsquopela grandeza que ele casualmente

temrsquo (ἀλλὰ τῷ μεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων) (102c1-3)

Essa grandeza casual se mostra apenas nas relaccedilotildees a grandeza em Siacutemias

excede a pequenez em Soacutecrates enquanto a pequeneza em Siacutemias eacute excedida pela

grandeza em Feacutedon A grandeza ou pequenez em Siacutemias eacute o produto do nosso ato de

comparaacute-lo com outro Soacutecrates entatildeo escolhe um exemplo em que Siacutemias natildeo eacute nada

aleacutem do centro ldquoacidentalrdquo de duas relaccedilotildees opostas grandeza e pequenez137

Esse tipo de lsquoqualidade acidentalrsquo que certos elementos possuem nas relaccedilotildees

com outros jaacute foi sugerido no argumento das reminiscecircncias pedras e gravetos agraves vezes

parecem iguais para uns e desiguais para outros Nesta ocasiatildeo Platatildeo dirige a atenccedilatildeo

para lsquoo Igual em sirsquo salientando que existe uma diferenccedila entre o Igual em si e as coisas

iguais (74b-c) Na passagem que agora analisamos Platatildeo inicia com Siacutemias e suas

qualidades casuais e faz um desvio para o elemento que realmente importa nesta seccedilatildeo

lsquoa grandeza em sirsquo Como no argumento das reminiscecircncias Platatildeo poderia muito bem

dizer lsquoa grandez em sirsquo eacute diferente de dizer que algo eacute grande em relaccedilatildeo a alguma

outra coisa Agora estamos tratando de uma entidade especiacutefica e responsaacutevel por outro

tipo de qualidade

137 Cf Burger 1984 p 162

189

OrsquoBrien jaacute havia sugerido Platatildeo comeccedila com uma vaga distinccedilatildeo entre uma

grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) que ele entende como um tipo de lsquograndeza

essencialrsquo e uma grandeza que Siacutemias casualmente possui (ὃ τυγχάνει ἔχων) para

introduzir uma distinccedilatildeo entre lsquoqualidades acidentaisrsquo e lsquoqualidades essenciaisrsquo que se

estabeleceraacute como elemento crucial na prova de Platatildeo (102c) 138 Esta explanaccedilatildeo

continua bastante uacutetil com a uacutenica ressalva de que natildeo vemos indiacutecio suficiente de que

ao falar de grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) Platatildeo jaacute esteja introduzindo a ideia de

lsquograndeza essencialrsquo Platatildeo trata dessa lsquograndeza essencialrsquo em contraste com a

lsquograndeza acidentalrsquo apenas com a introduccedilatildeo da lsquograndeza em sirsquo pouco depois (102d)

A expressatildeo lsquopor naturezarsquo eacute completamente trivial remete ao aspecto fiacutesico (a cabeccedila

como diriam os filoacutesofos da natureza)139

OrsquoBrien tambeacutem afirma que Platatildeo natildeo tem vocabulaacuterio teacutecnico para lsquoacidentalrsquo

e lsquoessencialrsquo e a maneira como Platatildeo expressa a presenccedila dessa qualidade essencial eacute o

uso de lsquosemprersquo e lsquonuncarsquo Alguns elementos carregam qualidades essenciais

perpetuamente

138 OrsquoBrien 1967 p199-200

139 Hackfort (1998 p154) rejeita a tese de OrsquoBrien segundo ele natildeo haacute qualquer indicaccedilatildeo de

que Platatildeo esteja fazendo uma distinccedilatildeo entre predicados essenciais e acidentais Segundo ele o

texto sugere que Siacutemias seria um depoacutesito de Formas Siacutemias eacute concebido como natildeo mais do

que um conteiner de formas um conteiner que sempre permanece o que eacute mas no qual residem

vaacuterias formas entre as quais dois opostos ndash grandeza e pequenez Essa tese de que Siacutemias eacute um

conteiner de Formas enfrenta pelo menos dois problemas baacutesicos mas estaacute claro no texto que a

Forma soacute aparece em 102d (a grandeza em si) e que essa ideia de um depoacutesito de Formas que

admite e acolhe em si Formas opostas (grandeza e pequenez) parece contrariar aquilo que seraacute

dito posteriormente opostos deixam o posto ou perecem na chegada do seu respectivo oposto

190

(i) O fogo eacute sempre quente e nunca frio

(ii) A neve eacute sempre fria e nunca quente

(iii) Trecircs eacute sempre iacutempar e nunca par

(iv) Dois eacute sempre par e nunca iacutempar

(v) E afinal Soacutecrates afirma que a alma estaacute sempre viva e nunca morta 140

Esta qualidade essencial perpeacutetua depende das Formas No argumento das

afinidades Platatildeo jaacute enfatiza que as lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado enquanto objetos particupares estatildeo sempre mudando (78c-e) Agora Platatildeo

mostraraacute que as Formas satildeo as responsaacuteveis pela qualidade essencial (algo que sempre

um item carrega consigo) de certos itens com os quais ela se relaciona Toda a discussatildeo

eacute conduzida para o sujeito principal deste contexto a grandeza em si

652 A Grandeza em si

Siacutemias eacute apenas lsquoacidentalmentersquo maior do que Soacutecrates Por outro lado existem

elementos que apresentam qualidades essenciais como diraacute Soacutecrates depois trecircs eacute

essencialmente iacutempar O ponto central nesta etapa eacute que os objetos particulares satildeo

constituiacutedos de qualidades que eles casualmente adquirem e perdem de acordo com as

suas relaccedilotildees ao longo do tempo qualidades que chamariacuteamos de acidentais Pode ser

que em algum periacuteodo do tempo Siacutemias fosse menor do que Soacutecrates e maior do que

140 OrsquoBrien 1967 p199-200

191

Feacutedon e em outro periacuteodo maior do que Soacutecrates e menor do que Feacutedon Em um dado

momento Siacutemias ocorre de ter uma qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e

Soacutecrates e em outro dado momento essa qualidade acidental eacute perdida para dar lugar a

outra qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e Soacutecrates Mas a qualidade essencial

eacute aquilo que um objeto particular possui atraveacutes da sua relaccedilatildeo com a Forma cujo

caraacuteter eacute singular e se mostra a mesma em todo tempo e em todas as relaccedilotildees Esta

discussatildeo inicial nos leva diretamente para a Forma ndash a lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ

μέγεθος) (102d6-8)

653 A Grandeza em si e a grandeza em noacutes

Possuidor de qualidades acidentais Siacutemias pode ser ao mesmo tempo μέγεθος

καὶ σμικρότητα (102c4-5) e possuir tanto o nome pequeno quanto o grande (102c11-

12) Mas o mesmo natildeo pode acontecer com lsquoa grandeza em sirsquo ou com lsquoa grandeza em

noacutesrsquo (102d)

bull A grandeza em si nunca admite ser ao mesmo tempo grande e pequena

bull A grandeza em noacutes jamais aceita o pequeno (oposto)

Eacute neste ponto que Platatildeo apresenta o princiacutepio da incompatibilidade de opostos

um oposto nunca seraacute seu oposto Existem coisas que jamais apresentam a

versatilidade de Siacutemias com suas qualidades acidentais ndash grandeza e pequenez ao

mesmo tempo ndash por causa da sua relaccedilatildeo com a lsquoForma em sirsquo e lsquoa Forma em noacutesrsquo

192

O termo αὐτὸ τὸ μέγεθος certamente eacute uma referecircncia a uma Forma mas natildeo

temos detalhes para saber se Platatildeo faz uma distinccedilatildeo no diaacutelogo entre Formas

transcendentes e Formas imanentes ao falar de lsquograndeza em sirsquo e lsquograndeza em noacutesrsquo

Mas essa distinccedilatildeo entre αὐτὸ τὸ μέγεθος e τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος estaacute longe de ser clara no

diaacutelogo natildeo fica claro se Platatildeo estaacute falando de uma Forma transcendente e de uma

Forma imanente e que o status ontoloacutegico da primeira diferente do da segunda como

Keyt defende inclusive afirmando que a Forma transcendente eacute por natureza

indestrutiacutevel enquanto a Forma imanente pode ser destruiacuteda141 Mas na verdade ateacute

agora nem mesmo sabemos ao certo se τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma referecircncia a Formas

imanentes142 Apenas no desenvolvimento da discussatildeo eacute que Platatildeo deixaraacute claro que

τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma Forma Apenas a partir de 104d eacute que temos a explicaccedilatildeo

completa existem Formas que ocupam um particular e que carregam consigo outra

Forma Mesmo nesse contexto seraacute difiacutecil entender a distinccedilatildeo no status ontoloacutegico das

duas Formas Mas Keyt estaacute parcialmente correto em ao observar que o contexto nos

levaraacute a pensar que a Forma na coisa (o que poderiacuteamos chamar de Forma imanente)

sofre uma experiecircncia negativa ndash destruiccedilatildeo ndash com a chegada da Forma oposta Mas eacute

bom lembrar que essa destruiccedilatildeo talvez natildeo seja literal porque a ideia estaacute vinculada e

se expressa por meio da metaacutefora militar Ainda assim em momento alguma o texto

sugere que a Forma que traz consigo a outra Forma pode sofrer destruiccedilatildeo a partir de

104d a metaacutefora militar perde a sua forccedila Em vez da ameaccedila de uma oposta rival que

pode destruir a Forma que ocupa um objeto temos uma Forma que natildeo admite em

141 Keyt 1963 p168

142 Cf Gallop 2002 p 195

193

qualquer hipoacutetese a ameaccedila de uma Forma oposta rival Mas ao final Platatildeo natildeo deixa

claro se temos aqui a claacutessica distinccedilatildeo entre Forma transcendente e imanente Agora

neste contexto inicial o que eacute essencial eacute observar que Platatildeo marca a distinccedilatildeo entre

duas coisas lsquoa Forma em sirsquo e lsquoalgo em noacutesrsquo E a repeticcedilatildeo desta distinccedilatildeo sugere que

ela tem importacircncia nesta etapa

bull a grandeza em noacutesrsquo (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος) (102d6-8)

bull o pequeno em noacutes (τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν) (102de5-6)

bull o oposto que estaacute em noacutes (τὸ ἐν ἡμῖν) (103b4-5)

Este algo lsquoem noacutesrsquo (ἐν ἡμῖν μέγεθος) nem sempre eacute intepretado como Forma

aleacutem de Formas imanentes pode tambeacutem ser interpretada como um tipo especial de

particular ou ainda como um elemento imanente que nem eacute uma Forma nem mesmo um

particular

bull OrsquoBrien entende que algo ἐν ἡμῖν natildeo eacute uma Forma mas um tipo

especial de particular que ele chama de lsquoparticularizaccedilatildeorsquo que como as

Formas natildeo podem admitir seus opostos Mas seu status ontoloacutegico se

manteacutem ndash eles satildeo particulares natildeo um terceiro tipo de entidade143

143 OrsquoBrien 1967 p201-202

194

Mas a nossa leitura baseada no contexto imediato tende a privilegiar a ideia de

que haacute dias Formas em jogo aqui ndash a Forma em si e a Forma em noacutes ndash ainda que Gallop

advirta que a terminologia apresentada por Platatildeo natildeo eacute suficiente para garantir uma

distinccedilatildeo consistente entre Formas lsquoimanentesrsquo e lsquotranscendentesrsquo (embora o contexto

tambeacutem natildeo negue essa ideia)144 Alguns comentadores tendem a enfatizar que Formas

no Feacutedon satildeo Formas imanentes

bull Hackfort entende que ateacute mesmo lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ μέγεθος)

(102d6-8) eacute uma referecircncia a uma Forma imanente porque Soacutecrates estaacute

aqui lidando com isto elementos que se aproximam e residem em

objetos fiacutesicos145

Mas sabemos que eacute possiacutevel que Platatildeo assuma que Formas possuem existecircncia

proacutepria peculiar e independente e ainda assim eacute possiacutevel que elas estejam presentes nas

coisas O inteacuterprete do Feacutedon precisa lidar constantemente com as lacunas deixadas por

Platatildeo num diaacutelogo cujo objetivo natildeo eacute apresentar uma teoria das Formas mas provar a

imortalidade da alma

Mas o ponto essencial eacute que duas Formas estatildeo em jogo aqui lsquoa gradeza em sirsquo

e lsquoa grandeza em noacutesrsquo satildeo Formas O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao

ontoloacutegica entre a lsquoForma em sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica

144 Gallop 2002 p195

145 Hackfort 1998 p150

195

entre elas ndash uma Forma suprema e uma Forma subordinante Essa passagem introduz

um princiacutepio que seraacute desenvolvido apenas em 104d

654 Incompatibilidade de opostos

O princiacutepio que agora Platatildeo se esforccedila para apresentar eacute o da incompatibilidade

dos opostos enquanto Siacutemias pode participar na grandeza e pequenez ao mesmo tempo

nem a lsquograndeza em sirsquo nem lsquoa grandeza em noacutesrsquo aceitaraacute em condiccedilatildeo o seu oposto

Platatildeo expotildee a noccedilatildeo de incompatibilidade de opostos apresentando uma seacuterie de

exemplos ao longo da lsquoresposta segura e inteligente (102d-e)

bull A grandeza em si jamais quer ser grande e pequena ao mesmo tempo

(αὐτὸ τὸ μέγεθος οὐδέποτ᾽ ἐθέλειν ἅμα μέγα καὶ σμικρὸν εἶναι) (102d5-

7)

bull A grandeza em noacutes jamais admite o pequeno e nem quer ser excedida (τὸ

ἐν ἡμῖν μέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σμικρὸν οὐδ᾽ ἐθέλειν

ὑπερέχεσθαι) (102d7-9)

bull Aquilo que eacute grande natildeo ousa ser pequeno (ἐκεῖνο δὲ οὐ τετόλμηκεν

μέγα ὂν σμικρὸν εἶναι) (102e5-6)

bull Por semelhante modo o pequeno em noacutes natildeo quer de modo algum ser ou

tornar-se grande (ὡς δ᾽ αὕτως καὶ τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν οὐκ ἐθέλει ποτὲ

μέγα γίγνεσθαι οὐδὲ εἶναι) (102e5-6)

bull Nem qualquer dos opostos pode ao mesmo tempo permanecer o que era

e ser ou se tornar o seu oposto mas parte em retirada ou perece ao sofrer

196

esse golpe (οὐδ᾽ ἄλλο οὐδὲν τῶν ἐναντίων ἔτι ὂν ὅπερ ἦν ἅμα

τοὐναντίον γίγνεσθαί τε καὶ εἶναι ἀλλ᾽ ἤτοι ἀπέρχεται ἢ ἀπόλλυται ἐν

τούτῳ τῷ παθήματι) (102e8-103a2)

bull O oposto em si de modo algum viria a ser oposto de si mesmo nem o

oposto em noacutes nem o oposto na natureza (αὐτὸ τὸ ἐναντίον ἑαυτῷ

ἐναντίον οὐκ ἄν ποτε γένοιτο οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

(103b4-5)

bull () O oposto jamais seraacute oposto de si mesmo (μηδέποτε ἐναντίον ἑαυτῷ

τὸ ἐναντίον ἔσεσθαι) (103c7-8)

Platatildeo cuidadosamente utiliza uma metaacutefora militar como observa Burnet para

ilustrar essa incompatibilidade146 A lsquoForma em noacutesrsquo e a lsquoForma oposta rivalrsquo satildeo

caracterizados como se fossem inimigos em confronto num campo de batalha quando

um combatente avanccedila o outro eacute obrigado a partir em retirada ou acaba perecendo na

chegada do inimigo Esta viacutevida metaacutefora eacute aplicada incialmente para os opostos

grandeza e a pequenez Quando a pequenez ndash o oposto (τὸ ἐναντίον) da grandeza ndash

avanccedila sobre ela a grandeza possui apenas duas opccedilotildees (102d9-102e2)

(i) Fugir e partir em retirada (ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν)

(ii) Ou sobrevindo a pequenez ser eliminada (ἢ προσελθόντος ἐκείνου

ἀπολωλέναι)

146 Cf Burnet p 102

197

Sendo assim se alguma Forma estaacute em uma determinada coisa essa coisa natildeo

admitiraacute qualquer Forma oposta ela bateraacute em retirada ou pereceraacute

655 Objeccedilatildeo de um anocircnimo (103a-103c)

Depois de apresentar o princiacutepio da incompatibilidade de opostos um

interlocutor anocircnimo tenta relacionar o argumento presente com o primeiro argumento

apresentado ndash argumento ciacuteclico ndash e Soacutecrates aproveita para apresentar as distinccedilotildees

baacutesicas sobretudo explicando que a noccedilatildeo de opostos agora eacute completamente nova

antes se falava de coisas grandes mas agora da grandeza em si A distinccedilatildeo eacute

apresentada em 103b

(i) Primeiro argumento a coisa oposta proveacutem de seu oposto (ἐκ τοῦ

ἐναντίου πράγματος τὸ ἐναντίον πρᾶγμα γίγνεσθαι)

(ii) Uacuteltimo argumento o oposto em si (αὐτὸ τὸ ἐναντίον) jamais pode ser

oposto de si mesmo nem o que estaacute em noacutes (οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν) nem o que

estaacute na natureza (οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

656 Fogo calor neve e frio (103c-d)

Na continuaccedilatildeo Platatildeo enfatiza o papel do portador de opostos O princiacutepio

tambeacutem seraacute aplicado a ele Haacute principalmente trecircs elementos em cena nesta etapa

bull Forma oposta

198

bull Portador da Forma oposta

bull Forma oposta rival

Sabemos que nem a Forma em si nem a Forma oposta podem admitir a Forma

oposta rival Sabemos o que acontece a metafoacutera militar continua operando neste

contexto Mas agora Platatildeo chama atenccedilatildeo para a reaccedilatildeo do portador do oposto quando

a Forma oposta se aproxima o portador do oposto (que natildeo eacute uma Forma) e a Forma

que ele carrega consigo teratildeo de partir em retirada ou perecer Isto ficaraacute claro em 104b

mesmo a coisa que natildeo eacute um oposto mas carrega consigo um oposto natildeo admite a

Forma oposta rival O nuacutemero trecircs (natildeo eacute uma Forma) natildeo admite a Forma oposta rival

ndash par ndash porque carrega consigo a Forma iacutempar Neste caso a metafoacutera militar permanece

viva Seria razoaacutevel pensar num combatente que natildeo possui um inimigo especiacutefico mas

por forccedila de alianccedila estaacute junto ao aliado num campo de batalha e o inimigo do seu

aliado passa a ser o seu inimigo ao se aproximar tambeacutem teraacute de bater em retirada ou

perecer

Platatildeo apresenta uma seacuterie de exemplos nesta seccedilatildeo De iniacutecio temos uma lista

de quatro elementos distintos fogo calor neve e frio Agora fogo e neve satildeo portadores

de opostos e na relaccedilatildeo com as Formas opostas que carregam tambeacutem natildeo admitiratildeo o

oposto rival Os primeiros exemplos satildeo os seguintes em 103c-d

(i) A neve o frio o oposto do frio ndash o calor a neve eacute diferente do frio que

carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do frio ndash o calor ndash a neve

199

se retira ou eacute destruiacuteda Portanto a neve natildeo admite o oposto do frio que

carrega consigo ndash o calor

(ii) O fogo o calor o oposto do calor ndash o frio o fogo eacute diferente do calor

que carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do calor ndash o frio ndash ou

se retira ou eacute destruiacutedo Nesta etapa existe um reforccedilo aleacutem de recusar o

oposto do calor que carrega consigo o fogo jamais permaneceraacute o

mesmo quando se aproxima a frieza ndash jamais seraacute fogo e frio ao mesmo

tempo A ideia lembra a que aparece em 103a nenhum oposto enquanto

permanece o mesmo pode ser ou tornar-se no seu oposto Agora o

princiacutepio tambeacutem se aplica agravequilo que carrega consigo um oposto

Os comentadores debatem se fogo e neve satildeo Formas ou natildeo neste contexto

especialmente se forem considerados no mesmo niacutevel que o exemplo numeacuterico lsquotrecircsrsquo

que seraacute apresentado no proacuteximo passo no diaacutelogo

(i) Vlastos entende que tudo eacute referecircncia a Formas nesta passagem fogo

neve quente frio147

(ii) Hackfort afirma que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo lsquoformas imanentesrsquo que podem

residir em objetos concretos sendo necessaacuterio usar a letra minuacutescula

inicial para distingui-la da Forma transcendente Mas sugere Hackfort

147 Vlastos 1969 p318

200

sugere que Platatildeo provavelmente teria achado complicado especificar

neste ponto o que ele tinha em mente 148

(iii) OrsquoBrien sugere que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo devem ser entendidos como

particularizaccedilotildees da Forma mas pouco depois admite que a verdade eacute

que na presente passagem natildeo podemos dizer se lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo uma

lsquoformarsquo ou uma lsquoparticularizaccedilatildeo da formarsquo149

(iv) Burnet salienta que natildeo foi sugerido em momento algum que o fogo e a

neve satildeo Formas e parece improvaacutevel que sejam assim considerados

Por outro lado trecircs que para o propoacutesito do presente argumento estaacute no

niacutevel do fogo e da neve eacute reconhecido como Forma Burnet entatildeo

ressalta que eacute essa incerteza que cria todas as dificuldades da presente

passagem150

Apesar da incerteza que a falta de detalhes do texto traz tomaremos a posiccedilatildeo de

que nesses exemplos em 105b-c natildeo temos Forma como a a Forma do fogo por

exemplo A nossa conclusatildeo decorre da seguinte observaccedilatildeo no Feacutedon haacute Formas que

trazem Formas opostas para aquilo que ocupam (104d) mas nunca Formas que

participam em Formas e este seria o caso se admitiacutessemos a Forma do fogo segundo

esses exemplos Esta passagem eacute de fundamental importacircncia porque introduz o caso da

alma e o argumento final propriamente dito e seraacute retomado adiante

148 Hackfort 1998 149-150

149 OrsquoBrien 1967 p202 203

150 Burnet 1911 p104

201

O que importa por enquanto eacute observar que Platatildeo apresenta trecircs elementos neste

cenaacuterio um portador de um oposto o oposto portado e o oposto rival O portador

(fogoneve) natildeo eacute uma Forma mas portador da Forma oposta (calorfrio)

Fogo ndash portador (natildeo eacute Forma)

Calor ndash Forma oposta carregada pelo Fogo

Frio ndash Forma oposta rival

657 Os exemplos numeacutericos (103e-104c)

A introduccedilatildeo de exemplos numeacutericos traz um desenvolvimento filosoacutefico

consideraacutevel neste contexto Aqui temos uma passagem de exemplos de coisas fiacutesicas

(fogo neve) para um exemplo numeacuterico que nem sempre eacute bem aceito pelos

comentadores Mas Gallop lembra que a transiccedilatildeo decorrer da aproximaccedilatildeo entre alma e

nuacutemero Natildeo se pode perder de vista que Platatildeo estaacute preparando o terreno para

apresentar a sua uacuteltima prova da imortalidade da alma e exemplos numeacutericos servem

para ligar e ateacute mesmo esconder a seacuteria lacuna entre a alma e as coisas fiacutesicas com as

quais ela foi ateacute agora comparada No uacuteltimo argumento a alma seraacute pensada como

transmissora de vida aos corpos que ocupa assim como o fogo e a neve transmitem

calor e frio sendo essa analogia enfraquecida pelo fato de que a alma ao contraacuterio do

fogo e da neve natildeo eacute observaacutevel (79b7-15) Portanto a transiccedilatildeo para a alma eacute

202

facilitada pelo exemplo de trecircs uma vez que nuacutemeros assim como a alma natildeo satildeo

sensiacuteveis observaacuteveis em si mesmos151

Desde o iniacutecio Formas satildeo protagonistas na discussatildeo

bull A proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute apresentada como um tipo de

dignataacuteria a quem pertence originalmente o direito de portar seu nome

para sempre

bull Natildeo somente a proacutepria Forma (μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de ter o

mesmo nome para sempre mas tambeacutem certas coisas que natildeo satildeo

Formas mas que tem sempre a sua Forma (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν

ἀεί) (103e2-5)

bull As coisas que possuem uma Forma e manteacutem um viacutenculo essencial com

ela sem que jamais dela se separe satildeo as coisas que tambeacutem possuem o

direito de portar seu nome para sempre (104a)

Portanto a proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute um tipo de dignataacuteria a quem

pertence originalmente o direito de portar seu nome para sempre Parece que Platatildeo

utiliza a imagem de membros de famiacutelias de alto prestiacutegio suas dignidades possuem o

direito de portar os tiacutetulos de nobreza da famiacutelia perpetuamente Formas satildeo aquelas que

possuem naturalmente esse privileacutegio Mas assim como em famiacutelias da nobreza tiacutetulos

de honra podem ser concedidos agravequeles que se agregam agrave famiacutelia por exemplo pelo

viacutenculo de casamento Essa metaacutefora sutilmente elaborada eacute o que daacute sustentaccedilatildeo a essa

passagem assim como a metaacutefora militar sustenta a ideia da incompatibilidade dos

151 Gallop 2002 p200

203

opostos Os opostos natildeo podem coexistir mas a Forma e aquilo que a possui estatildeo em

alianccedila perpeacutetua Vejamos os exemplos (104-c)

bull O nuacutemero trecircs possui um viacutenculo essencial com o iacutempar (Forma) ele

deve ser sempre designado com o seu nome (trecircs) mas tambeacutem com o

nome iacutempar (o nome da Forma que carrega consigo) O trecircs eacute sempre

iacutempar porque possui a Forma do iacutempar o que lhe agracia com o direito

de ldquonobrezardquo de ter o tiacutetulo para sempre

bull O mesmo se aplica ao nuacutemero cinco e ao demais nuacutemeros iacutempares eles

natildeo satildeo o iacutempar (τὸ περιττὸν a Forma) mas lsquocada um deles eacute sempre

iacutemparrsquo (ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός) (tem o direito de serem

perpetuamente chamados de iacutempares pelo viacutenculo inalienaacutevel com a

Forma)

bull O mesmo se aplica ao dois ao quatro e a todos os nuacutemeros pares eles

natildeo satildeo o par (τὸ ἄρτιον) mas lsquocada um deles eacute sempre parrsquo (ἕκαστος

αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί)

Em todos esses exemplos numeacutericos temos a relaccedilatildeo essencial entre um portador

que natildeo eacute uma Forma mas que possui um viacutenculo perpeacutetuo com uma Forma o que lhe

daacute o direito de ser chamado para sempre de certo nome Mas no primeiro exemplo

Platatildeo sugere que esse portador possui uma relaccedilatildeo com outra Forma a qual tambeacutem

lhe garante seu proacuteprio nome o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome (trecircs) Se o trecircs deve ser sempre designado com nome iacutempar por causa do seu

204

viacutenculo com o iacutempar (a Forma) o texto fortemente sugere que o trecircs eacute chamado de trecircs

por causa da sua relaccedilatildeo essencial com outra Forma Mas isto natildeo fica claro agora e

posteriormente teremos mais indiacutecios que apoiam esta tese que talvez seja essencial para

a compreensatildeo da uacuteltima prova da imortalidade da alma no Feacutedon

658 Coisas que natildeo admitem opostos (104b-c)

Neste proacuteximo passo temos algumas das passagens mais disputadas no Feacutedon

Primeiro Platatildeo busca esclarecer que natildeo eacute apenas o oposto que natildeo admite o oposto

rival mas tambeacutem o portador deste oposto A mesma ideia da incompatibilidade de

opostos toma lugar no diaacutelogo mas a ecircnfase recai sobre o portador dos opostos

ldquoNatildeo satildeo apenas aqueles opostos dos quais falamos (opostos muacutetuos)

que natildeo se admitem entre si mas tambeacutem as coisas que natildeo apresentam

respectivos opostos mas possuem um oposto (Forma) natildeo admitem

aquela Forma oposta ao oposto que estaacute neles (ἐκείνην τὴν ἰδέαν ἣ ἂν τῇ

ἐν αὐτοῖς οὔσῃ ἐναντία ᾖ) Se ocorresse de ela se aproximar essas coisas

que possuem opostos bateriam em retirada ou pereceriamrdquo (104b6-c3)

O exemplo do nuacutemero trecircs revela claramente o tipo de coisa em questatildeo o

nuacutemero trecircs natildeo eacute uma Forma mas eacute portador de uma Forma oposta ndash a Forma iacutempar

205

estaacute no trecircs Sendo assim o proacuteprio trecircs jamais acomodaraacute consigo a Forma oposta rival

(o par) (104c1-3)

Eacute importante notar que a metaacutefora militar continua em cena neste contexto da

lsquoresposta segura e inteligentersquo principalmente em 102d-104c A aproximaccedilatildeo da Forma

oposta pode trazer destruiccedilatildeo agraves coisas que possuem um Forma oposta Eacute interessante

observar que o mesmo verbo lsquoperecerrsquo - ἀπόλλυμι - que Soacutecrates utiliza na sua

autobiografia intelectual (96a 97b 97c) quando relata a fase em que estava em busca

da causa da geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo eacute empregado pelo menos seis vezes em 102d-104c

para expressar a ideia da metaacutefora militar Temos a sugestatildeo de que Platatildeo ainda estaacute

discutindo como as coisas surgem e como satildeo destruiacutedas mas a partir de uma nova

noccedilatildeo de αἰτίαι e num contexto completamente novo Formas satildeo αἰτίαι e agora Platatildeo

explica como elas fazem com que as coisas sejam o que elas e como elas participam na

destruiccedilatildeo de coisas Sobrevindo uma Forma oposta rival as coisas que possuem uma

Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι) Na chegada do par o nuacutemero trecircs perece

Geralmente passa despercebido que a partir de 104d Platatildeo natildeo emprega

diretamente a metaacutefora militar na discussatildeo ndash a ideia de fugir e partir em retirada (ἢ

φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ) ou de perecer na chegada da Forma oposta (ἢ προσελθόντος

ἐκείνου ἀπολωλέναι) natildeo eacute mais mencionada diretamente e parece arrefecer com a

introduccedilatildeo de Formas que natildeo admitem opostos rivais daquele que carrega consigo

659 Outras coisas que natildeo admitem opostos (104c-105b)

206

Neste novo passo o desafio proposto pela personagem Soacutecrates eacute definir lsquoque

tipo de coisas satildeo essasrsquo ou seja quais satildeo essas coisas indefinidas ateacute entatildeo que

tambeacutem natildeo admitem Formas opostas

ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas natildeo resistem ao avanccedilo das rivais

mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao avanccedilo dos opostosrdquo (οὐκ

ἄρα μόνον τὰ εἴδη τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα ἄλληλα ἀλλὰ καὶ ἄλλ᾽ ἄττα

τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα) (104c7-9)

ldquoEntatildeo vocecirc gostaria disse se fosse possiacutevel que determinaacutessemos que tipo de

coisas elas satildeo (βούλει οὖν ἦ δ᾽ ὅς ἐὰν οἷοί τ᾽ ὦμεν ὁρισώμεθα ὁποῖα ταῦτά

ἐστιν) (104c11-12)

Platatildeo jaacute havia estabecido que a Forma oposta que estaacute em algo natildeo pode

admitir acomodar ou coexistir com a Forma oposta Agora ele introduz um novo

sujeito que natildeo eacute a Forma oposta mas uma Forma que traz a Forma oposta para aquilo

que ocupa Agora nem a coisa ocupada pela Forma oposta pode acomodar em si a

Forma oposta rival nem mesmo a Forma que traz a Forma oposta para o objeto que

ocupa poderaacute admitir essa Forma oposta rival Eacute certamente desta Forma que natildeo eacute um

oposto mas natildeo admite opostos que Soacutecrates pergunta se Cebes quer definir

A questatildeo colocada em 104c7-9 ndash ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas

natildeo resistem ao avanccedilo das rivais mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao

avanccedilo dos opostosrdquo ndash (104c7-9) e que levanta o pedido pela determinaccedilatildeo desse lsquotipo

de coisasrsquo (104c11-12) natildeo tem em si mesma nenhum elemento que a comprometa

207

unicamente com a ideia de algo que participa de uma Forma Vejamos que nesta

questatildeo especiacutefica

bull Soacutecrates natildeo sugere a ideia de que as coisas em questatildeo possuem opostos

nelas (como em 104b6-c3) o que necessariamente indicaria que Platatildeo

estaria falando de portadores que carregam opostos em si Essa parte eacute

omitida e a ideia eacute geneacuterica algumas outras coisas

bull Agora Soacutecrates utiliza ἄττα um pronome indefinido o qual deixa a

questatildeo em aberto Eacute realmente estranha a sugestatildeo de uma indefiniccedilatildeo

quando jaacute havia sido dada uma resposta para o problema o portador de

opostos inclusive com o exemplo do nuacutemero trecircs (104c8)

Se realmente levarmos em consideraccedilatildeo a indefiniccedilatildeo sugerida pelo pronome

poderiacuteamos considerar que Platatildeo poderia estar sugerindo um terceiro elemento que

engrossaria essa linha de resistecircncia contra o oposto rival

bull Uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta rival

bull A coisa que participa de uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta

que rivaliza com a Forma oposta que carrega em si

bull Um elemento indefinido tambeacutem natildeo admitiria a Forma oposta que

rivaliza com a Forma oposta que um portador carrega em si

208

Mas os termos empregados por Platatildeo satildeo ambiacuteguos natildeo apenas ἄττα mas o

pronome demonstativo ταῦτά em lsquoque tipos de coisas satildeo essasrsquo (ὁποῖα ταῦτά ἐστιν)

(104c11-12) sugerem que eacute algo novo Embora haja duas possiacuteveis interpretaccedilotildees para

aquilo que se quer definir com base na obscura construccedilatildeo gramatical em 104d1-3 ndash as

coisas ocupadas por Formas e as Formas que ocupam coisas ndash a nossa opccedilatildeo eacute pela

ideia de que essas coisas satildeo lsquoaquelas que ocupam algo e as compelem a adquirir a sua

proacutepria Forma e uma Forma opostarsquo Essa interpretaccedilatildeo se baseia principalmente no

passo seguinte com o exemplo da Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) que eacute aquilo que

ocupa trecircs e o compele ser trecircs e iacutempar (104d5-7) Fazendo uma revisatildeo a pergunta

lsquoque tipo de coisas satildeo essasrsquo nos remete a lsquoaquelas coisas que ocupam outras e as

compelem a possuir a sua proacutepria Forma e a Forma opostarsquo que por sua vez nos remete

agrave Forma do trecircs que eacute o sujeito que ocupa e compele e que por sua vez faz com que

trecircs seja necessariamente trecircs e iacutempar

A Forma do trecircs eacute responsaacutevel inclusive pela Forma oposta nas coisas Tambeacutem

vale lembrar que ao comentarmos 104c vimos que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado como iacutempar por causa do seu viacutenculo essencial com a Forma oposta (iacutempar)

que carrega consigo mas Platatildeo tambeacutem afirma que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado com o seu nome (trecircs) sem explicar por que deixando a questatildeo em aberto

Mas agora temos a sugestatildeo de que o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome por causa da Forma do trecircs Natildeo eacute por acaso que temos agora justamente a Forma

de trecircs (104d)

Platatildeo entatildeo firma a ideia ldquoa Forma oposta natildeo poderia jamais sobrevir agravequela

Forma que realiza esse trabalhordquo (ἡ ἐναντία ἰδέα ἐκείνῃ τῇ μορφῇ ἣ ἂν τοῦτο

ἀπεργάζηται οὐδέποτ᾽ ἂν ἔλθοι) (104d9-10) O verbo ἀπεργάζομαι sugere que a ideia

209

de lsquocausarsquo neste contexto eacute bem mais desenvolvida do que a mera ideia de

lsquoresponsabilidadersquo no contexto da resposta segura mas ignorante Agora Formas fazem

algo e assim produzem um efeito num objeto particular Antes jaacute tiacutenhamos a ideia de

participaccedilatildeo ndash lsquoFormasrsquo estatildeo presentes em contato ou comunhatildeo (κοινωνία παρουσία

100d5 6) com as coisas e satildeo responsaacuteveis por fazer com que elas sejam o que elas satildeo

Mas agora os verbos revelam uma atividade que gera causa ou produz um efeito nos

objetos particulares A partir de 104c a linguagem do movimento forccedila possessatildeo

domiacutenio e trabalho caracterizam plenamente as Formas elas ocupam (κατέχω)

particulares compelem-nos (ἀναγκάζω) a adquirir certas qualidades carregam

(ἐπιφέρω) consigo outras Formas natildeo admitem (δέχομαι ) as Formas opostas rivais e

produzem (ἀπεργάζομαι) algo naquilo que ocupa152 O verbo ἀπεργάζομαι traz a ideia

de um trabalho realizado e trazido ao fim A μορφή eacute um sujeito ativo cujo trabalho

produz o resultado esperado ela caracteriza aquilo que ocupa de duas maneiras por ela

mesma (a proacutepria Forma) e pela Forma oposta que carrega consigo Portanto aqui jaacute

podemos falar de Formas como αἰτία num sentido que vai bem aleacutem de mera

lsquoresponsabilidadersquo Forma neste contexto eacute um agente ativo de uma ordem mais alta de

realidade que eacute literalmente ldquoresponsaacutevel porrdquo fazer com que um efeito especiacutefico seja

produzido num objeto particular Formas satildeo a causa verdadeira que a personagem

Soacutecrates estava agrave procura Pelo menos esta eacute a mensagem que o texto sugere

O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao ontoloacutegica entre a lsquoForma em

sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica entre elas ndash uma Forma

suprema e uma Forma subordinante Mas pelo menos temos a sugestatildeo de que eacute papel

152 Cf Teloh 1975 p 21

210

da lsquoForma em sirsquo trazer a lsquoForma em noacutesrsquo e produzir causar ou fazer com que a coisa

que ocupa seja o que ela eacute (104d)

A Forma eacute vista agora como principal responsaacutevel pelas coisas serem o que satildeo

bull A Forma Trecircs determina que aquilo que ela ocupa seja trecircs ndash a coisa

ocupada pela Forma trecircs eacute necessariamente trecircs

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel por carregar a Forma oposta para a coisa

que ocupa eacute dessa maneira que ela tambeacutem determina que aquilo que ela

ocupa tambeacutem seja iacutempar

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel pela exclusatildeo da Forma oposta Iacutempar

A Forma eacute agora natildeo apenas uma forccedila de ocupaccedilatildeo mas um combatente que

traz consigo um aliado na prevenccedilatildeo e defesa da aacuterea ocupada contra a chegada do

oposto rival Agora natildeo apenas a coisa ocupada natildeo admite a Forma oposta mas

tambeacutem a proacutepria Forma que ocupa natildeo admite a Forma oposta rival da Forma que ela

traz para a coisa que ocupa

A passagem seguinte eacute uma extensatildeo daquilo que foi apresentado agora e deve

ser interpretada agrave luz do que foi dito Alguns pontos satildeo explicitados a comeccedilar pela

ideia de que a Forma traz consigo uma Forma oposta para as coisas que ocupam e

jamais admite o oposto daquilo que leva consigo Para explicar essa nova ideia um novo

verbo empregado o verbo ἐπιφέρει eacute utilizado para descrever a accedilatildeo da Forma que

mesmo natildeo sendo um oposto carrega consigo outra Forma (a Forma oposta) (104e-

105a) O verbo eacute utilizado especificamente aqui em 104e-105a em conexatildeo com o que

211

foi apresentado em 104d para trazer luz ao trabalho realizado pela Forma o trabalho de

carregar a Forma oposta para aquilo que ocupa Pelo menos trecircs exemplos mostram que

a Forma carrega consigo a Forma oposta

bull ἡ τριὰς (a Forma Triacuteade) ἡ δυὰς (a Forma Dois) τὸ πῦρ (a Forma Fogo)

ndash natildeo sendo um oposto (οὐκ οὖσα ἐναντία) carrega sempre consigo um

oposto (τὸ ἐναντίον ἀεὶ αὐτῷ ἐπιφέρει) e jamais admite (δέχεται) o

oposto rival do que carrega consigo (104e8-105a5)

Por fim Soacutecrates reforccedila a ideia novamente

ldquoNatildeo apenas o oposto natildeo admite o seu oposto mas haacute tambeacutem aquilo

que carrega um oposto para a coisa que ocupa e isto que carrega nunca

admite o oposto do que carregardquo

μὴ μόνον τὸ ἐναντίον τὸ ἐναντίον μὴ δέχεσθαι ἀλλὰ καὶ ἐκεῖνο ὃ ἂν

ἐπιφέρῃ τι ἐναντίον ἐκείνῳ ἐφ᾽ ὅτι ἂν αὐτὸ ἴῃ αὐτὸ τὸ ἐπιφέρον τὴν τοῦ

ἐπιφερομένου ἐναντιότητα μηδέποτε δέξασθαι ( 105a2-5)

Essa lista de exemplos numeacutericos provavelmente eacute uma lista de Formas uma

vez que temos nesta passagem um desenvolvimento da ideia apresentada em 104d ἡ

τριὰς ἡ δυὰς τὸ πῦρ τὰ πέντε τὰ δέκα τὸ διπλάσιον τὸ ἡμιόλιον τὸ ἥμισυ (1004e-

105b) certamente satildeo Formas e em 104d-105b procuram estabelecer o princiacutepio de que

212

Formas satildeo causas que ocupam objetos carregam consigo as Formas opostas e realiza

neles uma obra completa fazendo com que eles sejam o que eles satildeo e prevenindo a

chegada de qualquer oposto rival Vaacuterios exemplos satildeo apresentados para ratificar a

ideia de que a Forma mesmo natildeo sendo um oposto natildeo admite o oposto daquele

oposto que carrega consigo (105a-b)

Depois de estabelecer o princiacutepio essencial que envolve Formas Formas opostas

e coisas ocupadas Soacutecrates se oferece para refrescar a memoacuteria do Cebes ainda que

esteja sendo repetitivo ldquoMas lembre-se mais uma vez pois natildeo haacute mal algum em ouvir

isso muitas vezesrdquo (πάλιν δὲ ἀναμιμνῄσκου οὐ γὰρ χεῖρον πολλάκις ἀκούειν) (105a5-

6) Os exemplos podem ser divididos em duas etapas

bull Cinco natildeo admitiraacute a Forma do par153

bull Dez o dobro de cinco natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar (que eacute o oposto da

Forma do par que o dez carrega consigo)

bull Dobro (embora seja oposto de algo) natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar

bull Fraccedilotildees como frac12 e outras assim natildeo admitiratildeo a Forma do todo

6510 Exemplos adicionais (105b-c)

Ao final Soacutecrates convida Cebes para voltar ao comeccedilo e apresenta alguns

exemplos adicionais que introduzem o caso da alma Eacute difiacutecil saber se Platatildeo continua a

153 Platatildeo omite ἡ ἰδέα mas ela pode ser recuperada no contexto imediato numa construccedilatildeo

semelhante agrave que emprega agora ἐπὶ τὰ τρία ἄρα ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει (104e1) τὰ

πέντε τὴν τοῦ ἀρτίου οὐ δέξεται (105a6-7)

213

desenvolver a ideia de ocupaccedilatildeo em continuaccedilatildeo com o contexto anterior a ideia de que

a Forma ocupa algo A ruptura com o contexto anterior pode ter ocorrido quando

Soacutecrates deixa os exemplos eminentemente numeacutericos e convida a voltar ao comeccedilo

Por outro lado eacute tambeacutem possiacutevel que ele utilize exemplos adicionais para retomar a

ideia de uma Forma ocupar algo Em 104d o verbo κατέχω eacute utilizado e agora em

105b-d o verbo ἐγγίγνομαι ndash lsquoentrar ir pararsquo ndash eacute utilizado trecircs vezes depois uma vez

mais no caso da alma Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas movendo-se

para objetos particulares e neles produzindo efeitos eacute o mais comum 102e1 103d7

d10 104b10 c7 Se realmente Platatildeo continua com essa ideia desenvolvida no contexto

anterior Fogo Febre e Unidade satildeo Formas que entram nas coisas trazem consigo a

Forma oposta e produzem nela um efeito calor doenccedila imparidade Vejamos os

exemplos em 105b8-c6

bull O que vem para o corpo que o torna quente natildeo eacute o calor mas o fogo

bull O que vem para o corpo que o torna enfermo natildeo eacute a doenccedila mas a

febre

bull O que vem para o nuacutemero que o torna par natildeo eacute a imparidade mas a

unidade

Gallop lembra que se esses exemplos forem tomados como Formas o sentido da

relaccedilatildeo entre Formas e as coisas que elas ocupam natildeo eacute meramente loacutegico mas

causal154

154 Gallop 2002 p221

214

Finalmente os exemplos introduzem a alma e com isso o uacuteltimo argumento

bull O que vem para o corpo que o torna vivo eacute a alma (105c8-d4)

215

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)

O argumento final propriamente dito comeccedila precisamente em 105c9 e finda em

107b10155 A tradiccedilatildeo interpretativa diverge na delimitaccedilatildeo do argumento mas nos

parece claro que a etapa que interpotildee entre as objeccedilotildees de Cebes e o uacuteltimo argumento

propriamente dito que soacute eacute introduzido em 105c visa preparar o terreno para a

compreensatildeo do uacuteltimo argumento mas natildeo deve ser confundido com o argumento

propriamente dito

O argumento eacute introduzido com o fim de responder as objeccedilotildees gerais de Cebes

de que a alma pode passar por diversos ciclos de reencarnaccedilotildees e ao final ser destruiacuteda

Isto indica que desde o iniacutecio o argumento pretende lidar com almas individuais Aleacutem

disso o amplo contexto do Feacutedon nos mostra que as demonstraccedilotildees visam assegurar

que a alma de Soacutecrates natildeo pereceraacute na ocasiatildeo da morte O problema colocado por

Cebes era justamente que sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι

ὡς ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou vaacuterias vezes

num corpo e a questatildeo de Cebes tem em vista a alma de Soacutecrates e o receio dos seus

disciacutepulos de que ela seria dispersa e destruiacuteda na hora da morte (Cf 95b-e) A palavra

alma (ψυχή) aparece sem o artigo e no singular ao longo do argumento e na conclusatildeo

em 106e8-107a1 temos a palavra no singular e tambeacutem no plural ndash lsquoalmarsquo e lsquoas nossas

almarsquo (ἡμῶν αἱ ψυχαὶ) o que revela que o argumento estaacute tratando de almas individuais

Informaccedilotildees adicionais sobre a natureza da alma em questatildeo seratildeo apresentadas adiante

155 Keyt 1963 p 169 ldquoO argumento propriamente dito para a imortalidade da alma comeccedila com

a afirmaccedilatildeo de que a alma sempre chega a tudo o que ocupa tendo vida em 105crdquo

216

71 Estrutura baacutesica do argumento e Comentaacuterio

O argumento eacute relativamente simples Eis a estrutura baacutesica do argumento eacute a

seguinte

[1] A alma sempre carrega vida para o que ela ocupa (105c9-d5)

[2] A vida eacute oposta agrave morte (105d6-9)

Portanto

[3] A alma jamais admitiraacute a morte e portanto eacute imortal (105d10-e9)

Portanto

[4] Se o imortal fosse indestrutiacutevel a alma seria indestrutiacutevel (105e10-106d1

e1-4)

[5] O imortal eacute indestrutiacutevel (106d2-9)

Portanto

[6] A alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)

Vejamos uma explanaccedilatildeo do argumento

217

A exegese textual levanta a suspeita de que a primeira premissa eacute construiacuteda a

partir de um paralelo com 104d1-7156 O elemento mais importante eacute a ideia de

lsquoocupaccedilatildeorsquo com o emprego do verbo κατέχω em 104d e 105d

ἃ ὅτι ἂν κατάσχῃ (104d)

ὅτι ἃ ἂν ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ (104d)

ψυχὴ ὅτι ἂν αὐτὴ κατάσχῃ (105d)

lsquoqualquer coisa que aqueles ocupemrsquo

lsquoquaisquer coisas que a Forma do trecircs ocupersquo

lsquoqualquer coisa que a alma ocupersquo

Temos entatildeo uma relaccedilatildeo entre os dois contextos mas com uma diferenccedila

crucial ndash o sujeito

156 Pelo menos Hackfort (1998 p162) e Keyt (1963 p169) defendem a ideia de que essa

primeira declaraccedilatildeo do argumento final em 105d3-5 manteacutem um paralelo com 104d5-7 A

exegese textual confirma esse paralelo Platatildeo natildeo dependeria especificamente do vocabulaacuterio

em 104d sem uma razatildeo forte para isso A dificuldade eacute saber o que o exegeta vai fazer com esta

informaccedilatildeo

218

Sujeito Predicado Objeto

ἃ κατάσχῃ ὅτι (particular)

ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ ὅτι (particular)

ψυχὴ κατάσχῃ ὅτι (particular ndash corpo)

Enquanto o sujeito em 104d eacute a Forma que ocupa um particular em 105d o

sujeito eacute a alma Temos aqui o que poderia ser o primeiro grande embaraccedilo no uacuteltimo

argumento apesar de natildeo haver nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de uma Forma da alma no

uacuteltimo argumento algueacutem pode sugerir que ela seria requerida pelo paralelo

(104d105d) Se aplicaacutessemos o modelo e princiacutepio de 104d para o caso da alma talvez

tiveacutessemos a Forma da alma como segue

Trecircs Alma

Forma do trecircs Forma da alma

Forma do trecircs ocupa algo e carrega consigo

a Forma oposta ndash a Forma do iacutempar

Forma da alma ocupa algo e carrega consigo a

Forma oposta ndash a Forma da Vida

Forma do trecircs produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente trecircs e

iacutempar

Forma da alma produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente alma e

viva

Forma do trecircs natildeo admite a Forma oposta

(Forma do par) que rivaliza com a Forma

que carrega (Forma do iacutempar)

Forma da alma natildeo admite a Forma oposta

(Forma da morte) que revaliza com a Forma que

carrega ndash a Forma da vida

219

Alguns comentadores antigos e contemporacircneos insistem na ideia de que existe

uma Forma da alma e que assim como particulares participam em Formas as almas

individuais participam na Forma da alma sobretudo por causa do paralelo entre 104d e

105d Archer-Hind admite que a ideia de uma Forma da alma eacute uma mostruosidade

metafiacutesica da qual natildeo podemos escapar no Feacutedon157 O inteacuterprete contemporacircneo

Prince se esforccedila para provar a tese de que existe uma Forma da alma e que ela

desempenha um papel central no uacuteltimo argumento para a imortalidade da alma De

iniacutecio ele apela para o argumento de que Platatildeo natildeo diz que existe uma Forma da alma

mas tambeacutem natildeo rejeita esta ideia158 Apesar do seu esforccedilo para provar a sua tese o

silecircncio de Platatildeo natildeo pode ser tomado como uma fala em favor de uma Forma da alma

da qual o argumento final depende Talvez Platatildeo pudesse ateacute construir um argumento

melhor com base na existecircncia de uma Forma da alma seguindo a ideia de 104d1-7

Mas natildeo o fez ou porque natildeo considerava a possibilidade da existecircncia de uma Forma

da alma ou porque simplesmente desprezou essa possibilidade ou por algum outro

motivo O silecircncio absoluto de Platatildeo nos diz simplesmente que uma Forma da alma eacute

algo que natildeo estaacute presente no argumento final ainda que possa existir

Voltando agrave questatildeo do paralelo estaacute bem claro que Platatildeo natildeo o manteacutem no

uacuteltimo argumento Existe uma diferenccedila significativa entre o emprego do verbo κατέχω

em 104d e 105d no primeiro caso a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα ἡ τριάς) ocupa o

nuacutemero trecircs e eacute a causa pela qual trecircs eacute trecircs e eacute iacutempar Em 105d o cenaacuterio muda a

157 Archer-Hind 1894 p 116

158 Prince 2011 p1-2

220

alma ocupa o corpo e natildeo eacute a causa pela qual o corpo eacute 159 O elemento que

aparentemente remanesce eacute que tanto a Forma do trecircs quanto a alma trazem uma Forma

para aquilo que ocupam

Mas a ideia das duas passagens paralelas levou alguns comentadores a acreditar

que para seguir de perto o paralelo entre 104d1-7 e 105d3-5 no uacuteltimo argumento a

alma eacute uma Forma ou eacute considerada como tal

(i) Hackfort defende que a alma jaacute eacute considerada como uma Forma

imanente juntamente com todos os exemplos apresentados em 105c o

fogo a febre a unidade e conclui que o uso do verbo κατέχω em 105d

com base em 104d revela sem sombra de duacutevida que o que estaacute em jogo

no uacuteltimo argumento eacute a alma como Forma imanente que ocupa o

corpo160

(ii) Keyt tambeacutem considera que o argumento final inicia com uma

declaraccedilatildeo que eacute paralela a 104d5-7 e chega a uma conclusatildeo um pouco

diferente embora natildeo possamos dizer que no uacuteltimo argumento Platatildeo

admite que a alma eacute uma Forma eacute plausiacutevel dizer que ele a trata como se

fosse uma Forma imanente e a primeira premissa simplesmente admite

159 Cf Archer-Hind 1894 p 116

160 Hackfort 1998 p162

221

que qualquer coisa que tem a alma tem vida ou seja quando uma alma

estaacute presente em um corpo esse corpo estaacute vivo 161

Mas essa posiccedilatildeo estaacute longe de ser defensaacutevel Como diz Dixsaut Platatildeo natildeo diz

que existe uma Forma e evita cuidadosamente dizer isso 162 E se a alma fosse uma

Forma no Feacutedon seria suficiente simplesmente assumir que ela eacute eterna imortal e

incorruptiacutevel como todas as outras

Aleacutem de todos esses argumentos eacute necessaacuterio observar que apesar da insinuaccedilatildeo

textual de que as passagens 104d e 105d apresentam um paralelo na verdade os uacuteltimos

exemplos que Platatildeo apresenta e que introduzem a alma no cenaacuterio mostram que

Platatildeo jaacute natildeo mais estaacute seguindo exatamente a ideia apresentada em 104d A ideia de

uma Forma do trecircs natildeo exerce influecircncia sobre os exemplos em 105b8-c6 fogo febre

unidade

Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas se movendo para objetos

particulares e neles produzindo efeito eacute comum mas no caso de fogo febre unidade

alma natildeo temos uma clara indicaccedilatildeo de que satildeo Formas O contexto sugere que

Soacutecrates estaacute aqui lidando com uma Forma do fogo por exemplo assim como 104d

temos a Forma do trecircs Este eacute um problema constante nesta seccedilatildeo nem sempre Platatildeo

tem o interesse de explicitar o status metafiacutesico de diferentes tipos de coisa Sedley diz

que uma causa no Feacutedon pode ser uma coisa fiacutesica como o fogo um processo

161 Keyt 1963 p169

162 Dixsaut 1991 p 397

222

matemaacutetico como adiccedilatildeo o bem alma a inteligecircncia ou uma Forma como grandeza ou

pequenez163 Mas vale lembrar que nem sempre o texto eacute completamente vago e

hermeacutetico A ausecircncia de especificaccedilotildees 105b8-c6 jaacute pode ser um primeiro indiacutecio de

que Platatildeo natildeo trata de uma Forma Ademais natildeo eacute difiacutecil ver como esses objetos que

desempenham um papel crucial na prova final (fogo febre unidade) tem um tratamento

diferente de 1054d onde a Forma do trecircs ocupa algo e o compele a ser trecircs e iacutempar Em

105b8-c6 temos uma ideia diferente

(i) o Fogo que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(ii) a Febre que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(iii) a Unidade que vem para o nuacutemero natildeo faz com que o nuacutemero seja

nuacutemero

(iv) a Alma que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

Platatildeo estaacute realmente preparando o leitor para o uacuteltimo argumento de modo que

dois dos trecircs exemplos apresentam o corpo (fogo-corpo febre-corpo) para facilitar a

transiccedilatildeo para o exemplo alma-corpo Tambeacutem eacute importante observar que 104d eacute

apresentado como resposta para a busca por alguma outra coisa que natildeo eacute um oposto

mas natildeo admite o oposto rival do oposto que carrega consigo O uacutenico exemplo

numeacuterico em 105b-c rompe com essa ideia de 104d porque o dobro tambeacutem possui um

oposto Talvez a inclusatildeo deste elemento que possui um oposto seja uma abertura para a

possibilidade de no proacuteximo argumento considerarmos a proacutepria alma e corpo como

163 Sedley 1998 p 115

223

opostos O ponto que eacute necessaacuterio observar eacute que os uacuteltimos exemplos natildeo seguem

completamente 104d e servem de modelo para o caso da alma

Portanto o contexto realmente natildeo sugere que esses uacuteltimos exemplos sejam

tomados como Formas Se quisermos comparar temos na verdade o seguinte

(i) Em 104d1-7 Forma do Trecircs ndash trecircs (objeto que a Forma ocupa e compele

a ser o que eacute) ndash Forma oposta que a Forma do Trecircs carrega consigo

(iacutempar) ndash Forma oposta rival (par)

(ii) Em 105b8-c6 Fogo ndash corpo (objeto que o fogo ocupa) ndash calor (qualidade

essencial que o fogo possui)

(iii) Em 105d3-5 Alma ndash corpo (objeto que a alma ocupa) ndash vida (qualidade

essencial que a alma possui) Forma da Vida (Forma na qual a alma

participa) ndash Forma oposta rival (morte)

Aleacutem disso temos no Feacutedon Formas que trazem Formas opostas para aquilo que

ocupam (104d) mas nunca Formas que participam em Formas Isto mostra que nos

exemplos em 105b-c fogo por exemplo natildeo eacute uma Forma Fogo tem em si a

caracteriacutestica de uma Forma ndash o calor ndash porque participa numa Forma assim como o

nuacutemero trecircs eacute iacutempar porque participa na Forma do iacutempar Neste caso se fogo fosse uma

Forma estariacuteamos admitindo que Forma participa numa Forma e isto natildeo eacute o caso

O mesmo se aplica agrave alma a qual possui a qualidade essencial ndash vida ndash porque

participa na Forma da vida Eacute descabido pensar que a alma eacute uma Forma que participa

em outra Forma A conclusatildeo de Hackfort e outros comentadores de que a alma eacute uma

224

Forma com base no paralelo entre 104d e 105d natildeo procede Eacute improvaacutevel que Platatildeo

queira provar que a alma eacute imortal se ao mesmo tempo a considera uma Forma uma vez

que no Feacutedon a imortalidade das Formas eacute simplesmente assumida Como diz Loriaux

estamos convencidos de que se o Feacutedon natildeo diz em nenhum lugar que a alma eacute uma

Forma eacute porque nunca pretendeu fazecirc-lo164

Em suma o argumento final natildeo eacute de modo algum apresentado com base na

ideia de uma Forma da alma nem mesmo a alma individual eacute uma Forma transcendente

ou uma Forma imanente Nenhuma dessas leituras possui apoio textual seguro e

definitivo

Portanto seria a alma um tipo de ser com um status ontoloacutegico intermediaacuterio

Seria a alma uma entidade que natildeo eacute uma Forma nem um objeto particular mas que

estaacute entre os dois A resposta deve considerar especialmente o argumento das

afinidades

No argumento das afinidades Platatildeo caracteriza dois grupos de seres Formas

fazem parte do grupo de coisas invisiacuteveis imortais invariaacuteveis eternas e objetos

particulares Mas imediatamente apoacutes a divisatildeo apresenta a alma como ser que possui

extrema semelhanccedila e afinidade com as Formas e que ao mesmo tempo possui alguma

semelhanccedila com objetos particulares tambeacutem a alma pode sofrer mudanccedila por

exemplo Portanto temos pelo menos uma sugestatildeo de que a alma natildeo pertenceria a

nenhum dos dois grupos e talvez Bostock esteja certo ao dizer que natildeo haacute razatildeo para

acreditar que na ontologia platocircnica soacute existe lugar para apenas duas classes de coisas

Formas e particulares165

164 Loriaux 1975 p132

165 Bostock 1989 118

225

Se a alma fosse uma Forma natildeo seria necessaacuterio provar que ela eacute imortal mas

se Platatildeo a considerasse como particular teriacuteamos um conflito no Feacutedon enquanto

Platatildeo tenta provar que a alma eacute imortal ao mesmo tempo se esforccedila para caracterizar

objetos particulares como membros de uma classe de coisas passiacuteveis agrave dissoluccedilatildeo e

destruiccedilatildeo Portanto eacute plausiacutevel que a alma esteja numa posiccedilatildeo ldquointermediaacuteriardquo

enquanto se relaciona harmonicamente com as Formas quando opera sem a mediaccedilatildeo

corporal e compartilha algumas de suas caracteriacutesticas mas natildeo todas Por outro lado

assim como particulares a alma pode sofrer variaccedilatildeo mudanccedila

O argumento das afinidades provoca um impacto no proacuteprio Cebes o qual

entende que a alma natildeo eacute uma Forma mas tambeacutem reconhece que ela eacute superior em

relaccedilatildeo ao corpo (91e-92a95c) eacute robusta divina longeva goza da capacidade de

existecircncia sem o corpo (preexistecircncia) e de conhecer Formas o que seria impossiacutevel

para membros comuns da classe de coisas visiacuteveis

No argumento final propriamente dito a vida e a morte satildeo opostos Tudo que

possui a alma eacute vivo Eacute portanto a alma que traz vida ao corpo A proacutepria alma carrega

consigo uma Forma da vida Ela natildeo eacute um oposto mas natildeo admite o oposto rival do

oposto que leva consigo ou seja natildeo admite a morte

O argumento comeccedila em 105d com um paralelo com 104c1-3 Formas que

trazem consigo Formas opostas e natildeo admitem as Fomas rivais Assim como as Formas

as almas ocupam um objeto Soacute temos esse paralelo entre almas e Formas no Feacutedon

Neste caso poderiacuteamos ateacute pensar que Platatildeo estaria apresentando um terceiro tipo de

coisa que natildeo eacute oposto mas carrega um oposto e natildeo admite um oposto rival ndash a alma

um intermediaacuterio Esta seria a maneira mais harmocircnica de entender o porquecirc do paralelo

226

entre almas que ocupam um corpo e o compele a ser vivo e Formas que ocupam um

nuacutemero e o compele a ser iacutempar Sendo um intermediaacuterio a semelhanccedila eacute explicada

Platatildeo tem que lidar com o problema apresentado antes a possibilidade de a

alma sofrer um ataque da Forma rival restando uma das duas opccedilotildees bater em retirada

ou perecer (Cf 104b6-c3) Caso o oposto rival arremeta contra o nuacutemero trecircs ele bateraacute

em retirada ou pereceraacute (ἀλλ᾽ ἐπιούσης αὐτῆς ἤτοι ἀπολλύμενα ἢ ὑπεκχωροῦντα)

(104b10-c1) E se isto puder acontecer com a alma Platatildeo estaria assumindo que a alma

pode perecer Teriacuteamos o seguinte com base em 104b-c

Almas satildeo objetos particulares que carregam a Forma da vida e assim

jamais admitiratildeo a morte Isto significa que elas jamais admitiratildeo

acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte Quando a Forma rival

arremeter contra a alma ou ela bateraacute em retirada ou tombaraacute morta

Mas o argumento claramente elimina esta possibilidade Platatildeo tenta mostrar que

a alma possui uma relaccedilatildeo essencial com uma Forma cuja natureza natildeo pode aceitar de

modo algum lsquomortersquo a Forma da vida Sendo assim a alma eacute essencialmente viva a

Forma oposta natildeo pode trazer morte para aquilo que carrega consigo a Forma da vida O

que acontece quando a alma sofre o ataque da Forma oposta eacute o seguinte ldquoSendo

assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao que parece

tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo ela parte

retirando-se da presenccedila da morterdquo (106e4-6)

O segundo modelo de coisas que natildeo satildeo opostos mas natildeo admitem opostos (o

caso das Formas) parece providenciar um exemplo de algo que natildeo pode perecer com o

227

ataque da Forma rival a proacutepria Forma que ocupa algo As Formas satildeo imortais e

indestrutiacuteveis assim como as almas segundo a conclusatildeo do argumento final Quando

as Formas que ocupam algo sofrem o ataque de uma Forma rival elas saem ilesas e

intactas Portanto o viacutenculo essencial das almas com aquilo que a torna essencialmente

viva e imortal faz com que ela seja como as Formas que ocupam um objeto e natildeo

podem perecer pelo ataque da Forma rival daquela que carrega consigo Se a alma for

uma entidade diferenciada um intermediaacuterio eacute mais faacutecil entender essa aproximaccedilatildeo

entre alma e Forma Se a considerarmos um intermediaacuterio teriacuteamos o seguinte com

base no modelo apresentado no contexto anterior em 104d

Almas satildeo intermediaacuterios que carregam a Forma da vida e assim jamais

admitiratildeo a morte (Cf105d10-e9) Isto significa que elas jamais

admitiratildeo acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte e que elas

natildeo pereceratildeo por ocasiatildeo da arremetida da Forma rival assim como eacute

impossiacutevel que uma Forma rival golpeie e aniquile uma Forma que

ocupa um corpo e carrega uma Forma oposta

Assim com as Formas satildeo ldquoblindadasrdquo contra os ataques das Formas rivais as

almas satildeo ldquoblindadasrdquo ou seja imunes agrave morte por causa do seu viacutenculo com a Forma

da vida A fase final da prova lida com o problema da aproximaccedilatildeo dos opostos nos

exemplos apresentados na etapa anterior sobrevindo uma Forma oposta rival os

particulares que possuem uma Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι)

O encontro com a Forma rival termina imediatamente com uma das duas

possibilidades fuga ou perecimento (104b6-c3) Platatildeo percebe este problema e

228

soluccedilatildeo para ele eacute que a alma por seu viacutenculo com a Forma da vida eacute essencialmente

viva e para Soacutecrates isto significa que ela eacute imortal Soacutecrates e Cebes tambeacutem

concluem que tudo que eacute imortal eacute indestrutiacutevel porque se o imortal natildeo fosse

indestrutiacutevel nada mais seria (Cf 106e) Portanto neste argumento Platatildeo associa as

ideias de vida imortalidade e indestrutibilidade (106d2-9)

(i) Tudo o que tem a alma eacute essencialmente vivo

(ii) Tudo o que eacute essencialmente vivo eacute ἀθάνατος

(iii) Tudo o que eacute ἀθάνατος eacute indestrutiacutevel

(iv) Portanto tudo que tem uma alma eacute indestrutiacutevel

(v) Portanto a alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)166

Eacute interessante observar que no contexto do argumento ciacuteclico alma viva eacute alma

reencarnada e alma morta eacute alma desencarnada Agora a proacutepria alma e natildeo o corpo

animado (alma alojada no corpo) eacute imortal e indestrutiacutevel lsquoIndestrutiacutevelrsquo e lsquoimortalrsquo natildeo

satildeo mais a pessoa que tem a alma mas a proacutepria alma

O argumento final eacute o uacutenico argumento no Feacutedon cuja conclusatildeo decisivamente

declara que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Eacute sem duacutevida o argumento que mais se

aproxima de uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma

Contudo a uacuteltima prova da imortalidade da alma apresenta falhas e dificilmente

se estabelece como prova da imortalidade da alma

166 Keyt 1963 p171

229

(i) Platatildeo parece se equivocar quanto ao que constitui o oposto da morte ele

considera que lsquovidarsquo eacute oposto de lsquomortersquo

(ii) O argumento eacute circular reivindica que a alma eacute imortal porque natildeo

admite morte

(iii) A uacutenica razatildeo clara pela qual a alma eacute imortal eacute que ela possui um

viacutenculo com a Forma da vida a qual eacute imortal e indestrutiacutevel (Cf106b)

Essa declaraccedilatildeo de que a Forma da vida eacute imortal eacute um estranho

argumento para a imortalidade da alma porque todas as Formas satildeo

imortais e indestrutiacuteveis

(iv) No argumento aquilo que eacute essencialmente vivo eacute necessariamente

imortal mas este ponto eacute questionaacutevel Portanto a transiccedilatildeo entre algo

essencialmente vivo para algo imortal eacute questionaacutevel Tambeacutem eacute

importante notar que Platatildeo considera apenas a Forma da vida e na

transiccedilatildeo da vida para imortalidade ele natildeo considera a Forma da

imortalidade Mas eacute possiacutevel que Platatildeo considera que a Forma da vida

engloba imortalidade e indestrutibilidade

(v) Soacutecrates simplesmente assume que o que eacute essencialmente vivo eacute

imortal e que o que eacute imortal eacute indestrutiacutevel A conclusatildeo de que a alma

eacute imortal parece uma mera inferecircncia a partir do viacutenculo essencial da

alma com a vida e a necessaacuteria rejeiccedilatildeo da morte

(vi) Keyt aponta uma falaacutecia de ldquoequivocaccedilatildeordquo no uso dos termos ἀθάνατος

θάνατοςθνητός No iniacutecio do argumento ἀθάνατος eacute oposto de θάνατος

mas ao final eacute oposto de θνητός (Cf 105e2-3 106e5-6)167

167 Keyt 1963 p170

230

(vii) A teoria das Formas ainda eacute incipiente Vaacuterios pontos da passagem

merecem uma explicaccedilatildeo mais detalhada no que concerne agrave teoria das

Formas

(viii) A identidade da alma como um portador de uma Forma eacute essencial para a

compreensatildeo do argumento mas Platatildeo natildeo deixa claro o que eacute a alma

A nossa anaacutelise a considera como uma entidade intermediaacuteria com base

nas evidecircncias apresentadas ao longo do diaacutelogo mas em momento

algum Platatildeo deixa isto claro

(ix) A relaccedilatildeo entre a etapa anterior e o argumento propriamente dito estaacute

longe de ser clara Este problema deixa o argumento aberto a

interpretaccedilotildees diversas

72 A reaccedilatildeo ao uacuteltimo argumento

O argumento final do Feacutedon eacute o uacutenico no diaacutelogo a persuadir Cebes de que a

alma eacute imortal Ele eacute construiacutedo em resposta agraves objeccedilotildees de Cebes e ao final da

exposiccedilatildeo o ceacutetico mais obstinado no mundo (77a) como salienta Hackforth natildeo

levanta qualquer objeccedilatildeo (107a1-3)168 Agora natildeo haacute mais receio de que a alma por ser

mortal seja destruiacuteda num dos ciclos de reencarnaccedilotildees e a corajosa atitude de Soacutecrates

diante da iminente execuccedilatildeo eacute sensata visto que estaacute amparada pelo argumento final

Mas a reaccedilatildeo de Siacutemias eacute diferente ele diz que natildeo tem nada a objetar mas por

ser o assunto tatildeo denso e a natureza humana fadada ao fracasso ele diz ldquoeu estou

compelido a ter uma descrenccedila em meu iacutentimo a respeito do que foi dito (ἀναγκάζομαι

168 Hackfort 1998 p 165

231

ἀπιστίαν ἔτι ἔχειν παρ᾽ ἐμαυτῷ περὶ τῶν εἰρημένων) (1007a8-b3) Ainda assim Siacutemias

eacute incapaz de apontar falhas especiacuteficas no argumento chamando atenccedilatildeo para um

problema mais geral da existecircncia humana e da sua proacutepria experiecircncia e descrenccedila em

relaccedilatildeo agrave natureza e estado futuro da alma

Soacutecrates parece bastante confidente a respeito do argumento e diz a Siacutemias que

concorda que ateacute mesmo as primeiras hipoacuteteses sejam revisitadas mas logo afirma que

se forem analisadas pelos amigos de maneira suficiente eles seguiratildeo o argumento e

natildeo haveraacute mais necessidade de prosseguir a pesquisa (107b4-9) Siacutemias simplesmente

concorda com a afirmaccedilatildeo do amigo ldquovocecirc fala a verdaderdquo (107b10)

Cebes o mais capaz dos interlocutores estaacute completamente convencido A

resposta de Siacutemias pode sugerir sua insatisfaccedilatildeo depois de ouvir o argumento contudo

duacutevida de Siacutemias eacute bastante geral e natildeo diz respeito ao argumento em si169

169 Conforme Sedley (2009 p146) Platatildeo criou esse argumento para explicar por que Soacutecrates

partiu confiante e alegre para a morte e sendo assim seria inconcebiacutevel que Platatildeo pretenda

transmitir a mensagem de que o ato final de Soacutecrates como um maacutertir filosoacutefico e sua aceitaccedilatildeo

confiante da morte baseava-se em um argumento duacutebio

232

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A nossa anaacutelise das provas da imortalidade da alma no Feacutedon revela que as duas

primeiras provas estatildeo comprometidas com uma concepccedilatildeo de imortalidade vinculada agrave

doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo da alma O argumento ciacuteclico conclui

apenas que a alma continua a existir depois da morte enquanto o argumento da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento O argumento das afinidades eacute o

primeiro argumento que ataca diretamente o problema apresentado por Cebes ndash a

possibilidade de a alma se desintegrar na hora em que se separa do corpo O argumento

tenta provar que a alma eacute por natureza imune agrave morte algo completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso Mas o uacuteltimo argumento eacute sem duacutevida a grande

prova da imortalidade da alma no Feacutedon Mas todos os argumentos apresentam falhas e

nenhum se estabelece como prova inequiacutevoca da imortalidade da alma nem mesmo o

argumento final apesar de Soacutecrates e os amigos natildeo apontarem qualquer falha no

argumento Os amigos de Soacutecrates satildeo finalmente libertos dos temores de que a alma

individual seja desintegrada e o filoacutesofo pode partir seguro para o aleacutem onde desfrutaraacute

dos benefiacutecios de ter dedicado a vida ao exerciacutecio de morrer e estar morto

233

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO

[57a] EQUEacuteCRATES Feacutedon vocecirc mesmo estava presente no dia em que Soacutecrates

bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por outra pessoa

FEacuteDON Eu mesmo estava presente Equeacutecrates

EQUEacuteCRATES Entatildeo o que ele falou antes de morrer Como foi a sua morte Eu

gostaria de ouvir sobre isso pois nenhum cidadatildeo de Fliunte visita Atenas com

frequecircncia nessa eacutepoca [57b] e haacute tempo natildeo vem de laacute sequer um estrangeiro capaz de

informar com precisatildeo o que aconteceu Contam apenas que Soacutecrates morreu ao tomar o

veneno e nada mais

[58a] FEacuteDON Tampouco souberam como foi o julgamento

EQUEacuteCRATES Sim sobre isso uma pessoa nos informou e ficamos surpresos por que

se sabe que ele morreu bem depois da realizaccedilatildeo do julgamento Afinal por que isso

aconteceu Feacutedon

FEacuteDON Por coincidecircncia Equeacutecrates Aconteceu que no dia anterior ao seu

julgamento a popa do navio que os atenienses costumam enviar para Delos tinha sido

coberta

EQUEacuteCRATES E que navio eacute esse

234

FEacuteDON Esse eacute o navio como dizem os atenienses em que certa vez Teseu foi a [58b]

Creta levando os ldquodois grupos de seterdquo os quais ele salvou bem como salvou a si

mesmo Conta-se que nessa eacutepoca prometeram a Apolo que se eles fossem salvos lhe

retribuiriam com o envio de uma missatildeo anual para Delos E eacute justamente essa missatildeo

anual que desde aquela eacutepoca ateacute agora eles sempre enviam ao deus No tempo

decorrido entre o iniacutecio e o fim da missatildeo a lei ateniense determina que a cidade

permaneccedila purificada e que natildeo se mate ningueacutem em nome dela ateacute que o barco

enviado a Delos retorne ao seu ponto de partida E quando eventualmente ventos

contraacuterios deteacutem a tripulaccedilatildeo o que ocorre [58c] agraves vezes a viagem demora bastante A

missatildeo tem iniacutecio depois que o sacerdote de Apolo cobre a popa do navio e como eu

disse por coincidecircncia isso aconteceu bem na veacutespera do julgamento Eacute por essa razatildeo

que Soacutecrates passou muito tempo na prisatildeo entre o dia do julgamento e a ocasiatildeo de sua

morte

EQUEacuteCRATES E sobre a morte dele precisamente Feacutedon O que se disse e o que se

fez e quais de seus amigos estiveram com ele Ou os magistrados natildeo permitiram que

estivessem presentes e ele acabou morrendo longe dos amigos

[58d] FEacuteDON De forma alguma Natildeo apenas alguns na verdade muitos estiveram

presentes

EQUEacuteCRATES Entatildeo a menos que vocecirc esteja ocupado empenhe-se para nos

informar tudo com a maior clareza possiacutevel

235

FEacuteDON Natildeo estou ocupado e desejo descrever para vocecircs como ocorreu ateacute porque

lembrar de Soacutecrates sempre me daacute o maior prazer seja quando eu mesmo falo ou

quando escuto algueacutem falando sobre ele

EQUEacuteCRATES Mas certamente Feacutedon estes que iratildeo te escutar natildeo satildeo diferentes

Portanto tente relatar tudo com a maacutexima precisatildeo

[58e] FEacuteDON Eu realmente tive uma experiecircncia paradoxal estando ao seu lado

naquela ocasiatildeo pois natildeo fui tomado de compaixatildeo enquanto presenciava a morte de

um amigo O fato eacute que ele me parecia feliz Equeacutecrates tanto pela sua conduta quanto

pelas suas palavras tatildeo destemida e nobre a maneira como morreu Por essa razatildeo ateacute

me passou pela cabeccedila que embora estivesse indo para o Hades ele ia na [59a]

companhia de uma Moira Divina e que ao chegar ali estaria bem se eacute que algueacutem jaacute

experimentou isso Por isso mesmo natildeo fui tomado de forte compaixatildeo o que

pareceria natural ao se presenciar tal sofrimento tampouco senti prazer como aquele a

que estamos acostumados quando nos envolvemos com filosofia ndash de fato nossas

conversas foram dessa natureza Todavia eu experimentei um sentimento atiacutepico uma

estranha mescla de prazer e dor ao me dar conta de que ele estava prestes a morrer logo

mais E todos noacutes ali presentes tiacutenhamos semelhante disposiccedilatildeo de acircnimo ora rindo ora

chorando embora um dentre noacutes se destacasse

[59b] Apolodoro ndash vocecirc certamente conhece o indiviacuteduo e o seu jeito de ser

EQUEacuteCRATES Como natildeo

236

FEacuteDON Pois bem ele estava no limite dessa disposiccedilatildeo e eu mesmo fiquei abalado

assim como os demais

EQUEacuteCRATES Quem por acaso esteva ali presente Feacutedon

FEacuteDON Dentre os locais estavam Apolodoro como acabei de dizer Critoacutebulo e seu

pai Hermoacutegenes Epiacutegenes Eacutesquines e Antiacutestenes estavam tambeacutem Ctesipo do demo

Peacircnia Menecircxeno e alguns outros locais Platatildeo creio eu estava doente

EQUEacuteCRATES E havia alguns estrangeiros

[59c] FEacuteDON Sim Siacutemias de Tebas Cebes e Fedondes estavam laacute e de Meacutegara

Euclides e Teacutercio

EQUEacuteCRATES Quem mais Aristipo e Cleocircmbroto tambeacutem estavam presentes

FEacuteDON Com certeza natildeo Disseram que eles estavam em Egina

EQUEacuteCRATES Algueacutem mais estava presente

FEacuteDON Acho que eram basicamente esses todos os presentes

EQUEacuteCRATES Agora entatildeo poderia me falar sobre as conversas que tiveram

[59d] FEacuteDON Eu tentarei lhe descrever tudo desde o iniacutecio Nos dias que precederam a

sua morte eu e os demais amigos costumaacutevamos visitar Soacutecrates diariamente Como o

Tribunal onde ocorreu o julgamento fica perto da prisatildeo noacutes nos encontraacutevamos ali

bem cedo e todos os dias aguardaacutevamos que a prisatildeo fosse aberta Enquanto isso

ficaacutevamos conversando uns com os outros pois a prisatildeo natildeo abria cedo Mas assim que

abria entraacutevamos para ficar com Soacutecrates e

237

[59e] quase sempre passaacutevamos o dia todo com ele E naquela ocasiatildeo nos reunimos

mais cedo pois no dia anterior quando saiacutemos da prisatildeo ao anoitecer tomamos

conhecimento de que o barco havia chegado de Delos Entatildeo combinamos de chegar no

dia seguinte o mais cedo possiacutevel no lugar de costume o que de fato aconteceu

Chegamos e o porteiro que costumava nos receber saiu ao nosso encontro para nos pedir

que aguardaacutessemos e natildeo entraacutessemos ateacute que ele mesmo nos autorizasse ldquoEacute que os

Onzerdquo disse ele ldquoestatildeo liberando Soacutecrates das correntes e notificando que ele haacute morrer

naquele mesmo diardquo Mas natildeo demorou muito ateacute que ele voltasse para nos autorizar a

[60a] entrada Em seguida entramos e nos deparamos com Soacutecrates jaacute solto das

corrrentes e Xantipa que vocecirc conhece segurando seu filho e sentada ao seu lado E

assim que Xantipa nos viu comeccedilou a gritar e a falar aquele tipo de coisa que as

mulheres costumam dizer ldquoSoacutecrates esta eacute a uacuteltima vez que seus amigos se dirigem a

vocecirc e vocecirc a elesrdquo Entatildeo Soacutecrates olhou para Criacuteton e lhe disse ldquoCriacuteton que algueacutem

a leve para casardquo

Parte do pessoal que acompanhava Criacuteton tirou a mulher dali enquanto ela

gritava e [60b] batia no peito Soacutecrates por sua vez sentando-se na cama dobrou a

perna e comeccedilou a esfregaacute-la com a matildeo e enquanto esfregava disse ldquoQuatildeo estranho

amigos parece ser aquilo que as pessoas chamam de prazer Quatildeo surpreendente eacute sua

relaccedilatildeo natural com o que parece ser o seu oposto a dor Ambos se recusam a

permanecer ao mesmo tempo num indiviacuteduo mas se algueacutem busca e captura um deles eacute

238

quase sempre forccedilado a capturar tambeacutem o outro como se [60c] estivessem unidos por

uma soacute cabeccedila embora sendo duas coisas distintas E me parece querdquo disse ele ldquose

Esopo tivesse refletido sobre eles teria composto uma faacutebula em que um deus

desejando reconciliar a ambos que viviam em guerra mas natildeo sendo capaz resolveu

unir a cabeccedila deles em uma soacute Por esse motivo se um deles se fizer presente em

algueacutem o outro vem em seguida Eacute o que parece acontecer comigo quando

acorrentado sentia dor na perna retiradas as correntes o prazer jaacute veio logo em

seguidardquo

Cebes o interrompeu e lhe disse ldquoPor Zeus Soacutecrates fez bem demais em

recordar-me [60d] Muitos jaacute me perguntaram sobre os poemas que vocecirc fez

versificando as obras de Esopo e sobre o proecircmio a Apolo Anteontem o proacuteprio

Eveno me perguntou o que deu na sua cabeccedila para comeccedilar essa atividade soacute depois que

veio para a prisatildeo uma vez que nunca havia se ocupado com isso antes Se tiver

interesse que eu decirc uma resposta a Eveno quando ele voltar a me perguntar porque sei

que ele iraacute me perguntar novamente diga-me o que devo lhe dizerrdquo

[60e] ldquoSimples Cebesrdquo respondeu ldquodiga-lhe a verdade que natildeo compus

poemas querendo tornar-me seu rival ou de suas poesias pois sabia que natildeo seria faacutecil

mas para tentar entender o sentido de certos sonhos e cumprir meu dever religioso no

caso de ser essa a muacutesica que os sonhos me orientavam a compor Deixe-me explicar

tive o mesmo sonho ao longo de toda a minha vida e apesar de cada vez aparecer sob

239

um aspecto diferente dizia sempre a mesma coisa ldquoSoacutecratesrdquo dizia ldquocomponha e

trabalha a muacutesicardquo Antes eu pensava que o sonho estava me exortando e me

incentivando a fazer exatamente aquilo que eu jaacute vinha fazendo assim como quem

incentiva os corredores da mesma maneira o sonho me incentiva a fazer exatamente

aquilo que eu jaacute vinha fazendo ou seja compor muacutesica uma vez que a filosofia era a

mais excelsa muacutesica e que era isso o que eu fazia No entanto [61a] depois que

ocorreu o julgamento e a festa do deus adiou a minha morte pareceu-me conveniente

que se o sonho estivesse recorrentemente me ordenando compor muacutesica no sentido

popular eu natildeo lhe desobedecesse mas comeccedilasse a compocirc-la Pois pareceu-me mais

seguro partir somente depois de ter cumprido [61b] meu dever religioso compondo

poemas em obediecircncia ao sonho Foi assim que em primeiro lugar eu compus um

poema dedicado ao deus da festa em curso Mas depois desse poema ao deus passei a

refletir que o poeta quando se propotildee a ser poeta deve compor mitos e natildeo

argumentos E como eu natildeo sou inventor de mitos peguei os que estavam agrave minha

disposiccedilatildeo e jaacute conhecia de antematildeo os mitos de Esopo e dei forma poeacutetica agravequeles

com os quais primeiro me deparei Portanto Cebes explica tudo isso a Eveno tambeacutem

lhe diga que [61c] passe bem e que se for sensato venha a ser meu seguidor o mais

raacutepido possiacutevel Parto hoje ao que parece pois assim ordenam os ateniensesrdquo

240

Entatildeo Siacutemias disse ldquoque tipo de apelo eacute esse que faz a Eveno Soacutecrates Eu jaacute

me encontrei com ele diversas vezes e estou bem certo pelo que percebi que de modo

algum ele atenderaacute de bom grado ao seu apelordquo

ldquoComo natildeordquo disse ele ldquoEveno natildeo eacute filoacutesofordquo

ldquoParece-me que simrdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo Eveno desejeraacute atender ao meu apelo e qualquer um que desempenha

essa atividade com dignidade Contudo natildeo praticaraacute talvez violecircncia contra si

mesmo pois dizem [61d] que isso eacute iliacutecitordquo E enquanto dizia essas coisas colocou os

peacutes no chatildeo e sentado nesta posiccedilatildeo continuou o resto da conversa

Cebes entatildeo perguntou-lhe ldquoComo vocecirc pode dizer Soacutecrates que eacute iliacutecito

praticar violecircncia contra si mesmo e que o filoacutesofo desejaria seguir algueacutem que estaacute

morrendordquo

ldquoO quecirc Cebes Vocecirc e Siacutemias natildeo ouviram falar sobre esse assunto em seu

conviacutevio com Filolaurdquo

ldquoNada com clareza Soacutecratesrdquo

ldquoNa verdade eu tambeacutem falo desse assunto com base em coisas que ouvi falar

[61e] poreacutem nada me impede de dizer o que chegou aos meus ouvidos A propoacutesito

talvez o mais conveniente a quem estaacute prestes a viajar para o aleacutem seja mesmo examinar

a fundo e contar os mitos sobre essa viagem de que tipo acreditamos que ela seja Pois

que outra coisa fariacuteamos no tempo que nos resta ateacute o pocircr do solrdquo

241

ldquoEntatildeo por que razatildeo afirmam que eacute iliacutecito matar a si mesmo Soacutecrates Pois eu

mesmo ainda respondendo agravequela sua pergunta jaacute ouvi de Filolau quando ele convivia

conosco e tambeacutem de alguns outros que natildeo se deve fazer isso Mas nunca ouvi

algueacutem falar algo sobre esse assunto com clarezardquo

[62a] ldquoTenha acircnimordquo disse ldquopois de repente vocecirc poderaacute ouvir Contudo talvez

vocecirc se surpreenda por essa ser a uacutenica questatildeo simples entre as outras a qual nunca

ocorre a algueacutem como as demais que haacute ocasiatildeo em que para algumas pessoas melhor

seria estar morto do que viver vocecirc se surpreenderia se para essas pessoas ndash a quem

seria melhor estar morto ndash fosse iacutempio fazer um bem a si mesmas mas tivessem de

esperar por outro benfeitorrdquo

Cebes riu discretamente e lhe disse ldquoQue Zeus seja a minha testemunhardquo

falando em seu proacuteprio dialeto

[62b] ldquoA questatildeo ficaria sem sentidordquo disse Soacutecrates ldquopelo menos posta dessa

forma todavia eacute provaacutevel que tenha algum sentido A propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e

que ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendar Poreacutem Cebes acho que uma coisa estaacute bem

colocada que satildeo os deuses que cuidam de noacutes e que noacutes seres humanos somos um

propriedade dos deuses Vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoPenso simrdquo disse Cebes

242

[62c] ldquoPois entatildeordquo disse ele ldquose acaso um de seus bens viesse a matar a si

mesmo sem que vocecirc tivesse dado sinal de que o queria morto acaso natildeo se exasperaria

com ele e se pudesse lhe aplicaria uma puniccedilatildeo

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoSendo assim talvez tenha algum sentido a proibiccedilatildeo de tirarmos a proacutepria vida

sem que antes um deus nos imponha uma necessidade tal como a que agora estaacute diante

de noacutesrdquo

[62d] ldquoPelo menos isso parece plausiacutevelrdquo disse Cebes ldquoMas o que vocecirc disse haacute

pouco ndash que os filoacutesofos desejariam prontamente morrer ndash parece absurdo se o que

dissemos for razoaacutevel que o deus eacute quem cuida de noacutes e que noacutes somos seus bens Pois

natildeo faz sentido dizer que as pessoas mais sensatas natildeo deveriam ficar irritadas ao

perderem um cuidado administrado pelos mais nobres seres que existem ndash os deuses

Presumo que pelo menos uma pessoa sensata natildeo [62e] pensaria que poderia cuidar

melhor de si mesmo depois de libertar-se Soacute uma pessoa insensata talvez pensasse que

deveria fugir de seu dono pois natildeo raciocinaria que em vez de fugir de um senhor

beneacutevolo deveria antes permanecer atrelada a ele o maacuteximo possiacutevel Por esse motivo

sua fuga seria irrefletida Uma pessoa sensata por sua vez desejaria permanecer para

sempre ao lado de quem eacute melhor do que ela Portanto Soacutecrates o mais plausiacutevel eacute o

contraacuterio do que dissemos conveacutem que as pessoas sensatas se irritem por morrer e que

as insensatas se alegremrdquo

243

[63a] Ao ouvir isso Soacutecrates me parecia se contentar com a persistecircncia de

Cebes E olhando para noacutes disse ldquoCebes estaacute mesmo sempre perscrutando os

argumentos e natildeo se deixa persuadir pela primeira coisa que algueacutem venha a lhe dizerrdquo

E Siacutemias disse ldquoCom efeito Soacutecrates parece-me que agora algo faz sentido no

que Cebes estaacute dizendo com que motivaccedilatildeo homens verdadeiramente saacutebios fugiriam

de donos que satildeo melhores do que eles e os deixariam facilmente Parece-me que

Cebes em sua fala referia-se diretamente a vocecirc que aceita sem dificuldade

abandonar tanto a noacutes quanto aos beneacutevolos governantes os deuses como vocecirc mesmo

reconhecerdquo

[63b] ldquoEacute justo o que vocecircs falamrdquo disse ldquoE acho que vocecircs estatildeo dizendo que

eu devo me defender de seus questionamentos como se estiveacutessemos num tribunalrdquo

ldquoCertamenterdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo vamos em frenterdquo disse ele ldquoQue eu tente me defender perante vocecircs

de modo mais convincente do que perante os meus juiacutezes Siacutemias e Cebesrdquo disse ldquose

eu natildeo pensasse que em primeiro lugar eu me juntaria a outros deuses saacutebios e bons e

depois a pessoas mortas [63c] que satildeo melhores do que as daqui seria injusto se eu natildeo

me irritasse por morrer Todavia estejam certos de que eu espero me juntar a homens

bons embora natildeo insista muito nisso no entanto que eu espero me juntar a deuses

senhores absolutamente bons estejam certos de que se haacute algo que eu asseguraria seria

isso Eacute por esse motivo que natildeo me irrito como aconteceria se natildeo fosse assim mas

244

tenho uma boa expectativa de que haja algo reservado para os mortos Pelo menos o que

se diz haacute muito tempo eacute que haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para

os mausrdquo

[63d] ldquoMas entatildeo Soacutecratesrdquo perguntou Siacutemias ldquovocecirc vai partir com esse

pensamento em sua cabeccedila ou vai compartilhaacute-lo conosco Pois me parece que ele eacute

mesmo um bem comum a todos noacutes e ao mesmo tempo serviraacute como sua defesa caso

venha a nos persuadir do que estaacute dizendordquo

ldquoTentarei fazecirc-lordquo disse ldquomas antes vejamos o que eacute isso que o nosso amigo

Criacuteton estaacute aparentemente querendo dizer jaacute haacute algum tempordquo

ldquoQue mais poderia ser Soacutecratesrdquo questionou Criacuteton ldquoHaacute algum tempo o

homem que vai lhe ministrar o veneno tem me dito que eu devo te orientar a falar o

miacutenimo possiacutevel Segundo ele a temperatura corporal sobe quando as pessoas estatildeo

conversando e isso deve ser [63e] evitado na aplicaccedilatildeo do veneno Haacute casos em que a

pessoa natildeo segue essa orientaccedilatildeo e eacute obrigada a tomar o veneno duas ou trecircs vezesrdquo

ldquoMande-o passearrdquo disse Soacutecrates ldquoEle que prepare uma duas ou ateacute trecircs doses

se for necessaacuterio eacute o trabalho delerdquo

ldquoJaacute adivinhava a sua respostardquo disse Criacuteton ldquomas eacute que haacute tempo ele me

perturba com issordquo

245

ldquoEsqueccedila-ordquo disse ldquoMas para vocecircs meus juiacutezes quero agora oferecer a

explicaccedilatildeo de como me parece plausiacutevel que um homem que dedicou de fato sua vida agrave

filosofia esteja confiante em face da morte iminente e tenha uma boa

[64a] expectativa de que receberaacute as maiores benesses no aleacutem quando morrer Como

isso pode ser Siacutemias e Cebes eu tentarei lhes explicarrdquo

ldquoTodos que se entregam corretamente agrave filosofia correm o risco de as demais

pessoas natildeo perceberem que eles se dedicam a morrer e estar morto e nada mais do que

isso Portanto caso isso seja verdade suponho que seria um absurdo almejar

exclusivamente isso durante uma vida inteira e afinal irritar-se por justamente ter

alcanccedilado aquilo que se desejou e se praticou por longo tempordquo

[64b] Siacutemias riu e disse ldquopor Zeus Soacutecrates agora vocecirc me fez rir embora hoje

eu natildeo esteja para brincadeira Pois acho que se a maioria das pessoas ouvisse isso daiacute

pensaria que se aplica bem aos filoacutesofos E nossos conterracircneos concordariam com eles

de que os filoacutesofos desejam a morte e eles perceberiam que isso mesmo que merecemrdquo

ldquoMas eles estariam dizendo a verdade Siacutemias com exceccedilatildeo de que natildeo deixam

de notar Pois eles natildeo notam qual eacute o sentido em que os verdadeiros filoacutesofos desejam

morrer e merecem morrer e o tipo de morte em questatildeo Conversemos sobre isso

apenas entre noacutesrdquo disse ldquoe [64c] mandemos essa maioria passear Consideramos que a

morte eacute alguma coisardquo

ldquoCom certezardquo disse Siacutemias em sua resposta

246

ldquoAcaso natildeo seria outra coisa senatildeo a separaccedilatildeo da alma do corpo E estar morto

natildeo seria isto o corpo apartado da alma passar a estar sozinho ele por si mesmo

enquanto a alma apartada do corpo passar a estar sozinha ela por si mesma A morte

seria outra coisa senatildeo isso

ldquoNatildeo eacute isso mesmordquo disse

[64d] ldquoObserve agora meu amigo se vocecirc tem a mesma visatildeo que eu tenho

Pois acredito que eacute a partir disso que vamos conhecer melhor o que propomos examinar

Vocecirc acha que o filoacutesofo se preocupa com aquilo que chamam de prazeres tais como os

de comer e beber

ldquoMinimamente Soacutecratesrdquo respondeu Siacutemias

ldquoE com o prazer sexualrdquo

ldquoDe modo algumrdquo

ldquoE quanto agraves demais diligecircncias relativas ao corpo Vocecirc acha que algueacutem como

um [64e] filoacutesofo daria valor a essas coisas Por exemplo a posse de vestes e calccedilados

de luxo e outros objetos que embelezam o corpo vocecirc acha que valorizaria ou

desprezaria essas coisas a menos que fosse realmente necessaacuterio se envolver com elas

ldquoEu acho que as desprezariardquo respondeu ldquopelo menos o filoacutesofo de verdaderdquo

ldquoEntatildeo vocecirc natildeo acha que em sumardquo perguntou ldquoa preocupaccedilatildeo de algueacutem

assim natildeo recairia sobre o corpo mas se voltaria para na medida do possiacutevel libertar-se

dele e inclinar-se para a almardquo

247

ldquoSim eu achordquo

ldquoEm primeiro lugar natildeo fica claro que em questotildees dessa natureza o[65a] filoacutesofo

busca desvincular o maacuteximo possiacutevel a sua alma da comunhatildeo com seu corpo

diferentemente das demais pessoas

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoDe fato a maioria das pessoas presume Siacutemias que o indiviacuteduo para quem

nada disso eacute apraziacutevel e que natildeo toma parte nessas coisas que mencionei natildeo merece

viver para essa maioria quem natildeo tem qualquer interesse nas coisas que se obteacutem por

meio do corpo estaacute agrave beira da morterdquo

ldquoEacute bem verdade o que vocecirc falardquo

ldquoE o que dizer sobre a aquisiccedilatildeo da proacutepria sabedoria O corpo seria ou [65b]

natildeo um obstaacuteculo caso algueacutem o tomasse como um parceiro na investigaccedilatildeo Estou

perguntando aproximadamente o seguinte visatildeo e audiccedilatildeo captam alguma verdade para

as pessoas ou os poetas tecircm razatildeo em estar sempre repetindo para noacutes aquela ladainha

de que nada ouvimos ou vemos com precisatildeo E se de fato esses sentidos do corpo natildeo

tecircm precisatildeo nem clareza dificilmente os demais teriam pois satildeo todos inferiores a

esses dois presumo eu Vocecirc tambeacutem natildeo achardquo

ldquoCom certezardquo disse

248

ldquoEntatildeordquo disse ele ldquoquando a alma alcanccedila a verdade Pois sempre que busca

examinar algo em companhia do corpo fica claro que nessas circunstacircncias eacute enganada

por elerdquo

[65c] ldquoVocecirc estaacute falando a verdaderdquo

ldquoPortanto natildeo seria porventura no ato de raciocinar e natildeo de outro modo que as

coisas que satildeo se mostram com clareza para a almardquo

ldquoSimrdquo

ldquoA alma raciocina melhor suponho eu quando nenhuma dessas coisas seja

audiccedilatildeo visatildeo dor ou algum prazer vier a perturbaacute-la mas mandando o corpo passear

ficar o maacuteximo possiacutevel sozinha ndash ela por si mesma ndash e mantendo-se o quanto puder

livre de comunhatildeo e contato com o corpo busca alcanccedilar aquilo que eacute

ldquoEacute assim mesmordquo

ldquoNatildeo eacute tambeacutem nessa ocasiatildeo que a alma do filoacutesofo despreza o corpo e [65d]

foge dele em busca de ficar sozinha ndash ela por si mesmardquo

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoE sobre a seguinte questatildeo Siacutemias afirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo

ldquoPor Zeus claro que simrdquo

ldquoE tambeacutem um belo e um bomrdquo

ldquoComo natildeordquo

249

ldquoE alguma vez vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo

ldquoDe modo algumrdquo disse

ldquoE vocecirc jaacute alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por

meio do corpo Eu estou falando de todas as coisas como grandeza sauacutede [65e] forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacute Por acaso

eacute por meio do corpo que se pode contemplar a absoluta verdade delas ou eacute somente

aquele que se puser a pensar com rigor e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber

cada coisa em si que poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Certamente

Entatildeo natildeo faria isso da maneira mais pura aquele que por meio do proacuteprio

pensamento [66a] chegasse na medida do possiacutevel a cada coisa sem comprometer o

pensamento com a visatildeo e sem deixar que o raciociacutenio seja acompanhado por algum

outro sentido mas utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura natildeo

tentaria perseguir cada uma das coisas que satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura

depois de afastar-se na medida do possiacutevel dos olhos dos ouvidos e por assim dizer do

corpo inteiro uma vez que quando o corpo entra em comunhatildeo com a alma ele

atrapalha e impede a alma de apoderar-se da verdade e da sabedoria Natildeo seria assim

Siacutemias que essa pessoa alcanccedilaria a coisa que eacuterdquo

ldquoGrande verdaderdquo disse Siacutemias ldquoo que vocecirc estaacute dizendo Soacutecratesrdquo

250

[66b] ldquoPor causa de tudo issordquo disse ldquoeacute necessaacuterio que os legiacutetimos filoacutesofos

partilhem um tipo de crenccedila que deixam transparecer no teor de conversas como esta ldquoeacute

possiacutevel que haja um tipo de atalho que nos conduza em companhia da razatildeo na

investigaccedilatildeo porque enquanto [66c] tivermos o corpo e a nossa alma estiver em

conexatildeo com esse mau jamais possuiremos de modo satisfatoacuterio aquilo que almejamos

e costumamos chamar de verdade Pois o corpo nos daacute muito trabalho na medida em

que necessita de nutriccedilatildeo aleacutem disso algumas doenccedilas nos impedem de caccedilar a coisa

que eacute quando nos acometem Ele nos enche de desejos eroacuteticos apetites temores

fantasias de todo tipo e muita futilidade a ponto de ser plenamente verdadeiro o que se

costuma dizer o corpo natildeo nos daacute chance de pensar em algo em momento algum

Guerras revoltas lutas tudo isso eacute produzido tatildeo somente pelo corpo e seus apetites

pois eacute a [66d] aquisiccedilatildeo de riquezas que origina as guerras e eacute o corpo que nos forccedila a

adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircncia Por todas essas razotildees eacute

devido ao corpo que natildeo temos tempo de fazer da filosofia a nossa ocupaccedilatildeo E o pior

de tudo eacute que se tivermos uma folga dele e nos voltarmos a examinar algo o corpo

novamente se intromete em cada etapa de nossa investigaccedilatildeo com o distuacuterbio e a

perturbaccedilatildeo que produz e nos aturde de tal modo que natildeo podemos contemplar a

verdade por causa dele Todavia jaacute estaacute demonstrado por noacutes que se [66e] acaso

pudermos chegar a um conhecimento puro de algo devemos nos separar do corpo e

observar as coisas por si mesmas com a alma por si mesma Como parece soacute teremos

251

aquilo que desejamos e dizemos ser amantes a sabedoria por ocasiatildeo de nossa morte

como o argumento daacute a entender e natildeo enquanto estivermos vivos Pois se natildeo eacute

possiacutevel obter um conhecimento puro de algo enquanto houver a companhia do corpo

das duas uma ou natildeo haacute como obter esse conhecimento ou isso soacute seraacute possiacutevel depois

da morte pois essa eacute a uacutenica ocasiatildeo em que a [67a] alma fica ela proacutepria por si mesma

separada do corpo ao passo que antes de morrer isso natildeo acontece E durante a vida

como parece ficaremos o quanto mais proacuteximo do conhecimento se evitarmos ao

maacuteximo interaccedilatildeo e comunhatildeo com o corpo exceto quando absolutamente necessaacuterio e

natildeo nos infectarmos com a sua natureza mas nos purificarmos dele ateacute que o proacuteprio

deus nos liberte Se dessa maneira nos preservarmos puros e nos desvencilharmos da

insensatez do corpo estaremos presumivelmente na companhia de outros que satildeo como

noacutes e [67b] conheceremos por noacutes mesmos tudo que eacute sem mistura e isso suponho eu

eacute a verdade Pois natildeo eacute liacutecito que o impuro alcance o purordquo Eu acho que eacute esse tipo de

coisa Siacutemias que eacute necessaacuterio os verdadeiros amantes do conhecimento pensarem e

partilharem entre si Ou vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoMais do que qualquer coisa Soacutecratesrdquo

ldquoPortantordquo disse Soacutecrates ldquose tudo isso for verdade amigo haacute uma grande

esperanccedila para quem chega ao lugar para onde me dirijo agora de que ali mais do que

em qualquer outro [67c] lugar iraacute adquirir plenamente tudo aquilo que buscamos com

bastante afinco no decorrer da vida Assim a jornada que me eacute imposta agora se mostra

252

atrelada a uma boa esperanccedila e o mesmo se daacute para qualquer pessoa que considera seu

pensamento preparado como se estivesse purificadordquo

Certamente disse Siacutemias

ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o

quanto possiacutevel a alma do corpo e acostumaacute-la ela proacutepria por si mesma a concentrar-se

e recolher-se apartada de cada membro do corpo e a viver o maacuteximo possiacutevel ela

proacutepria por si mesma tanto [67d] agora como no porvir liberta do corpo como que

liberta de cadeias

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoE acaso natildeo eacute justamente isto que se chama morte libertaccedilatildeo e separaccedilatildeo da

alma do corpordquo

ldquoSem duacutevidardquo disse

ldquoEntatildeo como dizemos satildeo apenas aqueles que praticam filosofia corretamente

que estatildeo sempre ansiosos para liberar a alma E a ocupaccedilatildeo dos filoacutesofos natildeo seria

justamente isto natildeo eacute uma liberaccedilatildeo e uma separaccedilatildeo da alma do corpo Ou natildeo eacute

ldquoEvidente que eacuterdquo

[67e] ldquoE acaso natildeo viraria uma piada como eu dizia no iniacutecio um homem que

se irrita com a chegada da morte depois de passar a vida inteira treinando para estar o

quanto mais perto delardquo

ldquoUma piada com certezardquo

253

ldquoPortanto Siacutemiasrdquo disse ldquoos que filosofam apropriadamente se exercitam em

morrer e satildeo as uacuteltimas pessoas a temer a morte Examina a questatildeo com base no que

vou dizer Se esses filoacutesofos estatildeo em completa desavenccedila com o corpo e desejam que a

alma esteja sozinha por si [68a] mesma e se na hora de tudo isso acontecer eles

passassem a temer e a irritar-se natildeo seria totalmente sem sentido que se dirigissem a

contragosto para o lugar onde em sua chegada esperam encontrar o que amaram a vida

inteira ndash a sabedoria ndash e onde esperam se livrar da convivecircncia com o que estavam em

desavenccedila Porventura natildeo haacute muitos homens que na [68b] ocasiatildeo da morte de

pessoas queridas tais como efebos esposas e filhos desejam voluntariamente partir com

elas para o Hades levados pela esperanccedila de ali ver e conviver com seus entes

queridos Natildeo seria o mesmo caso de uma pessoa que ama a sabedoria e manteacutem

fortemente essa msma esperanccedila ndash de ter em nenhum algum a natildeo ser no Hades um

encontro digno com ela Acaso essa pessoa se irritaria ao morrer e se encaminharia a

contragosto para o Hades Longe disso meu amigo se for realmente um filoacutesofo pois

ele susteraacute firmemente a opiniatildeo de que em nenhum algum a natildeo ser no Hades ele teraacute

um encontro puro com a sabedoria Se tudo isso for realmente assim volto a questionar

natildeo eacute completamente sem sentido que uma pessoa desse tipo venha a temer a morterdquo

ldquoTotalmente sem sentido por Zeusrdquo disse

ldquoEntatildeordquo disse ldquoquando vocecirc vir uma pessoa irritada porque estaacute prestes a

morrer vocecirc [68c] natildeo teraacute uma prova suficiente de que natildeo se trata de um filoacutesofo

254

mas de um amante do corpo Suponho que essa pessoa seja amante do dinheiro ou

amante da honra ou de ambas as coisasrdquo

ldquoEacute exatamente como vocecirc estaacute falandordquo disse

ldquoAcaso Siacutemiasrdquo perguntou ldquoa chamada coragem natildeo pertence especialmente

agravequeles que tecircm tal disposiccedilatildeordquo

ldquoNatildeo resta duacutevidardquo disse

ldquoE quanto agrave temperanccedila nome empregado ateacute mesmo pela maioria dos homens

a qual consiste em natildeo ser instigado pelos apetites em atitude de desprezo e

comedimento Acaso natildeo pertence exclusivamente a essas pessoas que desprezam

sobretudo o corpo e vivem dedicados agrave filosofia

[68d] ldquoNecessariamenterdquo disse

ldquoPoisrdquo disse ele ldquose vocecirc quiser pensar na coragem e na temperanccedila das demais

pessoas vai se deparar com algo sem sentidordquo

ldquoComo assim Soacutecratesrdquo

ldquoVocecirc natildeo saberdquo perguntou ldquoque todas essas pessoas consideram a morte como

sendo um dos grandes males

ldquoClaro que seirdquo disse

Entatildeo eacute por medo de males maiores que os corajosos encaram a morte quando a

tem de encarar

Isso mesmo

255

Se for assim o pacircnico e o medo tornam as pessoas corajosas com exceccedilatildeo dos

filoacutesofos Contudo eacute absurdo que medo e covardia tornem algueacutem corajoso

[68e] Completamente

E o que dizer dos que entre elas satildeo temperantes Natildeo lhes ocorre o mesmo

uma intemperanccedila os torna temperantes Podemos ateacute dizer que eacute impossiacutevel mas o que

lhes ocorre eacute o mesmo que se passa com os que possuem essa simploacuteria temperanccedila

porque temem ser privados dos diversos prazeres que desejam absteacutem-se de alguns

apenas quando se rendem a outros E ainda que chamem de intemperanccedila o ser

controlado pelos prazeres o que ocorre eacute que [69a] controlam certos prazeres apenas

quando se rendem a outros Eacute aquilo que eu acabei de dizer de um certo modo eacute por

causa da intemperanccedila que elas tecircm se tornado temperantes

Eacute o que parece

Meu querido Siacutemias no tocante agrave virtude natildeo seria uma transaccedilatildeo vaacutelida trocar

prazeres por prazeres dores por dores temor por temor e superior por inferior como se

fossem dinheiro porque a uacutenica moeda vaacutelida pela qual se deveria trocar todas essas

coisas seria o conhecimento Mediante essa moeda ndash o conhecimento ndash seria possiacutevel

realizar transaccedilotildees de [69b] compra e venda de coragem temperanccedila justiccedila e em

suma de toda verdadeira virtude sendo irrelevante a adiccedilatildeo ou subtraccedilatildeo de prazeres

temores e outras coisas desse tipo Se essas coisas satildeo separadas do conhecimento e

trocadas umas pelas outras esse tipo de virtude seria enganosa proacutepria de escravos sem

256

qualquer valor ou verdade inerente Mas a verdade realmente seria que a temperanccedila a

justiccedila e a coragem satildeo um tipo de purificaccedilatildeo de todas as coisas desse [69c] tipo

sendo o proacuteprio conhecimento um rito de purificaccedilatildeo E eacute improvaacutevel que os fundadores

dos misteacuterios que seguimos eram pessoas mediacuteocres Na realidade desde tempos tardios

eles tecircm dito em linguagem enigmaacutetica que todo natildeo iniciado e descumpridor dos ritos

jazeraacute na lama quando adentrar o Hades enquanto o purificado e iniciado que ali

chegam habitaratildeo com os deuses Pois eacute fato que como dizem os que celebram os ritos

muitos carregam o tirso mas [69d] poucos satildeo bacantes E estes satildeo na minha opiniatildeo

os que se ocupam corretamente da filosofia Eu desejei me tornar um deles de toda

maneira empreguei toda a minha forccedila nunca desperdiccedilando uma oportunidade de

minha vida Se desejei a coisa certa e alcancei o alvo saberei quando chegar ao aleacutem

dentro em breve se a divindade assim desejar conforme eu penso Portanto Siacutemias e

Cebes disse ele nisso consiste a minha defesa de quatildeo [69e] natural eacute que eu os esteja

deixando e tambeacutem os senhores aqui presentes sem anguacutestia ou irritaccedilatildeo pois

considero que laacute mais do que aqui encontrarei bons senhores e companheiros Para

muitos forneccedilo uma defesa sem credibilidade Portanto se para vocecircs eu estivesse

sendo mais persuasivo na minha defesa do que eu fui para os juiacutezes de Atenas eu jaacute me

daria por satisfeito

Depois que Soacutecrates falou essas coisas Cebes interveio e disse Soacutecrates acho

que vocecirc [70a] falou muito bem mas quando o assunto eacute a alma vocecirc gera profunda

257

duacutevida nas pessoas Existe o receio de que ao separar-se do corpo a alma estaria em

nenhum lugar ela seria destruiacuteda e pereceria no exato dia da morte imediatamente

quando se separa do corpo e ao deixaacute-lo desapareceria logo depois de se dissipar como

vento e fumaccedila natildeo mais estando em nenhum lugar Se acaso estivesse em algum lugar

recolhida e sozinha separada dos males que haacute [70b] pouco vocecirc expocircs haveria uma

tremenda e bela esperanccedila Soacutecrates de que vocecirc fala a verdade Mas talvez essa

questatildeo de saber se a alma do ser humano existe depois da morte e possui alguma

capacidade e conhecimento requeira uma soacutelida persuasatildeo e feacute

Vocecirc diz a verdade Cebes respondeu Soacutecrates Mas o que faremos entatildeo

Gostaria de discutir sobre esse assunto para ver o que eacute ou natildeo plausiacutevel

Eu particularmente disse Cebes ouviria com prazer qualquer que fosse a tua

opiniatildeo sobre esse assunto

Eu realmente acho disse Soacutecrates que ningueacutem que ouviu essa nossa conversa

nem [70c] mesmo um comedioacutegrafo diria que dou uma de charlatatildeo com um discurso

descabido Se vocecirc estaacute de acordo devemos iniciar a investigaccedilatildeo

ARGUMENTO CIacuteCLICO

Examinemos a questatildeo da seguinte maneira se de algum modo as almas das

pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeo Existe um relato antigo o qual guardamos

258

na memoacuteria segundo o qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam

novamente para caacute provindo dos mortos Se realmente eacute verdade que os vivos provecircm

dos mortos que mais se poderia concluir [70d] senatildeo que as nossas almas estatildeo no

aleacutem Pois de modo algum as almas voltariam a reencarnar se jaacute natildeo existissem Essa

seria uma prova suficiente de que isso eacute verdade se realmente ficasse evidente que os

seres vivos provecircm exclusivamente dos mortos Mas se isso natildeo for verdade

precisamos de um novo argumento

Seguramente disse Cebes

Mas se vocecirc quiser compreender mais facilmente disse natildeo examine somente o

que se vincula ao ser humano mas considere tambeacutem todos os animais e plantas Em

suma considerando [70e] tudo o que tem uma geraccedilatildeo vejamos se todas essas coisas

satildeo geradas da seguinte maneira os opostos de seus opostos e de nenhum outro tudo

quanto apresenta uma relaccedilatildeo semelhante como o belo cujo oposto eacute o feio o justo

cujo oposto eacute o injusto e inuacutemeros outros exemplos como esses Portanto

examinaremos se tudo que tem um oposto eacute gerado necessariamente de seu oposto e de

nenhum outro Por exemplo algo que se torna maior natildeo se torna maior

necessariamente a partir de ter sido menor antes

Sim

[71a] E o que se torna menor natildeo eacute a partir de ser maior antes que depois

torna-se menor

259

Eacute assim mesmo disse

E a partir do forte o deacutebil e a partir do lento o raacutepido

Seguramente

E o inferior proveacutem do superior e o mais justo do mais injusto

Como natildeo

Temos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina dessa maneira as

coisas opostas a partir dos seus opostos

Seguramente

E o que mais Natildeo ocorre tambeacutem o seguinte em cada par de opostos jaacute que

satildeo dois [71b] opostos em cada caso existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo um do

primeiro para o segundo e outro do segundo para o primeiro Entre uma coisa maior e

uma menor natildeo haacute aumento e diminuiccedilatildeo e a isso chamamos de aumentar e diminuir

Sim disse

E tambeacutem separaccedilatildeo e uniatildeo resfriamento e aquecimento e assim por diante

Mesmo que natildeo tenhamos um nome para cada processo natildeo ocorre necessariamente o

mesmo em cada par de opostos isto eacute cada um proveacutem de outro havendo um processo

de geraccedilatildeo que vai de um para o outro

Seguramente disse

[71c] Existe entatildeo perguntou um oposto para o viver assim como estar

adormecido eacute oposto de estar acordado

260

Seguramente respondeu

E o que seria

Estar morto disse

Entatildeo cada um desses natildeo proveacutem a partir do outro jaacute que satildeo opostos E jaacute que

satildeo dois natildeo existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo entre ambos

Como natildeo

Eu te falarei um dos pares que eu mencionei haacute pouco disse Soacutecrates o proacuteprio

par e os seus processos de geraccedilatildeo Vocecirc em seguida me falaraacute o outro Eu estou

falando do estar dormindo e estar acordado e que o estar acordado proveacutem do estar

dormindo e o estar [71d] dormindo proveacutem do estar acordado e seus processos de

geraccedilatildeo satildeo cair no sono e despertar Isso eacute suficiente para vocecirc ou natildeo perguntou

Completamente

Agora vocecirc me diz do mesmo jeito falou no tocante agrave vida e agrave morte Vocecirc natildeo

concorda que estar vivo eacute o oposto de estar morto

Certamente

E que eles provecircm um do outro

Sim

O que eacute entatildeo que proveacutem do que estaacute vivo

O que estaacute morto respondeu

E o que disse do que estaacute morto

261

O que estaacute vivo devo concordar respondeu

Nesse caso eacute dos que estatildeo mortos Cebes que tanto as coisas quanto as pessoas

que vivem provecircm

[71e] Estaacute bem claro disse

Portanto as nossas almas estatildeo no Hades

Eacute o que parece

Certamente dos dois processos de geraccedilatildeo em questatildeo ao menos um deles eacute

bastante oacutebvio pois presumo que o morrer eacute obviamente um deles ou natildeo

Seguramente disse

O que entatildeo faremos Natildeo retribuiremos com o processo de geraccedilatildeo oposta pois

do jeito que estaacute a natureza ficaraacute capenga Ou natildeo seria necessaacuterio equilibrar o morrer

com o processo de geraccedilatildeo oposto

Sem duacutevida disse

E qual seria

O reviver

[72a] Entatildeo disse se de fato existe o reviver este natildeo seria a geraccedilatildeo a partir

dos que estatildeo mortos para os que estatildeo vivos

Seguramente

Portanto concordamos tambeacutem nisso os que estatildeo vivos provecircm dos que estatildeo

mortos natildeo menos do que os que estatildeo mortos provecircm dos que estatildeo vivos e essa me

262

parece uma prova suficiente de que as almas dos que estatildeo mortos necessariamente

existem em algum lugar de onde regressam agrave vida

Soacutecrates eu acho que disse com base no que foi acordado as coisas satildeo

necessariamente desse jeito

Cebes disse veja como em minha opiniatildeo nosso acordo natildeo eacute infundado se

nesse processo de geraccedilatildeo nem sempre um oposto retribuiacutesse o outro como perfazendo

um movimento [72b] circular mas o processo de geraccedilatildeo fosse linear indo apenas a

partir de um oposto para o outro sem que retornasse novamente para o primeiro

fazendo assim a trajetoacuteria reversa vocecirc natildeo sabe que todas as coisas ao final teriam a

mesma forma experimentariam uma mesma condiccedilatildeo e o processo de geraccedilatildeo

estancaria

Tem razatildeo falou

Natildeo eacute difiacutecil disse entender o que estou dizendo Por exemplo se houvesse o

adormecer sem um despertar correspondente proveniente do adormecer natildeo percebe

que tudo isso faria [72c] de Eudiacutemion um caso ordinaacuterio e sem repercussatildeo em nenhum

lugar pois tudo quedaria na mesma condiccedilatildeo que ele o dormir E se todas as coisas se

unissem mas natildeo se separassem logo ocorreria o dito de Anaxaacutegoras ldquotodas as coisas

juntasrdquo Da mesma maneira caro Cebes se tudo quanto participa da vida viesse a

morrer e as coisas mortas permanecessem na mesma forma depois de mortas sem

retornar de novo agrave vida acaso natildeo seria absolutamente necessaacuterio que ao [72d] final

263

tudo acabasse morto e nada vivo E se as coisas vivas nascessem a partir de outras

coisas vivas e as coisas vivas morrem o que as impediria de fenecer na morte

Acho que nada Soacutecrates disse Cebes Vocecirc fala a verdade sem omissatildeo

Para mim Cebes eacute exatamente assim E noacutes natildeo estamos enganados em

concordar nesse assunto pois realmente existe o reviver os vivos nascem dos mortos e

as almas dos mortos existem

ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA

[72e] Ainda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que vocecirc

ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute do que

reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no

passado as coisas que agora recordamos Mas isto seria impossiacutevel a menos que a nossa

alma existisse em algum lugar antes [73a] de assumir essa forma humana De modo

que tambeacutem de acordo com esse ensino a alma parece ser imortal

Mas Cebes Siacutemias questionou quais satildeo mesmo as provas de tudo isso

Recorda-me pois no momento natildeo me lembro bem

Consiste disse Cebes de um uacutenico e beliacutessimo argumento quando as pessoas

satildeo questionadas por algueacutem que lhes questiona bem elas respondem todas as coisas

com propriedade Mas se conhecimento e reta razatildeo jaacute natildeo estivessem internalizados

264

natildeo seriam [73b] capazes de fazer isso E quando algueacutem lhes mostra diagramas ou algo

desse tipo aiacute fica bem claro que as coisas satildeo mesmo assim

Mas se vocecirc Siacutemias natildeo estaacute convencido com esse argumento falou Soacutecrates

examina a questatildeo a partir de outro acircngulo e vecirc se compartilha do nosso pensamento

Pois vocecirc estaacute em duacutevida sobre como o aprendizado pode ser reminiscecircncia natildeo eacute isso

Natildeo tenho essa duacutevida respondeu Siacutemias Mas eu necessito experimentar esse

ensino ndash a reminiscecircncia Soacute pela tentativa de explanaccedilatildeo de Cebes jaacute recordo e me

convenccedilo mas o meu interesse de ouvir natildeo diminuiu

[73c] Veja o seguinte respondeu Soacutecrates Concordamos sem duacutevida que se

algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimento

Seguramente disse

Acaso natildeo concordamos tambeacutem que se o conhecimento adveacutem de uma forma

peculiar ocorre reminiscecircncia Explicarei que forma peculiar eacute essa Quando algueacutem

vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem

lhe vem agrave mente um segundo item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas

de um distinto do primeiro natildeo seria [73d] correto dizer que recordou esse segundo

item que lhe veio agrave mente

O que vocecirc quer dizer

265

Vou exemplificar Presumo que o conhecimento de uma pessoa eacute diferente do

conhecimento de uma lira natildeo eacute

Como natildeo

Entatildeo vocecirc deve saber que acontece o seguinte com os amantes quando veem

uma lira um manto ou alguma outra coisa que seus amados costumam utilizar eles

reconhecem a lira e logo trazem agrave mente a imagem do amado a quem pertence a lira

Isso eacute reminiscecircncia O mesmo ocorre com aquele que vecirc Siacutemias e geralmente recorda-

se de Cebes e presumo que existem inuacutemeros casos como esse

Por Zeus inuacutemeros disse Siacutemias

[73e] Portanto disse esse tipo de coisa natildeo eacute reminiscecircncia Especialmente

quando algueacutem tem uma experiecircncia de reminiscecircncia que envolve coisas do passado jaacute

esquecidas

Seguramente disse

O que mais perguntou Natildeo eacute possiacutevel que algueacutem veja a pintura de um cavalo

ou a pintura de uma lira e recorde-se de uma pessoa e quando vecirc a pintura de Siacutemias

recorde-se de Cebes

Seguramente

E quando vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias recorde-se do proacuteprio Siacutemias

[74a] Certamente disse

266

De acordo com todos esses exemplos a reminiscecircncia natildeo pode ocorrer tanto a

partir de coisas semelhantes quanto de coisas dissemelhantes

Sim

Mas sempre que se recorda de algo a partir de coisas semelhantes natildeo passa

necessariamente pela experiecircncia de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se

recordou e o objeto recordado se assemelham

Seguramente disse

Examina agora disse Soacutecrates se isso estaacute certo Diriacuteamos como presumo que

existe um Igual Natildeo estou me referindo a um graveto igual a outro a uma pedra igual a

outra ou a qualquer coisa desse tipo mas a algo de natureza diferente e que estaacute aleacutem

de tudo isso o Igual em si mesmo Diremos que isso existe ou natildeo

[74b] Por Zeus a reposta eacute um retumbante sim respondeu Siacutemias

Acaso sabemos o que eacute isso

Seguramente disse

Mas de onde adquirimos o conhecimento disso Foi das coisas que

mencionamos haacute pouco Quando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso

trazemos agrave mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delas Ou natildeo acha que

haja distinccedilatildeo entre eles Examina o caso de pedras e gravetos iguais enquanto

permanecem o mesmo agraves vezes natildeo parecem iguais para uns e desiguais para outros

Seguramente

267

[74c] E mais os Iguais em si mesmo jaacute te pareceram desiguais ou a Igualdade

jaacute te pareceu Desigualdade

Jamais Soacutecrates

Nesse caso disse essas coisas iguais e o Igual em si natildeo satildeo a mesma coisa

Natildeo mesmo Soacutecrates

Entatildeo perguntou eacute mesmo partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave mente e

adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais sejam diferentes

Verdade disse

E aquilo que se recordou natildeo eacute igual ou diferente das coisas a partir das quais se

recordou

Seguramente

Mas natildeo faz diferenccedila disse Contanto que vocecirc veja algo e a partir dessa visatildeo

traga [74d] outra coisa agrave mente seja igual ou diferente jaacute eacute necessariamente um caso de

reminiscecircncia

Seguramente

E natildeo nos ocorre o mesmo tipo de coisa em relaccedilatildeo aos gravetos e outras coisas

iguais sobre a qual falamos haacute pouco Acaso esses iguais natildeo nos parecem que satildeo tal

como eacute o Igual em si Carecem ou natildeo de algo para serem tal como eacute o Igual em si

mesmo

Carecem e muito disse

268

Acaso concordamos tambeacutem com o seguinte quando algueacutem vecirc um objeto e

pensa que [74e] isso que vecirc tem a pretensatildeo de ser tal como uma daquelas realidades

mas acaba sendo inferior natildeo se presume que o dono desse pensamento

necessariamente jaacute tivesse um conhecimento preacutevio da realidade com a qual diz ele o

objeto visto se assemelha ainda que deficientemente

Necessariamente

Natildeo acha entatildeo que temos tido uma experiecircncia dessa natureza em relaccedilatildeo agraves

coisas iguais e ao Igual em si mesmo

Completamente

[75a] Entatildeo necessariamente adquirimos um conhecimento preacutevio do Igual

ainda antes da ocasiatildeo em que pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos

que todas elas almejam ser tal como o Igual mas satildeo inferiores a elas

Isso mesmo

Certamente concordamos com o seguinte natildeo haacute como jaacute termos pensado no

Igual nem haacute chance de isso acontecer a natildeo ser a partir da visatildeo tato ou algum outro

sentido Como eu digo os sentidos satildeo todos o mesmo

Satildeo todos o mesmo Soacutecrates pelo menos em relaccedilatildeo ao que o argumento

pretende provar

269

Entatildeo os sentidos natildeo nos fazem pensar que todas as coisas que pertencem ao

domiacutenio [75b] dos sentidos ndash as coisas sensiacuteveis ndash querem ser como o Igual mas satildeo

inferiores a ele O que diriacuteamos

Eacute assim mesmo

E antes de comeccedilarmos a ver ouvir e a utilizar os outros sentidos presumo que

foi necessaacuterio ter adquirido o conhecimento daquilo que eacute o Igual em si mesmo e soacute

entatildeo passar a comparar as coisas iguais decorrentes dos sentidos com o Igual em si

mesmo e a notar que todas elas almejam ser da mesma natureza que ele mas lhes satildeo

inferiores

Foi mesmo necessaacuterio Soacutecrates com base no que dissemos antes

Pois natildeo foi logo apoacutes o nascimento que comeccedilamos a ver a ouvir e a utilizar os

demais sentidos

Seguramente

[75c] Como estamos dizendo devemos ter adquirido o conhecimento do Igual

antes mesmo disso

Sim

Portanto parece-me que adquirimos esse conhecimento necessariamente antes

de nascer

Parece

270

Se o adquirimos antes de nascer e jaacute nascemos com ele natildeo conheciacuteamos antes

e imediatamente depois do nascimento natildeo somente o Igual mas tambeacutem o Maior o

Menor e todas [75d] as outras coisas dessa natureza Pois o nosso presente argumento

natildeo eacute mais sobre o Igual do que sobre o Belo em si mesmo o Justo e o Piedoso e como

tenho dito a respeito de tudo que identificamos com o selo lsquoo que eacute em si mesmorsquo tanto

nas perguntas que formulamos quanto nas respostas que damos Desse modo

adquirimos o conhecimento de tudo isso necessariamente antes de nascer

Isso mesmo

E se o conhecimento adquirido natildeo fosse esquecido sempre nasceriacuteamos em

posse dele e sempre o manteriacuteamos ao longo da vida Pois conhecer eacute isso manter o

conhecimento adquirido e natildeo se desvencilhar mais dele E o esquecimento Siacutemias natildeo

seria o que chamamos de perda do conhecimento

[75e] Sem sombra de duacutevida disse Soacutecrates

No tocante aos conhecimentos que tivemos no passado a respeito daquelas

coisas penso que se os adquirimos antes de nascer perdemos por ocasiatildeo do

nascimento e os recuperamos posteriormente utilizando os sentidos Assim o que

chamamos de aprendizagem natildeo consistiria em recuperar um conhecimento que nos

pertencia E natildeo estariacuteamos certos ao chamar isso de reminiscecircncia

Seguramente

271

[76a] Isso jaacute se mostrou possiacutevel quando algueacutem tem uma percepccedilatildeo de algo

utilizando a visatildeo audiccedilatildeo ou algum outro sentido a partir disso traz agrave mente um

segundo item o qual jaacute havia esquecido cuja relaccedilatildeo com o primeiro pode ser de

semelhanccedila ou dissemelhanccedila Como digo uma das duas ou nascemos em posse do

conhecimento dessas coisas e todos noacutes mantemos esse conhecimento ao longo da vida

ou aqueles que dizemos que aprendem nada mais fazem do que recordar de modo que

a aprendizagem seria reminiscecircncia

Isso mesmo Soacutecrates

Entatildeo Siacutemias qual opccedilatildeo vocecirc escolhe Noacutes nascemos em posse do

conhecimento ou soacute [76b] posteriormente eacute que recordamos as coisas cujo

conhecimento adquirimos previamente

No momento Soacutecrates natildeo tenho como escolher

Como natildeo Faccedila a sua escolha e diga o que pensa do seguinte caso uma pessoa

que tem conhecimento saberia ou natildeo dar uma explicaccedilatildeo daquilo que conhece

Certamente saberia Soacutecrates

Vocecirc acha que todas as pessoas saberiam dar uma explicaccedilatildeo sobre as coisas que

acabamos de falar

Gostaria que fosse assim disse Siacutemias mas receio que amanhatilde por volta dessa

hora natildeo haveraacute um ser humano que possa fazer isso com propriedade

272

[76c] Entatildeo Siacutemias disse ele vocecirc natildeo acha que todas as pessoas conhecem

aquelas coisas

De modo algum

Acaso elas se recordam das coisas que um dia aprenderam

Necessariamente

Quando as nossas almas adquiriram o conhecimento delas Eacute claro que natildeo foi a

partir do momento em que nascemos como seres humanos

Claro que natildeo

Antes entatildeo

Sim

Entatildeo Siacutemias as almas existiram anteriormente antes de assumirem a forma

humana ndash estavam destituiacutedas de corpo ndash e possuiacuteam conhecimento

A natildeo ser Soacutecrates que adquirimos esses conhecimentos na mesma hora em que

nascemos Resta ainda essa opccedilatildeo de tempo

[76d] Que seja meu amigo Mas em que ocasiatildeo noacutes os perdemos Nascemos

sem eles como acordamos haacute pouco ou noacutes os perdemos na ocasiatildeo em que os

adquirimos Ou vocecirc pode mencionar outra ocasiatildeo

De modo algum Soacutecrates Nem me dei conta que eu falava coisas sem sentido

Entatildeo Siacutemias disse ele vamos colocar as coisas assim se realmente existem as

coisas sobre as quais natildeo paramos de falar ndash o Belo o Bom e toda essecircncia dessa

273

natureza ndash associando [76e] a elas as coisas que derivam dos sentidos descobrindo a

sua existecircncia preacutevia bem como a nossa ciecircncia dela e comparando aquelas coisas com

essa a nossa conclusatildeo com base nisso eacute que a nossa alma necessariamente existia antes

de nosso nascimento Se tais coisas natildeo existissem natildeo seria necessaacuterio outro

argumento Natildeo seria igualmente necessaacuterio que elas existam e as nossas almas existam

antes do nosso nascimento E se elas natildeo existissem tampouco as nossas almas

Extraordinaacuterio Soacutecrates disse Siacutemias Tambeacutem acho que existe a mesma

necessidade e eacute bom para noacutes que o argumento repouse nessa equivalecircncia a nossa

alma existe antes do nosso [77a] nascimento assim como aquelas coisas existem como

vocecirc acabou de mencionar Pois estaacute claro para mim que todas as coisas desse tipo ndash

Belo Bom e outras da mesma natureza todas as demais que agora mesmo expotildee ndash

existem mais do que tudo E acho que estaacute suficientemente demonstrado

E Cebes perguntou Soacutecrates Pois devemos persuadir Cebes tambeacutem

Eu pelo menos penso que estaacute suficientemente demonstrado disse Siacutemias

Contudo Cebes [77b] se destaca entre as pessoas por ser difiacutecil de acreditar em

argumentos Eu penso que ele estaacute perfeitamente convencido de que a nossa alma

existia antes do nosso nascimento mas se ela ainda haveraacute de existir quando

morrermos Soacutecrates disse ele natildeo ficou demonstrado nem para ele nem para mim A

objeccedilatildeo que Cebes levantou haacute pouco ainda permanece a crenccedila popular de que na

ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua existecircncia Pois o

274

que a impede de nascer e se formar a partir de uma outra origem de existir antes de

alojar-se no corpo que lhe confere humanidade e depois de alojada separar-se do

corpo vindo entatildeo a morrer e a ser destruiacuteda

[77c] Fala bem Siacutemias disse Cebes Pois parece que estaacute demonstrado apenas

metade do que se deveria que a nossa alma existia antes de nascer Contudo ainda eacute

necessaacuterio provar que ela existiraacute depois da morte tal como existia antes de nascer para

que a prova fique completa

Estaacute demonstrado Siacutemias e Cebes disse Soacutecrates agora mesmo basta querer

combinar num soacute este argumento e aquele anterior com o qual concordamos de que

tudo o que vive vem a [77d] ser a partir do que estaacute morto Pois se a alma tem uma

existecircncia preacutevia eacute necessaacuterio que ela ao viver e nascer provenha tatildeo somente a partir

da morte e do estar morto Como natildeo seria necessaacuterio que ela existisse depois da morte

jaacute que ela deve nascer novamente Portanto estaacute demonstrado o que vocecircs acabaram de

questionar Apesar disso eu acho que tanto vocecirc quanto o Siacutemias teriam prazer de

estudar esse argumento com mais profundidade por causa do seu temor [77e] pueril de

que o vento realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania

Cebes riu e disse tenta nos convencer Soacutecrates como se temecircssemos Melhor

ainda retiro o lsquocomo se temecircssemosrsquo porque talvez tenhamos mesmo uma crianccedila

275

dentro de noacutes que teme coisas desse tipo Portanto tenta convencecirc-la a natildeo temer a

morte como se fosse o Bicho Papatildeo

Eacute necessaacuterio Soacutecrates proferir encantamentos todos os dias ateacute que o temor

desapareccedila

[78a] Mas onde Soacutecrates perguntou conseguimos um bom encantador para

esse tipo de problema jaacute que vocecirc estaacute nos deixando

Grande eacute a Greacutecia Cebes disse Soacutecrates onde encontraraacute nobres varotildees

Tambeacutem devem especular e buscar um encantador dessa envergadura na multidatildeo de

povos baacuterbaros sem poupar dinheiro e trabalho pois natildeo investiria o seu dinheiro em

nada mais rentaacutevel Devem buscar tambeacutem entre vocecircs mesmos pois dificilmente

encontraratildeo algueacutem mais capacitado do que vocecircs para esse mister

[78b] Mas isto seraacute feito disse Cebes Vamos retomar de onde paramos se a

ideia te agrada

Como natildeo Claro que me agrada

Muito bem disse

ARGUMENTO DAS AFINIDADES

Sendo assim disse Soacutecrates devemos nos perguntar o seguinte a que tipo de

coisa pertence aquela que eacute suscetiacutevel a sofrer dispersatildeo Que tipo de coisa temeriacuteamos

276

que fosse dissipada e que tipo de coisa natildeo E em seguida passemos a examinar a qual

desses dois tipos de coisas pertence a alma e com base nisso ter confianccedila ou temor em

relaccedilatildeo agrave nossa proacutepria alma

Eacute verdade disse ele

[78c] Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto e ao que eacute composto por

natureza sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto junto Por outro lado se haacute algo

simples pertence somente a isso mais do que a qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a

sofrer decomposiccedilatildeo

Eacute assim que penso disse Cebes

Entatildeo natildeo seria bem plausiacutevel que as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado

e condiccedilatildeo sejam aquilo que eacute simples enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em

ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estado sejam as compostas

Eacute o que me parece

Entatildeo nos voltemos agora disse para aquelas mesmas coisas que tratamos num

argumento [78d] anterior Refiro-me agravequela essecircncia cujo ser estaacute sendo discutido por

meio de perguntas e respostas estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estado ou sua

condiccedilatildeo oscila em diferentes ocasiotildees O igual em si o belo em si aquilo que cada

coisa eacute em si aquilo que eacute se sujeitariam a algum tipo de mudanccedila Ou cada uma

dessas coisas em si sendo uniforme e sozinha permanece sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado sem se sujeitar a qualquer tipo de alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

277

Eacute necessaacuterio que permaneccedilam na mesma condiccedilatildeo e estado Soacutecrates disse

Cebes

[78e] O que diriacuteamos a respeito das muitas coisas belas tal como pessoas

cavalos roupas e outras coisas desse tipo ou das coisas iguais ou de todas as outras que

compartilham o mesmo nome daquelas que mencionamos Acaso se manteacutem no mesmo

estado ou em completo contraste com aquelas como se pode dizer nunca e de modo

algum permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre si

Concordo mais uma vez disse Cebes elas nunca permanecem no mesmo estado

[79a] Mas as outras coisas natildeo se poderia tocar ver ou perceber pelos demais

sentidos enquanto essas que permanecem no mesmo estado natildeo se podem apreender

por qualquer outro meio a natildeo ser pelo raciociacutecio do pensamento por serem invisiacuteveis

algo que natildeo se vecirc

O que vocecirc diz eacute totalmente verdadeiro disse

Entatildeo pretende que estabeleccedilamos disse que existem duas classes de seres a

visiacutevel e a invisiacutevel

Faccedilamos isso

A invisiacutevel sempre permanece no mesmo estado enquanto a visiacutevel nunca

permanece no mesmo estado

Vamos estabelecer isso tambeacutem disse

[79b] Avancemos entatildeo disse temos algo mais do que corpo e alma

278

Nada aleacutem disso respondeu

Entatildeo qual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e ter mais

afinidade com o corpo

Estaacute bem evidente a qualquer pessoa disse que eacute o visiacutevel

E quanto agrave alma Visiacutevel ou invisiacutevel

Pelo menos ao ser humano eacute invisiacutevel Soacutecrates disse

Mas noacutes estaacutevamos conversando justamente sobre as coisas que seriam e as que

natildeo seriam visiacuteveis agrave natureza do ser humano ou estava pensando em alguma outra

Natildeo agrave natureza do ser humano

O que entatildeo diriacuteamos a respeito da alma Seria algo visiacutevel ou invisiacutevel

Natildeo visiacutevel

Invisiacutevel entatildeo

Sim

Entatildeo a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma

[79c] Eacute absolutamente necessaacuterio Soacutecrates

E natildeo era isto que diziacuteamos antes quando a alma se utiliza do corpo para

examinar algo seja por meio da visatildeo audiccedilatildeo ou por meio de algum outro sentido ndash

pois examinar algo por meio do corpo eacute examinar por meio dos sentidos ndash eacute entatildeo

arrastada pelo corpo para as coisas que nunca permanecem na mesma condiccedilatildeo e assim

279

ela anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a

natureza das coisas que ela estaacute alcanccedilando

Certamente

[79d] Mas quando ela proacutepria por si mesma examina nessa ocasiatildeo se

encaminha para o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo E por

causa da sua afinidade com isso a alma sempre vem a estar com ele sempre que lhe eacute

possiacutevel se colocar ela proacutepria por si mesma Nessa ocasiatildeo deixa de andar erraacutetica ela

permanece sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo relativamente a essas coisas por que

esta eacute a natureza das coisas que estaacute alcanccedilando Essa experiecircncia da alma natildeo seria

chamada de conhecimento

O que vocecirc disse respondeu eacute completamente belo e verdadeiro Soacutecrates

[79e] Mais uma vez e com base tanto no que jaacute foi dito quanto no que dizemos

agora com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e afinidade

Acredito que respondeu a partir dessa linha de inquiriccedilatildeo Soacutecrates todas as

pessoas ateacute algueacutem com grande dificuldade de aprendizagem reconheceria que de todo

jeito a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo

que natildeo estaacute

E quanto ao corpo

Assemelha-se mais a esse outro tipo de coisa

280

[80a] Veja a questatildeo agora sob este acircngulo quando a alma e o corpo estatildeo

juntos por imposiccedilatildeo da natureza o corpo eacute o que serve e eacute governado enquanto a alma

governa e domina Tendo em vista essa relaccedilatildeo pergunto novamente qual dos dois

vocecirc acha que se assemelha mais ao divino e qual ao mortal Ou natildeo acha que o divino

eacute por natureza o que domina e dirige enquanto o mortal o que eacute dirigido e serve

Com certeza

Entatildeo a alma eacute como qual dos dois

Eacute evidente Soacutecrates que a alma eacute como o divino enquanto o corpo eacute como o

mortal

[80b] Examina agora Cebes disse ele se de tudo que temos dito podemos

concluir o seguinte que a alma eacute mais semelhante ao divino imortal inteligiacutevel

uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo enquanto

o corpo por outro lado eacute mais semelhante ao humano mortal multiforme sensiacutevel

soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo Teriacuteamos algo a dizer contra isso

amigo Cebes algo que se contraponha a esse resultado

Natildeo temos

Mas entatildeo Sendo as coisas desse jeito acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

[80c] Como natildeo

281

UacuteLTIMO ARGUMENTO

[105c] Diga-me entatildeo perguntou Soacutecrates o que deve estar presente num corpo

para que ele tenha vida

Uma alma respondeu

[105d] E eacute sempre assim

Com certeza disse ele

Portanto quando a alma ocupa algo chega sempre trazendo vida para ele

Claro que chega respondeu

E existe ou natildeo um oposto para a vida

Existe falou

O quecirc

Morte

Entatildeo a alma jamais admitiraacute o oposto daquilo que traz consigo como foi

acordado antes

Mas natildeo tenha duacutevida disso falou Cebes

Como eacute mesmo que agorinha chamaacutevamos aquilo que natildeo admite a forma do

par

Iacutempar respondeu

E ao que natildeo admite o justo ou o musical

282

[105e] O natildeo musical disse e o natildeo justo

Muito bem E como chamariacuteamos aquilo que natildeo admite morte

Imortal disse

Entatildeo a alma natildeo admite morte

Natildeo

Portanto a alma eacute imortal

Isso imortal

Muito bem falou Poderiacuteamos dizer que isto foi provado O que vocecirc acha

Sim e de modo suficiente Soacutecrates

Se os injustos fossem necessariamente impereciacuteveis trecircs certamente seriam

impereciacuteveis natildeo seria

[106a] Entatildeo Cebes perguntou se o iacutempar fosse necessariamente indestrutiacutevel

o trecircs tambeacutem natildeo seria indestrutiacutevel

Como natildeo

Agora se o natildeo quente tambeacutem fosse necessariamente indestrutiacutevel quando

algueacutem aproximasse calor agrave neve ela natildeo bateria em retirada intacta e sem derreter

Pois nem pereceria nem ficaria ali de novo e admitiria o calor

Corretamente disse

283

Por semelhante modo se o natildeo frio fosse indestrutiacutevel quando algo frio

arremetesse contra o fogo ele jamais apagaria ou pereceria mas bateria em retirada e

seguiria intacto

Necessariamente disse

[106b] Agora natildeo seria necessaacuterio falar tambeacutem dessa maneira a respeito do

imortal Se o imortal tambeacutem fosse indestrutiacutevel seria impossiacutevel que a alma viesse a

perecer quando a morte arremetesse contra ela Porque como foi dito natildeo admitiraacute a

morte e nem tombaraacute morta assim como concordamos que nem o trecircs nem o iacutempar

seratildeo pares nem o fogo e o calor que haacute nele seratildeo frios Mas algueacutem poderia

questionar o que impediria o iacutempar ndash mesmo que natildeo se transforme em par quando este

arremete contra ele assim como concordamos ndash de perecer e o par lhe tomar o posto

Contra isto natildeo teriacuteamos como argumentar que o iacutempar natildeo perece porque ele natildeo eacute

indestrutiacutevel Se concordaacutessemos a esse respeito facilmente argumentariacuteamos que o trecircs

e o iacutempar bateriam em retirada quando o par arremetesse contra ele Argumentariacuteamos

assim tambeacutem no caso do fogo do calor e tudo mais Natildeo eacute mesmo

Absolutamente

Portanto agora no que diz respeito ao imortal se concordaacutessemos que ele eacute

tambeacutem [106d] indestrutiacutevel a alma seria imortal e indestrutiacutevel Caso contraacuterio seria

necessaacuterio outro argumento

284

Mas isto natildeo eacute necessaacuterio por esta razatildeo disse dificilmente outra coisa natildeo

admitiria destruiccedilatildeo se o imortal sendo eterno a admitisse

E eu acho que pelo menos a divindade respondeu Soacutecrates e a proacutepria forma da

vida e se existe alguma outra coisa imortal todas as pessoas concordariam que nunca

perecem

Sem duacutevida todas as pessoas concordariam por Zeus disse e eu penso que os deuses

ainda mais

[106e] Portanto jaacute que o imortal tambeacutem eacute indestrutiacutevel e a alma natildeo seria

outra coisa a natildeo ser imortal ela tambeacutem seria indestrutiacutevel ou natildeo

Eacute absolutamente necessaacuterio

Sendo assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao

que parece tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo

ela parte retirando-se da presenccedila da morte

Eacute o que parece

[107a] Sendo assim eacute mais do que certo que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel e

que as nossas almas realmente existiratildeo no Hades

De minha parte Soacutecrates disse ele natildeo tenho mais nenhuma objeccedilatildeo nem

desconfio das coisas que disse Mas caso Siacutemias que estaacute aqui ou mesmo outra pessoa

tenha algo a dizer esta eacute a hora de falar Porque se algueacutem quiser dizer ou ouvir alguma

coisa sobre este assunto natildeo conheccedilo nenhuma outra ocasiatildeo aleacutem desta para fazecirc-lo

285

[107b] De minha parte Soacutecrates disse Cebes natildeo tenho nada a acrescentar e

nem desconfio do que vocecirc falou Contudo pela complexidade da temaacutetica que

abordamos em nossa conversa e por natildeo ter apreccedilo pela fraqueza humana ainda

necessito carregar comigo certa desconfianccedila a respeito de nossa conversa

Natildeo apenas isto Siacutemias disse Soacutecrates Vocecircs estaacute fazendo uma boa colocaccedilatildeo

Ateacute mesmo as primeiras hipoacutetese ainda que pareccedilam confiaacuteveis para noacutes devemos

igualmente voltar a examinaacute-las mais claramente E eu acho que se vocecirc analisaacute-las

suficientemente seguiraacute o argumento ateacute o maacuteximo que algueacutem possa seguir Se isto

ficar claro para vocecirc natildeo teraacute de prosseguir na pesquisa

Isso eacute verdade disse ele

286

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University Press

  • Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
    • AGRADECIMENTOS
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • SUMAacuteRIO
    • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)
    • 3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)
    • 4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)
    • 5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)
    • 6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)
    • 7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)
    • 8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
    • 9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO
    • 10 BIBLIOGRAFIA
Page 2: FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS - USP · 2019. 2. 21. · O diálogo inicia com uma conversa entre Fédon e Equécrates, o qual solicita uma narrativa detalhada sobre a morte de

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS CLAacuteSSICAS

Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial

Francisco de Assis Nogueira Barros

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e

Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte

dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Letras Claacutessicas

Orientador Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes

Satildeo Paulo

2018

Nome BARROS Francisco de Assis Nogueira

Tiacutetulo Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo

Parcial

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e

Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte

dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Letras Claacutessicas

Aprovado em

Banca examinadora

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

AGRADECIMENTOS

Agrave Capes pela bolsa fornecida

RESUMO

O tema principal do Feacutedon de Platatildeo eacute a imortalidade da alma Meu objetivo

nesta tese eacute apresentar um estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no

Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo

ABSTRACT

The main topic of the Platorsquos Phaedo is the immortality of the soul My aim in

this thesis is to present a study of the arguments for immortality of the soul in the

Phaedo and a partial translation of the dialogue

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip9

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip13

3 ARGUMENTO CIacuteCLICOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip32

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip70

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADEShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip102

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOShelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip155

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITOhelliphelliphelliphelliphellip215

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip228

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIALhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip233

10 BIBLIOGRAFIA helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip286

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

Apesar da vasta literatura criacutetica destinada ao estudo dos argumentos sobre a

imortalidade da alma no Feacutedon a temaacutetica eacute sobremodo complexa e continua

desafiando os pesquisadores Temas tidos como tradicionais e consolidados sobre a

alma em Platatildeo merecem ser revisitados reavaliados e confrontados com nova

investigaccedilatildeo uma vez que a formaccedilatildeo e inclinaccedilatildeo pessoal de cada estudioso permite

investigar Platatildeo de diferentes maneiras e chegar a diferentes respostas a partir de

diferentes meacutetodos e instrumentos hermenecircuticos razatildeo pela qual Platatildeo continua

exercendo encanto duradouro sobre todos noacutes1 Sendo assim eacute natural que haja um

renovado interesse pelos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma e ele comeccedila a ser

desenvolvido a partir do primeiro estaacutegio do diaacutelogo quando Soacutecrates apresenta a sua

defesa perante seus amigos de seu modo de vida e atitude perante a morte Nesta

ocasiatildeo ele afirma a sua convicccedilatildeo de que a alma do verdadeiro filoacutesofo ndash aquele que

vive na praacutetica da morte ao longo de toda a sua vida ndash desceraacute ao Hades onde se juntaria

aos deuses Nesta primeira etapa a imortalidade eacute simplesmente assumida nas

declaraccedilotildees de Soacutecrates como lsquotenho uma boa expectativa de que haja algo reservado

para os mortosrsquo A sua convicccedilatildeo eacute conforme a tradiccedilatildeo aquilo que os antigos diziam

lsquoque haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para os mausrsquo (63c5-7) Mas

Soacutecrates natildeo convence aos amigos com a sua esperanccedila de cunho meramente religioso

Haacute pessoas que acreditam que a alma poderia ser destruiacuteda na ocasiatildeo em que se separa

1 Valditara in Fermani Migliori Valditara (org) 2007 p5

10

do corpo Esta crenccedila na aniquilaccedilatildeo da alma deve ser enfrentada com argumentaccedilatildeo

filosoacutefica Seria necessaacuterio um grande esforccedilo de Soacutecrates para mostrar que a alma da

pessoa que morre continua a existir com capacidade e conhecimento (ὡς ἔστι τε ψυχὴ

ἀποθανόντος τοῦ ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) (Cf70a1-b4) Com

esta problemaacutetica se inicia uma seccedilatildeo demonstrativa em que o tema da imortalidade

recebe tratamento filosoacutefico especializado Nesta etapa temos quatro argumentos ou

provas da imortalidade da alma (i) argumento ciacuteclico ou dos opostos (70c-72d) (ii)

argumento da reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento das afinidades (78b-80b) (iv)

uacuteltimo argumento (96a-107b) O objetivo deste trabalho eacute apresentar um estudo de cada

argumento sobre a imortalidade da alma no Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo ndash

de toda a primeira etapa do diaacutelogo e de cada argumento propriamente dito

Natildeo pretendemos fazer uma exposiccedilatildeo e anaacutelise exaustiva de cada argumento

Natildeo raramente cada linha de cada argumento eacute objeto de amplo debate e uma discussatildeo

exaustiva de cada toacutepico levantado vai aleacutem do escopo de nossa pesquisa O nosso

objetivo eacute reavaliar as provas da imortalidade com o fim de observar como cada uma

delas procura se estabelecer como prova da imortalidade da alma Em diaacutelogo com a

tradiccedilatildeo criacutetica esperamos reafirmar posiccedilotildees interpretativas jaacute consagradas mas

tambeacutem sugerir rupturas e novos caminhos de interpretaccedilatildeo sempre que possiacutevel

Sobre a nossa interpretaccedilatildeo do diaacutelogo eacute importante dizer que privilegiamos a

exegese textual e a interpretaccedilatildeo de cada argumento propriamente dito mas

considerando o contexto imediato o contexto mais amplo da obra e a relaccedilatildeo muacutetua

entre os argumentos evitando interpretar cada argumento como se fosse uma unidade

isolada Considerando o contexto amplo do diaacutelogo apresentamos um breve estudo

11

sobre a doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico que eacute um dos saberes tradicionais com os

quais Platatildeo dialoga com frequecircncia no Feacutedon

Teremos o cuidado de dialogar com a tradiccedilatildeo interpretativa cujo esforccedilo para a

compreender o Feacutedon eacute notaacutevel e sua contribuiccedilatildeo para a compreensatildeo do diaacutelogo eacute

inestimaacutevel Mas evitaremos ao maacuteximo transportar projetar e impor ao diaacutelogo

posiccedilotildees filosoacuteficas desenvolvidas posteriormente evitando interpretaccedilotildees anacrocircnicas

Aleacutem disso eacute importante reconhecer que em geral a interpretaccedilatildeo de um

diaacutelogo platocircnico eacute em parte predeterminada e moldada pelo que jaacute ouvimos a respeito

dele Um exemplo disso eacute a tendecircncia de acompanhar a literatura criacutetica em sua

costumeira propagaccedilatildeo da ideia de que o Feacutedon pretende ser uma exposiccedilatildeo e defesa

dos lsquopilares gecircmeosrsquo do Platonismo imortalidade da alma e teoria das Formas A

propagaccedilatildeo dessa ideia tem levado inteacuterpretes a conceber ou pelo menos sugerir a

existecircncia de uma dupla temaacutetica de igual importacircncia no Feacutedon2 Nossa tese diverge

desta tendecircncia reconhecendo que o tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma

individual e que o diaacutelogo natildeo pretende apresentar uma exposiccedilatildeo e defesa da teoria

das Formas como a tradiccedilatildeo interpretativa consagrou mas sim uma sistemaacutetica defesa

da imortalidade da alma Embora lsquoFormasrsquo e outros temas tenham importacircncia no

diaacutelogo do iniacutecio ao fim o Feacutedon estaacute voltado para o problema da imortalidade da alma

Portanto procuramos reler o Feacutedon sem excessiva dependecircncia daquilo que jaacute se

disse a respeito dos argumentos sobre a imortalidade da alma Nem mesmo abraccedilaremos

a ideia de que Platatildeo espera que o leitor entreveja teorias filosoacuteficas complexas em

passagens nas quais o filoacutesofos natildeo apresenta uma exposiccedilatildeo consistente sobre elas

2 Cf Burger 1984 p2 Cf Bluck 1955 p2 Cf Gallop 2002 p97 ldquoA doutrina da imortalidade

eacute logicamente dependente da Teoria das Formasrdquo

12

Tambeacutem evitamos incorrer na tentativa de complementar o que Platatildeo deixou

(deliberadamente ou natildeo) vago e inconcluso no Feacutedon

Aleacutem do estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon esta

tese tambeacutem apresenta uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo uma traduccedilatildeo de toda a

primeira etapa do Feacutedon (57a-70c) e a traduccedilatildeo de cada argumento propriamente dito

Noacutes apresentamos um comentaacuterio sobre as seccedilotildees que circundam cada argumento e

todas as citaccedilotildees do Feacutedon apresentadas na tese inclusive das seccedilotildees que natildeo

traduzimos integralmente satildeo de nossa autoria Nossa traduccedilatildeo seraacute baseada na mais

recente ediccedilatildeo do texto grego a ediccedilatildeo inglesa de E A Duke W F Hicken W S M

Nicoll D B Robinson e J C G Strachan (Oxford Classical Texts 1995)

13

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)

21 Panorama Geral

O diaacutelogo inicia com uma conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates o qual solicita

uma narrativa detalhada sobre a morte de Soacutecrates Ele quer saber minuciosamente tudo

que Soacutecrates conversou com seus amigos e tudo que aconteceu no caacutercere horas antes

de sua execuccedilatildeo (58d) Jaacute se passou algum tempo entre a morte de Soacutecrates e a conversa

entre Feacutedon e Equeacutecrates (57a-b) Feacutedon entatildeo assume o papel de narrador e se dispotildee a

satisfazer o pedido de Equeacutecrates Antes de comeccedilar a extensa narrativa Feacutedon revela

algo de fundamental importacircncia e que geralmente passa despercebido pelos

inteacuterpretes o proacuteprio narrador declara a sua crenccedila particular de que a alma de Soacutecrates

iria para o Hades com uma divina Moira (58e-59a) Soacutecrates faraacute uma afirmaccedilatildeo

semelhante em breve Sobretudo na primeira etapa do diaacutelogo a imortalidade da alma

individual (alma de Soacutecrates) eacute simplesmente assumida pelo narrador e pelo proacuteprio

Soacutecrates a partir de um discurso de cunho religioso

Conforme o relato de Feacutedon antes de beber o veneno Soacutecrates sustenta que o

verdadeiro filoacutesofo encara a morte com naturalidade Os amigos de Soacutecrates querem

saber por que o filoacutesofo estaacute contente em morrer o que lhes parece absurdo O filoacutesofo

entatildeo oferece-lhes uma defesa que pretende ser mais convincente do que aquela

apresentada aos juiacutezes e que visa justificar sua presente atitude diante da morte seu

desejo de morrer (60c-62c)3 Enquanto apresenta sua defesa Soacutecrates desenvolve o

3 Enquanto na Apologia de Soacutecrates o filoacutesofo discursa para a cidade e tenta se defender da

acusaccedilatildeo de corromper a juventude e de introduzir novas divindades na cidade na segunda

14

tema da vida filosoacutefica afirmando que o legiacutetimo filoacutesofo dedica a vida ao exerciacutecio da

filosofia que consiste num exerciacutecio de morrer e de estar morto que antecipa os

benefiacutecios advindos com a morte a saber a liberaccedilatildeo do corpo o rival da alma o qual

oblitera a insaciaacutevel busca do filoacutesofo pela verdade (64a-65a) Vivendo assim o

legiacutetimo filoacutesofo jamais receia a morte pois eacute ela que lhe abre as portas para uma

melhor existecircncia4

Enquanto desenvolve a defesa da atitude do legiacutetimo filoacutesofo frente agrave morte

Soacutecrates simplesmente assume a sobrevivecircncia de sua alma post mortem com base tatildeo

somente na esperanccedila (ἐλπίς) de que em lugar algum a natildeo ser no Hades eacute que o

verdadeiro filoacutesofo alcanccedilaraacute de modo pleno e digno a sabedoria que almeja concluindo

que o filoacutesofo deve crer nisso (οἴεσθαί γε χρή) (68a-b) Dessa forma Soacutecrates alinha sua

crenccedila na sobrevivecircncia da alma post mortem com a crenccedila de Feacutedon no proacutelogo do

diaacutelogo Portanto a imortalidade da alma eacute simplesmente assumida nesta etapa do

diaacutelogo como uma ideia do acircmbito da religiatildeo Platatildeo dialoga com os saberes

tradicionais jaacute estabelecidos A proposta do diaacutelogo desde o iniacutecio se delineia a

discussatildeo sobre a imortalidade da alma deveraacute passar do niacutevel da crenccedila religiosa

baseada na ἐλπίς para um patamar de discussatildeo filosoacutefica

A postura de Soacutecrates imediatamente provoca a reaccedilatildeo de seu amigo Cebes que

embora elogie a fala do filoacutesofo exibe sua insatisfaccedilatildeo no que foi dito concernente agrave

alma Soacutecrates natildeo deu garantia de que a alma ao separar-se do corpo continuaria

existindo em algum lugar Cebes menciona a duacutevida que as pessoas nutrem de que a

morte traria consigo a destruiccedilatildeo da alma a qual desvaneceria tal qual sopro ou fumo na

defesa ele tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que natildeo estaacute convencido de que a morte

eacute o melhor para o filoacutesofo

4 No Feacutedon a morte eacute definida como a separaccedilatildeo da alma e do corpo (64c4-9)

15

ocasiatildeo em que se separa do corpo (69e-70a) A personagem Cebes eacute quem reclama o

tratamento filosoacutefico da temaacutetica da imortalidade da alma e em resposta agrave sua

colocaccedilatildeo eacute que Soacutecrates se dispotildee a mostrar que a alma da pessoa que morre continua

existindo mantendo capacidade e sabedoria (ὡς ἔστι τε ψυχὴ ἀποθανόντος τοῦ

ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) mas adverte que essa empresa natildeo seria

faacutecil (69e-70b) Daacute-se iniacutecio a uma longa etapa argumentativa no diaacutelogo na qual

Soacutecrates apresenta quatro argumentos ou provas da imortalidade da alma no Feacutedon (i)

argumento ciacuteclico (ou argumento dos opostos) (70c-72d) (ii) argumento da

reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento da afinidade (78b-80b) (iv) uacuteltimo argumento

(96a-107b)

22 A alma e o alcance das coisas em si

Antes de tratarmos especificamento do nosso objeto de estudo ndash as provas da

imortalidade da alma ndash vejamos alguns toacutepicos importantes na primeira etapa do

diaacutelogo comeccedilando pela alma e o alcance das coisas em si Enquanto desenvolve o

tema da vida filosoacutefica Soacutecrates considera que haacute coisas como lsquoo justo em si mesmorsquo

(δίκαιον αὐτὸ) (65d4-5) que ele tambeacutem chama de essecircncia (ἡ οὐσία) (65d13) lsquoas

coisas que satildeorsquo (τά ὄντα) (66a3) ou lsquocoisas em si mesmasrsquo (αὐτὰ τὰ πράγματα) (66e1-

2) O filoacutesofo vive agrave caccedila dessas coisas almejando apoderar-se da verdade (ἀλήθειά) e

do conhecimento (φρόνησις) (66a5-6) mas o corpo se impotildee como rival da alma porque

oblitera essa busca do filoacutesofo Em suma essa busca da lsquocoisa em sirsquo envolve o objeto

de conhecimento definido a purificaccedilatildeo filosoacutefica e o instrumento de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Segue uma breve explicaccedilatildeo de cada um deles

16

(i) O objeto de conhecimento satildeo lsquoas coisas em sirsquo Quando Soacutecrates comeccedila a

explicar que o corpo eacute um obstaacuteculo para a alma alcanccedilar a verdade ele diz

que soacute atraveacutes do exerciacutecio da razatildeo eacute que τι τῶν ὄντων lsquoalgo dessas coisasrsquo

se mostram para a alma (65c2-3)5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τά

ὄντα) e logo depois no singular (τὸ ὄν) (65c3 9) Soacutecrates apresenta vaacuterios

exemplos de lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em si mesmorsquo lsquoo belorsquo e lsquoo bomrsquo (65d4-

7) e imediatamente estende a questatildeo a toda classe de coisas desse tipo ldquoEu

estou falando de todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa

eacuterdquo (65d11-65e1)

(ii) A purificaccedilatildeo (κάθαρσις) filosoacutefica eacute o maacuteximo afastamento possiacutevel da

alma do corpo 6 Isto equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (64a) e

eacute necessaacuterio porque o corpo (τὸ σῶμα) eacute obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do

conhecimento (φρόνησις) uma vez que os sentidos natildeo satildeo confiaacuteveis

visatildeo audiccedilatildeo e os demais sentidos do corpo (αἴσθησις) natildeo oferecem

precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) (65a9-65b7)

(iii) A aquisiccedilatildeo do conhecimento ocorre atraveacutes do pensamento sozinho (αὐτῇ

τῇ διανοίᾳ) sem mistura ou sem interaccedilatildeo com os sentidos (65e7 66a1-2) A

5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τῶν ὄντων) e no singular (τοῦ ὄντος) (65c3 9) Conforme

Rowe (1993 p 140) o termo singular τοῦ ὄντος eacute o coletivo equivalente de τῶν ὄντων

6 ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o mais possiacutevel a

alma do corpo e acostumaacute-la sozinha por si mesma concentrando-se e recolhendo-se agrave parte de

cada membro do corpo e vivendo o maacuteximo possiacutevel sozinha por si mesma tanto agora como

no porvir num ato de constante libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de

cadeiasrdquo (67c5-d1)

17

alma deve raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν)

para que possa alcanccedilar as coisas em si mesmas (65c2-9 Cf 65e-66a)

Soacutecrates sugere que eacute possiacutevel utilizar a faculdade cognitiva da alma sem a

interferecircncia do corpo e seus sentidos de modo que a alma funcione com

independecircncia7 Eacute somente quando algum de noacutes se puser a pensar com rigor

e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber cada coisa em si que se

poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Essa apresentaccedilatildeo da busca da alma pelas lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em sirsquo lsquoo belo

em sirsquo lsquoo bom em sirsquo (64e-66a) leva inteacuterpretes a pensar que uma doutrina das Formas

jaacute estaacute presente na primeira etapa do diaacutelogo Eacute largamente aceito que a chamada teoria

das Formas eacute introduzida pela primeira vez no diaacutelogo em 65d4-5 8 Mas essa

compreensatildeo geralmente se baseia no contexto posterior do Feacutedon uma vez que em

65d4-5 ainda natildeo haacute elementos suficientes para sustentar essa conclusatildeo Natildeo haacute duacutevida

que uma teoria das Formas ou o esboccedilo do que seria uma teoria das Formas

desenvolve-se a partir da formulaccedilatildeo que aparece em 65d mas isto natildeo significa que

neste ponto do diaacutelogo e com base nesta incipiente apresentaccedilatildeo de coisas como o justo

7 Cf Chen 1990 p5455 o qual esclarece que vaacuterios lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo (alguns usados

figurativamente como lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo) satildeo utilizados para denotar cogniccedilatildeo intelectual das

coisas em si mesmas reforccedilando a ideia de que a alma pode trabalhar de modo independente

para alcanccedilar as coisas em si γιγνώσκω (65e4) φρονέω (66c5) ἅπτω (65b9 c9) ἐφάπτω

(65d11 67b2) λογίζομαι (65c2 66a1 substantivo λογισμός) διανοέομαι (65e3 66a2

substantivo διάνοια) θεατέον (θεάομαι 66e1) θεωρέω (65e2) καθοράω (66d7)

8 Bostock 1989 p 194 Gallop 2002 p93 Hackfort 1998 p 50 Silverman 2002 p49

18

em si que a alma anseia alcanccedilar jaacute possamos falar de uma complexa teoria metafiacutesica

uma teoria das Formas no Feacutedon9 Eis algumas razotildees para isto

(i) A terminologia eacute imprecisa

(ii) Natildeo haacute indiacutecios suficientes de que lsquocoisas em sirsquo sejam entidades

metafiacutesicas Eacute difiacutecil que Platatildeo jaacute estivesse introduzindo algum termo

teacutecnico nessa altura do diaacutelogo e noacutes natildeo devemos importar qualquer

noccedilatildeo filosoacutefica posterior para tentar entender essa passagem10

(iii) Em 65d4 temos a pergunta φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν

(ldquoafirmamos que existe um justo em si mesmo ou natildeordquo) a qual tem

sido largamente considerada como pergunta-chave para a introduccedilatildeo da

chamada teoria das Formas no diaacutelogo Contudo essa pergunta segue

uma formulaccedilatildeo ordinaacuteria da liacutengua grega Pouco antes disso Soacutecrates jaacute

havia formulado uma pergunta semelhante em relaccedilatildeo agrave morte em 64c2

ἡγούμεθά τι τὸν θάνατον εἶναι (ldquoConsideramos que a morte eacute alguma

coisardquo) Nesta passagem temos apenas um ordinaacuterio modo de expressatildeo

da liacutengua grega sem qualquer alusatildeo agrave existecircncia de entidades

metafiacutesicas De modo algum Soacutecrates estaacute se referindo a uma Forma da

morte mas apenas agrave ordinaacuteria existecircncia do evento morte neste contexto

pessoas morrem logo existe um tipo de coisa que chamamos morte

Neste contexto Soacutecrates estaacute preparando os amigos para admitirem que

morte eacute a separaccedilatildeo da alma de seu corpo (64c4-5) Em 65d4 o filoacutesofo

9 Rowe 1993 p 140-141

10 Rowe 1993 p141

19

repete a formulaccedilatildeo da pergunta mas agora falando das lsquocoisas em sirsquo

Portanto esse tipo de pergunta natildeo eacute necessariamente uma formulaccedilatildeo

teacutecnica para inquirir sobre a existecircncia de Formas metafiacutesicas

(iv) Seria estranho que Platatildeo introduzisse Formas metafiacutesicas sem que

discutisse as suas qualidades como faz no argumento das afinidades

onde Platatildeo qualifica essas lsquocoisas em sirsquo de maneira clara satildeo puras

distintas e superiores aos objetos particulares invisiacuteveis eternas

imortais permanecem sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo existem agrave

parte dos objetos sensiacuteveis e somente a alma sozinha por si mesma pode

alcanccedilar Neste contexto expressotildees como τὸ ὄν (78d4) podem ser pela

primeira vez admitidas como clara referecircncia a certas entidades

metafiacutesicas

(v) Uma abrupta inclusatildeo de uma teoria metafiacutesica neste ponto do diaacutelogo

seria improvaacutevel

(vi) Seria estranho que Platatildeo jaacute estivesse apresentando uma teoria das

Formas na primeira etapa do diaacutelogo e inicie a etapa demonstrativa com

o argumento ciacuteclico onde natildeo temos qualquer referecircncia a lsquoFormasrsquo

23 Transiccedilatildeo para a etapa demonstrativa

Quando Soacutecrates apenas assume a crenccedila de que a sua alma continuaria a existir

no Hades depois da morte e a imortalidade eacute asssumida conforme os padrotildees de uma

tradiccedilatildeo religiosa Cebes coloca em conflito duas tradiccedilotildees diacutespares a respeito da alma

post mortem ndash uma admitia que a alma eacute aniquilada e desvanece como sopro ou fumo

20

por ocasiatildeo da morte enquanto a outra afirma que a alma continua existindo mantendo

capacidade e sabedoria (69e-70b) Este conflito ou noacute dramaacutetico na narrativa deve ser

solucionado por Soacutecrates a partir de uma longa investigaccedilatildeo que se desenrola na etapa

demonstrativa do diaacutelogo na qual Soacutecrates toma posiccedilatildeo e ataca vigorosamente a ideia

de que a alma pode ser destruiacuteda quando se separa do corpo Portanto esse conflito que

Platatildeo coloca bem na etapa de transiccedilatildeo entre o primeiro estaacutegio do diaacutelogo e a etapa

demonstrativa eacute de suma importacircncia no Feacutedon tudo o que foi dito antes prepara o

leitor para a apresentaccedilatildeo desse conflito e tudo que seraacute dito posteriormente propotildee a

soluccedilatildeo desse conflito (Cf 69e-70c)

Este ponto de tensatildeo do diaacutelogo eacute agravado por aquilo que Sedley chama de

espetaacuteculo paradoxal no Feacutedon Soacutecrates tenta persuadir seus amigos pitagoacutericos sobre

a verdade de sua proacutepria doutrina11 Sedley afirma que Cebes e Siacutemias satildeo pitagoacutericos e

que a doutrina da sobrevivecircncia da alma depois da morte eacute uma inalienaacutevel parte do

pensamento pitagoacuterico12 Antes de avaliarmos os argumentos sobre a imortalidade da

alma no Feacutedon conveacutem apresentar algumas evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no

Feacutedon e conhecer melhor os amigos de Soacutecrates que estatildeo extremamente interessados

em confrontar essa doutrina popular segundo a qual a alma eacute passiacutevel de aniquilaccedilatildeo na

ocasiatildeo em que se separa da morte

24 Evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

241 Temas pitagoacutericos presentes no diaacutelogo

11 Sedley 1995 p11

12 Sedley 1995 p12

21

Ao final da antiguidade havia uma visatildeo generalizada de que Orfeu e Pitaacutegoras

tinham ensinado a mesma doutrina teoloacutegica e que Pitaacutegoras havia aprendido de Orfeu

discursos e misteacuterios Os antigos acreditavam que Pitaacutegoras seria um devoto de Orfeu e

do mestre havia recebido suas doutrinas esoteacutericas A associaccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo passa a ser tatildeo comum que foi cunhada a expressatildeo oacuterfico-pitagoacuterico para

fazer referecircncia a praacuteticas cuacutelticas teorias da alma e ideias escatoloacutegicas compartilhadas

por orfismo e pitagorismo13

Pesquisadores recentes e contemporacircneos tendem a associar pitagoacutericos e oacuterficos

e a transmigraccedilatildeo da alma como principal ponto de encontro entre os dois grupos

Alguns propotildeem que Pitaacutegoras teria sido um tipo de mestre de religiatildeo e miacutestico mais

do que um filoacutesofo Essa tese foi defendida por Rohde para quem os primeiros

pitagoacutericos adotaram teorias de natureza puramente religiosa as quais se aproximavam

das religiotildees de misteacuterio como o Orfismo Rohde apresenta vaacuterios temas

compartilhados por oacuterficos e pitagoacutericos

(i) a crenccedila na necessidade de a alma expiar uma culpa atraveacutes de

transmigraccedilotildees e puniccedilotildees infernais

(ii) a doutrina da alma prisioneira de um corpo

(iii) a nova encarnaccedilatildeo seria condicionada pela vida passada

(iv) a vida em comunidades isoladas

(v) praacutetica do ascetismo iniciaccedilotildees e purificaccedilotildees como meio de salvaccedilatildeo 14

13 Bernabeacute 2014 p141

14 Cf Rohde 1950 p375

22

Pesquisadores contemporacircneos como Kingsley tambeacutem acreditam que os

primeiros pitagoacutericos estavam ligados agrave religiatildeo

(i) eles mantinham profundas afinidades com oraacuteculos e revelaccedilotildees

(ii) a casa de Pitaacutegoras tinha a reputaccedilatildeo de casa de misteacuterios

(iii) eles seguiam preceitos rituais como dogmas a serem obedecidos

(iv) pitagoacutericos como Empeacutedocles apresentaram seu ensino como uma forma

de revelaccedilatildeo divina15

Pesquisas mais recentes tendem a apontar temas compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos na antiguidade mas tambeacutem ressaltam as suas distinccedilotildees Bernabeacute acredita

que Pitaacutegoras provavelmente tomou componentes de sua doutrina da literatura teoloacutegica

oacuterfica poreacutem eacute bem mais comedido em sua apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e

oacuterficos na antiguidade16 Ele apresenta vaacuterios temas em que oacuterficos e pitagoacutericos

coincidiam o quais resumimos aqui

(i) o tema da vida oacuterfica e da vida pitagoacuterica

(ii) o papel de destaque da deusa Memoacuteria na escatologia oacuterfica e a

importacircncia que pitagoacutericos atribuem agrave deusa Memoacuteria

(iii) a utilizaccedilatildeo de frases ou senhas difiacuteceis e que tem um profundo sentido

para os iniciados

15 Kingsley 1995 p 319

16 Bernabeacute 2014 p 143

23

(iv) a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma17

Por outro lado Bernabeacute tambeacutem ressalta as diferenccedilas apontando vaacuterios temas

da tradiccedilatildeo oacuterfica que estatildeo ausentes no pitagorismo como

(i) pessimismo em relaccedilatildeo ao corpo

(ii) a culpa que mancha alma

(iii) a busca por uma salvaccedilatildeo da alma individual alheia ao mundo poliacutetico

(iv) a relaccedilatildeo com o deus Dioniso e com os misteacuterios baacutequicos

(v) a purificaccedilatildeo por meios religiosos18

Zhmud ainda eacute mais contundente na distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

tentando reconstruir a figura mais filosoacutefica do Pitaacutegoras histoacuterico Conforme Zhmud a

primeira referecircncia ao personagem histoacuterico Pitaacutegoras eacute feita por Xenoacutefanes num

contexto em que satiriza a doutrina da metempsicose tal como Pitaacutegoras ensinava a

qual incluiacutea a possibilidade de a alma renascer em corpos de animais Portanto esse

testemunho conecta o nome de Pitaacutegoras com a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma

numa eacutepoca anterior agrave eacutepoca de Platatildeo19 Zhmud afirma que os pitagoacutericos se

apropriaram da doutrina oacuterfica da transmigraccedilatildeo da alma e a transformaram mas

acentua que a doutrina puramente religiosa natildeo teve consideraacutevel influecircncia na

construccedilatildeo pitagoacuterica de noccedilotildees filosoacuteficas da alma20 Ele tenta separar ao maacuteximo a

17 Bernabeacute 2014 p 144-146

18 Bernabeacute 2014 p147

19 Zhmud 2012 p30-31

20 Zhmud 2012 p388

24

figura de Pitaacutegoras das religiotildees de misteacuterios enquanto buscar recuperar uma

interpretaccedilatildeo mais ldquofilosoacuteficardquo de Pitaacutegoras Segundo ele esses satildeo os pontos decisivos

para uma distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

(i) os oacuterficos tem o seu proacuteprio culto os pitagoacutericos natildeo

(ii) os pitagoacutericos adotam a doutrina oacuterfica da metempsicose mas a

divorciaram da escatologia e antropogonia oacuterfica deixando de ser uma

doutrina religiosa de salvaccedilatildeo

(iii) o motivo da culpa ancestral natildeo estaacute presente no antigo pitagorismo21

(iv) os pitagoacutericos natildeo veem a transmigraccedilatildeo da alma como puniccedilatildeo por

culpas preacutevias mas como sendo natural e apropriado que as almas se

alojem em corpos de humanos e de animais

(v) a transmigraccedilatildeo cumpre um ciclo de necessidade sendo bem diferente da

ideia oacuterfica de um ciclo de dores do qual a alma do iniciado anseia

escapar

(vi) aleacutem disso natildeo estaacute claro que para os pitagoacutericos a alma se libertaria do

ciclo de renascimentos e retornariam para os deuses como era o anseio

dos oacuterficos sendo possiacutevel que a versatildeo pitagoacuterica da metempsicose

implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da alma22

21 Em outras palavras os pitagoacutericos natildeo sustentam a ideia oacuterfica da culpa e impureza ancestral

fundamentada pelo mito oacuterfico de Dioniso e os Titatildes o qual servia de base para explicar a razatildeo

pela qual as almas tinham de transmigrar e seguir um caminho de salvaccedilatildeo por meio da

purificaccedilatildeo da alma

22 Zhmud 2012 p 228-230

25

Ao mesmo tempo que novas pesquisas ressaltam a distinccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo elas ratificam pontos fundamentais de contato entre eles como a doutrina

da transmigraccedilatildeo da alma embora cada ciacuterculo tivesse a sua proacutepria versatildeo e a

preocupaccedilatildeo com a purificaccedilatildeo embora os meios e objetivos de purificaccedilatildeo pudessem

ser diferentes 23 Satildeo justamente esses temas baacutesicos compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos que aparecem no Feacutedon onde temos uma mistura de versotildees oacuterficas e

pitagoacutericas desses temas comuns

Vejamos algumas evidecircncias para um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

242 Cenaacuterio

A conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates acontece em Fliunte uma pequena cidade

do Peloponeso centro da filosofia pitagoacuterica onde viveram vaacuterios dos uacuteltimos

pitagoacutericos24 Os historiadores dizem que com a perseguiccedilatildeo aos pitagoacutericos por volta

de 450 os lugares onde os pitagoacutericos se reuniam foram incendiados adeptos do ciacuterculo

pitagoacuterico foram mortos no nordeste da Itaacutelia e logo novos centros do pitagorismo

surgiram na Greacutecia central especialmente em Tebas e Fliunte 25 Natildeo sabemos ao certo

se o cenaacuterio teve alguma relevacircncia histoacuterica para Platatildeo

23 Natildeo haacute consenso sobre quem foram os primeiros a aderir agrave doutrina da metempsicose se

oacuterficos ou pitagoacutericos Ao que parece nem mesmo os antigos estavam seguros se os oacuterficos

haviam tomado suas doutrinas de Pitaacutegoras como sustentava Heroacutedoto ou se os pitagoacutericos dos

oacuterficos como propunham Jacircmblico e os neoplatocircnicos (Cf Bernabeacute 2004 p137)

24 Gallop p 2002 p74 Hackforth 1998 p29

25 Zhmud 2012 p107

26

243 Narrador

A histoacuteria eacute narrada por Feacutedon a Equeacutecrates O diaacutelogo inicia com a uma

enfaacutetica apresentaccedilatildeo do narrador Feacutedon ldquo Feacutedon vocecirc mesmo (αὐτός ὦ Φαίδων)

estava presente no dia em que Soacutecrates bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por

outra pessoardquo ldquoEu mesmo estava presente Equeacutecratesrdquo (αὐτός ὦ Ἐχέκρατες) (57a1

4) A figura histoacuterica parece ter sido um escravo que ao libertar-se aderiu ao ciacuterculo

socraacutetico e posteriormente fundou a sua proacutepria escola filosoacutefica26

Feacutedon eacute um disciacutepulo de Soacutecrates que natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo direta com o

pitagorismo Ele adere completamente agrave posiccedilatildeo de Soacutecrates de que a alma do filoacutesofo

desceraacute ao Hades ao contraacuterio dos pitagoacutericos que apresentam objeccedilotildees a essa crenccedila

(Cf 58e-59a) Apesar das suas raacutepidas intervenccedilotildees ao longo do diaacutelogo Feacutedon figura

como um aliado uacutetil para Soacutecrates na refutaccedilatildeo de Simmias e Cebes (89b-90d)

244 Testemunhas da morte de Soacutecrates

Feacutedon apresenta os amigos que estavam presente no dia da morte de Soacutecrates

Os atenienses satildeo Apolodoro Criacuteton Critoacutebulo com seu pai Hermoacutegenes Epiacutegenes

Eacutesquines Antiacutestenes Ctesipo Menexeno e mais alguns Platatildeo estava doente diz

Feacutedon (59b) Os estrangeiros eram Feacutedon Siacutemias Cebes Fedondes Euclides e

Teacuterpsion Estavam ausentes Aristipo e Cleocircmbroto (59c) Xenofonte reconhece a

distinccedilatildeo desse grupo ao dizer que Criacuteton Hermoacutegenes Siacutemias Cebes Fedondes e

outros estavam associados com Soacutecrates natildeo com o fim de se tornarem demagogos ou

26 Dorter 1982 p 9 10

27

para vencer demandas judiciais mas para se tornarem homens bons e nobres capazes

de prestar um bom serviccedilo agrave famiacutelia parentes amigos e concidadatildeos27

Entre essas personalidades estatildeo pelos menos trecircs pitagoacutericos Filolau de

Crotona e seus disciacutepulos Siacutemias e Cebes de Tebas os principais interlocutores de

Soacutecrates no diaacutelogo Embora Filolau seja apenas mencionado no diaacutelogo ele requer

mais atenccedilatildeo por causa da sua relaccedilatildeo com os principais interlocutores de Soacutecrates no

diaacutelogo

245 Filolau

O texto crucial para qualquer reconstruccedilatildeo da vida de Filolau eacute a passagem do

Feacutedon 61d a qual sugere que Filolau passou um tempo em Tebas onde ensinou a

Siacutemias e Cebes em algum momento anterior agrave morte de Soacutecrates em 39928 Os

testemunhos antigos recolhidos por Huffman sobre a vida de Filolau relatam

basicamente o seguinte

(i) Filolau foi um mestre pitagoacuterico de renome o qual teria nascido em

algum momento antes de 440 e poderia inclusive ter sido contemporacircneo

de Soacutecrates

(ii) Testemunhos divergem sobre a sua origem Crotona ou Tarento

27 Memoraacuteveis 1248 31117 312

28 Hufmann 1993 p1

28

(iii) Filolau e um amigo tiveram de deixar a Itaacutelia para fugir de um atentado ndash

puseram fogo no lugar onde os pitagoacutericos se reuniam29

(iv) Os antigos costumavam associar Filolau e Platatildeo 30

Apesar do problema da confiabilidade dos testemunhos antigos parece natildeo

haver duacutevida de que o Filolau a quem Platatildeo se refere no Feacutedon era realmente o famoso

mestre pitagoacuterico conhecido agrave eacutepoca de Platatildeo o qual teria nascido na estimativa de

Ruffman por volta de 470 31 Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve

vaacuterios pupilos dentre os quais Siacutemias e Cebes como sugere o Feacutedon32 Huffman

acredita que depois de Pitaacutegoras existem trecircs proeminentes nomes no pitagorismo

Hipaso (c 530-450) Filolau (c 470-385) e Arquitas (430-350) 33

246 Principais Interlocutores de Soacutecrates ndash Cebes e Siacutemias

Os principais interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon natildeo satildeo atenienses mas

tebanos (59c) Como diz Sedley eles satildeo filoacutesofos hiacutebridos disciacutepulos de Soacutecrates e

Filolau (61d)34 A relaccedilatildeo entre Filolau reconhecido mestre pitagoacuterico e Siacutemias e

Cebes eacute forte indiacutecio de que os amigos de Soacutecrates tambeacutem satildeo adeptos do pitagorismo

29 Hufmann 1993 p3-4 6-7

30 Hufmann 1993 p3-4 6-7

31 Hufmann 1993 p6

32 Zhmud 2012 p128

33 Zhmud 2012 p8

34 Sedley 1995 p13

29

Contra esta ideia Rowe afirma que a simples associaccedilatildeo com Filolau natildeo torna Siacutemias e

Cebes pitagoacutericos nem haacute registros fora do Feacutedon que testemunhem que eles satildeo

pitagoacutericos35 Mas eacute difiacutecil negar que Soacutecrates sugere uma relaccedilatildeo menor do que a de

mestre-disciacutepulo quando fala do processo de aprendizagem ao qual seus amigos se

submeteram quando estiveram aos peacutes de Filolau em Tebas Como explica Zhmud

Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve vaacuterios pupilos dentre os

quais Siacutemias e Cebes36

Siacutemias e Cebes tambeacutem satildeo fieacuteis membros do ciacuterculo socraacutetico eles satildeo

mencionados no Criacuteton (45a-b) como estrangeiros dispostos a coletar fundos para

subornar o guarda e comprar a fuga de Soacutecrates da prisatildeo

No Feacutedon Cebes eacute certamente o principal interlocutor de Soacutecrates

(i) Tem um gecircnio agradaacutevel ele ri em pelo menos trecircs ocasiotildees no diaacutelogo

(62a 77e 103b) Sua postura ceacutetica diante da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates

eacute fundamental para o desenvolvimento do diaacutelogo (81d-82b 102b-107a)

(ii) Ele eacute apresentado como algueacutem difiacutecil de convencer pelos argumentos

(63a)

(iii) Eacute um interlocutor capaz e interveacutem com frequecircncia no diaacutelogo pede que

Soacutecrates explique o que deveria responder a Eveno o qual deseja saber

por que Soacutecrates se dedica agrave composiccedilatildeo de poemas na cadeia (60d) ele

confronta a tese de que os filoacutesofos desejam morrer (63a-d) e confronta a

crenccedila de Soacutecrates na descida da alma ao Hades o que daacute iniacutecio agrave etapa

35 Rowe 1993 p7 36 Zhmud 2012 p128

30

demonstrativa (69e-70a) suas objeccedilotildees datildeo iniacutecio agrave etapa demonstrativa

(70a) e ao uacuteltimo argumento (95b-e) praticamente introduz o segundo

argumento no Feacutedon (72e-73b)

Siacutemias eacute mencionado no Fedro (242b) como algueacutem que ama os discursos No

Feacutedon ele eacute apresentado como um jovem bem interessado em filosofia (89a4) e o

proacuteprio Soacutecrates o reconhece como interlocutor inteligente (86d) Ele tem vaacuterias

participaccedilotildees importante no diaacutelogo

(i) Apresenta uma interessante teoria da alma-harmonia (61d7 86d2)

(ii) Apresenta objeccedilotildees em pontos-chave do diaacutelogo mas em geral tende a

concordar e reforccedilar o discurso de Soacutecrates ou o de Cebes (Cf77a-b)

(iii) Siacutemias ri em uma ocasiatildeo quando dialoga com Soacutecrates (64a)

(iv) Vaacuterias vezes o diaacutelogo ocorre entre ele e Soacutecrates (63c-69e 73b-77b

92b-95a)

(v) Uma das participaccedilotildees mais polecircmicas de Siacutemias ocorre depois da

apresentaccedilatildeo da conclusatildeo do uacuteltimo argumento enquanto Cebes natildeo

tem objeccedilotildees e nem razotildees para desconfiar do argumento de Soacutecrates

Siacutemias diz que natildeo tem nenhuma objeccedilatildeo ao argumento contudo por

causa da grandeza do assunto da debilidade humana ele se vecirc obrigado a

cultivar em seu iacutentimo alguma desconfianccedila (107a-107b)

31

247 Equeacutecrates

Equeacutecrates eacute cidadatildeo de Fliunte (57a) e ceacutelebre filoacutesofo pitagoacuterico Feacutedon narra

o diaacutelogo para um pitagoacuterico Equeacutecrates tem algumas participaccedilotildees importantes no

diaacutelogo

(i) No proacutelogo ele se mostra muito interessado em saber com detalhes o que

aconteceu com Soacutecrates na prisatildeo e requer uma explicaccedilatildeo com a

maacutexima exatidatildeo dos fatos ocorridos (58c) Ele quer saber tudo que se

passou com Soacutecrates na cadeia (57a-b 58c) inclusive quais amigos

estavam presentes (58c 59b)

(ii) Ele interrompe a narraccedilatildeo de Feacutedon em dois pontos importantes do

diaacutelogo (88c-89a 102a4-10)

(iii) Eacute uma personagem importante porque todo o diaacutelogo eacute narrado para ele

25 Conclusatildeo

Portanto tudo indica que as personagens principais do diaacutelogo estatildeo pelo menos

envolvidas com pitagoacutericos

32

3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)

31 Antigo Relato

A etapa demonstrativa oferece uma soluccedilatildeo para o problema apresentado no

estaacutegio de transiccedilatildeo do diaacutelogo certa ideia de que a alma poderia ser dispersa e

destruiacuteda na hora da morte (69e-70b) Em resposta agrave objeccedilatildeo de Cebes Soacutecrates se

propotildee a examinar o seguinte problema ldquo() se de algum modo as almas das pessoas

que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Aparentemente Soacutecrates considera que

se as almas dos que morrem estatildeo no Hades seria falsa a afirmaccedilatildeo de que as almas

podem ser destruiacutedas bem na hora em que a alma se separa do corpo Soacutecrates logo

introduz no diaacutelogo um antigo relato segundo o qual as almas passam por um ciclo de

transmigraccedilotildees

ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual as

almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute vindo

a ser dos mortosrdquo (70c5-8)

Esse antigo relato eacute apresentado em tom solene Soacutecrates evoca a autoridade da

lsquoantiga tradiccedilatildeorsquo (παλαιὸς τις λόγος) Platatildeo ressalta o tom solene da doutrina bem

como a forccedila peso e autoridade da tradiccedilatildeo com a qual estaacute lidando O conteacuteudo do

relato eacute basicamente a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma compartilhada especialmente

por oacuterficos e pitagoacutericos na antiguidade

33

Portanto Platatildeo estaacute em diaacutelogo com a crenccedila sustentada especialmente por

seitas de misteacuterios e natildeo pela religiatildeo tradicional certamente uma doutrina

compartilhada por oacuterficos e pitagoacutericos37 Aleacutem de um contexto pitagoacuterico haacute vaacuterias

alusotildees a crenccedilas sustentadas por religiotildees de misteacuterio como o Orfismo no Feacutedon Por

exemplo em 62b Soacutecrates fala do lsquoconteuacutedo que se encontra nos textos secretosrsquo e em

69c fala lsquodos que instituiacuteram os ritos iniciaacuteticosrsquo A proacutepria crenccedila na descida ao Hades

depois que a alma se separa do corpo eacute tipicamente oacuterfica (e pitagoacuterica) O que temos

no relato antigo e no argumento ciacuteclico ndash a ideia de transmigraccedilatildeo juntamente com a

descida ao Hades ndash eacute algo diferente da concepccedilatildeo homeacuterica e da religiatildeo grega

tradicional Esse dado diverge do ideaacuterio religioso homeacuterico e tradicional e identifica o

antigo relato e o contexto em que Platatildeo constroi o argumento ciacuteclico como sendo

tipicamente oacuterfico e pitagoacuterico 38

O Orfismo se estabelece como uma religiatildeo de misteacuterio cujo conteuacutedo

doutrinaacuterio e rituais sagrados eram mantidos em segredo Era uma religiatildeo livre

independente da estrutura social e ligada agraves camadas populares Vejamos algumas

crenccedilas oacuterficas e evidecircncias para um contexto oacuterfico no Feacutedon

32 Orfismo e o Feacutedon

321 Hades

37 Cf Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p91-92

38 Cf Bernabeacute 2011 p163

34

A mitologia do Hades estaacute no centro da crenccedila oacuterfica e ocupa lugar de relevacircncia

no contexto amplo do Feacutedon No Orfismo o Hades eacute tanto o senhor da morada do

mundo inferior como tambeacutem por extensatildeo o nome desse mundo do aleacutem 39 Sendo o

Orfismo uma religiatildeo que sustenta a transmigraccedilatildeo da alma e as recompensas e castigos

poacutestumos a descida ao Hades eacute um tema fundamental na tradiccedilatildeo oacuterfica40

Entre os documentos oacuterficos as lacircminas de ouro (as quais eram enterradas com

os mortos) satildeo uma das mais importantes fontes para o estudo da crenccedila oacuterfica sobre o

Hades A partir delas eacute possiacutevel reconstruir em linhas gerais a topografia infernal oacuterfica

o Hades oacuterfico eacute um lugar subterracircneo para onde se conduzem as almas e eacute tambeacutem a

mansatildeo de Hades Essa topografia infernal estaacute relacionada diretamente com a crenccedila

oacuterfica em puniccedilotildees e julgamento apoacutes a morte Os impuros seriam punidos no Hades de

acordo com a sua maacute conduta sobre a Terra Posteriormente eles retornariam agrave vida na

Terra como mais um tipo de puniccedilatildeo e tambeacutem como periacuteodo de provaccedilatildeo uma nova

oportunidade para aderir ao estilo de vida oacuterfica e assim purificar-se e preparar-se para

a descida ao Hades Platatildeo estaacute bem familiarizado com o tema dos castigos infernais os

quais aparecem em vaacuterias obras aleacutem do Feacutedon Na Repuacuteblica 330d eacute dito que

segundo os mitos sobre o Hades quem comete injusticcedila aqui deve pagar laacute a pena Nas

Leis 870d os que se ocupam dos misteacuterios dizem que no Hades haacute um castigo para os

delitos e que eacute obrigatoacuterio voltar ao mundo dos vivos para a pena exigida

Os iniciados aguardavam uma vida bem-aventurada no Hades e a libertaccedilatildeo final

do ciclo de transmigraccedilotildees vivendo o estilo de vida oacuterfico na esperanccedila de descer ao

39 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p509

40 Guthrie 1970 p165

35

Hades e desfrutar da recompensa41 Como veremos adiante Soacutecrates possui uma

expectativa semelhante agrave dos oacuterficos para ele seria natural que o filoacutesofo que dedica a

vida agrave filosofia deseje a morte uma vez que o legiacutetimo filoacutesofo deve esperar a definitiva

bem-aventuranccedila no Hades

Esse grupo de lacircminas de ouro testemunham inclusive instruccedilotildees aos iniciados

sobre como proceder corretamente na morada do Hades42 Elas apresentam orientaccedilotildees

como a necessidade de seguir pela direita e de beber da aacutegua da fonte correta a qual

permitiria que o iniciado permanecesse no Hades e desfrutasse da bem-aventuranccedila

definitiva em vez de voltar ao ciclo de transmigraccedilotildees43 As lacircminas tambeacutem trazem

foacutermulas ou senhas a serem pronunciadas pelos iniciados quando questionados pelos

guardiatildees as quais permitiam que o morto fosse reconhecido como puro e iniciado 44 A

Lacircmina de Farsalo por exemplo afirma que os guardiatildees que laacute estatildeo perguntaratildeo ao

iniciado por que motivo ele veio Outras perguntas comuns satildeo ldquoMas quem eacute vocecirc e de

onde eacuterdquo ou ldquoO que busca nas trevas do Hades sombriordquo 45 A resposta mais frequente

a essas perguntas eacute ldquoSou filho da Terra e do Ceacuteu estreladordquo 46

Aleacutem de instruccedilotildees aos iniciados tambeacutem eacute possiacutevel encontrar nessas lacircminas

de ouro a antecipaccedilatildeo do destino final no Hades Nas lacircminas de Turi e Pelina temos

inclusive o que espera o iniciado no Hades antecipando-lhes basicamente a bem-

41 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500 Guthrie 1970 p157-158

42 Albinus 2000 p147

43 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500-501

44 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Cf Gazzinneli 2007 p17

45 Gazzinelli 2007 p 75-76

46 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Gazzinelli 2007 p 75-76

36

aventuranccedila a ser desfrutada pela alma do iniciado a saber o abandono definitivo da

esfera humana e o acesso ao reino dos bem-aventurados47

Esse breve apanhado revela um pouco da centralidade e importacircncia do Hades

na crenccedila oacuterfica O leitor do Feacutedon pode perceber que natildeo apenas o Hades ocupa lugar

de importacircncia ao longo de todo o diaacutelogo mas que o tipo de expectativa que Soacutecrates

nutre pelo Hades em muito se assemelha agraves expectativas dos iniciados oacuterficos A crenccedila

no Hades estaacute presente em todo o diaacutelogo inclusive na conclusatildeo do argumento ciacuteclico

as almas dos que morrem vatildeo para o Hades (cf71e72a 72d)

Portanto no Feacutedon a personagem Soacutecrates eacute portadora de uma concepccedilatildeo do

destino humano que aponta para aleacutem do mundo visiacutevel e para aleacutem do corpo mortal

para uma forma superior de vida no Hades concepccedilatildeo compartilhada pelos oacuterficos e

pitagoacutericos48

Eacute possiacutevel identificar a existecircncia de pontos de encontro entre o Hades oacuterfico e o

Hades apresentado no Feacutedon assim como tambeacutem existe forte semelhanccedila entre a

expectativa oacuterfica da descida ao Hades e a expectativa de Soacutecrates da descida ao Hades

Eacute plausiacutevel que Platatildeo esteja realmente se apropriando e se utilizando de conceitos

oacuterficos de retribuiccedilotildees no Hades aos iniciados como conveacutem agrave sua filosofia O iniciado

oacuterfico enxerga a morte como algo bom e se prepara a vida inteira para essa ocasiatildeo que

se traduz na oportunidade de alcanccedilar a redenccedilatildeo final a separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo a libertaccedilatildeo do ciclo de transmigraccedilotildees Soacutecrates tambeacutem vecirc a morte sob uma

oacutetica natildeo muito diferente De acordo com a utilizaccedilatildeo platocircnica da ideia oacuterfica da

descida ao Hades a morte e a chegada ao Hades representam a redenccedilatildeo final do

47 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p518

48 Kahn 2007 p18 19

37

legiacutetimo filoacutesofo Eacute a ocasiatildeo em que ele livre dos impedimentos do corpo teraacute livre

acesso agrave verdade que busca durante toda a vida (Cf 68a-b) A realidade do Hades como

destino das almas continua presente no final do uacuteltimo argumento quando Soacutecrates

conclui natildeo apenas que a alma eacute imortal e impereciacutevel mas tambeacutem que ldquoas nossas

almas existiratildeo no Hadesrdquo (106e-107a)

322 Purificaccedilatildeo mito de Dioniso e praacuteticas oacuterficas

As crenccedilas oacuterficas se fundamentam sobre o mito de Dioniso e os Titatildes o mito

fundante da antropogonia oacuterfica Apesar de alguns pesquisadores questionarem a

antiguidade desse mito uma soacutelida tradiccedilatildeo de estudiosos do Orfismo vem sustentando

que se trata realmente de um mito fundamental na articulaccedilatildeo das crenccedilas da religiatildeo

oacuterfica Segundo uma soacutelida e difusa tradiccedilatildeo de um relacionamento incestuoso entre

Zeus e a filha Perseacutefone se origina o deus Dioniso o qual eacute destinado a se tornar o novo

rei dos deuses O nascimento suscita o ressentimento de Hera esposa de Zeus a qual

instiga os Titatildes contra Dioniso Os Titatildes enganam Dioniso com brinquedos com o

objetivo de o atrair Assim eles o matam desmembram em sete partes cozinham e o

devoram Contudo Atena descobre o fito em tempo de resgatar o coraccedilatildeo ainda

batendo o qual a deusa leva ateacute Zeus num cesto Indignado Zeus fulmina os Titatildes

ressuscita um novo Dioniso a partir de um coraccedilatildeo sobrevivente e cria a humanidade49

Sendo assim o homem possui um elemento mau impuro como heranccedila dos Titatildes e um

49 Albinus 2000 p112

38

elemento bom (a alma uma centelha do divino) como heranccedila de Dioniso Esses dois

elementos constituem a dual natureza humana representada pelo corpo e alma50

As praacuteticas oacuterficas buscam libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do

ciclo de reencarnaccedilotildees fazendo com que a alma retorne completamente agrave sua origem

dionisiacuteaca (a alma divina) Por causa da natureza titacircnica a alma estaacute obrigada a expiar

a culpa presa ao corpo ao longo de vaacuterias vidas Sendo de divina e imortal a alma

transmigra a outro corpo quando aquele em que estaacute alojada morre Para libertar-se da

maacutecula titacircnica o fiel deve seguir um estilo de vida governado por uma seacuterie de rituais e

observacircncias ateacute que cumpridas as condiccedilotildees a alma divina e imortal se liberta do ciclo

de transmigraccedilotildees e se reintegra a sua comunidade com os deuses Enquanto natildeo

cumpre as condiccedilotildees necessaacuterias prossegue o ciclo de males e transmigraccedilotildees a que a

alma impura estaacute sujeita51

323 O corpo como tumba da alma puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo

A partir do mito de Dioniso Zagreu se desenvolveu a ideia de que o corpo eacute vil

enquanto de natureza titacircnica e a alma divina e imortal enquanto de natureza

dionisiacuteaca Drsquoanna explica que desse mito procede a doutrina oacuterfica que concebe o

corpo como uma tumba ou sepulcro da alma bem como a crenccedila soterioloacutegica num tipo

de lsquoredenccedilatildeo finalrsquo do homem que consistiria na libertaccedilatildeo completa da alma de seu

caacutercere corporal52 Para os oacuterficos o corpo oblitera a libertaccedilatildeo da natureza dionisiacuteaca

50 Rohde 1950 p 341-342

51 Cf Drsquoanna 2010 p 77-78 Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p591-592

52 Drsquoanna 2010 p 98

39

do ser humano razatildeo pela qual eles parecem ter abraccedilado uma doutrina de que a alma eacute

um tipo de prisatildeo ou tumba do corpo53 Essa ideia de que o corpo eacute uma prisatildeo da alma

eacute identificada como um ensino oacuterfico no Craacutetilo 400c e tambeacutem aparece no Goacutergias

493a onde se diz que o corpo eacute para noacutes uma sepultura

De acordo com a doutrina oacuterfica o trabalho do ser humano eacute libertar-se das

cadeias desse corpo mortal no qual a alma estaacute atada como um prisioneiro numa cela A

morte liberta a alma apenas por um curto periacuteodo de tempo pois a alma deve voltar a

sofrer o aprisionamento em outro corpo mortal continuando a sua jornada submetendo-

se a um lsquociacuterculo de necessidadersquo Contudo existe um meio pelo qual o ser humano pode

livrar-se desse perpeacutetuo ciclo de renascimentos O ser humano precisa da revelaccedilatildeo dos

misteacuterios de Orfeu para encontrar um caminho de salvaccedilatildeo o fiel deve seguir as

ordenanccedilas previstas pela religiatildeo Os fieacuteis natildeo devem seguir apenas os sacros misteacuterios

da parte de Orfeu mas uma completa vida oacuterfica deve ser observada renunciando tudo

que relaciona a pessoa agrave mortalidade e agrave vida corporal Tambeacutem o Hades exerce um

papel nesse processo de purificaccedilatildeo da natureza mortal ali os impuros sofrem puniccedilatildeo e

satildeo purgados como um tipo de justiccedila compensatoacuteria A transmigraccedilatildeo tambeacutem eacute

fundamental para a purificaccedilatildeo uma vez que os atos de uma vida passada satildeo

recompensados uma proacutexima vida Tudo isso capacita o fiel a obter o favor e

purificaccedilatildeo da divindade 54

As praacuteticas oacuterficas para a purificaccedilatildeo eram transmitidas pelos orfeotelestaiacute

(ὀρφεοτελεσταί) sacerdotes que viviam um estilo de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός) Orfeu

53 Cf Craacutetilo 400c onde Platatildeo menciona semelhante doutrina antiga e a atribui aos oacuterficos

54 Rohde 1950 p342-344

40

era crido na antiguidade por ter introduzido os ritos (ὄργια) de iniciaccedilatildeo (τελετή) na

Greacutecia O objetivo dessa praacutetica cultual era esoteacuterico e soterioloacutegico visando a salvaccedilatildeo

escatoloacutegica55 Havia uma lista austera de normas de conduta e observacircncias como

ausecircncia dos ciacuterculos sociais ritos fuacutenebres ascetismo e abstinecircncia rituais para

purificaccedilatildeo da culpa e expiaccedilatildeo abstinecircncia de carne proibiccedilatildeo de matar animais

associada a uma dieta estritamente vegetariana56 Essa vida austera com todo rigor

asceacutetico se justifica porque para o oacuterfico o corpo com seus apetites e paixotildees eacute a fonte

de toda sorte de mau a natureza titacircnica que aprisiona a alma Sendo assim o estilo de

vida oacuterfico visa libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo Nesse processo de

purificaccedilatildeo o iniciado exalta e libera cada vez mais a sua natureza dionisiacuteaca (a alma

divina e imortal) de sua prisatildeo corporal ateacute que finalmente alcance uma condiccedilatildeo

suficiente para a definitiva descida ao Hades quando ele finalmente se juntaria aos

deuses imortais Cada reencarnaccedilatildeo traz uma oportunidade para abreviar o ciclo de

encarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo

Em suma existe uma lista de praacuteticas que cooperam para a redenccedilatildeo final do

iniciado as penas infernais as reencarnaccedilotildees o estilo de vida oacuterfica as praacuteticas dos

rituais de misteacuterios e o correto procedimento ao chegar ao Hades satildeo meios para a

obtenccedilatildeo da redenccedilatildeo final que basicamente consiste na separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo quando cessa o ciclo de reencarnaccedilotildees e a alma se une aos deuses no Hades

Encontramos vaacuterias referecircncias aos iniciados nos documentos oacuterficos como

mostramos nos seguintes exemplos

55 Albinus 2000 p103

56 Alderink 1981 p80-81 Albinus 2000 p103-104

41

(i) O Papiro de Gurob traz o seguinte verso 57 ldquoatraveacutes da iniciaccedilatildeo a mim

mutila para as penas dos pais descontarrdquo 58

(ii) Na lacircmina de ouro Feres haacute uma declaraccedilatildeo de que o iniciado que acaba

de chegar ao Hades natildeo mais teria penas a cumprir ficando assim livre

do ciclo de transmigraccedilatildeo ldquoEntre no campo sagrado Pois o iniciado

natildeo (tem) penardquo59

(iii) Na Lacircmina de Hipocircnio os iniciados eacute que satildeo dirigidos por um caminho

singular no Hades ldquoE vocecirc tendo bebido iraacute pelo caminho sagrado pelo

qual os outros iniciados (mystai) e baacutequicos (baacutecchoi) seguem

renomadosrdquo 60

(iv) Nas lacircminas de Turi I II III os iniciados se identificam como puros na

chegada ao Hades ldquoVenho dentre os puros oacute pura Rainha dos Infernosrdquo

Nas lacircminas de Turi I e II o iniciado solicita que por ser puro ele seja

enviado para ldquoo assento dos purosrdquo 61 62

57 Gazzinneli 2007 p67

58 Gazzinneli 2007 p67

59 Gazzinneli 2007 p81

60 Gazzinneli 2007 p73

61 Gazzinneli 2007 p78 79

62 A Repuacuteblica de Platatildeo faz alusatildeo aos oacuterficos e seus ritos de purificaccedilatildeo os quais envolveriam

sacrifiacutecios e conjuros durantes as festas denominadas misteacuterios As praacuteticas seriam chamadas de

expiaccedilatildeo e poderiam reparar as faltas pessoais e dos antepassados livrando os iniciados dos

males do Hades (Cf R 2 364b-365a)

42

324 Puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo no Feacutedon

Haacute vaacuterios exemplos claros da utilizaccedilatildeo das ideias oacuterficas de purificaccedilatildeo e

iniciaccedilatildeo no Feacutedon Platatildeo se utiliza do tema de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός)

especialmente a ideia da iniciaccedilatildeo purificaccedilatildeo e redenccedilatildeo Temos um bom exemplo em

69a-d pouco antes de Soacutecrates fazer referecircncia agrave antiga tradiccedilatildeo Nos ritos de

purificaccedilatildeo oacuterfica os iniciados geralmente passavam lama ou lodo no corpo com o

objetivo de limpar ou apagar a maacutecula63 No Feacutedon Soacutecrates afirma que os homens que

instituiacuteram os misteacuterios natildeo eram mediacuteocres e que eles estavam certos ao dizer que ao

chegar ao Hades os iniciados e purificados iratildeo habitar com os deuses enquanto os

natildeo-iniciados e impuros vatildeo jazer na lama (69c 110a5-6 111d5-e2 113a6-b6 c3-7

81a4-6) A lama ou lodo portanto tanto servia para propoacutesitos de purificaccedilatildeo nos

rituais oacuterficos conforme os testemunhos antigos quanto no Hades no caso de pessoas

natildeo-iniciadas

Soacutecrates nutre a esperanccedila de que seraacute recompensado no Hades e natildeo somente

ele mas todo aquele cuja mente estaacute pronta e purificada (67c) No Hades os iniciados

habitaratildeo com os deuses e os natildeo-iniciados jazeratildeo na lama (69c) Eacute bem provaacutevel que

Platatildeo esteja utilizando ideias escatoloacutegicas oacuterficas64

Tambeacutem eacute importante notar que a ideia de iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo no Feacutedon estaacute

conectada com a concepccedilatildeo oacuterfica do corpo como prisatildeo da alma Semelhante doutrina

do aprisionamento da alma no corpo eacute introduzida no Feacutedon em 62b por ocasiatildeo da

discussatildeo sobre o suiciacutedio e eacute apresentada por Soacutecrates como sendo uma doutrina

63 Albinus 2000 p 135

64 Bernabeacute in Adluri 2013 p127-128

43

extraordinaacuteria e natildeo faacutecil de entender completamente ldquoA propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e que

ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendarrdquo (Cf 67d1-2 81e2 92a1) Em 82e Soacutecrates

retoma a ideia de que a alma estaacute presa ao corpo dizendo que mesmo os filoacutesofos satildeo

obrigados a considerar as realidades atraveacutes do corpo como que atraveacutes de uma prisatildeo

em vez de fazecirc-lo estritamente por meio de si mesma Soacutecrates ainda ressalta que a

proacutepria filosofia percebe que o pior dessa prisatildeo eacute que ela opera por meio dos desejos

de modo que o encarcerado pode se tornar o maior cuacutemplice de seu encarceramento

(82e)

Essa central doutrina oacuterfica que divide alma e corpo fazendo do corpo um mero

obstaacuteculo para a alma natildeo apenas exerceu uma tremenda fascinaccedilatildeo sobre Platatildeo como

tambeacutem permeia todo o Feacutedon juntamente com o uso da linguagem oacuterfica de iniciaccedilatildeo

A inovaccedilatildeo platocircnica no Feacutedon prevecirc novos meios de redenccedilatildeo para o iniciado e

uma nova ideia de salvaccedilatildeo Platatildeo desenvolve sua visatildeo de que filosofia eacute um meio de

purificaccedilatildeo da alma65 A purificaccedilatildeo filosoacutefica consiste na praacutetica de separar a alma do

corpo o quanto for possiacutevel evitando ao maacuteximo qualquer comunhatildeo com ele Essa

kaacutetharsis filosoacutefica equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (Feacutedon 64a) Sendo

assim o novo caminho para a iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo eacute a praacutetica da filosofia (69d) em

vez dos atos de redenccedilatildeo oacuterficos 66

Enquanto os iniciados seguem um estilo de vida oacuterfico e praacuteticas rituais para

expurgar a penalidade ancestral e a natureza titacircnica Soacutecrates prescreve o cultivo de

6565 Cf Dilman 1992 p20-21

66 Cf Albinus 2000 p139

44

virtudes associadas agrave sabedoria e o exerciacutecio da razatildeo como meios de purificaccedilatildeo Em

suma tudo isso pode ser resumido na praacutetica ou exerciacutecio da filosofia que Soacutecrates

chama de exerciacutecio de morte (81a)

Os iniciados oacuterficos devem descer ao Hades munidos de foacutermulas maacutegicas e

senhas para serem reconhecidos pelos guardiatildees da morada infernal e conseguirem

acesso aos lugares excelentes na versatildeo platocircnica de salvaccedilatildeo a alma deve manter-se

na melhor condiccedilatildeo possiacutevel de modo que a pessoa viva da melhor maneira possiacutevel

pois o que mais ajuda ao moribundo do iniacutecio ao fim de sua jornada ao Hades eacute a

educaccedilatildeo e treinamento que carrega consigo (107c-d) Como este estilo de vida a qual

Soacutecrates se refere sempre eacute o estilo de vida daquele que cuida da alma atraveacutes da praacutetica

da verdadeira filosofia que no Feacutedon consiste em rejeitar o corpo e dedicar-se a

alcanccedilar a sabedoria pelo exerciacutecio do intelecto somente

Os oacuterficos almejam um tipo de salvaccedilatildeo que consiste na liberaccedilatildeo do ciclo de

renascimentos No Feacutedon Soacutecrates se apropria dessa ideia oacuterfica e a aplica agrave esperanccedila

do filoacutesofo de alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo de renascimento e morte No Feacutedon natildeo se

diz explicitamente que todas as almas vatildeo alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo tal como os

filoacutesofos alcanccedilaratildeo No entanto Soacutecrates deixa evidente a distinccedilatildeo entre as almas que

satildeo definitivamente liberadas e aquelas que continuam a transmigrar A liberaccedilatildeo

definitiva do ciclo de renascimento e morte e a subsequente recompensa do filoacutesofo eacute

geralmente expressa em termos miacutetico-religiosos como lsquohabitar com as divindadesrsquo

(69C 81a4-6 82b10) ou obter a suprema bem-aventuranccedila em lsquomoradas bem

construiacutedasrsquo que vatildeo aleacutem de qualquer descriccedilatildeo (114c) Portanto Platatildeo se utiliza de

estruturas da doutrina oacuterfica para construir um tipo de ldquosoteriologia filosoacuteficardquo cujo

fundamento da salvaccedilatildeo eacute a praacutetica da verdadeira filosofia O tema da recompensa

45

poacutestuma eacute utilizado por Platatildeo para expressar os benefiacutecios a serem desfrutados por

aqueles que dedicam a vida agrave filosofia

Jaacute que a purificaccedilatildeo filosoacutefica eacute o exerciacutecio ou praacutetica da filosofia o iniciado

natildeo eacute mais o adepto das praacuteticas oacuterficas mas o filoacutesofo Soacutecrates declara explicitamente

isto quando lembra dos ritos oacuterficos em honra a Dioniso Ele explica que os adeptos dos

Misteacuterios costumam dizer que muitos carregam o tirso mas poucos satildeo os Bacantes

numa referecircncia aos que aderem ao culto a Dioniso mas natildeo se comprometem

totalmente com o deus Ao contraacuterio dos religiosos de aparecircncia existem os Bacantes

iniciados que estatildeo intimamente ligados ao deus praticando os Misteacuterios conforme o

deus requer Soacutecrates entatildeo utiliza a ideia oacuterfica em tom de paroacutedia afirmando que os

poucos Bacantes que existem natildeo satildeo aqueles religiosos que se exercitam nos Misteacuterios

mas os filoacutesofos ndash aqueles que realmente dedicam a vida agrave filosofia Aleacutem de definir o

iniciado como aquele que pratica a filosofia Soacutecrates provavelmente estaacute fazendo uma

distinccedilatildeo entre verdadeiros e falsos filoacutesofos dando a entender que haacute muitos ditos

filoacutesofos mas assim como poucos satildeo os Bacantes poucos tambeacutem satildeo os verdadeiros

filoacutesofos (Cf69c-d) Platatildeo estaacute oferecendo filosofia como substituto para os

misteacuterios67 Ele faz isso utilizando estruturas e siacutembolos oacuterfico-pitagoacutericos como forma

de instruccedilatildeo sobre a vida filosoacutefica e sobre a vida apoacutes a morte68

67 Menn in Adluri 2013 p214

68 Bussanich in Adluri 2013 p250

46

325 Transmigraccedilatildeo da Alma

Ao longo do Feacutedon Soacutecrates estabelece uma relaccedilatildeo entre iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo (meios de redenccedilatildeo) recompensas no Hades (redenccedilatildeo final) e a teoria da

transmigraccedilatildeo das almas69 A transmigraccedilatildeo das almas eacute o conteuacutedo do antigo relato

segundo o qual as almas vatildeo para o Hades depois da morte e de laacute voltam (70c)

Conforme este relato o Hades eacute a origem e destino da alma dos vivos Natildeo temos

nenhuma informaccedilatildeo sobre a origem uacuteltima da alma de onde ela viria antes de iniciar

esse ciclo em que passa alternadamente pelo mundo dos vivos e pelo Hades o qual

figura como um tipo de lugar obrigatoacuterio para a alma desencarnada seja para uma

passagem temporaacuteria ou para uma estada permanente

O conteuacutedo baacutesico do antigo relato eacute a transmigraccedilatildeo das almas ou

metempsicose (i) a alma se separa do corpo por ocasiatildeo da morte e desce ao Hades

onde permanece por algum tempo (ii) a alma volta do Hades ao mundo dos vivos e

aloja-se em novo corpo A crenccedila de que a alma transmigra de um corpo a outro de

acordo com um ciclo de nascimentos eacute uma doutrina oacuterfica antiga mas na antiguidade

tambeacutem se costuma atribuir a sua origem a Pitaacutegoras e pitagoacutericos 70 No contexto da

religiatildeo oacuterfica a transmigraccedilatildeo estaacute relacionada com um culpa antiga que remonta ao

mito de Dioniso Zagreu Os Titatildes satildeo antepassados dos seres humanos e suas culpas

devem ser expiadas por eles O pagamento do castigo implica a liberaccedilatildeo do ciclo de

69 Cf Bernabeacute in Adluri 2013 p128

70 Albinus 2000 p117

47

transmigraccedilotildees 71 Haacute vaacuterios documentos oacuterficos da antiguidade que testemunham o

caraacuteter oacuterfico dessa doutrina como os seguintes

(i) As placas de osso de Oacutelbia apresenta a sequecircncia ldquovida morte

vidardquo um testemunho da crenccedila oacuterfica no ciclo contiacutenuo de vida e

morte 72

(ii) As Lacircminas de Pelina I e II (B2) tambeacutem registram a crenccedila no ciclo

de vida e morte ldquoOra vocecirc morre ora nasce trecircs vezes afortunado

neste dia

(iii) A lacircmina de Turi II o iniciado afirma que eacute da ldquoraccedila afortunadardquo e

reivindica o fim do ciclo de transmigraccedilotildees com base nas penas que

jaacute cumprira ldquoServi a pena relativa a obras em nada justasrdquo

(iv) A Lacircmina de Turi III testemunha ldquoVoei para longe do ciclo de

doloroso e pesado lamentordquo73

A doutrina da metempsicose seguiu sendo reconhecida como oacuterfica ao longo de

toda a antiguidade74

No Feacutedon a ideia da transmigraccedilatildeo da alma eacute bastante explorada por Soacutecrates

inclusive a doutrina do renascimento em animais geralmente atribuiacuteda a pitagoacutericos

Aqueles que natildeo se purificam durante a vida reencarnariam num corpo de acordo com o

71 Cf Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p601

72 Gazzinneli 2007 p 81 82

73 Gazzinneli 2007 p 81 82

74 Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p611

48

gecircnero de vida praticado alguns voltam agrave vida em corpos de variados animais outros

em corpos de seres humanos (Cf62b 67d 69c-d 80d) Almas que se libertam do corpo

manchadas impuras e contaminadas pelo elemento corporal temem de tal modo o

Hades que satildeo arrastadas de volta ao mundo visiacutevel passando a perambular em

monumentos fuacutenebres e sepulturas (81c-81d) Essas satildeo as almas dos maus os quais satildeo

obrigadas a perambular assim como castigo por causa do modo vida que havia levado

as quais andam errantes ateacute que possa alojar-se novamente em um corpo com os

mesmos viacutecios de outrora como glutonaria e desejo desmedido pela bebida Almas

assim podem renascer em asnos ou animais de semelhante natureza (81d-e) Almas

responsaacuteveis por injusticcedilas tiranias e roubos renasceriam na linhagem de lobos falcotildees

e abutres (82a) Dentre essas almas que natildeo se dedicaram agrave filosofia as que vatildeo para um

corpo melhor satildeo as pessoas sociais e civilizadas as quais praticaram a virtude popular

e ciacutevica a temperanccedila e a justiccedila as quais tanto podem retornar em corpos de abelhas

vespas ou formigas quanto podem retornar ao gecircnero humano para serem pessoas de

bem (82a-b) A praacutetica de virtudes sem a cooperaccedilatildeo da filosofia eacute proveitosa chegando

a interferir no processo de transmigraccedilatildeo mas nunca pode oferecer a redenccedilatildeo final a

libertaccedilatildeo do ciclo de renascimentos juntamente com as recompensas no Hades A

mensagem platocircnica central eacute que soacute via filosofia eacute possiacutevel se purificar durante a vida e

partir puro para o Hades Essas satildeo as almas dos filoacutesofos o verdadeiro filoacutesofo

(iniciado) chegaraacute agrave linhagem dos deuses e habitaraacute com eles uma vez que alcanccedilaram

a libertaccedilatildeo e purificaccedilatildeo que se efetuam por meio da praacutetica de uma vida dedicada agrave

filosofia (82b-d) A alma do filoacutesofo sendo purificada iraacute se encontrar com aquilo com

o que guarda afinidade de modo algum se esvaindo no momento da separaccedilatildeo do corpo

ou mesmo dissipada pelos ventos sem existir em parte alguma (84b) Contudo a alma

49

afeita ao corpo passa a incorporar o tipo de vida corporal e desse jeito nunca pode

chegar ao Hades no estado de pureza razatildeo pela qual logo volta a alojar-se em outro

corpo ficando privada da companhia do divino puro e uniforme (83d-e)

Ainda no mito escatoloacutegico final existe uma passagem que alude agrave

transmigraccedilatildeo da alma Soacutecrates fala do Taacutertaro o mais profundo abismo para onde

confluem todas as correntes dos rios e onde todas elas se originam As almas dos

mortos permanecem ali por um tempo determinado alguns permanecendo mais tempo

outras menos Cumprido o tempo as almas satildeo novamente enviadas para as geraccedilotildees

dos seres vivos (112a 113a)

Portanto a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma faz parte da estrutura baacutesica da

argumentaccedilatildeo no Feacutedon A essa doutrina esoteacuterica estatildeo relacionados outros temas

proacuteprios das religiotildees de misteacuterios como a divisatildeo entre corpo e alma a iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo dos fieacuteis e a descida ao Hades com as respectivas recompensas e puniccedilotildees

infernais

326 Imortalidade da alma

Para os adeptos dos ciacuterculos oacuterficos seria natural pensar que alma eacute imortal por

causa do seu caraacuteter divino dionisiacuteaco em oposiccedilatildeo ao elemento mortal do corpo de

natureza titacircnica Como diz Taylor a imortalidade da alma eacute uma mera consequecircncia de

uma heranccedila divina75 No escopo da religiatildeo grega se a alma eacute imortal deve ser no

75 Taylor 1922 p177

50

sentido de sua essencial natureza divina Ela por si mesma pertence agrave realidade divina

de modo que os termos imortal e divino satildeo intercambiaacuteveis76

Portanto na religiosidade grega de modo geral a afirmaccedilatildeo de que a alma eacute

imortal quer dizer para um grego natildeo soacute que manteacutem a capacidade de sentir de

entender e de estar verdadeiramente viva apoacutes a morte mas tambeacutem que a alma eacute

divina77 O Feacutedon dialoga com essa fonte e tradiccedilatildeo religiosa grega

Mais especificamente no contexto da religiosidade oacuterfica Albinus esclarece que

os antigos natildeo consideram a mitologia oacuterfica apenas como um tipo de histoacuteria ou mito

mas tambeacutem como um relato (λόγος) que expressa a relaccedilatildeo entre humanidade e

divindade mortalidade e imortalidade78 O ciclo de transmigraccedilotildees certamente

representa essa dupla ligaccedilatildeo da alma com o humano e mortal (quando encarnadas) e

divino e imortal (quando desencarnadas) Portanto o tema da imortalidade estaacute

associado ao tema da transmigraccedilatildeo na mitologia oacuterfica Eacute necessaacuterio compreender este

ponto para uma correta compreensatildeo do argumento ciacuteclico como prova da imortalidade

da alma provar que as almas transmigram eacute tambeacutem provar que elas satildeo imortais num

contexto religioso oacuterfico no qual natildeo temos aniquilaccedilatildeo completa da alma mas apenas

rompimento do ciclo de reencarnaccedilotildees Em suma

(i) Imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma satildeo temas indissociaacuteveis na

religiatildeo oacuterfica

76 Rohde 1950 p254

77 Bernabeacute 2000 p 171

78 Albinus 2000 p117

51

(ii) A transmigraccedilatildeo pode ser entendida como um importante aspecto da

doutrina da imortalidade da alma sendo a alma imortal o ser humano

natildeo escapa da penalidade que deve pagar ao longo do ciclo de

renascimentos79

(iii) Eacute tambeacutem a crenccedila na imortalidade da alma que sustenta toda a ideia de

purificaccedilatildeo e conseguinte libertaccedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilotildees quando o

oacuterfico alcanccedila um tipo de redenccedilatildeo final livre do corpo e do ciclo de

renascimentos ele passa a viver como uma divindade80

Portanto eacute natural que os oacuterficos combinem doutrina da transmigraccedilatildeo da alma e

a crenccedila na divindade e imortalidade da alma Ao que parece os pitagoacutericos tambeacutem

fizeram uma associaccedilatildeo semelhante entre a transmigraccedilatildeo e imortalidade da alma81 Eacute

esta concepccedilatildeo de imortalidade atrelada agrave doutrinda da transmigraccedilatildeo da alma que estaacute

presente no argumento ciacuteclico

Eacute razoaacutevel pensar que agrave eacutepoca de Platatildeo os gregos possuiacuteam uma seacuterie de teses

inconsistentes sobre a alma de modo que dogmas como o da imortalidade da alma natildeo

estavam bem claros para todas as pessoas Aleacutem disso ideias como a que Cebes

apresenta ndash a desintegraccedilatildeo da alma que se separa do corpo ndash poderiam tambeacutem ser

sustentadas pelo menos por algum grupo de pessoas

79 Bussanich in Adluri 2013 p243

80 Rohde 1950 p345

81 Bernabeacute 2000 p 172

52

327 Conclusatildeo

Noacutes encontramos uma rica presenccedila de doutrinas tipicamente oacuterficas no Feacutedon

e tudo indica que Platatildeo estaacute utilizando doutrinas oacuterficas e pitagoacutericas em seu diaacutelogo

Os motivos oacuterficos aparecem na primeira parte do Feacutedon e se manteacutem em cena no

diaacutelogo ateacute o mito escatoloacutegico final A pesquisa de Kingsley mostra que alusotildees a

crenccedilas oacuterficas no estaacutegio inicial do diaacutelogo satildeo retomadas no mito escatoloacutegico final

Ele utiliza dois temas oacuterficos para justificar a sua tese castigo poacutestumo dos impuros e a

recompensa dos puros A ideia de jazer na lama que eacute uma imagem das puniccedilotildees

infernais aos natildeo-iniciados cedo eacute introduzida no diaacutelogo e volta a aparecer trecircs vezes

no mito escatoloacutegico final no contexto dos vastos rios de lama infernais (Cf 69c5-6

110a5-6 11d5-e2 113a6-b6) O mais interessante eacute que o material apresentado

previamente no diaacutelogo oferece uma breve antecipaccedilatildeo do que viraacute pela frente

revelando que existe um tipo de exposiccedilatildeo sistemaacutetica dessa crenccedila oacuterfica no Feacutedon O

tema da recompensa no Hades para os iniciados e purificados apresenta o mesmo

padratildeo de antecipaccedilatildeo e posterior explanaccedilatildeo complementaacuteria no contexto do mito final

A imagem do impuro que sofre a pena de jazer na lama tem a sua contraparte na

imagem da alma pura que desce ao Hades para desfrutar da recompensa de viver com os

deuses imortais (69c6-7 111b6-c1 114b7-c2 114d3) Tambeacutem nesse caso as alusotildees

oacuterficas da etapa inicial do diaacutelogo voltam a aparecer no mito final e tornam-se uma

chave valiosa para a compreensatildeo da estrutura linguagem e significado do mito82

Tudo isso leva a crer que existe a presenccedila meticulosa das ideias oacuterficas na

estrutura fundamental do Feacutedon

82 Cf Kingsley 1992 p119-120

53

4 Anaacutelise do argumento ciacuteclico propriamente dito

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma Platatildeo define morte como

lsquoseparaccedilatildeo da alma do corporsquo(64c) Ainda no primeiro estaacutegio do diaacutelogo a personagem

Soacutecrates defende que a alma que se separa do corpo natildeo se dispersa e perece como as

pessoas afirmam mas continua a existir sozinha por si mesma (Cf 64c 70a-b) Ainda

que a palavra lsquoimortalrsquo natildeo apareccedila no diaacutelogo ateacute 73a introduzida por Cebes e

Soacutecrates soacute a empregue pela primeira vez no contexto do argumento das afinidades

(Cf79d) a ideia de que a alma eacute imune agrave morte aparece bem cedo no diaacutelogo e as

provas do Feacutedon tecircm o objetivo de provar que a alma eacute imortal Natildeo seria possiacutevel

avaliar se as provas satildeo suficientes ou natildeo se os amigos de Soacutecrates natildeo tivessem bem

definido o que elas satildeo destinadas a provar ou pelo menos aquilo que eles esperam que

elas provem Eles natildeo apenas tecircm em mente o que o mestre precisa provar mas tambeacutem

satildeo capazes (ateacute certo ponto) de apontar a insuficiecircncia dessas provas

O argumento ciacuteclico jaacute eacute visto por Cebes como prova da imortalidade da alma

ele associa o primeiro argumento e o ensino da reminiscecircncia com a ideia de que ele

talvez pudesse tambeacutem mostrar que a alma eacute imortal (72e1-73a3) Cebes natildeo afirma que

o argumento ciacuteclico havia provado que a alma eacute imortal nem mesmo estaacute certo de que o

argumento da reminiscecircncia pode fazecirc-lo mas indica que eacute necessaacuterio uma nova prova

Desde o iniacutecio da etapa demonstrativa apenas uma prova da imortalidade da

alma poderaacute contrapor a crenccedila de que a alma perece na ocasiatildeo em que se separa do

corpo (70a) que eacute o problema motriz da etapa demonstrativa Esta crenccedila doutrina ou

posiccedilatildeo filosoacutefica eacute enfrentada por Platatildeo no diaacutelogo O termo εὐθύς colabora com essa

54

ideia de que a alma seria passiacutevel de desintegraccedilatildeo na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do

corpo Vejamos algumas passagens

(i) Antes de comeccedilar a etapa demonstrativa o que atormenta inicialmente os

amigos de Soacutecrates eacute a possibilidade de que a alma do mestre seja

destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo (70a4-5) (εὐθὺς

ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος)

(ii) Na transiccedilatildeo entre argumento da reminiscecircncia e das afinidades Soacutecrates

ainda tem em mente a problemaacutetica seria necessaacuterio continuar a

discussatildeo porque os amigos possuem um ldquotemor pueril de que o vento

realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania e natildeo

de brisardquo (77d) Apesar de o termo εὐθύς natildeo aparecer aqui a ideia

continua sendo desintegraccedilatildeo que ocorre na ocasiatildeo da morte O que

parece uma ironia socraacutetica na verdade estaacute de acordo com a concepccedilatildeo

de certas pessoas de a alma poderia ser dispersa pelo vento

especialmente por um vento forte

(iii) Na etapa que segue o argumento das afinidades Soacutecrates retoma o

problema que gera toda a etapa demonstrativa mas agora coloca duas

ideias em contraste e em ambos os casos Soacutecrates utiliza εὐθύς

bull Nem mesmo o cadaacutever que eacute material e assim a ele pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ

διαπίπτειν καὶ διαπνεῖσθαι) sofre todas essas coisas

55

imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν πέπονθεν) mas

lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado

Certas partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά

ἐστιν) (80c2-d4)

bull Em contraste com o cadaacutever cuja natureza eacute passiacutevel de

dissoluccedilatildeo Soacutecrates lembra que a alma eacute de natureza distinta ela

eacute a parte invisiacutevel da pessoa e possui afinidades com o nobre

puro e invisiacutevel e desceraacute ao Hades para se reunir com um deus

Sendo assim questiona se os amigos acham que a alma seria

dispersa e pereceria na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo

(ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ

ἀπόλωλεν) (80d) Aqui Soacutecrates mostra o absurdo de acreditar

que a alma que possui a mesma natureza imaterial das lsquoFormasrsquo

e do lsquodivinorsquo seria desintegrada na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo

do corpo enquanto o corpo ainda seria mais resistente agrave

destruiccedilatildeo do que a proacutepria alma Soacutecrates procura mostrar o

absurdo desta posiccedilatildeo com base nos argumentos jaacute apresentados

os quais jaacute haviam deixado claro que a alma eacute algo superior ao

corpo e de natureza diferente Ainda que natildeo tivesse ainda

oferecido uma prova suficiente da imortalidade da alma os trecircs

primeiros argumentos jaacute haviam mostrado que a alma natildeo eacute tal

como o corpo Soacutecrates critica a crenccedila que acaba tornando o

corpo mais duraacutevel do que a proacutepria alma

56

bull Pouco depois Siacutemias tenta responder agrave questatildeo de Soacutecrates com

a sua teoria da alma-harmonia e insiste em comprovar que a

alma sendo uma mistura de elementos corporais eacute a primeira a

perecer naquilo que chamamos de morte enquanto o corpo

perdura algum tempo (86c-d) Esta passagem nos revela mais um

detalhe da concepccedilatildeo da natureza da alma que estaacute em cena no

Feacutedon o receio de que a alma seja uma mistura de elementos

corporais e que ela seria passiacutevel agrave dispersatildeo e desintegraccedilatildeo na

ocasiatildeo da morte

bull Cebes ficaraacute contra a posiccedilatildeo de Siacutemias de que o corpo dura mais

do que a alma e com o seu argumento do tecelatildeo e seu manto

tenta mostrar que a alma dura mais do que o corpo mas nada

garante que ela eacute completamente imune agrave morte Desintegraccedilatildeo e

perecimento instantacircneo podem natildeo ocorrer mas nada garante

que natildeo haja a possibilidade de que a alma seja destruiacuteda no seu

uacuteltimo ciclo de reencarnaccedilatildeo (Cf 87-88b)

O argumento ciacuteclico eacute inserido num contexto em que se busca provar que a alma

eacute imune agrave morte contra a crenccedila numa alma passiacutevel a dissoluccedilatildeo e perecimento Mas

de iniacutecio o tema da imortalidade eacute tratado a partir de uma matriz baacutesica da religiosidade

oacuterfica imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma A abertura do argumento

ciacuteclico se daacute com um convite de Soacutecrates para examinar ldquo() se de algum modo as

almas das pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Este objeto de

investigaccedilatildeo coincide com o conteuacutedo do relato de uma tradiccedilatildeo religiosa de cunho

57

oacuterfico e pitagoacuterico ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o

qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

proveniente dos mortosrdquo (70c5-8)

O antigo relato tem em vista basicamente que a alma se engaja no ciclo de

reencarnaccedilatildeo ndash a alma deixa um corpo desce ao Hades e de laacute volta a reencarnar No

orfismo e pitagorismo natildeo existe a possibilidade de a alma ser desintegrada ou

destruiacuteda Se for verdade o que diz o relato lsquoque os vivos provecircm dos mortosrsquo Soacutecrates

entende que eacute necessaacuterio concluir que lsquoas nossas almas estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) Se

coisas vivas e pessoas vivas (tentativa de generalizar ndash tudo que eacute vivo) procedem

daqueles que estatildeo mortos (ἐκ τῶν τεθνεώτων τὰ ζῶντά τε καὶ οἱ ζῶντες γίγνονται) eacute

necessaacuterio concluir que as nossas almas estatildeo no Hades (εἰσὶν αἱ ψυχαὶ ἡμῶν ἐν

Ἅιδου) (71d14-e2) Portanto eacute necessaacuterio provar que os vivos provecircm dos mortosrsquo

Para isto eacute necessaacuterio um argumento com base no princiacutepio de que todos os opostos

provecircm dos opostos (70e1-2) A terminologia do argumento ciacuteclico deriva diretamente

daquela utilizada no antigo relato ndash verbo γίγνομαι seguido de ἐκ + genitivo ndash como se

pode observar

(i) ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual

as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

provenientes dos mortosrdquo ( γίγνονται ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c8)

(ii) ldquoSe realmente eacute verdade que os vivos provecircm dos mortos ()rdquo

(γίγνεσθαι ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9)

(iii) ldquoSe realmente ficasse evidente que os vivos provecircm de nenhum lugar a

natildeo ser dos mortosrdquo (γίγνονται οἱ ζῶντες ἢ ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c9)

58

(iv) ldquoTodas as coisas tecircm origem assim opostos dos opostosrdquo (γίγνεται πάντα

ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

Apresentado o princiacutepio de que todos os opostos provecircm dos opostos Soacutecrates

convida ao exame

(i) ldquoVejamos se todas essas coisas satildeo geradas da seguinte maneira opostos dos

opostos (γίγνεται πάντα ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

(ii) ldquoPortanto examinaremos se tudo que tem um oposto proveacutem

necessariamente de seu oposto e de nenhum outrordquo (70e5-6) (τοῦτο οὖν

σκεψώμεθα ἆρα ἀναγκαῖον ὅσοις ἔστι τι ἐναντίον μηδαμόθεν ἄλλοθεν αὐτὸ

γίγνεσθαι ἢ ἐκ τοῦ αὐτῷ ἐναντίου)

(iii) ldquoTemos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina desta maneira as

coisas opostas procedem de seus opostosrdquo (71a9-10) (ἱκανῶς οὖν ἔφη

ἔχομεν τοῦτο ὅτι πάντα οὕτω γίγνεται ἐξ ἐναντίων τὰ ἐναντία πράγματα)

Eis em linhas gerais a estrutura baacutesica do argumento seguida de comentaacuterio

[1] Tudo que tem um oposto proveacutem necessariamente de seu oposto (70e-71a)

[2] Para cada par de opostos existem dois processos opostos se um oposto x

passa a y haacute tambeacutem um processo de um oposto y que passa a x por exemplo

aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um processo do

quente ao frio (71a11-b10)

59

[3] Se os dois processos natildeo se equilibrassem (se algo viesse a ser quente a partir

de ser frio mas natildeo frio a partir de ser quente tudo findaria quente) tudo

acabaria no mesmo estado) (72a-b)

[4] Tudo natildeo acaba por ficar no mesmo estado (72a-d)

[5] Portanto se algo vem a ser um oposto y a partir de um oposto x ele tambeacutem

viraacute a ser um oposto x a partir de um oposto y (se algo vem a ser quente a partir

de frio ele tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

[6] Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

[7] Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que

estaacute vivo (71e-72a)

[8] As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

[9] Portanto as almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

[10] Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar)

(71e72a 72d)

A prova eacute estabelecida sobre o princiacutepio de que pares de opostos

obrigatoriamente sofrem determinados processos ciacuteclicos83 O termo ἀναγκαῖον eacute

fundamental na exegese do argumento porque marca esta necessidade ou

obrigatoriedade de que este princiacutepio de mudanccedila ocorra entre pares de opostos natildeo

deixando espaccedilo para exceccedilotildees (Cf70e 71b 72a) Visto dessa maneira o processo

ciacuteclico que ocorre entre pares de opostos eacute perpeacutetuo natildeo tem fim Mas Soacutecrates natildeo

apresenta nenhum argumento vaacutelido para sustentar esta posiccedilatildeo apenas assume que se

83 Gallop 2002 p 103

60

natildeo houvesse um balanccedilo nesse processo ciacuteclico todas as coisas acabariam no mesmo

estado entatildeo tudo chegaria ao fim (72a-d) Portanto o argumento inteiro repousa sobre

uma ideia assumida por Soacutecrates a ideia de que eacute impossiacutevel que tudo acabe no mesmo

estado

Este processo ciacuteclico obrigatoacuterio consiste no seguinte

Para cada par de opostos existem dois processos opostos um processo pelo qual

um oposto x passa a y e um processo pelo qual um oposto y passa a x por

exemplo aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um

processo do quente ao frio (71a11-b10)

Portanto se algo vem a ser oposto y a partir de oposto x ele tambeacutem viraacute a ser

oposto x a partir de oposto y (se algo vem a ser quente a partir de frio ele

tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

A afirmaccedilatildeo de que deve haver processos em ambas as direccedilotildees eacute vital para

qualquer uso efetivo do princiacutepio de que os opostos vecircm dos opostos Este princiacutepio eacute

essencial para o funcionamento do argumento ciacuteclico como um todo84 Caso este

processo ciacuteclico natildeo seja obrigatoriamente mantido ad eternum o argumento possui

uma falha irreparaacutevel Este eacute um dos problemas vitais do argumento como voltaremos a

mencionar adiante Soacutecrates assume a obrigatoriedade do processo com base num

argumento invaacutelido a mera observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto

Em seguida Soacutecrates aplica o princiacutepio ao caso dos opostos vida e morte (71c6-

d3) a fim de provar que o que eacute vivo proveacutem do que eacute morto e o que eacute morto do que eacute

84 Gallop 2002 p109

61

vivo o que segundo ele levaria a uma necessaacuteria conclusatildeo de que lsquoas nossas almas

estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) O filoacutesofo afirma que existe um processo de tornar-se vivo

novamente (o reviver passar a viver novamente) (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute vivo

(71e-72a) Este ponto eacute fundamental para a compreensatildeo do argumento e deve ser

entendido a partir de duas ideias que Platatildeo explora no argumento (i) a sua noccedilatildeo de

morte como separaccedilatildeo da alma e corpo e sua admissatildeo de que morte eacute um estado em

que a alma existe separadamente do corpo (64c4-8) (ii) a doutrina da transmigraccedilatildeo da

alma segundo a qual passar a viver novamente (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) significa que a alma

que jaacute havia alojado um corpo e lsquomorreursquo (desencarnou) reencarna volta a alojar-se

num corpo No antigo relato e no comentaacuterio seguinte temos o termo πάλιν (70c7-8d1)

para marcar a recorrecircncia a repeticcedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilatildeo e implica a ideia de

uma vida preacutevia Platatildeo tambeacutem emprega a expressatildeo lsquoaqueles que vivemrsquo como uma

referecircncia agrave pessoa composta de corpo e alma e lsquoaqueles que morreramrsquo para designar

aquele que jaacute esteve em vida e morreu (a alma desencarnou) (70c8-9)

Portanto quando Soacutecrates diz lsquoo que estaacute morto proveacutem do que estaacute vivorsquo

(71d10-11 72a5-6) seguindo ideia semelhante agravequela que aparece no antigo relato ndash os

vivos provecircm dos que jaacute morreram (ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9) ndash ele

reconhece que a alma que se aloja num corpo estaacute na verdade reencarnando porque

antes de se separar do corpo e descer ao Hades ela jaacute habitava um corpo e chama este

regresso ao corpo de lsquoreviverrsquo (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) que eacute o retorno da alma para o

corpo a reencarnaccedilatildeo Em algumas ocasiotildees Soacutecrates faz referecircncia agrave morte da alma e

isto deve ser meramente entendido como a sua separaccedilatildeo do corpo (77d2-4 84b2

88a6)

62

Estabelecido o processo ciacuteclico obrigatoacuterio que ocorre entre os opostos lsquovivorsquo e

lsquomortorsquo ndash lsquotornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute mortorsquo e lsquotornar-se

morto a partir do que estaacute vivorsquo Soacutecrates vecirc a necessidade de concluir que as nossas

alma existem (no Hades)

Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute

morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute

vivo (71e-72a)

As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

As almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar) (71e72a

72d)

A conclusatildeo eacute de que as almas dos mortos existem Ao final do argumento

Soacutecrates revisa pontos essenciais que foram tratados e provados segundo ele reviver

os vivos nascem dos mortos e as almas dos mortos existem (72d8-10)

O argumento eacute cheio de problemas e dificilmente pode se estabelecer como

prova suficiente da imortalidade da alma Dentre os problemas destacamos os

seguintes

(i) Para cada par de opostos existem obrigatoriamente dois processos opostos e

com base neles o argumento ciacuteclico visa mostrar que o ciclo de morte e de

renascimento deve continuar ad infinitum porque de outro modo tudo

63

acabaria morto Como diz Hackfort em nenhuma outra hipoacutetese a

continuaccedilatildeo da vida poderia ser explicada sem o processo reverso da morte

para a vida tudo mais cedo ou mais tarde estaria permanentemente morto

Mas ele lembra que esse argumento soacute pode ter forccedila se supormos que natildeo

pode haver vida nova que haacute por exemplo um nuacutemero limite de almas Se

os vivos pudessem ter alguma outra origem que natildeo os mortos a necessidade

loacutegica desse princiacutepio desapareceria Mas Soacutecrates simplesmente assume que

seria impossiacutevel pensar que o processo ciacuteclico obrigatoacuterio natildeo existiria com

base na sua observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto (Cf72a-d)85 Assim a

obrigatoriedade deste processo natildeo parece vaacutelida (72a-d) Eacute plenamente

possiacutevel que haacute coisas que passam de quente a frio e findam neste estado

sem que passem de frio a quente novamente No caso de vida e morte algo

pode vir a morrer a partir de estar vivo e simplesmente findar morto A alma

pode vir a morrer a partir de estar viva e simplesmente terminar morta sem

que necessariamente venha a reencarnar O argumento de que haacute um

necessaacuterio equiliacutebrio no processo natildeo eacute provado

(ii) Alguns termos essenciais para o argumento natildeo satildeo definidos por exemplo

Platatildeo natildeo explica o que ele chama de opostos Aleacutem disso vaacuterios supostos

pares de opostos na verdade natildeo satildeo opostos os adjetivos em forma

comparativa ndash maior e menor mais justo e menos justo ndash natildeo satildeo pares de

opostos (70e4-71a11)

(iii) O argumento apresenta inconsistecircncias lsquoo que estaacute morto proveacutem do que

estaacute vivorsquo (71d10-11 72a5-6) A prova da existecircncia de nossas almas no

85 Hackforth 1998 p64

64

Hades se baseia na ideia de que lsquoas almas provecircm dos mortosrsquo Esta linha

central do argumento eacute problemaacutetica porque estaacute relacionado com a noccedilatildeo de

morte que Soacutecrates apresenta e com a ideia de reencarnaccedilatildeo com base na

qual Soacutecrates emprega a expressatildeo lsquoreviverrsquo A definiccedilatildeo de morte como

separaccedilatildeo da alma e corpo e o reconhecimento de que eles podem existir

separadamente eacute bastante questionaacutevel Em primeiro lugar natildeo se explica e

comprova que alma e corpo podem viver separadamente O corpo comeccedila a

degenerar assim que a alma deixa o corpo seria entatildeo o caso de acontecer o

mesmo com a alma Especialmente depois do argumento das afinidades

Soacutecrates e os amigos discutiratildeo este problema seria o cadaacutever mais

duradouro do que a alma Siacutemias propotildee que o corpo eacute mais duradouro do

que a alma (argumento da alma-harmonia) enquanto Cebes propotildee que a

alma seria mais longeva do que o corpo (argumento do tecelatildeo e seu manto)

mas sofreria degeneraccedilatildeo ao longo dos ciclos de reencarnaccedilatildeo (Cf91d

quando Soacutecrates faz um resumo das duas posiccedilotildees) Todos esses problemas

levantados pelos amigos decorrem em parte desta concepccedilatildeo vaga de morte

apresentada no primeiro estaacutegio do diaacutelogo e com base na qual pelo menos

os primeiros argumentos operam No uacuteltimo argumento a noccedilatildeo de lsquomortersquo eacute

diferente da simples ideia de lsquoseparaccedilatildeo do corporsquo Em segundo lugar no

argumento ciacuteclico a alma viva procede dos que estatildeo mortos a alma que

aloja-se num corpo jaacute se alojara num corpo de algueacutem que morreu Soacutecrates

entende que o processo ciacuteclico do morto para o vivo soacute funciona se lsquomortorsquo

aqui natildeo significa lsquoaniquiladorsquo porque soacute seria possiacutevel vir a estar viva a

partir de estar morta se a alma existisse mesmo quando estaacute morta

65

(desencarnada) (Cf70d1-2) e Soacutecrates natildeo explica por que razatildeo a alma

continua a existir quando deixa o corpo A ideia simultacircnea de lsquomortersquo e

lsquoexistecircnciarsquo (uma alma que morre existe) eacute por demais obscura A alma eacute

morta (separada do corpo) e viva (no sentido de que continua a existir) mas

o se espera eacute que morte implica deixar de existir e natildeo que algo morto

continua a existir Sendo assim o argumento dificilmente se estabelece com

base numa ideia que depende da ideia baacutesica da transmigraccedilatildeo O proacuteprio

Cebes levantaraacute um argumento para mostrar que nada garante ateacute o momento

que a alma que passa por um ciclo de reencarnaccedilotildees natildeo seja aniquilada num

desses ciclos (87d-e)

(iv) O argumento ciacuteclico sustenta que as almas devem oscilar perpetuamente

entre o estado de estar ldquovivordquo (unido a um corpo) e ldquomortordquo (separado de um

corpo) mas enquanto ele visa provar que esses ciclos de reencarnaccedilotildees

ocorrem para sempre Platatildeo natildeo tem nada a dizer propriamente sobre a

natureza da alma se ela eacute realmente imortal imune agrave morte e destruiccedilatildeo O

argumento ciacuteclico acaba sendo uma primeira tentativa malograda de

contrapor a crenccedila de que a alma que se separa do corpo imediatamente

perece com base numa conclusatildeo simples se a alma continua existindo ela

natildeo eacute destruiacuteda na hora da morte

(v) O argumento oferece uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma mas ao mesmo tempo estaacute em conflito com ela a

doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico admite a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees enquanto o argumento ciacuteclico sugere a continuidade perpeacutetua

deste processo ciacuteclico entre pares de opostos Aleacutem disso Soacutecrates contradiz

66

a si mesmo no diaacutelogo Soacutecrates menciona a libertaccedilatildeo do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes da purificaccedilatildeo o filoacutesofo que se separa do corpo em

estado de pureza sem arrastar consigo elementos corporais rompe o ciclo de

reencarnaccedilotildees e passa a viver com a divindade no Hades (80d-81a) O

proacuteprio mito final tambeacutem contempla a possibilidade de que o ciclo seja

rompido (104c) Talvez Platatildeo queira alinhar o argumento com algum tipo

de versatildeo pitagoacuterica da metempsicose que implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da

alma Zhmud sugere a possibilidade de que oacuterficos e pitagoacutericos divergiam

neste ponto86 Mas isto eacute bastante questionaacutevel

(vi) Os comentaacuterios apresentados jaacute satildeo suficientes para mostrar que o

argumento ciacuteclico falha em estabelecer os trecircs pontos que Soacutecrates considera

ter sido provado o reviver os vivos nascem dos mortos e as almas dos

mortos existem (72d8-10)

Por fim conveacutem apresentar alguns comentaacuterios adicionais sobre o argumento

ciacuteclico como prova da imortalidade da alma

(i) O argumento visa provar que a alma eacute imortal a partir de uma concepccedilatildeo

oacuterifica e pitagoacuterica de imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma

O processo ciacuteclico apresentado eacute perpeacutetuo infindaacutevel inquebraacutevel

Soacutecrates natildeo considera qualquer possibilidade de que pudesse haver uma

ruptura num dos ciclos de morte (desencarnaccedilatildeo) e vida (encarnaccedilatildeo) ou

que a alma possa perecer num deles

86 Zhmud 2012 p 228-230

67

(ii) O que o argumento tenta provar de modo especiacutefico eacute que a alma existe

depois da morte por algum tempo indefinido curto espaccedilo de tempo

longo tempo ou por uma duraccedilatildeo infinita87 Portanto somente uma

limitada sobrevivecircncia post-mortem da alma88

O argumento possui um ponto a se considerar se a alma existe depois da morte

isto significa que a alma natildeo eacute dispersa e destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave sua separaccedilatildeo

da morte (Cf 70a) Esta eacute a primeira tentativa de atacar o problema apresentado Mas os

amigos aperfeiccediloam a exigecircncia seraacute necessaacuterio provar que a alma eacute imortal e natildeo que

possui existecircncia limitada

Tambeacutem eacute importante lembrar que o argumento ciacuteclico no Feacutedon vem sendo

interpretado por muito tempo como sendo um esforccedilo platocircnico para dar

respeitabilidade filosoacutefica agrave antiga doutrina religiosa da transmigraccedilatildeo da alma como jaacute

pensava Wolfe89 Esta posiccedilatildeo eacute seguida por alguns inteacuterpretes contemporacircneos como

Sedley para quem o projeto platocircnico natildeo eacute provar a imortalidade da alma de iniacutecio

mas confirmar a respeitabilidade cientiacutefica de uma tradiccedilatildeo religiosa providenciando

evidecircncias de que ela se conforma com uma lei universal que governa a natureza da

87 O neoplatocircnico Siriano afirma que o objetivo do argumento seria provar apenas que a alma

permanece no Hades seja por um curto espaccedilo de tempo por um longo tempo ou por uma

duraccedilatildeo infinita (Dam I1834-6 Olimp10111-12) (Cf Gertz 2011 p86)

88 Uma opiniatildeo que predominou entre os uacuteltimos inteacuterpretes neoplatocircnicos (Cf Gertz 2011

p95) Barnes (Cf Barnes amp Bonelli (ed) 2011 p306) segue essa posiccedilatildeo entre os

contemporacircneos ele acredita que nada no argumento implica imortalidade da alma concluindo

que o argumento natildeo foi designado para provar a imortalidade mas apenas uma duraccedilatildeo finita

da alma O argumento estaria comprometido em provar a existecircncia da alma em algum lugar

depois da morte e por algum tempo que eacute diferente de provar a imortalidade da alma Ele

ressalta que essa ideia de uma temporaacuteria sobrevivecircncia da morte estaacute presente no contexto mais

geral do Feacutedon como eacute o caso de Cebes a respeito do tecelatildeo e dos mantos que produz (cf 87d-

88b) e natildeo pode ser ignorada no contexto especiacutefico do argumento ciacuteclico

89 Cf Wolfe 1966 p237

68

mudanccedila90 Isto decorre da observaccedilatildeo de que o argumento ciacuteclico confirma o antigo

relato ndash a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma As duas premissas que o argumento ciacuteclico

visa provar satildeo (i) as almas dos que morrem existem no Hades (ii) as almas dos que

partiram existem no Hades de onde regressam para a vida terrena (70c) Vejamos a

comparaccedilatildeo

Antigo relato

As almas dos que morrem existem

no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem existem

no Hades (existecircncia post mortem

da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Mas eacute importante dizer que o argumento natildeo eacute incorporado ao Feacutedon porque

Platatildeo tem o objetivo de defender a crenccedila numa doutrina religiosa como se fosse um

religioso se utilizando da filosofia para fundamentar a sua crenccedila O objetivo claro do

diaacutelogo eacute provar a imortalidade da alma mas nesta primeira tentativa a concepccedilatildeo de

imortalidade se confunde com a de transmigraccedilatildeo

90 Sedley 2012 p147 148

69

Por fim natildeo haacute qualquer sinal de que o argumento ciacuteclico tenha sido bem

avaliado ou aceito pelos amigos de Soacutecrates No decorrer do diaacutelogo fica claro que

Platatildeo se distancia desse tipo de prova e busca desenvolver uma doutrina platocircnica da

imortalidade da alma a partir de uma concepccedilatildeo de imortalidade que independe da

transmigraccedilatildeo da alma embora possa servir agravequeles que sustentam a doutrina Eacute assim

que no uacuteltimo argumento depois de uma discussatildeo que independe do componente

religioso ao final depois de estabelecido que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Soacutecrates

acrescenta e estaacute no Hades (107a1)

A nossa anaacutelise indica que o argumento ciacuteclico natildeo prova efetivamente nem a

existecircncia da alma depois da morte nem a imortalidade da alma

70

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)

41 Introduccedilatildeo

Concluiacutedo o argumento ciacuteclico Cebes imediatamente conduz a discussatildeo para o

ensino da reminiscecircncia

ldquoAinda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que

vocecirc ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute

do que reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido

em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos Mas isto

seria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum lugar

antes de assumir essa forma humana De modo que tambeacutem de acordo

com esse ensino a alma parece ser imortalrdquo (72e1-73a3)

Cebes eacute quem dessa vez sugere a segunda prova da imortalidade da alma De

acordo com a teoria da reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em

alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora simplesmente recordamos A doutrina

da reminiscecircncia tem um papel central em trecircs diaacutelogos platocircnicos Mecircnon Feacutedon e

Fedro mas em cada diaacutelogo a doutrina se mostra peculiar91 O Feacutedon inova com a

vinculaccedilatildeo da doutrina da reminiscecircncia e a ideia das lsquoFormasrsquo uma posiccedilatildeo que natildeo

existe no Mecircnon Como diz Kahn no Mecircnon a imortalidade da alma foi tomada como

91 Cf Kahn in Benson 2011 p 120

71

certa pela autoridade de saacutebios sacerdotes e sacerdotisas enquanto no Feacutedon ela deve

ser provada92

Se a doutrina apresentada no Feacutedon eacute uma continuaccedilatildeo ou natildeo do toacutepico

apresentado no Mecircnon ou se temos ou natildeo no Feacutedon uma apresentaccedilatildeo parcial de uma

soacute teoria desenvolvida ao longo dos trecircs diaacutelogos ndash Mecircnon Feacutedon Fedro ndash eacute uma

questatildeo que fica de fora do escopo de nosso estudo

42 Participaccedilatildeo positiva dos amigos

Com a participaccedilatildeo de Cebes introduzindo o ensino da reminiscecircncia e assim a

segunda prova da imortalidade da alma conveacutem salientar que essa postura positiva e

engajada marca os interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon O problema que vai se

revelando ao longo da conversa eacute que os argumentos apresentados por Soacutecrates satildeo

insuficientes para provar a imortalidade da alma e cada uma dessas tentativas frustradas

de provar a imortalidade da alma convida os amigos de Soacutecrates para uma participaccedilatildeo

mais efetiva como acontece quando Cebes pede para Soacutecrates mostrar se o ensino

bastante conhecido pelo ciacuterculo socraacutetico ndash reminiscecircncia ndash poderia provar a

imortalidade da alma (72e-73a) Os amigos de Soacutecrates tecircm uma participaccedilatildeo positiva

no diaacutelogo incentivam Soacutecrates a continuar a discussatildeo avaliam e rejeitam argumentos

apresentam consideraccedilotildees e objeccedilotildees sempre com o fim de obter a prova da

imortalidade da alma Eles satildeo muito mais do que supostos saacutebios que desconhem

aquilo que julgam conhecer com maestria Vejamos alguns exemplos

92 Kahn in Benson 2011 p 123

72

(i) Na primeira etapa do Feacutedon Cebes confronta a atitude de Soacutecrates diante

da morte baseada apenas em sua convicccedilatildeo de cunho religioso o que o

mestre havia dito sobre a alma produz duacutevidas sobretudo naqueles que

acolhem a crenccedila popular de que a alma se dispersaria e seria destruiacuteda

por ocasiatildeo da morte Eacute tambeacutem Cebes quem sugere que seria nessaacuteria

lsquouma demonstraccedilao natildeo muito pequenarsquo para satisfazer a necessidade de

provar que a alma natildeo se dispersa e eacute destruiacuteda como essas pessoas

dizem (69e-70a)

(ii) O segundo argumento eacute na verdade introduzido por Cebes que

certamente entende que haacute necessidade de que Soacutecrates apresente outra

prova da imortalidade da alma uma vez que a primeira natildeo o havia

convencido (72e-73a)

(iii) Ao final do segundo argumento Siacutemias e Cebes tem uma participaccedilatildeo

essencial em apontar falhas no argumento da reminiscecircncia e desafiar

Soacutecrates a construir um novo argumento porque ainda natildeo se havia dado

uma resposta capaz de responder agrave crenccedilas das pessoas comuns de que a

alma se dispersaria e pereceria por ocasiatildeo da morte (77b-c)

(iv) Ainda na transiccedilatildeo para o terceiro argumento eacute Cebes quem pede que

Soacutecrates os liberte do temor pueril de que a alma eacute passiacutevel de dispersatildeo

e destruiccedilatildeo o que nada mais eacute do que um claro apelo para que o mestre

Soacutecrates o uacutenico capaz de provar que a alma eacute imortal conceda-lhes

uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma (77e)

(v) Depois do argumento das afinidades os amigos de Soacutecrates ressaltam

que natildeo havia sido apresentada uma prova suficiente e Cebes ao final

73

exige que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον)

(88b5-6) Essa exigecircncia de Cebes eacute acolhida por Soacutecrates e o argumento

final tenta responder precisamente a esta exigecircncia o que se pode ver na

sua conclusatildeo de que lsquoa alma eacute imortal e indestrutiacutevelrsquo (ψυχὴ ἀθάνατον

καὶ ἀνώλεθρον) (106e-107a)

Analisando os trecircs primeiros argumentos a partir das intervenccedilotildees dos amigos eacute

possiacutevel observar que eles ajudam a entender o que natildeo eacute uma prova suficiente e

satisfatoacuteria da imortalidade da alma

(i) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da existecircncia da alma

post mortem (argumento ciacuteclico)

(ii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da preexistecircncia da

alma (argumento da reminiscecircncia)

(iii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova de que a alma eacute

semelhante ao que eacute completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

(argumento das afinidades)

Adiante Cebes deixaraacute claro que eacute necessaacuterio provar que a alma eacute

completamente imortal e indestrutiacutevel e natildeo apenas que ela eacute capaz de existir por um

tempo determinado (88a) Soacutecrates acolheraacute a sua exigecircncia e no uacuteltimo argumento

tenta provar justamente que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ

ἀνώλεθρον) (Cf 106d8-107a1)

74

43 Fundamento e condiccedilotildees para reminiscecircncia (72e-74a)

O nosso aprendizado nada mais eacute do que reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute

tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos

(Cf72e1-73a3) Em suma reminiscecircncia ocorre basicamente quando algueacutem se recorda

de x atraveacutes de y Por exemplo quando algueacutem se recorda de Siacutemias atraveacutes do retrato

de Siacutemias Mas Platatildeo apresenta uma seacuterie de condiccedilotildees que devem acompanhar este

ato cognitivo para que seja propriamente caracterizado como reminiscecircncia

Depois que Cebes propotildee o novo argumento e Soacutecrates preliminarmente

conversa com Siacutemias e revisa o essencial sobre o ensino da reminiscecircncia Soacutecrates

apresenta um tipo de prefaacutecio ao argumento propriamente dito no qual ele introduz

condiccedilotildees gerais para que ocorra a reminiscecircncia em 73c-74a como indica Soacutecrates

dizendo que lsquose algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio quersquo (εἴ τίς τι ἀναμνησθήσεται

δεῖν) (73c1-3) Um determinado ato cognitivo soacute poderaacute ser apropriadamente

chamado de reminiscecircncia ndash em 73c temos o verbo ἀναμιμνήσκω e o substantivo

ἀνάμνησις ndash se cumpridas essas condiccedilotildees apresentadas em 73c-74a Seguimos a

sugestatildeo de Scott que identifica quatro condiccedilotildees93

(i) Noacutes devemos ter conhecido x antecipadamente (73c1-3) lsquose algueacutem for

recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimentorsquo

(ii) Noacutes devemos natildeo apenas reconhecer y mas tambeacutem pensar sobre x

(73c6-8) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

93 Scott 1995 p 55

75

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item ()rsquo

(iii) x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

(73c8-9) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto

do primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que

lhe veio agrave mentersquo A partir de 73d temos vaacuterios exemplos de

reminiscecircncia

bull amantes veem uma lira um manto ou algum outro objeto de seus amados

e recordam-se da imagem do amado

bull algueacutem vecirc a pintura de um cavalo ou a pintura de uma lira e recorda-se

de uma pessoa

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Cebes

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Siacutemias

(iv) quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma

coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7) lsquomas sempre que se recorda de algo a

partir de coisas semelhantes natildeo passa necessariamente pela experiecircncia

de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se recordou e o objeto

recordado se assemelhamrsquo

Essas condiccedilotildees teratildeo crucial importacircncia no desenvolvimento do argumento

mas agora vejamos a quarta condiccedilatildeo com mais cuidado Soacutecrates fala que pode haver

dois tipos de reminiscecircncia aquela a partir de itens semelhantes ao que foi recordado e

76

a partir de itens dissemelhantes (74a2-3) Soacutecrates passa a discorrer sobre a

reminiscecircncia a partir de itens semelhantes (ἀφ ὁμοίων) e apresenta seu exemplo

emblemaacutetico quando algueacutem vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias e recorda-se do proacuteprio

Siacutemias (73e9-10) Nesse caso o filoacutesofo impotildee uma experiecircncia adicional (προσπάσχω)

e necessaacuteria (ἀναγκαῖον) no processo de recordaccedilatildeo uma condiccedilatildeo sine qua non

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x (74a5-7) No caso do retrato por exemplo a reminiscecircncia tem que cumprir a

seguinte condiccedilatildeo eacute necessaacuterio perceber (ἐννοέω) se a semelhanccedila entre o retrato e

Siacutemias apresenta uma deficiecircncia no que concerne agrave similaridade (τι ἐλλείπει κατὰ

τὴν ὁμοιότητα) em relaccedilatildeo ao que a pintura recorda ndash Siacutemias (74a5-7) Aquele que olha

para o retrato de Siacutemias e recorda Siacutemias deve perceber a semelhanccedila que existe entre

Siacutemias o seu retraro mas tambeacutem perceber a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Neste caso Platatildeo certamente tenta

estabelecer o que a leitura natural do texto indica natildeo importa quatildeo bom seja o retrato

seraacute uma coacutepia do ldquooriginalrdquo e para que haja reminiscecircncia eacute necessaacuterio que se perceba

natildeo apenas a semelhanccedila evidente entre um retrato de boa qualidade e a pessoa que ele

lembra mas eacute imperativo que se perceba a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Eacute com essa uacuteltima condiccedilatildeo em curso

que Platatildeo introduz o ceacutelebre e paradigmaacutetico exemplo no argumento a reminiscecircncia

que ocorre quando algueacutem vecirc coisas iguais e se recorda do igual em si

77

44 Igual em si e coisas iguais (74a-74e)

O apelo inicial de Soacutecrates eacute para que se examine (σκοπέω) se lsquoo igual existersquo

ou se lsquoo igual eacute algorsquo (τι εἶναι ἴσον) que eacute em essecircncia uma questatildeo variante de 65d4-5

φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν (65d4-5)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10)

Em seguida comeccedila o processo de caracterizaccedilatildeo daquilo que se afirma existir

comeccedilando com a distinccedilatildeo baacutesica entre lsquoo igual em sirsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e lsquoas coisas ditas

iguai como um pedaccedilo de madeira igual a outro uma pedra igual a outra ou a qualquer

coisa desse tipo sendo coisas de natureza diferente (74a9-12) Platatildeo desenvolve esta

distinccedilatildeo ao longo do argumento sobretudo explorando a condiccedilatildeo para reminiscecircncia

que mencionamos antes quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em

alguma coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7)

Embora a questatildeo φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10) ainda continua obscura de

iniacutecio no argumento da reminiscecircncia ou seja nas primeiras linhas do argumento ainda

natildeo estaacute claro o que se quer dizer com lsquoo igual eacute algorsquo ou lsquoo igual existersquo ao longo do

argumento da reminiscecircncia o leitor percebe a tentativa consistente de estabelecer a

existecircncia de coisas como lsquoo igual em sirsquo de distinguir lsquoo igual em sirsquo das coisas

sensiacuteveis enquanto se estabelece a tese epistemoloacutegica de que conhecer eacute recordar o

conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo eacute apenas rememoraccedilatildeo daquele

conhecimento que a alma adquiriu antes do nascimento o que para Soacutecrates e seus

amigos prova que a alma jaacute existia antes de reencarnar

78

Portanto eacute neste contexto do argumento da reminiscecircncia que uma corrente

majoritaacuteria de interpretaccedilatildeo aponta pela primeira vez o que se entende por teoria das

Formas sendo lsquoigual em sirsquo uma Forma metafiacutesica que a alma conhece antes de nascer

numa condiccedilatildeo de pureza separada do corpo Vejamos o posicionamento de alguns

inteacuterpretes

(i) Gallop acredita que

bull A Teoria das Formas eacute introduzida em 65d e estaacute em cena no

argumento da reminiscecircncia

bull A pergunta φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (lsquoo igual eacute algorsquo) remete agrave

existecircncia de Formas metafiacutesicas

bull A doutrina da imortalidade eacute logicamente dependente da Teoria

das Formas e isto eacute declarado claramente em 76e-77a 92d-e and

l00b) firmando-se como teoria fundamental para o argumento da

reminiscecircncia

bull A Teoria das Formas eacute assumida em todo o diaacutelogo mas natildeo

provada94

(ii) Kahn por semelhante modo

94 Gallop 2002 p93 Cf Hackfort 1998 p69 97

79

bull A doutrina das Formas jaacute estaacute impliacutecita na descriccedilatildeo do objetivo

do filoacutesofo de ldquocontemplar as coisas em si com a proacutepria almardquo

(68e)

bull Eacute somente no argumento da reminiscecircncia que Soacutecrates comeccedila a

especificar a distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e Participantes

(74b-c) e eacute fundamental para a concepccedilatildeo da alma implicada no

argumento da imortalidade

bull A funccedilatildeo preciacutepua da teoria da reminiscecircncia consiste em

estabelecer a condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu

elo cognitivo com o ser transcendente 95

Agora voltaremos ao argumento e retomaremos esta questatildeo da teoria das

Formas posteriormente

Existe um igual

A primeira questatildeo ndash Existe um igual ndash eacute respondida por Siacutemias com grande

convicccedilatildeo (74a) A existecircncia dessas coisas que Soacutecrates chama agora de lsquoigual em sirsquo eacute

simplesmente assumida no argumento O argumento da reminiscecircncia depende em sua

origem de algo que as personagens simplesmente assumem que existe lsquoo igual em sirsquo

Ao longo de sua explanaccedilatildeo do mecanismo da reminiscecircncia Platatildeo caracteriza

lsquoo igual em sirsquo em contraste com as coisas sensiacuteveis e nos daacute uma compreensatildeo melhor

95 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

80

do objeto em questatildeo Eacute importante observar como esta estapa introdutoacuteria do

argumento eacute de iniacutecio conduzida a partir de pelo menos trecircs questotildees encadeadas

(i) Diriacuteamos como presumo que existe um igual () o igual em si

Diremos que isso existe ou natildeo (74a)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον () αὐτὸ τὸ ἴσον φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν

(ii) E tambeacutem sabemos o que eacute isso (74b)

ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν

(iii) De onde adquirimos o conhecimento disso (74b)

πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην

E tambeacutem sabemos o que eacute isso

A segunda questatildeo ndash lsquoE tambeacutem sabemos o que eacute issorsquo (74b) levanta um

problema sobre quem pode rememorar A primeira pessoa do plural ndash lsquoE tambeacutem

sabemos o que eacute issorsquo (74b) ndash e as condiccedilotildees para a reminiscecircncia apresentadas no

argumento sugerem que apenas os filoacutesofos podem rememorar Encontramos pelo

menos trecircs possiacuteveis interpretaccedilotildees de reminiscecircncia

(i) Interpretaccedilatildeo sofisticada lsquonoacutesrsquo em 74b indica um grupo seleto de

filoacutesofos iluminados que conhecem as Formas e com a posse desse

conhecimento esses filoacutesofos somente (no Feacutedon o ciacuterculo socraacutetico)

podem atender agraves condiccedilotildees para a reminiscecircncia dentre elas a condiccedilatildeo

crucial o reconhecimento da deficiecircncia de pedras e paus em contraste

81

com o Igual em si mesmo Reminiscecircncia ocorre quando em resposta agrave

percepccedilatildeo sensorial recordamos de uma Forma Scott acredita que em

74b Soacutecrates se concentra no conhecimento de uma uma entidade muito

distante do pensamento da maioria das pessoas a Forma da igualdade

Reminiscecircncia requer o conhecimento de Formas transcendentes e

apenas os filoacutesofos tecircm acesso a esse tipo niacutevel de conhecimento96

Franklin aponta um dos grandes problemas desta interpretaccedilatildeo se a

recordaccedilatildeo eacute restrita a uma classe seleta de aprendizes o argumento da

reminiscecircncia seria destinado a mostrar a preacute-existecircncia da alma somente

para aqueles que cumprem os requisitos97

(ii) Interpretaccedilatildeo ordinaacuteria lsquonoacutesrsquo em 74b remete ao ato cognitivo realizado

por todas as pessoas Reminiscecircncia diz respeito ao aprendizado

ordinaacuterio que qualquer pessoa pode experienciar O contexto do diaacutelogo

que visa provar a imortalidade da alma das pessoas em geral natildeo apenas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos favorece essa leitura98 Embora esta leitura

seja favorecida pelo contexto geral do diaacutelogo o contexto imediato

parece deixar claro que apenas filoacutesofos podem praticar reminiscecircncia

nos moldes apresentados aqui conhecimento do lsquoigual em sirsquo e

capacidade para cumprir as condiccedilotildees de reminiscecircncia

(iii) Interpretaccedilatildeo conciliatoacuteria estamos chamando de interpretaccedilatildeo

conciliatoacuteria aquela proposta por Kahn que tenta harmonizar as

interpretaccedilotildees sofisticada e ordinaacuteria Ele acredita que haacute duas teses em

96 Scott 1995 p56 97 Franklin 2005 p290 98 Franklin 2005 p289290

82

questatildeo no argumento uma a respeito da cogniccedilatildeo de todas as pessoas

todas rememoram todas se referem agraves Formas em todo juiacutezo perceptivo

mas apenas de modo inconsciente se referem ao Igual em si quando

julgam que pedaccedilotildees de paus e pedras satildeo iguais a outra tese diz respeito

agrave reminiscecircncia para filoacutesofos somente filoacutesofos quando rememoram

podem distinguir entre Formas e particulares e reconhecer a deficiecircncia

dos uacuteltimos99

A tentativa de conciliaccedilatildeo de Kahn parece a mais prudente Eacute inegaacutevel que

Platatildeo esteja apresentando condiccedilotildees para reminiscecircncia que apenas os filoacutesofos

(ciacuterculo socraacutetico) podem cumprir por outro lado a interpretaccedilatildeo estritamente

sofisticada eacute improvaacutevel porque natildeo se pode esperar que Platatildeo esteja querendo provar

apenas a imortalidade da alma de Soacutecrates e seus amigos Ao que parece todas as

pessoas podem lsquorememorarrsquo aquilo que a alma conheceu antes do nascimento mas

nigueacutem exceto o filoacutesofo saberia dar um relato (διδόναι λόγον) a respeito da

reminiscecircncia (76b) Portanto as condiccedilotildees para a reminiscecircncia devem ser cumpridas

por todas as pessoas mas de modo consciente pelos filoacutesofos

De onde adquirimos o conhecimento disso

A terceira questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o conhecimento dissorsquo (74b) ndash visa

esplicar o mecanismo de reminiscecircncia dando atenccedilatildeo especial para a seguinte condiccedilatildeo

para reminiscecircncia x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

99 Kahn in Benson 2011 p 124

83

O emprego do verbo lsquoconhecerrsquo (ἐπίσταμαι) e do substantivo lsquoconhecimentorsquo

(ἐπιστήμη) (74b) revela que Platatildeo estaacute tratando de atos cognitivos lsquoE tambeacutem sabemos

o que eacute issorsquo (καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν) lsquoDe onde adquirimos o conhecimento

dissorsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) (74b) Vejamos a explicaccedilatildeo de

Soacutecrates recordando tambeacutem a condiccedilatildeo apresentada haacute pouco antes

ldquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo

somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo item

mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto do

primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que lhe

veio agrave menterdquo(73c)

ldquoQuando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso trazemos agrave

mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delasrdquo (74b)

ldquoEntatildeo perguntou eacute mesmo a partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave

mente e adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais

sejam diferentesrdquo (74c)

Agora a questatildeo especiacutefica eacute como recordamos a lsquoo igual em sirsquo cujo

conhecimento adquirimos antes do nascimento O problema inicial que temos eacute

o papel dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia Quando utilizamos os

sentidos (αἴσθησις) natildeo somente conhecemos (γιγνώσκω) os objetos sensiacuteveis

(paus e pedras iguais por exemplo) mas tambeacutem nos vem agrave mente (ἐννοέω) um

84

segundo item (lsquoFormarsquo) (Cf 73c) Ao que parece existem dois atos cognitivos

integrados no mecanismo de reminiscecircncia o primeiro ato eacute o de conhecer

(γιγνώσκω) um objeto sensiacutevel pelo uso de αἴσθησις Quando isto ocorre um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto mas tambeacutem vem agrave mente

(ἐννοέω) um segundo item (73c) Eacute assim que deve acontecer quando

recordamos o lsquoigual em sirsquo cujo conhecimento obtemos antes de nascer pelo uso

de αἴσθησις vemos gravetos pedras e outras coisas iguais e a partir disso um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto a partir dessas coisas (ἐκ τούτων)

trazemos agrave mente aquilo (ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) (74b) Em 74c Soacutecrates repete a

ideia dizendo que eacute a partir dessas coisas iguais (ἐκ τούτων τῶν ἴσων) que se

traz agrave mente (ἐννοέω) e se toma (λαμβάνω) o conhecimento (ἐπιστήμη) do Igual

Esta ideia de que pensamos ou adquirimos conhecimento do Igual a

partir das coisas sensiacuteveis eacute recorrente no argumento (74c710 75a5-7 75a11-

b3 cf75e3-5) o seu significado remete agrave questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o

conhecimento disso (74b)rsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) ndash mas

ainda eacute difiacutecil entender precisamente o que significam expressotildees como

πόθενἐκ τούτωνἐκ τούτων τῶν ἴσων Se Platatildeo estiver realmente assumindo

que natildeo haacute outra maneira de adquirir o conhecimento do Igual mas por meio

dos sentidos somente sugere-se uma ideia diferente daquela apresentada ao

longo do diaacutelogo a de que os sentidos satildeo despreziacuteveis obstaacuteculos na busca do

filoacutesofo pelas lsquoFormasrsquo Essa caracterizaccedilatildeo extremamente pejoritaacuteria dos

sentidos e dos sensiacuteveis permanece no diaacutelogo ateacute a autobiografia intelectual de

Soacutecrates quando o filoacutesofo declara que seu novo modo de investigaccedilatildeo exclui a

utilizaccedilatildeo de αἴσθησις (99d4-e6)

85

Na primeira etapa do diaacutelogo em 65andash66a Platatildeo explica como

podemos adquirir conhecimento e parece ficar claro que natildeo pode ser atraveacutes

dos sentidos Fine apresenta assim a estrutura do argumento na primeira parte do

diaacutelogo (65a9ndashc10)

1 Os sentidos corporais natildeo satildeo precisos nem claros

2 Portanto natildeo podemos perceber nada com precisatildeo ou clareza

3 Portanto a percepccedilatildeo natildeo conteacutem qualquer verdade

4 Portanto sempre que a alma indaga (zetein 65a10) ou considera

(skopein 65b10) algo junto com o corpo ela eacute enganada pelo corpo

5 Portanto a alma natildeo pode alcanccedilar a verdade quando indaga ou

considera algo junto com o corpo

6 Se algueacutem natildeo consegue alcanccedilar a verdade natildeo pode alcanccedilar a

sabedoria

7 Portanto a percepccedilatildeo natildeo pode atingir a sabedoria nem a alma pode

alcanccedilar a sabedoria se investigar ou considerar algo junto com o

corpo

8 Portanto eacute pelo raciociacutenio que qualquer uma das coisas que satildeo se

torna manifesta para a alma

9 Portanto se a alma pode atingir a sabedoria seraacute pelo raciociacutenio100

No argumento da reminiscecircncia os sentidos desempenham um papel no

mecanismo de reminiscecircncia que permite a algueacutem rememorar a lsquoFormarsquo a partir

100 Fine 2016 p559

86

das coisas sensiacuteveis Por outro lado eacute pouco provaacutevel que por πόθενἐκ

τούτωνἐκ ἐκ τούτων τῶν ἴσων Platatildeo queira enfatiza a suficiecircncia das coisas

sensiacuteveis como objetos capazes de nos fazer trazer as lsquoFormasrsquo agrave mente

Provavelmente os objetos particulares oferecem um primeiro estiacutemulo para um

segundo ato cognitivo em que a alma utiliza o intelecto para alcanccedilar aquele

conhecimento esquecido das lsquocoisas em sirsquo Quando algueacutem vecirc paus e pedras

iguais o estiacutemulo dos sensiacuteveis como que aperta o gatilho para um segundo ato

cognitivo quando a alma atraveacutes da atividade intelectiva traz agrave mente o

conhecimento das lsquoFormasrsquo (75a4) o qual jaacute possuiacuteamos originalmente antes do

nascimento e que esquecemos ao nascer na ocasiatildeo em que a alma se aloja num

corpo (Cf75b-77a) Ainda assim enquanto presa ao corpo o maacuteximo que a

alma faz eacute rememorar o conhecimento adquirido previamente e natildeo adquirir o

conhecimento original da lsquoFormarsquo em primeira matildeo Portanto o papel da

percepccedilatildeo sensiacutevel eacute importante mas bastante restrito Na ausecircncia do corpo a

alma pode ter contato direto com as lsquoFormasrsquo

Ainda assim a participaccedilatildeo dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia

continua sendo difiacutecil de conciliar com a caracterizaccedilatildeo extremamente negativa

dos sentidos no diaacutelogo No argumento da afinidade a alma que se utiliza do

corpo para fazer qualquer tipo de consideraccedilatildeo eacute arrastada por ele para os

objetos sensiacuteveis e logo entra em estado de confusatildeo como se estivesse becircbada

por estar em contato com objetos desse tipo (Cf79c) A soluccedilatildeo parece

abandonar completamente os sentidos o que Soacutecrates faraacute com o seu novo modo

de investigaccedilatildeo (99d4-e6)

87

Distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo

Para que haja reminiscecircncia lsquoo igual em sirsquo que eacute rememorado deve ser um

objeto de conhecimento diferente das coisas sensiacuteveis Aleacutem disso eacute necessaacuterio

reconhecer a deficiecircncia das coisas sensiacuteveis em contraste com lsquoo igual em sirsquo A

distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo eacute fundamental para o mecanismo de

reminiscecircncia Esta distinccedilatildeo eacute basicamente expressa a partir da caracterizaccedilatildeo da

inferioridade ou deficiecircncia de coisas sensiacuteveis com o lsquoigual em sirsquo (74d-75b) A

reminiscecircncia requer que noacutes apontemos a diferenccedila entre τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x Aquele que rememora deve reconhecer que (75b5-8)

(i) Todas as coisas sensiacuteveis querem (προθυμέομαι) ser tal como (οἷον) lsquoo

igualrsquo

(ii) mas satildeo inferiores (φαῦλος) a ele

Aqui o texto eacute obscuro e natildeo fornece detalhes para a compreensatildeo dessa ideia de

deficiecircncia entre as lsquocoisas sensiacuteveisrsquo e lsquoo igual em sirsquo Natildeo apenas a ideia de

lsquodeficiecircnciarsquo lsquoinferioridadersquo (φαῦλος) eacute vaga mas tambeacutem a ideia de que coisas

sensiacuteveis como paus e pedras iguais tecircm um desejo ardoroso por ser do mesmo tipo do

igual em si O que fica claro eacute que Platatildeo estaacute tratando de duas classes de coisas e que

uma eacute nobre (igual em si) a outra vulgar (φαῦλος) (coisas iguais) Essa distinccedilatildeo seraacute

bem desenvolvida no argumento das afinidades Mas por enquanto Platatildeo nos priva de

88

mais informaccedilotildees A obscuridade da noccedilatildeo de lsquodeficiecircnciarsquo e de lsquozelo ardorosorsquo eacute

realmente uma fraqueza na exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo a ser cumprida por quem rememora

45 Estrutura Baacutesica do Argumento da Reminiscecircncia

Depois de explicar em linhas gerais o mecanismo de reminiscecircncia eacute possiacutevel

agora observar a estrutura geral do argumento e em seguida desenvolver o ponto preciso

do qual decorre a conclusatildeo de que a alma continua a existir depois da morte Eis a

estrutura do argumento seguida de um comentaacuterio

[1] Noacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o

Igual quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que

elas tentam ser como o Igual mas satildeo inferiores a elas (74e9-75a3)

[2] Noacutes natildeo pensamos no Igual nem haacute chance de isso ter acontecido exceto

pelos sentidos (τῶν αἰσθήσεων) (75a5-7)

[3] Tudo percebido pelos sentidos se esforccedila para ser como o Igual mas eacute

inferior (75b12)

[4] Noacutes devemos necessariamente ter adquirido o conhecimento (λαμβάνειν

ἐπιστήμην) original do Igual antes mesmo de utilizar os sentidos (75b4-8)

[5] Noacutes natildeo podemos ter adquirido o conhecimento original do Igual a partir

dessas coisas inferiores (sensiacuteveis) (75b4-8)

[6] Noacutes devemos ter adquirido o conhecimento original do Igual (e de todas as

outras coisas desse tipo) antes mesmo de utilizar os sentidos (75c4-5)

[7] Noacutes comeccedilamos a utilizar os sentidos quando nascemos (75b10-11)

89

[8] Portanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea conhecimento

do Igual (76c)

A ideia central do argumento eacute a necessidade de termos adquirido conhecimento

do igual em si antes do uso dos sentidos porque nem os sentidos nem os objetos

sensiacuteveis podem fornecer esse conhecimento Jaacute que comeccedilamos a usar os sentidos na

ocasiatildeo do nascimento a alma deve ter conhecido o igual em si antes do nascimento e

portanto a alma existe (e tem conhecimento do igual) antes do nascimento

Embora a rememoraccedilatildeo ocorra a partir dos sentidos a aquisiccedilatildeo original do

conhecimento das lsquoFormasrsquo natildeo pode ocorrer a partir do domiacutenio das coisas sensiacuteveis

porque eacute um domiacutenio de coisas inferiores deficientes que natildeo podem servir de fonte

primaacuteria para a obtenccedilatildeo do conhecimento original da lsquoFormarsquo Ateacute mesmo a

rememoraccedilatildeo do conhecimento adquirido previamente eacute difiacutecil e nem mesmo a

explanaccedilatildeo de como isto ocorre eacute bem clara O conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo natildeo

pode ser obtido enquanto alma reencarnada e nem mesmo eacute faacutecil recuperar o

conhecimento jaacute adquirido Apenas quando a alma estaacute separada do corpo eacute que poderia

ganhar conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo

A ideia de que eacute impossiacutevel adquirir conhecimento das coisas em si atraveacutes do

estiacutemulo dos objetos particulares eacute um dos pontos essenciais que levaratildeo agrave conclusatildeo de

que a alma soacute pode ter adquirido este conhecimento antes de nascer Quando relata a

inferioridade dos objetos sensiacuteveis em contraste com o igual em si Soacutecrates reconhece

que natildeo eacute possiacutevel que por meio da nossa percepccedilatildeo de objetos sensiacuteveis deficientes

possamos ter um conhecimento original do Igual em si A proacutepria capacidade de

observar que lsquosensiacuteveisrsquo querem ser tal como lsquoa coisa em sirsquo mas satildeo inferiores requer

90

obrigatoriamente um conhecimento preacutevio da lsquocoisa em sirsquo que se assemelha com o

objeto sensiacutevel o qual eacute deficiente e inferior em contraste com a lsquocoisa em sirsquo Por meio

da nossa percepccedilatildeo do domiacutenio dos sensiacuteveis seria impossiacutevel reconhecer a deficiecircncia

de pedras e paus iguais em contraste com o igual em si A proacutepria natureza deficiente do

domiacutenio dos sensiacuteveis eacute incapaz de providenciar conhecimento daquilo que eacute nobre

superior Pelo seu caraacuteter coisas sensiacuteveis natildeo podem ser fonte suficiente para o

conhecimento da lsquoFormarsquo A uacutenica resposta plausiacutevel para este problema segundo a

personagem Soacutecrates eacute que a nossa alma deve ter obtido o conhecimento do lsquoigual em

sirsquo antes mesmo de utilizar os sentidos porque ao utilizar os sentidos e perceber que a

deficiecircncia de paus e pedras em contraste com o igual em si a pessoa jaacute estaacute fazendo

uso desse conhecimento original do lsquoigual em sirsquo Essa ideia central jaacute comeccedila a ser

desenvolvida depois do mecanismo de reminiscecircncia ter sido explicado a partir de 74e

ldquoNoacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o Igual

quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que elas tentam

ser como o Igual mas satildeo inferiores a elasrdquo (74e9-75a3) Quando pela primeira vez

utilizamos os sentidos e jaacute podemos reconhecer a diferenccedila entre lsquosensiacuteveisrsquo e lsquoFormasrsquo

eacute necessaacuterio que nesta ocasiatildeo jaacute tenhamos obtido previamente o conhecimento da

lsquoFormarsquo Conforme Soacutecrates se jaacute comeccedilamos a utilizar os sentidos ao nascer

possuiacutemos conhecimento do igual em si antes mesmo do nascimento e as nossas almas

jaacute existiam antes do nascimento (75c)

91

46 Avaliaccedilatildeo do argumento

Ao final do argumento Soacutecrates acredita que provou que a alma existe antes do

nascimento lsquoPortanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea

conhecimento do Igualrsquo (76c) Eis algumas falhas do argumento

(i) A prova da reminiscecircncia falha porque se estabelece a partir de uma

mera pressuposiccedilatildeo de que lsquoFormasrsquo existem

(ii) A prova da reminiscecircncia falha porque natildeo estaacute claro que a alma natildeo

possa adquirir um conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo a partir

da reencarnaccedilatildeo

(iii) Soacutecrates conclui que fica provado que lsquoFormasrsquo e almas existem antes do

nascimento (76e5-7) mas em momento algum o argumento procura

provar que lsquoFormasrsquo existem

(iv) O argumento da reminiscecircncia natildeo prova que a alma eacute imortal Ainda

que o argumento se estabelecesse nada garantiria que a alma que

conhece as lsquoFormasrsquo no aleacutem natildeo seria destruiacuteda ainda antes de

reencarnar A doutrinda da reminiscecircncia soacute provaria que a nossa alma

sobreviveu no periacuteodo de tempo que vai do aleacutem quando a alma

conheceu as lsquoFormasrsquo ateacute o momento em que as recordamos Estaacute bem

claro que a alma poderia entatildeo se dispersar e destruir na hora da morte

92

47 Observaccedilotildees finais

O argumento eacute bastante difiacutecil e apresenta muitos problema de interpretaccedilatildeo

sobretudo porque Platatildeo deixa boa parte dos pontos centrais do argumento sem uma

explicaccedilatildeo suficiente Haacute muitas sentenccedilas ambiacuteguas e vagas e conceitos essenciais para

o argumento natildeo satildeo esclarecidos como o que significa dizer que as coisas sensiacuteveis

tecircm um forte desejo de ser como as lsquoFormasrsquo

Nestas consideraccedilotildees finais comentamos trecircs toacutepicos relacionados ao argumento

teoria das Formas imortalidade da alma e a sugestatildeo de Soacutecrates de que devemos

combinar argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

471 Teoria das Formas e a prova da imortalidade da alma

O problema da teoria das Formas eacute alvo de grande debate e a interpretaccedilatildeo

majoritaacuteria como apresentamos no estudo tende a reconhecer que a imortalidade da

alma depende da Teoria das Formas apresentada no argumento da reminiscecircncia A

nossa avaliaccedilatildeo do argumento sugere que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o

fim de apoiar a sua exposiccedilatildeo de uma mecanismo de reminiscecircncia que levaraacute a uma

prova de que a alma existe antes de nascer Natildeo temos aqui uma terminologia teacutecnica

para Formas e a distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo estaacute longe de ser clara

Portanto o maacuteximo que podemos reconhecer eacute uma teoria incipiente uma primeira

tentativa no diaacutelogo de estabelecer a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo e

que nos leva a reconhecer uma discreta tentativa de estabelecer ou esboccedilar uma teoria

das Formas Aleacutem disso esta tentativa visa dar suporte agrave explanaccedilatildeo sobre o mecanismo

93

de reminiscecircncia Alguns comentadores tendem a explorar a temaacutetica da teoria das

Formas no argumento das reminiscecircncia e chegam a conclusotildees exageradas como

Kahn segundo o qual Platatildeo comeccedila a desenvolver a noccedilatildeo de lsquoparticipaccedilatildeorsquo no

contexto do argumento da reminiscecircncia 101 Portanto a nossa avaliaccedilatildeo do argumento

indica que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o fim de dar suporte agrave sua

exposiccedilatildeo sobre o mecanismo de reminiscecircncia que fornece a prova para a preexistecircncia

da alma

472 Imortal (ἀθάνατος)

Temos no argumento da reminiscecircncia a primeira menccedilatildeo expliacutecita da palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) no diaacutelogo (73a2) Cebes afirma que a doutrina da reminiscecircncia

natildeo seria plausiacutevel se a nossa alma natildeo existisse em algum lugar antes de assumir a

forma humana (τοῦτο δὲ ἀδύνατον εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) e finaliza dizendo que a alma parece ser algo

imortal tambeacutem dessa maneira (ὥστε καὶ ταύτῃ ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι) (Cf

72e1-73a3) Cebes estimula Soacutecrates a construir uma prova da imortalidade da alma

com base na doutrina da reminiscecircncia que lhe parece tambeacutem tratar da imortalidade da

alma Note-se que o emprego da expressatildeo τι ἔοικεν εἶναι (73e2-3) indica que Cebes

natildeo tem qualquer convicccedilatildeo sobre isso A sua observaccedilatildeo eacute um convite para que

Soacutecrates lhe mostre se realmente o ensino da reminiscecircncia pode ser tomado como

prova da imortalidade da alma ou natildeo Cebes eacute o responsaacutevel por vincular incialmente

imortalidade da alma e argumento da reminiscecircncia

101 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

94

Mas a intervenccedilatildeo inicial de Soacutecrates visa ratificar a tese central da doutrina da

reminiscecircncia para Siacutemias aprender eacute recordar O filoacutesofo acha que Siacutemias natildeo estaacute

convencido de que o aprendizado pode ser reminiscecircncia e o convida a examinar a

doutrina a partir de outro acircngulo Siacutemias nega que tenha essa duacutevida mas reconhece que

precisa experimentar o ensino da reminiscecircncia (73b) Eacute a partir daiacute que Soacutecrates

introduz o segundo argumento da imortalidade da alma no Feacutedon em 73c Soacutecrates

sequem menciona a palavra lsquoimortalrsquo ao longo do argumento e a sua conclusatildeo aponta

para o que Cebes apresenta desde o iniacutecio a doutrina da reminiscecircncia soacute funciona ou

seja reminiscecircncia soacute lsquoseria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum

lugar antes de assumir essa forma humanarsquo (73a1-2) Ao final o argumento da

reminiscecircncia nem prova que a alma eacute imortal A insistecircncia de Soacutecrates de que

argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia juntos consistiria na prova completa que os

amigos esperam natildeo eacute acolhida pelos amigos (77c-d) que continuam assombrados com

a possibilidade de teestemunha em breve natildeo apenas a morte de Soacutecrates a separaccedilatildeo

entre alma e corpo mas a destruiccedilatildeo da sua alma (77e) O argumento ciacuteclico havia

mostrado que as almas existem depois da morte de onde voltam para alojar-se num

corpo A conclusatildeo do argumento da reminiscecircncia reforccedila apenas algo que jaacute havia

sido mencionado no argumento ciacuteclico ndash as almas existem antes de reencarnar ndash mas

agora a partir de um argumento aceito pelos amigos no que concerne agrave existecircncia da

alma antes do nascimento

A sugestatildeo para combinar os argumentos mostra que Soacutecrates entende que

preexistecircncia da alma (argumento da reminiscecircncia) + existecircncia post mortem da alma

(argumento ciacuteclico) = imortalidade da alma Mas a existecircncia da alma antes do

nascimento e a existecircncia da alma depois da morte tomadas juntas natildeo provam que a

95

alma eacute imortal A sugestatildeo de Soacutecrates deve ser entendida com base na concepccedilatildeo de

imortalidade vinculada agrave reencarnaccedilatildeo apresentada no antigo relato a qual Soacutecrates

ainda tem em mente quando sugere essa combinaccedilatildeo como veremos adiante

Tambeacutem vale lembrar que o uso de ὥστε καὶ (73e2) sugere que a discussatildeo

anterior no entendimento de Cebes jaacute poderia ser vista como uma tentativa de provar a

imortalidade da alma mas de modo algum ele considera que o argumento teve sucesso

nisso No Feacutedon natildeo encontramos qualquer sugestatildeo de que Cebes ou Siacutemias aceitam o

argumento ciacuteclico como prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma Tudo indica que

natildeo

(i) A introduccedilatildeo abrupta do ensino da reminiscecircncia com uma esperanccedila de

que pudesse provar a imortalidade da alma parece muito mais uma

admissatildeo velada de que Cebes natildeo estaacute satisfeito com a prova

apresentada do que simplesmente um reconhecimento de que o

argumento ciacuteclico prova a imortalidade da alma

(ii) Depois do argumento das afinidades em 85d as personagens se privam

de apresentar as suas criacuteticas natildeo pretendem importunar Soacutecrates na

ocasiatildeo adversa em que se encontra Essa deve ser uma das razotildees pelas

quais pelo menos na transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia Cebes

prefere incitar Soacutecrates a um novo argumento em vez de importunar o

mestre com suas objeccedilotildees diretas

(iii) A reaccedilatildeo esperada de Cebes caso estivesse de acordo com a primeira

prova apresentada seria a expressatildeo de sua satisfaccedilatildeo como ocorre no

96

final do uacuteltimo argumento (107a) quando ele simplesmente afirma que

natildeo tem nada para objetar

(iv) Ao final do proacuteprio argumento da reminiscecircncia mesmo depois da

sugestatildeo de que a uniatildeo do argumento ciacuteclico e do argumento da

reminiscecircncia provaria o que eles requerem o temor dos amigos diante

da possibilidade de que a alma de Soacutecrates pudesse ainda ser dissipada e

destruiacuteda e o clamor para que Soacutecrates pudesse ainda persuadi-lo a natildeo

temer por meio um novo argumento tambeacutem indicam que Cebes e Siacutemias

rejeitam o argumento ciacuteclico (e tambeacutem o da reminiscecircncia) como prova

da imortalidade da alma (77e)

(v) Tambeacutem depois do argumento das afinidades Soacutecrates pergunta se os

amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns dos argumentos

apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam apenas alguns e

rejeitam outros ressaltando que aceitam o argumento da reminiscecircncia

no que diz respeito agrave preexistecircncia da alma (91e-92a) Eacute bem provaacutevel

que o argumento ciacuteclico esteja na lista dos rejeitados

Ao dizer que a alma parece ser algo imortal (ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι)

(73a) Cebes estaacute reconhecendo que a discussatildeo que toma lugar na etapa demonstrativa

eacute especialmente sobre a imortalidade da alma Desde que ele mesmo apresenta a crenccedila

comum de que a alma pode ser destruiacuteda na separaccedilatildeo do corpo (70a) eacute especialmente

sobre a imortalidade da alma No Feacutedon os amigos de Soacutecrates natildeo aceitam um

argumento filosoacutefico que natildeo seja capaz de provar nada mais do que a imortalidade da

alma Esta transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia eacute sem duacutevida a ocasiatildeo precisa

97

em que Platatildeo emprega a palavra lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) pela primeira vez no diaacutelogo na

voz de Cebes com o fim de nos deixar saber que o tema da imortalidade da alma

individual (o contexto do Feacutedon deixa claro que o problema em questatildeo eacute provar que a

alma de Soacutecrates natildeo seraacute destruiacuteda assim que beber o veneno) se estabelece como tema

central do diaacutelogo

473 Eacute necessaacuterio combinar argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia

Haacute alguns indiacutecios textuais que mostram que Platatildeo se preocupa em relacionar o

argumento ciacuteclico e o argumento da reminiscecircncia Ao final do argumento da

reminiscecircncia Cebes concorda com Siacutemias de que soacute fora demonstrado (ἀποδείκνυμι)

metade (ἥμισυς) daquilo que seria necessaacuterio que a alma existe antes do nascimento

(ὅτι πρὶν γενέσθαι ἡμᾶς ἦν ἡμῶν ἡ ψυχή) (Cf77b1 77c2-3) Agora seria necessaacuterio

provar que a alma continua a existir depois da morte (77c) Soacutecrates entatildeo trata os dois

argumentos como unidade e pede que os amigos os combinem (συντίθημι) para obter

uma uacutenica prova (77c)

Alguns comentadores admitem pelo menos uma relaccedilatildeo complementaacuteria entre os

dois argumentos e ateacute que uma completa prova da imortalidade da alma dependeria da

combinaccedilatildeo dos dois102 Mas geralmente natildeo se oferece uma resposta convincente para

esse tratamento singular e relaccedilatildeo dos dois argumentos A nossa anaacutelise procura mostrar

que o elo de ligaccedilatildeo dos dois argumentos eacute a doutrina religiosa de cunho oacuterfico

pitagoacuterico apresentada no relato antigo em 70a e que eacute um componente fundamental da

doutrina da reminiscecircncia no Mecircnon As duas primeiras provas da imortalidade

102 Cf Bluck 1955 p62 Dorter 1982 p45 Hackfort 1955 p1998 White 1989 p80

98

oferecem uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a mesma crenccedila apresentada no antigo

relato Vejamos como isto ocorre

O argumento ciacuteclico eacute introduzido a partir de um lsquoantigo relatorsquo de cunho oacuterfico

e pitagoacuterico ndash a transmigraccedilatildeo da alma ndash e a doutrina da reminiscecircncia tal como vemos

no Mecircnon estaacute intrinsecamente ligada com a ideia de imortalidade e transmigraccedilatildeo da

alma Como diz Kahn no pensamento oacuterfico e pitagoacuterico a imortalidade eacute concebida

em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo das almas103 A doutrina da reminiscecircncia eacute apresentada no

Mecircnon 81a-e como doutrina que tem origem em autoridades ndash sacerdotes sacerdotisas e

poetas divinamente inspirados ndash que dizem que a alma humana eacute imortal e agraves vezes

chega ao fim o que eles chamam morrer e agraves vezes reencarna mas nunca perece A

alma eacute imortal e estaacute sujeita agrave reencarnaccedilatildeo e disso decorre a necessidade de viver de

modo tatildeo piedoso quanto possiacutevel (81b 86b) e de recordar tudo o que ainda natildeo foi

recordado (86b1-4) Fica claro que argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia manteacutem uma

relaccedilatildeo com aquela mesma crenccedila religiosa apresentada com o nome de lsquorelato antigorsquo ndash

a transmigraccedilatildeo da alma ndash a qual estaacute intrinsecamente ligada como a crenccedila na

imortalidade da alma O relato antigo diz basicamente o seguinte (70c-d)

(i) a alma dos que morrem existem no Hades

(ii) a alma dos que partiram existem no Hades de onde regressam para a vida

terrena

103 Cf Kahn 2007 p18

99

Natildeo eacute difiacutecil perceber que as duas premissas que constituem o antigo relato

estaratildeo presentes na conclusatildeo do argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

respectivamente

Antigo relato

As almas dos que morrem

existem no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem

existem no Hades (existecircncia post

mortem da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Reminiscecircncia As almas dos que morrem

existes antes do nascimento

A soluccedilatildeo de Soacutecrates para combinar os dois argumentos natildeo muda a prova

porque o argumento da reminiscecircncia simplesmente prova algo que jaacute estaacute presente no

argumento dos opostos almas existem antes do nascimento e reencarnam

100

O argumento eacute destinado a provar a imortalidade desde o iniacutecio com a clara

indicaccedilatildeo de Cebes mas a concepccedilatildeo de imortalidade em funccedilatildeo da doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma natildeo eacute aquilo que os amigos de Soacutecrates desejam como prova da

imortalidade da alma O tema da imortalidade deve ser tratado num sentido platocircnico

ldquoinovadorrdquo sem a dependecircncia ou vinculaccedilatildeo com a ideia de transmigraccedilatildeo No

decorrer do diaacutelogo os interlocutores apelam para a necessidade de que se fique claro

que natildeo eacute provando que as almas transmigram que podemos provar que as almas satildeo

imortais Transmigraccedilatildeo pode ocorrer por um periacuteodo de tempo e ao final a alma poderaacute

ser destruiacuteda Eacute necessaacuteria uma radical ruptura desta ideia para que se prove que a alma

eacute imortal nos termos de uma nova compreensatildeo filosoacutefica que natildeo depende do

componente religioso de cunho oacuterfico e pitagoacuterico Ao final dos dois primeiros

argumentos o problema continua o mesmo a alma existe antes e depois da morte mas

ateacute quando

Em suma argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia estatildeo vinculados

especialmente pelo antigo relato Esta observaccedilatildeo nos ajuda a entender por que esses

dois argumentos estatildeo interligados no Feacutedon

(i) a uacutenica ocasiatildeo em que temos uma transiccedilatildeo imediata para o argumento

seguinte

(ii) os uacutenicos argumentos em que Soacutecrates nunca emprega a palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος)

(iii) os uacutenicos que Soacutecrates trata como se fossem uma unidade cada um

prova uma metade ndash o ciacuteclico que a alma existe depois da morte o da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento (77c)

101

(iv) os uacutenicos argumentos que Soacutecrates diz que devem ser combinados

(συντίθημι) (77c)

(v) os uacutenicos argumentos especialmente conectados pela doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma (o relato antigo eacute um componente religioso da

doutrina da reminiscecircncia)

102

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)

51 Introduccedilatildeo

A literatura secundaacuteria costuma tratar o argumento das afinidades como sendo o

menos atrativo o mais fraco e o mais negligenciado pelos comentadores 104

O argumento das afinidades em si eacute apresentado em 78b-80b e eacute seguido por

uma discussatildeo de cunho miacutetico e especulativo em 80c-84b a qual Platatildeo utiliza para

defender o modo filosoacutefico de viver O argumento eacute bastante diferente dos demais ele

se constitui basicamente de duas analogias uma que estabelece a relaccedilatildeo entre almas e

Formas e outra entre almas e deuses com base nas quais se defende que a alma seria

mais como as Formas e como os deuses concluindo-se entatildeo que ela seria indissoluacutevel

imune agrave desintegraccedilatildeo por ocasiatildeo da morte ou algo proacuteximo disso

52 Contexto

Ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias acreditam que Soacutecrates

conseguira provar apenas que a alma continuaria a existir antes do nascimento mas

restaria ainda a necessidade de provar se a alma haveraacute de existir depois da morte

Siacutemias esclarece que a objeccedilatildeo levantada por Cebes no ponto de transiccedilatildeo entre a

primeira e a segunda parte do diaacutelogo ainda permanece sem soluccedilatildeo a crenccedila popular

de que na ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua

104 Cf Apolloni 1996 p5 Elton 1997 p313

103

existecircncia Ao final do argumento da reminiscecircncia os amigos de Soacutecrates parecem

convencidos de que Soacutecrates natildeo havia provado que a alma continua a existir depois da

morte

Platatildeo parece ter um interesse especial em enfatizar ao longo do diaacutelogo que os

amigos de Soacutecrates natildeo possuem nenhuma reserva em relaccedilatildeo ao argumento da

reminiscecircncia desde que ele natildeo seja utilizado para provar que a alma continua a existir

depois da morte

(i) Ao final do argumento da reminiscecircncia Siacutemias manifesta absoluta

confianccedila na conclusatildeo de que as almas existem antes do nascimento e

que Formas existem e diz que seu amigo Cebes natildeo rejeita o argumento

soacute natildeo concorda assim como ele mesmo que o argumento possa provar

que a alma continua a existir quando se separa do corpo (77a-b)

(ii) Depois do argumento das afinidades quando os amigos de Soacutecrates

apresentam suas famosas objeccedilotildees Cebes afirma que manteacutem a mesma

posiccedilatildeo de outrora ele acredita que estaacute completamente demonstrado que

a alma existia antes de nascer (conclusatildeo do argumento da

reminiscecircncia) mas natildeo estaacute convencido de que ela continua a existir

depois da morte (76e-77a)

(iii) Quando Soacutecrates refuta o argumento de Siacutemias (alma eacute harmonia) o

filoacutesofo pergunta se os amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns

dos argumentos apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam

apenas alguns e rejeitam outros Soacutecrates pergunta abertamente se eles

aceitam o argumento da reminiscecircncia e sua conclusatildeo de que as almas

104

existem em algum lugar antes de alojar-se num corpo e ambos

respondem positivamente Cebes diz que na ocasiatildeo em que Soacutecrates

apresentara o argumento ele estava completamente convencido e que

agora ele aceita o argumento mais do que qualquer outro Siacutemias por sua

vez concorda com o amigo e afirma que se surpreenderia se um dia

tivesse de mudar de opiniatildeo acerca desse argumento (91e-92a)

(iv) Pouco depois Soacutecrates convence Siacutemias de que o argumento de que a

alma eacute harmonia conflita com o argumento da reminiscecircncia (aprender eacute

recordar) jaacute que o argumento da reminiscecircncia requer que a alma tenha

existido antes de alojar-se no corpo enquanto a harmonia de uma lira natildeo

pode existir antes de uma lira ser construiacuteda Sendo assim Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos Sem titubear ele abandona o proacuteprio

argumento (alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e fica com o argumento da reminiscecircncia o

qual deriva de uma hipoacutetese digna de aceitaccedilatildeo e para que natildeo reste

nenhuma duacutevida ele ratifica que eacute certo que a alma existe antes de entrar

num corpo assim como existe a lsquoFormarsquo aquilo que eacute (92c-92d)

(v) Posteriormente Soacutecrates afirma que Cebes busca uma prova de que a

alma eacute imortal e indestrutiacutevel mas que segundo Cebes provar que a

alma eacute robusta divina e que jaacute existia antes do nascimento natildeo implica

que ela eacute imortal (ἀθάνατος) (95c)

105

Pelo menos ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias seratildeo

consistentes no seu posicionamento de que o argumento da reminiscecircncia demonstra a

existecircncia da alma antes do nascimento mas de modo algum a sua imortalidade (77b-c)

Jaacute que os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento da reminiscecircncia como prova

da existecircncia da alma depois da morte Soacutecrates apresenta uma soluccedilatildeo bem

controversa a combinaccedilatildeo dos dois argumentos num soacute Mas a conclusatildeo do argumento

da reminiscecircncia ndash a preexistecircncia da alma ndash jaacute estaacute presente na conclusatildeo do argumento

ciacuteclico os vivos procedem dos mortos e as almas dos mortos continuam a existir (72d8-

10) Se o argumento ciacuteclico fosse aceito ele por si soacute provaria as duas metades a que

Soacutecrates se refere a preexistecircncia da alma e a existecircncia da alma depois da morte Mas

se os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento ciacuteclico como eacute o que tudo indica a

combinaccedilatildeo dos argumentos natildeo resolve o problema colocado por Siacutemias e Cebes Eles

acreditam que o argumento da reminiscecircncia prova a preexistecircncia da alma mas por

outro lado natildeo se comprometem com o argumento ciacuteclico Soacutecrates parece entender a

posiccedilatildeo dos seus interlocutores porque nem mesmo espera que eles avaliem a sua nova

proposta (combinaccedilatildeo dos argumentos) como se jaacute soubesse que seria rejeitada pelos

amigos mas logo assume que seus amigos requerem um argumento ainda melhor (77c-

d)

Soacutecrates imediatamente desqualifica a motivaccedilatildeo dos amigos para continuar a

discussatildeo ele despreza a possibilidade de que os amigos tenham simplesmente rejeitado

a sua proposta de que os argumentos juntos provariam a imortalidade da alma e logo

assume que a necessidade de fundamentar melhor a questatildeo decorre meramente de um

temor pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo

especialmente se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) O argumento das

106

afinidades eacute introduzido por Platatildeo no Feacutedon para responder ao temor de Cebes de que

mesmo que a alma possa existir antes de nascermos (como demonstra o argumento da

reminiscecircncia) ela ainda poderia ser destruiacuteda quando morrermos retomando a a

questatildeo essencial que Cebes apresenta em 70 a

Em resposta agrave afirmaccedilatildeo do mestre Cebes ri e pede que Soacutecrates os liberte do

temor o qual por sua vez afirma que para isso seriam necessaacuterios encantamentos

diaacuterios (77e) A ocasiatildeo se torna notadamente laudatoacuteria Cebes exalta Soacutecrates como o

uacutenico capaz de livraacute-los do temor da morte ao mesmo tempo em que lamenta a sua

partida iminente Soacutecrates por sua vez louva a grandeza da Greacutecia e de seus cidadatildeos

onde eles encontrariam ldquoencantadoresrdquo capazes e aptos a substituiacute-lo depois de sua

partida especialmente se buscassem no proacuteprio ciacuterculo socraacutetico (78a) Numa grande

Greacutecia e entre muitos cidadatildeos Soacutecrates e seus disciacutepulos satildeo aqueles capazes de

realizar os encantamentos necessaacuterios para expurgar temores infundados numa clara

indicaccedilatildeo de que ainda que morra seu legado continuaraacute por meio dos seus amigos que

estatildeo ali presentes aguardando a ocasiatildeo fatiacutedica Mas Cebes tem pressa e natildeo responde

ao elogio do mestre Em vez disso impele-o a continuar e retomar a discussatildeo na acircnsia

de que Soacutecrates antes de partir apresente o argumento suficiente que acabara de

prometer (78b)

Portanto neste ponto do diaacutelogo tudo leva a crer que os amigos de Soacutecrates

acreditam que argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia ndash juntos ou separados ndash

natildeo demonstram a imortalidade da alma e que eles ainda esperam uma prova

satisfatoacuteria de Soacutecrates O filoacutesofo prontamente inicia um novo argumento o qual se

convencionou chamar de argumento das afinidades

107

53 O argumento propriamente dito

O argumento das afinidades trata diretamente do problema levantado por Cebes

em 70a ndash a possibilidade de a alma se dispersar O argumento ciacuteclico lida com o antigo

relato miacutetico da transmigraccedilatildeo das almas enquanto o segundo argumento eacute introduzido

no diaacutelogo por uma lembranccedila e sugestatildeo de Cebes de que a doutrina da reminiscecircncia

tambeacutem serviria para provar a imortalidade da alma mas agora Soacutecrates se dispotildee a

examinar se a alma eacute um tipo de coisa suscetiacutevel a dispersatildeo (mortal) ou natildeo (imortal)

Portanto o argumento tem o meacuterito de reorientar a discussatildeo para o problema crucial do

diaacutelogo ndash a imortalidade da alma ndash o qual requer uma prova satisfatoacuteria de que a alma

seria imune agrave dispersatildeo e assim imortal

Soacutecrates comeccedila apresentando o que seria um programa resumido do argumento

em 78b4-9

(i) Primeiro Soacutecrates apresenta uma questatildeo essencial que pode ser

dividida em duas partes (i) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que sofre

dispersatildeordquo (ii) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo sofre

dispersatildeordquo Essa questatildeo seraacute respondida inicialmente em 78c1-4

Posteriormente ele estende a sua explanaccedilatildeo em 78c5-79a11

(ii) Segundo Soacutecrates pergunta ldquoa qual desses dois tipos de coisas pertence a

almardquo Essa questatildeo receberaacute tratamento em 78b1-80ab

(iii) Por fim a conclusatildeo diraacute se a alma pertence a uma classe de coisas

suscetiacuteveis a dispersatildeo ou natildeo com base na qual os amigos de Soacutecrates

108

confiaratildeo ou temeratildeo por suas almas Essa conclusatildeo aparece em 80a10-

81a3

Vejamos entatildeo roteiro geral de como o argumento se desenvolve seguido de uma

comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

5 Existem duas ldquoclasses de seres uma visiacutevel e que nunca permanece no

mesmo estado uma invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado (79a6-

11)

6 A alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

109

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

110

A pergunta apresentada no programa inicial de Soacutecrates eacute respondida em 78c1-4

(i) a que tipo de coisa pertence aquilo que pode sofrer dispersatildeo

Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto agravequilo que eacute composto por natureza

sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto juntordquo (78c1-3)

(b) a que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo pode sofrer dispersatildeo

ldquoPor outro lado se haacute algo simples natildeo pertence somente a isso mais do que a

qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a sofrer decomposiccedilatildeordquo (78c 3-4)

Soacutecrates simplestemente assume que haacute coisas que sofrem dispersatildeo e coisas que

natildeo sofrem coisas que deixam de existir e outras natildeo natildeo havendo necessidade de

exposiccedilatildeo a esse respeito Cebes tambeacutem concorda que devem considerar esses dois

tipos de coisa O problema que se haacute de enfrentar natildeo eacute se haacute coisas que sofrem

dispersatildeo ou natildeo mas se a alma eacute suscetiacutevel agrave dispersatildeo Ao trazer essa questatildeo da

dispersatildeo ou natildeo das coisas no argumento das afinidades Soacutecrates estaacute lidando

diretamente com a alegaccedilatildeo de Cebes de que muitos temem que a alma se dispersa e se

esvai como fumo na ocasiatildeo da morte Portanto o argumento traz uma expectativa de

que Soacutecrates possa mostrar que alma natildeo estaacute entre o tipo de coisas que se dispersa

quando finalmente se teria um argumento suficiente

Com base na suscetibilidade ou natildeo agrave dispersatildeo a sua preocupaccedilatildeo agora eacute

estabelecer a existecircncia de duas classes de coisas (i) coisas compostas as quais satildeo

suscetiacuteveis a dispersatildeo (ii) coisas simples as quais satildeo imunes a dispersatildeo

111

As coisas compostas podem ser de dois tipos (i) aquelas que naturalmente tecircm

partes ndash compostas por natureza (ii) e aquelas cujas partes satildeo postas juntas num

proceso diferente daquele que as coisas naturalmente compostas experimentam (78c1)

A essas coisas compostas ldquopertencerdquo (προσήκω) o sofrer dispersatildeo (διαιρέω)

(78c2) Nesse contexto dispersatildeo eacute a decomposiccedilatildeo desagregamento ou divisatildeo dos

elementos que compotildeem algo composto Soacutecrates explica que assim como eacute possiacutevel a

composiccedilatildeo de elementos para a formaccedilatildeo de algo composto o processo contraacuterio ndash a

decomposiccedilatildeo ndash eacute plenamente possiacutevel a qual implica em destruiccedilatildeo do objeto (78c2-

3) Sendo assim sugere-se que um item composto pode sofrer destruiccedilatildeo enquanto um

item simples seria imune agrave destruiccedilatildeo

Assim o argumento sugere uma relaccedilatildeo entre composiccedilatildeo e destrutibilidade

simplicidade e indestrutibilidade Mas essa relaccedilatildeo encontra dificuldades se o escopo do

diaacutelogo contempla objetos materiais e imateriais seria razoaacutevel pensar que objetos

materiais compostos seriam suscetiacuteveis agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando sofre a

decomposiccedilatildeo das suas partes mas a ideia de que uma entidade imaterial e composta

poderia ser destruiacuteda ao sofrer decomposiccedilatildeo eacute bem diferente Tambeacutem seria difiacutecil

entender como o argumento ajudaria a provar que uma entidade imaterial e simples

seria imune agrave destruiccedilatildeo

Embora o termo ldquopertencerdquo (προσήκω) seja vago eacute plausiacutevel que Soacutecrates natildeo

esteja propondo que as coisas compostas devem necessariamente sofrer dispersatildeo mas

simplesmente que elas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo Portanto o que fica estabelecido eacute

que coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo enquanto coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo o que acaba criando uma expectativa inevitaacutevel de que a alma seria em breve

tida como algo simples e imune agrave dispersatildeo Mas a ideia eacute construir um argumento

112

analoacutegico baseado na lsquosemelhanccedilarsquo entre a alma e as lsquoFormasrsquo Sendo assim eacute

necessaacuterio apresentar paulatinamente os atributos da lsquoFormarsquo e estabelecer a afinidade

entre almas e lsquoFormasrsquo No proacuteximo passo Soacutecrates afirma que as coisas lsquosimplesrsquo satildeo

as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo e logo depois identifica essas

coisas como sendo as lsquoFormasrsquo enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees

diferentes e nunca se encontram no mesmo estado satildeo as lsquocompostasrsquo os lsquoobjetos

particularesrsquo (Cf 78c-d)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

No proacuteximo passo em 78c6-8 Soacutecrates faz a seguinte associaccedilatildeo

(i) coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes (τὰ δὲ ἄλλοτ᾽ ἄλλως) e

nunca se encontram no mesmo estado (μηδέποτε κατὰ ταὐτά) coisas compostas

(ii) coisas que estatildeo sempre no mesmo estado (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) e condiccedilatildeo

(ὡσαύτως ἔχει) coisas simples

O argumento se baseia numa associaccedilatildeo bastante plausiacutevel (μάλιστα εἰκός)

(78c7) O contexto imediato sugere que a associaccedilatildeo eacute razoaacutevel porque as coisas

compostas sofrem dispersatildeo que eacute um tipo de variaccedilatildeo um tipo de mudanccedila no estado

e condiccedilatildeo do objeto Sendo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo dos seus componentes as coisas

113

compostas estatildeo fadadas agrave mutaccedilatildeo e inconstacircncia As coisas simples por sua vez satildeo

imunes agrave dispersatildeo sendo plausiacutevel associaacute-las com aquilo que eacute constante e natildeo varia

Dando um novo passo na construccedilatildeo dessa cadeia de associaccedilotildees Soacutecrates

busca um grupo de coisas que pode ser identificado como lsquocoisas que estatildeo sempre no

mesmo estadorsquo O filoacutesofo entatildeo faz um convite aberto para retomar as coisas que

discutiam no argumento anterior lsquoas coisas em sirsquo (lsquoFormasrsquo) lsquoFormasrsquo satildeo o que

Soacutecrates identificaraacute como o tipo de coisa que natildeo sofre alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

(78c10-78d1) e aquilo que serviraacute de base para a construccedilatildeo da analogia central do

argumento Com a introduccedilatildeo das lsquoFormasrsquo na discussatildeo os termos lsquocompostorsquo

(σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) satildeo completamente abandonados

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

Agora Soacutecrates pede para voltar agravequelas coisas sobre as quais jaacute haviam

conversado no argumento anterior a essecircncia (ἡ οὐσία) cujo ser ou existecircncia (τοῦ

εἶναι) se apresenta por meio de um loacutegos que consiste de perguntas e respostas (78c10-

78d2) Segundo Gallop lsquodar um loacutegosrsquo nesse contexto pode significar tanto lsquodar uma

definiccedilatildeorsquo como lsquoapresentar uma provarsquo podendo significar tanto lsquodefinir a natureza

essencial das lsquoFormasrsquo como lsquoprovar que elas existemrsquo105 Neste contexto Soacutecrates

retoma esse grupo de coisas apresentados antes como ldquoo igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em si aquilo que eacuterdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d3-4) que desde o contexto do argumento das

105 Gallop 2002 p139

114

reminiscecircncias estamos chamando de lsquoFormasrsquo apenas de uma terminologia teacutecnica

ainda natildeo aparecer nesta fase do diaacutelogo

Expressotildees como ἡ οὐσία τὸ ὄν αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ τὸ ἴσον e αὐτὸ ὃ ἔστιν

natildeo satildeo novas no diaacutelogo mas ganham um significado especial no contexto do

argumento das afinidades No argumento da reminiscecircncia a expressatildeo αὐτὸ ὃ ἔστιν ou

apenas ὃ ἔστιν (a qual aparece agora em αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) jaacute se destaca como

foacutermula usual para designar de modo geral o objeto da discussatildeo (Cf74b2 74d6

75b1) o que reflete uma tentativa de fixar uma foacutermula ndash ὃ ἔστιν (o que eacute) ndash para

designar objetos que ele costuma apresentar pelo uso de exemplos como τὸ καλόν e τὸ

ἴσον Os termos εἶδος e ἰδέα conhecidos como termos teacutecnicos para designar lsquoFormasrsquo

ainda natildeo foram introduzidos no diaacutelogo exceto quando εἶδος eacute empregado em sua

acepccedilatildeo comum como em 73d9 a imagem do amado (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς)

Nesta etapa do argumento das afinidades Soacutecrates identifica lsquoaquilo que eacutersquo as

lsquoFormasrsquo como sendo coisas cujo estado natildeo muda ou altera e esta passagem visa

estabelecer justamente isso em 78d10-d9 depois de estabelecer que nenhum elemento

da classe em questatildeo deve ser posto de fora do exame ndash eacute necessaacuterio considerar lsquocada

um deles que eacutersquo (αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι) cada membro da classe em questatildeo ndash ele

estabelece que cada membro dessa classe eacute o tipo de coisa que

(i) cada coisa que eacute sendo uniforme e sozinha por si soacute permanece sempre na

mesma condiccedilatildeo e estado

(ii) em hipoacutetese alguma cada coisa que eacute se sujeitaria a qualquer tipo de

mudanccedila

115

Duas expressotildees merecem particular atenccedilatildeo lsquouniformersquo (μονοειδής) e lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) A primeira ndash lsquouniformersquo ndash pode ser entendida como algo

que possui apenas um componente ou parte ou simplesmente como algo de uma soacute

aparecircncia Se a primeira ideia prevalece o termo μονοειδής pode ser entendido como

sinocircnimo para o termo lsquosimplesrsquo o qual natildeo aparece novamente no decorrer do

argumento Mas essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute completamente segura ou definitiva

Platatildeo certamente tem uma razatildeo especial para incorporar a expressatildeo lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) neste ponto da discussatildeo dada a sua frequecircncia no diaacutelogo e

o contexto imediato Temos no diaacutelogo dois empregos frequentes da expressatildeo uma em

referecircncia agraves lsquoFormasrsquo outra em referecircncia agraves almas

(i) lsquoa Forma sozinha por si mesmorsquo a expressatildeo jaacute havia sido empregada em

relaccedilatildeo a essas coisas que Soacutecrates chama de lsquoaquilo que eacutersquo na primeira etapa do

diaacutelogo quando o filoacutesofo fala da necessidade de utilizar o pensamento sozinho

por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) para

perseguir cada coisa em si a qual eacute sozinha por si mesma (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ) e

sem mistura (66a1-3)

(ii) a alma sozinha sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν ἡ ψυχὴ) a expressatildeo

eacute empregada com frequecircncia para a alma na ocasiatildeo em que se afasta do corpo e

pode finalmente sozinha por si mesma alcanccedilar lsquoaquilo que eacutersquo a verdade ou o

conhecimento puro 64c7-8 65d1 66e6-67a1 Em 70a7 depois de Cebes

apresentar a crenccedila popular na dispersatildeo da alma como fumo a questatildeo crucial eacute

saber se a alma realmente existiria em algum lugar sozinha por si mesma (αὐτὴ

καθ᾽ αὑτὴν) quando viesse a separar-se do corpo e de suas mazelas

116

(iv) Portanto quando Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute uniforme e lsquosozinha por si

mesmarsquo neste ponto do argumento das afinidades ele traz de volta toda a

discussatildeo anterior e prepara a introduccedilatildeo da analogia entre lsquoalmarsquo e

lsquoFormarsquo Posteriormente em 79dc-d Soacutecrates diz abertamente que jaacute

haviam discutido sobre a necessidade de a alma se separar do corpo e

sozinha por si mesma alcanccedilar aquilo que eacute puro Depois de apresentado

o argumento das afinidades em si em 83a-b Soacutecrates volta a lembrar que

a filosofia tem o papel de persuadir a alma a distanciar-se do corpo e dos

sentidos e sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) refletir naquilo que

eacute sozinho por si mesmo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ)

No proacuteximo passo em 78d10-e6 o desafio eacute identificar o tipo de coisa que

nunca eacute constante e entatildeo estabelecer o contraste entre as coisas que satildeo sempre

constantes (lsquoFormasrsquo) e as coisas que natildeo satildeo (objetos particulares)

Soacutecrates entatildeo introduz uma multiplicidade de objetos particulares (i) as muitas

coisas belas ndash pessoas belas cavalos belos roupas belas e tudo mais desse tipo (ii) as

coisas iguais (iii) as coisas que compartilham o mesmo nome das coisas mencionadas

antes Esses objetos particulares ao contraacuterio daqueles ldquonunca e de modo algum

permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre sirdquo Desse modo em

contraste com aslsquoFormasrsquo os particulares apresentam dois tipos de variaccedilatildeo eles

variam em relaccedilatildeo a si mesmos ndash num dado momento um cavalo belo pode se tornar

menos belo do que era antes e variam entre si ndash num dado momento um cavalo belo

pode se tornar menos belo do que outros cavalos belos O ponto que se estabelece eacute a

mutabilidade dos objetos particulares os quais estatildeo sujeitos a serem caracterizados por

117

atributos diferentes em ocasiotildees diferentes Aleacutem disso eacute razoaacutevel considerar que os

objetos particulares variam porque satildeo passiacuteveis agrave dispersatildeo eles passam a existir pela

composiccedilatildeo de suas partes e chegam ao fim com a desintegraccedilatildeo das suas partes Fica

entatildeo estabelecido o contraste entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares lsquoFormasrsquo

permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos particulares estatildeo

sempre mudando O terreno foi preparado para a apresentaccedilatildeo da semelhanccedila entre

almas e lsquoFormasrsquo

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

Soacutecrates manteacutem a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares agora

apresentando mais um elemento de contraste entre ambos as coisas particulares satildeo

percebidas pelos sentidos as coisas que permanecem no mesmo estado satildeo apreendidas

somente pelo raciociacutenio do pensamento (τῆς διανοίας λογισμῷ) Mais uma vez fica

claro que o argumento das afinidades retoma a discussatildeo apresentada na primeira etapa

do Feacutedon especialmente em 65b-e Soacutecrates jaacute havia estabelecido que a alma deve

raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) atraveacutes do pensamento

sozinho (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) e sem a interaccedilatildeo dos sentidos para que possa alcanccedilar as

coisas em si mesmas (Cf 65c2-9 65e7 66a1-2)

Soacutecrates esclarece entatildeo que coisas invisiacuteveis ndashlsquoFormasrsquondash soacute podem ser

apreendidas pelo pensamento da razatildeo e sugere que apenas coisas visiacuteveis ndash objetos

particulares ndash satildeo percebidos pelos sentidos Agora a ecircnfase recai sobre a invisibilidade

das lsquoFormasrsquo e natildeo sobre a vilania do corpo e seus sentidos

118

5 Existem duas ldquoclasses de seresrdquo (εἴδη τῶν ὄντων) uma visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e

que nunca permanece no mesmo estado uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que sempre

permanece no mesmo estado (79a6-11)

A distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo invisiacuteveis e particulares visiacuteveis serve de base para

que Soacutecrates estabeleccedila a existecircncia de duas classes de coisas ndash as invisiacuteveis e as

visiacuteveis ndash e relacione essa informaccedilatildeo com aquilo que havia apresentado antes que

lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos

particulares estatildeo sempre mudando Assim em 79a6-11 ele estabelece que existem duas

ldquoclasses de seresrdquo sendo uma delas visiacutevel e que nunca permanece no mesmo estado e

a outra invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado O proacuteximo passo eacute

introduzir dois elementos no argumento das afinidades ndash corpo e alma ndash e identificar

com base na semelhanccedila e afinidade a classe a qual cada um deles possa pertencer

6 A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

Pela primeira vez os termos lsquocorporsquo e lsquoalmarsquo satildeo introduzidos no argumento das

afinidades O ponto de partida de Soacutecrates eacute a ideia da composiccedilatildeo baacutesica do ser

humano em corpo e alma o que natildeo enfrenta qualquer objeccedilatildeo no diaacutelogo (79b1-3)

Essa concepccedilatildeo de que somos parte corpo e parte alma serve de base para praticamente

toda a discussatildeo que segue Jaacute fora estabelecido que haacute duas ldquoclasses de seresrdquo ndash uma

visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que objetos particulares satildeo membros

119

da classe de coisas visiacuteveis que satildeo passiacuteveis de mudanccedila e que no contexto geral do

argumento mudanccedila inclui dispersatildeo e destruiccedilatildeo

Jaacute fora estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo membros da classe de coisas invisiacuteveis e

que permanecem sempre no mesmo estado ndash natildeo satildeo passiacuteveis a mudanccedila e assim natildeo

podem sofrer dispersatildeo e destruiccedilatildeo Se assim como as lsquoFormasrsquo a alma fosse um

membro da classe de coisas invisiacuteveis e nunca sofresse alteraccedilatildeo ficaria demonstrado

que ela natildeo sofreria dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando deixa o corpo natildeo havendo razatildeo

para temer Embora o argumento gere a expectativa de que Soacutecrates simplesmente

coloque almas na classe de coisas invisiacuteveis e corpo na classe de coisas visiacuteveis ele

introduz a ideia de semelhanccedila e afinidade

(i) o tipo de coisa visiacutevel eacute mais semelhante e tem mais afinidade (ὁμοιότερον

καὶ συγγενέστερον) com o corpo (79b4-5)

(ii) a alma seria invisiacutevel pelo menos para as pessoas (79b6-7)

(iii) a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo

enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a almardquo (79b16-17)

Portanto a conclusatildeo considera as duas partes constitutivas do indiviacuteduo natildeo se

diz simplesmente que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel e que o corpo eacute mais

semelhante ao visiacutevel mas que a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do

que o corpo enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma Isto levanta

o problema do grau de semelhanccedila entre alma e invisiacutevel O que temos aqui natildeo eacute uma

declaraccedilatildeo de que a alma eacute ao maacuteximo semelhante ao invisiacutevel mas apenas que a alma

eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo Isso pode ser um ponto de fraqueza do

120

argumento se considerarmos que corpo e o invisiacutevel satildeo extremamente dissemelhantes

admitir que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo pode continuar sendo

uma fraca declaraccedilatildeo da semelhanccedila entre alma e o invisiacutevel A alma poderia ter pouca

semelhanccedila com o invisiacutevel embora continuasse sendo mais semelhante ao invisiacutevel do

que o corpo

Aleacutem disso a invisibilidade da alma natildeo garante a sua imutabilidade Platatildeo jaacute

havia estabelecido a existecircncia de uma classe de seres visiacuteveis e que nunca permanecem

no mesmo estado e uma classe de seres invisiacuteveis e que sempre permanecem no mesmo

estado (79a6-11) Mas agora ainda que se consiga estabelecer que ldquoa alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo ou que a alma eacute invisiacutevel e o

corpo natildeo a invisibilidade da alma natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade

As lsquoFormasrsquo satildeo membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e

natildeo as almas

Eis algumas outras fraquezas do argumento

(i) A ideia de semelhanccedila eacute essencial no argumento mas em momento algum

Platatildeo apresenta uma clara definiccedilatildeo de lsquosemelhanccedilarsquo ou lsquoafinidadersquo o que faz

com que o argumento se estabeleccedila sobre uma vaga noccedilatildeo de semelhanccedila

(ii) Talvez a ideia baacutesica de lsquosemelhanccedilarsquo seja a de lsquoter caracteriacutesticas em

comumrsquo Neste caso a caracteriacutestica comum que alma e o tipo de coisa invisiacutevel

(lsquoFormasrsquo) possuem eacute a invisibilidade e a caracteriacutestica comum que o corpo e o

tipo de coisa visiacutevel (objetos particulares) compartilham eacute a visibilidade

Contudo ainda que alma e o tipo de coisa invisiacutevel possuam essa caracteriacutestica

em comum a qual estaacute ausente no corpo isto natildeo eacute suficiente para concluir que

121

a alma eacute mais semelhante ao tipo de coisa invisiacutevel (lsquoFormasrsquo) do que o corpo

eacute106 Ainda que se possa dizer que a alma eacute invisiacutevel assim como a lsquoFormarsquo eacute

invisiacutevel natildeo eacute possiacutevel dizer que a alma permanece sempre na mesma

condiccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo permanece na mesma condiccedilatildeo Aina que a

alma seja invisiacutevel isto natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade ela

continua passiacutevel a mudanccedila que no contexto do argumento inclui destruiccedilatildeo

Os amigos ainda podem temer que a alma se desintegre quando deixa o corpo

(iii) Outro problema para o estabelecimento de uma analogia eficiente eacute o

desbalanccedilo na relaccedilatildeo entre corpo e os membros da classe de coisas visiacuteveis e

alma e os membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis Eacute evidente que

o corpo eacute um objeto particular razatildeo pela qual em 81d10 pessoas belas

aparecem na lista de coisas particulares ao lado de cavalos belos e roupas belas

Portanto ele natildeo apenas possui maacutexima semelhanccedila com objetos particulares

visiacuteveis e mutaacuteveis mas que ele eacute um objeto particular visiacutevel e mutaacutevel No

caso da alma pode-se dizer que ela eacute mais semelhante agrave classe de coisas

invisiacuteveis do que o corpo eacute mas natildeo eacute possiacutevel dizer que ela eacute uma lsquoFormarsquo

invisiacutevel e imutaacutevel

(iv) A hesitaccedilatildeo de Cebes em aceitar que a alma eacute invisiacutevel pode gerar

dificuldades no estabelecimento de uma analogia coerente Ele concorda

plenamente com a ideia de que o corpo possui semelhanccedila com o tipo de coisa

visiacutevel ldquoeacute bem evidente a qualquer pessoardquo assevera Cebes (79b6) Contudo

quando Soacutecrates pergunta se a alma seria visiacutevel ou invisiacutevel Cebes apresenta

uma reserva ldquoPelo menos ao ser humano eacute invisiacutevelrdquo (79b8) Soacutecrates entatildeo

106 Gallop 2002 p140

122

necessita esclarecer que estatildeo considerando coisas que satildeo visiacuteveis ou invisiacuteveis

ao ser humano (79b9-11) Esta hesitaccedilatildeo de Cebes tem gerado diferentes

interpretaccedilotildees Gallop afirma que seria uma maneira de anunciar a possiacutevel

objeccedilatildeo de que a alma natildeo seria invisiacutevel para os deuses107 Rowe dize que

Cebes estaria representando a tradicional perspectiva homeacuterica da morte

segundo a qual as almas satildeo invisiacuteveis apenas para os vivos108 Bostock sugere

uma perspectiva materialista da alma ele diz que embora Platatildeo acredite que a

alma eacute totalmente imaterial ele natildeo esperaria unanimidade a esse respeito e

lembra que agrave eacutepoca de Platatildeo havia concepccedilotildees filosoacuteficas segundo as quais a

alma seria material embora composta de elementos extremamente pequenos

invisiacuteveis pelo menos para os ordinaacuterios olhos humanos Se este for realmente o

caso Cebes hesita em concordar plenamente com a idea assim como o fez em

relaccedilatildeo ao corpo e precisa enfatizar que a alma eacute invisiacutevel pelo menos para os

seres humanos109

Agora Soacutecrates busca ratificar a semelhanccedila entre almas e a classe de coisas

invisiacuteveis Essa etapa de 79c2-79d9 retoma a discussatildeo sobre a aquisiccedilatildeo do

conhecimento das lsquoFormasrsquo a qual aparece na primeira etapa do Feacutedon e agora aparece

no argumento das afinidades Mais uma vez o leitor eacute convidado a considerar a

discussatildeo anterior e que o argumento individual natildeo estaacute isolado do contexto geral da

obra

107 Gallop 2002 p140 108 Rowe 1993 p185 109 Cf Bostok 1989 p118

123

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

Na etapa anterior em 79b Soacutecrates apresenta a sua primeira consideraccedilatildeo sobre

a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis Agora ele apresenta a sua

segunda consideraccedilatildeo sobre a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis

mas num contexto bem mais complexo

Esta complexa passagem retoma a discussatildeo anterior sobre a busca do

conhecimento Na primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates afirma que o corpo (τὸ σῶμα) eacute

obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do conhecimento (φρόνησις) porque os sentidos corporais

natildeo satildeo confiaacuteveis e natildeo garantem nem precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) no

exame (65a9-65b7) O argumento das afinidades retoma toda essa discussatildeo num

contexto mais complexo e com implicaccedilotildees adicionais e a passagem termina justamente

com um esclarecimento de que essa experiecircncia da alma em contato com as lsquoFormasrsquo eacute

o que se pode chamar de conhecimento (φρόνησις) (79d6-7)

Em 79c2-9 Soacutecrates explica que alma que examina por meio do corpo e dos

sentidos eacute arrastada pelo corpo diretamente para objetos particulares Aqui

provavelmente se estabelece a mesma ideia de relaccedilatildeo ou afinidade que Soacutecrates

descreve em seguida quando fala da relaccedilatildeo entre alma e lsquoFormarsquo (Cf 79d3 συγγενὴς)

124

Como o corpo possui uma lsquorelaccedilatildeorsquo com os objetos fiacutesicos a alma deve examinaacute-los

lsquopor meio do corporsquo (διὰ τοῦ σώματος) lsquopor meio dos sentidos corporaisrsquo (δι᾽

αἰσθήσεως) Essa lsquorelaccedilatildeorsquo eacute tatildeo forte que a alma natildeo tem escolha e passivamente eacute

arrastada pelo corpo (ἕλκεται ὑπὸ τοῦ σώματος) para aquilo com que tem afinidade

para as coisas que nunca permanecem no mesmo estado (εἰς τὰ οὐδέποτε κατὰ ταὐτὰ

ἔχοντα) Desse modo a alma perde o controle do processo cognitivo nessa ocasiatildeo em

que o corpo assume a lideranccedila

Pouco antes havia sido estabelecido que objetos particulares satildeo membros da

classe de coisas visiacuteveis (Cf 79a6-11) Assim a forte relaccedilatildeo entre corpo e objetos

particulares decorre da filiaccedilatildeo de ambos na mesma classe de coisas Para examinar os

membros dessa classe de coisas visiacuteveis a alma teraacute de se utilizar do corpo Por outro

lado Soacutecrates ressalta a discrepacircncia entre a alma e os objetos particulares quando

entra em contato com eles a alma anda errante confusa trocircpega porque esta eacute a

natureza dessas coisas com as quais estaacute em contato Soacutecrates havia estabelecido que ldquoa

alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo (79b16-17) e agora

ratifica que as almas natildeo tecircm afinidades com a classe de coisas visiacuteveis Por um lado o

corpo e os sentidos corporais satildeo a via para o exame dos objetos sensiacuteveis por outro eacute

um empecilho para o alcance dos membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis

as lsquoFormasrsquo

Soacutecrates emprega forte linguagem pejorativa para enfatizar a natureza inferior

dos objetos particulares a alma anda erraacutetica confusa trocircpega como se estivesse

embriagada porque estaacute em contato com objetos dessa natureza O corpo jaacute foi

apresentado como um vilatildeo que oblitera o percurso da alma que tenta alcanccedilar as

lsquoFormasrsquo e agora natildeo apenas os sentidos corporais mas tambeacutem os objetos particulares

125

satildeo apresentados como algo vil de natureza inferior O objeto de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo eacute

a lsquoFormarsquo e para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio que a alma se dissocie do corpo e se dirija aos

objetos congecircneres

Em busca de estabelecer a familiaridade entre a alma e as lsquoFormasrsquo Platatildeo

apresenta a discrepacircncia entre alma e objetos particulares quando a alma examina

atraveacutes do corpo ela eacute arrastada para objetos particulares e fica em estado de

perturbaccedilatildeo Isso acontece porque a alma entra em contato com aquilo com que natildeo

possui lsquoafinidadersquo ela eacute arrastada pelo corpo para aquilo que tem lsquoafinidadersquo com ele

mesmo natildeo com a alma (79c2-9) Em 79d1-9 Soacutecrates explica o que acontece quando

a alma examina lsquosozinha por si mesmarsquo (αὐτὴ καθ᾽ αὑτήν) sem a mediaccedilatildeo do corpo e

de seus sentidos ela se encaminha para aquilo com que tem relaccedilatildeo familiaridade ou

afinidade (συγγενής) ndash o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo

Enquanto a alma que examina por meio do corpo eacute arrastada por ele para objetos

particulares a alma que examina sem interaccedilatildeo com o corpo (sozinha por si mesma)

encaminha a si mesma (οἴχεται) para os objetos com os quais tem lsquoafinidadersquo

recuperando o papel ativo que lhe eacute natural no processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento

Ela entatildeo alcanccedila as lsquoFormasrsquo e fica em harmonia com elas porque alma e lsquoFormasrsquo satildeo

afins e essa dita lsquoafinidadersquo possibilita que a alma conheccedila seu afim e se relacione

harmonicamente com ele Com base na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e

no livre acesso e harmonia entre a alma sozinha e a lsquolsquoFormarsquoque repousa a conclusatildeo de

que ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que ao que natildeo estaacuterdquo (79d10-e6)

A ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre alma e lsquoFormasrsquo eacute

expressamente estabelecida pelo termo συγγενής (79d3 Cf 79e1-2 84b2) Jaacute na

126

primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates apresenta uma vaga ideia de que o que eacute lsquopurorsquo pode

conhecer o que eacute puro e o que eacute impuro natildeo pode conhecer o que eacute puro A alma pura

(sozinha por si mesma dissociada do corpo e dos sentidos corporais) pode conhecer

aquilo que eacute puro (sem mistura) mas quando impura (em comunhatildeo com o corpo) natildeo

pode ter acesso agravequilo eacute puro ndash as lsquoFormasrsquo (Cf 67a-b) Conforme essa ideia a alma

por si soacute sem mistura tem direto acesso aos objetos de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo Por outro

lado quando estaacute impura o corpo lhe oblitera o acesso agraves lsquoFormasrsquo Ao que parece essa

ideia eacute retomada e desenvolvida no argumento das afinidades sendo alma e lsquoFormasrsquo

entidades congecircneres a alma tem livre acesso cognitivo a elas

Mas a ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo ou lsquoafinidadersquo eacute tambeacutem vaga e obscura

no contexto do argumento das afinidades Existe uma forte evidecircncia textual de que os

termos lsquorelaccedilatildeorsquo e lsquosemelhanccedilarsquo satildeo utilizados como sinocircnimos no argumento Em

79b4-5 Soacutecrates pergunta ldquoqual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e

ter mais afinidade (ὁμοιότερον καὶ συγγενέστερον) com o corpordquo Pouco depois

apenas a expressatildeo ὁμοιότερον eacute empregada na resposta (no lugar de ὁμοιότερον καὶ

συγγενέστερον) ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo

(79b16-17) Esse padratildeo se repete pouco depois com a pergunta formulada com os dois

termos ndash ldquo() com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e

afinidade (ψυχὴ ὁμοιότερον εἶναι καὶ συγγενέστερον)rdquo (79e1-2) ndash e a resposta apenas

com um termo ndash ldquo() a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (ὁμοιότερόν ἐστι ψυχὴ τῷ ἀεὶ ὡσαύτως ἔχοντι μᾶλλον ἢ

τῷ μή) (79e5-6) Gallop afirma que Platatildeo se baseia na ideia empedocleana de que

lsquosemelhante conhece semelhantersquo com base na qual para uma coisa conhecer outra as

127

duas devem possuir algumas caracteriacutesticas ou componentes compartilhados110

Contudo o contexto natildeo deixa claro que Platatildeo realmente emprega essa ideia de

maneira consistente no argumento das afinidades Dizer que ldquoa alma se assemelha mais

ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (79e5-6) natildeo eacute o

mesmo que dizer que alma e lsquoFormasrsquo compartilham a mesma caracteriacutestica a

imutalibilidade Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute pura eterna imutaacutevel mas hesita em dizer

que a alma eacute pura eterna imutaacutevel imortal A linguagem da lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo

no argumento das afinidades eacute sempre uma linguagem que apela mais para algum niacutevel

de aproximaccedilatildeo do que para a ideia de compartilhamento de caracteriacutesticas essenciais

Portanto o que se pode afirmar com base no texto eacute que deve existir um tipo de

profunda relaccedilatildeo de lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo entre almas e lsquoFormasrsquo o que confere agraves

almas acesso cognitivo privilegiado a lsquoFormasrsquo

Eacute tambeacutem importante notar que ao contraacuterio dos objetos particulares as

lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas como uma classe de coisas superiores que exerce impacto

positivo sobre as almas no contato da alma com a lsquoFormarsquo a alma deixa seu andar

erraacutetico e passa a comportar-se como uma lsquoFormarsquo ela permanece no mesmo estado e

condiccedilatildeo relativamente agraves Formas (79d1-9)

Em 79d1-2 temos uma caracterizaccedilatildeo mais completa das lsquocoisas que satildeorsquo

Cada lsquolsquoFormarsquo eacute

110 Cf Gallop 2002 p140 No De Anima 404b16-18 Aristoacuteteles afirma que Platatildeo no Timeu

sustenta que a alma e as coisas que ela conhece seriam compostas pelos mesmos componentes

particulares pois ldquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhanterdquo

128

(i) invisiacutevel (τὸ ἀιδές) embora a lsquoinvisibilidadersquo das lsquolsquoFormasrsquo natildeo apareccedila

nesta lista em 79d1-2 haacute pouco havia ficado estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo

membros da classe de coisas invisiacuteveis (79a6-11)

(ii) pura (τὸ καθαρόν) na primeira etapa do diaacutelogo Platatildeo utiliza a expressatildeo

lsquosem misturarsquo para comunicar a ideia de pureza Nesse contexto apenas

utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν

εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ χρώμενος) eacute possiacutevel perseguir cada uma das coisas que

satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ εἰλικρινὲς ἕκαστον

τῶν ὄντων) (66a1-3) Agora Platatildeo utiliza o termo τὸ καθαρόν para caracterizar

essa qualidade permanente da lsquoFormarsquo certamente enfatizando que a lsquoFormarsquo

estaacute completamente separada da classe de coisas visiacuteveis Eacute interessante

observar que embora na primeira etapa do diaacutelogo a expressatildeo lsquosem misturarsquo

possa ser empregada para lsquoo pensamentorsquo e para lsquoas coisas que satildeorsquo em

momento algum eacute dito que a alma eacute pura (τὸ καθαρόν) Platatildeo estaacute

provavelmente tentando estabelecer uma terminologia proacutepria para lsquoaquilo que

eacutersquo Eacute interessante observar que ele continua utilizando a expressatildeo lsquoa alma

sozinha por si mesmo e sem misturarsquo (ψυχὴν αὐτὴν καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινῆ) com

referecircncia agrave alma que se dissocia do corpo no contexto da etapa especulativa que

segue o argumento em si (81c1-2)

(iii) eterna (ἀεὶ ὂν) a lsquoFormarsquo sempre eacute Essa eacute uma caracteriacutestica esperada

porque o argumento jaacute havia estabelecido que lsquoFormasrsquo estatildeo sempre no mesmo

estado e condiccedilatildeo sendo dispersatildeo e destruiccedilatildeo mudanccedilas no estado e condiccedilatildeo

do ser O problema que motiva o argumento das afinidades eacute justamente o receio

129

de que a alma natildeo seja o tipo de coisa que lsquosempre eacutersquo o temor de que ela exista

apenas por um tempo e em seguida seja destruiacuteda

(iv) imortal (ἀθάνατον) Platatildeo coroa a sua caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo com o

reconhecimento de que elas satildeo imortais o que eacute de suma importacircncia num

diaacutelogo cujo tema eacute a imortalidade da alma O termo ἀθάνατον aparece pela

primeira vez no diaacutelogo na transiccedilatildeo entre o primeiro e o segundo argumento

quando Cebes de modo casual sugere que tambeacutem segundo o ensino da

reminiscecircncia a alma parece ser imortal (73a2-3) Depois disso ἀθάνατον volta

a aparecer novamente apenas no argumento das afinidades Esta passagem

(79d1-2) eacute o primeiro registro de uso da palavra ἀθάνατον por Soacutecrates e ele o

faz para caracterizar a lsquoFormarsquo Mas assim como Soacutecrates nunca diz no

contexto do argumento das afinidades que a alma eacute pura (καθαρόν) ou eterna

(ἀεὶ ὂν) em nenhum momento a personagem afirma que a alma eacute imortal

(ἀθάνατον) O que se conclui no argumento das afinidades eacute que a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότατον εἶναι ψυχή) ao que eacute imortal (Cf 80a1-b3) E esta eacute

pela primeira vez no diaacutelogo em que Soacutecrates se utiliza da palavra lsquoimortalrsquo na

conclusatildeo do argumento Ao que parece a discussatildeo se movimento rumo agravequilo

que finalmente se pretende provar a imortalidade da alma o argumento ciacuteclico

conclui que a alma continua a existir depois morte o argumento das

reminiscecircncias que a alma existe antes do nascimento e o das afinidades que a

alma eacute mais semelhante ao que eacute imortal Posteriormente depois de ouvir as

objeccedilotildees dos amigos a respeito do argumento das afinidades Soacutecrates faz um

resumo de todas as objeccedilotildees e criacuteticas levantadas contra os trecircs argumentos que

ele havia apresentado e reconhece que ningueacutem pode morrer confiante a menos

130

que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι

ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον) (88b5-6) Se natildeo fosse possiacutevel

provar seria plausiacutevel temer que na ocasiatildeo da morte a alma poderia ficar

completamente destruiacuteda (88b6-8) Pela primeira vez no diaacutelogo Soacutecrates

formula uma questatildeo que exige nada menos do que uma conclusatildeo de que a

alma eacute imortal a qual seraacute apresentada no uacuteltimo argumento

(v) algo que permanece na mesma condiccedilatildeo (ὡσαύτως ἔχον) por fim Soacutecrates

retoma a ideia jaacute apresentada em 78c10-d9 onde diz que as lsquoFormasrsquo satildeo coisas

lsquoque estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estadorsquo (ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ)

Sendo algo que permenece sempre na mesma condiccedilatildeo a lsquoFormarsquo eacute tambeacutem

imune a destruiccedilatildeo

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

Agora temos uma mudanccedila na forma da conclusatildeo111

i Em 79b1-b17

ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacuterdquo

ii Em 79d10-e6

ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacuterdquo

111 Gallop 2002 p 140

131

Como jaacute dissemos a conclusatildeo de que as almas devem ter maior semelhanccedila

com as lsquoFormasrsquo (aquilo que eacute puro eterno imortal e permanece na mesma condiccedilatildeo)

do que com os lsquoobjetos particularesrsquo (aquilo que nunca estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

se baseia na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e no acesso livre e relaccedilatildeo

harmocircnica entre a alma sozinha e a lsquoFormarsquo Isto se explica em termos de

lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre a alma que conhece e o objeto que eacute conhecido (a

lsquoFormarsquo)

Esta etapa do argumento e a conclusatildeo a que chega eacute passiacutevel de criacuteticas aleacutem

das que jaacute foram apresentadas

(i) O argumento eacute inconsistente Apresenta-se a alma como ser passiacutevel de

mudanccedila quando em contato com o mundo fiacutesico ndash ldquoanda erraacutetica confusa e

trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a natureza das coisas que

ela estaacute alcanccedilandordquo (79c7-8) ndash ao mesmo tempo em que afirma que a alma

apresenta maacutexima semelhanccedila e afinidade com aquilo que natildeo muda de modo

algum (79d10-e6) Eacute difiacutecil conciliar essa dupla caracterizaccedilatildeo da alma no

argumento razatildeo pela qual Bostock assevera que Platatildeo apresenta a alma com

caraacuteter camaleocircnico porque assume a natureza daquilo com que estaacute em contato

Sendo assim o argumento mostraria que a alma tem maior afinidade com aquilo

que sofre variaccedilatildeo (o corpo por exemplo) do que com aquilo que estaacute sempre na

mesma condiccedilatildeo112

(ii) A linguagem eacute bastante imprecisa Termos-chave como lsquosemelhanccedilarsquo e

lsquoafinidadersquo natildeo satildeo definidos e o contexto natildeo oferece suporte suficiente para

112 Bostock 1989 p 119

132

uma compreensatildeo satisfatoacuteria Eacute possiacutevel que o argumento se baseie no

princiacutepio de que lsquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhantersquo mas o contexto

natildeo fornece uma evidecircncia definitiva de que Platatildeo estaacute recorrendo

especificamente a essa ideia

(iii) O argumento apresenta fraquezas O fato de a alma compartilhar com as

lsquoFormasrsquo uma dada caracteriacutestica que o corpo natildeo possui natildeo mostra que a alma

eacute mais semelhante a elas do que o corpo eacute o fato de a alma sozinha poder

alcanccedilar as lsquoFormasrsquo e ter harmonia em contato com elas natildeo eacute suficiente para

estabelecer que as almas satildeo ao maacuteximo semelhantes agraves Formas imutaacuteveis e

com isso concluir que a alma assim como a lsquoFormarsquo eacute imune a qualquer

variaccedilatildeo e consequente destruiccedilatildeo

Soacutecrates agora oferece um argumento suplementar em favor da semelhanccedila entre

a alma e lsquoFormasrsquo O argumento assume a existecircncia de certa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre

alma e corpo em que o corpo se subordina ao governo da alma e entre divino e mortal

em que o mortal se subordina ao governo do divino

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

133

Platatildeo introduz uma terminologia nova no argumento o divino (τὸ θεῖον) e o

mortal (τὸ θνητόν) A terminologia divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) natildeo foi usada

ateacute agora no argumento Platatildeo entatildeo alinha a alma com o divino (τὸ θεῖον) os quais

exercem papel de governantes e o corpo com o mortal (τὸ θνητόν) os quais exercem

papel de governados estabelecendo uma relaccedilatildeo de semelhanccedila bastante vaga o divino

e a alma devem ser parecidos porque ambos dominam e governam enquanto o corpo e

o mortal dever ser parecidos porque ambos satildeo dominados e governados (79e-80a2-6)

A distinccedilatildeo entre divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) revela que o termo

lsquodivinorsquo eacute equivalente ao termo lsquoimortalrsquo113 Para a mente grega eacute natural que o lsquodivinorsquo

traga consigo a ideia de imortalidadersquo114 Contudo natildeo fica claro se Platatildeo introduz uma

nova linha de pensamento no argumento e dessa forma lsquodivinorsquo se refere a lsquodeusesrsquo ou

se essa passagem eacute uma extensatildeo da ideia em progresso e nesse caso lsquodivinorsquo poderia

ser uma referecircncia agraves lsquoFormasrsquo

A Forma jaacute foi apresentada como aquilo que eacute lsquoeternorsquo (ἀεὶ ὂν) e lsquoimortalrsquo

(ἀθάνατον) (79d2) e agora Platatildeo utiliza o termo divino (τὸ θεῖον) provavelmente

como equivalente ao termo lsquoimortalrsquo Platatildeo costuma tomar de empreacutestimo termos

comuns no acircmbito da religiatildeo grega para caracterizar a lsquolsquoFormarsquorsquo Ao utilizar o termo

lsquodivinorsquo ele procura estabelecer a distinccedilatildeo entre dois tipos de existecircncia o mortal

caracterizaria os objetos particulares os quais satildeo inferiores subjugados cuja existecircncia

eacute passageira suscetiacutevel agrave destruiccedilatildeo o lsquodivinorsquo (imortal) caracterizaria as lsquoFormasrsquo que

satildeo governantes ndash membros de um domiacutenio superior imunes agrave mudanccedila e destruiccedilatildeo

Talvez Platatildeo esteja utilizando agora o termo lsquodivinorsquo justamente para comunicar a

113 Rowe 1993 p187

114 Cf Taylor 1922 p176

134

ideia ainda que inacabada e imprecisa da superioridade das lsquoFormasrsquo sobre os objetos

particulares assim como os deuses imortais estatildeo acima dos mortais e os governam as

lsquoFormasrsquo divinas (imortais) satildeo superiores a tudo que pertence ao domiacutenio das coisas

mortais e de alguma maneira pode-se dizer que governam e dominam os objetos

particulares

Aleacutem disso Platatildeo coloca o lsquodivinorsquo no grupo de termos que qualificam as

lsquoFormasrsquo em (80b1-3) Se lsquodivinorsquo dificilmente se refere agraves Formas teriacuteamos uma

divisatildeo entre (i) lsquoo divinorsquo e (ii) a Forma lsquoaquilo que eacute imortal inteligiacutevel uniforme

indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo Mas o texto natildeo

sugere essa divisatildeo e aparentemente a lsquoFormarsquo eacute apresentada como aquilo que eacute divino

imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo Ao final a ideia de que lsquoa alma eacute como o divinorsquo necessariamente traz

consigo duas ideias inseparaacuteveis nesse contexto natureza superior (natureza divina) e

imortalidade A ideia de governo e domiacutenio em si mesmas natildeo ajudariam o argumento a

provar que a alma seria diferente dos objetos fiacutesicos e que ao contraacuterio deles natildeo estaacute

sujeita agrave destruiccedilatildeo A analogia serve apenas para mostrar que a alma eacute como o divino

superior e imortal

Contudo os comentadores geralmente acreditam que dificilmente o termo

lsquodivinorsquo se refere a Formas por causa da ideia baacutesica de lsquogovernarrsquo115 Realmente eacute

difiacutecil entender em que sentido lsquoFormasrsquo exercem algum tipo de domiacutenio sobre objetos

mortais Isso natildeo fica claro no argumento

Uma das maiores fraquezas do argumento eacute a ausecircncia da ideia de hegemonia

absoluta da alma sobre o corpo Haacute vaacuterios exemplos no diaacutelogo em que a lsquoalma

115 Cf Rowe 1993 p187

135

governantersquo e lsquoo corpo governadorsquo trocam de papel Na primeira etapa do diaacutelogo a

personagem Soacutecrates menciona a crenccedila das religiotildees de misteacuterio segundo a qual ldquonoacutes

seres humanos estamos num tipo de prisatildeordquo (62b) Nesse caso a alma estaria

subordinada ao corpo em que se aloja do qual natildeo poderia deliberadamente se libertar

Adiante eacute dito que a alma se subordina agraves demandas corporais ndash fome doenccedilas desejos

eroacuteticos apetites temores fantasias futilidade (66b-d) Por exemplo ldquoeacute o corpo que

nos forccedila a adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircnciardquo (66d) No

contexto do argumento das afinidades a alma eacute arrastada passivamente pelo corpo para

os objetos particulares (79c) Pelo menos nesses casos natildeo se vecirc com clareza a alma

exercendo um papel soberano sobre o corpo aparentemente contradizendo o que a

passagem afirma sobre a alma que domina e governa o corpo Ainda que a ideia de

governar lsquopor naturezarsquo pode ser entendida como um conceito meramente normativo em

Platatildeo ndash algo que deve ser feito mas que nem sempre eacute ndash a ideia natildeo deixa de ser

estranha num diaacutelogo em que se enfatiza a constante submissatildeo da alma agraves demandas

corporais116 Se governar o corpo significa disciplinaacute-lo resistir aos seus desejos e

examinar com independecircncia a alma costuma falhar no exerciacutecio da sua natural

condiccedilatildeo de governante117

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

116 Gallop 2002 p139

117 Cf Bostock 1989 p 119

136

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

Nesta etapa final Soacutecrates conduz o argumento para uma conclusatildeo com base

em tudo que foi dito (ἐκ πάντων τῶν εἰρημένων) (80a10-80b1) Aqui fica bem claro que

o argumento eacute do tipo analoacutegico baseia-se na extrema semelhanccedila (ὁμοιότατον) entre

alma e a lsquoFormarsquo Ao dizer que a alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) agravequilo

que eacute divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmo Soacutecrates retoma vaacuterios aspectos em que a alma e Forma satildeo

semelhantes

Em suma o argumento apresenta trecircs pontos cruciais de semelhanccedila entre alma

e lsquoFormarsquo

(i) Invisibilidade

Existem duas classes de coisas visiacutevel e invisiacutevel

A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute

(ii) Inteligibilidade

O corpo arrasta a alma para objetos particulares e em contato com eles fica

confusa Sozinha por si a alma alcanccedila a lsquoFormarsquo (aquilo que eacute puro eterno

imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo) e fica em harmonia com ela

A alma possui maior semelhanccedila e afinidade (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) com a Forma (aquilo que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo) do

que com o objeto particular (aquilo que natildeo estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

(iii) Divindade

137

Ao divino e agrave alma compete o governar e dominar

A alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal)

Essas trecircs etapas do diaacutelogo estabelecem a semelhanccedila baacutesica entre alma e

lsquoFormarsquo e mostram que almas e lsquoFormasrsquo possuem apenas alguns atributos em comum

Apesar disso o argumento analoacutegico de Platatildeo parece tomar por certo que o fato de

alma e lsquoFormarsquo sejam semelhantes em alguns aspectos isso garantiria que alma e

lsquoFormarsquo seriam extremamente semelhante pelo menos em todos os aspectos que

Soacutecrates alista em 80b1-3

A conclusatildeo traz uma forte declaraccedilatildeo de semelhanccedila no argumento em vez de

simplesmente falar na lsquomaior semelhanccedila e afinidadersquo (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) da alma com a Forma (79c1-2) que a lsquoalma se assemelha (ὁμοιότερόν)

mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacutersquo (79c5) ou que

a alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal) (80a7) agora se enfatiza a semelhanccedila entre

alma e lsquoFormarsquo pelo uso do superlativo ὁμοιότατον Gallop esclarece que o superlativo

ὁμοιότατον pode ter um sentido intensivo ndash lsquomuito ou extremamente semelhantersquo ndash ou

pode significar lsquomais semelhante do que qualquer outra coisarsquo118 Embora o argumento

natildeo persuada o leitor de que a alma eacute lsquoextremamentersquo semelhante agraves lsquoFormasrsquo isso natildeo

significa que em seu cliacutemax a ideia apresentada natildeo seja justamente aquela da

intensidade O anuacutencio de que estatildeo chegando a uma conclusatildeo com base em tudo que

fora dito a apresentaccedilatildeo de um complexo cataacutelogo de atributos das Formas com as

quais as almas se assemelham (80a10-b3) e a conhecida convicccedilatildeo de Soacutecrates de que a

alma de modo algum se dissolve por ocasiatildeo da morte podem indicar que a personagem

118 Gallop 2002 p142

138

procura afirmar nada menos do que uma grande ou extrema semelhanccedila entre alma e

lsquoFormasrsquo Se este for o caso a ideia eacute realmente de que a alma eacute extremamente

semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e

sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo (80b1-3)

Quase todos os itens dessa lista em 80b1-3 aparecem ao longo do argumento

Trecircs itens satildeo mais importantes para o proacutepoacutesito especiacutefico do argumento que eacute o de

afastar o temor de que a alma se desintegra na hora da morte imortal lsquosempre na

mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo e indissoluacutevel Mas eacute o termo indissoluacutevel

(ἀδιάλυτος) que chama atenccedilatildeo nessa etapa de conclusatildeo ele aparece pela primeira vez

no argumento e provavelmente tem alguma ligaccedilatildeo ou talvez ateacute sirva de substituto do

termo lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) que aparece no iniacutecio do argumento em 78c O termo

ἀδιάλυτος pode expressar aquilo que eacute impossiacutevel de ser dissolvido (ou desintegrado)

ou aquilo que embora possa ser dissolvido natildeo o seraacute119 Mas se o termo realmente

retoma a ideia de que coisas simples (ἀσύνθετος) satildeo imunes agrave dispersatildeo enquanto as

compostas somente satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo (Cf 78c1-4) a ideia natildeo pode ser nada

menos do que impossibilidade de dissoluccedilatildeo As coisas compostas podem ser

dissolvidas ou dispersas num processo inverso ao que colocou as suas partes juntas mas

isto natildeo significa elas necessariamente seratildeo dissolvidas As almas satildeo extremamente

semelhantes (seja laacute o que isso significa) agraves Formas entatildeo elas devem ser indissoluacuteveis

imunes agrave desintegraccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo eacute

Enquanto a alma eacute insoluacutevel o corpo eacute soluacutevel (διάλυτος) (80b4) e o termo

soluacutevel (διάλυτος) provavelmente recupera ou estaacute relacionado ao termorsquocompostorsquo

(σύνθετος) que aparece em 78c Logo depois de serem introduzidos no diaacutelogo os

119 Rowe 1993 p188

139

termos lsquocompostorsquo (σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) natildeo aparecem novamente no

argumento mas curiosamente Soacutecrates termina o argumento em si com termos que

recuperam a ideia de lsquosimplesrsquo e lsquocompostorsquo A ideia de solubilidade e insolubilidade

que aparecem na lista em 80b1-5 passam a ser cruciais na conclusatildeo final em 80b9-c1

onde satildeo empregados διαλύω e ἀδιάλυτος ldquo() acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissordquo (ἆρ᾽ οὐχὶ σώματι μὲν ταχὺ

διαλύεσθαι προσήκει ψυχῇ δὲ αὖ τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι ἢ ἐγγύς τι τούτου)

O argumento das afinidades enfrenta a criacutetica de ser o uacutenico argumento

analoacutegico no Feacutedon por ser de natureza analoacutegica natildeo eacute probatoacuterio Como lembra

Bostock o proacuteprio Platatildeo certamente sabia que analogias natildeo podem ser consideradas

como provas conclusivas E embora analogias possam ser bastante persuasivas quando

completas e propriamente detalhadas isso natildeo acontece com o argumento das

afinidades120 Assim como Bostock os comentadores em geral criticam o argumento

das afinidades por ser o uacutenico do tipo analoacutegico no diaacutelogo e como argumento

analoacutegico eacute fraco pouco persuasivo

(a) Bluck assevera que o argumento das afinidades natildeo constitui uma prova ele

eacute um mero argumento de probabilidade sem rigor loacutegico cuja funccedilatildeo eacute

simplesmente preparar o terreno para o uacuteltimo argumento o qual Platatildeo

considera como sendo uma prova real e final da imortalidade da alma121

120 Bostock 1989 p120-121

121 Bluck 1955 p73

140

(b) Dorter observa que enquanto os outros argumentos satildeo estabelecidos com

uma boa dose de rigor formal o argumento das afinidades eacute baseado meramente

em analogia estando assim aberto agrave rejeiccedilatildeo por qualquer pessoa que natildeo aceite

analogia122

(c) Elton afirma que Platatildeo inclui o argumento das afinidades para expor as

armadilhas do raciociacutenio analoacutegico e natildeo para apoiar a defesa da imortalidade

Assim o argumento funcionaria como liccedilatildeo objetiva sobre como natildeo fazer boa

filosofia isto eacute sobre como natildeo argumentar em favor da imortalidade da

alma123

(d) Gallop entende que o argumento tomado como analogia eacute fraco apresenta

uma fraca cadeia de argumentos que tenta estabelecer a analogia entre almas e

Formas124

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Com base na extrema semelhanccedila entre alma e lsquoFormarsquo a personagem Soacutecrates

chega a uma conclusatildeo final ldquoao corpo pertence (προσήκει) a raacutepida dissoluccedilatildeo (τάχυ

διαλύεσθαι) enquanto agrave alma por sua vez ser inteiramente indissoluacutevel (τὸ παράπαν

ἀδιαλύτῳ) ou algo proacuteximo disso (ἤ ἐγγύς τι τούτου)rdquo (80b8-11)

Platatildeo retoma a ideia vaga de lsquopertencerrsquo (προσήκω) que ele emprega

anteriormente em 78c Agora ele diz que pertence ao corpo o sofrer dissoluccedilatildeo

122 Dorter 1982 p 72

123 Elton 1997 p 313316

124 Gallop 2002 p 140

141

(διαλύω) antes que pertence agraves coisas compostas o sofrer dispersatildeo (διαιρέω) (78c2)

Agora pertence agrave alma o ser completamente indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) antes ao simples o

natildeo se sujeitar a sofrer dispersatildeo (78c3-4) O verbo προσήκω e as palavras com mesmo

campo semacircntico ndash διαιρέω διαλύω ἀδιάλυτος ndash sugerem que Platatildeo aproxima

intencionalmente os dois contextos (78c e 80b) A ideia de que haacute coisas simples e

compostas eacute crucial no iniacutecio do argumento mas depois de 78c ela eacute abandonada Logo

depois que Soacutecrates relaciona as coisas simples com lsquoas coisas que estatildeo sempre no

mesmo estado e condiccedilatildeorsquo (Formas) e as compostas com lsquoaquelas cuja condiccedilatildeo varia

em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estadorsquo (objetos particulares)

(78c6-8) ele introduz definitivamente as lsquoFormasrsquo no argumento (78c10-d7) A partir

daiacute Soacutecrates natildeo menciona a distinccedilatildeo entre lsquocoisas simplesrsquo e lsquocoisas compostasrsquo

novamente mas fica claro que as lsquoFormasrsquo satildeo as coisas simples e imunes agrave dispersatildeo e

as compostas e suscetiacuteveis agrave dispersatildeo satildeo lsquoobjetos particularesrsquo A ideia de sofrer

dissoluccedilatildeo (διαλύω) sofrer dispersatildeo (διαιρέω) e ser indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) natildeo se

sujeitar a sofrer dispersatildeo satildeo cruciais para o argumento que visa confrontar a crenccedila

popular de que a alma seria destruiacuteda (διαφθείρω) e pereceria (ἀπόλλυμι) na ocasiatildeo da

separaccedilatildeo do corpo ocasiatildeo em que seria dispersa (διασκεδάννυμι) como vento e

fumaccedila (70a3-6) que na compreensatildeo de Soacutecrates natildeo passa de uma crenccedila ldquopueril de

que o vento realmente dissipe (διαφύομαι) e disperse (διασκεδάννυμι) a alma na ocasiatildeo

em que ela deixa o corpordquo (77d7-e1)

Dentre outras coisas a conclusatildeo desponta por causa falta de clareza O proacuteprio

termo lsquopertencerrsquo eacute vago sem qualquer sentido especializado O argumento utiliza uma

linguagem de confianccedila seguranccedila e certeza apenas quando caracteriza as lsquoFormasrsquo

elas satildeo imortais indissoluacuteveis Mas quando se refere agrave alma diz-se vagamente que a

142

ela lsquopertencersquo o ser completamente indissoluacutevel A ideia de lsquopertencerrsquo (προσήκει) natildeo

traz qualquer certeza ou garantia e apenas atenua a conclusatildeo

A expressatildeo lsquoou algo proacuteximo dissorsquo (ἤ ἐγγύς τι τούτου) (80b11) conduz o leitor

para um mar de incertezas Ao que parece o texto faz um tipo de confissatildeo mais ou

menos aberta de que o argumento das afinidades repousa no terreno da incerteza A

conclusatildeo reflete uma maneira platocircnica de reconhecer a inseguranccedila do argumento

como se fosse uma admissatildeo mais ou menos velada de que o argumento apresenta

problemas125

Como jaacute foi dito o argumento procurar estabelecer que (i) a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute (ii) que a alma deve possuir

maior afinidade com a Forma do que com o objeto particular porque quando examina

sozinha alcanccedila a lsquoFormarsquo e fica em harmonia com ela (iii) que a alma eacute como (ἔοικεν)

o divino (imortal) porque compete a ambos governar e dominar Com base nessas trecircs

comparaccedilotildees Soacutecrates conclui que lsquoa alma eacute extemamente semelhante ao que eacute ao

divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmorsquo portanto lsquoa alma seria o tipo de coisa completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissorsquo Contudo as trecircs comparaccedilotildees baacutesicas soacute

providenciam base para a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevelrsquo ou

algo proacuteximo dissorsquo se aceitarmos que a semelhanccedila em alguns aspectos entre alma e

lsquoFormasrsquo ndash invisibilidade inteligibilidade divindade ndash pode garantir a semelhanccedila em

vaacuterios outros aspectos como indissolubilidade Se isso natildeo for aceito dificilmente

algueacutem poderia afirmar que a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevel

ou algo proacuteximo dissorsquo decorre das trecircs comparaccedilotildees baacutesicas do diaacutelogo

125 Rowe 1993 p189

143

Por fim resta apenas reconhecer todas as deficiecircncias do argumento apontadas

ao longo desta seccedilatildeo para concluir que o argumento das afinidades falha em provar que

a alma eacute imortal Por outro lado o argumento eacute extremamente importante para

convencer os amigos de que a alma eacute um tipo de ser ldquointermediaacuteriordquo o argumento deixa

claro que ela natildeo eacute nem possui afinidades com os objetos particulares mas mesmo

assim consegue interagir com eles a ponto de carregar consigo elementos corporais Por

outro lado ela se assemelha ao maacuteximo com as lsquoFormasrsquo mas ainda assim natildeo eacute uma

delas Portanto a uacutenica saiacuteda para entender essa forte e consistente caracterizaccedilatildeo da

alma no argumento das afinidades eacute concluir que ela eacute um ente que se coloca entre

lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos particularesrsquo o que poderiacuteamos chamar de ente intermediaacuterio

bull Formas

bull Alma

bull Objetos sensiacuteveis

Embora seja um argumento analoacutegico que natildeo eacute suficiente para persuadir os

amigos de que a alma eacute completamente indissoluacutevel o argumento tem os seguintes

meacuteritos geralmente desprezados pela literatura criacutetica

(i) O argumento eacute a primeira tentativa direta de provar que a alma eacute por

natureza imune agrave morte A exigecircncia que Cebes apresentaraacute adiante eacute

basicamente que se apresente um argumento capaz de provar aquilo que

o argumento das afinidades pelo menos aponta provar que a alma eacute

completamente indissoluacutevel ou seja imortal e indestrutiacutevel

144

(ii) O argumento eacute a primeira tentativa de provar a imortalidade da alma sem

qualquer vinculaccedilatildeo com a doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo

(iii) O argumento apresenta pela primeira vez uma caracterizaccedilatildeo consistente

das lsquoFormasrsquo em contraste com os objetos particulares Pela primeira vez

podemos vislumbrar com maior clareza que Platatildeo considera a existecircncia

de trecircs coisas lsquoFormasrsquo lsquoalmasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo Eacute precisamente

neste ponto do diaacutelogo que jaacute temos uma caracterizaccedilatildeo suficiente das

lsquoFormasrsquo para reconhecermos que Platatildeo possui uma teoria segundo a

qual existem entidades ldquosuperioresrdquo distintas das almas e dos sensiacuteveis

(iv) A caracterizaccedilatildeo da alma como ente lsquointermediaacuteriorsquo eacute de fundamental

importacircncia para a correta interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento Platatildeo

certamente espera que interpretemos o uacuteltimo argumento a partir desta

compreensatildeo da alma como ente cuja existecircncia estaacute entre lsquoFormasrsquo e

lsquosensiacuteveisrsquo

54 Etapa Especulativa (80c-84b)

O argumento em si finda em 80b mas daacute margem para que Soacutecrates introduza

imediatamente um tipo de discussatildeo complementar com base no que foi dito no

argumento das afinidades em si Mas essa etapa que inicia em 80c consiste numa

elaboraccedilatildeo especulativa e miacutetica A passagem do argumento em si para essa nova etapa

eacute bastante sutil O primeiro tema desenvolvido nessa etapa trata da distinccedilatildeo baacutesica do

ser humano ndash corpo e alma ndash e manteacutem uma especial ligaccedilatildeo com a conclusatildeo final do

argumento das afinidades Contudo natildeo deve ser tomado como parte ou extensatildeo do

145

argumento em si porque fica claro que o argumento natildeo acomoda qualquer especulaccedilatildeo

de cunho miacutetico-religioso Aleacutem disso a nova etapa se volta para a glorificaccedilatildeo do

modo de vida filosoacutefico e finda com a conclusatildeo de que esse modo de vida eacute o que

finalmente garante a ausecircncia dos temores do filoacutesofo

541 Corpo e alma (80c-d)

bull Corpo (80c2-d4)

No argumento das afinidades fica estabelecido que haacute duas classes de coisas

visiacutevel e invisiacutevel sendo a alma mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17) Agora Soacutecrates retoma

parte dessa ideia reafirmando a distinccedilatildeo baacutesica do ser humano em corpo que eacute a parte

visiacutevel (τὸ ὁρατὸν) da pessoa e pouco depois falaraacute da alma que eacute a parte invisiacutevel (τὸ

ἀιδές) (80d5)

Na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates afirma que o corpo se

dissolve rapidamente (τάχυ διαλύεσθαι) (80b9) mas agora a personagem Soacutecrates

parece confrontar o proacuteprio argumento com a ideia de que o cadaacutever ao qual pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ διαπίπτειν καὶ

διαπνεῖσθαι) natildeo sofre todas essas coisas imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν

πέπονθεν) mas lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado Aleacutem disso certas

partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά ἐστιν) (80c2-d4) Sendo assim a

146

dissoluccedilatildeo do corpo eacute vista agora mais como um processo que varia em cada caso do

que algo imediato como foi apresentado na conclusatildeo do argumento das afinidades

Talvez esse remendo visa reforccedilar a ideia de que a alma natildeo eacute imediatamente

desintegrada na hora da morte se nem mesmo o corpo ndash a parte visiacutevel do ser humano ndash

eacute dissolvido imediatamente apoacutes a morte quanto mais a alma a parte invisiacutevel do ser

humano

Apesar dessa constataccedilatildeo da durabilidade do cadaacutever que de algum modo

aponta para uma imprecisatildeo na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates

reafirma a sua convicccedilatildeo de que lsquodissolver-se desintegrar-se dissipar-sersquo satildeo proacuteprios

do corpo natildeo da almarsquo (80c4-5) como se estivesse reforccedilando ou dando um suporte

adicional para a ideia jaacute apresentada pelo argumento das afinidades

bull Alma (80d5-e1)

Platatildeo tambeacutem se utiliza da ideia de semelhanccedila entre almas e lsquoFormasrsquo

apresentada no argumento das afinidades nessa etapa especulativa No argumento das

afinidades a alma que examina sem a mediaccedilatildeo corporal se encaminha para as Formas

aquilo com que ela possui semelhanccedila e afinidade e fica em harmonia com elas (79c-d)

no acircmbito especulativo miacutetico-religioso a alma que se liberta do corpo vai para um

lugar da mesma natureza um lugar nobre puro invisiacutevel (γενναῖον καὶ καθαρὸν καὶ

ἀιδῆ) chamado Hades onde fica junto a uma divindade boa e saacutebia (παρὰ τὸν ἀγαθὸν

καὶ φρόνιμον θεόν) (80d5-7) A alma que vive em constante afastamento do corpo parte

para o aleacutem pura (sem carregar elementos corporais consigo) e desse modo lsquose

147

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5)

Aleacutem disso assim como no argumento das afinidades a alma que se utilizada do

corpo eacute arrastada para o mundo fiacutesico e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se

estivesse embriagada e soacute cessa o desvio quando entra em contato com lsquoaquilo que

permanece sempre na mesma condiccedilatildeorsquo (79c6-8) na versatildeo miacutetico-religiosa de Platatildeo a

alma soacute encontra plena realizaccedilatildeo (εὐδαίμων) quando deixa o mundo fiacutesico e natildeo eacute mais

afetado pelas mazelas oriundas do corpo como lsquoo desvio insensatez tipos selvagens de

amor e os outros males humanosrsquo (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀγρίων ἐρώτων καὶ

τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων) (81a6-8)

Como lida agora com o domiacutenio miacutetico-religioso e especulativo Soacutecrates

concede agrave divindade seu lugar de primazia apenas se a divindade quiser (ἂν θεὸς θέλῃ)

a sua alma tambeacutem percorreraacute esse mesmo caminho em direccedilatildeo ao divino e agrave completa

realizaccedilatildeo (80d7-8) No entanto ele nutre uma boa esperanccedila de que o divino lhe

permitiraacute desfrutar desse destino assim como havia manifestado antes ao falar da

esperanccedila (ἐλπίς) que os filoacutesofos nutrem de que apenas no Hades alcanccedilariam a

sabedoria que desejaram ao longo de uma vida inteira (68a7-b6) Vale lembra que o

Hades que havia sido completamente excluiacutedo do argumento das afinidades eacute

retomado nessa etapa especulativa

Por fim assim como no argumento das afinidades Soacutecrates confronta o temor

pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo especialmente

se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) a etapa especulativa tambeacutem visa

confrontar a ideia de que na ocasiatildeo da morte a alma seria lsquoimediatamente dissipada e

destruiacuteda como afirmam as pessoasrsquo (εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ ἀπόλωλεν ὥς φασιν οἱ

148

πολλοὶ ἄνθρωποι)rsquo Soacutecrates reforccedila que isso natildeo aconteceria lsquolonge disso caros

Siacutemias e Cebesrsquo (80d9-e2) E a sua apresentaccedilatildeo do percurso da alma depois da morte

com base na doutrina da reencarnaccedilatildeo ilustra a sua posiccedilatildeo de que a alma natildeo eacute

aniquilada na hora da morte mas experimenta diferentes tipos de existecircncia de acordo

com a vida que teve unificando todas essas temaacuteticas

542 Vida Filosoacutefica

Um dos objetivos dessa etapa especulativa eacute a defesa da vida dedicada agrave

filosofia Platatildeo explora o tema da vida filosoacutefica e o relaciona a diversos temas

especiacuteficos

bull Filosofia e Reencarnaccedilatildeo

Se por um lado o destino do filoacutesofo depende da vontade divina por outro

depende do modo de vida ndash filosoacutefico ou natildeo ndash que a pessoa leva O destino da alma e o

modo de vida de uma pessoa satildeo diretamente ligados ao tema da reencarnaccedilatildeo nesta

etapa O objetivo desta longa seccedilatildeo em que Platatildeo utiliza a doutrina da reencarnaccedilatildeo

conforme seus interesses eacute apresentar uma vigorosa defesa da vida filosoacutefica mais do

que propagar a crenccedila na reencarnaccedilatildeo

A reencarnaccedilatildeo eacute experimentada por aqueles que natildeo se dedicam agrave filosofia e

assim natildeo se purificam durante a vida Aqueles que se entregam ao modo de vida

corporal entregando-se aos seus deleites nunca podem chegar ao Hades no estado de

pureza e a sua alma parte para o aleacutem contaminada e carregada com os resiacuteduos

149

corporais e logo reencarna em outro corpo porque o Hades natildeo lhe permite ali ficar em

contato com os deuses (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) Isto levaria a uma consequente

reencarnaccedilatildeo num corpo de acordo com o gecircnero de vida praticado ( Essa temaacutetica eacute

desenvolvida e ilustrada atraveacutes de trecircs grupos cada grupo caracterizado pela

reencarnaccedilatildeo correspondente ao modo de vida que teve

(i) Aqueles que se entregam agrave glutonaria e embriaguecircs reencarnam como

burros e animais dessa natureza (81e)

(ii) Aqueles que praticam injusticcedilas tiranias e roubos retornam como lobos

falcotildees e abutres (82a)

(iii) Aqueles que praticam a virtude popular e poliacutetica ndash temperanccedila e justiccedila

ndash mas por mero haacutebito sem o exerciacutecio consciente da filosofia e

inteligecircncia nascem como uma espeacutecies sociais como eles satildeo podem

voltar como abelhas vespas formigas ou novamente como humano

(82b-c)

Todo o cenaacuterio em que a personagem principal discute a reencarnaccedilatildeo da alma eacute

construiacutedo para uma seguinte exaltaccedilatildeo do modo de vida filosoacutefico e tudo que se

relaciona a ele

543 Filosofia e salvaccedilatildeo da alma

Filosofia eacute o uacutenico meio de salvaccedilatildeo de um interminaacutevel ciclo de reencarnaccedilotildees

Eacute impossiacutevel quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees e chegar agrave linhagem dos deuses sem o

150

exerciacutecio da Filosofia a qual prepara os filoacutesofos para partirem completamente

purificados para o Hades (82b10-c1) Esse modo de vida filosoacutefico no qual a alma

encontra redenccedilatildeo eacute exemplificado em 82c3-8 os filoacutesofos se afastam e se manteacutem

afastados de todos os desejos que dizem respeito ao corpo como o desejo daquele que

ama o dinheiro e receia pobreza e o daquele que ama poder e honra e receia desonra e

maacute reputaccedilatildeo Platatildeo se utiliza da ideia religiosa da metempsicose e da quebra dos

ciclos de renascimentos ao seu interesse de propagar a sua proacutepria praacutetica filosoacutefica

como via uacutenica de salvaccedilatildeo No Feacutedon vemos um tipo de ldquoproselitismo filosoacuteficordquo jaacute

que natildeo haacute outro meio de quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees o melhor a se fazer eacute

dedicar a vida agrave praacutetica de morrer e estar morto ou seja tornar-se um filoacutesofo

544 Filosofia e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo

O tema da lsquosalvaccedilatildeo da almarsquo (entendida como a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees) e o tema da lsquopurificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo da almarsquo estatildeo intrinsecamente

relacionados A vida de reclusatildeo da alma dissociada do corpo e dedicada agrave filosofia o

que o filoacutesofo chama de verdadeiro filosofar (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e exerciacutecio de

morte (μελέτη θανάτου) (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) eacute basicamente o que Platatildeo

apresenta como purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo (καθαρμός) e libertaccedilatildeo (λύσις) se

efetuam por meio da filosofia (82d5-6) Semelhante ideia eacute apresentada no primeiro

estaacutegio do diaacutelogo onde lsquopurificarrsquo eacute a alma afastar-se ao maacuteximo do corpo e viver

longe dele (67c5-d1) O corpo eacute como uma prisatildeo e somente a filosofia pode efetuar a

libertaccedilatildeo da alma encarcerada em seu proacuteprio corpo Sem a praacutetica da filosofia a alma

eacute cativa do corpo e obrigada a examinar as lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) por meio dele

151

como atraveacutes de uma prisatildeo (82e3-4) Tambeacutem no primeiro estaacutegio do Feacutedon o tema

da purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo eacute desenvolvido juntamente com a ideia de que o corpo eacute um

tipo de prisatildeo da alma a constante reclusatildeo da alma ldquoeacute um um ato de constante

libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de cadeiasrdquo (67d1-2)

Quando algueacutem eacute iniciado na filosofia o processo de libertaccedilatildeo comeccedila a tomar

lugar paulatinamente (83a9-b1)

bull Filosofia gentilmente aconselha a alma

bull Filosofia tenta libertar a alma do exame atraveacutes dos sentidos

bull Filosofia persuade a distanciar a alma dos sentidos exceto

quando eacute imperativo usaacute-los

bull Filosofia encoraja a alma a recolher-se em si mesma e a confiar

apenas em si mesma quando usa a inteligecircncia para captar as

coisas que satildeo sozinhas por si mesmas (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν

ὄντων)

bull Filosofia encoraja a alma a considerar falso tudo que examine por

outros meios

bull Filosofia ajuda a identificar o que eacute sensiacutevel e visiacutevel e o que eacute

inteligiacutevel e invisiacutevel

152

545 Afinidade entre alma e o divino

O argumento das afinidades em si procura estabelecer a afinidade entre almas e

lsquoFormasrsquo enquanto a etapa especulativa procura estabelecer a versatildeo miacutetico-religiosa da

lsquoafinidadersquo ou seja a afinidade entre alma e o domiacutenio do divino que inclui o lugar as

divindades e tudo que faccedila parte desse domiacutenio Esta etapa chega ao fim com a

declaraccedilatildeo de que ao findar a vida a alma vai alcanccedilar aquilo que com ela possui

lsquoafinidadersquo e que eacute do mesmo tipo dela (εἰς τὸ συγγενὲς καὶ εἰς τὸ τοιοῦτον) (84b2-3)

Platatildeo utiliza vaacuterias expressotildees e termos para expressar a ideia de semelhanccedila relaccedilatildeo

afinidade familiaridade mesma natureza O termo συγγενής em particular eacute aparece

duas vezes no argumento das afinidades em si uma para estabelecer a familiaridade ou

afinidade entre corpo e a classe de coisas visiacuteveis e a alma e a classe de coisas

invisiacuteveis (79d3) outra para estabelecer a afinidade entre lsquoo que eacute puro eterno imortal

e permanece na mesma condiccedilatildeorsquo e a alma (79e1-2) Nesta conclusatildeo em 84b2-3 na

qual eacute dito apenas que a alma que deixa o corpo vai alcanccedilar aquilo com que ela possui

lsquoafinidadersquo (συγγενής) o contexto miacutetico-religioso sugere o encontro entre alma e o

domiacutenio do divino como jaacute havia sido sugerido pelo menos em duas ocasiotildees em

80d5-7 a alma que se liberta do corpo vai para outro lugar da mesma natureza que a sua

(εἰς τοιοῦτον τόπον ἕτερον) um lugar nobre puro invisiacutevel chamado Hades onde fica

junto a uma divindade boa e saacutebia em 81a4-5 a alma que parte para o aleacutem pura lsquose

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5) Toda

aspiraccedilatildeo post mortem do filoacutesofo nesta etapa especulativa diz respeito ao mundo

idealizado pela perspectiva miacutetico-religiosa e a semelhanccedila entre a alma e o domiacutenio do

153

divino e imortal parece tentar reforccedilar aquilo que foi apresentado no argumento das

afinidades em si Mas eacute importante lembrar que as lsquoFormasrsquo ainda satildeo objeto de desejo

do filoacutesofo durante a vida na etapa especulativa em 82e3-4 menciona-se o exame das

lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) e pouco depois a utilizaccedilatildeo da inteligecircncia para captar lsquoas

coisas que satildeo sozinhas por si mesmasrsquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν ὄντων) Nesse caso o

objetivo eacute reforccedilar a ideia de que eacute necessaacuterio examinar as lsquoFormasrsquo sem a

intermediaccedilatildeo corporal

546 Vida filosoacutefica e o temor da desintegraccedilatildeo da alma

No argumento das afinidades em si a extrema semelhanccedila entre almas e

lsquoFormasrsquo leva agrave conclusatildeo final de que a alma deve ser algo indissoluacutevel e assim natildeo

haveria razatildeo para nutrir os temores pueris de Cebes e Siacutemias de que a alma se

desintegraria assim que deixasse o corpo Por semelhante modo na etapa especulativa a

ideia de semelhanccedila entre a alma do filoacutesofo e o domiacutenio do divino eacute imediatamente

seguida pela afirmaccedilatildeo de que de modo algum a alma vai ser dissipada pelo vento e

destruiacuteda por ocasiatildeo da morte Mas nesse contexto especulativo natildeo eacute a afinidade da

alma com o divino que fundamenta a ideia de que a alma natildeo se desintegra na hora da

morte as a vida vida filosoacutefica eacute o que assegura que a alma natildeo seraacute desintegrada na

ocasiatildeo da morte eacute com base no modo de vida filosoacutefico (ἐκ δὴ τῆς τοιαύτης τροφῆς)

que natildeo haacute risco algum de que se tema que a alma possa ser dissolvida por ocasiatildeo da

morte esvaindo-se conforme o vento passando a natildeo mais existir em lugar algum

(84b3-7)

154

Esta seccedilatildeo especulativa retoma em grande parte a defesa de Soacutecrates na primeira

parte do diaacutelogo pela qual Soacutecrates tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que

natildeo estaacute convencido de que a morte eacute o melhor para o filoacutesofo procurando justificar sua

confianccedila e intrigante atitude diante da morte iminente e ateacute mesmo seu desejo de

morrer (60c-62c) Tanto em sua defesa como nessa etapa especulativa a vida filosoacutefica

eacute o que fundamenta qualquer esperanccedila no porvir

155

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)

61 Introduccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento eacute bastante discordante Ele tem a reputaccedilatildeo

de ser difiacutecil e insatisfatoacuterio e qualquer nova proposta de interpretaccedilatildeo tende a ser

tomada como mais uma maneira possiacutevel de lecirc-lo126

A etapa que vem depois do argumento das afinidades aparentemente prepara o

terreno para a introduccedilatildeo do argumento final propriamente dito mas a relaccedilatildeo entre ela

e o argumento final estaacute longe ser clara Esta longa estapa se desenvolve ateacute a

introduccedilatildeo do uacuteltimo argumento propriamente dito em 105c

61 O impacto do Argumento das Afinidades

Com base na afinidade entre alma e lsquoFormarsquo o argumento das afinidades conclui

que a alma eacute algo completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11) O

argumento natildeo consegue estabelece a prova definitiva da imortalidade mas representa

um grande avanccedilo na discussatildeo que evolui de duas provas vinculadas a uma concepccedilatildeo

de imortalidade da alma vinculada a uma crenccedila de cunho oacuterfico e pitagoacuterico segundo a

qual imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma se confundem para um argumento que

apesar de analoacutegico ataca o cerne de questatildeo a natureza da alma a sua imunidade agrave

126 Sedley 2011 p 31

156

morte O argumento provoca um forte impacto nos amigos pela primeira vez

apresentam suas proacuteprias ideias a teoria da alma-harmonia o tecelatildeo e seus mantos

Sobretudo Cebes poderaacute reconhecer que a alma eacute um ser especial diferente dos objetos

particulares divina longeva mais duradoura do que o corpo Mesmo assim a sua

afinidade com as lsquoFormasrsquo no argumento analoacutegico natildeo consegue convencecirc-lo de que

ela seria imortal completamente indissoluacutevel O proacuteprio Soacutecrates reconhece a fraqueza

do argumento ao concluir que a alma poderia ser algo proacuteximo de indissoluacutevel

Dialogando com a conclusatildeo do argumento das afinidades Cebes exigiraacute uma prova de

que a alma eacute imortal e completamente indestrutiacutevel A expressatildeo completamente

indestrutiacutevel visa explicar o tipo de concepccedilatildeo de imortalidade que eacute requerida agora

imortal natildeo apenas com o sentido de divino na religiatildeo tradicional ou vinculada agrave

doutrina da transmigraccedilatildeo da alma na tradiccedilatildeo oacuterfica e pitagoacuterica ou a quase

indissolubilidade da alma como uma admissatildeo de sua imortalidade mas a imortalidade

num sentido filosoacutefico especializado ndash a alma imortal eacute a alma completamente imune a

destruiccedilatildeo a alma cuja natureza eacute essencialmente viva e natildeo admite morte e destruiccedilatildeo

em hipoacutetese alguma Ateacute o momento Soacutecrates natildeo apresenta uma resposta para o

problema apresentado inicialmente por Cebes em 70a a desintegraccedilatildeo da alma na

ocasiatildeo em que se desaloja do corpo O argumento ciacuteclico estabelece apenas a

continuidade da vida em geral e a continuidade da alma em particular O argumento da

reminiscecircncia estabelece a existecircncia da alma antes de alojar-se no corpo e os amigos de

Soacutecrates enfaticamente apoiam essa tese em vaacuterias partes do diaacutelogo mas o maacuteximo

que isto poderia provar seria que a existecircncia da alma do momento em que no aleacutem

capta as lsquoFormasrsquo para a corrente reencarnaccedilatildeo sem qualquer garantia de que ao deixar

novamente o corpo a alma seria destruiacuteda e o argumento das afinidade como

157

acabamos de relatar acentua a duacutevida de que a alma seria completamente indissoluacutevel

O problema continua o mesmo ainda existe a possibilidade de dispersatildeo e aniquilaccedilatildeo

da alma

Mas sem duacutevida o argumento das afinidades provoca um especial impacto nos

amigos de Soacutecrates como acabamos de sugerir Soacutecrates silencia por um longo periacuteodo

e os amigos conversam em voz baixa O filoacutesofo entatildeo pergunta o que se passa A

verdade eacute que Siacutemias e Cebes tecircm algumas dificuldades com o argumento mas natildeo

querem perturbaacute-lo em sua presente desgraccedila (84c-d) O argumento analoacutegico natildeo

persuade os amigos de que a alma eacute imune agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo O temor persiste

Soacutecrates quebra o silecircncio para reforccedilar que natildeo vecirc a sua situaccedilatildeo que enfrenta como

infortuacutenio e ateacute evoca dotes divinatoacuterios com o fim de expressar a sua confianccedila de que

se reuniraacute com os deuses no Hades (84e-85a) e para pedir que os amigos apresentem

suas consideraccedilotildees (85a) O argumento das afinidades inspira os amigos de Soacutecrates a

apresentar as suas proacuteprias objeccedilotildees baseadas em algum tipo de analogia entre a alma e

a harmonia produzia por um instrument musical e a alma e o tecelatildeo com os mantos

que fabrica e com os quais se veste

62 Objeccedilotildees de Siacutemias e Cebes

Siacutemias e Cebes apresentam suas proacuteprias objeccedilotildees

(i) Siacutemias (85e-86d) a alma eacute como uma harmonia e o corpo eacute como uma

lira e suas cordas A harmonia eacute algo invisiacutevel incorpoacutereo e

158

absolutamente belo e divino na lira afinada enquanto a proacutepria lira e

suas cordas satildeo corpos e semelhantes ao mortal A alma perece com o

corpo assim como a harmonia deixa de existir quando a lira for destruiacuteda

(ii) Cebes (87a-88b) a analogia involve um tecelatildeo e seu manto Cebes estaacute

convencido de que alma existe antes do nascimento (argumento da

reminiscecircncia) mas ainda duvida que ela continue existindo apoacutes a

morte O tecelatildeo representa a alma e o manto representa os corpos nas

vaacuterias reencarnaccedilotildees Jaacute que o manto eacute mais fraacutegil do que o tecelatildeo ele

precisaraacute fazer e vestir vaacuterios mantos ao longo da vida assim como a

alma precisaraacute reencarnar em vaacuterios corpos sendo assim mais duraacutevel do

que o corpo mas natildeo imortal

Soacutecrates Soacutecrates faz uma breve revisatildeo dos dois argumentos em 91c7ndashd7 com o

sutil propoacutesito de revelar que os problemas das objeccedilotildees dos amigos O primeiro deles eacute

a discordacircncia dos proacuteprios amigos

(i) Os amigos natildeo concordam sequer no seguinte ponto fundamental

quando a alma deve perecer Siacutemias acredita a alma perece com ou antes

do corpo (86b2) Cebes acredita que a alma deve ter uma consistecircncia e

duraccedilatildeo maior do que a do corpo vindo a perecer apoacutes o corpo num dos

ciclos de reencarnaccedilotildees (87d1 e2)

(ii) Os amigos tambeacutem discordam na compreensatildeo da relaccedilatildeo de

interdependecircncia entre alma e corpo Com a sua teoria da alma-

159

harmonia Siacutemias tende a pensar que eacute a alma que depende do corpo

sendo destruiacuteda a lira (corpo) a harmonia que produz (a alma) tambeacutem

perece (86c5) Quando Cebes retrata o tecelatildeo (alma) como fazedor de

sua proacutepria vestimenta (corpo) ele daacute a entender que a alma deve durar

mais do que o corpo (87e1)

Quando confronta diretamente Siacutemias Soacutecrates facilmente lhe mostra que a sua

posiccedilatildeo eacute inconsistente e contraditoacuteria porque ele tenta sustentar o argumento da

reminiscecircnca e a teoria da alma-harmonia ao mesmo tempo Por um lado ele concorda

que a alma eacute como uma harmonia e assim sua existecircncia estaacute completamente

dependente do corpo ndash a harmonia de uma lira natildeo pode existir independentemente da

lira Por outro ele concorda com o argumento da reminiscecircncia segundo o qual a alma

existe independentemente do corpo antes mesmo do nascimento (92bndashe) Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos e sem titubear ele abandona o proacuteprio argumento

(alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e

reafirma o argumento da reminiscecircncia o qual deriva de uma hipoacutetese digna de

aceitaccedilatildeo Como o proacuteprio Siacutemias admite natildeo se trata propriamente de um argumento

uma demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) mas sim de uma objeccedilatildeo baseada numa imagem e

verossimilhanccedila (μετὰ εἰκότος τινὸς καὶ εὐπρεπείας) Para que natildeo reste nenhuma

duacutevida ele termina ratificando que eacute certo que a alma existe antes de entrar num corpo

assim como existe a Forma aquilo que eacute (92c-92d) Platatildeo deixa claro que a noccedilatildeo de

da alma-harmonia eacute completamente insustentaacutevel

No argumento do tecelatildeo e seus mantos a alma sobrevive a vaacuterios ciclos de

reencarnaccedilotildees mas perece no final sendo apenas mais resistente do que o corpo mas

160

natildeo imortal (87a-88b) A partir deste argumento Cebes apresenta objeccedilotildees gerais

essenciais para corrigir o rumo do diaacutelogo e para a construccedilatildeo do uacuteltimo argumento Em

suma eis a suas objeccedilotildees

(i) Cebes aponta o problema natildeo estaacute demonstrado que a alma continua a

existir em algum lugar depois da morte (87a4-5) Com essa consideraccedilatildeo

ele aponta a falha dos trecircs argumentos em providenciar uma prova final

da imortalidade da alma

(ii) Cebes critica a insuficiecircncia dos argumentos apresentados ainda que se

suponha que a alma eacute de natureza robusta (αὐτὸ φύσει ἰσχυρὸν εἶναι) e

resiste a uma seacuterie de ciclos de renascimentos (πολλάκις γιγνομένην

ψυχὴν ἀντέχειν) ainda assim natildeo haacute garantia de que ela natildeo se

desgastaria e numa das mortes ficaria totalmente aniquilada (ἔν τινι τῶν

θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) sem que ningueacutem saiba em qual

dessas mortes isso poderia ocorrer (88a1-10) A sua observaccedilatildeo estaacute

imediatamente relacionada ao seu argumento do tecelatildeo e do manto mas

parece se aplicar tambeacutem a todos os argumentos apresentados ateacute agora

a comeccedilar pelo argumento ciacuteclico o qual tenta provar que a alma

sobrevive atraveacutes dos ciclos de reencarnaccedilotildees mas natildeo garante que num

desses ciclos a alma simplesmente seria destruiacuteda

(iii) Cebes apresenta a necessidade lsquoprovar que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevelrsquo (ἀποδεῖξαι ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε

καὶ ἀνώλεθρον) (88b3-6)

161

(iv) Cebes critica a confianccedila e atitude de Soacutecrates diante da morte iminente

eacute insensato se mostrar confiante perante a morte a natildeo ser que se possa

lsquoprovar que a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrsquo (88b3-6)

Sem isso aquele que estaacute na iminecircncia da morte deve temer

constantemente que a sua alma seja completamente destruiacuteda

(παντάπασιν ἀπόληται) na ocasiatildeo em que ela se separa do corpo (88b6-

8) Mais uma vez essa criacutetica contempla a atitude de Soacutecrates diante da

morte em todo o diaacutelogo

(v) Cebes conduz a discussatildeo para um momento dramaacutetico de crise depois

de sua explanaccedilatildeo os amigos ficam tristes confusos increacutedulos (88c1-

5)

(vi) Cebes cria ocasiatildeo para o narrador Feacutedon exaltar Soacutecrates o qual se

posiciona para continuar a discussatildeo o filoacutesofo recebe a criacutetica com

maestria e como um general cujo exeacutercito foi disperso realinha as

fileiras de batalha e convoca os soldados para retornar ao campo de

batalha ndash o campo da argumentaccedilatildeo (88e-89a)

O problema da mortalidade da alma ainda persiste Se a alma for mortal a alma

de Soacutecrates corre o risco de ser destruiacuteda em breve assim que tomar o veneno e o corpo

perecer

A discussatildeo vem se desenrolando passo a passo O primeiro argumento que

aponta para a necessidade de provar que a alma eacute lsquoo tipo de coisa completamente

indissoluacutevelrsquo (τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι) eacute o argumento das afinidades mas ele

mesmo falha com a conclusatildeo de que a alma pode ser lsquoalgo proacuteximo de ser

162

completamente indissoluacutevelrsquo (80b10-11) O argumento do tecelatildeo e seus mantos

desenvolve semelhante problemaacutetica a ideia de uma alma robusta longeva quase

imortal e indestrutiacutevel mas que depois de uma sobreviver a uma seacuterie de reencarnaccedilotildees

se desgasta e num desses ciclos acaba aniquilada

Sendo assim Cebes requer uma prova definitiva de que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevel o que fica claro pela adiccedilatildeo das palavras lsquocompletamentersquo e

lsquoindestrutiacutevelrsquo O risco de que a alma lsquoficasse completamente aniquilada em uma das

mortesrsquo (ἔν τινι τῶν θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) (88a9-10) exige um argumento

que prove que ela eacute completamente imortal e indestrutiacutevel (παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ

ἀνώλεθρον) (88b5-6) Esta reivindicaccedilatildeo eacute essencial neste ponto do diaacutelogo porque

Soacutecrates a acolhe e o argumento final busca satisfazecirc-la ldquoa alma eacute imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ ἀνώλεθρον (106e8-107a1)

Essa lista de observaccedilotildees de Cebes eacute acolhida recapitulada e utilizada por

Soacutecrates como paracircmetro a ser seguido na construccedilatildeo do proacuteximo argumento Eis a

recapitulaccedilatildeo que Soacutecrates faz das objeccedilotildees de Cebes (95b-e)

(i) Deve ser demonstrado que a nossa alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ἀξιοῖς

ἐπιδειχθῆναι ἡμῶν τὴν ψυχὴν ἀνώλεθρόν τε καὶ ἀθάνατον οὖσαν)

(ii) Sem uma demonstraccedilatildeo da imortalidade da alma a mera confianccedila e

esperanccedila do filoacutesofo de ter um vida feliz e melhor no aleacutem eacute nada mais

do que uma confianccedila insana e vatilde

(iii) Apresentar a alma como algo resistente e divino (τὸ δὲ ἀποφαίνειν ὅτι

ἰσχυρόν τί ἐστιν ἡ ψυχὴ καὶ θεοειδὲς) e que existia antes mesmo de nos

163

tornarmos seres humanos natildeo prova a sua imortalidade mas apenas a sua

longa duraccedilatildeo em algum lugar

(iv) A entrada da alma num corpo humano jaacute eacute para ela como se fosse uma

doenccedila o iniacutecio da sua ruiacutena ateacute que se extinga na morte

(v) Sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι ὡς

ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou

vaacuterias vezes num corpo

(vi) Toda pessoa que tem bom senso deve temer a morte se natildeo souberem o

que eacute imortal e natildeo poderem oferecer um argumento sobre isso

Quando Soacutecrates pergunta se os amigos aceitaram todos os argumentos

apresentados ou apenas alguns (πότερον οὖν ἔφη πάντας τοὺς ἔμπροσθε λόγους οὐκ

ἀποδέχεσθε ἢ τοὺς μέν τοὺς δ᾽ οὔ) Cebes e Siacutemias revelam que apenas alguns haviam

sido aceitos outros natildeo mas ambos salientam que aceitam completamente o argumento

das reminiscecircncias ndash as almas existem antes do nascimento (91e-92a) Cebes aceita

algumas das demonstraccedilotildees anteriores o que significa que em sua perspectiva o

diaacutelogo havia progredido na explanaccedilatildeo sobre a natureza da alma ndash os argumentos

anteriores (pelo menos alguns) ajudam a entender a superioridade da alma em relaccedilatildeo

ao corpo ndash mas natildeo satildeo suficientes para provar o que se requer nesta ocasiatildeo ndash a

imortalidade da alma Eles ajudam a entender a alma em parte principalmente a sua

superioridade em relaccedilatildeo ao corpo mas ainda natildeo satildeo suficientes para atender as

exigecircncias de Cebes provar que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Em suma Cebes

admite que a alma eacute (91e-92a95c)

164

A alma eacute lsquorobustarsquo (ἰσχυρός) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquodivinarsquo (θεοειδής) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquolongevarsquo (πολυχρόνιος) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquopreexistentersquo (argumento

da reminiscecircncia)

Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

Apesar de o argumento de Cebes ndash tecelatildeo e o seu manto ndash seja tambeacutem baseado

numa mera lsquoimagemrsquo ou lsquoilustraccedilatildeorsquo sem demonstraccedilatildeo (assim como o de Siacutemias) que

eacute como a maioria das pessoas fundamental suas opiniotildees (τοῖς πολλοῖς δοκεῖ

ἀνθρώποις) (92d) e mesmo assim a ideia apresente claras inconsistecircncias ndash natildeo haacute

razatildeo para pensar que a alma pode sofrer um processo de desgaste vestindo o corpo ao

longo de diversas reencarnaccedilotildees porque natildeo eacute o manto que veste o tecelatildeo mas o

tecelatildeo o manto e assim o que se deteriora pelo uso eacute o mantocorpo natildeo o

tecelatildeoalma ndash ainda assim as objeccedilotildees gerais que Cebes levanta satildeo bem colocadas e

Soacutecrates afirma que lsquoisto requer uma exposiccedilatildeo sobre a causa da geraccedilatildeo e da

destruiccedilatildeorsquo (95e-96a) A nova etapa inicia com a autobiografia intelectual de Soacutecrates

que nos apresenta a busca inicial de Soacutecrates pela verdadeira lsquocausarsquo das coisas Durante

este estaacutegio Soacutecrates encontra uma resposta completamente sem sentido para a sua

busca da causa verdadeira Isto faz com que ele apele para uma outro tipo de

investigaccedilatildeo da causa

A cuidadosa leitura do texto sugere que a etapa entre as objeccedilotildees de Cebes e o

argumento final apresenta trecircs tipos de resposta concernentes agrave lsquocausarsquo das coisas

165

Quando em sua juventude Soacutecrates se decepciona com aquilo que os filoacutesofos da

natureza consideram como αἴτια Soacutecrates diz que ldquo(hellip) chamar esse tipo de coisa de

causa eacute completamente sem sentidordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

(99a4-5) Soacutecrates entatildeo busca outra resposta Na seccedilatildeo seguinte temos duas tentativas

de desenvolver uma noccedilatildeo platocircnica de causa Quando a personagem Soacutecrates expressa

a sua primeira formulaccedilatildeo de uma noccedilatildeo proacutepria de causa nos termos lsquoeacute por causa da

beleza que todas as coisas satildeo belasrsquo (100d7-8)rsquo ele diz que ele pensa que esta lhe

parece a afirmaccedilatildeo lsquomais segurarsquo (τοῦτο γάρ μοι δοκεῖ ἀσφαλέστατον εἶναι) (100d8-9)

Ele repete a ideia para deixar claro o tipo de resposta que ele chama de mais segura

lsquocontudo eacute seguro responder tanto a mim mesmo quanto a qualquer outra pessoa que eacute

por causa da beleza que as coisas belas se tornam belasrsquo (ἀλλ᾽ ἀσφαλὲς εἶναι καὶ ἐμοὶ

καὶ ὁτῳοῦν ἄλλῳ ἀποκρίνασθαι ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ γίγνεται καλά) (100e1-3) Mas

depois desta primeira tentativa Platatildeo desenvolve ainda mais a sua noccedilatildeo de causa

preparando terreno para a introduccedilatildeo do argumento final Portanto achamos razoaacutevel

dividir a etapa entre as objeccedilotildees gerais de Cebes e o uacuteltimo argumento da seguinte

maneira em trecircs ocasiotildees

(i) Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras127 ndash 96a-99c

(ii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo segura de causa ndash 99d-101e

(iii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c128

127 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

128 O texto natildeo traz a palavra lsquointeligentersquo mas apenas lsquooutra resposta segurarsquo (Cf 105b5-c1)

166

Essa etapa eacute desenvolvida ateacute a introduccedilatildeo do argumento final em 105c

63 Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras129 ndash 96a-99c

Soacutecrates apresenta sua chamada autobiografia intelectual que eacute introduzida no

diaacutelogo logo depois que a personagem recapitula as objeccedilotildees gerais de Cebes O

filoacutesofo imediatamente silencia por um tempo e quando retoma a discussatildeo louva a

busca de Cebes por algo que natildeo eacute trivial (95e8-9) e reconhece que diante das objeccedilotildees

eacute necessaacuterio discutir como um todo sobre a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (ὅλως γὰρ

δεῖ περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς τὴν αἰτίαν διαπραγματεύσασθαι) (95e10-96a3)

Nesta seccedilatildeo autobiograacutefica a personagem fala das suas proacuteprias experiecircncias (τά

γε ἐμὰ πάθη) em busca de conhecer a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (96a2) Em sua

mocidade era dado agrave lsquoinvestigaccedilatildeo sobre a naturezarsquo (περὶ φύσεως ἱστορίαν) buscando

conhecer as causas das coisas Parecia-lhe maravilhoso conhecer as causas de casa coisa

(εἰδέναι τὰς αἰτίας ἑκάστου) ldquopor que cada coisa eacute gerada perece e subsisterdquo (96a6-10)

Mas ele percebeu que o conhecimento sobre as causas era insatisfatoacuterio A sua

esperanccedila de que o livro de Anaxaacutegoras lhe ensinaria sobre as lsquocausasrsquo terminou numa

grande decepccedilatildeo e ao final ele rejeitou o modo de investigaccedilatildeo que os filoacutesofos da

natureza empregaram na busca da causa

129 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

167

Ao longo desta etapa a personagem Soacutecrates apresenta vaacuterios exemplos de

lsquocausasrsquo de acordo com os filoacutesofos da natureza Eis alguns alguns deles

OBSERVACcedilAtildeO CAUSA

96d-e

Um homem eacute maior do que o outro Cabeccedila

Um cavalo eacute maior do que o outro Cabeccedila

Dez eacute mais numeroso do que oito Adiccedilatildeo do dois

Dois cuacutebitos eacute maior do que um Dois cuacutebito excede um cuacutebito pela

metade

100c-d

Algo eacute belo Brilho da cor forma outra desse tipo

Soacutecrates rejeita este tipo de abordagem dos fiacutesicos contemporacircneos elas natildeo

podem ser a verdadeira αἰτίαι das coisas Soacutecrate sugere que a resposta dos filoacutesofos da

natureza para a sua busca pela causa verdadeira eacute algo do tipo completamente sem

sentido ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽

αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον) (99a4-5)

Decepcionado o filoacutesofo recorre a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele

chama de lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς

αἰτίας) (99c-d) Na seccedilatildeo que se inicia Platatildeo apresenta duas tentativas de resposta para

a questatildeo da causa verdadeira

168

64 Modo proacuteprio de investigaccedilatildeo (99c-101e)

Quando Soacutecrates ainda jovem busca a verdadeira causa das coisas fica

decepcionado com o tipo de resposta totalmente sem sentido apresentada pelos filoacutesofos

da natureza e resolve recorrer a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele chama de

lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς αἰτίας) (99c-

d) O novo modo de investigaccedilatildeo ao contraacuterio do anterior natildeo se baseia nos sentidos

corporais (99d-e) mas em argumentos (εἰς τοὺς λόγους) (99e) Ao longo do diaacutelogo

Platatildeo salienta que haacute coisas como o Belo em si cujo alcance pleno soacute pode ocorrer

atraveacutes da alma sozinha sem a mediaccedilatildeo corporal De alguma maneira a nova

abordagem tem uma ligaccedilatildeo direta com aquilo que jaacute havia sido apresentado ao longo

do diaacutelogo A ligaccedilatildeo fica clara posteriormente a nova abordagem tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de coisas como o belo em si e sabemos que jaacute em 65d Platatildeo

fala da existecircncia de coisas desse tipo

A partir deste ponto Soacutecrates se dispotildee a explicar com mais clareza esse novo

modo de investigaccedilatildeo A chamada autobiografia intelectual de Soacutecrates inicia com o

problema da αἰτία e nesta nova seccedilatildeo o texto deixa claro que a busca de Soacutecrates pela

verdadeira αἰτία continua A partir de agora Platatildeo poderaacute apresentar a sua tentativa de

contruir uma noccedilatildeo platocircnica de αἰτία com o fim de provar a imortalidade da alma

Antes de tudo eacute necessaacuterio observar que Platatildeo procurar deixar claro que toda a

seccedilatildeo que se inicia tem o compromisso expresso de estabelecer princiacutepios para provar a

imortalidada da alma Em 100b8-9 ele explica o objetivo desta seccedilatildeo lsquodemonstrar a

169

causa e descobrir que a alma eacute imortalrsquo (τὴν αἰτίαν ἐπιδείξειν καὶ ἀνευρήσειν ὡς

ἀθάνατον ἡ ψυχή) (100b8-9) Portanto a demonstraccedilatildeo da causa estaacute a serviccedilo da prova

da imortalidade da alma que eacute sem duacutevida o objetivo principal do diaacutelogo Outro

elemento importante nesta seccedilatildeo eacute o estabelecimento de uma hipoacutetese essencial ou

fundamental que eacute introduzida e reafirmada no diaacutelogo

O novo modo de investigaccedilatildeo que rompe completamente com os filoacutesofos da

natureza parte do pressuposto de uma hipoacutetese essencial lsquoFormasrsquorsquoFormasrsquo existem e

as coisas recebem os seus nomes pela sua participaccedilatildeo nelas A hipoacutetese de que existem

coisas como o belo em si nas quais as demais coisas participam passa a ser a condiccedilatildeo

sine qua non para a busca da causa verdadeira Em suma Soacutecrates considera o seguinte

(102a-d)

(i) Deve-se partir da hipoacutetese de que existe algo que eacute belo em si e por si

bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo(ὑποθέμενος εἶναί τι

καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7)

(ii) Admitindo a existecircncia dessas coisas eacute necessaacuterio considerar o seguinte

ldquose existe outra coisa bela aleacutem do que eacute belo em si natildeo eacute bela por causa

de coisa alguma a natildeo ser porque participa daquele belo em sirdquo (εἴ τί

ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ

διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ) (100c3-6) Depois Soacutecrates diz que lsquoeacute

pela beleza que as coisas belas satildeo belasrsquo (100d4-6)

(iii) Platatildeo desenvolve uma ideia de partipaccedilatildeo eacute por participar no belo em

si que as coisas belas satildeo belas Platatildeo desenvolve a sua ideia de

170

participaccedilatildeo utilizando principalmente trecircs palavras lsquoparticipaccedilatildeorsquo

(μετέχω) (100c5) lsquopresenccedilarsquo (παρουσία) (100d5) e lsquocomunhatildeorsquo

(κοινωνία) (100d6)

Com a hipoacutetese fundamental Platatildeo deixa claro que estaacute estabelecendo a noccedilatildeo

de lsquocausarsquo quando Soacutecrates diz que as coisas belas satildeo belas porque participam daquele

belo em sirdquo (100c3-6) finaliza com a pergunta ldquoconcordas com esse tipo de causardquo (τῇ

τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς) (100c6-7) Apesar da nossa divisatildeo para fins didaacuteticos entre

hipoacutetese fundamental e lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo na verdade a hipoacutetese

fundamental eacute a condiccedilatildeo baacutesica para o estabelecimento da lsquoresposta mais segura

poreacutem ignorantersquo

Tendo como base a hipoacutetese fundamental a noccedilatildeo de causa eacute desenvolvida

principalmente a partir das seguintes formulaccedilotildees

(i) Dativo de causa ndash lsquopor causa dersquo eacute bem comum especialmente no

contexto da resposta lsquomais segura poreacutem ignorantersquo para se referir agrave

lsquoFormarsquo como causa τῷ καλῷ (100d7 e2) πλήθει (101b6) and ἡμίσει

(101b7)

(ii) A preposiccedilatildeo διά + accusativo a construccedilatildeo pode ser encontrada em

101a onde Soacutecrates diz que coisas grandes satildeo grandes lsquopor causa da

grandezarsquo (διὰ τὸ μέγεθος) e coisas pequenas satildeo pequenas lsquopor causa da

pequenezrsquo (διὰ τὴν σμικρότητα) e em 101b quando Soacutecrates diz que dez

excede oito διὰ τὸ πλῆθος

171

(iii) O substantivo αἰτίααἴτιον no contexto da autobiografia intelectual de

Soacutecrates em 97c-99c αἰτία aparece pelo menos 19 vezes A partir do

momento em que Soacutecrates afirma que recorreu a uma lsquosegunda

navegaccedilatildeorsquo e ao longo do primeiro esboccedilo de uma noccedilatildeo de causa

(resposta mais segura poreacutem ignorante) αἰτία eacute empregada pelo menos 9

vezes em 99d 100-c 101b-101c

(iv) O verbo ποιέω em 99b100d130

O uso de todas essas formulaccedilotildees nessa etapa do Feacutedon deve indicar que Platatildeo

tem um interesse especial em construir uma noccedilatildeo de lsquocausarsquo embora isto ocorra de

maneira progressiva ao longo desta etapa comeccedilando com uma trivial ideia de αἰτία

especialmente no contexto da lsquoresposta segura poreacutem ignorantersquo e desenvolvendo a

noccedilatildeo no contexto da resposta lsquosegura e inteligentersquo onde Formas realmente produzem

algo nos objetos particulares Mesmo que o mecanismo de causaccedilatildeo natildeo seja

completamente expliacutecito nesse contexto veremos que a ideia de Formas como causa

passa a ser bem mais do que a de mera lsquoculparsquo lsquoresponsabilidade porrsquo Todo esse

esforccedilo platocircnico utilizando todos os meios possiacuteveis para expressar uma noccedilatildeo de

lsquocausarsquo numa soacute etapa do diaacutelogo nos faz rejeitar o pensamento de Vlastos de que

nenhuma dessas formulaccedilotildees eacute utilizada por Platatildeo com o fim de expressar qualquer

noccedilatildeo de causa131

130 Hackfort 1998 p 143-144

131 Vlastos 1969 p 146

172

Nesta etapa a noccedilatildeo fraca trivial de lsquocausarsquo eacute amparada principalmente pelo uso

do dativo numa lista de exemplos apresentados por Platatildeo que satildeo a principal fonte de

explicaccedilatildeo da ideia de lsquoFormarsquo como causa

(i) Beleza ldquoEacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι

τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ καλά) (100d7-8)

(ii) Beleza Grandeza Pequenez ldquoEacute por causa da beleza que as coisas belas

satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ καλά) e ldquoeacute por causa da grandeza que as

coisas grandes se tornam grandes as maiores e por causa da pequenez

que as coisas menores se tornam menoresrdquo (καὶ μεγέθει ἄρα τὰ μεγάλα

μεγάλα καὶ τὰ μείζω μείζω καὶ σμικρότητι τὰ ἐλάττω ἐλάττω) (100e2-

6)

(iii) Dois ldquoE vocecirc gritaria bem alto que natildeo conhece qualquer outra maneira

de cada coisa se originar exceto pela participaccedilatildeo em cada Forma

apropriada na qual venha a participar e nesses casos vocecirc natildeo possui

qualquer outra causa para algo tornar-se dois a natildeo ser a sua participaccedilatildeo

no doisrdquo (καὶ μέγα ἂν βοῴης ὅτι οὐκ οἶσθα ἄλλως πως ἕκαστον

γιγνόμενον ἢ μετασχὸν τῆς ἰδίας οὐσίας ἑκάστου οὗ ἂν μετάσχῃ καὶ ἐν

τούτοις οὐκ ἔχεις ἄλλην τινὰ αἰτίαν τοῦ δύο γενέσθαι ἀλλ᾽ ἢ τὴν τῆς

δυάδος μετάσχεσιν) (101c2-5)

Ainda que todos os indiacutecios textuais sugiram que Platatildeo estaacute desenvolvendo uma

noccedilatildeo de αἰτία eacute realmente difiacutecil entender com precisatildeo o que exatamente significa

173

dizer que ldquoeacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ

πάντα τὰ καλὰ καλά)rdquo (100d7-8) Agrave luz da lsquohipoacutetese das Formasrsquo que o contexto sugere

que se considere o que Platatildeo procura dizer com isto eacute que existe uma uacutenica Forma ndash o

belo em si ndash que eacute causarazatildeoresponsaacutevel (αἰτία) por fazer com que tudo que eacute belo

seja belo por causa da sua participaccedilatildeo na beleza Mas ainda assim natildeo fica claro que

tipo de αἰτία eacute esta e nem como ela seraacute uacuteltil para provar a imortalidade da alma Natildeo haacute

nenhuma indicaccedilatildeo de como entidades metafiacutesicas atuam no mecanismo de causaccedilatildeo

que Platatildeo por alguma razatildeo natildeo explicita

Neste contexto se Forma eacute uma αἰτία ndash e tudo indica que ela eacute ndash isto significa

apenas que as coisas satildeo e se tornam o que elas satildeo atraveacutes da participaccedilatildeo nas Formas

(100b-e 101c) Assim na ausecircncia de informaccedilatildeo suficiente sobre o mecanismo de

causaccedilatildeo apresentado por Platatildeo parece prudente consentir que o filoacutesofo estaacute

trabalhando com o sentido primaacuterio de αἰτία neste contexto que eacute a ideia de

lsquoresponsabilidadersquo ou lsquoacusaccedilatildeorsquo Gallop explica que aplicado a agentes humanos αἰτία

significa responsaacutevel ou culpado (cf 116c8) e o verbo cognato significa acusar

ou culpar Este conceito que estaacute enraizado na noccedilatildeo de responsabilidade humana (cf

98e2-99a4) eacute provavelmente a ideia baacutesica no contexto da primeira resposta ndash a mais

segura poreacutem ignorante132 Portanto quando dizemos que a lsquoFormarsquo eacute a αἰτία estamos

dizendo simplesmente que ela eacute lsquoresponsaacutevel por fazer com que algo seja ou se torne o

que ele eacute pela sua participaccedilatildeo ou comunhatildeo nela como na ideia de que as coisas belas

participam no belorsquo (μετέχει τοῦ καλοῦ) (100c5-6) Essa parece a opccedilatildeo mais razoaacutevel

na ausecircncia de explicaccedilotildees mais detalhadas que possam garantir uma noccedilatildeo de αἰτία

132 Gallop 2002 p169

174

ainda sem um compromisso metafiacutesico profundo Portanto a noccedilatildeo de lsquocausarsquo eacute

bastante limitada e chega ateacute a ser tautoloacutegica lsquoeacute por causa da beleza que todas as

coisas belas satildeo belasrsquo lsquotodas as coisas belas satildeo belas por causa da belezarsquo Certamente

por causa desse vaacutecuo de informaccedilotildees suficientes sobre a noccedilatildeo de lsquocausarsquo e seu

mecanismo de causaccedilatildeo eacute que Platatildeo sugere que essa resposta eacute a mais segura no

sentido de que jaacute aponta para lsquoFormasrsquo como causa rompendo completamente com a

ideia de causa dos filoacutesofos da natureza mas ainda assim eacute ignorante por natildeo ter

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente sendo assim vaga inconsistente e tautoloacutegica

Mas eacute importante lembrar que a maioria dos comentadores acredita que neste

contexto da lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo a noccedilatildeo de causa jaacute deve ser

interpretada agrave luz de uma teoria metafiacutesica completa das Formas sendo as Formas

objetos com existecircncia133 Hackfort em seu comentaacuterio canocircnico do Feacutedon sugere que

a noccedilatildeo de causa que Platatildeo apresenta neste contexto deve ser entendida agrave luz da

doutrina das Formas134

A nossa pesquisa confirma que agora lsquoFormasrsquo podem ser interpretadas como

lsquoFormasrsquo com base no contexto anterior (argumento das afinidades) e contexto imediato

(no proacuteximo passo Platatildeo estabelece uma terminologia padratildeo para lsquoFormasrsquo)

Portanto quando Soacutecrates pela primeira vez hipotetiza a existecircncia de coisas como

lsquobelo em si e por si bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo (100b5-7) ele

mesmo lembra que natildeo estaacute falando de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas daquilo natildeo

havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) No argumento das afinidades as lsquoFormasrsquo satildeo

133 Cf Vlastos 1969 p298

134 Hackfort 1998 p146

175

consistentemente caracterizadas como entidades metafiacutesicas Antes de avanccedilar com a

noccedilatildeo de causa vejamos novamente um breve apanhado de algumas passagens em que

as personagens tratam lsquoFormasrsquo como se jaacute fossem velhas conhecidas e as personagens

pressupotildee um saber a respeito delas como facilmente compreensiacutevel e sem necessidade

de uma fundamentaccedilatildeo detalhada135

bull Primeiro estaacutegio do diaacutelogo pela primeira vez Soacutecrates introduz coisas

como o justo em si no diaacutelogo ldquoafirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo (φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν) (65d4-5) Ainda

que seja a primeira vez que o filoacutesofo apresente esse tipo de coisa e sem

qualquer explicaccedilatildeo adicional Siacutemias parece conhecer bem essas coisas

ldquoPor Zeus claro que simrdquo Soacutecrates complementa ldquoestou falando de

todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila e todas as

demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacuterdquo (τῆς

οὐσίας ὅ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) (65d13-e1) Juntamente com isto haacute

duas questotildees fundamentais sobre essas coisas em si ldquoE alguma vez

vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo ldquoE vocecirc jaacute

alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por meio

do corpordquo(65d-e) Neste contexto as perguntas ainda natildeo estatildeo

comprometidas com uma teoria metafiacutesica A questatildeo levantada eacute

concernente agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento lsquoverrsquo eacute simplesmente uma

135 Schafer 2012 p152

176

referecircncia aos sentidos As coisas sobre as quais fala satildeo captadas pela

alma pura sem a mediaccedilatildeo corporal136

bull Argumento da reminiscecircncia a mesma questatildeo do tipo φαμέν τι εἶναι

volta a ser empregada em 74a9-13 Digamos como presumo que existe

um Igual (φαμέν πού τι εἶναι ἴσον) Soacutecrates se refere ao lsquoigual em si

mesmorsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) que passa a ser o exemplo principal no

argumento (74a 74c 74e) Siacutemias fala que eles natildeo cessam de falar de

coisas como ldquoo Belo o Bom e toda essecircncia dessa naturezardquo (καλόν τέ τι

καὶ ἀγαθὸν καὶ πᾶσα ἡ τοιαύτη οὐσία) (76d) Ao final do argumento

Siacutemias afirma que as duas coisas satildeo necessaacuterias as coisas das quais eles

falavam devem existir (ταῦτα ἔστιν) assim como tambeacutem as nossas

almas antes do nosso nascimento (καὶ τὴν ἡμετέραν ψυχὴν εἶναι καὶ πρὶν

γεγονέναι ἡμᾶς) (76e) Neste contexto jaacute haacute indiacutecios de que Platatildeo estaacute

utilizando uma teoria para apoiar o argumento da reminiscecircncia mas

ainda eacute difiacutecil entender com clareza a distinccedilatildeo entre igual em si e coisas

iguais entre aquilo que eacute nobre e as coisas vulgares e deficientes Eacute

possiacutevel reconhecer no maacuteximo um esboccedilo incipiente de uma teoria

segundo a qual haacute duas classes de coisas uma representada no diaacutelogo

pelo lsquoigual em sirsquo em contraste com a outra classe representa pelas

multiplicidade de lsquocoisas iguaisrsquo as quais satildeo vulgares e deficientes

quando comparadas com o lsquoigual em sirsquo

bull Argumento das afinidades o argumento inicia com um lembrete de

que vatildeo tratar daquela mesma essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) sobre a qual

136 Dancy 2007 p246

177

estavam discutindo antes Mas neste contexto pela primeira vez Platatildeo

apresenta uma consistente caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo O exemplo

primordial no argumento da reminiscecircncia ndash αὐτὸ τὸ ἴσον ndash volta a ser

mencionado ao lado de outros exemplos ldquoO igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em sirdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d) mas agora se sabe que essas coisas fazem

parte de uma classe de entidades especiais que Platatildeo caracteriza bem

neste argumento porque a prova da imortalidade da alma depende da

semelhanccedila e afinidade entre alma e lsquoFormasrsquo Eacute neste contexto em que

pela primeira vez no diaacutelogo as propriedades de trancendecircncia

invisibilidade imortalidade eternidade uniformidade imutabilidade e

outras propriedades das lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas com detalhes

inclusive num viacutevido contraste com as coisas que integram uma outra

classe de objetos as coisas sensiacuteveis

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento antes de apresentar a sua

hipoacutetese Soacutecrates lembra que vai falar de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas

daquilo natildeo havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) Entatildeo Soacutecrates

hipotetiza que ldquohaacute algo como belo em si e por si bom grande e todas as

demais coisas como essasrdquo (εἶναί τι καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν

καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7) O contexto anterior (argumento

das afinidades) e o contexto imediato (a introduccedilatildeo de uma terminologia

especializada para Formas) indicam que Platatildeo estaacute tratando de entidades

metafiacutesicas

178

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento o narrador Feacutedon fala que

os amigos de Soacutecrates concordaram com ele de que cada uma das

Formas existe (εἶναί τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b)

Apesar de jaacute termos suporte textual suficiente para entendermos que lsquoFormasrsquo

satildeo entidades metafiacutesicas Formas platocircnicas ainda estamos limitados pela texto que na

ausecircncia de detalhes nos convida a interpretar a noccedilatildeo de causa como sendo a mais

baacutesica possiacutevel ateacute que Platatildeo desenvolva uma noccedilatildeo mais sofisticada

Portanto no iniacutecio natildeo eacute plausiacutevel afirmar que uma ordem superior de realidade

literalmente causa um determinado evento Na ausecircncia de suporte textual e filosoacutefico o

sentido regular da palavra αἰτία ndash ser responsaacutevel ou culpado ndash deve ser preferido

Na proacutexima etapa teremos um contexto renovado sobretudo no que tange agraves Formas

um vocabulaacuterio especializado uma terminologia especiacutefica para Formas aparece pela

primeira vez e se firma no diaacutelogo Aleacutem disso uma explanaccedilatildeo sobre lsquoFormas em sirsquo e

lsquoFormas opostasrsquo traratildeo uma nova compreensatildeo da noccedilatildeo de causa no diaacutelogo

65 Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c

Ateacute agora eacute importante reconhecer que a primeira tentativa de contruir uma

noccedilatildeo de αἰτία aponta para a lsquoFormarsquo como sendo a αἰτία de cada coisa Imputa-se ao

lsquobelo em sirsquo a responsabilidade pelas coisas serem ou tornarem-se o que elas satildeo A

ideia ainda eacute limitada imprecisa e o proacuteprio Platatildeo faz questatildeo de mostrar isto no texto

chamando essa primeira tentativa de mais segura do que qualquer outra tentativa de

encontrar uma causa apresentada pelos filoacutesofos da natureza mas ainda assim

179

lsquoignorantersquo sem fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente Eacute necessaacuterio passar a uma nova

tentativa de construccedilatildeo da noccedilatildeo de causa a partir de 102a Este posterior

desenvolvimento seraacute fundamental para a compreensatildeo do argumento final em si que eacute

introduzido no dialogo apenas em 105c

O texto indica o momento de transiccedilatildeo da primeira para a segunda tentativa de

construir uma noccedilatildeo de causa A conversa inesperada entre Equeacutecrates e o narrador

Feacutedon indicam essa transiccedilatildeo em 102a-b

(i) Equeacutecrates elogia o filoacutesofo pelo brilhante raciociacutenio apresentado

(ii) O narrador Feacutedon ratifica que todos os presentes concordaram com a

exposiccedilatildeo e Equeacutecrates acrescenta que eles que natildeo estiveram laacute

tambeacutem concordaram

(iii) Equeacutecrates pede que o narrador revele o que aconteceu depois

(iv) Antes de revelar o que aconteceu depois o narrador Feacutedon salienta que a

discussatildeo seguinte (uacuteltimo argumento) soacute ocorreu depois que os amigos

concordaram que Formas existem e que por participar nelas as demais

coisas recebem o seu nome

O primeiro passo para o desenvolvimento desta seccedilatildeo eacute a reafirmaccedilatildeo da

hipoacutetese receacutem-apresentada mas agora com uma designaccedilatildeo especial para lsquoFormasrsquo

bull lsquoE foi acordado que cada uma das Formas existersquo (καὶ ὡμολογεῖτο εἶναί

τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b1) e que as demais coisas participando delas

180

(Formas) levam o seu nomersquo (καὶ τούτων τἆλλα μεταλαμβάνοντα αὐτῶν

τούτων τὴν ἐπωνυμίαν ἴσχειν (102b2-3)

Portanto a primeira coisa que Platatildeo procura estabelecer eacute que a hipoacutetese das

lsquoFormasrsquo lsquoFormasrsquo continua sendo essencial nesta nova etapa A lsquooutra respostarsquo que

seraacute apresentada tambeacutem depende dessa hipoacutetese essencial que se estabelece como

condiccedilatildeo sine qua non para a construccedilatildeo de uma noccedilatildeo de causa que sirva de base para

a prova final da imortalidade da alma em 105c-107b)

A outra observaccedilatildeo fundamental eacute que pela primeira vez no diaacutelogo Platatildeo

utiliza o termo εἶδος no diaacutelogo para designar aquilo que ele vinha chamando de lsquocoisa

em sirsquo lsquoessecircnciarsquo lsquoaquilo que eacute lsquoo belo em sirsquo Portanto as formulaccedilotildees natildeo

terminoloacutegicas satildeo utilizadas ateacute o contexto da lsquoresposta segura mas ignorantersquo e

somente a partir de 102b observamos a tentativa de fixaccedilatildeo da terminologia Platatildeo

finalmente utiliza um termo especiacutefico ndash εἶδος ndash para marcar a especificidade da

entidade que eacute a lsquocausarsquo das coisas Os termos εἶδος e ἰδέα satildeo os principais termos para

designar essas entidades neste contexto Em 102b-106d temos a sugestatildeo de que satildeo

termos intercambiaacuteveis Aleacutem deles a palavra μορφή tambeacutem aparece carregada do

mesmo significado numa passagem em que Platatildeo fala de τὸ εἶδος e μορφή (103e2-7)

O termo εἶδος jaacute havia aparecido antes no diaacutelogo mas em momento algum para

designar diretamente os elementos singulares da filosofia platocircnica ndash as Formas

inteligiacuteveis

181

bull lsquoa imagem do amadorsquo (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς) (72d9) nesta passagem o

termo possui a sua ideia baacutesica ndash o aspecto exterior a forma visiacutevel de

algo

bull lsquoexistem duas classes de seres a visiacutevel e a invisiacutevelrsquo (δύο εἴδη τῶν

ὄντων τὸ μὲν ὁρατόν τὸ δὲ ἀιδές) (79a6) o termo εἶδος eacute utilizado para

expressar a ideia de lsquoclassesrsquo ou lsquogecircnerosrsquo de existecircncia

bull lsquoa menos que a nossa alma existisse em algum lugar antes de assumir

essa forma humana (εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) vaacuterias vezes εἶδος eacute empregado para

expressar a ideia que fica estabelecida no argumento das reminiscecircncias

ndash a alma existe antes de passar a adquirir a lsquoformarsquo o lsquoaspectorsquo ou

mesmo a lsquoespeacuteciersquo humana (Cf76c 79b 87a 92b)

bull lsquoSiacutemias tem duacutevidas e tambeacutem receia que a alma seja algo mais divino e

mais belo do que o corpo e ainda assim pereccedila por ser um tipo de

harmoniarsquo (Σιμμίας ἀπιστεῖ τε καὶ φοβεῖται μὴ ἡ ψυχὴ ὅμως καὶ

θειότερον καὶ [91d] κάλλιον ὂν τοῦ σώματος προαπολλύηται ἐν

ἁρμονίας εἴδει οὖσα) (91c9-d1-2) Aqui εἶδος expressa mais uma vez a

ideia de um lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de existecircncia A alma poderia perecer pelo

seu gecircnero de existecircncia ser lsquoum tiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de harmonia

bull lsquoSe ele me mostrasse essas coisas eu estaria pronto a parar de buscar

qualquer outro tipo de causarsquo (καὶ εἴ μοι ταῦτα ἀποφαίνοι

παρεσκευάσμην ὡς οὐκέτι ποθεσόμενος αἰτίας ἄλλο εἶδος) (98a1-2)

Esta eacute uma referecircncia a Anaxaacutegoras segundo o qual o νοῦς seria o

responsaacutevel pela ordenaccedilatildeo e causa de todas as coisas (νοῦς ἐστιν ὁ

182

διακοσμῶν τε καὶ πάντων αἴτιος) (Cf 97c1-2) O termo εἶδος expressa

meramente um lsquotiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de causa Se Anaxaacutegoras pudesse

demonstrar a αἰτία de todas as coisas Soacutecrates dispensaria a busca por

outro lsquotiporsquo de causa Mas o filoacutesofo se desponta com Anaxaacutegoras e

pouco depois utiliza o termo εἶδος com o mesmo sentido para falar de um

lsquooutro tipo de causarsquo aquele que Soacutecrates encontra por si mesmo

Soacutecrates entatildeo passa a demonstrar o lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de causa (τῆς

αἰτίας τὸ εἶδος) que descobriu a partir de proacutepria investigaccedilatildeo

investigaccedilatildeo (100b4-6) lsquoesse outro tipo de causarsquo tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de algo como lsquoo Belo em sirsquo lsquoo Bom em sirsquo

Portanto a partir de 102b temos pela primeira vez no diaacutelogo os termos εἶδος e

ἰδέα (utilizados intercambiavelmente) para falar de entidades inteligiacuteveis que satildeo

responsaacuteveis por fazer com que as coisas sejam ou se tornem o que elas A partir de

agora os termos εἶδος e ἰδέα satildeo empregados consistentemente como terminologia

especializada para Formas Vejamos uma tabela com as ocorrecircncias de termos para

Formas neste contexto e depois uma breve apreciaccedilatildeo considerando o contexto de cada

passagem

102b1 τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν

102d6 αὐτὸ τὸ μέγεθος

183

103e3 αὐτὸ τὸ εἶδος

103e5 τὴν ἐκείνου μορφὴν

104d9-10 ἐκείνῃ τῇ μορφῇ

104b9 ἐκείνην τὴν ἰδέαν

104c7 τὰ εἴδη τὰ ἐναντία

104d2 τὴν αὑτοῦ ἰδέαν

104d6 ἡ τῶν τριῶν ἰδέα

104d9 ἡ ἐναντία ἰδέα

104e1 ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα

105d13

τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν

106d6 τὸ τῆς ζωῆς εἶδος

184

Vejamos de forma bastante resumida cada exemplo em seu contexto antes de

passarmos agrave anaacutelise desta seccedilatildeo

bull 102b1 esta primeira ocorrecircncia de εἶδος revela o termo aplicado

diretamente a entidades que possuem existecircncia (cada εἶδος existe) e

Platatildeo procura mostrar a relaccedilatildeo entre εἶδος e as coisas a participaccedilatildeo

das coisas em um εἶδος eacute a causa delas possuiacuterem as suas qualidades e

assim puderem ser chamadas pelo seu nome apropriado

bull 103e2-5 Platatildeo explica a relaccedilatildeo entre a entidade inteligiacutevel e as coisas

A Forma em si (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de levar o seu nome para sempre

(εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον) Mas existe tambeacutem outra coisa que natildeo eacute uma

lsquoForma em sirsquo (αὐτὸ τὸ εἶδος) mas tem o privileacutegio de levar um nome

porque possui sempre aquela μορφή (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί) O

contexto sugere que αὐτὸ τὸ εἶδος e μορφή se referem a Formas Esse

jogo entre palavras de mesmo domiacutenio semacircntico eacute repetido novamente

em 104d9-10 mas com ἰδέα e μορφή

bull 104b9-c1 Platatildeo introduz o termo ἰδέα para designar lsquoFormarsquo as coisas

que carregam consigo uma ἰδέα oposta tambeacutem natildeo toleram a ἰδέα

oposta rival Em 104c7 ele desenvolve a explicaccedilatildeo dizendo que natildeo satildeo

apenas τὰ εἴδη τὰ ἐναντία (as Formas opostas) que natildeo toleram a

aproximaccedilatildeo do oposto rival mas os objetos particulares que participam

numa Forma oposta

bull 104d1-3 Quando uma lsquoForma em sirsquo ocupa algo ela lhe impotildee a proacutepria

Forma dela (τὴν αὑτοῦ ἰδέαν αὐτὸ) e uma Forma oposta Em 104d9-10

185

Soacutecrates salienta que a respeito desse tipo de coisa (as coisas ocupadas

por lsquoFormas em sirsquo) a Forma oposta (ἡ ἐναντία ἰδέα) jamais viraacute sobre

aquela Forma rival (ἐκείνῃ τῇ μορφῇ) que estaacute nela Aqui temos ἰδέα e

μορφή como termos intercambiaacuteveis

bull 104d6 A etapa seguinte providencia um exemplo numeacuterico que figura

como chave hermenecircutica para a compreensatildeo da passagem Pela

primeira vez se apresenta de maneira especiacutefica a Forma de algo a

Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) Acompanhando a ideia anterior

quando Forma do trecircs ocupa algo ela faz com que ele seja

necessariamente trecircs e iacutempar A Forma do trecircs traz para a coisa que

ocupa (i) a proacutepria Forma ndash razatildeo pela qual ela eacute necessaacuteriamente trecircs

(ii) a Forma oposta correspondente ndash a Forma Iacutempar A Forma rival do

par natildeo poderaacute vir sobre a Forma oposta que nela estaacute Formas opostas

natildeo podem coexistir naquilo que eacute ocupado pela Forma em si e pela

Forma oposta que a Forma em si traz Temos um exemplo claro em

104e1 lsquoassim a Forma do par jamais sobreviraacute ao trecircsrsquo (ἐπὶ τὰ τρία ἄρα

ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει)

bull 105d13-14 o mesmo exemplo ndash a Forma do par ndash eacute relembrado no

argumento final lsquoO que haacute pouco concordaacutevamos que natildeo admite a

Forma do parrsquo (τὸ μὴ δεχόμενον τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν τί νυνδὴ

ὠνομάζομεν) Cebes responde o iacutempar (105d13-14) Este exemplo daacute

iniacutecio a uma lista que finda com a conclusatildeo de que a alma eacute imortal o

justo natildeo admite a injusticcedila a cultura natildeo admite o inculto o imortal natildeo

186

admite a morte a alma natildeo admite a morte Jaacute que a alma natildeo admite a

morte ela eacute imortal (105d16-e7)

bull 106d5-7 ao final Soacutecrates relaciona a alma com trecircs coisas que satildeo

imortais e nunca perecem o deus (ὁ θεὸς) a proacutepria Forma de vida (αὐτὸ

τὸ τῆς ζωῆς εἶδος) e tudo mais que seja imortal (τι ἄλλο ἀθάνατόν ἐστιν)

(106d5-7) Esse tipo de contruccedilatildeo lsquoa Forma de Xrsquo aparece apenas trecircs

vezes (i) a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) (104d6) A Forma do par (ἡ

τοῦ ἀρτίου ἰδέα) (104e1 105d13-14) A Forma da vida (τὸ τῆς ζωῆς

εἶδος) (106d5-6)

651 A grandeza casual (102b-d)

A questatildeo inicial nesta etapa eacute lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor

do que Feacutedonrsquo (102b) Antes de prosseguir na anaacutelise conveacutem observar que ela nos

remete ao contexto anterior e sugere a evoluccedilatildeo filosoacutefica da argumentaccedilatildeo quando

Soacutecrates buscava as causas das coisas sob a influecircncia dos filoacutesofos da natureza

acreditava que estava correto quando pensava que ao colocar um homem alto ao lado de

um homem baixo aquele se apresentava maior do que o menor pela altura da cabeccedila

(96e) Mas quando descobre seu proacuteprio modo de filosofar e descobre a verdadeira

causa das coisas ele sugere que natildeo se deve admitir que algueacutem eacute maior do que outro

pela cabeccedila mas lsquoeacute por causa da grandeza que as coisas grandes satildeo grandesrsquo (μεγέθει

ἄρα τὰ μεγάλα μεγάλα) (100e-101a) Essa questatildeo eacute retomada no uacuteltimo argumento Eis

os trecircs estaacutegios da discussatildeo

187

(i) X eacute maior do que Y pela cabeccedila (resposta completamente sem sentido)

(96d-e 101a)

(ii) X eacute maior do que Y pela grandeza (lsquoresposta mais segura poreacutem

ignorantersquo) (100e-101a)

(iii) X eacute maior do que Y pela grandeza acidental (102c-d)

(iv) lsquoA Grandeza essencialrsquo (resposta segura e inteligente) (102d-e)

O problema que se coloca agora eacute que Siacutemias eacute ao mesmo tempo maior do que

Soacutecrates e menor do que Feacutedon Platatildeo procura explicar em termos da relaccedilatildeo entre as

coisas como no caso em que X (Siacutemias) eacute maior do que Y (Soacutecrates) e Y (Soacutecrates) eacute

menor do que X (Siacutemias) O primeiro ponto eacute reafirmar a rejeiccedilatildeo do tipo de lsquocausarsquo

apresentado pelos filoacutesofos da natureza Natildeo eacute pela cabeccedila que algueacutem eacute maior do que

outro Esta rejeiccedilatildeo eacute expressa nos termos

bull Natildeo eacute pela natureza de Siacutemias natildeo eacute por Siacutemias ser Siacutemias (ou nos

termos dos filoacutesofos da natureza natildeo eacute simplesmente pela cabeccedila de

Siacutemias) que ele eacute maior

bull Natildeo eacute por Feacutedon ser Feacutedon (natildeo eacute por Feacutedon ser maior natildeo eacute pela

cabeccedila de Feacutedon) que Siacutemias eacute menor do que ele

Existe outro erro que Platatildeo nos previne de cometer achar que ao dizer

lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor do que Feacutedonrsquo isto corresponde

188

literalmente agrave verdade (102b9-c1) Neste ponto Platatildeo introduz uma ideia de lsquograndeza

casualrsquo que natildeo pode ser tomada como a verdade final

bull Siacutemias eacute maior do que Soacutecrates mas lsquopela grandeza que ele casualmente

temrsquo (ἀλλὰ τῷ μεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων) (102c1-3)

Essa grandeza casual se mostra apenas nas relaccedilotildees a grandeza em Siacutemias

excede a pequenez em Soacutecrates enquanto a pequeneza em Siacutemias eacute excedida pela

grandeza em Feacutedon A grandeza ou pequenez em Siacutemias eacute o produto do nosso ato de

comparaacute-lo com outro Soacutecrates entatildeo escolhe um exemplo em que Siacutemias natildeo eacute nada

aleacutem do centro ldquoacidentalrdquo de duas relaccedilotildees opostas grandeza e pequenez137

Esse tipo de lsquoqualidade acidentalrsquo que certos elementos possuem nas relaccedilotildees

com outros jaacute foi sugerido no argumento das reminiscecircncias pedras e gravetos agraves vezes

parecem iguais para uns e desiguais para outros Nesta ocasiatildeo Platatildeo dirige a atenccedilatildeo

para lsquoo Igual em sirsquo salientando que existe uma diferenccedila entre o Igual em si e as coisas

iguais (74b-c) Na passagem que agora analisamos Platatildeo inicia com Siacutemias e suas

qualidades casuais e faz um desvio para o elemento que realmente importa nesta seccedilatildeo

lsquoa grandeza em sirsquo Como no argumento das reminiscecircncias Platatildeo poderia muito bem

dizer lsquoa grandez em sirsquo eacute diferente de dizer que algo eacute grande em relaccedilatildeo a alguma

outra coisa Agora estamos tratando de uma entidade especiacutefica e responsaacutevel por outro

tipo de qualidade

137 Cf Burger 1984 p 162

189

OrsquoBrien jaacute havia sugerido Platatildeo comeccedila com uma vaga distinccedilatildeo entre uma

grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) que ele entende como um tipo de lsquograndeza

essencialrsquo e uma grandeza que Siacutemias casualmente possui (ὃ τυγχάνει ἔχων) para

introduzir uma distinccedilatildeo entre lsquoqualidades acidentaisrsquo e lsquoqualidades essenciaisrsquo que se

estabeleceraacute como elemento crucial na prova de Platatildeo (102c) 138 Esta explanaccedilatildeo

continua bastante uacutetil com a uacutenica ressalva de que natildeo vemos indiacutecio suficiente de que

ao falar de grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) Platatildeo jaacute esteja introduzindo a ideia de

lsquograndeza essencialrsquo Platatildeo trata dessa lsquograndeza essencialrsquo em contraste com a

lsquograndeza acidentalrsquo apenas com a introduccedilatildeo da lsquograndeza em sirsquo pouco depois (102d)

A expressatildeo lsquopor naturezarsquo eacute completamente trivial remete ao aspecto fiacutesico (a cabeccedila

como diriam os filoacutesofos da natureza)139

OrsquoBrien tambeacutem afirma que Platatildeo natildeo tem vocabulaacuterio teacutecnico para lsquoacidentalrsquo

e lsquoessencialrsquo e a maneira como Platatildeo expressa a presenccedila dessa qualidade essencial eacute o

uso de lsquosemprersquo e lsquonuncarsquo Alguns elementos carregam qualidades essenciais

perpetuamente

138 OrsquoBrien 1967 p199-200

139 Hackfort (1998 p154) rejeita a tese de OrsquoBrien segundo ele natildeo haacute qualquer indicaccedilatildeo de

que Platatildeo esteja fazendo uma distinccedilatildeo entre predicados essenciais e acidentais Segundo ele o

texto sugere que Siacutemias seria um depoacutesito de Formas Siacutemias eacute concebido como natildeo mais do

que um conteiner de formas um conteiner que sempre permanece o que eacute mas no qual residem

vaacuterias formas entre as quais dois opostos ndash grandeza e pequenez Essa tese de que Siacutemias eacute um

conteiner de Formas enfrenta pelo menos dois problemas baacutesicos mas estaacute claro no texto que a

Forma soacute aparece em 102d (a grandeza em si) e que essa ideia de um depoacutesito de Formas que

admite e acolhe em si Formas opostas (grandeza e pequenez) parece contrariar aquilo que seraacute

dito posteriormente opostos deixam o posto ou perecem na chegada do seu respectivo oposto

190

(i) O fogo eacute sempre quente e nunca frio

(ii) A neve eacute sempre fria e nunca quente

(iii) Trecircs eacute sempre iacutempar e nunca par

(iv) Dois eacute sempre par e nunca iacutempar

(v) E afinal Soacutecrates afirma que a alma estaacute sempre viva e nunca morta 140

Esta qualidade essencial perpeacutetua depende das Formas No argumento das

afinidades Platatildeo jaacute enfatiza que as lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado enquanto objetos particupares estatildeo sempre mudando (78c-e) Agora Platatildeo

mostraraacute que as Formas satildeo as responsaacuteveis pela qualidade essencial (algo que sempre

um item carrega consigo) de certos itens com os quais ela se relaciona Toda a discussatildeo

eacute conduzida para o sujeito principal deste contexto a grandeza em si

652 A Grandeza em si

Siacutemias eacute apenas lsquoacidentalmentersquo maior do que Soacutecrates Por outro lado existem

elementos que apresentam qualidades essenciais como diraacute Soacutecrates depois trecircs eacute

essencialmente iacutempar O ponto central nesta etapa eacute que os objetos particulares satildeo

constituiacutedos de qualidades que eles casualmente adquirem e perdem de acordo com as

suas relaccedilotildees ao longo do tempo qualidades que chamariacuteamos de acidentais Pode ser

que em algum periacuteodo do tempo Siacutemias fosse menor do que Soacutecrates e maior do que

140 OrsquoBrien 1967 p199-200

191

Feacutedon e em outro periacuteodo maior do que Soacutecrates e menor do que Feacutedon Em um dado

momento Siacutemias ocorre de ter uma qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e

Soacutecrates e em outro dado momento essa qualidade acidental eacute perdida para dar lugar a

outra qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e Soacutecrates Mas a qualidade essencial

eacute aquilo que um objeto particular possui atraveacutes da sua relaccedilatildeo com a Forma cujo

caraacuteter eacute singular e se mostra a mesma em todo tempo e em todas as relaccedilotildees Esta

discussatildeo inicial nos leva diretamente para a Forma ndash a lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ

μέγεθος) (102d6-8)

653 A Grandeza em si e a grandeza em noacutes

Possuidor de qualidades acidentais Siacutemias pode ser ao mesmo tempo μέγεθος

καὶ σμικρότητα (102c4-5) e possuir tanto o nome pequeno quanto o grande (102c11-

12) Mas o mesmo natildeo pode acontecer com lsquoa grandeza em sirsquo ou com lsquoa grandeza em

noacutesrsquo (102d)

bull A grandeza em si nunca admite ser ao mesmo tempo grande e pequena

bull A grandeza em noacutes jamais aceita o pequeno (oposto)

Eacute neste ponto que Platatildeo apresenta o princiacutepio da incompatibilidade de opostos

um oposto nunca seraacute seu oposto Existem coisas que jamais apresentam a

versatilidade de Siacutemias com suas qualidades acidentais ndash grandeza e pequenez ao

mesmo tempo ndash por causa da sua relaccedilatildeo com a lsquoForma em sirsquo e lsquoa Forma em noacutesrsquo

192

O termo αὐτὸ τὸ μέγεθος certamente eacute uma referecircncia a uma Forma mas natildeo

temos detalhes para saber se Platatildeo faz uma distinccedilatildeo no diaacutelogo entre Formas

transcendentes e Formas imanentes ao falar de lsquograndeza em sirsquo e lsquograndeza em noacutesrsquo

Mas essa distinccedilatildeo entre αὐτὸ τὸ μέγεθος e τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος estaacute longe de ser clara no

diaacutelogo natildeo fica claro se Platatildeo estaacute falando de uma Forma transcendente e de uma

Forma imanente e que o status ontoloacutegico da primeira diferente do da segunda como

Keyt defende inclusive afirmando que a Forma transcendente eacute por natureza

indestrutiacutevel enquanto a Forma imanente pode ser destruiacuteda141 Mas na verdade ateacute

agora nem mesmo sabemos ao certo se τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma referecircncia a Formas

imanentes142 Apenas no desenvolvimento da discussatildeo eacute que Platatildeo deixaraacute claro que

τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma Forma Apenas a partir de 104d eacute que temos a explicaccedilatildeo

completa existem Formas que ocupam um particular e que carregam consigo outra

Forma Mesmo nesse contexto seraacute difiacutecil entender a distinccedilatildeo no status ontoloacutegico das

duas Formas Mas Keyt estaacute parcialmente correto em ao observar que o contexto nos

levaraacute a pensar que a Forma na coisa (o que poderiacuteamos chamar de Forma imanente)

sofre uma experiecircncia negativa ndash destruiccedilatildeo ndash com a chegada da Forma oposta Mas eacute

bom lembrar que essa destruiccedilatildeo talvez natildeo seja literal porque a ideia estaacute vinculada e

se expressa por meio da metaacutefora militar Ainda assim em momento alguma o texto

sugere que a Forma que traz consigo a outra Forma pode sofrer destruiccedilatildeo a partir de

104d a metaacutefora militar perde a sua forccedila Em vez da ameaccedila de uma oposta rival que

pode destruir a Forma que ocupa um objeto temos uma Forma que natildeo admite em

141 Keyt 1963 p168

142 Cf Gallop 2002 p 195

193

qualquer hipoacutetese a ameaccedila de uma Forma oposta rival Mas ao final Platatildeo natildeo deixa

claro se temos aqui a claacutessica distinccedilatildeo entre Forma transcendente e imanente Agora

neste contexto inicial o que eacute essencial eacute observar que Platatildeo marca a distinccedilatildeo entre

duas coisas lsquoa Forma em sirsquo e lsquoalgo em noacutesrsquo E a repeticcedilatildeo desta distinccedilatildeo sugere que

ela tem importacircncia nesta etapa

bull a grandeza em noacutesrsquo (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος) (102d6-8)

bull o pequeno em noacutes (τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν) (102de5-6)

bull o oposto que estaacute em noacutes (τὸ ἐν ἡμῖν) (103b4-5)

Este algo lsquoem noacutesrsquo (ἐν ἡμῖν μέγεθος) nem sempre eacute intepretado como Forma

aleacutem de Formas imanentes pode tambeacutem ser interpretada como um tipo especial de

particular ou ainda como um elemento imanente que nem eacute uma Forma nem mesmo um

particular

bull OrsquoBrien entende que algo ἐν ἡμῖν natildeo eacute uma Forma mas um tipo

especial de particular que ele chama de lsquoparticularizaccedilatildeorsquo que como as

Formas natildeo podem admitir seus opostos Mas seu status ontoloacutegico se

manteacutem ndash eles satildeo particulares natildeo um terceiro tipo de entidade143

143 OrsquoBrien 1967 p201-202

194

Mas a nossa leitura baseada no contexto imediato tende a privilegiar a ideia de

que haacute dias Formas em jogo aqui ndash a Forma em si e a Forma em noacutes ndash ainda que Gallop

advirta que a terminologia apresentada por Platatildeo natildeo eacute suficiente para garantir uma

distinccedilatildeo consistente entre Formas lsquoimanentesrsquo e lsquotranscendentesrsquo (embora o contexto

tambeacutem natildeo negue essa ideia)144 Alguns comentadores tendem a enfatizar que Formas

no Feacutedon satildeo Formas imanentes

bull Hackfort entende que ateacute mesmo lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ μέγεθος)

(102d6-8) eacute uma referecircncia a uma Forma imanente porque Soacutecrates estaacute

aqui lidando com isto elementos que se aproximam e residem em

objetos fiacutesicos145

Mas sabemos que eacute possiacutevel que Platatildeo assuma que Formas possuem existecircncia

proacutepria peculiar e independente e ainda assim eacute possiacutevel que elas estejam presentes nas

coisas O inteacuterprete do Feacutedon precisa lidar constantemente com as lacunas deixadas por

Platatildeo num diaacutelogo cujo objetivo natildeo eacute apresentar uma teoria das Formas mas provar a

imortalidade da alma

Mas o ponto essencial eacute que duas Formas estatildeo em jogo aqui lsquoa gradeza em sirsquo

e lsquoa grandeza em noacutesrsquo satildeo Formas O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao

ontoloacutegica entre a lsquoForma em sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica

144 Gallop 2002 p195

145 Hackfort 1998 p150

195

entre elas ndash uma Forma suprema e uma Forma subordinante Essa passagem introduz

um princiacutepio que seraacute desenvolvido apenas em 104d

654 Incompatibilidade de opostos

O princiacutepio que agora Platatildeo se esforccedila para apresentar eacute o da incompatibilidade

dos opostos enquanto Siacutemias pode participar na grandeza e pequenez ao mesmo tempo

nem a lsquograndeza em sirsquo nem lsquoa grandeza em noacutesrsquo aceitaraacute em condiccedilatildeo o seu oposto

Platatildeo expotildee a noccedilatildeo de incompatibilidade de opostos apresentando uma seacuterie de

exemplos ao longo da lsquoresposta segura e inteligente (102d-e)

bull A grandeza em si jamais quer ser grande e pequena ao mesmo tempo

(αὐτὸ τὸ μέγεθος οὐδέποτ᾽ ἐθέλειν ἅμα μέγα καὶ σμικρὸν εἶναι) (102d5-

7)

bull A grandeza em noacutes jamais admite o pequeno e nem quer ser excedida (τὸ

ἐν ἡμῖν μέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σμικρὸν οὐδ᾽ ἐθέλειν

ὑπερέχεσθαι) (102d7-9)

bull Aquilo que eacute grande natildeo ousa ser pequeno (ἐκεῖνο δὲ οὐ τετόλμηκεν

μέγα ὂν σμικρὸν εἶναι) (102e5-6)

bull Por semelhante modo o pequeno em noacutes natildeo quer de modo algum ser ou

tornar-se grande (ὡς δ᾽ αὕτως καὶ τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν οὐκ ἐθέλει ποτὲ

μέγα γίγνεσθαι οὐδὲ εἶναι) (102e5-6)

bull Nem qualquer dos opostos pode ao mesmo tempo permanecer o que era

e ser ou se tornar o seu oposto mas parte em retirada ou perece ao sofrer

196

esse golpe (οὐδ᾽ ἄλλο οὐδὲν τῶν ἐναντίων ἔτι ὂν ὅπερ ἦν ἅμα

τοὐναντίον γίγνεσθαί τε καὶ εἶναι ἀλλ᾽ ἤτοι ἀπέρχεται ἢ ἀπόλλυται ἐν

τούτῳ τῷ παθήματι) (102e8-103a2)

bull O oposto em si de modo algum viria a ser oposto de si mesmo nem o

oposto em noacutes nem o oposto na natureza (αὐτὸ τὸ ἐναντίον ἑαυτῷ

ἐναντίον οὐκ ἄν ποτε γένοιτο οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

(103b4-5)

bull () O oposto jamais seraacute oposto de si mesmo (μηδέποτε ἐναντίον ἑαυτῷ

τὸ ἐναντίον ἔσεσθαι) (103c7-8)

Platatildeo cuidadosamente utiliza uma metaacutefora militar como observa Burnet para

ilustrar essa incompatibilidade146 A lsquoForma em noacutesrsquo e a lsquoForma oposta rivalrsquo satildeo

caracterizados como se fossem inimigos em confronto num campo de batalha quando

um combatente avanccedila o outro eacute obrigado a partir em retirada ou acaba perecendo na

chegada do inimigo Esta viacutevida metaacutefora eacute aplicada incialmente para os opostos

grandeza e a pequenez Quando a pequenez ndash o oposto (τὸ ἐναντίον) da grandeza ndash

avanccedila sobre ela a grandeza possui apenas duas opccedilotildees (102d9-102e2)

(i) Fugir e partir em retirada (ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν)

(ii) Ou sobrevindo a pequenez ser eliminada (ἢ προσελθόντος ἐκείνου

ἀπολωλέναι)

146 Cf Burnet p 102

197

Sendo assim se alguma Forma estaacute em uma determinada coisa essa coisa natildeo

admitiraacute qualquer Forma oposta ela bateraacute em retirada ou pereceraacute

655 Objeccedilatildeo de um anocircnimo (103a-103c)

Depois de apresentar o princiacutepio da incompatibilidade de opostos um

interlocutor anocircnimo tenta relacionar o argumento presente com o primeiro argumento

apresentado ndash argumento ciacuteclico ndash e Soacutecrates aproveita para apresentar as distinccedilotildees

baacutesicas sobretudo explicando que a noccedilatildeo de opostos agora eacute completamente nova

antes se falava de coisas grandes mas agora da grandeza em si A distinccedilatildeo eacute

apresentada em 103b

(i) Primeiro argumento a coisa oposta proveacutem de seu oposto (ἐκ τοῦ

ἐναντίου πράγματος τὸ ἐναντίον πρᾶγμα γίγνεσθαι)

(ii) Uacuteltimo argumento o oposto em si (αὐτὸ τὸ ἐναντίον) jamais pode ser

oposto de si mesmo nem o que estaacute em noacutes (οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν) nem o que

estaacute na natureza (οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

656 Fogo calor neve e frio (103c-d)

Na continuaccedilatildeo Platatildeo enfatiza o papel do portador de opostos O princiacutepio

tambeacutem seraacute aplicado a ele Haacute principalmente trecircs elementos em cena nesta etapa

bull Forma oposta

198

bull Portador da Forma oposta

bull Forma oposta rival

Sabemos que nem a Forma em si nem a Forma oposta podem admitir a Forma

oposta rival Sabemos o que acontece a metafoacutera militar continua operando neste

contexto Mas agora Platatildeo chama atenccedilatildeo para a reaccedilatildeo do portador do oposto quando

a Forma oposta se aproxima o portador do oposto (que natildeo eacute uma Forma) e a Forma

que ele carrega consigo teratildeo de partir em retirada ou perecer Isto ficaraacute claro em 104b

mesmo a coisa que natildeo eacute um oposto mas carrega consigo um oposto natildeo admite a

Forma oposta rival O nuacutemero trecircs (natildeo eacute uma Forma) natildeo admite a Forma oposta rival

ndash par ndash porque carrega consigo a Forma iacutempar Neste caso a metafoacutera militar permanece

viva Seria razoaacutevel pensar num combatente que natildeo possui um inimigo especiacutefico mas

por forccedila de alianccedila estaacute junto ao aliado num campo de batalha e o inimigo do seu

aliado passa a ser o seu inimigo ao se aproximar tambeacutem teraacute de bater em retirada ou

perecer

Platatildeo apresenta uma seacuterie de exemplos nesta seccedilatildeo De iniacutecio temos uma lista

de quatro elementos distintos fogo calor neve e frio Agora fogo e neve satildeo portadores

de opostos e na relaccedilatildeo com as Formas opostas que carregam tambeacutem natildeo admitiratildeo o

oposto rival Os primeiros exemplos satildeo os seguintes em 103c-d

(i) A neve o frio o oposto do frio ndash o calor a neve eacute diferente do frio que

carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do frio ndash o calor ndash a neve

199

se retira ou eacute destruiacuteda Portanto a neve natildeo admite o oposto do frio que

carrega consigo ndash o calor

(ii) O fogo o calor o oposto do calor ndash o frio o fogo eacute diferente do calor

que carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do calor ndash o frio ndash ou

se retira ou eacute destruiacutedo Nesta etapa existe um reforccedilo aleacutem de recusar o

oposto do calor que carrega consigo o fogo jamais permaneceraacute o

mesmo quando se aproxima a frieza ndash jamais seraacute fogo e frio ao mesmo

tempo A ideia lembra a que aparece em 103a nenhum oposto enquanto

permanece o mesmo pode ser ou tornar-se no seu oposto Agora o

princiacutepio tambeacutem se aplica agravequilo que carrega consigo um oposto

Os comentadores debatem se fogo e neve satildeo Formas ou natildeo neste contexto

especialmente se forem considerados no mesmo niacutevel que o exemplo numeacuterico lsquotrecircsrsquo

que seraacute apresentado no proacuteximo passo no diaacutelogo

(i) Vlastos entende que tudo eacute referecircncia a Formas nesta passagem fogo

neve quente frio147

(ii) Hackfort afirma que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo lsquoformas imanentesrsquo que podem

residir em objetos concretos sendo necessaacuterio usar a letra minuacutescula

inicial para distingui-la da Forma transcendente Mas sugere Hackfort

147 Vlastos 1969 p318

200

sugere que Platatildeo provavelmente teria achado complicado especificar

neste ponto o que ele tinha em mente 148

(iii) OrsquoBrien sugere que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo devem ser entendidos como

particularizaccedilotildees da Forma mas pouco depois admite que a verdade eacute

que na presente passagem natildeo podemos dizer se lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo uma

lsquoformarsquo ou uma lsquoparticularizaccedilatildeo da formarsquo149

(iv) Burnet salienta que natildeo foi sugerido em momento algum que o fogo e a

neve satildeo Formas e parece improvaacutevel que sejam assim considerados

Por outro lado trecircs que para o propoacutesito do presente argumento estaacute no

niacutevel do fogo e da neve eacute reconhecido como Forma Burnet entatildeo

ressalta que eacute essa incerteza que cria todas as dificuldades da presente

passagem150

Apesar da incerteza que a falta de detalhes do texto traz tomaremos a posiccedilatildeo de

que nesses exemplos em 105b-c natildeo temos Forma como a a Forma do fogo por

exemplo A nossa conclusatildeo decorre da seguinte observaccedilatildeo no Feacutedon haacute Formas que

trazem Formas opostas para aquilo que ocupam (104d) mas nunca Formas que

participam em Formas e este seria o caso se admitiacutessemos a Forma do fogo segundo

esses exemplos Esta passagem eacute de fundamental importacircncia porque introduz o caso da

alma e o argumento final propriamente dito e seraacute retomado adiante

148 Hackfort 1998 149-150

149 OrsquoBrien 1967 p202 203

150 Burnet 1911 p104

201

O que importa por enquanto eacute observar que Platatildeo apresenta trecircs elementos neste

cenaacuterio um portador de um oposto o oposto portado e o oposto rival O portador

(fogoneve) natildeo eacute uma Forma mas portador da Forma oposta (calorfrio)

Fogo ndash portador (natildeo eacute Forma)

Calor ndash Forma oposta carregada pelo Fogo

Frio ndash Forma oposta rival

657 Os exemplos numeacutericos (103e-104c)

A introduccedilatildeo de exemplos numeacutericos traz um desenvolvimento filosoacutefico

consideraacutevel neste contexto Aqui temos uma passagem de exemplos de coisas fiacutesicas

(fogo neve) para um exemplo numeacuterico que nem sempre eacute bem aceito pelos

comentadores Mas Gallop lembra que a transiccedilatildeo decorrer da aproximaccedilatildeo entre alma e

nuacutemero Natildeo se pode perder de vista que Platatildeo estaacute preparando o terreno para

apresentar a sua uacuteltima prova da imortalidade da alma e exemplos numeacutericos servem

para ligar e ateacute mesmo esconder a seacuteria lacuna entre a alma e as coisas fiacutesicas com as

quais ela foi ateacute agora comparada No uacuteltimo argumento a alma seraacute pensada como

transmissora de vida aos corpos que ocupa assim como o fogo e a neve transmitem

calor e frio sendo essa analogia enfraquecida pelo fato de que a alma ao contraacuterio do

fogo e da neve natildeo eacute observaacutevel (79b7-15) Portanto a transiccedilatildeo para a alma eacute

202

facilitada pelo exemplo de trecircs uma vez que nuacutemeros assim como a alma natildeo satildeo

sensiacuteveis observaacuteveis em si mesmos151

Desde o iniacutecio Formas satildeo protagonistas na discussatildeo

bull A proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute apresentada como um tipo de

dignataacuteria a quem pertence originalmente o direito de portar seu nome

para sempre

bull Natildeo somente a proacutepria Forma (μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de ter o

mesmo nome para sempre mas tambeacutem certas coisas que natildeo satildeo

Formas mas que tem sempre a sua Forma (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν

ἀεί) (103e2-5)

bull As coisas que possuem uma Forma e manteacutem um viacutenculo essencial com

ela sem que jamais dela se separe satildeo as coisas que tambeacutem possuem o

direito de portar seu nome para sempre (104a)

Portanto a proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute um tipo de dignataacuteria a quem

pertence originalmente o direito de portar seu nome para sempre Parece que Platatildeo

utiliza a imagem de membros de famiacutelias de alto prestiacutegio suas dignidades possuem o

direito de portar os tiacutetulos de nobreza da famiacutelia perpetuamente Formas satildeo aquelas que

possuem naturalmente esse privileacutegio Mas assim como em famiacutelias da nobreza tiacutetulos

de honra podem ser concedidos agravequeles que se agregam agrave famiacutelia por exemplo pelo

viacutenculo de casamento Essa metaacutefora sutilmente elaborada eacute o que daacute sustentaccedilatildeo a essa

passagem assim como a metaacutefora militar sustenta a ideia da incompatibilidade dos

151 Gallop 2002 p200

203

opostos Os opostos natildeo podem coexistir mas a Forma e aquilo que a possui estatildeo em

alianccedila perpeacutetua Vejamos os exemplos (104-c)

bull O nuacutemero trecircs possui um viacutenculo essencial com o iacutempar (Forma) ele

deve ser sempre designado com o seu nome (trecircs) mas tambeacutem com o

nome iacutempar (o nome da Forma que carrega consigo) O trecircs eacute sempre

iacutempar porque possui a Forma do iacutempar o que lhe agracia com o direito

de ldquonobrezardquo de ter o tiacutetulo para sempre

bull O mesmo se aplica ao nuacutemero cinco e ao demais nuacutemeros iacutempares eles

natildeo satildeo o iacutempar (τὸ περιττὸν a Forma) mas lsquocada um deles eacute sempre

iacutemparrsquo (ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός) (tem o direito de serem

perpetuamente chamados de iacutempares pelo viacutenculo inalienaacutevel com a

Forma)

bull O mesmo se aplica ao dois ao quatro e a todos os nuacutemeros pares eles

natildeo satildeo o par (τὸ ἄρτιον) mas lsquocada um deles eacute sempre parrsquo (ἕκαστος

αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί)

Em todos esses exemplos numeacutericos temos a relaccedilatildeo essencial entre um portador

que natildeo eacute uma Forma mas que possui um viacutenculo perpeacutetuo com uma Forma o que lhe

daacute o direito de ser chamado para sempre de certo nome Mas no primeiro exemplo

Platatildeo sugere que esse portador possui uma relaccedilatildeo com outra Forma a qual tambeacutem

lhe garante seu proacuteprio nome o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome (trecircs) Se o trecircs deve ser sempre designado com nome iacutempar por causa do seu

204

viacutenculo com o iacutempar (a Forma) o texto fortemente sugere que o trecircs eacute chamado de trecircs

por causa da sua relaccedilatildeo essencial com outra Forma Mas isto natildeo fica claro agora e

posteriormente teremos mais indiacutecios que apoiam esta tese que talvez seja essencial para

a compreensatildeo da uacuteltima prova da imortalidade da alma no Feacutedon

658 Coisas que natildeo admitem opostos (104b-c)

Neste proacuteximo passo temos algumas das passagens mais disputadas no Feacutedon

Primeiro Platatildeo busca esclarecer que natildeo eacute apenas o oposto que natildeo admite o oposto

rival mas tambeacutem o portador deste oposto A mesma ideia da incompatibilidade de

opostos toma lugar no diaacutelogo mas a ecircnfase recai sobre o portador dos opostos

ldquoNatildeo satildeo apenas aqueles opostos dos quais falamos (opostos muacutetuos)

que natildeo se admitem entre si mas tambeacutem as coisas que natildeo apresentam

respectivos opostos mas possuem um oposto (Forma) natildeo admitem

aquela Forma oposta ao oposto que estaacute neles (ἐκείνην τὴν ἰδέαν ἣ ἂν τῇ

ἐν αὐτοῖς οὔσῃ ἐναντία ᾖ) Se ocorresse de ela se aproximar essas coisas

que possuem opostos bateriam em retirada ou pereceriamrdquo (104b6-c3)

O exemplo do nuacutemero trecircs revela claramente o tipo de coisa em questatildeo o

nuacutemero trecircs natildeo eacute uma Forma mas eacute portador de uma Forma oposta ndash a Forma iacutempar

205

estaacute no trecircs Sendo assim o proacuteprio trecircs jamais acomodaraacute consigo a Forma oposta rival

(o par) (104c1-3)

Eacute importante notar que a metaacutefora militar continua em cena neste contexto da

lsquoresposta segura e inteligentersquo principalmente em 102d-104c A aproximaccedilatildeo da Forma

oposta pode trazer destruiccedilatildeo agraves coisas que possuem um Forma oposta Eacute interessante

observar que o mesmo verbo lsquoperecerrsquo - ἀπόλλυμι - que Soacutecrates utiliza na sua

autobiografia intelectual (96a 97b 97c) quando relata a fase em que estava em busca

da causa da geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo eacute empregado pelo menos seis vezes em 102d-104c

para expressar a ideia da metaacutefora militar Temos a sugestatildeo de que Platatildeo ainda estaacute

discutindo como as coisas surgem e como satildeo destruiacutedas mas a partir de uma nova

noccedilatildeo de αἰτίαι e num contexto completamente novo Formas satildeo αἰτίαι e agora Platatildeo

explica como elas fazem com que as coisas sejam o que elas e como elas participam na

destruiccedilatildeo de coisas Sobrevindo uma Forma oposta rival as coisas que possuem uma

Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι) Na chegada do par o nuacutemero trecircs perece

Geralmente passa despercebido que a partir de 104d Platatildeo natildeo emprega

diretamente a metaacutefora militar na discussatildeo ndash a ideia de fugir e partir em retirada (ἢ

φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ) ou de perecer na chegada da Forma oposta (ἢ προσελθόντος

ἐκείνου ἀπολωλέναι) natildeo eacute mais mencionada diretamente e parece arrefecer com a

introduccedilatildeo de Formas que natildeo admitem opostos rivais daquele que carrega consigo

659 Outras coisas que natildeo admitem opostos (104c-105b)

206

Neste novo passo o desafio proposto pela personagem Soacutecrates eacute definir lsquoque

tipo de coisas satildeo essasrsquo ou seja quais satildeo essas coisas indefinidas ateacute entatildeo que

tambeacutem natildeo admitem Formas opostas

ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas natildeo resistem ao avanccedilo das rivais

mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao avanccedilo dos opostosrdquo (οὐκ

ἄρα μόνον τὰ εἴδη τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα ἄλληλα ἀλλὰ καὶ ἄλλ᾽ ἄττα

τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα) (104c7-9)

ldquoEntatildeo vocecirc gostaria disse se fosse possiacutevel que determinaacutessemos que tipo de

coisas elas satildeo (βούλει οὖν ἦ δ᾽ ὅς ἐὰν οἷοί τ᾽ ὦμεν ὁρισώμεθα ὁποῖα ταῦτά

ἐστιν) (104c11-12)

Platatildeo jaacute havia estabecido que a Forma oposta que estaacute em algo natildeo pode

admitir acomodar ou coexistir com a Forma oposta Agora ele introduz um novo

sujeito que natildeo eacute a Forma oposta mas uma Forma que traz a Forma oposta para aquilo

que ocupa Agora nem a coisa ocupada pela Forma oposta pode acomodar em si a

Forma oposta rival nem mesmo a Forma que traz a Forma oposta para o objeto que

ocupa poderaacute admitir essa Forma oposta rival Eacute certamente desta Forma que natildeo eacute um

oposto mas natildeo admite opostos que Soacutecrates pergunta se Cebes quer definir

A questatildeo colocada em 104c7-9 ndash ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas

natildeo resistem ao avanccedilo das rivais mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao

avanccedilo dos opostosrdquo ndash (104c7-9) e que levanta o pedido pela determinaccedilatildeo desse lsquotipo

de coisasrsquo (104c11-12) natildeo tem em si mesma nenhum elemento que a comprometa

207

unicamente com a ideia de algo que participa de uma Forma Vejamos que nesta

questatildeo especiacutefica

bull Soacutecrates natildeo sugere a ideia de que as coisas em questatildeo possuem opostos

nelas (como em 104b6-c3) o que necessariamente indicaria que Platatildeo

estaria falando de portadores que carregam opostos em si Essa parte eacute

omitida e a ideia eacute geneacuterica algumas outras coisas

bull Agora Soacutecrates utiliza ἄττα um pronome indefinido o qual deixa a

questatildeo em aberto Eacute realmente estranha a sugestatildeo de uma indefiniccedilatildeo

quando jaacute havia sido dada uma resposta para o problema o portador de

opostos inclusive com o exemplo do nuacutemero trecircs (104c8)

Se realmente levarmos em consideraccedilatildeo a indefiniccedilatildeo sugerida pelo pronome

poderiacuteamos considerar que Platatildeo poderia estar sugerindo um terceiro elemento que

engrossaria essa linha de resistecircncia contra o oposto rival

bull Uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta rival

bull A coisa que participa de uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta

que rivaliza com a Forma oposta que carrega em si

bull Um elemento indefinido tambeacutem natildeo admitiria a Forma oposta que

rivaliza com a Forma oposta que um portador carrega em si

208

Mas os termos empregados por Platatildeo satildeo ambiacuteguos natildeo apenas ἄττα mas o

pronome demonstativo ταῦτά em lsquoque tipos de coisas satildeo essasrsquo (ὁποῖα ταῦτά ἐστιν)

(104c11-12) sugerem que eacute algo novo Embora haja duas possiacuteveis interpretaccedilotildees para

aquilo que se quer definir com base na obscura construccedilatildeo gramatical em 104d1-3 ndash as

coisas ocupadas por Formas e as Formas que ocupam coisas ndash a nossa opccedilatildeo eacute pela

ideia de que essas coisas satildeo lsquoaquelas que ocupam algo e as compelem a adquirir a sua

proacutepria Forma e uma Forma opostarsquo Essa interpretaccedilatildeo se baseia principalmente no

passo seguinte com o exemplo da Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) que eacute aquilo que

ocupa trecircs e o compele ser trecircs e iacutempar (104d5-7) Fazendo uma revisatildeo a pergunta

lsquoque tipo de coisas satildeo essasrsquo nos remete a lsquoaquelas coisas que ocupam outras e as

compelem a possuir a sua proacutepria Forma e a Forma opostarsquo que por sua vez nos remete

agrave Forma do trecircs que eacute o sujeito que ocupa e compele e que por sua vez faz com que

trecircs seja necessariamente trecircs e iacutempar

A Forma do trecircs eacute responsaacutevel inclusive pela Forma oposta nas coisas Tambeacutem

vale lembrar que ao comentarmos 104c vimos que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado como iacutempar por causa do seu viacutenculo essencial com a Forma oposta (iacutempar)

que carrega consigo mas Platatildeo tambeacutem afirma que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado com o seu nome (trecircs) sem explicar por que deixando a questatildeo em aberto

Mas agora temos a sugestatildeo de que o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome por causa da Forma do trecircs Natildeo eacute por acaso que temos agora justamente a Forma

de trecircs (104d)

Platatildeo entatildeo firma a ideia ldquoa Forma oposta natildeo poderia jamais sobrevir agravequela

Forma que realiza esse trabalhordquo (ἡ ἐναντία ἰδέα ἐκείνῃ τῇ μορφῇ ἣ ἂν τοῦτο

ἀπεργάζηται οὐδέποτ᾽ ἂν ἔλθοι) (104d9-10) O verbo ἀπεργάζομαι sugere que a ideia

209

de lsquocausarsquo neste contexto eacute bem mais desenvolvida do que a mera ideia de

lsquoresponsabilidadersquo no contexto da resposta segura mas ignorante Agora Formas fazem

algo e assim produzem um efeito num objeto particular Antes jaacute tiacutenhamos a ideia de

participaccedilatildeo ndash lsquoFormasrsquo estatildeo presentes em contato ou comunhatildeo (κοινωνία παρουσία

100d5 6) com as coisas e satildeo responsaacuteveis por fazer com que elas sejam o que elas satildeo

Mas agora os verbos revelam uma atividade que gera causa ou produz um efeito nos

objetos particulares A partir de 104c a linguagem do movimento forccedila possessatildeo

domiacutenio e trabalho caracterizam plenamente as Formas elas ocupam (κατέχω)

particulares compelem-nos (ἀναγκάζω) a adquirir certas qualidades carregam

(ἐπιφέρω) consigo outras Formas natildeo admitem (δέχομαι ) as Formas opostas rivais e

produzem (ἀπεργάζομαι) algo naquilo que ocupa152 O verbo ἀπεργάζομαι traz a ideia

de um trabalho realizado e trazido ao fim A μορφή eacute um sujeito ativo cujo trabalho

produz o resultado esperado ela caracteriza aquilo que ocupa de duas maneiras por ela

mesma (a proacutepria Forma) e pela Forma oposta que carrega consigo Portanto aqui jaacute

podemos falar de Formas como αἰτία num sentido que vai bem aleacutem de mera

lsquoresponsabilidadersquo Forma neste contexto eacute um agente ativo de uma ordem mais alta de

realidade que eacute literalmente ldquoresponsaacutevel porrdquo fazer com que um efeito especiacutefico seja

produzido num objeto particular Formas satildeo a causa verdadeira que a personagem

Soacutecrates estava agrave procura Pelo menos esta eacute a mensagem que o texto sugere

O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao ontoloacutegica entre a lsquoForma em

sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica entre elas ndash uma Forma

suprema e uma Forma subordinante Mas pelo menos temos a sugestatildeo de que eacute papel

152 Cf Teloh 1975 p 21

210

da lsquoForma em sirsquo trazer a lsquoForma em noacutesrsquo e produzir causar ou fazer com que a coisa

que ocupa seja o que ela eacute (104d)

A Forma eacute vista agora como principal responsaacutevel pelas coisas serem o que satildeo

bull A Forma Trecircs determina que aquilo que ela ocupa seja trecircs ndash a coisa

ocupada pela Forma trecircs eacute necessariamente trecircs

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel por carregar a Forma oposta para a coisa

que ocupa eacute dessa maneira que ela tambeacutem determina que aquilo que ela

ocupa tambeacutem seja iacutempar

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel pela exclusatildeo da Forma oposta Iacutempar

A Forma eacute agora natildeo apenas uma forccedila de ocupaccedilatildeo mas um combatente que

traz consigo um aliado na prevenccedilatildeo e defesa da aacuterea ocupada contra a chegada do

oposto rival Agora natildeo apenas a coisa ocupada natildeo admite a Forma oposta mas

tambeacutem a proacutepria Forma que ocupa natildeo admite a Forma oposta rival da Forma que ela

traz para a coisa que ocupa

A passagem seguinte eacute uma extensatildeo daquilo que foi apresentado agora e deve

ser interpretada agrave luz do que foi dito Alguns pontos satildeo explicitados a comeccedilar pela

ideia de que a Forma traz consigo uma Forma oposta para as coisas que ocupam e

jamais admite o oposto daquilo que leva consigo Para explicar essa nova ideia um novo

verbo empregado o verbo ἐπιφέρει eacute utilizado para descrever a accedilatildeo da Forma que

mesmo natildeo sendo um oposto carrega consigo outra Forma (a Forma oposta) (104e-

105a) O verbo eacute utilizado especificamente aqui em 104e-105a em conexatildeo com o que

211

foi apresentado em 104d para trazer luz ao trabalho realizado pela Forma o trabalho de

carregar a Forma oposta para aquilo que ocupa Pelo menos trecircs exemplos mostram que

a Forma carrega consigo a Forma oposta

bull ἡ τριὰς (a Forma Triacuteade) ἡ δυὰς (a Forma Dois) τὸ πῦρ (a Forma Fogo)

ndash natildeo sendo um oposto (οὐκ οὖσα ἐναντία) carrega sempre consigo um

oposto (τὸ ἐναντίον ἀεὶ αὐτῷ ἐπιφέρει) e jamais admite (δέχεται) o

oposto rival do que carrega consigo (104e8-105a5)

Por fim Soacutecrates reforccedila a ideia novamente

ldquoNatildeo apenas o oposto natildeo admite o seu oposto mas haacute tambeacutem aquilo

que carrega um oposto para a coisa que ocupa e isto que carrega nunca

admite o oposto do que carregardquo

μὴ μόνον τὸ ἐναντίον τὸ ἐναντίον μὴ δέχεσθαι ἀλλὰ καὶ ἐκεῖνο ὃ ἂν

ἐπιφέρῃ τι ἐναντίον ἐκείνῳ ἐφ᾽ ὅτι ἂν αὐτὸ ἴῃ αὐτὸ τὸ ἐπιφέρον τὴν τοῦ

ἐπιφερομένου ἐναντιότητα μηδέποτε δέξασθαι ( 105a2-5)

Essa lista de exemplos numeacutericos provavelmente eacute uma lista de Formas uma

vez que temos nesta passagem um desenvolvimento da ideia apresentada em 104d ἡ

τριὰς ἡ δυὰς τὸ πῦρ τὰ πέντε τὰ δέκα τὸ διπλάσιον τὸ ἡμιόλιον τὸ ἥμισυ (1004e-

105b) certamente satildeo Formas e em 104d-105b procuram estabelecer o princiacutepio de que

212

Formas satildeo causas que ocupam objetos carregam consigo as Formas opostas e realiza

neles uma obra completa fazendo com que eles sejam o que eles satildeo e prevenindo a

chegada de qualquer oposto rival Vaacuterios exemplos satildeo apresentados para ratificar a

ideia de que a Forma mesmo natildeo sendo um oposto natildeo admite o oposto daquele

oposto que carrega consigo (105a-b)

Depois de estabelecer o princiacutepio essencial que envolve Formas Formas opostas

e coisas ocupadas Soacutecrates se oferece para refrescar a memoacuteria do Cebes ainda que

esteja sendo repetitivo ldquoMas lembre-se mais uma vez pois natildeo haacute mal algum em ouvir

isso muitas vezesrdquo (πάλιν δὲ ἀναμιμνῄσκου οὐ γὰρ χεῖρον πολλάκις ἀκούειν) (105a5-

6) Os exemplos podem ser divididos em duas etapas

bull Cinco natildeo admitiraacute a Forma do par153

bull Dez o dobro de cinco natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar (que eacute o oposto da

Forma do par que o dez carrega consigo)

bull Dobro (embora seja oposto de algo) natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar

bull Fraccedilotildees como frac12 e outras assim natildeo admitiratildeo a Forma do todo

6510 Exemplos adicionais (105b-c)

Ao final Soacutecrates convida Cebes para voltar ao comeccedilo e apresenta alguns

exemplos adicionais que introduzem o caso da alma Eacute difiacutecil saber se Platatildeo continua a

153 Platatildeo omite ἡ ἰδέα mas ela pode ser recuperada no contexto imediato numa construccedilatildeo

semelhante agrave que emprega agora ἐπὶ τὰ τρία ἄρα ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει (104e1) τὰ

πέντε τὴν τοῦ ἀρτίου οὐ δέξεται (105a6-7)

213

desenvolver a ideia de ocupaccedilatildeo em continuaccedilatildeo com o contexto anterior a ideia de que

a Forma ocupa algo A ruptura com o contexto anterior pode ter ocorrido quando

Soacutecrates deixa os exemplos eminentemente numeacutericos e convida a voltar ao comeccedilo

Por outro lado eacute tambeacutem possiacutevel que ele utilize exemplos adicionais para retomar a

ideia de uma Forma ocupar algo Em 104d o verbo κατέχω eacute utilizado e agora em

105b-d o verbo ἐγγίγνομαι ndash lsquoentrar ir pararsquo ndash eacute utilizado trecircs vezes depois uma vez

mais no caso da alma Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas movendo-se

para objetos particulares e neles produzindo efeitos eacute o mais comum 102e1 103d7

d10 104b10 c7 Se realmente Platatildeo continua com essa ideia desenvolvida no contexto

anterior Fogo Febre e Unidade satildeo Formas que entram nas coisas trazem consigo a

Forma oposta e produzem nela um efeito calor doenccedila imparidade Vejamos os

exemplos em 105b8-c6

bull O que vem para o corpo que o torna quente natildeo eacute o calor mas o fogo

bull O que vem para o corpo que o torna enfermo natildeo eacute a doenccedila mas a

febre

bull O que vem para o nuacutemero que o torna par natildeo eacute a imparidade mas a

unidade

Gallop lembra que se esses exemplos forem tomados como Formas o sentido da

relaccedilatildeo entre Formas e as coisas que elas ocupam natildeo eacute meramente loacutegico mas

causal154

154 Gallop 2002 p221

214

Finalmente os exemplos introduzem a alma e com isso o uacuteltimo argumento

bull O que vem para o corpo que o torna vivo eacute a alma (105c8-d4)

215

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)

O argumento final propriamente dito comeccedila precisamente em 105c9 e finda em

107b10155 A tradiccedilatildeo interpretativa diverge na delimitaccedilatildeo do argumento mas nos

parece claro que a etapa que interpotildee entre as objeccedilotildees de Cebes e o uacuteltimo argumento

propriamente dito que soacute eacute introduzido em 105c visa preparar o terreno para a

compreensatildeo do uacuteltimo argumento mas natildeo deve ser confundido com o argumento

propriamente dito

O argumento eacute introduzido com o fim de responder as objeccedilotildees gerais de Cebes

de que a alma pode passar por diversos ciclos de reencarnaccedilotildees e ao final ser destruiacuteda

Isto indica que desde o iniacutecio o argumento pretende lidar com almas individuais Aleacutem

disso o amplo contexto do Feacutedon nos mostra que as demonstraccedilotildees visam assegurar

que a alma de Soacutecrates natildeo pereceraacute na ocasiatildeo da morte O problema colocado por

Cebes era justamente que sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι

ὡς ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou vaacuterias vezes

num corpo e a questatildeo de Cebes tem em vista a alma de Soacutecrates e o receio dos seus

disciacutepulos de que ela seria dispersa e destruiacuteda na hora da morte (Cf 95b-e) A palavra

alma (ψυχή) aparece sem o artigo e no singular ao longo do argumento e na conclusatildeo

em 106e8-107a1 temos a palavra no singular e tambeacutem no plural ndash lsquoalmarsquo e lsquoas nossas

almarsquo (ἡμῶν αἱ ψυχαὶ) o que revela que o argumento estaacute tratando de almas individuais

Informaccedilotildees adicionais sobre a natureza da alma em questatildeo seratildeo apresentadas adiante

155 Keyt 1963 p 169 ldquoO argumento propriamente dito para a imortalidade da alma comeccedila com

a afirmaccedilatildeo de que a alma sempre chega a tudo o que ocupa tendo vida em 105crdquo

216

71 Estrutura baacutesica do argumento e Comentaacuterio

O argumento eacute relativamente simples Eis a estrutura baacutesica do argumento eacute a

seguinte

[1] A alma sempre carrega vida para o que ela ocupa (105c9-d5)

[2] A vida eacute oposta agrave morte (105d6-9)

Portanto

[3] A alma jamais admitiraacute a morte e portanto eacute imortal (105d10-e9)

Portanto

[4] Se o imortal fosse indestrutiacutevel a alma seria indestrutiacutevel (105e10-106d1

e1-4)

[5] O imortal eacute indestrutiacutevel (106d2-9)

Portanto

[6] A alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)

Vejamos uma explanaccedilatildeo do argumento

217

A exegese textual levanta a suspeita de que a primeira premissa eacute construiacuteda a

partir de um paralelo com 104d1-7156 O elemento mais importante eacute a ideia de

lsquoocupaccedilatildeorsquo com o emprego do verbo κατέχω em 104d e 105d

ἃ ὅτι ἂν κατάσχῃ (104d)

ὅτι ἃ ἂν ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ (104d)

ψυχὴ ὅτι ἂν αὐτὴ κατάσχῃ (105d)

lsquoqualquer coisa que aqueles ocupemrsquo

lsquoquaisquer coisas que a Forma do trecircs ocupersquo

lsquoqualquer coisa que a alma ocupersquo

Temos entatildeo uma relaccedilatildeo entre os dois contextos mas com uma diferenccedila

crucial ndash o sujeito

156 Pelo menos Hackfort (1998 p162) e Keyt (1963 p169) defendem a ideia de que essa

primeira declaraccedilatildeo do argumento final em 105d3-5 manteacutem um paralelo com 104d5-7 A

exegese textual confirma esse paralelo Platatildeo natildeo dependeria especificamente do vocabulaacuterio

em 104d sem uma razatildeo forte para isso A dificuldade eacute saber o que o exegeta vai fazer com esta

informaccedilatildeo

218

Sujeito Predicado Objeto

ἃ κατάσχῃ ὅτι (particular)

ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ ὅτι (particular)

ψυχὴ κατάσχῃ ὅτι (particular ndash corpo)

Enquanto o sujeito em 104d eacute a Forma que ocupa um particular em 105d o

sujeito eacute a alma Temos aqui o que poderia ser o primeiro grande embaraccedilo no uacuteltimo

argumento apesar de natildeo haver nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de uma Forma da alma no

uacuteltimo argumento algueacutem pode sugerir que ela seria requerida pelo paralelo

(104d105d) Se aplicaacutessemos o modelo e princiacutepio de 104d para o caso da alma talvez

tiveacutessemos a Forma da alma como segue

Trecircs Alma

Forma do trecircs Forma da alma

Forma do trecircs ocupa algo e carrega consigo

a Forma oposta ndash a Forma do iacutempar

Forma da alma ocupa algo e carrega consigo a

Forma oposta ndash a Forma da Vida

Forma do trecircs produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente trecircs e

iacutempar

Forma da alma produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente alma e

viva

Forma do trecircs natildeo admite a Forma oposta

(Forma do par) que rivaliza com a Forma

que carrega (Forma do iacutempar)

Forma da alma natildeo admite a Forma oposta

(Forma da morte) que revaliza com a Forma que

carrega ndash a Forma da vida

219

Alguns comentadores antigos e contemporacircneos insistem na ideia de que existe

uma Forma da alma e que assim como particulares participam em Formas as almas

individuais participam na Forma da alma sobretudo por causa do paralelo entre 104d e

105d Archer-Hind admite que a ideia de uma Forma da alma eacute uma mostruosidade

metafiacutesica da qual natildeo podemos escapar no Feacutedon157 O inteacuterprete contemporacircneo

Prince se esforccedila para provar a tese de que existe uma Forma da alma e que ela

desempenha um papel central no uacuteltimo argumento para a imortalidade da alma De

iniacutecio ele apela para o argumento de que Platatildeo natildeo diz que existe uma Forma da alma

mas tambeacutem natildeo rejeita esta ideia158 Apesar do seu esforccedilo para provar a sua tese o

silecircncio de Platatildeo natildeo pode ser tomado como uma fala em favor de uma Forma da alma

da qual o argumento final depende Talvez Platatildeo pudesse ateacute construir um argumento

melhor com base na existecircncia de uma Forma da alma seguindo a ideia de 104d1-7

Mas natildeo o fez ou porque natildeo considerava a possibilidade da existecircncia de uma Forma

da alma ou porque simplesmente desprezou essa possibilidade ou por algum outro

motivo O silecircncio absoluto de Platatildeo nos diz simplesmente que uma Forma da alma eacute

algo que natildeo estaacute presente no argumento final ainda que possa existir

Voltando agrave questatildeo do paralelo estaacute bem claro que Platatildeo natildeo o manteacutem no

uacuteltimo argumento Existe uma diferenccedila significativa entre o emprego do verbo κατέχω

em 104d e 105d no primeiro caso a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα ἡ τριάς) ocupa o

nuacutemero trecircs e eacute a causa pela qual trecircs eacute trecircs e eacute iacutempar Em 105d o cenaacuterio muda a

157 Archer-Hind 1894 p 116

158 Prince 2011 p1-2

220

alma ocupa o corpo e natildeo eacute a causa pela qual o corpo eacute 159 O elemento que

aparentemente remanesce eacute que tanto a Forma do trecircs quanto a alma trazem uma Forma

para aquilo que ocupam

Mas a ideia das duas passagens paralelas levou alguns comentadores a acreditar

que para seguir de perto o paralelo entre 104d1-7 e 105d3-5 no uacuteltimo argumento a

alma eacute uma Forma ou eacute considerada como tal

(i) Hackfort defende que a alma jaacute eacute considerada como uma Forma

imanente juntamente com todos os exemplos apresentados em 105c o

fogo a febre a unidade e conclui que o uso do verbo κατέχω em 105d

com base em 104d revela sem sombra de duacutevida que o que estaacute em jogo

no uacuteltimo argumento eacute a alma como Forma imanente que ocupa o

corpo160

(ii) Keyt tambeacutem considera que o argumento final inicia com uma

declaraccedilatildeo que eacute paralela a 104d5-7 e chega a uma conclusatildeo um pouco

diferente embora natildeo possamos dizer que no uacuteltimo argumento Platatildeo

admite que a alma eacute uma Forma eacute plausiacutevel dizer que ele a trata como se

fosse uma Forma imanente e a primeira premissa simplesmente admite

159 Cf Archer-Hind 1894 p 116

160 Hackfort 1998 p162

221

que qualquer coisa que tem a alma tem vida ou seja quando uma alma

estaacute presente em um corpo esse corpo estaacute vivo 161

Mas essa posiccedilatildeo estaacute longe de ser defensaacutevel Como diz Dixsaut Platatildeo natildeo diz

que existe uma Forma e evita cuidadosamente dizer isso 162 E se a alma fosse uma

Forma no Feacutedon seria suficiente simplesmente assumir que ela eacute eterna imortal e

incorruptiacutevel como todas as outras

Aleacutem de todos esses argumentos eacute necessaacuterio observar que apesar da insinuaccedilatildeo

textual de que as passagens 104d e 105d apresentam um paralelo na verdade os uacuteltimos

exemplos que Platatildeo apresenta e que introduzem a alma no cenaacuterio mostram que

Platatildeo jaacute natildeo mais estaacute seguindo exatamente a ideia apresentada em 104d A ideia de

uma Forma do trecircs natildeo exerce influecircncia sobre os exemplos em 105b8-c6 fogo febre

unidade

Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas se movendo para objetos

particulares e neles produzindo efeito eacute comum mas no caso de fogo febre unidade

alma natildeo temos uma clara indicaccedilatildeo de que satildeo Formas O contexto sugere que

Soacutecrates estaacute aqui lidando com uma Forma do fogo por exemplo assim como 104d

temos a Forma do trecircs Este eacute um problema constante nesta seccedilatildeo nem sempre Platatildeo

tem o interesse de explicitar o status metafiacutesico de diferentes tipos de coisa Sedley diz

que uma causa no Feacutedon pode ser uma coisa fiacutesica como o fogo um processo

161 Keyt 1963 p169

162 Dixsaut 1991 p 397

222

matemaacutetico como adiccedilatildeo o bem alma a inteligecircncia ou uma Forma como grandeza ou

pequenez163 Mas vale lembrar que nem sempre o texto eacute completamente vago e

hermeacutetico A ausecircncia de especificaccedilotildees 105b8-c6 jaacute pode ser um primeiro indiacutecio de

que Platatildeo natildeo trata de uma Forma Ademais natildeo eacute difiacutecil ver como esses objetos que

desempenham um papel crucial na prova final (fogo febre unidade) tem um tratamento

diferente de 1054d onde a Forma do trecircs ocupa algo e o compele a ser trecircs e iacutempar Em

105b8-c6 temos uma ideia diferente

(i) o Fogo que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(ii) a Febre que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(iii) a Unidade que vem para o nuacutemero natildeo faz com que o nuacutemero seja

nuacutemero

(iv) a Alma que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

Platatildeo estaacute realmente preparando o leitor para o uacuteltimo argumento de modo que

dois dos trecircs exemplos apresentam o corpo (fogo-corpo febre-corpo) para facilitar a

transiccedilatildeo para o exemplo alma-corpo Tambeacutem eacute importante observar que 104d eacute

apresentado como resposta para a busca por alguma outra coisa que natildeo eacute um oposto

mas natildeo admite o oposto rival do oposto que carrega consigo O uacutenico exemplo

numeacuterico em 105b-c rompe com essa ideia de 104d porque o dobro tambeacutem possui um

oposto Talvez a inclusatildeo deste elemento que possui um oposto seja uma abertura para a

possibilidade de no proacuteximo argumento considerarmos a proacutepria alma e corpo como

163 Sedley 1998 p 115

223

opostos O ponto que eacute necessaacuterio observar eacute que os uacuteltimos exemplos natildeo seguem

completamente 104d e servem de modelo para o caso da alma

Portanto o contexto realmente natildeo sugere que esses uacuteltimos exemplos sejam

tomados como Formas Se quisermos comparar temos na verdade o seguinte

(i) Em 104d1-7 Forma do Trecircs ndash trecircs (objeto que a Forma ocupa e compele

a ser o que eacute) ndash Forma oposta que a Forma do Trecircs carrega consigo

(iacutempar) ndash Forma oposta rival (par)

(ii) Em 105b8-c6 Fogo ndash corpo (objeto que o fogo ocupa) ndash calor (qualidade

essencial que o fogo possui)

(iii) Em 105d3-5 Alma ndash corpo (objeto que a alma ocupa) ndash vida (qualidade

essencial que a alma possui) Forma da Vida (Forma na qual a alma

participa) ndash Forma oposta rival (morte)

Aleacutem disso temos no Feacutedon Formas que trazem Formas opostas para aquilo que

ocupam (104d) mas nunca Formas que participam em Formas Isto mostra que nos

exemplos em 105b-c fogo por exemplo natildeo eacute uma Forma Fogo tem em si a

caracteriacutestica de uma Forma ndash o calor ndash porque participa numa Forma assim como o

nuacutemero trecircs eacute iacutempar porque participa na Forma do iacutempar Neste caso se fogo fosse uma

Forma estariacuteamos admitindo que Forma participa numa Forma e isto natildeo eacute o caso

O mesmo se aplica agrave alma a qual possui a qualidade essencial ndash vida ndash porque

participa na Forma da vida Eacute descabido pensar que a alma eacute uma Forma que participa

em outra Forma A conclusatildeo de Hackfort e outros comentadores de que a alma eacute uma

224

Forma com base no paralelo entre 104d e 105d natildeo procede Eacute improvaacutevel que Platatildeo

queira provar que a alma eacute imortal se ao mesmo tempo a considera uma Forma uma vez

que no Feacutedon a imortalidade das Formas eacute simplesmente assumida Como diz Loriaux

estamos convencidos de que se o Feacutedon natildeo diz em nenhum lugar que a alma eacute uma

Forma eacute porque nunca pretendeu fazecirc-lo164

Em suma o argumento final natildeo eacute de modo algum apresentado com base na

ideia de uma Forma da alma nem mesmo a alma individual eacute uma Forma transcendente

ou uma Forma imanente Nenhuma dessas leituras possui apoio textual seguro e

definitivo

Portanto seria a alma um tipo de ser com um status ontoloacutegico intermediaacuterio

Seria a alma uma entidade que natildeo eacute uma Forma nem um objeto particular mas que

estaacute entre os dois A resposta deve considerar especialmente o argumento das

afinidades

No argumento das afinidades Platatildeo caracteriza dois grupos de seres Formas

fazem parte do grupo de coisas invisiacuteveis imortais invariaacuteveis eternas e objetos

particulares Mas imediatamente apoacutes a divisatildeo apresenta a alma como ser que possui

extrema semelhanccedila e afinidade com as Formas e que ao mesmo tempo possui alguma

semelhanccedila com objetos particulares tambeacutem a alma pode sofrer mudanccedila por

exemplo Portanto temos pelo menos uma sugestatildeo de que a alma natildeo pertenceria a

nenhum dos dois grupos e talvez Bostock esteja certo ao dizer que natildeo haacute razatildeo para

acreditar que na ontologia platocircnica soacute existe lugar para apenas duas classes de coisas

Formas e particulares165

164 Loriaux 1975 p132

165 Bostock 1989 118

225

Se a alma fosse uma Forma natildeo seria necessaacuterio provar que ela eacute imortal mas

se Platatildeo a considerasse como particular teriacuteamos um conflito no Feacutedon enquanto

Platatildeo tenta provar que a alma eacute imortal ao mesmo tempo se esforccedila para caracterizar

objetos particulares como membros de uma classe de coisas passiacuteveis agrave dissoluccedilatildeo e

destruiccedilatildeo Portanto eacute plausiacutevel que a alma esteja numa posiccedilatildeo ldquointermediaacuteriardquo

enquanto se relaciona harmonicamente com as Formas quando opera sem a mediaccedilatildeo

corporal e compartilha algumas de suas caracteriacutesticas mas natildeo todas Por outro lado

assim como particulares a alma pode sofrer variaccedilatildeo mudanccedila

O argumento das afinidades provoca um impacto no proacuteprio Cebes o qual

entende que a alma natildeo eacute uma Forma mas tambeacutem reconhece que ela eacute superior em

relaccedilatildeo ao corpo (91e-92a95c) eacute robusta divina longeva goza da capacidade de

existecircncia sem o corpo (preexistecircncia) e de conhecer Formas o que seria impossiacutevel

para membros comuns da classe de coisas visiacuteveis

No argumento final propriamente dito a vida e a morte satildeo opostos Tudo que

possui a alma eacute vivo Eacute portanto a alma que traz vida ao corpo A proacutepria alma carrega

consigo uma Forma da vida Ela natildeo eacute um oposto mas natildeo admite o oposto rival do

oposto que leva consigo ou seja natildeo admite a morte

O argumento comeccedila em 105d com um paralelo com 104c1-3 Formas que

trazem consigo Formas opostas e natildeo admitem as Fomas rivais Assim como as Formas

as almas ocupam um objeto Soacute temos esse paralelo entre almas e Formas no Feacutedon

Neste caso poderiacuteamos ateacute pensar que Platatildeo estaria apresentando um terceiro tipo de

coisa que natildeo eacute oposto mas carrega um oposto e natildeo admite um oposto rival ndash a alma

um intermediaacuterio Esta seria a maneira mais harmocircnica de entender o porquecirc do paralelo

226

entre almas que ocupam um corpo e o compele a ser vivo e Formas que ocupam um

nuacutemero e o compele a ser iacutempar Sendo um intermediaacuterio a semelhanccedila eacute explicada

Platatildeo tem que lidar com o problema apresentado antes a possibilidade de a

alma sofrer um ataque da Forma rival restando uma das duas opccedilotildees bater em retirada

ou perecer (Cf 104b6-c3) Caso o oposto rival arremeta contra o nuacutemero trecircs ele bateraacute

em retirada ou pereceraacute (ἀλλ᾽ ἐπιούσης αὐτῆς ἤτοι ἀπολλύμενα ἢ ὑπεκχωροῦντα)

(104b10-c1) E se isto puder acontecer com a alma Platatildeo estaria assumindo que a alma

pode perecer Teriacuteamos o seguinte com base em 104b-c

Almas satildeo objetos particulares que carregam a Forma da vida e assim

jamais admitiratildeo a morte Isto significa que elas jamais admitiratildeo

acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte Quando a Forma rival

arremeter contra a alma ou ela bateraacute em retirada ou tombaraacute morta

Mas o argumento claramente elimina esta possibilidade Platatildeo tenta mostrar que

a alma possui uma relaccedilatildeo essencial com uma Forma cuja natureza natildeo pode aceitar de

modo algum lsquomortersquo a Forma da vida Sendo assim a alma eacute essencialmente viva a

Forma oposta natildeo pode trazer morte para aquilo que carrega consigo a Forma da vida O

que acontece quando a alma sofre o ataque da Forma oposta eacute o seguinte ldquoSendo

assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao que parece

tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo ela parte

retirando-se da presenccedila da morterdquo (106e4-6)

O segundo modelo de coisas que natildeo satildeo opostos mas natildeo admitem opostos (o

caso das Formas) parece providenciar um exemplo de algo que natildeo pode perecer com o

227

ataque da Forma rival a proacutepria Forma que ocupa algo As Formas satildeo imortais e

indestrutiacuteveis assim como as almas segundo a conclusatildeo do argumento final Quando

as Formas que ocupam algo sofrem o ataque de uma Forma rival elas saem ilesas e

intactas Portanto o viacutenculo essencial das almas com aquilo que a torna essencialmente

viva e imortal faz com que ela seja como as Formas que ocupam um objeto e natildeo

podem perecer pelo ataque da Forma rival daquela que carrega consigo Se a alma for

uma entidade diferenciada um intermediaacuterio eacute mais faacutecil entender essa aproximaccedilatildeo

entre alma e Forma Se a considerarmos um intermediaacuterio teriacuteamos o seguinte com

base no modelo apresentado no contexto anterior em 104d

Almas satildeo intermediaacuterios que carregam a Forma da vida e assim jamais

admitiratildeo a morte (Cf105d10-e9) Isto significa que elas jamais

admitiratildeo acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte e que elas

natildeo pereceratildeo por ocasiatildeo da arremetida da Forma rival assim como eacute

impossiacutevel que uma Forma rival golpeie e aniquile uma Forma que

ocupa um corpo e carrega uma Forma oposta

Assim com as Formas satildeo ldquoblindadasrdquo contra os ataques das Formas rivais as

almas satildeo ldquoblindadasrdquo ou seja imunes agrave morte por causa do seu viacutenculo com a Forma

da vida A fase final da prova lida com o problema da aproximaccedilatildeo dos opostos nos

exemplos apresentados na etapa anterior sobrevindo uma Forma oposta rival os

particulares que possuem uma Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι)

O encontro com a Forma rival termina imediatamente com uma das duas

possibilidades fuga ou perecimento (104b6-c3) Platatildeo percebe este problema e

228

soluccedilatildeo para ele eacute que a alma por seu viacutenculo com a Forma da vida eacute essencialmente

viva e para Soacutecrates isto significa que ela eacute imortal Soacutecrates e Cebes tambeacutem

concluem que tudo que eacute imortal eacute indestrutiacutevel porque se o imortal natildeo fosse

indestrutiacutevel nada mais seria (Cf 106e) Portanto neste argumento Platatildeo associa as

ideias de vida imortalidade e indestrutibilidade (106d2-9)

(i) Tudo o que tem a alma eacute essencialmente vivo

(ii) Tudo o que eacute essencialmente vivo eacute ἀθάνατος

(iii) Tudo o que eacute ἀθάνατος eacute indestrutiacutevel

(iv) Portanto tudo que tem uma alma eacute indestrutiacutevel

(v) Portanto a alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)166

Eacute interessante observar que no contexto do argumento ciacuteclico alma viva eacute alma

reencarnada e alma morta eacute alma desencarnada Agora a proacutepria alma e natildeo o corpo

animado (alma alojada no corpo) eacute imortal e indestrutiacutevel lsquoIndestrutiacutevelrsquo e lsquoimortalrsquo natildeo

satildeo mais a pessoa que tem a alma mas a proacutepria alma

O argumento final eacute o uacutenico argumento no Feacutedon cuja conclusatildeo decisivamente

declara que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Eacute sem duacutevida o argumento que mais se

aproxima de uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma

Contudo a uacuteltima prova da imortalidade da alma apresenta falhas e dificilmente

se estabelece como prova da imortalidade da alma

166 Keyt 1963 p171

229

(i) Platatildeo parece se equivocar quanto ao que constitui o oposto da morte ele

considera que lsquovidarsquo eacute oposto de lsquomortersquo

(ii) O argumento eacute circular reivindica que a alma eacute imortal porque natildeo

admite morte

(iii) A uacutenica razatildeo clara pela qual a alma eacute imortal eacute que ela possui um

viacutenculo com a Forma da vida a qual eacute imortal e indestrutiacutevel (Cf106b)

Essa declaraccedilatildeo de que a Forma da vida eacute imortal eacute um estranho

argumento para a imortalidade da alma porque todas as Formas satildeo

imortais e indestrutiacuteveis

(iv) No argumento aquilo que eacute essencialmente vivo eacute necessariamente

imortal mas este ponto eacute questionaacutevel Portanto a transiccedilatildeo entre algo

essencialmente vivo para algo imortal eacute questionaacutevel Tambeacutem eacute

importante notar que Platatildeo considera apenas a Forma da vida e na

transiccedilatildeo da vida para imortalidade ele natildeo considera a Forma da

imortalidade Mas eacute possiacutevel que Platatildeo considera que a Forma da vida

engloba imortalidade e indestrutibilidade

(v) Soacutecrates simplesmente assume que o que eacute essencialmente vivo eacute

imortal e que o que eacute imortal eacute indestrutiacutevel A conclusatildeo de que a alma

eacute imortal parece uma mera inferecircncia a partir do viacutenculo essencial da

alma com a vida e a necessaacuteria rejeiccedilatildeo da morte

(vi) Keyt aponta uma falaacutecia de ldquoequivocaccedilatildeordquo no uso dos termos ἀθάνατος

θάνατοςθνητός No iniacutecio do argumento ἀθάνατος eacute oposto de θάνατος

mas ao final eacute oposto de θνητός (Cf 105e2-3 106e5-6)167

167 Keyt 1963 p170

230

(vii) A teoria das Formas ainda eacute incipiente Vaacuterios pontos da passagem

merecem uma explicaccedilatildeo mais detalhada no que concerne agrave teoria das

Formas

(viii) A identidade da alma como um portador de uma Forma eacute essencial para a

compreensatildeo do argumento mas Platatildeo natildeo deixa claro o que eacute a alma

A nossa anaacutelise a considera como uma entidade intermediaacuteria com base

nas evidecircncias apresentadas ao longo do diaacutelogo mas em momento

algum Platatildeo deixa isto claro

(ix) A relaccedilatildeo entre a etapa anterior e o argumento propriamente dito estaacute

longe de ser clara Este problema deixa o argumento aberto a

interpretaccedilotildees diversas

72 A reaccedilatildeo ao uacuteltimo argumento

O argumento final do Feacutedon eacute o uacutenico no diaacutelogo a persuadir Cebes de que a

alma eacute imortal Ele eacute construiacutedo em resposta agraves objeccedilotildees de Cebes e ao final da

exposiccedilatildeo o ceacutetico mais obstinado no mundo (77a) como salienta Hackforth natildeo

levanta qualquer objeccedilatildeo (107a1-3)168 Agora natildeo haacute mais receio de que a alma por ser

mortal seja destruiacuteda num dos ciclos de reencarnaccedilotildees e a corajosa atitude de Soacutecrates

diante da iminente execuccedilatildeo eacute sensata visto que estaacute amparada pelo argumento final

Mas a reaccedilatildeo de Siacutemias eacute diferente ele diz que natildeo tem nada a objetar mas por

ser o assunto tatildeo denso e a natureza humana fadada ao fracasso ele diz ldquoeu estou

compelido a ter uma descrenccedila em meu iacutentimo a respeito do que foi dito (ἀναγκάζομαι

168 Hackfort 1998 p 165

231

ἀπιστίαν ἔτι ἔχειν παρ᾽ ἐμαυτῷ περὶ τῶν εἰρημένων) (1007a8-b3) Ainda assim Siacutemias

eacute incapaz de apontar falhas especiacuteficas no argumento chamando atenccedilatildeo para um

problema mais geral da existecircncia humana e da sua proacutepria experiecircncia e descrenccedila em

relaccedilatildeo agrave natureza e estado futuro da alma

Soacutecrates parece bastante confidente a respeito do argumento e diz a Siacutemias que

concorda que ateacute mesmo as primeiras hipoacuteteses sejam revisitadas mas logo afirma que

se forem analisadas pelos amigos de maneira suficiente eles seguiratildeo o argumento e

natildeo haveraacute mais necessidade de prosseguir a pesquisa (107b4-9) Siacutemias simplesmente

concorda com a afirmaccedilatildeo do amigo ldquovocecirc fala a verdaderdquo (107b10)

Cebes o mais capaz dos interlocutores estaacute completamente convencido A

resposta de Siacutemias pode sugerir sua insatisfaccedilatildeo depois de ouvir o argumento contudo

duacutevida de Siacutemias eacute bastante geral e natildeo diz respeito ao argumento em si169

169 Conforme Sedley (2009 p146) Platatildeo criou esse argumento para explicar por que Soacutecrates

partiu confiante e alegre para a morte e sendo assim seria inconcebiacutevel que Platatildeo pretenda

transmitir a mensagem de que o ato final de Soacutecrates como um maacutertir filosoacutefico e sua aceitaccedilatildeo

confiante da morte baseava-se em um argumento duacutebio

232

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A nossa anaacutelise das provas da imortalidade da alma no Feacutedon revela que as duas

primeiras provas estatildeo comprometidas com uma concepccedilatildeo de imortalidade vinculada agrave

doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo da alma O argumento ciacuteclico conclui

apenas que a alma continua a existir depois da morte enquanto o argumento da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento O argumento das afinidades eacute o

primeiro argumento que ataca diretamente o problema apresentado por Cebes ndash a

possibilidade de a alma se desintegrar na hora em que se separa do corpo O argumento

tenta provar que a alma eacute por natureza imune agrave morte algo completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso Mas o uacuteltimo argumento eacute sem duacutevida a grande

prova da imortalidade da alma no Feacutedon Mas todos os argumentos apresentam falhas e

nenhum se estabelece como prova inequiacutevoca da imortalidade da alma nem mesmo o

argumento final apesar de Soacutecrates e os amigos natildeo apontarem qualquer falha no

argumento Os amigos de Soacutecrates satildeo finalmente libertos dos temores de que a alma

individual seja desintegrada e o filoacutesofo pode partir seguro para o aleacutem onde desfrutaraacute

dos benefiacutecios de ter dedicado a vida ao exerciacutecio de morrer e estar morto

233

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO

[57a] EQUEacuteCRATES Feacutedon vocecirc mesmo estava presente no dia em que Soacutecrates

bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por outra pessoa

FEacuteDON Eu mesmo estava presente Equeacutecrates

EQUEacuteCRATES Entatildeo o que ele falou antes de morrer Como foi a sua morte Eu

gostaria de ouvir sobre isso pois nenhum cidadatildeo de Fliunte visita Atenas com

frequecircncia nessa eacutepoca [57b] e haacute tempo natildeo vem de laacute sequer um estrangeiro capaz de

informar com precisatildeo o que aconteceu Contam apenas que Soacutecrates morreu ao tomar o

veneno e nada mais

[58a] FEacuteDON Tampouco souberam como foi o julgamento

EQUEacuteCRATES Sim sobre isso uma pessoa nos informou e ficamos surpresos por que

se sabe que ele morreu bem depois da realizaccedilatildeo do julgamento Afinal por que isso

aconteceu Feacutedon

FEacuteDON Por coincidecircncia Equeacutecrates Aconteceu que no dia anterior ao seu

julgamento a popa do navio que os atenienses costumam enviar para Delos tinha sido

coberta

EQUEacuteCRATES E que navio eacute esse

234

FEacuteDON Esse eacute o navio como dizem os atenienses em que certa vez Teseu foi a [58b]

Creta levando os ldquodois grupos de seterdquo os quais ele salvou bem como salvou a si

mesmo Conta-se que nessa eacutepoca prometeram a Apolo que se eles fossem salvos lhe

retribuiriam com o envio de uma missatildeo anual para Delos E eacute justamente essa missatildeo

anual que desde aquela eacutepoca ateacute agora eles sempre enviam ao deus No tempo

decorrido entre o iniacutecio e o fim da missatildeo a lei ateniense determina que a cidade

permaneccedila purificada e que natildeo se mate ningueacutem em nome dela ateacute que o barco

enviado a Delos retorne ao seu ponto de partida E quando eventualmente ventos

contraacuterios deteacutem a tripulaccedilatildeo o que ocorre [58c] agraves vezes a viagem demora bastante A

missatildeo tem iniacutecio depois que o sacerdote de Apolo cobre a popa do navio e como eu

disse por coincidecircncia isso aconteceu bem na veacutespera do julgamento Eacute por essa razatildeo

que Soacutecrates passou muito tempo na prisatildeo entre o dia do julgamento e a ocasiatildeo de sua

morte

EQUEacuteCRATES E sobre a morte dele precisamente Feacutedon O que se disse e o que se

fez e quais de seus amigos estiveram com ele Ou os magistrados natildeo permitiram que

estivessem presentes e ele acabou morrendo longe dos amigos

[58d] FEacuteDON De forma alguma Natildeo apenas alguns na verdade muitos estiveram

presentes

EQUEacuteCRATES Entatildeo a menos que vocecirc esteja ocupado empenhe-se para nos

informar tudo com a maior clareza possiacutevel

235

FEacuteDON Natildeo estou ocupado e desejo descrever para vocecircs como ocorreu ateacute porque

lembrar de Soacutecrates sempre me daacute o maior prazer seja quando eu mesmo falo ou

quando escuto algueacutem falando sobre ele

EQUEacuteCRATES Mas certamente Feacutedon estes que iratildeo te escutar natildeo satildeo diferentes

Portanto tente relatar tudo com a maacutexima precisatildeo

[58e] FEacuteDON Eu realmente tive uma experiecircncia paradoxal estando ao seu lado

naquela ocasiatildeo pois natildeo fui tomado de compaixatildeo enquanto presenciava a morte de

um amigo O fato eacute que ele me parecia feliz Equeacutecrates tanto pela sua conduta quanto

pelas suas palavras tatildeo destemida e nobre a maneira como morreu Por essa razatildeo ateacute

me passou pela cabeccedila que embora estivesse indo para o Hades ele ia na [59a]

companhia de uma Moira Divina e que ao chegar ali estaria bem se eacute que algueacutem jaacute

experimentou isso Por isso mesmo natildeo fui tomado de forte compaixatildeo o que

pareceria natural ao se presenciar tal sofrimento tampouco senti prazer como aquele a

que estamos acostumados quando nos envolvemos com filosofia ndash de fato nossas

conversas foram dessa natureza Todavia eu experimentei um sentimento atiacutepico uma

estranha mescla de prazer e dor ao me dar conta de que ele estava prestes a morrer logo

mais E todos noacutes ali presentes tiacutenhamos semelhante disposiccedilatildeo de acircnimo ora rindo ora

chorando embora um dentre noacutes se destacasse

[59b] Apolodoro ndash vocecirc certamente conhece o indiviacuteduo e o seu jeito de ser

EQUEacuteCRATES Como natildeo

236

FEacuteDON Pois bem ele estava no limite dessa disposiccedilatildeo e eu mesmo fiquei abalado

assim como os demais

EQUEacuteCRATES Quem por acaso esteva ali presente Feacutedon

FEacuteDON Dentre os locais estavam Apolodoro como acabei de dizer Critoacutebulo e seu

pai Hermoacutegenes Epiacutegenes Eacutesquines e Antiacutestenes estavam tambeacutem Ctesipo do demo

Peacircnia Menecircxeno e alguns outros locais Platatildeo creio eu estava doente

EQUEacuteCRATES E havia alguns estrangeiros

[59c] FEacuteDON Sim Siacutemias de Tebas Cebes e Fedondes estavam laacute e de Meacutegara

Euclides e Teacutercio

EQUEacuteCRATES Quem mais Aristipo e Cleocircmbroto tambeacutem estavam presentes

FEacuteDON Com certeza natildeo Disseram que eles estavam em Egina

EQUEacuteCRATES Algueacutem mais estava presente

FEacuteDON Acho que eram basicamente esses todos os presentes

EQUEacuteCRATES Agora entatildeo poderia me falar sobre as conversas que tiveram

[59d] FEacuteDON Eu tentarei lhe descrever tudo desde o iniacutecio Nos dias que precederam a

sua morte eu e os demais amigos costumaacutevamos visitar Soacutecrates diariamente Como o

Tribunal onde ocorreu o julgamento fica perto da prisatildeo noacutes nos encontraacutevamos ali

bem cedo e todos os dias aguardaacutevamos que a prisatildeo fosse aberta Enquanto isso

ficaacutevamos conversando uns com os outros pois a prisatildeo natildeo abria cedo Mas assim que

abria entraacutevamos para ficar com Soacutecrates e

237

[59e] quase sempre passaacutevamos o dia todo com ele E naquela ocasiatildeo nos reunimos

mais cedo pois no dia anterior quando saiacutemos da prisatildeo ao anoitecer tomamos

conhecimento de que o barco havia chegado de Delos Entatildeo combinamos de chegar no

dia seguinte o mais cedo possiacutevel no lugar de costume o que de fato aconteceu

Chegamos e o porteiro que costumava nos receber saiu ao nosso encontro para nos pedir

que aguardaacutessemos e natildeo entraacutessemos ateacute que ele mesmo nos autorizasse ldquoEacute que os

Onzerdquo disse ele ldquoestatildeo liberando Soacutecrates das correntes e notificando que ele haacute morrer

naquele mesmo diardquo Mas natildeo demorou muito ateacute que ele voltasse para nos autorizar a

[60a] entrada Em seguida entramos e nos deparamos com Soacutecrates jaacute solto das

corrrentes e Xantipa que vocecirc conhece segurando seu filho e sentada ao seu lado E

assim que Xantipa nos viu comeccedilou a gritar e a falar aquele tipo de coisa que as

mulheres costumam dizer ldquoSoacutecrates esta eacute a uacuteltima vez que seus amigos se dirigem a

vocecirc e vocecirc a elesrdquo Entatildeo Soacutecrates olhou para Criacuteton e lhe disse ldquoCriacuteton que algueacutem

a leve para casardquo

Parte do pessoal que acompanhava Criacuteton tirou a mulher dali enquanto ela

gritava e [60b] batia no peito Soacutecrates por sua vez sentando-se na cama dobrou a

perna e comeccedilou a esfregaacute-la com a matildeo e enquanto esfregava disse ldquoQuatildeo estranho

amigos parece ser aquilo que as pessoas chamam de prazer Quatildeo surpreendente eacute sua

relaccedilatildeo natural com o que parece ser o seu oposto a dor Ambos se recusam a

permanecer ao mesmo tempo num indiviacuteduo mas se algueacutem busca e captura um deles eacute

238

quase sempre forccedilado a capturar tambeacutem o outro como se [60c] estivessem unidos por

uma soacute cabeccedila embora sendo duas coisas distintas E me parece querdquo disse ele ldquose

Esopo tivesse refletido sobre eles teria composto uma faacutebula em que um deus

desejando reconciliar a ambos que viviam em guerra mas natildeo sendo capaz resolveu

unir a cabeccedila deles em uma soacute Por esse motivo se um deles se fizer presente em

algueacutem o outro vem em seguida Eacute o que parece acontecer comigo quando

acorrentado sentia dor na perna retiradas as correntes o prazer jaacute veio logo em

seguidardquo

Cebes o interrompeu e lhe disse ldquoPor Zeus Soacutecrates fez bem demais em

recordar-me [60d] Muitos jaacute me perguntaram sobre os poemas que vocecirc fez

versificando as obras de Esopo e sobre o proecircmio a Apolo Anteontem o proacuteprio

Eveno me perguntou o que deu na sua cabeccedila para comeccedilar essa atividade soacute depois que

veio para a prisatildeo uma vez que nunca havia se ocupado com isso antes Se tiver

interesse que eu decirc uma resposta a Eveno quando ele voltar a me perguntar porque sei

que ele iraacute me perguntar novamente diga-me o que devo lhe dizerrdquo

[60e] ldquoSimples Cebesrdquo respondeu ldquodiga-lhe a verdade que natildeo compus

poemas querendo tornar-me seu rival ou de suas poesias pois sabia que natildeo seria faacutecil

mas para tentar entender o sentido de certos sonhos e cumprir meu dever religioso no

caso de ser essa a muacutesica que os sonhos me orientavam a compor Deixe-me explicar

tive o mesmo sonho ao longo de toda a minha vida e apesar de cada vez aparecer sob

239

um aspecto diferente dizia sempre a mesma coisa ldquoSoacutecratesrdquo dizia ldquocomponha e

trabalha a muacutesicardquo Antes eu pensava que o sonho estava me exortando e me

incentivando a fazer exatamente aquilo que eu jaacute vinha fazendo assim como quem

incentiva os corredores da mesma maneira o sonho me incentiva a fazer exatamente

aquilo que eu jaacute vinha fazendo ou seja compor muacutesica uma vez que a filosofia era a

mais excelsa muacutesica e que era isso o que eu fazia No entanto [61a] depois que

ocorreu o julgamento e a festa do deus adiou a minha morte pareceu-me conveniente

que se o sonho estivesse recorrentemente me ordenando compor muacutesica no sentido

popular eu natildeo lhe desobedecesse mas comeccedilasse a compocirc-la Pois pareceu-me mais

seguro partir somente depois de ter cumprido [61b] meu dever religioso compondo

poemas em obediecircncia ao sonho Foi assim que em primeiro lugar eu compus um

poema dedicado ao deus da festa em curso Mas depois desse poema ao deus passei a

refletir que o poeta quando se propotildee a ser poeta deve compor mitos e natildeo

argumentos E como eu natildeo sou inventor de mitos peguei os que estavam agrave minha

disposiccedilatildeo e jaacute conhecia de antematildeo os mitos de Esopo e dei forma poeacutetica agravequeles

com os quais primeiro me deparei Portanto Cebes explica tudo isso a Eveno tambeacutem

lhe diga que [61c] passe bem e que se for sensato venha a ser meu seguidor o mais

raacutepido possiacutevel Parto hoje ao que parece pois assim ordenam os ateniensesrdquo

240

Entatildeo Siacutemias disse ldquoque tipo de apelo eacute esse que faz a Eveno Soacutecrates Eu jaacute

me encontrei com ele diversas vezes e estou bem certo pelo que percebi que de modo

algum ele atenderaacute de bom grado ao seu apelordquo

ldquoComo natildeordquo disse ele ldquoEveno natildeo eacute filoacutesofordquo

ldquoParece-me que simrdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo Eveno desejeraacute atender ao meu apelo e qualquer um que desempenha

essa atividade com dignidade Contudo natildeo praticaraacute talvez violecircncia contra si

mesmo pois dizem [61d] que isso eacute iliacutecitordquo E enquanto dizia essas coisas colocou os

peacutes no chatildeo e sentado nesta posiccedilatildeo continuou o resto da conversa

Cebes entatildeo perguntou-lhe ldquoComo vocecirc pode dizer Soacutecrates que eacute iliacutecito

praticar violecircncia contra si mesmo e que o filoacutesofo desejaria seguir algueacutem que estaacute

morrendordquo

ldquoO quecirc Cebes Vocecirc e Siacutemias natildeo ouviram falar sobre esse assunto em seu

conviacutevio com Filolaurdquo

ldquoNada com clareza Soacutecratesrdquo

ldquoNa verdade eu tambeacutem falo desse assunto com base em coisas que ouvi falar

[61e] poreacutem nada me impede de dizer o que chegou aos meus ouvidos A propoacutesito

talvez o mais conveniente a quem estaacute prestes a viajar para o aleacutem seja mesmo examinar

a fundo e contar os mitos sobre essa viagem de que tipo acreditamos que ela seja Pois

que outra coisa fariacuteamos no tempo que nos resta ateacute o pocircr do solrdquo

241

ldquoEntatildeo por que razatildeo afirmam que eacute iliacutecito matar a si mesmo Soacutecrates Pois eu

mesmo ainda respondendo agravequela sua pergunta jaacute ouvi de Filolau quando ele convivia

conosco e tambeacutem de alguns outros que natildeo se deve fazer isso Mas nunca ouvi

algueacutem falar algo sobre esse assunto com clarezardquo

[62a] ldquoTenha acircnimordquo disse ldquopois de repente vocecirc poderaacute ouvir Contudo talvez

vocecirc se surpreenda por essa ser a uacutenica questatildeo simples entre as outras a qual nunca

ocorre a algueacutem como as demais que haacute ocasiatildeo em que para algumas pessoas melhor

seria estar morto do que viver vocecirc se surpreenderia se para essas pessoas ndash a quem

seria melhor estar morto ndash fosse iacutempio fazer um bem a si mesmas mas tivessem de

esperar por outro benfeitorrdquo

Cebes riu discretamente e lhe disse ldquoQue Zeus seja a minha testemunhardquo

falando em seu proacuteprio dialeto

[62b] ldquoA questatildeo ficaria sem sentidordquo disse Soacutecrates ldquopelo menos posta dessa

forma todavia eacute provaacutevel que tenha algum sentido A propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e

que ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendar Poreacutem Cebes acho que uma coisa estaacute bem

colocada que satildeo os deuses que cuidam de noacutes e que noacutes seres humanos somos um

propriedade dos deuses Vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoPenso simrdquo disse Cebes

242

[62c] ldquoPois entatildeordquo disse ele ldquose acaso um de seus bens viesse a matar a si

mesmo sem que vocecirc tivesse dado sinal de que o queria morto acaso natildeo se exasperaria

com ele e se pudesse lhe aplicaria uma puniccedilatildeo

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoSendo assim talvez tenha algum sentido a proibiccedilatildeo de tirarmos a proacutepria vida

sem que antes um deus nos imponha uma necessidade tal como a que agora estaacute diante

de noacutesrdquo

[62d] ldquoPelo menos isso parece plausiacutevelrdquo disse Cebes ldquoMas o que vocecirc disse haacute

pouco ndash que os filoacutesofos desejariam prontamente morrer ndash parece absurdo se o que

dissemos for razoaacutevel que o deus eacute quem cuida de noacutes e que noacutes somos seus bens Pois

natildeo faz sentido dizer que as pessoas mais sensatas natildeo deveriam ficar irritadas ao

perderem um cuidado administrado pelos mais nobres seres que existem ndash os deuses

Presumo que pelo menos uma pessoa sensata natildeo [62e] pensaria que poderia cuidar

melhor de si mesmo depois de libertar-se Soacute uma pessoa insensata talvez pensasse que

deveria fugir de seu dono pois natildeo raciocinaria que em vez de fugir de um senhor

beneacutevolo deveria antes permanecer atrelada a ele o maacuteximo possiacutevel Por esse motivo

sua fuga seria irrefletida Uma pessoa sensata por sua vez desejaria permanecer para

sempre ao lado de quem eacute melhor do que ela Portanto Soacutecrates o mais plausiacutevel eacute o

contraacuterio do que dissemos conveacutem que as pessoas sensatas se irritem por morrer e que

as insensatas se alegremrdquo

243

[63a] Ao ouvir isso Soacutecrates me parecia se contentar com a persistecircncia de

Cebes E olhando para noacutes disse ldquoCebes estaacute mesmo sempre perscrutando os

argumentos e natildeo se deixa persuadir pela primeira coisa que algueacutem venha a lhe dizerrdquo

E Siacutemias disse ldquoCom efeito Soacutecrates parece-me que agora algo faz sentido no

que Cebes estaacute dizendo com que motivaccedilatildeo homens verdadeiramente saacutebios fugiriam

de donos que satildeo melhores do que eles e os deixariam facilmente Parece-me que

Cebes em sua fala referia-se diretamente a vocecirc que aceita sem dificuldade

abandonar tanto a noacutes quanto aos beneacutevolos governantes os deuses como vocecirc mesmo

reconhecerdquo

[63b] ldquoEacute justo o que vocecircs falamrdquo disse ldquoE acho que vocecircs estatildeo dizendo que

eu devo me defender de seus questionamentos como se estiveacutessemos num tribunalrdquo

ldquoCertamenterdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo vamos em frenterdquo disse ele ldquoQue eu tente me defender perante vocecircs

de modo mais convincente do que perante os meus juiacutezes Siacutemias e Cebesrdquo disse ldquose

eu natildeo pensasse que em primeiro lugar eu me juntaria a outros deuses saacutebios e bons e

depois a pessoas mortas [63c] que satildeo melhores do que as daqui seria injusto se eu natildeo

me irritasse por morrer Todavia estejam certos de que eu espero me juntar a homens

bons embora natildeo insista muito nisso no entanto que eu espero me juntar a deuses

senhores absolutamente bons estejam certos de que se haacute algo que eu asseguraria seria

isso Eacute por esse motivo que natildeo me irrito como aconteceria se natildeo fosse assim mas

244

tenho uma boa expectativa de que haja algo reservado para os mortos Pelo menos o que

se diz haacute muito tempo eacute que haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para

os mausrdquo

[63d] ldquoMas entatildeo Soacutecratesrdquo perguntou Siacutemias ldquovocecirc vai partir com esse

pensamento em sua cabeccedila ou vai compartilhaacute-lo conosco Pois me parece que ele eacute

mesmo um bem comum a todos noacutes e ao mesmo tempo serviraacute como sua defesa caso

venha a nos persuadir do que estaacute dizendordquo

ldquoTentarei fazecirc-lordquo disse ldquomas antes vejamos o que eacute isso que o nosso amigo

Criacuteton estaacute aparentemente querendo dizer jaacute haacute algum tempordquo

ldquoQue mais poderia ser Soacutecratesrdquo questionou Criacuteton ldquoHaacute algum tempo o

homem que vai lhe ministrar o veneno tem me dito que eu devo te orientar a falar o

miacutenimo possiacutevel Segundo ele a temperatura corporal sobe quando as pessoas estatildeo

conversando e isso deve ser [63e] evitado na aplicaccedilatildeo do veneno Haacute casos em que a

pessoa natildeo segue essa orientaccedilatildeo e eacute obrigada a tomar o veneno duas ou trecircs vezesrdquo

ldquoMande-o passearrdquo disse Soacutecrates ldquoEle que prepare uma duas ou ateacute trecircs doses

se for necessaacuterio eacute o trabalho delerdquo

ldquoJaacute adivinhava a sua respostardquo disse Criacuteton ldquomas eacute que haacute tempo ele me

perturba com issordquo

245

ldquoEsqueccedila-ordquo disse ldquoMas para vocecircs meus juiacutezes quero agora oferecer a

explicaccedilatildeo de como me parece plausiacutevel que um homem que dedicou de fato sua vida agrave

filosofia esteja confiante em face da morte iminente e tenha uma boa

[64a] expectativa de que receberaacute as maiores benesses no aleacutem quando morrer Como

isso pode ser Siacutemias e Cebes eu tentarei lhes explicarrdquo

ldquoTodos que se entregam corretamente agrave filosofia correm o risco de as demais

pessoas natildeo perceberem que eles se dedicam a morrer e estar morto e nada mais do que

isso Portanto caso isso seja verdade suponho que seria um absurdo almejar

exclusivamente isso durante uma vida inteira e afinal irritar-se por justamente ter

alcanccedilado aquilo que se desejou e se praticou por longo tempordquo

[64b] Siacutemias riu e disse ldquopor Zeus Soacutecrates agora vocecirc me fez rir embora hoje

eu natildeo esteja para brincadeira Pois acho que se a maioria das pessoas ouvisse isso daiacute

pensaria que se aplica bem aos filoacutesofos E nossos conterracircneos concordariam com eles

de que os filoacutesofos desejam a morte e eles perceberiam que isso mesmo que merecemrdquo

ldquoMas eles estariam dizendo a verdade Siacutemias com exceccedilatildeo de que natildeo deixam

de notar Pois eles natildeo notam qual eacute o sentido em que os verdadeiros filoacutesofos desejam

morrer e merecem morrer e o tipo de morte em questatildeo Conversemos sobre isso

apenas entre noacutesrdquo disse ldquoe [64c] mandemos essa maioria passear Consideramos que a

morte eacute alguma coisardquo

ldquoCom certezardquo disse Siacutemias em sua resposta

246

ldquoAcaso natildeo seria outra coisa senatildeo a separaccedilatildeo da alma do corpo E estar morto

natildeo seria isto o corpo apartado da alma passar a estar sozinho ele por si mesmo

enquanto a alma apartada do corpo passar a estar sozinha ela por si mesma A morte

seria outra coisa senatildeo isso

ldquoNatildeo eacute isso mesmordquo disse

[64d] ldquoObserve agora meu amigo se vocecirc tem a mesma visatildeo que eu tenho

Pois acredito que eacute a partir disso que vamos conhecer melhor o que propomos examinar

Vocecirc acha que o filoacutesofo se preocupa com aquilo que chamam de prazeres tais como os

de comer e beber

ldquoMinimamente Soacutecratesrdquo respondeu Siacutemias

ldquoE com o prazer sexualrdquo

ldquoDe modo algumrdquo

ldquoE quanto agraves demais diligecircncias relativas ao corpo Vocecirc acha que algueacutem como

um [64e] filoacutesofo daria valor a essas coisas Por exemplo a posse de vestes e calccedilados

de luxo e outros objetos que embelezam o corpo vocecirc acha que valorizaria ou

desprezaria essas coisas a menos que fosse realmente necessaacuterio se envolver com elas

ldquoEu acho que as desprezariardquo respondeu ldquopelo menos o filoacutesofo de verdaderdquo

ldquoEntatildeo vocecirc natildeo acha que em sumardquo perguntou ldquoa preocupaccedilatildeo de algueacutem

assim natildeo recairia sobre o corpo mas se voltaria para na medida do possiacutevel libertar-se

dele e inclinar-se para a almardquo

247

ldquoSim eu achordquo

ldquoEm primeiro lugar natildeo fica claro que em questotildees dessa natureza o[65a] filoacutesofo

busca desvincular o maacuteximo possiacutevel a sua alma da comunhatildeo com seu corpo

diferentemente das demais pessoas

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoDe fato a maioria das pessoas presume Siacutemias que o indiviacuteduo para quem

nada disso eacute apraziacutevel e que natildeo toma parte nessas coisas que mencionei natildeo merece

viver para essa maioria quem natildeo tem qualquer interesse nas coisas que se obteacutem por

meio do corpo estaacute agrave beira da morterdquo

ldquoEacute bem verdade o que vocecirc falardquo

ldquoE o que dizer sobre a aquisiccedilatildeo da proacutepria sabedoria O corpo seria ou [65b]

natildeo um obstaacuteculo caso algueacutem o tomasse como um parceiro na investigaccedilatildeo Estou

perguntando aproximadamente o seguinte visatildeo e audiccedilatildeo captam alguma verdade para

as pessoas ou os poetas tecircm razatildeo em estar sempre repetindo para noacutes aquela ladainha

de que nada ouvimos ou vemos com precisatildeo E se de fato esses sentidos do corpo natildeo

tecircm precisatildeo nem clareza dificilmente os demais teriam pois satildeo todos inferiores a

esses dois presumo eu Vocecirc tambeacutem natildeo achardquo

ldquoCom certezardquo disse

248

ldquoEntatildeordquo disse ele ldquoquando a alma alcanccedila a verdade Pois sempre que busca

examinar algo em companhia do corpo fica claro que nessas circunstacircncias eacute enganada

por elerdquo

[65c] ldquoVocecirc estaacute falando a verdaderdquo

ldquoPortanto natildeo seria porventura no ato de raciocinar e natildeo de outro modo que as

coisas que satildeo se mostram com clareza para a almardquo

ldquoSimrdquo

ldquoA alma raciocina melhor suponho eu quando nenhuma dessas coisas seja

audiccedilatildeo visatildeo dor ou algum prazer vier a perturbaacute-la mas mandando o corpo passear

ficar o maacuteximo possiacutevel sozinha ndash ela por si mesma ndash e mantendo-se o quanto puder

livre de comunhatildeo e contato com o corpo busca alcanccedilar aquilo que eacute

ldquoEacute assim mesmordquo

ldquoNatildeo eacute tambeacutem nessa ocasiatildeo que a alma do filoacutesofo despreza o corpo e [65d]

foge dele em busca de ficar sozinha ndash ela por si mesmardquo

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoE sobre a seguinte questatildeo Siacutemias afirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo

ldquoPor Zeus claro que simrdquo

ldquoE tambeacutem um belo e um bomrdquo

ldquoComo natildeordquo

249

ldquoE alguma vez vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo

ldquoDe modo algumrdquo disse

ldquoE vocecirc jaacute alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por

meio do corpo Eu estou falando de todas as coisas como grandeza sauacutede [65e] forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacute Por acaso

eacute por meio do corpo que se pode contemplar a absoluta verdade delas ou eacute somente

aquele que se puser a pensar com rigor e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber

cada coisa em si que poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Certamente

Entatildeo natildeo faria isso da maneira mais pura aquele que por meio do proacuteprio

pensamento [66a] chegasse na medida do possiacutevel a cada coisa sem comprometer o

pensamento com a visatildeo e sem deixar que o raciociacutenio seja acompanhado por algum

outro sentido mas utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura natildeo

tentaria perseguir cada uma das coisas que satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura

depois de afastar-se na medida do possiacutevel dos olhos dos ouvidos e por assim dizer do

corpo inteiro uma vez que quando o corpo entra em comunhatildeo com a alma ele

atrapalha e impede a alma de apoderar-se da verdade e da sabedoria Natildeo seria assim

Siacutemias que essa pessoa alcanccedilaria a coisa que eacuterdquo

ldquoGrande verdaderdquo disse Siacutemias ldquoo que vocecirc estaacute dizendo Soacutecratesrdquo

250

[66b] ldquoPor causa de tudo issordquo disse ldquoeacute necessaacuterio que os legiacutetimos filoacutesofos

partilhem um tipo de crenccedila que deixam transparecer no teor de conversas como esta ldquoeacute

possiacutevel que haja um tipo de atalho que nos conduza em companhia da razatildeo na

investigaccedilatildeo porque enquanto [66c] tivermos o corpo e a nossa alma estiver em

conexatildeo com esse mau jamais possuiremos de modo satisfatoacuterio aquilo que almejamos

e costumamos chamar de verdade Pois o corpo nos daacute muito trabalho na medida em

que necessita de nutriccedilatildeo aleacutem disso algumas doenccedilas nos impedem de caccedilar a coisa

que eacute quando nos acometem Ele nos enche de desejos eroacuteticos apetites temores

fantasias de todo tipo e muita futilidade a ponto de ser plenamente verdadeiro o que se

costuma dizer o corpo natildeo nos daacute chance de pensar em algo em momento algum

Guerras revoltas lutas tudo isso eacute produzido tatildeo somente pelo corpo e seus apetites

pois eacute a [66d] aquisiccedilatildeo de riquezas que origina as guerras e eacute o corpo que nos forccedila a

adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircncia Por todas essas razotildees eacute

devido ao corpo que natildeo temos tempo de fazer da filosofia a nossa ocupaccedilatildeo E o pior

de tudo eacute que se tivermos uma folga dele e nos voltarmos a examinar algo o corpo

novamente se intromete em cada etapa de nossa investigaccedilatildeo com o distuacuterbio e a

perturbaccedilatildeo que produz e nos aturde de tal modo que natildeo podemos contemplar a

verdade por causa dele Todavia jaacute estaacute demonstrado por noacutes que se [66e] acaso

pudermos chegar a um conhecimento puro de algo devemos nos separar do corpo e

observar as coisas por si mesmas com a alma por si mesma Como parece soacute teremos

251

aquilo que desejamos e dizemos ser amantes a sabedoria por ocasiatildeo de nossa morte

como o argumento daacute a entender e natildeo enquanto estivermos vivos Pois se natildeo eacute

possiacutevel obter um conhecimento puro de algo enquanto houver a companhia do corpo

das duas uma ou natildeo haacute como obter esse conhecimento ou isso soacute seraacute possiacutevel depois

da morte pois essa eacute a uacutenica ocasiatildeo em que a [67a] alma fica ela proacutepria por si mesma

separada do corpo ao passo que antes de morrer isso natildeo acontece E durante a vida

como parece ficaremos o quanto mais proacuteximo do conhecimento se evitarmos ao

maacuteximo interaccedilatildeo e comunhatildeo com o corpo exceto quando absolutamente necessaacuterio e

natildeo nos infectarmos com a sua natureza mas nos purificarmos dele ateacute que o proacuteprio

deus nos liberte Se dessa maneira nos preservarmos puros e nos desvencilharmos da

insensatez do corpo estaremos presumivelmente na companhia de outros que satildeo como

noacutes e [67b] conheceremos por noacutes mesmos tudo que eacute sem mistura e isso suponho eu

eacute a verdade Pois natildeo eacute liacutecito que o impuro alcance o purordquo Eu acho que eacute esse tipo de

coisa Siacutemias que eacute necessaacuterio os verdadeiros amantes do conhecimento pensarem e

partilharem entre si Ou vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoMais do que qualquer coisa Soacutecratesrdquo

ldquoPortantordquo disse Soacutecrates ldquose tudo isso for verdade amigo haacute uma grande

esperanccedila para quem chega ao lugar para onde me dirijo agora de que ali mais do que

em qualquer outro [67c] lugar iraacute adquirir plenamente tudo aquilo que buscamos com

bastante afinco no decorrer da vida Assim a jornada que me eacute imposta agora se mostra

252

atrelada a uma boa esperanccedila e o mesmo se daacute para qualquer pessoa que considera seu

pensamento preparado como se estivesse purificadordquo

Certamente disse Siacutemias

ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o

quanto possiacutevel a alma do corpo e acostumaacute-la ela proacutepria por si mesma a concentrar-se

e recolher-se apartada de cada membro do corpo e a viver o maacuteximo possiacutevel ela

proacutepria por si mesma tanto [67d] agora como no porvir liberta do corpo como que

liberta de cadeias

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoE acaso natildeo eacute justamente isto que se chama morte libertaccedilatildeo e separaccedilatildeo da

alma do corpordquo

ldquoSem duacutevidardquo disse

ldquoEntatildeo como dizemos satildeo apenas aqueles que praticam filosofia corretamente

que estatildeo sempre ansiosos para liberar a alma E a ocupaccedilatildeo dos filoacutesofos natildeo seria

justamente isto natildeo eacute uma liberaccedilatildeo e uma separaccedilatildeo da alma do corpo Ou natildeo eacute

ldquoEvidente que eacuterdquo

[67e] ldquoE acaso natildeo viraria uma piada como eu dizia no iniacutecio um homem que

se irrita com a chegada da morte depois de passar a vida inteira treinando para estar o

quanto mais perto delardquo

ldquoUma piada com certezardquo

253

ldquoPortanto Siacutemiasrdquo disse ldquoos que filosofam apropriadamente se exercitam em

morrer e satildeo as uacuteltimas pessoas a temer a morte Examina a questatildeo com base no que

vou dizer Se esses filoacutesofos estatildeo em completa desavenccedila com o corpo e desejam que a

alma esteja sozinha por si [68a] mesma e se na hora de tudo isso acontecer eles

passassem a temer e a irritar-se natildeo seria totalmente sem sentido que se dirigissem a

contragosto para o lugar onde em sua chegada esperam encontrar o que amaram a vida

inteira ndash a sabedoria ndash e onde esperam se livrar da convivecircncia com o que estavam em

desavenccedila Porventura natildeo haacute muitos homens que na [68b] ocasiatildeo da morte de

pessoas queridas tais como efebos esposas e filhos desejam voluntariamente partir com

elas para o Hades levados pela esperanccedila de ali ver e conviver com seus entes

queridos Natildeo seria o mesmo caso de uma pessoa que ama a sabedoria e manteacutem

fortemente essa msma esperanccedila ndash de ter em nenhum algum a natildeo ser no Hades um

encontro digno com ela Acaso essa pessoa se irritaria ao morrer e se encaminharia a

contragosto para o Hades Longe disso meu amigo se for realmente um filoacutesofo pois

ele susteraacute firmemente a opiniatildeo de que em nenhum algum a natildeo ser no Hades ele teraacute

um encontro puro com a sabedoria Se tudo isso for realmente assim volto a questionar

natildeo eacute completamente sem sentido que uma pessoa desse tipo venha a temer a morterdquo

ldquoTotalmente sem sentido por Zeusrdquo disse

ldquoEntatildeordquo disse ldquoquando vocecirc vir uma pessoa irritada porque estaacute prestes a

morrer vocecirc [68c] natildeo teraacute uma prova suficiente de que natildeo se trata de um filoacutesofo

254

mas de um amante do corpo Suponho que essa pessoa seja amante do dinheiro ou

amante da honra ou de ambas as coisasrdquo

ldquoEacute exatamente como vocecirc estaacute falandordquo disse

ldquoAcaso Siacutemiasrdquo perguntou ldquoa chamada coragem natildeo pertence especialmente

agravequeles que tecircm tal disposiccedilatildeordquo

ldquoNatildeo resta duacutevidardquo disse

ldquoE quanto agrave temperanccedila nome empregado ateacute mesmo pela maioria dos homens

a qual consiste em natildeo ser instigado pelos apetites em atitude de desprezo e

comedimento Acaso natildeo pertence exclusivamente a essas pessoas que desprezam

sobretudo o corpo e vivem dedicados agrave filosofia

[68d] ldquoNecessariamenterdquo disse

ldquoPoisrdquo disse ele ldquose vocecirc quiser pensar na coragem e na temperanccedila das demais

pessoas vai se deparar com algo sem sentidordquo

ldquoComo assim Soacutecratesrdquo

ldquoVocecirc natildeo saberdquo perguntou ldquoque todas essas pessoas consideram a morte como

sendo um dos grandes males

ldquoClaro que seirdquo disse

Entatildeo eacute por medo de males maiores que os corajosos encaram a morte quando a

tem de encarar

Isso mesmo

255

Se for assim o pacircnico e o medo tornam as pessoas corajosas com exceccedilatildeo dos

filoacutesofos Contudo eacute absurdo que medo e covardia tornem algueacutem corajoso

[68e] Completamente

E o que dizer dos que entre elas satildeo temperantes Natildeo lhes ocorre o mesmo

uma intemperanccedila os torna temperantes Podemos ateacute dizer que eacute impossiacutevel mas o que

lhes ocorre eacute o mesmo que se passa com os que possuem essa simploacuteria temperanccedila

porque temem ser privados dos diversos prazeres que desejam absteacutem-se de alguns

apenas quando se rendem a outros E ainda que chamem de intemperanccedila o ser

controlado pelos prazeres o que ocorre eacute que [69a] controlam certos prazeres apenas

quando se rendem a outros Eacute aquilo que eu acabei de dizer de um certo modo eacute por

causa da intemperanccedila que elas tecircm se tornado temperantes

Eacute o que parece

Meu querido Siacutemias no tocante agrave virtude natildeo seria uma transaccedilatildeo vaacutelida trocar

prazeres por prazeres dores por dores temor por temor e superior por inferior como se

fossem dinheiro porque a uacutenica moeda vaacutelida pela qual se deveria trocar todas essas

coisas seria o conhecimento Mediante essa moeda ndash o conhecimento ndash seria possiacutevel

realizar transaccedilotildees de [69b] compra e venda de coragem temperanccedila justiccedila e em

suma de toda verdadeira virtude sendo irrelevante a adiccedilatildeo ou subtraccedilatildeo de prazeres

temores e outras coisas desse tipo Se essas coisas satildeo separadas do conhecimento e

trocadas umas pelas outras esse tipo de virtude seria enganosa proacutepria de escravos sem

256

qualquer valor ou verdade inerente Mas a verdade realmente seria que a temperanccedila a

justiccedila e a coragem satildeo um tipo de purificaccedilatildeo de todas as coisas desse [69c] tipo

sendo o proacuteprio conhecimento um rito de purificaccedilatildeo E eacute improvaacutevel que os fundadores

dos misteacuterios que seguimos eram pessoas mediacuteocres Na realidade desde tempos tardios

eles tecircm dito em linguagem enigmaacutetica que todo natildeo iniciado e descumpridor dos ritos

jazeraacute na lama quando adentrar o Hades enquanto o purificado e iniciado que ali

chegam habitaratildeo com os deuses Pois eacute fato que como dizem os que celebram os ritos

muitos carregam o tirso mas [69d] poucos satildeo bacantes E estes satildeo na minha opiniatildeo

os que se ocupam corretamente da filosofia Eu desejei me tornar um deles de toda

maneira empreguei toda a minha forccedila nunca desperdiccedilando uma oportunidade de

minha vida Se desejei a coisa certa e alcancei o alvo saberei quando chegar ao aleacutem

dentro em breve se a divindade assim desejar conforme eu penso Portanto Siacutemias e

Cebes disse ele nisso consiste a minha defesa de quatildeo [69e] natural eacute que eu os esteja

deixando e tambeacutem os senhores aqui presentes sem anguacutestia ou irritaccedilatildeo pois

considero que laacute mais do que aqui encontrarei bons senhores e companheiros Para

muitos forneccedilo uma defesa sem credibilidade Portanto se para vocecircs eu estivesse

sendo mais persuasivo na minha defesa do que eu fui para os juiacutezes de Atenas eu jaacute me

daria por satisfeito

Depois que Soacutecrates falou essas coisas Cebes interveio e disse Soacutecrates acho

que vocecirc [70a] falou muito bem mas quando o assunto eacute a alma vocecirc gera profunda

257

duacutevida nas pessoas Existe o receio de que ao separar-se do corpo a alma estaria em

nenhum lugar ela seria destruiacuteda e pereceria no exato dia da morte imediatamente

quando se separa do corpo e ao deixaacute-lo desapareceria logo depois de se dissipar como

vento e fumaccedila natildeo mais estando em nenhum lugar Se acaso estivesse em algum lugar

recolhida e sozinha separada dos males que haacute [70b] pouco vocecirc expocircs haveria uma

tremenda e bela esperanccedila Soacutecrates de que vocecirc fala a verdade Mas talvez essa

questatildeo de saber se a alma do ser humano existe depois da morte e possui alguma

capacidade e conhecimento requeira uma soacutelida persuasatildeo e feacute

Vocecirc diz a verdade Cebes respondeu Soacutecrates Mas o que faremos entatildeo

Gostaria de discutir sobre esse assunto para ver o que eacute ou natildeo plausiacutevel

Eu particularmente disse Cebes ouviria com prazer qualquer que fosse a tua

opiniatildeo sobre esse assunto

Eu realmente acho disse Soacutecrates que ningueacutem que ouviu essa nossa conversa

nem [70c] mesmo um comedioacutegrafo diria que dou uma de charlatatildeo com um discurso

descabido Se vocecirc estaacute de acordo devemos iniciar a investigaccedilatildeo

ARGUMENTO CIacuteCLICO

Examinemos a questatildeo da seguinte maneira se de algum modo as almas das

pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeo Existe um relato antigo o qual guardamos

258

na memoacuteria segundo o qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam

novamente para caacute provindo dos mortos Se realmente eacute verdade que os vivos provecircm

dos mortos que mais se poderia concluir [70d] senatildeo que as nossas almas estatildeo no

aleacutem Pois de modo algum as almas voltariam a reencarnar se jaacute natildeo existissem Essa

seria uma prova suficiente de que isso eacute verdade se realmente ficasse evidente que os

seres vivos provecircm exclusivamente dos mortos Mas se isso natildeo for verdade

precisamos de um novo argumento

Seguramente disse Cebes

Mas se vocecirc quiser compreender mais facilmente disse natildeo examine somente o

que se vincula ao ser humano mas considere tambeacutem todos os animais e plantas Em

suma considerando [70e] tudo o que tem uma geraccedilatildeo vejamos se todas essas coisas

satildeo geradas da seguinte maneira os opostos de seus opostos e de nenhum outro tudo

quanto apresenta uma relaccedilatildeo semelhante como o belo cujo oposto eacute o feio o justo

cujo oposto eacute o injusto e inuacutemeros outros exemplos como esses Portanto

examinaremos se tudo que tem um oposto eacute gerado necessariamente de seu oposto e de

nenhum outro Por exemplo algo que se torna maior natildeo se torna maior

necessariamente a partir de ter sido menor antes

Sim

[71a] E o que se torna menor natildeo eacute a partir de ser maior antes que depois

torna-se menor

259

Eacute assim mesmo disse

E a partir do forte o deacutebil e a partir do lento o raacutepido

Seguramente

E o inferior proveacutem do superior e o mais justo do mais injusto

Como natildeo

Temos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina dessa maneira as

coisas opostas a partir dos seus opostos

Seguramente

E o que mais Natildeo ocorre tambeacutem o seguinte em cada par de opostos jaacute que

satildeo dois [71b] opostos em cada caso existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo um do

primeiro para o segundo e outro do segundo para o primeiro Entre uma coisa maior e

uma menor natildeo haacute aumento e diminuiccedilatildeo e a isso chamamos de aumentar e diminuir

Sim disse

E tambeacutem separaccedilatildeo e uniatildeo resfriamento e aquecimento e assim por diante

Mesmo que natildeo tenhamos um nome para cada processo natildeo ocorre necessariamente o

mesmo em cada par de opostos isto eacute cada um proveacutem de outro havendo um processo

de geraccedilatildeo que vai de um para o outro

Seguramente disse

[71c] Existe entatildeo perguntou um oposto para o viver assim como estar

adormecido eacute oposto de estar acordado

260

Seguramente respondeu

E o que seria

Estar morto disse

Entatildeo cada um desses natildeo proveacutem a partir do outro jaacute que satildeo opostos E jaacute que

satildeo dois natildeo existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo entre ambos

Como natildeo

Eu te falarei um dos pares que eu mencionei haacute pouco disse Soacutecrates o proacuteprio

par e os seus processos de geraccedilatildeo Vocecirc em seguida me falaraacute o outro Eu estou

falando do estar dormindo e estar acordado e que o estar acordado proveacutem do estar

dormindo e o estar [71d] dormindo proveacutem do estar acordado e seus processos de

geraccedilatildeo satildeo cair no sono e despertar Isso eacute suficiente para vocecirc ou natildeo perguntou

Completamente

Agora vocecirc me diz do mesmo jeito falou no tocante agrave vida e agrave morte Vocecirc natildeo

concorda que estar vivo eacute o oposto de estar morto

Certamente

E que eles provecircm um do outro

Sim

O que eacute entatildeo que proveacutem do que estaacute vivo

O que estaacute morto respondeu

E o que disse do que estaacute morto

261

O que estaacute vivo devo concordar respondeu

Nesse caso eacute dos que estatildeo mortos Cebes que tanto as coisas quanto as pessoas

que vivem provecircm

[71e] Estaacute bem claro disse

Portanto as nossas almas estatildeo no Hades

Eacute o que parece

Certamente dos dois processos de geraccedilatildeo em questatildeo ao menos um deles eacute

bastante oacutebvio pois presumo que o morrer eacute obviamente um deles ou natildeo

Seguramente disse

O que entatildeo faremos Natildeo retribuiremos com o processo de geraccedilatildeo oposta pois

do jeito que estaacute a natureza ficaraacute capenga Ou natildeo seria necessaacuterio equilibrar o morrer

com o processo de geraccedilatildeo oposto

Sem duacutevida disse

E qual seria

O reviver

[72a] Entatildeo disse se de fato existe o reviver este natildeo seria a geraccedilatildeo a partir

dos que estatildeo mortos para os que estatildeo vivos

Seguramente

Portanto concordamos tambeacutem nisso os que estatildeo vivos provecircm dos que estatildeo

mortos natildeo menos do que os que estatildeo mortos provecircm dos que estatildeo vivos e essa me

262

parece uma prova suficiente de que as almas dos que estatildeo mortos necessariamente

existem em algum lugar de onde regressam agrave vida

Soacutecrates eu acho que disse com base no que foi acordado as coisas satildeo

necessariamente desse jeito

Cebes disse veja como em minha opiniatildeo nosso acordo natildeo eacute infundado se

nesse processo de geraccedilatildeo nem sempre um oposto retribuiacutesse o outro como perfazendo

um movimento [72b] circular mas o processo de geraccedilatildeo fosse linear indo apenas a

partir de um oposto para o outro sem que retornasse novamente para o primeiro

fazendo assim a trajetoacuteria reversa vocecirc natildeo sabe que todas as coisas ao final teriam a

mesma forma experimentariam uma mesma condiccedilatildeo e o processo de geraccedilatildeo

estancaria

Tem razatildeo falou

Natildeo eacute difiacutecil disse entender o que estou dizendo Por exemplo se houvesse o

adormecer sem um despertar correspondente proveniente do adormecer natildeo percebe

que tudo isso faria [72c] de Eudiacutemion um caso ordinaacuterio e sem repercussatildeo em nenhum

lugar pois tudo quedaria na mesma condiccedilatildeo que ele o dormir E se todas as coisas se

unissem mas natildeo se separassem logo ocorreria o dito de Anaxaacutegoras ldquotodas as coisas

juntasrdquo Da mesma maneira caro Cebes se tudo quanto participa da vida viesse a

morrer e as coisas mortas permanecessem na mesma forma depois de mortas sem

retornar de novo agrave vida acaso natildeo seria absolutamente necessaacuterio que ao [72d] final

263

tudo acabasse morto e nada vivo E se as coisas vivas nascessem a partir de outras

coisas vivas e as coisas vivas morrem o que as impediria de fenecer na morte

Acho que nada Soacutecrates disse Cebes Vocecirc fala a verdade sem omissatildeo

Para mim Cebes eacute exatamente assim E noacutes natildeo estamos enganados em

concordar nesse assunto pois realmente existe o reviver os vivos nascem dos mortos e

as almas dos mortos existem

ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA

[72e] Ainda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que vocecirc

ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute do que

reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no

passado as coisas que agora recordamos Mas isto seria impossiacutevel a menos que a nossa

alma existisse em algum lugar antes [73a] de assumir essa forma humana De modo

que tambeacutem de acordo com esse ensino a alma parece ser imortal

Mas Cebes Siacutemias questionou quais satildeo mesmo as provas de tudo isso

Recorda-me pois no momento natildeo me lembro bem

Consiste disse Cebes de um uacutenico e beliacutessimo argumento quando as pessoas

satildeo questionadas por algueacutem que lhes questiona bem elas respondem todas as coisas

com propriedade Mas se conhecimento e reta razatildeo jaacute natildeo estivessem internalizados

264

natildeo seriam [73b] capazes de fazer isso E quando algueacutem lhes mostra diagramas ou algo

desse tipo aiacute fica bem claro que as coisas satildeo mesmo assim

Mas se vocecirc Siacutemias natildeo estaacute convencido com esse argumento falou Soacutecrates

examina a questatildeo a partir de outro acircngulo e vecirc se compartilha do nosso pensamento

Pois vocecirc estaacute em duacutevida sobre como o aprendizado pode ser reminiscecircncia natildeo eacute isso

Natildeo tenho essa duacutevida respondeu Siacutemias Mas eu necessito experimentar esse

ensino ndash a reminiscecircncia Soacute pela tentativa de explanaccedilatildeo de Cebes jaacute recordo e me

convenccedilo mas o meu interesse de ouvir natildeo diminuiu

[73c] Veja o seguinte respondeu Soacutecrates Concordamos sem duacutevida que se

algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimento

Seguramente disse

Acaso natildeo concordamos tambeacutem que se o conhecimento adveacutem de uma forma

peculiar ocorre reminiscecircncia Explicarei que forma peculiar eacute essa Quando algueacutem

vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem

lhe vem agrave mente um segundo item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas

de um distinto do primeiro natildeo seria [73d] correto dizer que recordou esse segundo

item que lhe veio agrave mente

O que vocecirc quer dizer

265

Vou exemplificar Presumo que o conhecimento de uma pessoa eacute diferente do

conhecimento de uma lira natildeo eacute

Como natildeo

Entatildeo vocecirc deve saber que acontece o seguinte com os amantes quando veem

uma lira um manto ou alguma outra coisa que seus amados costumam utilizar eles

reconhecem a lira e logo trazem agrave mente a imagem do amado a quem pertence a lira

Isso eacute reminiscecircncia O mesmo ocorre com aquele que vecirc Siacutemias e geralmente recorda-

se de Cebes e presumo que existem inuacutemeros casos como esse

Por Zeus inuacutemeros disse Siacutemias

[73e] Portanto disse esse tipo de coisa natildeo eacute reminiscecircncia Especialmente

quando algueacutem tem uma experiecircncia de reminiscecircncia que envolve coisas do passado jaacute

esquecidas

Seguramente disse

O que mais perguntou Natildeo eacute possiacutevel que algueacutem veja a pintura de um cavalo

ou a pintura de uma lira e recorde-se de uma pessoa e quando vecirc a pintura de Siacutemias

recorde-se de Cebes

Seguramente

E quando vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias recorde-se do proacuteprio Siacutemias

[74a] Certamente disse

266

De acordo com todos esses exemplos a reminiscecircncia natildeo pode ocorrer tanto a

partir de coisas semelhantes quanto de coisas dissemelhantes

Sim

Mas sempre que se recorda de algo a partir de coisas semelhantes natildeo passa

necessariamente pela experiecircncia de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se

recordou e o objeto recordado se assemelham

Seguramente disse

Examina agora disse Soacutecrates se isso estaacute certo Diriacuteamos como presumo que

existe um Igual Natildeo estou me referindo a um graveto igual a outro a uma pedra igual a

outra ou a qualquer coisa desse tipo mas a algo de natureza diferente e que estaacute aleacutem

de tudo isso o Igual em si mesmo Diremos que isso existe ou natildeo

[74b] Por Zeus a reposta eacute um retumbante sim respondeu Siacutemias

Acaso sabemos o que eacute isso

Seguramente disse

Mas de onde adquirimos o conhecimento disso Foi das coisas que

mencionamos haacute pouco Quando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso

trazemos agrave mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delas Ou natildeo acha que

haja distinccedilatildeo entre eles Examina o caso de pedras e gravetos iguais enquanto

permanecem o mesmo agraves vezes natildeo parecem iguais para uns e desiguais para outros

Seguramente

267

[74c] E mais os Iguais em si mesmo jaacute te pareceram desiguais ou a Igualdade

jaacute te pareceu Desigualdade

Jamais Soacutecrates

Nesse caso disse essas coisas iguais e o Igual em si natildeo satildeo a mesma coisa

Natildeo mesmo Soacutecrates

Entatildeo perguntou eacute mesmo partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave mente e

adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais sejam diferentes

Verdade disse

E aquilo que se recordou natildeo eacute igual ou diferente das coisas a partir das quais se

recordou

Seguramente

Mas natildeo faz diferenccedila disse Contanto que vocecirc veja algo e a partir dessa visatildeo

traga [74d] outra coisa agrave mente seja igual ou diferente jaacute eacute necessariamente um caso de

reminiscecircncia

Seguramente

E natildeo nos ocorre o mesmo tipo de coisa em relaccedilatildeo aos gravetos e outras coisas

iguais sobre a qual falamos haacute pouco Acaso esses iguais natildeo nos parecem que satildeo tal

como eacute o Igual em si Carecem ou natildeo de algo para serem tal como eacute o Igual em si

mesmo

Carecem e muito disse

268

Acaso concordamos tambeacutem com o seguinte quando algueacutem vecirc um objeto e

pensa que [74e] isso que vecirc tem a pretensatildeo de ser tal como uma daquelas realidades

mas acaba sendo inferior natildeo se presume que o dono desse pensamento

necessariamente jaacute tivesse um conhecimento preacutevio da realidade com a qual diz ele o

objeto visto se assemelha ainda que deficientemente

Necessariamente

Natildeo acha entatildeo que temos tido uma experiecircncia dessa natureza em relaccedilatildeo agraves

coisas iguais e ao Igual em si mesmo

Completamente

[75a] Entatildeo necessariamente adquirimos um conhecimento preacutevio do Igual

ainda antes da ocasiatildeo em que pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos

que todas elas almejam ser tal como o Igual mas satildeo inferiores a elas

Isso mesmo

Certamente concordamos com o seguinte natildeo haacute como jaacute termos pensado no

Igual nem haacute chance de isso acontecer a natildeo ser a partir da visatildeo tato ou algum outro

sentido Como eu digo os sentidos satildeo todos o mesmo

Satildeo todos o mesmo Soacutecrates pelo menos em relaccedilatildeo ao que o argumento

pretende provar

269

Entatildeo os sentidos natildeo nos fazem pensar que todas as coisas que pertencem ao

domiacutenio [75b] dos sentidos ndash as coisas sensiacuteveis ndash querem ser como o Igual mas satildeo

inferiores a ele O que diriacuteamos

Eacute assim mesmo

E antes de comeccedilarmos a ver ouvir e a utilizar os outros sentidos presumo que

foi necessaacuterio ter adquirido o conhecimento daquilo que eacute o Igual em si mesmo e soacute

entatildeo passar a comparar as coisas iguais decorrentes dos sentidos com o Igual em si

mesmo e a notar que todas elas almejam ser da mesma natureza que ele mas lhes satildeo

inferiores

Foi mesmo necessaacuterio Soacutecrates com base no que dissemos antes

Pois natildeo foi logo apoacutes o nascimento que comeccedilamos a ver a ouvir e a utilizar os

demais sentidos

Seguramente

[75c] Como estamos dizendo devemos ter adquirido o conhecimento do Igual

antes mesmo disso

Sim

Portanto parece-me que adquirimos esse conhecimento necessariamente antes

de nascer

Parece

270

Se o adquirimos antes de nascer e jaacute nascemos com ele natildeo conheciacuteamos antes

e imediatamente depois do nascimento natildeo somente o Igual mas tambeacutem o Maior o

Menor e todas [75d] as outras coisas dessa natureza Pois o nosso presente argumento

natildeo eacute mais sobre o Igual do que sobre o Belo em si mesmo o Justo e o Piedoso e como

tenho dito a respeito de tudo que identificamos com o selo lsquoo que eacute em si mesmorsquo tanto

nas perguntas que formulamos quanto nas respostas que damos Desse modo

adquirimos o conhecimento de tudo isso necessariamente antes de nascer

Isso mesmo

E se o conhecimento adquirido natildeo fosse esquecido sempre nasceriacuteamos em

posse dele e sempre o manteriacuteamos ao longo da vida Pois conhecer eacute isso manter o

conhecimento adquirido e natildeo se desvencilhar mais dele E o esquecimento Siacutemias natildeo

seria o que chamamos de perda do conhecimento

[75e] Sem sombra de duacutevida disse Soacutecrates

No tocante aos conhecimentos que tivemos no passado a respeito daquelas

coisas penso que se os adquirimos antes de nascer perdemos por ocasiatildeo do

nascimento e os recuperamos posteriormente utilizando os sentidos Assim o que

chamamos de aprendizagem natildeo consistiria em recuperar um conhecimento que nos

pertencia E natildeo estariacuteamos certos ao chamar isso de reminiscecircncia

Seguramente

271

[76a] Isso jaacute se mostrou possiacutevel quando algueacutem tem uma percepccedilatildeo de algo

utilizando a visatildeo audiccedilatildeo ou algum outro sentido a partir disso traz agrave mente um

segundo item o qual jaacute havia esquecido cuja relaccedilatildeo com o primeiro pode ser de

semelhanccedila ou dissemelhanccedila Como digo uma das duas ou nascemos em posse do

conhecimento dessas coisas e todos noacutes mantemos esse conhecimento ao longo da vida

ou aqueles que dizemos que aprendem nada mais fazem do que recordar de modo que

a aprendizagem seria reminiscecircncia

Isso mesmo Soacutecrates

Entatildeo Siacutemias qual opccedilatildeo vocecirc escolhe Noacutes nascemos em posse do

conhecimento ou soacute [76b] posteriormente eacute que recordamos as coisas cujo

conhecimento adquirimos previamente

No momento Soacutecrates natildeo tenho como escolher

Como natildeo Faccedila a sua escolha e diga o que pensa do seguinte caso uma pessoa

que tem conhecimento saberia ou natildeo dar uma explicaccedilatildeo daquilo que conhece

Certamente saberia Soacutecrates

Vocecirc acha que todas as pessoas saberiam dar uma explicaccedilatildeo sobre as coisas que

acabamos de falar

Gostaria que fosse assim disse Siacutemias mas receio que amanhatilde por volta dessa

hora natildeo haveraacute um ser humano que possa fazer isso com propriedade

272

[76c] Entatildeo Siacutemias disse ele vocecirc natildeo acha que todas as pessoas conhecem

aquelas coisas

De modo algum

Acaso elas se recordam das coisas que um dia aprenderam

Necessariamente

Quando as nossas almas adquiriram o conhecimento delas Eacute claro que natildeo foi a

partir do momento em que nascemos como seres humanos

Claro que natildeo

Antes entatildeo

Sim

Entatildeo Siacutemias as almas existiram anteriormente antes de assumirem a forma

humana ndash estavam destituiacutedas de corpo ndash e possuiacuteam conhecimento

A natildeo ser Soacutecrates que adquirimos esses conhecimentos na mesma hora em que

nascemos Resta ainda essa opccedilatildeo de tempo

[76d] Que seja meu amigo Mas em que ocasiatildeo noacutes os perdemos Nascemos

sem eles como acordamos haacute pouco ou noacutes os perdemos na ocasiatildeo em que os

adquirimos Ou vocecirc pode mencionar outra ocasiatildeo

De modo algum Soacutecrates Nem me dei conta que eu falava coisas sem sentido

Entatildeo Siacutemias disse ele vamos colocar as coisas assim se realmente existem as

coisas sobre as quais natildeo paramos de falar ndash o Belo o Bom e toda essecircncia dessa

273

natureza ndash associando [76e] a elas as coisas que derivam dos sentidos descobrindo a

sua existecircncia preacutevia bem como a nossa ciecircncia dela e comparando aquelas coisas com

essa a nossa conclusatildeo com base nisso eacute que a nossa alma necessariamente existia antes

de nosso nascimento Se tais coisas natildeo existissem natildeo seria necessaacuterio outro

argumento Natildeo seria igualmente necessaacuterio que elas existam e as nossas almas existam

antes do nosso nascimento E se elas natildeo existissem tampouco as nossas almas

Extraordinaacuterio Soacutecrates disse Siacutemias Tambeacutem acho que existe a mesma

necessidade e eacute bom para noacutes que o argumento repouse nessa equivalecircncia a nossa

alma existe antes do nosso [77a] nascimento assim como aquelas coisas existem como

vocecirc acabou de mencionar Pois estaacute claro para mim que todas as coisas desse tipo ndash

Belo Bom e outras da mesma natureza todas as demais que agora mesmo expotildee ndash

existem mais do que tudo E acho que estaacute suficientemente demonstrado

E Cebes perguntou Soacutecrates Pois devemos persuadir Cebes tambeacutem

Eu pelo menos penso que estaacute suficientemente demonstrado disse Siacutemias

Contudo Cebes [77b] se destaca entre as pessoas por ser difiacutecil de acreditar em

argumentos Eu penso que ele estaacute perfeitamente convencido de que a nossa alma

existia antes do nosso nascimento mas se ela ainda haveraacute de existir quando

morrermos Soacutecrates disse ele natildeo ficou demonstrado nem para ele nem para mim A

objeccedilatildeo que Cebes levantou haacute pouco ainda permanece a crenccedila popular de que na

ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua existecircncia Pois o

274

que a impede de nascer e se formar a partir de uma outra origem de existir antes de

alojar-se no corpo que lhe confere humanidade e depois de alojada separar-se do

corpo vindo entatildeo a morrer e a ser destruiacuteda

[77c] Fala bem Siacutemias disse Cebes Pois parece que estaacute demonstrado apenas

metade do que se deveria que a nossa alma existia antes de nascer Contudo ainda eacute

necessaacuterio provar que ela existiraacute depois da morte tal como existia antes de nascer para

que a prova fique completa

Estaacute demonstrado Siacutemias e Cebes disse Soacutecrates agora mesmo basta querer

combinar num soacute este argumento e aquele anterior com o qual concordamos de que

tudo o que vive vem a [77d] ser a partir do que estaacute morto Pois se a alma tem uma

existecircncia preacutevia eacute necessaacuterio que ela ao viver e nascer provenha tatildeo somente a partir

da morte e do estar morto Como natildeo seria necessaacuterio que ela existisse depois da morte

jaacute que ela deve nascer novamente Portanto estaacute demonstrado o que vocecircs acabaram de

questionar Apesar disso eu acho que tanto vocecirc quanto o Siacutemias teriam prazer de

estudar esse argumento com mais profundidade por causa do seu temor [77e] pueril de

que o vento realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania

Cebes riu e disse tenta nos convencer Soacutecrates como se temecircssemos Melhor

ainda retiro o lsquocomo se temecircssemosrsquo porque talvez tenhamos mesmo uma crianccedila

275

dentro de noacutes que teme coisas desse tipo Portanto tenta convencecirc-la a natildeo temer a

morte como se fosse o Bicho Papatildeo

Eacute necessaacuterio Soacutecrates proferir encantamentos todos os dias ateacute que o temor

desapareccedila

[78a] Mas onde Soacutecrates perguntou conseguimos um bom encantador para

esse tipo de problema jaacute que vocecirc estaacute nos deixando

Grande eacute a Greacutecia Cebes disse Soacutecrates onde encontraraacute nobres varotildees

Tambeacutem devem especular e buscar um encantador dessa envergadura na multidatildeo de

povos baacuterbaros sem poupar dinheiro e trabalho pois natildeo investiria o seu dinheiro em

nada mais rentaacutevel Devem buscar tambeacutem entre vocecircs mesmos pois dificilmente

encontraratildeo algueacutem mais capacitado do que vocecircs para esse mister

[78b] Mas isto seraacute feito disse Cebes Vamos retomar de onde paramos se a

ideia te agrada

Como natildeo Claro que me agrada

Muito bem disse

ARGUMENTO DAS AFINIDADES

Sendo assim disse Soacutecrates devemos nos perguntar o seguinte a que tipo de

coisa pertence aquela que eacute suscetiacutevel a sofrer dispersatildeo Que tipo de coisa temeriacuteamos

276

que fosse dissipada e que tipo de coisa natildeo E em seguida passemos a examinar a qual

desses dois tipos de coisas pertence a alma e com base nisso ter confianccedila ou temor em

relaccedilatildeo agrave nossa proacutepria alma

Eacute verdade disse ele

[78c] Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto e ao que eacute composto por

natureza sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto junto Por outro lado se haacute algo

simples pertence somente a isso mais do que a qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a

sofrer decomposiccedilatildeo

Eacute assim que penso disse Cebes

Entatildeo natildeo seria bem plausiacutevel que as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado

e condiccedilatildeo sejam aquilo que eacute simples enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em

ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estado sejam as compostas

Eacute o que me parece

Entatildeo nos voltemos agora disse para aquelas mesmas coisas que tratamos num

argumento [78d] anterior Refiro-me agravequela essecircncia cujo ser estaacute sendo discutido por

meio de perguntas e respostas estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estado ou sua

condiccedilatildeo oscila em diferentes ocasiotildees O igual em si o belo em si aquilo que cada

coisa eacute em si aquilo que eacute se sujeitariam a algum tipo de mudanccedila Ou cada uma

dessas coisas em si sendo uniforme e sozinha permanece sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado sem se sujeitar a qualquer tipo de alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

277

Eacute necessaacuterio que permaneccedilam na mesma condiccedilatildeo e estado Soacutecrates disse

Cebes

[78e] O que diriacuteamos a respeito das muitas coisas belas tal como pessoas

cavalos roupas e outras coisas desse tipo ou das coisas iguais ou de todas as outras que

compartilham o mesmo nome daquelas que mencionamos Acaso se manteacutem no mesmo

estado ou em completo contraste com aquelas como se pode dizer nunca e de modo

algum permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre si

Concordo mais uma vez disse Cebes elas nunca permanecem no mesmo estado

[79a] Mas as outras coisas natildeo se poderia tocar ver ou perceber pelos demais

sentidos enquanto essas que permanecem no mesmo estado natildeo se podem apreender

por qualquer outro meio a natildeo ser pelo raciociacutecio do pensamento por serem invisiacuteveis

algo que natildeo se vecirc

O que vocecirc diz eacute totalmente verdadeiro disse

Entatildeo pretende que estabeleccedilamos disse que existem duas classes de seres a

visiacutevel e a invisiacutevel

Faccedilamos isso

A invisiacutevel sempre permanece no mesmo estado enquanto a visiacutevel nunca

permanece no mesmo estado

Vamos estabelecer isso tambeacutem disse

[79b] Avancemos entatildeo disse temos algo mais do que corpo e alma

278

Nada aleacutem disso respondeu

Entatildeo qual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e ter mais

afinidade com o corpo

Estaacute bem evidente a qualquer pessoa disse que eacute o visiacutevel

E quanto agrave alma Visiacutevel ou invisiacutevel

Pelo menos ao ser humano eacute invisiacutevel Soacutecrates disse

Mas noacutes estaacutevamos conversando justamente sobre as coisas que seriam e as que

natildeo seriam visiacuteveis agrave natureza do ser humano ou estava pensando em alguma outra

Natildeo agrave natureza do ser humano

O que entatildeo diriacuteamos a respeito da alma Seria algo visiacutevel ou invisiacutevel

Natildeo visiacutevel

Invisiacutevel entatildeo

Sim

Entatildeo a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma

[79c] Eacute absolutamente necessaacuterio Soacutecrates

E natildeo era isto que diziacuteamos antes quando a alma se utiliza do corpo para

examinar algo seja por meio da visatildeo audiccedilatildeo ou por meio de algum outro sentido ndash

pois examinar algo por meio do corpo eacute examinar por meio dos sentidos ndash eacute entatildeo

arrastada pelo corpo para as coisas que nunca permanecem na mesma condiccedilatildeo e assim

279

ela anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a

natureza das coisas que ela estaacute alcanccedilando

Certamente

[79d] Mas quando ela proacutepria por si mesma examina nessa ocasiatildeo se

encaminha para o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo E por

causa da sua afinidade com isso a alma sempre vem a estar com ele sempre que lhe eacute

possiacutevel se colocar ela proacutepria por si mesma Nessa ocasiatildeo deixa de andar erraacutetica ela

permanece sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo relativamente a essas coisas por que

esta eacute a natureza das coisas que estaacute alcanccedilando Essa experiecircncia da alma natildeo seria

chamada de conhecimento

O que vocecirc disse respondeu eacute completamente belo e verdadeiro Soacutecrates

[79e] Mais uma vez e com base tanto no que jaacute foi dito quanto no que dizemos

agora com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e afinidade

Acredito que respondeu a partir dessa linha de inquiriccedilatildeo Soacutecrates todas as

pessoas ateacute algueacutem com grande dificuldade de aprendizagem reconheceria que de todo

jeito a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo

que natildeo estaacute

E quanto ao corpo

Assemelha-se mais a esse outro tipo de coisa

280

[80a] Veja a questatildeo agora sob este acircngulo quando a alma e o corpo estatildeo

juntos por imposiccedilatildeo da natureza o corpo eacute o que serve e eacute governado enquanto a alma

governa e domina Tendo em vista essa relaccedilatildeo pergunto novamente qual dos dois

vocecirc acha que se assemelha mais ao divino e qual ao mortal Ou natildeo acha que o divino

eacute por natureza o que domina e dirige enquanto o mortal o que eacute dirigido e serve

Com certeza

Entatildeo a alma eacute como qual dos dois

Eacute evidente Soacutecrates que a alma eacute como o divino enquanto o corpo eacute como o

mortal

[80b] Examina agora Cebes disse ele se de tudo que temos dito podemos

concluir o seguinte que a alma eacute mais semelhante ao divino imortal inteligiacutevel

uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo enquanto

o corpo por outro lado eacute mais semelhante ao humano mortal multiforme sensiacutevel

soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo Teriacuteamos algo a dizer contra isso

amigo Cebes algo que se contraponha a esse resultado

Natildeo temos

Mas entatildeo Sendo as coisas desse jeito acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

[80c] Como natildeo

281

UacuteLTIMO ARGUMENTO

[105c] Diga-me entatildeo perguntou Soacutecrates o que deve estar presente num corpo

para que ele tenha vida

Uma alma respondeu

[105d] E eacute sempre assim

Com certeza disse ele

Portanto quando a alma ocupa algo chega sempre trazendo vida para ele

Claro que chega respondeu

E existe ou natildeo um oposto para a vida

Existe falou

O quecirc

Morte

Entatildeo a alma jamais admitiraacute o oposto daquilo que traz consigo como foi

acordado antes

Mas natildeo tenha duacutevida disso falou Cebes

Como eacute mesmo que agorinha chamaacutevamos aquilo que natildeo admite a forma do

par

Iacutempar respondeu

E ao que natildeo admite o justo ou o musical

282

[105e] O natildeo musical disse e o natildeo justo

Muito bem E como chamariacuteamos aquilo que natildeo admite morte

Imortal disse

Entatildeo a alma natildeo admite morte

Natildeo

Portanto a alma eacute imortal

Isso imortal

Muito bem falou Poderiacuteamos dizer que isto foi provado O que vocecirc acha

Sim e de modo suficiente Soacutecrates

Se os injustos fossem necessariamente impereciacuteveis trecircs certamente seriam

impereciacuteveis natildeo seria

[106a] Entatildeo Cebes perguntou se o iacutempar fosse necessariamente indestrutiacutevel

o trecircs tambeacutem natildeo seria indestrutiacutevel

Como natildeo

Agora se o natildeo quente tambeacutem fosse necessariamente indestrutiacutevel quando

algueacutem aproximasse calor agrave neve ela natildeo bateria em retirada intacta e sem derreter

Pois nem pereceria nem ficaria ali de novo e admitiria o calor

Corretamente disse

283

Por semelhante modo se o natildeo frio fosse indestrutiacutevel quando algo frio

arremetesse contra o fogo ele jamais apagaria ou pereceria mas bateria em retirada e

seguiria intacto

Necessariamente disse

[106b] Agora natildeo seria necessaacuterio falar tambeacutem dessa maneira a respeito do

imortal Se o imortal tambeacutem fosse indestrutiacutevel seria impossiacutevel que a alma viesse a

perecer quando a morte arremetesse contra ela Porque como foi dito natildeo admitiraacute a

morte e nem tombaraacute morta assim como concordamos que nem o trecircs nem o iacutempar

seratildeo pares nem o fogo e o calor que haacute nele seratildeo frios Mas algueacutem poderia

questionar o que impediria o iacutempar ndash mesmo que natildeo se transforme em par quando este

arremete contra ele assim como concordamos ndash de perecer e o par lhe tomar o posto

Contra isto natildeo teriacuteamos como argumentar que o iacutempar natildeo perece porque ele natildeo eacute

indestrutiacutevel Se concordaacutessemos a esse respeito facilmente argumentariacuteamos que o trecircs

e o iacutempar bateriam em retirada quando o par arremetesse contra ele Argumentariacuteamos

assim tambeacutem no caso do fogo do calor e tudo mais Natildeo eacute mesmo

Absolutamente

Portanto agora no que diz respeito ao imortal se concordaacutessemos que ele eacute

tambeacutem [106d] indestrutiacutevel a alma seria imortal e indestrutiacutevel Caso contraacuterio seria

necessaacuterio outro argumento

284

Mas isto natildeo eacute necessaacuterio por esta razatildeo disse dificilmente outra coisa natildeo

admitiria destruiccedilatildeo se o imortal sendo eterno a admitisse

E eu acho que pelo menos a divindade respondeu Soacutecrates e a proacutepria forma da

vida e se existe alguma outra coisa imortal todas as pessoas concordariam que nunca

perecem

Sem duacutevida todas as pessoas concordariam por Zeus disse e eu penso que os deuses

ainda mais

[106e] Portanto jaacute que o imortal tambeacutem eacute indestrutiacutevel e a alma natildeo seria

outra coisa a natildeo ser imortal ela tambeacutem seria indestrutiacutevel ou natildeo

Eacute absolutamente necessaacuterio

Sendo assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao

que parece tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo

ela parte retirando-se da presenccedila da morte

Eacute o que parece

[107a] Sendo assim eacute mais do que certo que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel e

que as nossas almas realmente existiratildeo no Hades

De minha parte Soacutecrates disse ele natildeo tenho mais nenhuma objeccedilatildeo nem

desconfio das coisas que disse Mas caso Siacutemias que estaacute aqui ou mesmo outra pessoa

tenha algo a dizer esta eacute a hora de falar Porque se algueacutem quiser dizer ou ouvir alguma

coisa sobre este assunto natildeo conheccedilo nenhuma outra ocasiatildeo aleacutem desta para fazecirc-lo

285

[107b] De minha parte Soacutecrates disse Cebes natildeo tenho nada a acrescentar e

nem desconfio do que vocecirc falou Contudo pela complexidade da temaacutetica que

abordamos em nossa conversa e por natildeo ter apreccedilo pela fraqueza humana ainda

necessito carregar comigo certa desconfianccedila a respeito de nossa conversa

Natildeo apenas isto Siacutemias disse Soacutecrates Vocecircs estaacute fazendo uma boa colocaccedilatildeo

Ateacute mesmo as primeiras hipoacutetese ainda que pareccedilam confiaacuteveis para noacutes devemos

igualmente voltar a examinaacute-las mais claramente E eu acho que se vocecirc analisaacute-las

suficientemente seguiraacute o argumento ateacute o maacuteximo que algueacutem possa seguir Se isto

ficar claro para vocecirc natildeo teraacute de prosseguir na pesquisa

Isso eacute verdade disse ele

286

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__________ lsquoPlatonic causesrsquo Phronesis 43 1998 114-132

________lsquoPlatos theory of change at Phaedo 70-71rsquo Meacutelanges Kahn (Charles) 2012

147-163

Sedley amp Long Plato Meno and Phaedo Cambridge Cambridge University Press

2011

Sider David The fragments of Anaxagoras Sankt Augustin Academia Verlag 2005

Silverman Allan 2002 The Dialectic of Essence Princeton University Press

Taylor A E Plato the Man and his Work London 1922

Trabattoni Franco Platatildeo Satildeo Paulo AnnaBlume 2010

Wagner Ellen 2001 Essays on Platos Psychology Lanham Maryland Lexington

Books

White David A 1989 Myth and Metaphysics in Platos Phaedo Selingrove

Susquehanna University Press

Yi Byeong-Uk 2009 ldquoThe Cyclical Argument and Principles of Change in

Platos Phaedordquo Logical Analysis and History of Philosophy 12 85ndash102

Zhmud Leonid 2012 Pythagoras and the Early Pythagoreans Oxford Oxford

University Press

  • Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
    • AGRADECIMENTOS
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • SUMAacuteRIO
    • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)
    • 3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)
    • 4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)
    • 5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)
    • 6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)
    • 7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)
    • 8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
    • 9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO
    • 10 BIBLIOGRAFIA
Page 3: FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS - USP · 2019. 2. 21. · O diálogo inicia com uma conversa entre Fédon e Equécrates, o qual solicita uma narrativa detalhada sobre a morte de

Nome BARROS Francisco de Assis Nogueira

Tiacutetulo Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo

Parcial

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e

Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte

dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Letras Claacutessicas

Aprovado em

Banca examinadora

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________

Julgamento_____________ Assinatura___________________________

AGRADECIMENTOS

Agrave Capes pela bolsa fornecida

RESUMO

O tema principal do Feacutedon de Platatildeo eacute a imortalidade da alma Meu objetivo

nesta tese eacute apresentar um estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no

Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo

ABSTRACT

The main topic of the Platorsquos Phaedo is the immortality of the soul My aim in

this thesis is to present a study of the arguments for immortality of the soul in the

Phaedo and a partial translation of the dialogue

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip9

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip13

3 ARGUMENTO CIacuteCLICOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip32

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip70

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADEShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip102

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOShelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip155

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITOhelliphelliphelliphelliphellip215

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip228

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIALhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip233

10 BIBLIOGRAFIA helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip286

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

Apesar da vasta literatura criacutetica destinada ao estudo dos argumentos sobre a

imortalidade da alma no Feacutedon a temaacutetica eacute sobremodo complexa e continua

desafiando os pesquisadores Temas tidos como tradicionais e consolidados sobre a

alma em Platatildeo merecem ser revisitados reavaliados e confrontados com nova

investigaccedilatildeo uma vez que a formaccedilatildeo e inclinaccedilatildeo pessoal de cada estudioso permite

investigar Platatildeo de diferentes maneiras e chegar a diferentes respostas a partir de

diferentes meacutetodos e instrumentos hermenecircuticos razatildeo pela qual Platatildeo continua

exercendo encanto duradouro sobre todos noacutes1 Sendo assim eacute natural que haja um

renovado interesse pelos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma e ele comeccedila a ser

desenvolvido a partir do primeiro estaacutegio do diaacutelogo quando Soacutecrates apresenta a sua

defesa perante seus amigos de seu modo de vida e atitude perante a morte Nesta

ocasiatildeo ele afirma a sua convicccedilatildeo de que a alma do verdadeiro filoacutesofo ndash aquele que

vive na praacutetica da morte ao longo de toda a sua vida ndash desceraacute ao Hades onde se juntaria

aos deuses Nesta primeira etapa a imortalidade eacute simplesmente assumida nas

declaraccedilotildees de Soacutecrates como lsquotenho uma boa expectativa de que haja algo reservado

para os mortosrsquo A sua convicccedilatildeo eacute conforme a tradiccedilatildeo aquilo que os antigos diziam

lsquoque haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para os mausrsquo (63c5-7) Mas

Soacutecrates natildeo convence aos amigos com a sua esperanccedila de cunho meramente religioso

Haacute pessoas que acreditam que a alma poderia ser destruiacuteda na ocasiatildeo em que se separa

1 Valditara in Fermani Migliori Valditara (org) 2007 p5

10

do corpo Esta crenccedila na aniquilaccedilatildeo da alma deve ser enfrentada com argumentaccedilatildeo

filosoacutefica Seria necessaacuterio um grande esforccedilo de Soacutecrates para mostrar que a alma da

pessoa que morre continua a existir com capacidade e conhecimento (ὡς ἔστι τε ψυχὴ

ἀποθανόντος τοῦ ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) (Cf70a1-b4) Com

esta problemaacutetica se inicia uma seccedilatildeo demonstrativa em que o tema da imortalidade

recebe tratamento filosoacutefico especializado Nesta etapa temos quatro argumentos ou

provas da imortalidade da alma (i) argumento ciacuteclico ou dos opostos (70c-72d) (ii)

argumento da reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento das afinidades (78b-80b) (iv)

uacuteltimo argumento (96a-107b) O objetivo deste trabalho eacute apresentar um estudo de cada

argumento sobre a imortalidade da alma no Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo ndash

de toda a primeira etapa do diaacutelogo e de cada argumento propriamente dito

Natildeo pretendemos fazer uma exposiccedilatildeo e anaacutelise exaustiva de cada argumento

Natildeo raramente cada linha de cada argumento eacute objeto de amplo debate e uma discussatildeo

exaustiva de cada toacutepico levantado vai aleacutem do escopo de nossa pesquisa O nosso

objetivo eacute reavaliar as provas da imortalidade com o fim de observar como cada uma

delas procura se estabelecer como prova da imortalidade da alma Em diaacutelogo com a

tradiccedilatildeo criacutetica esperamos reafirmar posiccedilotildees interpretativas jaacute consagradas mas

tambeacutem sugerir rupturas e novos caminhos de interpretaccedilatildeo sempre que possiacutevel

Sobre a nossa interpretaccedilatildeo do diaacutelogo eacute importante dizer que privilegiamos a

exegese textual e a interpretaccedilatildeo de cada argumento propriamente dito mas

considerando o contexto imediato o contexto mais amplo da obra e a relaccedilatildeo muacutetua

entre os argumentos evitando interpretar cada argumento como se fosse uma unidade

isolada Considerando o contexto amplo do diaacutelogo apresentamos um breve estudo

11

sobre a doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico que eacute um dos saberes tradicionais com os

quais Platatildeo dialoga com frequecircncia no Feacutedon

Teremos o cuidado de dialogar com a tradiccedilatildeo interpretativa cujo esforccedilo para a

compreender o Feacutedon eacute notaacutevel e sua contribuiccedilatildeo para a compreensatildeo do diaacutelogo eacute

inestimaacutevel Mas evitaremos ao maacuteximo transportar projetar e impor ao diaacutelogo

posiccedilotildees filosoacuteficas desenvolvidas posteriormente evitando interpretaccedilotildees anacrocircnicas

Aleacutem disso eacute importante reconhecer que em geral a interpretaccedilatildeo de um

diaacutelogo platocircnico eacute em parte predeterminada e moldada pelo que jaacute ouvimos a respeito

dele Um exemplo disso eacute a tendecircncia de acompanhar a literatura criacutetica em sua

costumeira propagaccedilatildeo da ideia de que o Feacutedon pretende ser uma exposiccedilatildeo e defesa

dos lsquopilares gecircmeosrsquo do Platonismo imortalidade da alma e teoria das Formas A

propagaccedilatildeo dessa ideia tem levado inteacuterpretes a conceber ou pelo menos sugerir a

existecircncia de uma dupla temaacutetica de igual importacircncia no Feacutedon2 Nossa tese diverge

desta tendecircncia reconhecendo que o tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma

individual e que o diaacutelogo natildeo pretende apresentar uma exposiccedilatildeo e defesa da teoria

das Formas como a tradiccedilatildeo interpretativa consagrou mas sim uma sistemaacutetica defesa

da imortalidade da alma Embora lsquoFormasrsquo e outros temas tenham importacircncia no

diaacutelogo do iniacutecio ao fim o Feacutedon estaacute voltado para o problema da imortalidade da alma

Portanto procuramos reler o Feacutedon sem excessiva dependecircncia daquilo que jaacute se

disse a respeito dos argumentos sobre a imortalidade da alma Nem mesmo abraccedilaremos

a ideia de que Platatildeo espera que o leitor entreveja teorias filosoacuteficas complexas em

passagens nas quais o filoacutesofos natildeo apresenta uma exposiccedilatildeo consistente sobre elas

2 Cf Burger 1984 p2 Cf Bluck 1955 p2 Cf Gallop 2002 p97 ldquoA doutrina da imortalidade

eacute logicamente dependente da Teoria das Formasrdquo

12

Tambeacutem evitamos incorrer na tentativa de complementar o que Platatildeo deixou

(deliberadamente ou natildeo) vago e inconcluso no Feacutedon

Aleacutem do estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon esta

tese tambeacutem apresenta uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo uma traduccedilatildeo de toda a

primeira etapa do Feacutedon (57a-70c) e a traduccedilatildeo de cada argumento propriamente dito

Noacutes apresentamos um comentaacuterio sobre as seccedilotildees que circundam cada argumento e

todas as citaccedilotildees do Feacutedon apresentadas na tese inclusive das seccedilotildees que natildeo

traduzimos integralmente satildeo de nossa autoria Nossa traduccedilatildeo seraacute baseada na mais

recente ediccedilatildeo do texto grego a ediccedilatildeo inglesa de E A Duke W F Hicken W S M

Nicoll D B Robinson e J C G Strachan (Oxford Classical Texts 1995)

13

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)

21 Panorama Geral

O diaacutelogo inicia com uma conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates o qual solicita

uma narrativa detalhada sobre a morte de Soacutecrates Ele quer saber minuciosamente tudo

que Soacutecrates conversou com seus amigos e tudo que aconteceu no caacutercere horas antes

de sua execuccedilatildeo (58d) Jaacute se passou algum tempo entre a morte de Soacutecrates e a conversa

entre Feacutedon e Equeacutecrates (57a-b) Feacutedon entatildeo assume o papel de narrador e se dispotildee a

satisfazer o pedido de Equeacutecrates Antes de comeccedilar a extensa narrativa Feacutedon revela

algo de fundamental importacircncia e que geralmente passa despercebido pelos

inteacuterpretes o proacuteprio narrador declara a sua crenccedila particular de que a alma de Soacutecrates

iria para o Hades com uma divina Moira (58e-59a) Soacutecrates faraacute uma afirmaccedilatildeo

semelhante em breve Sobretudo na primeira etapa do diaacutelogo a imortalidade da alma

individual (alma de Soacutecrates) eacute simplesmente assumida pelo narrador e pelo proacuteprio

Soacutecrates a partir de um discurso de cunho religioso

Conforme o relato de Feacutedon antes de beber o veneno Soacutecrates sustenta que o

verdadeiro filoacutesofo encara a morte com naturalidade Os amigos de Soacutecrates querem

saber por que o filoacutesofo estaacute contente em morrer o que lhes parece absurdo O filoacutesofo

entatildeo oferece-lhes uma defesa que pretende ser mais convincente do que aquela

apresentada aos juiacutezes e que visa justificar sua presente atitude diante da morte seu

desejo de morrer (60c-62c)3 Enquanto apresenta sua defesa Soacutecrates desenvolve o

3 Enquanto na Apologia de Soacutecrates o filoacutesofo discursa para a cidade e tenta se defender da

acusaccedilatildeo de corromper a juventude e de introduzir novas divindades na cidade na segunda

14

tema da vida filosoacutefica afirmando que o legiacutetimo filoacutesofo dedica a vida ao exerciacutecio da

filosofia que consiste num exerciacutecio de morrer e de estar morto que antecipa os

benefiacutecios advindos com a morte a saber a liberaccedilatildeo do corpo o rival da alma o qual

oblitera a insaciaacutevel busca do filoacutesofo pela verdade (64a-65a) Vivendo assim o

legiacutetimo filoacutesofo jamais receia a morte pois eacute ela que lhe abre as portas para uma

melhor existecircncia4

Enquanto desenvolve a defesa da atitude do legiacutetimo filoacutesofo frente agrave morte

Soacutecrates simplesmente assume a sobrevivecircncia de sua alma post mortem com base tatildeo

somente na esperanccedila (ἐλπίς) de que em lugar algum a natildeo ser no Hades eacute que o

verdadeiro filoacutesofo alcanccedilaraacute de modo pleno e digno a sabedoria que almeja concluindo

que o filoacutesofo deve crer nisso (οἴεσθαί γε χρή) (68a-b) Dessa forma Soacutecrates alinha sua

crenccedila na sobrevivecircncia da alma post mortem com a crenccedila de Feacutedon no proacutelogo do

diaacutelogo Portanto a imortalidade da alma eacute simplesmente assumida nesta etapa do

diaacutelogo como uma ideia do acircmbito da religiatildeo Platatildeo dialoga com os saberes

tradicionais jaacute estabelecidos A proposta do diaacutelogo desde o iniacutecio se delineia a

discussatildeo sobre a imortalidade da alma deveraacute passar do niacutevel da crenccedila religiosa

baseada na ἐλπίς para um patamar de discussatildeo filosoacutefica

A postura de Soacutecrates imediatamente provoca a reaccedilatildeo de seu amigo Cebes que

embora elogie a fala do filoacutesofo exibe sua insatisfaccedilatildeo no que foi dito concernente agrave

alma Soacutecrates natildeo deu garantia de que a alma ao separar-se do corpo continuaria

existindo em algum lugar Cebes menciona a duacutevida que as pessoas nutrem de que a

morte traria consigo a destruiccedilatildeo da alma a qual desvaneceria tal qual sopro ou fumo na

defesa ele tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que natildeo estaacute convencido de que a morte

eacute o melhor para o filoacutesofo

4 No Feacutedon a morte eacute definida como a separaccedilatildeo da alma e do corpo (64c4-9)

15

ocasiatildeo em que se separa do corpo (69e-70a) A personagem Cebes eacute quem reclama o

tratamento filosoacutefico da temaacutetica da imortalidade da alma e em resposta agrave sua

colocaccedilatildeo eacute que Soacutecrates se dispotildee a mostrar que a alma da pessoa que morre continua

existindo mantendo capacidade e sabedoria (ὡς ἔστι τε ψυχὴ ἀποθανόντος τοῦ

ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) mas adverte que essa empresa natildeo seria

faacutecil (69e-70b) Daacute-se iniacutecio a uma longa etapa argumentativa no diaacutelogo na qual

Soacutecrates apresenta quatro argumentos ou provas da imortalidade da alma no Feacutedon (i)

argumento ciacuteclico (ou argumento dos opostos) (70c-72d) (ii) argumento da

reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento da afinidade (78b-80b) (iv) uacuteltimo argumento

(96a-107b)

22 A alma e o alcance das coisas em si

Antes de tratarmos especificamento do nosso objeto de estudo ndash as provas da

imortalidade da alma ndash vejamos alguns toacutepicos importantes na primeira etapa do

diaacutelogo comeccedilando pela alma e o alcance das coisas em si Enquanto desenvolve o

tema da vida filosoacutefica Soacutecrates considera que haacute coisas como lsquoo justo em si mesmorsquo

(δίκαιον αὐτὸ) (65d4-5) que ele tambeacutem chama de essecircncia (ἡ οὐσία) (65d13) lsquoas

coisas que satildeorsquo (τά ὄντα) (66a3) ou lsquocoisas em si mesmasrsquo (αὐτὰ τὰ πράγματα) (66e1-

2) O filoacutesofo vive agrave caccedila dessas coisas almejando apoderar-se da verdade (ἀλήθειά) e

do conhecimento (φρόνησις) (66a5-6) mas o corpo se impotildee como rival da alma porque

oblitera essa busca do filoacutesofo Em suma essa busca da lsquocoisa em sirsquo envolve o objeto

de conhecimento definido a purificaccedilatildeo filosoacutefica e o instrumento de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Segue uma breve explicaccedilatildeo de cada um deles

16

(i) O objeto de conhecimento satildeo lsquoas coisas em sirsquo Quando Soacutecrates comeccedila a

explicar que o corpo eacute um obstaacuteculo para a alma alcanccedilar a verdade ele diz

que soacute atraveacutes do exerciacutecio da razatildeo eacute que τι τῶν ὄντων lsquoalgo dessas coisasrsquo

se mostram para a alma (65c2-3)5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τά

ὄντα) e logo depois no singular (τὸ ὄν) (65c3 9) Soacutecrates apresenta vaacuterios

exemplos de lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em si mesmorsquo lsquoo belorsquo e lsquoo bomrsquo (65d4-

7) e imediatamente estende a questatildeo a toda classe de coisas desse tipo ldquoEu

estou falando de todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa

eacuterdquo (65d11-65e1)

(ii) A purificaccedilatildeo (κάθαρσις) filosoacutefica eacute o maacuteximo afastamento possiacutevel da

alma do corpo 6 Isto equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (64a) e

eacute necessaacuterio porque o corpo (τὸ σῶμα) eacute obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do

conhecimento (φρόνησις) uma vez que os sentidos natildeo satildeo confiaacuteveis

visatildeo audiccedilatildeo e os demais sentidos do corpo (αἴσθησις) natildeo oferecem

precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) (65a9-65b7)

(iii) A aquisiccedilatildeo do conhecimento ocorre atraveacutes do pensamento sozinho (αὐτῇ

τῇ διανοίᾳ) sem mistura ou sem interaccedilatildeo com os sentidos (65e7 66a1-2) A

5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τῶν ὄντων) e no singular (τοῦ ὄντος) (65c3 9) Conforme

Rowe (1993 p 140) o termo singular τοῦ ὄντος eacute o coletivo equivalente de τῶν ὄντων

6 ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o mais possiacutevel a

alma do corpo e acostumaacute-la sozinha por si mesma concentrando-se e recolhendo-se agrave parte de

cada membro do corpo e vivendo o maacuteximo possiacutevel sozinha por si mesma tanto agora como

no porvir num ato de constante libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de

cadeiasrdquo (67c5-d1)

17

alma deve raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν)

para que possa alcanccedilar as coisas em si mesmas (65c2-9 Cf 65e-66a)

Soacutecrates sugere que eacute possiacutevel utilizar a faculdade cognitiva da alma sem a

interferecircncia do corpo e seus sentidos de modo que a alma funcione com

independecircncia7 Eacute somente quando algum de noacutes se puser a pensar com rigor

e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber cada coisa em si que se

poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Essa apresentaccedilatildeo da busca da alma pelas lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em sirsquo lsquoo belo

em sirsquo lsquoo bom em sirsquo (64e-66a) leva inteacuterpretes a pensar que uma doutrina das Formas

jaacute estaacute presente na primeira etapa do diaacutelogo Eacute largamente aceito que a chamada teoria

das Formas eacute introduzida pela primeira vez no diaacutelogo em 65d4-5 8 Mas essa

compreensatildeo geralmente se baseia no contexto posterior do Feacutedon uma vez que em

65d4-5 ainda natildeo haacute elementos suficientes para sustentar essa conclusatildeo Natildeo haacute duacutevida

que uma teoria das Formas ou o esboccedilo do que seria uma teoria das Formas

desenvolve-se a partir da formulaccedilatildeo que aparece em 65d mas isto natildeo significa que

neste ponto do diaacutelogo e com base nesta incipiente apresentaccedilatildeo de coisas como o justo

7 Cf Chen 1990 p5455 o qual esclarece que vaacuterios lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo (alguns usados

figurativamente como lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo) satildeo utilizados para denotar cogniccedilatildeo intelectual das

coisas em si mesmas reforccedilando a ideia de que a alma pode trabalhar de modo independente

para alcanccedilar as coisas em si γιγνώσκω (65e4) φρονέω (66c5) ἅπτω (65b9 c9) ἐφάπτω

(65d11 67b2) λογίζομαι (65c2 66a1 substantivo λογισμός) διανοέομαι (65e3 66a2

substantivo διάνοια) θεατέον (θεάομαι 66e1) θεωρέω (65e2) καθοράω (66d7)

8 Bostock 1989 p 194 Gallop 2002 p93 Hackfort 1998 p 50 Silverman 2002 p49

18

em si que a alma anseia alcanccedilar jaacute possamos falar de uma complexa teoria metafiacutesica

uma teoria das Formas no Feacutedon9 Eis algumas razotildees para isto

(i) A terminologia eacute imprecisa

(ii) Natildeo haacute indiacutecios suficientes de que lsquocoisas em sirsquo sejam entidades

metafiacutesicas Eacute difiacutecil que Platatildeo jaacute estivesse introduzindo algum termo

teacutecnico nessa altura do diaacutelogo e noacutes natildeo devemos importar qualquer

noccedilatildeo filosoacutefica posterior para tentar entender essa passagem10

(iii) Em 65d4 temos a pergunta φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν

(ldquoafirmamos que existe um justo em si mesmo ou natildeordquo) a qual tem

sido largamente considerada como pergunta-chave para a introduccedilatildeo da

chamada teoria das Formas no diaacutelogo Contudo essa pergunta segue

uma formulaccedilatildeo ordinaacuteria da liacutengua grega Pouco antes disso Soacutecrates jaacute

havia formulado uma pergunta semelhante em relaccedilatildeo agrave morte em 64c2

ἡγούμεθά τι τὸν θάνατον εἶναι (ldquoConsideramos que a morte eacute alguma

coisardquo) Nesta passagem temos apenas um ordinaacuterio modo de expressatildeo

da liacutengua grega sem qualquer alusatildeo agrave existecircncia de entidades

metafiacutesicas De modo algum Soacutecrates estaacute se referindo a uma Forma da

morte mas apenas agrave ordinaacuteria existecircncia do evento morte neste contexto

pessoas morrem logo existe um tipo de coisa que chamamos morte

Neste contexto Soacutecrates estaacute preparando os amigos para admitirem que

morte eacute a separaccedilatildeo da alma de seu corpo (64c4-5) Em 65d4 o filoacutesofo

9 Rowe 1993 p 140-141

10 Rowe 1993 p141

19

repete a formulaccedilatildeo da pergunta mas agora falando das lsquocoisas em sirsquo

Portanto esse tipo de pergunta natildeo eacute necessariamente uma formulaccedilatildeo

teacutecnica para inquirir sobre a existecircncia de Formas metafiacutesicas

(iv) Seria estranho que Platatildeo introduzisse Formas metafiacutesicas sem que

discutisse as suas qualidades como faz no argumento das afinidades

onde Platatildeo qualifica essas lsquocoisas em sirsquo de maneira clara satildeo puras

distintas e superiores aos objetos particulares invisiacuteveis eternas

imortais permanecem sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo existem agrave

parte dos objetos sensiacuteveis e somente a alma sozinha por si mesma pode

alcanccedilar Neste contexto expressotildees como τὸ ὄν (78d4) podem ser pela

primeira vez admitidas como clara referecircncia a certas entidades

metafiacutesicas

(v) Uma abrupta inclusatildeo de uma teoria metafiacutesica neste ponto do diaacutelogo

seria improvaacutevel

(vi) Seria estranho que Platatildeo jaacute estivesse apresentando uma teoria das

Formas na primeira etapa do diaacutelogo e inicie a etapa demonstrativa com

o argumento ciacuteclico onde natildeo temos qualquer referecircncia a lsquoFormasrsquo

23 Transiccedilatildeo para a etapa demonstrativa

Quando Soacutecrates apenas assume a crenccedila de que a sua alma continuaria a existir

no Hades depois da morte e a imortalidade eacute asssumida conforme os padrotildees de uma

tradiccedilatildeo religiosa Cebes coloca em conflito duas tradiccedilotildees diacutespares a respeito da alma

post mortem ndash uma admitia que a alma eacute aniquilada e desvanece como sopro ou fumo

20

por ocasiatildeo da morte enquanto a outra afirma que a alma continua existindo mantendo

capacidade e sabedoria (69e-70b) Este conflito ou noacute dramaacutetico na narrativa deve ser

solucionado por Soacutecrates a partir de uma longa investigaccedilatildeo que se desenrola na etapa

demonstrativa do diaacutelogo na qual Soacutecrates toma posiccedilatildeo e ataca vigorosamente a ideia

de que a alma pode ser destruiacuteda quando se separa do corpo Portanto esse conflito que

Platatildeo coloca bem na etapa de transiccedilatildeo entre o primeiro estaacutegio do diaacutelogo e a etapa

demonstrativa eacute de suma importacircncia no Feacutedon tudo o que foi dito antes prepara o

leitor para a apresentaccedilatildeo desse conflito e tudo que seraacute dito posteriormente propotildee a

soluccedilatildeo desse conflito (Cf 69e-70c)

Este ponto de tensatildeo do diaacutelogo eacute agravado por aquilo que Sedley chama de

espetaacuteculo paradoxal no Feacutedon Soacutecrates tenta persuadir seus amigos pitagoacutericos sobre

a verdade de sua proacutepria doutrina11 Sedley afirma que Cebes e Siacutemias satildeo pitagoacutericos e

que a doutrina da sobrevivecircncia da alma depois da morte eacute uma inalienaacutevel parte do

pensamento pitagoacuterico12 Antes de avaliarmos os argumentos sobre a imortalidade da

alma no Feacutedon conveacutem apresentar algumas evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no

Feacutedon e conhecer melhor os amigos de Soacutecrates que estatildeo extremamente interessados

em confrontar essa doutrina popular segundo a qual a alma eacute passiacutevel de aniquilaccedilatildeo na

ocasiatildeo em que se separa da morte

24 Evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

241 Temas pitagoacutericos presentes no diaacutelogo

11 Sedley 1995 p11

12 Sedley 1995 p12

21

Ao final da antiguidade havia uma visatildeo generalizada de que Orfeu e Pitaacutegoras

tinham ensinado a mesma doutrina teoloacutegica e que Pitaacutegoras havia aprendido de Orfeu

discursos e misteacuterios Os antigos acreditavam que Pitaacutegoras seria um devoto de Orfeu e

do mestre havia recebido suas doutrinas esoteacutericas A associaccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo passa a ser tatildeo comum que foi cunhada a expressatildeo oacuterfico-pitagoacuterico para

fazer referecircncia a praacuteticas cuacutelticas teorias da alma e ideias escatoloacutegicas compartilhadas

por orfismo e pitagorismo13

Pesquisadores recentes e contemporacircneos tendem a associar pitagoacutericos e oacuterficos

e a transmigraccedilatildeo da alma como principal ponto de encontro entre os dois grupos

Alguns propotildeem que Pitaacutegoras teria sido um tipo de mestre de religiatildeo e miacutestico mais

do que um filoacutesofo Essa tese foi defendida por Rohde para quem os primeiros

pitagoacutericos adotaram teorias de natureza puramente religiosa as quais se aproximavam

das religiotildees de misteacuterio como o Orfismo Rohde apresenta vaacuterios temas

compartilhados por oacuterficos e pitagoacutericos

(i) a crenccedila na necessidade de a alma expiar uma culpa atraveacutes de

transmigraccedilotildees e puniccedilotildees infernais

(ii) a doutrina da alma prisioneira de um corpo

(iii) a nova encarnaccedilatildeo seria condicionada pela vida passada

(iv) a vida em comunidades isoladas

(v) praacutetica do ascetismo iniciaccedilotildees e purificaccedilotildees como meio de salvaccedilatildeo 14

13 Bernabeacute 2014 p141

14 Cf Rohde 1950 p375

22

Pesquisadores contemporacircneos como Kingsley tambeacutem acreditam que os

primeiros pitagoacutericos estavam ligados agrave religiatildeo

(i) eles mantinham profundas afinidades com oraacuteculos e revelaccedilotildees

(ii) a casa de Pitaacutegoras tinha a reputaccedilatildeo de casa de misteacuterios

(iii) eles seguiam preceitos rituais como dogmas a serem obedecidos

(iv) pitagoacutericos como Empeacutedocles apresentaram seu ensino como uma forma

de revelaccedilatildeo divina15

Pesquisas mais recentes tendem a apontar temas compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos na antiguidade mas tambeacutem ressaltam as suas distinccedilotildees Bernabeacute acredita

que Pitaacutegoras provavelmente tomou componentes de sua doutrina da literatura teoloacutegica

oacuterfica poreacutem eacute bem mais comedido em sua apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e

oacuterficos na antiguidade16 Ele apresenta vaacuterios temas em que oacuterficos e pitagoacutericos

coincidiam o quais resumimos aqui

(i) o tema da vida oacuterfica e da vida pitagoacuterica

(ii) o papel de destaque da deusa Memoacuteria na escatologia oacuterfica e a

importacircncia que pitagoacutericos atribuem agrave deusa Memoacuteria

(iii) a utilizaccedilatildeo de frases ou senhas difiacuteceis e que tem um profundo sentido

para os iniciados

15 Kingsley 1995 p 319

16 Bernabeacute 2014 p 143

23

(iv) a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma17

Por outro lado Bernabeacute tambeacutem ressalta as diferenccedilas apontando vaacuterios temas

da tradiccedilatildeo oacuterfica que estatildeo ausentes no pitagorismo como

(i) pessimismo em relaccedilatildeo ao corpo

(ii) a culpa que mancha alma

(iii) a busca por uma salvaccedilatildeo da alma individual alheia ao mundo poliacutetico

(iv) a relaccedilatildeo com o deus Dioniso e com os misteacuterios baacutequicos

(v) a purificaccedilatildeo por meios religiosos18

Zhmud ainda eacute mais contundente na distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

tentando reconstruir a figura mais filosoacutefica do Pitaacutegoras histoacuterico Conforme Zhmud a

primeira referecircncia ao personagem histoacuterico Pitaacutegoras eacute feita por Xenoacutefanes num

contexto em que satiriza a doutrina da metempsicose tal como Pitaacutegoras ensinava a

qual incluiacutea a possibilidade de a alma renascer em corpos de animais Portanto esse

testemunho conecta o nome de Pitaacutegoras com a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma

numa eacutepoca anterior agrave eacutepoca de Platatildeo19 Zhmud afirma que os pitagoacutericos se

apropriaram da doutrina oacuterfica da transmigraccedilatildeo da alma e a transformaram mas

acentua que a doutrina puramente religiosa natildeo teve consideraacutevel influecircncia na

construccedilatildeo pitagoacuterica de noccedilotildees filosoacuteficas da alma20 Ele tenta separar ao maacuteximo a

17 Bernabeacute 2014 p 144-146

18 Bernabeacute 2014 p147

19 Zhmud 2012 p30-31

20 Zhmud 2012 p388

24

figura de Pitaacutegoras das religiotildees de misteacuterios enquanto buscar recuperar uma

interpretaccedilatildeo mais ldquofilosoacuteficardquo de Pitaacutegoras Segundo ele esses satildeo os pontos decisivos

para uma distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

(i) os oacuterficos tem o seu proacuteprio culto os pitagoacutericos natildeo

(ii) os pitagoacutericos adotam a doutrina oacuterfica da metempsicose mas a

divorciaram da escatologia e antropogonia oacuterfica deixando de ser uma

doutrina religiosa de salvaccedilatildeo

(iii) o motivo da culpa ancestral natildeo estaacute presente no antigo pitagorismo21

(iv) os pitagoacutericos natildeo veem a transmigraccedilatildeo da alma como puniccedilatildeo por

culpas preacutevias mas como sendo natural e apropriado que as almas se

alojem em corpos de humanos e de animais

(v) a transmigraccedilatildeo cumpre um ciclo de necessidade sendo bem diferente da

ideia oacuterfica de um ciclo de dores do qual a alma do iniciado anseia

escapar

(vi) aleacutem disso natildeo estaacute claro que para os pitagoacutericos a alma se libertaria do

ciclo de renascimentos e retornariam para os deuses como era o anseio

dos oacuterficos sendo possiacutevel que a versatildeo pitagoacuterica da metempsicose

implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da alma22

21 Em outras palavras os pitagoacutericos natildeo sustentam a ideia oacuterfica da culpa e impureza ancestral

fundamentada pelo mito oacuterfico de Dioniso e os Titatildes o qual servia de base para explicar a razatildeo

pela qual as almas tinham de transmigrar e seguir um caminho de salvaccedilatildeo por meio da

purificaccedilatildeo da alma

22 Zhmud 2012 p 228-230

25

Ao mesmo tempo que novas pesquisas ressaltam a distinccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo elas ratificam pontos fundamentais de contato entre eles como a doutrina

da transmigraccedilatildeo da alma embora cada ciacuterculo tivesse a sua proacutepria versatildeo e a

preocupaccedilatildeo com a purificaccedilatildeo embora os meios e objetivos de purificaccedilatildeo pudessem

ser diferentes 23 Satildeo justamente esses temas baacutesicos compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos que aparecem no Feacutedon onde temos uma mistura de versotildees oacuterficas e

pitagoacutericas desses temas comuns

Vejamos algumas evidecircncias para um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

242 Cenaacuterio

A conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates acontece em Fliunte uma pequena cidade

do Peloponeso centro da filosofia pitagoacuterica onde viveram vaacuterios dos uacuteltimos

pitagoacutericos24 Os historiadores dizem que com a perseguiccedilatildeo aos pitagoacutericos por volta

de 450 os lugares onde os pitagoacutericos se reuniam foram incendiados adeptos do ciacuterculo

pitagoacuterico foram mortos no nordeste da Itaacutelia e logo novos centros do pitagorismo

surgiram na Greacutecia central especialmente em Tebas e Fliunte 25 Natildeo sabemos ao certo

se o cenaacuterio teve alguma relevacircncia histoacuterica para Platatildeo

23 Natildeo haacute consenso sobre quem foram os primeiros a aderir agrave doutrina da metempsicose se

oacuterficos ou pitagoacutericos Ao que parece nem mesmo os antigos estavam seguros se os oacuterficos

haviam tomado suas doutrinas de Pitaacutegoras como sustentava Heroacutedoto ou se os pitagoacutericos dos

oacuterficos como propunham Jacircmblico e os neoplatocircnicos (Cf Bernabeacute 2004 p137)

24 Gallop p 2002 p74 Hackforth 1998 p29

25 Zhmud 2012 p107

26

243 Narrador

A histoacuteria eacute narrada por Feacutedon a Equeacutecrates O diaacutelogo inicia com a uma

enfaacutetica apresentaccedilatildeo do narrador Feacutedon ldquo Feacutedon vocecirc mesmo (αὐτός ὦ Φαίδων)

estava presente no dia em que Soacutecrates bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por

outra pessoardquo ldquoEu mesmo estava presente Equeacutecratesrdquo (αὐτός ὦ Ἐχέκρατες) (57a1

4) A figura histoacuterica parece ter sido um escravo que ao libertar-se aderiu ao ciacuterculo

socraacutetico e posteriormente fundou a sua proacutepria escola filosoacutefica26

Feacutedon eacute um disciacutepulo de Soacutecrates que natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo direta com o

pitagorismo Ele adere completamente agrave posiccedilatildeo de Soacutecrates de que a alma do filoacutesofo

desceraacute ao Hades ao contraacuterio dos pitagoacutericos que apresentam objeccedilotildees a essa crenccedila

(Cf 58e-59a) Apesar das suas raacutepidas intervenccedilotildees ao longo do diaacutelogo Feacutedon figura

como um aliado uacutetil para Soacutecrates na refutaccedilatildeo de Simmias e Cebes (89b-90d)

244 Testemunhas da morte de Soacutecrates

Feacutedon apresenta os amigos que estavam presente no dia da morte de Soacutecrates

Os atenienses satildeo Apolodoro Criacuteton Critoacutebulo com seu pai Hermoacutegenes Epiacutegenes

Eacutesquines Antiacutestenes Ctesipo Menexeno e mais alguns Platatildeo estava doente diz

Feacutedon (59b) Os estrangeiros eram Feacutedon Siacutemias Cebes Fedondes Euclides e

Teacuterpsion Estavam ausentes Aristipo e Cleocircmbroto (59c) Xenofonte reconhece a

distinccedilatildeo desse grupo ao dizer que Criacuteton Hermoacutegenes Siacutemias Cebes Fedondes e

outros estavam associados com Soacutecrates natildeo com o fim de se tornarem demagogos ou

26 Dorter 1982 p 9 10

27

para vencer demandas judiciais mas para se tornarem homens bons e nobres capazes

de prestar um bom serviccedilo agrave famiacutelia parentes amigos e concidadatildeos27

Entre essas personalidades estatildeo pelos menos trecircs pitagoacutericos Filolau de

Crotona e seus disciacutepulos Siacutemias e Cebes de Tebas os principais interlocutores de

Soacutecrates no diaacutelogo Embora Filolau seja apenas mencionado no diaacutelogo ele requer

mais atenccedilatildeo por causa da sua relaccedilatildeo com os principais interlocutores de Soacutecrates no

diaacutelogo

245 Filolau

O texto crucial para qualquer reconstruccedilatildeo da vida de Filolau eacute a passagem do

Feacutedon 61d a qual sugere que Filolau passou um tempo em Tebas onde ensinou a

Siacutemias e Cebes em algum momento anterior agrave morte de Soacutecrates em 39928 Os

testemunhos antigos recolhidos por Huffman sobre a vida de Filolau relatam

basicamente o seguinte

(i) Filolau foi um mestre pitagoacuterico de renome o qual teria nascido em

algum momento antes de 440 e poderia inclusive ter sido contemporacircneo

de Soacutecrates

(ii) Testemunhos divergem sobre a sua origem Crotona ou Tarento

27 Memoraacuteveis 1248 31117 312

28 Hufmann 1993 p1

28

(iii) Filolau e um amigo tiveram de deixar a Itaacutelia para fugir de um atentado ndash

puseram fogo no lugar onde os pitagoacutericos se reuniam29

(iv) Os antigos costumavam associar Filolau e Platatildeo 30

Apesar do problema da confiabilidade dos testemunhos antigos parece natildeo

haver duacutevida de que o Filolau a quem Platatildeo se refere no Feacutedon era realmente o famoso

mestre pitagoacuterico conhecido agrave eacutepoca de Platatildeo o qual teria nascido na estimativa de

Ruffman por volta de 470 31 Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve

vaacuterios pupilos dentre os quais Siacutemias e Cebes como sugere o Feacutedon32 Huffman

acredita que depois de Pitaacutegoras existem trecircs proeminentes nomes no pitagorismo

Hipaso (c 530-450) Filolau (c 470-385) e Arquitas (430-350) 33

246 Principais Interlocutores de Soacutecrates ndash Cebes e Siacutemias

Os principais interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon natildeo satildeo atenienses mas

tebanos (59c) Como diz Sedley eles satildeo filoacutesofos hiacutebridos disciacutepulos de Soacutecrates e

Filolau (61d)34 A relaccedilatildeo entre Filolau reconhecido mestre pitagoacuterico e Siacutemias e

Cebes eacute forte indiacutecio de que os amigos de Soacutecrates tambeacutem satildeo adeptos do pitagorismo

29 Hufmann 1993 p3-4 6-7

30 Hufmann 1993 p3-4 6-7

31 Hufmann 1993 p6

32 Zhmud 2012 p128

33 Zhmud 2012 p8

34 Sedley 1995 p13

29

Contra esta ideia Rowe afirma que a simples associaccedilatildeo com Filolau natildeo torna Siacutemias e

Cebes pitagoacutericos nem haacute registros fora do Feacutedon que testemunhem que eles satildeo

pitagoacutericos35 Mas eacute difiacutecil negar que Soacutecrates sugere uma relaccedilatildeo menor do que a de

mestre-disciacutepulo quando fala do processo de aprendizagem ao qual seus amigos se

submeteram quando estiveram aos peacutes de Filolau em Tebas Como explica Zhmud

Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve vaacuterios pupilos dentre os

quais Siacutemias e Cebes36

Siacutemias e Cebes tambeacutem satildeo fieacuteis membros do ciacuterculo socraacutetico eles satildeo

mencionados no Criacuteton (45a-b) como estrangeiros dispostos a coletar fundos para

subornar o guarda e comprar a fuga de Soacutecrates da prisatildeo

No Feacutedon Cebes eacute certamente o principal interlocutor de Soacutecrates

(i) Tem um gecircnio agradaacutevel ele ri em pelo menos trecircs ocasiotildees no diaacutelogo

(62a 77e 103b) Sua postura ceacutetica diante da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates

eacute fundamental para o desenvolvimento do diaacutelogo (81d-82b 102b-107a)

(ii) Ele eacute apresentado como algueacutem difiacutecil de convencer pelos argumentos

(63a)

(iii) Eacute um interlocutor capaz e interveacutem com frequecircncia no diaacutelogo pede que

Soacutecrates explique o que deveria responder a Eveno o qual deseja saber

por que Soacutecrates se dedica agrave composiccedilatildeo de poemas na cadeia (60d) ele

confronta a tese de que os filoacutesofos desejam morrer (63a-d) e confronta a

crenccedila de Soacutecrates na descida da alma ao Hades o que daacute iniacutecio agrave etapa

35 Rowe 1993 p7 36 Zhmud 2012 p128

30

demonstrativa (69e-70a) suas objeccedilotildees datildeo iniacutecio agrave etapa demonstrativa

(70a) e ao uacuteltimo argumento (95b-e) praticamente introduz o segundo

argumento no Feacutedon (72e-73b)

Siacutemias eacute mencionado no Fedro (242b) como algueacutem que ama os discursos No

Feacutedon ele eacute apresentado como um jovem bem interessado em filosofia (89a4) e o

proacuteprio Soacutecrates o reconhece como interlocutor inteligente (86d) Ele tem vaacuterias

participaccedilotildees importante no diaacutelogo

(i) Apresenta uma interessante teoria da alma-harmonia (61d7 86d2)

(ii) Apresenta objeccedilotildees em pontos-chave do diaacutelogo mas em geral tende a

concordar e reforccedilar o discurso de Soacutecrates ou o de Cebes (Cf77a-b)

(iii) Siacutemias ri em uma ocasiatildeo quando dialoga com Soacutecrates (64a)

(iv) Vaacuterias vezes o diaacutelogo ocorre entre ele e Soacutecrates (63c-69e 73b-77b

92b-95a)

(v) Uma das participaccedilotildees mais polecircmicas de Siacutemias ocorre depois da

apresentaccedilatildeo da conclusatildeo do uacuteltimo argumento enquanto Cebes natildeo

tem objeccedilotildees e nem razotildees para desconfiar do argumento de Soacutecrates

Siacutemias diz que natildeo tem nenhuma objeccedilatildeo ao argumento contudo por

causa da grandeza do assunto da debilidade humana ele se vecirc obrigado a

cultivar em seu iacutentimo alguma desconfianccedila (107a-107b)

31

247 Equeacutecrates

Equeacutecrates eacute cidadatildeo de Fliunte (57a) e ceacutelebre filoacutesofo pitagoacuterico Feacutedon narra

o diaacutelogo para um pitagoacuterico Equeacutecrates tem algumas participaccedilotildees importantes no

diaacutelogo

(i) No proacutelogo ele se mostra muito interessado em saber com detalhes o que

aconteceu com Soacutecrates na prisatildeo e requer uma explicaccedilatildeo com a

maacutexima exatidatildeo dos fatos ocorridos (58c) Ele quer saber tudo que se

passou com Soacutecrates na cadeia (57a-b 58c) inclusive quais amigos

estavam presentes (58c 59b)

(ii) Ele interrompe a narraccedilatildeo de Feacutedon em dois pontos importantes do

diaacutelogo (88c-89a 102a4-10)

(iii) Eacute uma personagem importante porque todo o diaacutelogo eacute narrado para ele

25 Conclusatildeo

Portanto tudo indica que as personagens principais do diaacutelogo estatildeo pelo menos

envolvidas com pitagoacutericos

32

3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)

31 Antigo Relato

A etapa demonstrativa oferece uma soluccedilatildeo para o problema apresentado no

estaacutegio de transiccedilatildeo do diaacutelogo certa ideia de que a alma poderia ser dispersa e

destruiacuteda na hora da morte (69e-70b) Em resposta agrave objeccedilatildeo de Cebes Soacutecrates se

propotildee a examinar o seguinte problema ldquo() se de algum modo as almas das pessoas

que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Aparentemente Soacutecrates considera que

se as almas dos que morrem estatildeo no Hades seria falsa a afirmaccedilatildeo de que as almas

podem ser destruiacutedas bem na hora em que a alma se separa do corpo Soacutecrates logo

introduz no diaacutelogo um antigo relato segundo o qual as almas passam por um ciclo de

transmigraccedilotildees

ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual as

almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute vindo

a ser dos mortosrdquo (70c5-8)

Esse antigo relato eacute apresentado em tom solene Soacutecrates evoca a autoridade da

lsquoantiga tradiccedilatildeorsquo (παλαιὸς τις λόγος) Platatildeo ressalta o tom solene da doutrina bem

como a forccedila peso e autoridade da tradiccedilatildeo com a qual estaacute lidando O conteacuteudo do

relato eacute basicamente a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma compartilhada especialmente

por oacuterficos e pitagoacutericos na antiguidade

33

Portanto Platatildeo estaacute em diaacutelogo com a crenccedila sustentada especialmente por

seitas de misteacuterios e natildeo pela religiatildeo tradicional certamente uma doutrina

compartilhada por oacuterficos e pitagoacutericos37 Aleacutem de um contexto pitagoacuterico haacute vaacuterias

alusotildees a crenccedilas sustentadas por religiotildees de misteacuterio como o Orfismo no Feacutedon Por

exemplo em 62b Soacutecrates fala do lsquoconteuacutedo que se encontra nos textos secretosrsquo e em

69c fala lsquodos que instituiacuteram os ritos iniciaacuteticosrsquo A proacutepria crenccedila na descida ao Hades

depois que a alma se separa do corpo eacute tipicamente oacuterfica (e pitagoacuterica) O que temos

no relato antigo e no argumento ciacuteclico ndash a ideia de transmigraccedilatildeo juntamente com a

descida ao Hades ndash eacute algo diferente da concepccedilatildeo homeacuterica e da religiatildeo grega

tradicional Esse dado diverge do ideaacuterio religioso homeacuterico e tradicional e identifica o

antigo relato e o contexto em que Platatildeo constroi o argumento ciacuteclico como sendo

tipicamente oacuterfico e pitagoacuterico 38

O Orfismo se estabelece como uma religiatildeo de misteacuterio cujo conteuacutedo

doutrinaacuterio e rituais sagrados eram mantidos em segredo Era uma religiatildeo livre

independente da estrutura social e ligada agraves camadas populares Vejamos algumas

crenccedilas oacuterficas e evidecircncias para um contexto oacuterfico no Feacutedon

32 Orfismo e o Feacutedon

321 Hades

37 Cf Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p91-92

38 Cf Bernabeacute 2011 p163

34

A mitologia do Hades estaacute no centro da crenccedila oacuterfica e ocupa lugar de relevacircncia

no contexto amplo do Feacutedon No Orfismo o Hades eacute tanto o senhor da morada do

mundo inferior como tambeacutem por extensatildeo o nome desse mundo do aleacutem 39 Sendo o

Orfismo uma religiatildeo que sustenta a transmigraccedilatildeo da alma e as recompensas e castigos

poacutestumos a descida ao Hades eacute um tema fundamental na tradiccedilatildeo oacuterfica40

Entre os documentos oacuterficos as lacircminas de ouro (as quais eram enterradas com

os mortos) satildeo uma das mais importantes fontes para o estudo da crenccedila oacuterfica sobre o

Hades A partir delas eacute possiacutevel reconstruir em linhas gerais a topografia infernal oacuterfica

o Hades oacuterfico eacute um lugar subterracircneo para onde se conduzem as almas e eacute tambeacutem a

mansatildeo de Hades Essa topografia infernal estaacute relacionada diretamente com a crenccedila

oacuterfica em puniccedilotildees e julgamento apoacutes a morte Os impuros seriam punidos no Hades de

acordo com a sua maacute conduta sobre a Terra Posteriormente eles retornariam agrave vida na

Terra como mais um tipo de puniccedilatildeo e tambeacutem como periacuteodo de provaccedilatildeo uma nova

oportunidade para aderir ao estilo de vida oacuterfica e assim purificar-se e preparar-se para

a descida ao Hades Platatildeo estaacute bem familiarizado com o tema dos castigos infernais os

quais aparecem em vaacuterias obras aleacutem do Feacutedon Na Repuacuteblica 330d eacute dito que

segundo os mitos sobre o Hades quem comete injusticcedila aqui deve pagar laacute a pena Nas

Leis 870d os que se ocupam dos misteacuterios dizem que no Hades haacute um castigo para os

delitos e que eacute obrigatoacuterio voltar ao mundo dos vivos para a pena exigida

Os iniciados aguardavam uma vida bem-aventurada no Hades e a libertaccedilatildeo final

do ciclo de transmigraccedilotildees vivendo o estilo de vida oacuterfico na esperanccedila de descer ao

39 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p509

40 Guthrie 1970 p165

35

Hades e desfrutar da recompensa41 Como veremos adiante Soacutecrates possui uma

expectativa semelhante agrave dos oacuterficos para ele seria natural que o filoacutesofo que dedica a

vida agrave filosofia deseje a morte uma vez que o legiacutetimo filoacutesofo deve esperar a definitiva

bem-aventuranccedila no Hades

Esse grupo de lacircminas de ouro testemunham inclusive instruccedilotildees aos iniciados

sobre como proceder corretamente na morada do Hades42 Elas apresentam orientaccedilotildees

como a necessidade de seguir pela direita e de beber da aacutegua da fonte correta a qual

permitiria que o iniciado permanecesse no Hades e desfrutasse da bem-aventuranccedila

definitiva em vez de voltar ao ciclo de transmigraccedilotildees43 As lacircminas tambeacutem trazem

foacutermulas ou senhas a serem pronunciadas pelos iniciados quando questionados pelos

guardiatildees as quais permitiam que o morto fosse reconhecido como puro e iniciado 44 A

Lacircmina de Farsalo por exemplo afirma que os guardiatildees que laacute estatildeo perguntaratildeo ao

iniciado por que motivo ele veio Outras perguntas comuns satildeo ldquoMas quem eacute vocecirc e de

onde eacuterdquo ou ldquoO que busca nas trevas do Hades sombriordquo 45 A resposta mais frequente

a essas perguntas eacute ldquoSou filho da Terra e do Ceacuteu estreladordquo 46

Aleacutem de instruccedilotildees aos iniciados tambeacutem eacute possiacutevel encontrar nessas lacircminas

de ouro a antecipaccedilatildeo do destino final no Hades Nas lacircminas de Turi e Pelina temos

inclusive o que espera o iniciado no Hades antecipando-lhes basicamente a bem-

41 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500 Guthrie 1970 p157-158

42 Albinus 2000 p147

43 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500-501

44 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Cf Gazzinneli 2007 p17

45 Gazzinelli 2007 p 75-76

46 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Gazzinelli 2007 p 75-76

36

aventuranccedila a ser desfrutada pela alma do iniciado a saber o abandono definitivo da

esfera humana e o acesso ao reino dos bem-aventurados47

Esse breve apanhado revela um pouco da centralidade e importacircncia do Hades

na crenccedila oacuterfica O leitor do Feacutedon pode perceber que natildeo apenas o Hades ocupa lugar

de importacircncia ao longo de todo o diaacutelogo mas que o tipo de expectativa que Soacutecrates

nutre pelo Hades em muito se assemelha agraves expectativas dos iniciados oacuterficos A crenccedila

no Hades estaacute presente em todo o diaacutelogo inclusive na conclusatildeo do argumento ciacuteclico

as almas dos que morrem vatildeo para o Hades (cf71e72a 72d)

Portanto no Feacutedon a personagem Soacutecrates eacute portadora de uma concepccedilatildeo do

destino humano que aponta para aleacutem do mundo visiacutevel e para aleacutem do corpo mortal

para uma forma superior de vida no Hades concepccedilatildeo compartilhada pelos oacuterficos e

pitagoacutericos48

Eacute possiacutevel identificar a existecircncia de pontos de encontro entre o Hades oacuterfico e o

Hades apresentado no Feacutedon assim como tambeacutem existe forte semelhanccedila entre a

expectativa oacuterfica da descida ao Hades e a expectativa de Soacutecrates da descida ao Hades

Eacute plausiacutevel que Platatildeo esteja realmente se apropriando e se utilizando de conceitos

oacuterficos de retribuiccedilotildees no Hades aos iniciados como conveacutem agrave sua filosofia O iniciado

oacuterfico enxerga a morte como algo bom e se prepara a vida inteira para essa ocasiatildeo que

se traduz na oportunidade de alcanccedilar a redenccedilatildeo final a separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo a libertaccedilatildeo do ciclo de transmigraccedilotildees Soacutecrates tambeacutem vecirc a morte sob uma

oacutetica natildeo muito diferente De acordo com a utilizaccedilatildeo platocircnica da ideia oacuterfica da

descida ao Hades a morte e a chegada ao Hades representam a redenccedilatildeo final do

47 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p518

48 Kahn 2007 p18 19

37

legiacutetimo filoacutesofo Eacute a ocasiatildeo em que ele livre dos impedimentos do corpo teraacute livre

acesso agrave verdade que busca durante toda a vida (Cf 68a-b) A realidade do Hades como

destino das almas continua presente no final do uacuteltimo argumento quando Soacutecrates

conclui natildeo apenas que a alma eacute imortal e impereciacutevel mas tambeacutem que ldquoas nossas

almas existiratildeo no Hadesrdquo (106e-107a)

322 Purificaccedilatildeo mito de Dioniso e praacuteticas oacuterficas

As crenccedilas oacuterficas se fundamentam sobre o mito de Dioniso e os Titatildes o mito

fundante da antropogonia oacuterfica Apesar de alguns pesquisadores questionarem a

antiguidade desse mito uma soacutelida tradiccedilatildeo de estudiosos do Orfismo vem sustentando

que se trata realmente de um mito fundamental na articulaccedilatildeo das crenccedilas da religiatildeo

oacuterfica Segundo uma soacutelida e difusa tradiccedilatildeo de um relacionamento incestuoso entre

Zeus e a filha Perseacutefone se origina o deus Dioniso o qual eacute destinado a se tornar o novo

rei dos deuses O nascimento suscita o ressentimento de Hera esposa de Zeus a qual

instiga os Titatildes contra Dioniso Os Titatildes enganam Dioniso com brinquedos com o

objetivo de o atrair Assim eles o matam desmembram em sete partes cozinham e o

devoram Contudo Atena descobre o fito em tempo de resgatar o coraccedilatildeo ainda

batendo o qual a deusa leva ateacute Zeus num cesto Indignado Zeus fulmina os Titatildes

ressuscita um novo Dioniso a partir de um coraccedilatildeo sobrevivente e cria a humanidade49

Sendo assim o homem possui um elemento mau impuro como heranccedila dos Titatildes e um

49 Albinus 2000 p112

38

elemento bom (a alma uma centelha do divino) como heranccedila de Dioniso Esses dois

elementos constituem a dual natureza humana representada pelo corpo e alma50

As praacuteticas oacuterficas buscam libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do

ciclo de reencarnaccedilotildees fazendo com que a alma retorne completamente agrave sua origem

dionisiacuteaca (a alma divina) Por causa da natureza titacircnica a alma estaacute obrigada a expiar

a culpa presa ao corpo ao longo de vaacuterias vidas Sendo de divina e imortal a alma

transmigra a outro corpo quando aquele em que estaacute alojada morre Para libertar-se da

maacutecula titacircnica o fiel deve seguir um estilo de vida governado por uma seacuterie de rituais e

observacircncias ateacute que cumpridas as condiccedilotildees a alma divina e imortal se liberta do ciclo

de transmigraccedilotildees e se reintegra a sua comunidade com os deuses Enquanto natildeo

cumpre as condiccedilotildees necessaacuterias prossegue o ciclo de males e transmigraccedilotildees a que a

alma impura estaacute sujeita51

323 O corpo como tumba da alma puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo

A partir do mito de Dioniso Zagreu se desenvolveu a ideia de que o corpo eacute vil

enquanto de natureza titacircnica e a alma divina e imortal enquanto de natureza

dionisiacuteaca Drsquoanna explica que desse mito procede a doutrina oacuterfica que concebe o

corpo como uma tumba ou sepulcro da alma bem como a crenccedila soterioloacutegica num tipo

de lsquoredenccedilatildeo finalrsquo do homem que consistiria na libertaccedilatildeo completa da alma de seu

caacutercere corporal52 Para os oacuterficos o corpo oblitera a libertaccedilatildeo da natureza dionisiacuteaca

50 Rohde 1950 p 341-342

51 Cf Drsquoanna 2010 p 77-78 Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p591-592

52 Drsquoanna 2010 p 98

39

do ser humano razatildeo pela qual eles parecem ter abraccedilado uma doutrina de que a alma eacute

um tipo de prisatildeo ou tumba do corpo53 Essa ideia de que o corpo eacute uma prisatildeo da alma

eacute identificada como um ensino oacuterfico no Craacutetilo 400c e tambeacutem aparece no Goacutergias

493a onde se diz que o corpo eacute para noacutes uma sepultura

De acordo com a doutrina oacuterfica o trabalho do ser humano eacute libertar-se das

cadeias desse corpo mortal no qual a alma estaacute atada como um prisioneiro numa cela A

morte liberta a alma apenas por um curto periacuteodo de tempo pois a alma deve voltar a

sofrer o aprisionamento em outro corpo mortal continuando a sua jornada submetendo-

se a um lsquociacuterculo de necessidadersquo Contudo existe um meio pelo qual o ser humano pode

livrar-se desse perpeacutetuo ciclo de renascimentos O ser humano precisa da revelaccedilatildeo dos

misteacuterios de Orfeu para encontrar um caminho de salvaccedilatildeo o fiel deve seguir as

ordenanccedilas previstas pela religiatildeo Os fieacuteis natildeo devem seguir apenas os sacros misteacuterios

da parte de Orfeu mas uma completa vida oacuterfica deve ser observada renunciando tudo

que relaciona a pessoa agrave mortalidade e agrave vida corporal Tambeacutem o Hades exerce um

papel nesse processo de purificaccedilatildeo da natureza mortal ali os impuros sofrem puniccedilatildeo e

satildeo purgados como um tipo de justiccedila compensatoacuteria A transmigraccedilatildeo tambeacutem eacute

fundamental para a purificaccedilatildeo uma vez que os atos de uma vida passada satildeo

recompensados uma proacutexima vida Tudo isso capacita o fiel a obter o favor e

purificaccedilatildeo da divindade 54

As praacuteticas oacuterficas para a purificaccedilatildeo eram transmitidas pelos orfeotelestaiacute

(ὀρφεοτελεσταί) sacerdotes que viviam um estilo de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός) Orfeu

53 Cf Craacutetilo 400c onde Platatildeo menciona semelhante doutrina antiga e a atribui aos oacuterficos

54 Rohde 1950 p342-344

40

era crido na antiguidade por ter introduzido os ritos (ὄργια) de iniciaccedilatildeo (τελετή) na

Greacutecia O objetivo dessa praacutetica cultual era esoteacuterico e soterioloacutegico visando a salvaccedilatildeo

escatoloacutegica55 Havia uma lista austera de normas de conduta e observacircncias como

ausecircncia dos ciacuterculos sociais ritos fuacutenebres ascetismo e abstinecircncia rituais para

purificaccedilatildeo da culpa e expiaccedilatildeo abstinecircncia de carne proibiccedilatildeo de matar animais

associada a uma dieta estritamente vegetariana56 Essa vida austera com todo rigor

asceacutetico se justifica porque para o oacuterfico o corpo com seus apetites e paixotildees eacute a fonte

de toda sorte de mau a natureza titacircnica que aprisiona a alma Sendo assim o estilo de

vida oacuterfico visa libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo Nesse processo de

purificaccedilatildeo o iniciado exalta e libera cada vez mais a sua natureza dionisiacuteaca (a alma

divina e imortal) de sua prisatildeo corporal ateacute que finalmente alcance uma condiccedilatildeo

suficiente para a definitiva descida ao Hades quando ele finalmente se juntaria aos

deuses imortais Cada reencarnaccedilatildeo traz uma oportunidade para abreviar o ciclo de

encarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo

Em suma existe uma lista de praacuteticas que cooperam para a redenccedilatildeo final do

iniciado as penas infernais as reencarnaccedilotildees o estilo de vida oacuterfica as praacuteticas dos

rituais de misteacuterios e o correto procedimento ao chegar ao Hades satildeo meios para a

obtenccedilatildeo da redenccedilatildeo final que basicamente consiste na separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo quando cessa o ciclo de reencarnaccedilotildees e a alma se une aos deuses no Hades

Encontramos vaacuterias referecircncias aos iniciados nos documentos oacuterficos como

mostramos nos seguintes exemplos

55 Albinus 2000 p103

56 Alderink 1981 p80-81 Albinus 2000 p103-104

41

(i) O Papiro de Gurob traz o seguinte verso 57 ldquoatraveacutes da iniciaccedilatildeo a mim

mutila para as penas dos pais descontarrdquo 58

(ii) Na lacircmina de ouro Feres haacute uma declaraccedilatildeo de que o iniciado que acaba

de chegar ao Hades natildeo mais teria penas a cumprir ficando assim livre

do ciclo de transmigraccedilatildeo ldquoEntre no campo sagrado Pois o iniciado

natildeo (tem) penardquo59

(iii) Na Lacircmina de Hipocircnio os iniciados eacute que satildeo dirigidos por um caminho

singular no Hades ldquoE vocecirc tendo bebido iraacute pelo caminho sagrado pelo

qual os outros iniciados (mystai) e baacutequicos (baacutecchoi) seguem

renomadosrdquo 60

(iv) Nas lacircminas de Turi I II III os iniciados se identificam como puros na

chegada ao Hades ldquoVenho dentre os puros oacute pura Rainha dos Infernosrdquo

Nas lacircminas de Turi I e II o iniciado solicita que por ser puro ele seja

enviado para ldquoo assento dos purosrdquo 61 62

57 Gazzinneli 2007 p67

58 Gazzinneli 2007 p67

59 Gazzinneli 2007 p81

60 Gazzinneli 2007 p73

61 Gazzinneli 2007 p78 79

62 A Repuacuteblica de Platatildeo faz alusatildeo aos oacuterficos e seus ritos de purificaccedilatildeo os quais envolveriam

sacrifiacutecios e conjuros durantes as festas denominadas misteacuterios As praacuteticas seriam chamadas de

expiaccedilatildeo e poderiam reparar as faltas pessoais e dos antepassados livrando os iniciados dos

males do Hades (Cf R 2 364b-365a)

42

324 Puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo no Feacutedon

Haacute vaacuterios exemplos claros da utilizaccedilatildeo das ideias oacuterficas de purificaccedilatildeo e

iniciaccedilatildeo no Feacutedon Platatildeo se utiliza do tema de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός)

especialmente a ideia da iniciaccedilatildeo purificaccedilatildeo e redenccedilatildeo Temos um bom exemplo em

69a-d pouco antes de Soacutecrates fazer referecircncia agrave antiga tradiccedilatildeo Nos ritos de

purificaccedilatildeo oacuterfica os iniciados geralmente passavam lama ou lodo no corpo com o

objetivo de limpar ou apagar a maacutecula63 No Feacutedon Soacutecrates afirma que os homens que

instituiacuteram os misteacuterios natildeo eram mediacuteocres e que eles estavam certos ao dizer que ao

chegar ao Hades os iniciados e purificados iratildeo habitar com os deuses enquanto os

natildeo-iniciados e impuros vatildeo jazer na lama (69c 110a5-6 111d5-e2 113a6-b6 c3-7

81a4-6) A lama ou lodo portanto tanto servia para propoacutesitos de purificaccedilatildeo nos

rituais oacuterficos conforme os testemunhos antigos quanto no Hades no caso de pessoas

natildeo-iniciadas

Soacutecrates nutre a esperanccedila de que seraacute recompensado no Hades e natildeo somente

ele mas todo aquele cuja mente estaacute pronta e purificada (67c) No Hades os iniciados

habitaratildeo com os deuses e os natildeo-iniciados jazeratildeo na lama (69c) Eacute bem provaacutevel que

Platatildeo esteja utilizando ideias escatoloacutegicas oacuterficas64

Tambeacutem eacute importante notar que a ideia de iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo no Feacutedon estaacute

conectada com a concepccedilatildeo oacuterfica do corpo como prisatildeo da alma Semelhante doutrina

do aprisionamento da alma no corpo eacute introduzida no Feacutedon em 62b por ocasiatildeo da

discussatildeo sobre o suiciacutedio e eacute apresentada por Soacutecrates como sendo uma doutrina

63 Albinus 2000 p 135

64 Bernabeacute in Adluri 2013 p127-128

43

extraordinaacuteria e natildeo faacutecil de entender completamente ldquoA propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e que

ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendarrdquo (Cf 67d1-2 81e2 92a1) Em 82e Soacutecrates

retoma a ideia de que a alma estaacute presa ao corpo dizendo que mesmo os filoacutesofos satildeo

obrigados a considerar as realidades atraveacutes do corpo como que atraveacutes de uma prisatildeo

em vez de fazecirc-lo estritamente por meio de si mesma Soacutecrates ainda ressalta que a

proacutepria filosofia percebe que o pior dessa prisatildeo eacute que ela opera por meio dos desejos

de modo que o encarcerado pode se tornar o maior cuacutemplice de seu encarceramento

(82e)

Essa central doutrina oacuterfica que divide alma e corpo fazendo do corpo um mero

obstaacuteculo para a alma natildeo apenas exerceu uma tremenda fascinaccedilatildeo sobre Platatildeo como

tambeacutem permeia todo o Feacutedon juntamente com o uso da linguagem oacuterfica de iniciaccedilatildeo

A inovaccedilatildeo platocircnica no Feacutedon prevecirc novos meios de redenccedilatildeo para o iniciado e

uma nova ideia de salvaccedilatildeo Platatildeo desenvolve sua visatildeo de que filosofia eacute um meio de

purificaccedilatildeo da alma65 A purificaccedilatildeo filosoacutefica consiste na praacutetica de separar a alma do

corpo o quanto for possiacutevel evitando ao maacuteximo qualquer comunhatildeo com ele Essa

kaacutetharsis filosoacutefica equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (Feacutedon 64a) Sendo

assim o novo caminho para a iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo eacute a praacutetica da filosofia (69d) em

vez dos atos de redenccedilatildeo oacuterficos 66

Enquanto os iniciados seguem um estilo de vida oacuterfico e praacuteticas rituais para

expurgar a penalidade ancestral e a natureza titacircnica Soacutecrates prescreve o cultivo de

6565 Cf Dilman 1992 p20-21

66 Cf Albinus 2000 p139

44

virtudes associadas agrave sabedoria e o exerciacutecio da razatildeo como meios de purificaccedilatildeo Em

suma tudo isso pode ser resumido na praacutetica ou exerciacutecio da filosofia que Soacutecrates

chama de exerciacutecio de morte (81a)

Os iniciados oacuterficos devem descer ao Hades munidos de foacutermulas maacutegicas e

senhas para serem reconhecidos pelos guardiatildees da morada infernal e conseguirem

acesso aos lugares excelentes na versatildeo platocircnica de salvaccedilatildeo a alma deve manter-se

na melhor condiccedilatildeo possiacutevel de modo que a pessoa viva da melhor maneira possiacutevel

pois o que mais ajuda ao moribundo do iniacutecio ao fim de sua jornada ao Hades eacute a

educaccedilatildeo e treinamento que carrega consigo (107c-d) Como este estilo de vida a qual

Soacutecrates se refere sempre eacute o estilo de vida daquele que cuida da alma atraveacutes da praacutetica

da verdadeira filosofia que no Feacutedon consiste em rejeitar o corpo e dedicar-se a

alcanccedilar a sabedoria pelo exerciacutecio do intelecto somente

Os oacuterficos almejam um tipo de salvaccedilatildeo que consiste na liberaccedilatildeo do ciclo de

renascimentos No Feacutedon Soacutecrates se apropria dessa ideia oacuterfica e a aplica agrave esperanccedila

do filoacutesofo de alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo de renascimento e morte No Feacutedon natildeo se

diz explicitamente que todas as almas vatildeo alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo tal como os

filoacutesofos alcanccedilaratildeo No entanto Soacutecrates deixa evidente a distinccedilatildeo entre as almas que

satildeo definitivamente liberadas e aquelas que continuam a transmigrar A liberaccedilatildeo

definitiva do ciclo de renascimento e morte e a subsequente recompensa do filoacutesofo eacute

geralmente expressa em termos miacutetico-religiosos como lsquohabitar com as divindadesrsquo

(69C 81a4-6 82b10) ou obter a suprema bem-aventuranccedila em lsquomoradas bem

construiacutedasrsquo que vatildeo aleacutem de qualquer descriccedilatildeo (114c) Portanto Platatildeo se utiliza de

estruturas da doutrina oacuterfica para construir um tipo de ldquosoteriologia filosoacuteficardquo cujo

fundamento da salvaccedilatildeo eacute a praacutetica da verdadeira filosofia O tema da recompensa

45

poacutestuma eacute utilizado por Platatildeo para expressar os benefiacutecios a serem desfrutados por

aqueles que dedicam a vida agrave filosofia

Jaacute que a purificaccedilatildeo filosoacutefica eacute o exerciacutecio ou praacutetica da filosofia o iniciado

natildeo eacute mais o adepto das praacuteticas oacuterficas mas o filoacutesofo Soacutecrates declara explicitamente

isto quando lembra dos ritos oacuterficos em honra a Dioniso Ele explica que os adeptos dos

Misteacuterios costumam dizer que muitos carregam o tirso mas poucos satildeo os Bacantes

numa referecircncia aos que aderem ao culto a Dioniso mas natildeo se comprometem

totalmente com o deus Ao contraacuterio dos religiosos de aparecircncia existem os Bacantes

iniciados que estatildeo intimamente ligados ao deus praticando os Misteacuterios conforme o

deus requer Soacutecrates entatildeo utiliza a ideia oacuterfica em tom de paroacutedia afirmando que os

poucos Bacantes que existem natildeo satildeo aqueles religiosos que se exercitam nos Misteacuterios

mas os filoacutesofos ndash aqueles que realmente dedicam a vida agrave filosofia Aleacutem de definir o

iniciado como aquele que pratica a filosofia Soacutecrates provavelmente estaacute fazendo uma

distinccedilatildeo entre verdadeiros e falsos filoacutesofos dando a entender que haacute muitos ditos

filoacutesofos mas assim como poucos satildeo os Bacantes poucos tambeacutem satildeo os verdadeiros

filoacutesofos (Cf69c-d) Platatildeo estaacute oferecendo filosofia como substituto para os

misteacuterios67 Ele faz isso utilizando estruturas e siacutembolos oacuterfico-pitagoacutericos como forma

de instruccedilatildeo sobre a vida filosoacutefica e sobre a vida apoacutes a morte68

67 Menn in Adluri 2013 p214

68 Bussanich in Adluri 2013 p250

46

325 Transmigraccedilatildeo da Alma

Ao longo do Feacutedon Soacutecrates estabelece uma relaccedilatildeo entre iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo (meios de redenccedilatildeo) recompensas no Hades (redenccedilatildeo final) e a teoria da

transmigraccedilatildeo das almas69 A transmigraccedilatildeo das almas eacute o conteuacutedo do antigo relato

segundo o qual as almas vatildeo para o Hades depois da morte e de laacute voltam (70c)

Conforme este relato o Hades eacute a origem e destino da alma dos vivos Natildeo temos

nenhuma informaccedilatildeo sobre a origem uacuteltima da alma de onde ela viria antes de iniciar

esse ciclo em que passa alternadamente pelo mundo dos vivos e pelo Hades o qual

figura como um tipo de lugar obrigatoacuterio para a alma desencarnada seja para uma

passagem temporaacuteria ou para uma estada permanente

O conteuacutedo baacutesico do antigo relato eacute a transmigraccedilatildeo das almas ou

metempsicose (i) a alma se separa do corpo por ocasiatildeo da morte e desce ao Hades

onde permanece por algum tempo (ii) a alma volta do Hades ao mundo dos vivos e

aloja-se em novo corpo A crenccedila de que a alma transmigra de um corpo a outro de

acordo com um ciclo de nascimentos eacute uma doutrina oacuterfica antiga mas na antiguidade

tambeacutem se costuma atribuir a sua origem a Pitaacutegoras e pitagoacutericos 70 No contexto da

religiatildeo oacuterfica a transmigraccedilatildeo estaacute relacionada com um culpa antiga que remonta ao

mito de Dioniso Zagreu Os Titatildes satildeo antepassados dos seres humanos e suas culpas

devem ser expiadas por eles O pagamento do castigo implica a liberaccedilatildeo do ciclo de

69 Cf Bernabeacute in Adluri 2013 p128

70 Albinus 2000 p117

47

transmigraccedilotildees 71 Haacute vaacuterios documentos oacuterficos da antiguidade que testemunham o

caraacuteter oacuterfico dessa doutrina como os seguintes

(i) As placas de osso de Oacutelbia apresenta a sequecircncia ldquovida morte

vidardquo um testemunho da crenccedila oacuterfica no ciclo contiacutenuo de vida e

morte 72

(ii) As Lacircminas de Pelina I e II (B2) tambeacutem registram a crenccedila no ciclo

de vida e morte ldquoOra vocecirc morre ora nasce trecircs vezes afortunado

neste dia

(iii) A lacircmina de Turi II o iniciado afirma que eacute da ldquoraccedila afortunadardquo e

reivindica o fim do ciclo de transmigraccedilotildees com base nas penas que

jaacute cumprira ldquoServi a pena relativa a obras em nada justasrdquo

(iv) A Lacircmina de Turi III testemunha ldquoVoei para longe do ciclo de

doloroso e pesado lamentordquo73

A doutrina da metempsicose seguiu sendo reconhecida como oacuterfica ao longo de

toda a antiguidade74

No Feacutedon a ideia da transmigraccedilatildeo da alma eacute bastante explorada por Soacutecrates

inclusive a doutrina do renascimento em animais geralmente atribuiacuteda a pitagoacutericos

Aqueles que natildeo se purificam durante a vida reencarnariam num corpo de acordo com o

71 Cf Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p601

72 Gazzinneli 2007 p 81 82

73 Gazzinneli 2007 p 81 82

74 Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p611

48

gecircnero de vida praticado alguns voltam agrave vida em corpos de variados animais outros

em corpos de seres humanos (Cf62b 67d 69c-d 80d) Almas que se libertam do corpo

manchadas impuras e contaminadas pelo elemento corporal temem de tal modo o

Hades que satildeo arrastadas de volta ao mundo visiacutevel passando a perambular em

monumentos fuacutenebres e sepulturas (81c-81d) Essas satildeo as almas dos maus os quais satildeo

obrigadas a perambular assim como castigo por causa do modo vida que havia levado

as quais andam errantes ateacute que possa alojar-se novamente em um corpo com os

mesmos viacutecios de outrora como glutonaria e desejo desmedido pela bebida Almas

assim podem renascer em asnos ou animais de semelhante natureza (81d-e) Almas

responsaacuteveis por injusticcedilas tiranias e roubos renasceriam na linhagem de lobos falcotildees

e abutres (82a) Dentre essas almas que natildeo se dedicaram agrave filosofia as que vatildeo para um

corpo melhor satildeo as pessoas sociais e civilizadas as quais praticaram a virtude popular

e ciacutevica a temperanccedila e a justiccedila as quais tanto podem retornar em corpos de abelhas

vespas ou formigas quanto podem retornar ao gecircnero humano para serem pessoas de

bem (82a-b) A praacutetica de virtudes sem a cooperaccedilatildeo da filosofia eacute proveitosa chegando

a interferir no processo de transmigraccedilatildeo mas nunca pode oferecer a redenccedilatildeo final a

libertaccedilatildeo do ciclo de renascimentos juntamente com as recompensas no Hades A

mensagem platocircnica central eacute que soacute via filosofia eacute possiacutevel se purificar durante a vida e

partir puro para o Hades Essas satildeo as almas dos filoacutesofos o verdadeiro filoacutesofo

(iniciado) chegaraacute agrave linhagem dos deuses e habitaraacute com eles uma vez que alcanccedilaram

a libertaccedilatildeo e purificaccedilatildeo que se efetuam por meio da praacutetica de uma vida dedicada agrave

filosofia (82b-d) A alma do filoacutesofo sendo purificada iraacute se encontrar com aquilo com

o que guarda afinidade de modo algum se esvaindo no momento da separaccedilatildeo do corpo

ou mesmo dissipada pelos ventos sem existir em parte alguma (84b) Contudo a alma

49

afeita ao corpo passa a incorporar o tipo de vida corporal e desse jeito nunca pode

chegar ao Hades no estado de pureza razatildeo pela qual logo volta a alojar-se em outro

corpo ficando privada da companhia do divino puro e uniforme (83d-e)

Ainda no mito escatoloacutegico final existe uma passagem que alude agrave

transmigraccedilatildeo da alma Soacutecrates fala do Taacutertaro o mais profundo abismo para onde

confluem todas as correntes dos rios e onde todas elas se originam As almas dos

mortos permanecem ali por um tempo determinado alguns permanecendo mais tempo

outras menos Cumprido o tempo as almas satildeo novamente enviadas para as geraccedilotildees

dos seres vivos (112a 113a)

Portanto a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma faz parte da estrutura baacutesica da

argumentaccedilatildeo no Feacutedon A essa doutrina esoteacuterica estatildeo relacionados outros temas

proacuteprios das religiotildees de misteacuterios como a divisatildeo entre corpo e alma a iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo dos fieacuteis e a descida ao Hades com as respectivas recompensas e puniccedilotildees

infernais

326 Imortalidade da alma

Para os adeptos dos ciacuterculos oacuterficos seria natural pensar que alma eacute imortal por

causa do seu caraacuteter divino dionisiacuteaco em oposiccedilatildeo ao elemento mortal do corpo de

natureza titacircnica Como diz Taylor a imortalidade da alma eacute uma mera consequecircncia de

uma heranccedila divina75 No escopo da religiatildeo grega se a alma eacute imortal deve ser no

75 Taylor 1922 p177

50

sentido de sua essencial natureza divina Ela por si mesma pertence agrave realidade divina

de modo que os termos imortal e divino satildeo intercambiaacuteveis76

Portanto na religiosidade grega de modo geral a afirmaccedilatildeo de que a alma eacute

imortal quer dizer para um grego natildeo soacute que manteacutem a capacidade de sentir de

entender e de estar verdadeiramente viva apoacutes a morte mas tambeacutem que a alma eacute

divina77 O Feacutedon dialoga com essa fonte e tradiccedilatildeo religiosa grega

Mais especificamente no contexto da religiosidade oacuterfica Albinus esclarece que

os antigos natildeo consideram a mitologia oacuterfica apenas como um tipo de histoacuteria ou mito

mas tambeacutem como um relato (λόγος) que expressa a relaccedilatildeo entre humanidade e

divindade mortalidade e imortalidade78 O ciclo de transmigraccedilotildees certamente

representa essa dupla ligaccedilatildeo da alma com o humano e mortal (quando encarnadas) e

divino e imortal (quando desencarnadas) Portanto o tema da imortalidade estaacute

associado ao tema da transmigraccedilatildeo na mitologia oacuterfica Eacute necessaacuterio compreender este

ponto para uma correta compreensatildeo do argumento ciacuteclico como prova da imortalidade

da alma provar que as almas transmigram eacute tambeacutem provar que elas satildeo imortais num

contexto religioso oacuterfico no qual natildeo temos aniquilaccedilatildeo completa da alma mas apenas

rompimento do ciclo de reencarnaccedilotildees Em suma

(i) Imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma satildeo temas indissociaacuteveis na

religiatildeo oacuterfica

76 Rohde 1950 p254

77 Bernabeacute 2000 p 171

78 Albinus 2000 p117

51

(ii) A transmigraccedilatildeo pode ser entendida como um importante aspecto da

doutrina da imortalidade da alma sendo a alma imortal o ser humano

natildeo escapa da penalidade que deve pagar ao longo do ciclo de

renascimentos79

(iii) Eacute tambeacutem a crenccedila na imortalidade da alma que sustenta toda a ideia de

purificaccedilatildeo e conseguinte libertaccedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilotildees quando o

oacuterfico alcanccedila um tipo de redenccedilatildeo final livre do corpo e do ciclo de

renascimentos ele passa a viver como uma divindade80

Portanto eacute natural que os oacuterficos combinem doutrina da transmigraccedilatildeo da alma e

a crenccedila na divindade e imortalidade da alma Ao que parece os pitagoacutericos tambeacutem

fizeram uma associaccedilatildeo semelhante entre a transmigraccedilatildeo e imortalidade da alma81 Eacute

esta concepccedilatildeo de imortalidade atrelada agrave doutrinda da transmigraccedilatildeo da alma que estaacute

presente no argumento ciacuteclico

Eacute razoaacutevel pensar que agrave eacutepoca de Platatildeo os gregos possuiacuteam uma seacuterie de teses

inconsistentes sobre a alma de modo que dogmas como o da imortalidade da alma natildeo

estavam bem claros para todas as pessoas Aleacutem disso ideias como a que Cebes

apresenta ndash a desintegraccedilatildeo da alma que se separa do corpo ndash poderiam tambeacutem ser

sustentadas pelo menos por algum grupo de pessoas

79 Bussanich in Adluri 2013 p243

80 Rohde 1950 p345

81 Bernabeacute 2000 p 172

52

327 Conclusatildeo

Noacutes encontramos uma rica presenccedila de doutrinas tipicamente oacuterficas no Feacutedon

e tudo indica que Platatildeo estaacute utilizando doutrinas oacuterficas e pitagoacutericas em seu diaacutelogo

Os motivos oacuterficos aparecem na primeira parte do Feacutedon e se manteacutem em cena no

diaacutelogo ateacute o mito escatoloacutegico final A pesquisa de Kingsley mostra que alusotildees a

crenccedilas oacuterficas no estaacutegio inicial do diaacutelogo satildeo retomadas no mito escatoloacutegico final

Ele utiliza dois temas oacuterficos para justificar a sua tese castigo poacutestumo dos impuros e a

recompensa dos puros A ideia de jazer na lama que eacute uma imagem das puniccedilotildees

infernais aos natildeo-iniciados cedo eacute introduzida no diaacutelogo e volta a aparecer trecircs vezes

no mito escatoloacutegico final no contexto dos vastos rios de lama infernais (Cf 69c5-6

110a5-6 11d5-e2 113a6-b6) O mais interessante eacute que o material apresentado

previamente no diaacutelogo oferece uma breve antecipaccedilatildeo do que viraacute pela frente

revelando que existe um tipo de exposiccedilatildeo sistemaacutetica dessa crenccedila oacuterfica no Feacutedon O

tema da recompensa no Hades para os iniciados e purificados apresenta o mesmo

padratildeo de antecipaccedilatildeo e posterior explanaccedilatildeo complementaacuteria no contexto do mito final

A imagem do impuro que sofre a pena de jazer na lama tem a sua contraparte na

imagem da alma pura que desce ao Hades para desfrutar da recompensa de viver com os

deuses imortais (69c6-7 111b6-c1 114b7-c2 114d3) Tambeacutem nesse caso as alusotildees

oacuterficas da etapa inicial do diaacutelogo voltam a aparecer no mito final e tornam-se uma

chave valiosa para a compreensatildeo da estrutura linguagem e significado do mito82

Tudo isso leva a crer que existe a presenccedila meticulosa das ideias oacuterficas na

estrutura fundamental do Feacutedon

82 Cf Kingsley 1992 p119-120

53

4 Anaacutelise do argumento ciacuteclico propriamente dito

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma Platatildeo define morte como

lsquoseparaccedilatildeo da alma do corporsquo(64c) Ainda no primeiro estaacutegio do diaacutelogo a personagem

Soacutecrates defende que a alma que se separa do corpo natildeo se dispersa e perece como as

pessoas afirmam mas continua a existir sozinha por si mesma (Cf 64c 70a-b) Ainda

que a palavra lsquoimortalrsquo natildeo apareccedila no diaacutelogo ateacute 73a introduzida por Cebes e

Soacutecrates soacute a empregue pela primeira vez no contexto do argumento das afinidades

(Cf79d) a ideia de que a alma eacute imune agrave morte aparece bem cedo no diaacutelogo e as

provas do Feacutedon tecircm o objetivo de provar que a alma eacute imortal Natildeo seria possiacutevel

avaliar se as provas satildeo suficientes ou natildeo se os amigos de Soacutecrates natildeo tivessem bem

definido o que elas satildeo destinadas a provar ou pelo menos aquilo que eles esperam que

elas provem Eles natildeo apenas tecircm em mente o que o mestre precisa provar mas tambeacutem

satildeo capazes (ateacute certo ponto) de apontar a insuficiecircncia dessas provas

O argumento ciacuteclico jaacute eacute visto por Cebes como prova da imortalidade da alma

ele associa o primeiro argumento e o ensino da reminiscecircncia com a ideia de que ele

talvez pudesse tambeacutem mostrar que a alma eacute imortal (72e1-73a3) Cebes natildeo afirma que

o argumento ciacuteclico havia provado que a alma eacute imortal nem mesmo estaacute certo de que o

argumento da reminiscecircncia pode fazecirc-lo mas indica que eacute necessaacuterio uma nova prova

Desde o iniacutecio da etapa demonstrativa apenas uma prova da imortalidade da

alma poderaacute contrapor a crenccedila de que a alma perece na ocasiatildeo em que se separa do

corpo (70a) que eacute o problema motriz da etapa demonstrativa Esta crenccedila doutrina ou

posiccedilatildeo filosoacutefica eacute enfrentada por Platatildeo no diaacutelogo O termo εὐθύς colabora com essa

54

ideia de que a alma seria passiacutevel de desintegraccedilatildeo na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do

corpo Vejamos algumas passagens

(i) Antes de comeccedilar a etapa demonstrativa o que atormenta inicialmente os

amigos de Soacutecrates eacute a possibilidade de que a alma do mestre seja

destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo (70a4-5) (εὐθὺς

ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος)

(ii) Na transiccedilatildeo entre argumento da reminiscecircncia e das afinidades Soacutecrates

ainda tem em mente a problemaacutetica seria necessaacuterio continuar a

discussatildeo porque os amigos possuem um ldquotemor pueril de que o vento

realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania e natildeo

de brisardquo (77d) Apesar de o termo εὐθύς natildeo aparecer aqui a ideia

continua sendo desintegraccedilatildeo que ocorre na ocasiatildeo da morte O que

parece uma ironia socraacutetica na verdade estaacute de acordo com a concepccedilatildeo

de certas pessoas de a alma poderia ser dispersa pelo vento

especialmente por um vento forte

(iii) Na etapa que segue o argumento das afinidades Soacutecrates retoma o

problema que gera toda a etapa demonstrativa mas agora coloca duas

ideias em contraste e em ambos os casos Soacutecrates utiliza εὐθύς

bull Nem mesmo o cadaacutever que eacute material e assim a ele pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ

διαπίπτειν καὶ διαπνεῖσθαι) sofre todas essas coisas

55

imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν πέπονθεν) mas

lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado

Certas partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά

ἐστιν) (80c2-d4)

bull Em contraste com o cadaacutever cuja natureza eacute passiacutevel de

dissoluccedilatildeo Soacutecrates lembra que a alma eacute de natureza distinta ela

eacute a parte invisiacutevel da pessoa e possui afinidades com o nobre

puro e invisiacutevel e desceraacute ao Hades para se reunir com um deus

Sendo assim questiona se os amigos acham que a alma seria

dispersa e pereceria na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo

(ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ

ἀπόλωλεν) (80d) Aqui Soacutecrates mostra o absurdo de acreditar

que a alma que possui a mesma natureza imaterial das lsquoFormasrsquo

e do lsquodivinorsquo seria desintegrada na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo

do corpo enquanto o corpo ainda seria mais resistente agrave

destruiccedilatildeo do que a proacutepria alma Soacutecrates procura mostrar o

absurdo desta posiccedilatildeo com base nos argumentos jaacute apresentados

os quais jaacute haviam deixado claro que a alma eacute algo superior ao

corpo e de natureza diferente Ainda que natildeo tivesse ainda

oferecido uma prova suficiente da imortalidade da alma os trecircs

primeiros argumentos jaacute haviam mostrado que a alma natildeo eacute tal

como o corpo Soacutecrates critica a crenccedila que acaba tornando o

corpo mais duraacutevel do que a proacutepria alma

56

bull Pouco depois Siacutemias tenta responder agrave questatildeo de Soacutecrates com

a sua teoria da alma-harmonia e insiste em comprovar que a

alma sendo uma mistura de elementos corporais eacute a primeira a

perecer naquilo que chamamos de morte enquanto o corpo

perdura algum tempo (86c-d) Esta passagem nos revela mais um

detalhe da concepccedilatildeo da natureza da alma que estaacute em cena no

Feacutedon o receio de que a alma seja uma mistura de elementos

corporais e que ela seria passiacutevel agrave dispersatildeo e desintegraccedilatildeo na

ocasiatildeo da morte

bull Cebes ficaraacute contra a posiccedilatildeo de Siacutemias de que o corpo dura mais

do que a alma e com o seu argumento do tecelatildeo e seu manto

tenta mostrar que a alma dura mais do que o corpo mas nada

garante que ela eacute completamente imune agrave morte Desintegraccedilatildeo e

perecimento instantacircneo podem natildeo ocorrer mas nada garante

que natildeo haja a possibilidade de que a alma seja destruiacuteda no seu

uacuteltimo ciclo de reencarnaccedilatildeo (Cf 87-88b)

O argumento ciacuteclico eacute inserido num contexto em que se busca provar que a alma

eacute imune agrave morte contra a crenccedila numa alma passiacutevel a dissoluccedilatildeo e perecimento Mas

de iniacutecio o tema da imortalidade eacute tratado a partir de uma matriz baacutesica da religiosidade

oacuterfica imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma A abertura do argumento

ciacuteclico se daacute com um convite de Soacutecrates para examinar ldquo() se de algum modo as

almas das pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Este objeto de

investigaccedilatildeo coincide com o conteuacutedo do relato de uma tradiccedilatildeo religiosa de cunho

57

oacuterfico e pitagoacuterico ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o

qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

proveniente dos mortosrdquo (70c5-8)

O antigo relato tem em vista basicamente que a alma se engaja no ciclo de

reencarnaccedilatildeo ndash a alma deixa um corpo desce ao Hades e de laacute volta a reencarnar No

orfismo e pitagorismo natildeo existe a possibilidade de a alma ser desintegrada ou

destruiacuteda Se for verdade o que diz o relato lsquoque os vivos provecircm dos mortosrsquo Soacutecrates

entende que eacute necessaacuterio concluir que lsquoas nossas almas estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) Se

coisas vivas e pessoas vivas (tentativa de generalizar ndash tudo que eacute vivo) procedem

daqueles que estatildeo mortos (ἐκ τῶν τεθνεώτων τὰ ζῶντά τε καὶ οἱ ζῶντες γίγνονται) eacute

necessaacuterio concluir que as nossas almas estatildeo no Hades (εἰσὶν αἱ ψυχαὶ ἡμῶν ἐν

Ἅιδου) (71d14-e2) Portanto eacute necessaacuterio provar que os vivos provecircm dos mortosrsquo

Para isto eacute necessaacuterio um argumento com base no princiacutepio de que todos os opostos

provecircm dos opostos (70e1-2) A terminologia do argumento ciacuteclico deriva diretamente

daquela utilizada no antigo relato ndash verbo γίγνομαι seguido de ἐκ + genitivo ndash como se

pode observar

(i) ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual

as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

provenientes dos mortosrdquo ( γίγνονται ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c8)

(ii) ldquoSe realmente eacute verdade que os vivos provecircm dos mortos ()rdquo

(γίγνεσθαι ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9)

(iii) ldquoSe realmente ficasse evidente que os vivos provecircm de nenhum lugar a

natildeo ser dos mortosrdquo (γίγνονται οἱ ζῶντες ἢ ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c9)

58

(iv) ldquoTodas as coisas tecircm origem assim opostos dos opostosrdquo (γίγνεται πάντα

ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

Apresentado o princiacutepio de que todos os opostos provecircm dos opostos Soacutecrates

convida ao exame

(i) ldquoVejamos se todas essas coisas satildeo geradas da seguinte maneira opostos dos

opostos (γίγνεται πάντα ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

(ii) ldquoPortanto examinaremos se tudo que tem um oposto proveacutem

necessariamente de seu oposto e de nenhum outrordquo (70e5-6) (τοῦτο οὖν

σκεψώμεθα ἆρα ἀναγκαῖον ὅσοις ἔστι τι ἐναντίον μηδαμόθεν ἄλλοθεν αὐτὸ

γίγνεσθαι ἢ ἐκ τοῦ αὐτῷ ἐναντίου)

(iii) ldquoTemos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina desta maneira as

coisas opostas procedem de seus opostosrdquo (71a9-10) (ἱκανῶς οὖν ἔφη

ἔχομεν τοῦτο ὅτι πάντα οὕτω γίγνεται ἐξ ἐναντίων τὰ ἐναντία πράγματα)

Eis em linhas gerais a estrutura baacutesica do argumento seguida de comentaacuterio

[1] Tudo que tem um oposto proveacutem necessariamente de seu oposto (70e-71a)

[2] Para cada par de opostos existem dois processos opostos se um oposto x

passa a y haacute tambeacutem um processo de um oposto y que passa a x por exemplo

aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um processo do

quente ao frio (71a11-b10)

59

[3] Se os dois processos natildeo se equilibrassem (se algo viesse a ser quente a partir

de ser frio mas natildeo frio a partir de ser quente tudo findaria quente) tudo

acabaria no mesmo estado) (72a-b)

[4] Tudo natildeo acaba por ficar no mesmo estado (72a-d)

[5] Portanto se algo vem a ser um oposto y a partir de um oposto x ele tambeacutem

viraacute a ser um oposto x a partir de um oposto y (se algo vem a ser quente a partir

de frio ele tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

[6] Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

[7] Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que

estaacute vivo (71e-72a)

[8] As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

[9] Portanto as almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

[10] Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar)

(71e72a 72d)

A prova eacute estabelecida sobre o princiacutepio de que pares de opostos

obrigatoriamente sofrem determinados processos ciacuteclicos83 O termo ἀναγκαῖον eacute

fundamental na exegese do argumento porque marca esta necessidade ou

obrigatoriedade de que este princiacutepio de mudanccedila ocorra entre pares de opostos natildeo

deixando espaccedilo para exceccedilotildees (Cf70e 71b 72a) Visto dessa maneira o processo

ciacuteclico que ocorre entre pares de opostos eacute perpeacutetuo natildeo tem fim Mas Soacutecrates natildeo

apresenta nenhum argumento vaacutelido para sustentar esta posiccedilatildeo apenas assume que se

83 Gallop 2002 p 103

60

natildeo houvesse um balanccedilo nesse processo ciacuteclico todas as coisas acabariam no mesmo

estado entatildeo tudo chegaria ao fim (72a-d) Portanto o argumento inteiro repousa sobre

uma ideia assumida por Soacutecrates a ideia de que eacute impossiacutevel que tudo acabe no mesmo

estado

Este processo ciacuteclico obrigatoacuterio consiste no seguinte

Para cada par de opostos existem dois processos opostos um processo pelo qual

um oposto x passa a y e um processo pelo qual um oposto y passa a x por

exemplo aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um

processo do quente ao frio (71a11-b10)

Portanto se algo vem a ser oposto y a partir de oposto x ele tambeacutem viraacute a ser

oposto x a partir de oposto y (se algo vem a ser quente a partir de frio ele

tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

A afirmaccedilatildeo de que deve haver processos em ambas as direccedilotildees eacute vital para

qualquer uso efetivo do princiacutepio de que os opostos vecircm dos opostos Este princiacutepio eacute

essencial para o funcionamento do argumento ciacuteclico como um todo84 Caso este

processo ciacuteclico natildeo seja obrigatoriamente mantido ad eternum o argumento possui

uma falha irreparaacutevel Este eacute um dos problemas vitais do argumento como voltaremos a

mencionar adiante Soacutecrates assume a obrigatoriedade do processo com base num

argumento invaacutelido a mera observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto

Em seguida Soacutecrates aplica o princiacutepio ao caso dos opostos vida e morte (71c6-

d3) a fim de provar que o que eacute vivo proveacutem do que eacute morto e o que eacute morto do que eacute

84 Gallop 2002 p109

61

vivo o que segundo ele levaria a uma necessaacuteria conclusatildeo de que lsquoas nossas almas

estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) O filoacutesofo afirma que existe um processo de tornar-se vivo

novamente (o reviver passar a viver novamente) (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute vivo

(71e-72a) Este ponto eacute fundamental para a compreensatildeo do argumento e deve ser

entendido a partir de duas ideias que Platatildeo explora no argumento (i) a sua noccedilatildeo de

morte como separaccedilatildeo da alma e corpo e sua admissatildeo de que morte eacute um estado em

que a alma existe separadamente do corpo (64c4-8) (ii) a doutrina da transmigraccedilatildeo da

alma segundo a qual passar a viver novamente (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) significa que a alma

que jaacute havia alojado um corpo e lsquomorreursquo (desencarnou) reencarna volta a alojar-se

num corpo No antigo relato e no comentaacuterio seguinte temos o termo πάλιν (70c7-8d1)

para marcar a recorrecircncia a repeticcedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilatildeo e implica a ideia de

uma vida preacutevia Platatildeo tambeacutem emprega a expressatildeo lsquoaqueles que vivemrsquo como uma

referecircncia agrave pessoa composta de corpo e alma e lsquoaqueles que morreramrsquo para designar

aquele que jaacute esteve em vida e morreu (a alma desencarnou) (70c8-9)

Portanto quando Soacutecrates diz lsquoo que estaacute morto proveacutem do que estaacute vivorsquo

(71d10-11 72a5-6) seguindo ideia semelhante agravequela que aparece no antigo relato ndash os

vivos provecircm dos que jaacute morreram (ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9) ndash ele

reconhece que a alma que se aloja num corpo estaacute na verdade reencarnando porque

antes de se separar do corpo e descer ao Hades ela jaacute habitava um corpo e chama este

regresso ao corpo de lsquoreviverrsquo (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) que eacute o retorno da alma para o

corpo a reencarnaccedilatildeo Em algumas ocasiotildees Soacutecrates faz referecircncia agrave morte da alma e

isto deve ser meramente entendido como a sua separaccedilatildeo do corpo (77d2-4 84b2

88a6)

62

Estabelecido o processo ciacuteclico obrigatoacuterio que ocorre entre os opostos lsquovivorsquo e

lsquomortorsquo ndash lsquotornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute mortorsquo e lsquotornar-se

morto a partir do que estaacute vivorsquo Soacutecrates vecirc a necessidade de concluir que as nossas

alma existem (no Hades)

Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute

morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute

vivo (71e-72a)

As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

As almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar) (71e72a

72d)

A conclusatildeo eacute de que as almas dos mortos existem Ao final do argumento

Soacutecrates revisa pontos essenciais que foram tratados e provados segundo ele reviver

os vivos nascem dos mortos e as almas dos mortos existem (72d8-10)

O argumento eacute cheio de problemas e dificilmente pode se estabelecer como

prova suficiente da imortalidade da alma Dentre os problemas destacamos os

seguintes

(i) Para cada par de opostos existem obrigatoriamente dois processos opostos e

com base neles o argumento ciacuteclico visa mostrar que o ciclo de morte e de

renascimento deve continuar ad infinitum porque de outro modo tudo

63

acabaria morto Como diz Hackfort em nenhuma outra hipoacutetese a

continuaccedilatildeo da vida poderia ser explicada sem o processo reverso da morte

para a vida tudo mais cedo ou mais tarde estaria permanentemente morto

Mas ele lembra que esse argumento soacute pode ter forccedila se supormos que natildeo

pode haver vida nova que haacute por exemplo um nuacutemero limite de almas Se

os vivos pudessem ter alguma outra origem que natildeo os mortos a necessidade

loacutegica desse princiacutepio desapareceria Mas Soacutecrates simplesmente assume que

seria impossiacutevel pensar que o processo ciacuteclico obrigatoacuterio natildeo existiria com

base na sua observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto (Cf72a-d)85 Assim a

obrigatoriedade deste processo natildeo parece vaacutelida (72a-d) Eacute plenamente

possiacutevel que haacute coisas que passam de quente a frio e findam neste estado

sem que passem de frio a quente novamente No caso de vida e morte algo

pode vir a morrer a partir de estar vivo e simplesmente findar morto A alma

pode vir a morrer a partir de estar viva e simplesmente terminar morta sem

que necessariamente venha a reencarnar O argumento de que haacute um

necessaacuterio equiliacutebrio no processo natildeo eacute provado

(ii) Alguns termos essenciais para o argumento natildeo satildeo definidos por exemplo

Platatildeo natildeo explica o que ele chama de opostos Aleacutem disso vaacuterios supostos

pares de opostos na verdade natildeo satildeo opostos os adjetivos em forma

comparativa ndash maior e menor mais justo e menos justo ndash natildeo satildeo pares de

opostos (70e4-71a11)

(iii) O argumento apresenta inconsistecircncias lsquoo que estaacute morto proveacutem do que

estaacute vivorsquo (71d10-11 72a5-6) A prova da existecircncia de nossas almas no

85 Hackforth 1998 p64

64

Hades se baseia na ideia de que lsquoas almas provecircm dos mortosrsquo Esta linha

central do argumento eacute problemaacutetica porque estaacute relacionado com a noccedilatildeo de

morte que Soacutecrates apresenta e com a ideia de reencarnaccedilatildeo com base na

qual Soacutecrates emprega a expressatildeo lsquoreviverrsquo A definiccedilatildeo de morte como

separaccedilatildeo da alma e corpo e o reconhecimento de que eles podem existir

separadamente eacute bastante questionaacutevel Em primeiro lugar natildeo se explica e

comprova que alma e corpo podem viver separadamente O corpo comeccedila a

degenerar assim que a alma deixa o corpo seria entatildeo o caso de acontecer o

mesmo com a alma Especialmente depois do argumento das afinidades

Soacutecrates e os amigos discutiratildeo este problema seria o cadaacutever mais

duradouro do que a alma Siacutemias propotildee que o corpo eacute mais duradouro do

que a alma (argumento da alma-harmonia) enquanto Cebes propotildee que a

alma seria mais longeva do que o corpo (argumento do tecelatildeo e seu manto)

mas sofreria degeneraccedilatildeo ao longo dos ciclos de reencarnaccedilatildeo (Cf91d

quando Soacutecrates faz um resumo das duas posiccedilotildees) Todos esses problemas

levantados pelos amigos decorrem em parte desta concepccedilatildeo vaga de morte

apresentada no primeiro estaacutegio do diaacutelogo e com base na qual pelo menos

os primeiros argumentos operam No uacuteltimo argumento a noccedilatildeo de lsquomortersquo eacute

diferente da simples ideia de lsquoseparaccedilatildeo do corporsquo Em segundo lugar no

argumento ciacuteclico a alma viva procede dos que estatildeo mortos a alma que

aloja-se num corpo jaacute se alojara num corpo de algueacutem que morreu Soacutecrates

entende que o processo ciacuteclico do morto para o vivo soacute funciona se lsquomortorsquo

aqui natildeo significa lsquoaniquiladorsquo porque soacute seria possiacutevel vir a estar viva a

partir de estar morta se a alma existisse mesmo quando estaacute morta

65

(desencarnada) (Cf70d1-2) e Soacutecrates natildeo explica por que razatildeo a alma

continua a existir quando deixa o corpo A ideia simultacircnea de lsquomortersquo e

lsquoexistecircnciarsquo (uma alma que morre existe) eacute por demais obscura A alma eacute

morta (separada do corpo) e viva (no sentido de que continua a existir) mas

o se espera eacute que morte implica deixar de existir e natildeo que algo morto

continua a existir Sendo assim o argumento dificilmente se estabelece com

base numa ideia que depende da ideia baacutesica da transmigraccedilatildeo O proacuteprio

Cebes levantaraacute um argumento para mostrar que nada garante ateacute o momento

que a alma que passa por um ciclo de reencarnaccedilotildees natildeo seja aniquilada num

desses ciclos (87d-e)

(iv) O argumento ciacuteclico sustenta que as almas devem oscilar perpetuamente

entre o estado de estar ldquovivordquo (unido a um corpo) e ldquomortordquo (separado de um

corpo) mas enquanto ele visa provar que esses ciclos de reencarnaccedilotildees

ocorrem para sempre Platatildeo natildeo tem nada a dizer propriamente sobre a

natureza da alma se ela eacute realmente imortal imune agrave morte e destruiccedilatildeo O

argumento ciacuteclico acaba sendo uma primeira tentativa malograda de

contrapor a crenccedila de que a alma que se separa do corpo imediatamente

perece com base numa conclusatildeo simples se a alma continua existindo ela

natildeo eacute destruiacuteda na hora da morte

(v) O argumento oferece uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma mas ao mesmo tempo estaacute em conflito com ela a

doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico admite a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees enquanto o argumento ciacuteclico sugere a continuidade perpeacutetua

deste processo ciacuteclico entre pares de opostos Aleacutem disso Soacutecrates contradiz

66

a si mesmo no diaacutelogo Soacutecrates menciona a libertaccedilatildeo do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes da purificaccedilatildeo o filoacutesofo que se separa do corpo em

estado de pureza sem arrastar consigo elementos corporais rompe o ciclo de

reencarnaccedilotildees e passa a viver com a divindade no Hades (80d-81a) O

proacuteprio mito final tambeacutem contempla a possibilidade de que o ciclo seja

rompido (104c) Talvez Platatildeo queira alinhar o argumento com algum tipo

de versatildeo pitagoacuterica da metempsicose que implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da

alma Zhmud sugere a possibilidade de que oacuterficos e pitagoacutericos divergiam

neste ponto86 Mas isto eacute bastante questionaacutevel

(vi) Os comentaacuterios apresentados jaacute satildeo suficientes para mostrar que o

argumento ciacuteclico falha em estabelecer os trecircs pontos que Soacutecrates considera

ter sido provado o reviver os vivos nascem dos mortos e as almas dos

mortos existem (72d8-10)

Por fim conveacutem apresentar alguns comentaacuterios adicionais sobre o argumento

ciacuteclico como prova da imortalidade da alma

(i) O argumento visa provar que a alma eacute imortal a partir de uma concepccedilatildeo

oacuterifica e pitagoacuterica de imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma

O processo ciacuteclico apresentado eacute perpeacutetuo infindaacutevel inquebraacutevel

Soacutecrates natildeo considera qualquer possibilidade de que pudesse haver uma

ruptura num dos ciclos de morte (desencarnaccedilatildeo) e vida (encarnaccedilatildeo) ou

que a alma possa perecer num deles

86 Zhmud 2012 p 228-230

67

(ii) O que o argumento tenta provar de modo especiacutefico eacute que a alma existe

depois da morte por algum tempo indefinido curto espaccedilo de tempo

longo tempo ou por uma duraccedilatildeo infinita87 Portanto somente uma

limitada sobrevivecircncia post-mortem da alma88

O argumento possui um ponto a se considerar se a alma existe depois da morte

isto significa que a alma natildeo eacute dispersa e destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave sua separaccedilatildeo

da morte (Cf 70a) Esta eacute a primeira tentativa de atacar o problema apresentado Mas os

amigos aperfeiccediloam a exigecircncia seraacute necessaacuterio provar que a alma eacute imortal e natildeo que

possui existecircncia limitada

Tambeacutem eacute importante lembrar que o argumento ciacuteclico no Feacutedon vem sendo

interpretado por muito tempo como sendo um esforccedilo platocircnico para dar

respeitabilidade filosoacutefica agrave antiga doutrina religiosa da transmigraccedilatildeo da alma como jaacute

pensava Wolfe89 Esta posiccedilatildeo eacute seguida por alguns inteacuterpretes contemporacircneos como

Sedley para quem o projeto platocircnico natildeo eacute provar a imortalidade da alma de iniacutecio

mas confirmar a respeitabilidade cientiacutefica de uma tradiccedilatildeo religiosa providenciando

evidecircncias de que ela se conforma com uma lei universal que governa a natureza da

87 O neoplatocircnico Siriano afirma que o objetivo do argumento seria provar apenas que a alma

permanece no Hades seja por um curto espaccedilo de tempo por um longo tempo ou por uma

duraccedilatildeo infinita (Dam I1834-6 Olimp10111-12) (Cf Gertz 2011 p86)

88 Uma opiniatildeo que predominou entre os uacuteltimos inteacuterpretes neoplatocircnicos (Cf Gertz 2011

p95) Barnes (Cf Barnes amp Bonelli (ed) 2011 p306) segue essa posiccedilatildeo entre os

contemporacircneos ele acredita que nada no argumento implica imortalidade da alma concluindo

que o argumento natildeo foi designado para provar a imortalidade mas apenas uma duraccedilatildeo finita

da alma O argumento estaria comprometido em provar a existecircncia da alma em algum lugar

depois da morte e por algum tempo que eacute diferente de provar a imortalidade da alma Ele

ressalta que essa ideia de uma temporaacuteria sobrevivecircncia da morte estaacute presente no contexto mais

geral do Feacutedon como eacute o caso de Cebes a respeito do tecelatildeo e dos mantos que produz (cf 87d-

88b) e natildeo pode ser ignorada no contexto especiacutefico do argumento ciacuteclico

89 Cf Wolfe 1966 p237

68

mudanccedila90 Isto decorre da observaccedilatildeo de que o argumento ciacuteclico confirma o antigo

relato ndash a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma As duas premissas que o argumento ciacuteclico

visa provar satildeo (i) as almas dos que morrem existem no Hades (ii) as almas dos que

partiram existem no Hades de onde regressam para a vida terrena (70c) Vejamos a

comparaccedilatildeo

Antigo relato

As almas dos que morrem existem

no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem existem

no Hades (existecircncia post mortem

da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Mas eacute importante dizer que o argumento natildeo eacute incorporado ao Feacutedon porque

Platatildeo tem o objetivo de defender a crenccedila numa doutrina religiosa como se fosse um

religioso se utilizando da filosofia para fundamentar a sua crenccedila O objetivo claro do

diaacutelogo eacute provar a imortalidade da alma mas nesta primeira tentativa a concepccedilatildeo de

imortalidade se confunde com a de transmigraccedilatildeo

90 Sedley 2012 p147 148

69

Por fim natildeo haacute qualquer sinal de que o argumento ciacuteclico tenha sido bem

avaliado ou aceito pelos amigos de Soacutecrates No decorrer do diaacutelogo fica claro que

Platatildeo se distancia desse tipo de prova e busca desenvolver uma doutrina platocircnica da

imortalidade da alma a partir de uma concepccedilatildeo de imortalidade que independe da

transmigraccedilatildeo da alma embora possa servir agravequeles que sustentam a doutrina Eacute assim

que no uacuteltimo argumento depois de uma discussatildeo que independe do componente

religioso ao final depois de estabelecido que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Soacutecrates

acrescenta e estaacute no Hades (107a1)

A nossa anaacutelise indica que o argumento ciacuteclico natildeo prova efetivamente nem a

existecircncia da alma depois da morte nem a imortalidade da alma

70

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)

41 Introduccedilatildeo

Concluiacutedo o argumento ciacuteclico Cebes imediatamente conduz a discussatildeo para o

ensino da reminiscecircncia

ldquoAinda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que

vocecirc ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute

do que reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido

em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos Mas isto

seria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum lugar

antes de assumir essa forma humana De modo que tambeacutem de acordo

com esse ensino a alma parece ser imortalrdquo (72e1-73a3)

Cebes eacute quem dessa vez sugere a segunda prova da imortalidade da alma De

acordo com a teoria da reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em

alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora simplesmente recordamos A doutrina

da reminiscecircncia tem um papel central em trecircs diaacutelogos platocircnicos Mecircnon Feacutedon e

Fedro mas em cada diaacutelogo a doutrina se mostra peculiar91 O Feacutedon inova com a

vinculaccedilatildeo da doutrina da reminiscecircncia e a ideia das lsquoFormasrsquo uma posiccedilatildeo que natildeo

existe no Mecircnon Como diz Kahn no Mecircnon a imortalidade da alma foi tomada como

91 Cf Kahn in Benson 2011 p 120

71

certa pela autoridade de saacutebios sacerdotes e sacerdotisas enquanto no Feacutedon ela deve

ser provada92

Se a doutrina apresentada no Feacutedon eacute uma continuaccedilatildeo ou natildeo do toacutepico

apresentado no Mecircnon ou se temos ou natildeo no Feacutedon uma apresentaccedilatildeo parcial de uma

soacute teoria desenvolvida ao longo dos trecircs diaacutelogos ndash Mecircnon Feacutedon Fedro ndash eacute uma

questatildeo que fica de fora do escopo de nosso estudo

42 Participaccedilatildeo positiva dos amigos

Com a participaccedilatildeo de Cebes introduzindo o ensino da reminiscecircncia e assim a

segunda prova da imortalidade da alma conveacutem salientar que essa postura positiva e

engajada marca os interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon O problema que vai se

revelando ao longo da conversa eacute que os argumentos apresentados por Soacutecrates satildeo

insuficientes para provar a imortalidade da alma e cada uma dessas tentativas frustradas

de provar a imortalidade da alma convida os amigos de Soacutecrates para uma participaccedilatildeo

mais efetiva como acontece quando Cebes pede para Soacutecrates mostrar se o ensino

bastante conhecido pelo ciacuterculo socraacutetico ndash reminiscecircncia ndash poderia provar a

imortalidade da alma (72e-73a) Os amigos de Soacutecrates tecircm uma participaccedilatildeo positiva

no diaacutelogo incentivam Soacutecrates a continuar a discussatildeo avaliam e rejeitam argumentos

apresentam consideraccedilotildees e objeccedilotildees sempre com o fim de obter a prova da

imortalidade da alma Eles satildeo muito mais do que supostos saacutebios que desconhem

aquilo que julgam conhecer com maestria Vejamos alguns exemplos

92 Kahn in Benson 2011 p 123

72

(i) Na primeira etapa do Feacutedon Cebes confronta a atitude de Soacutecrates diante

da morte baseada apenas em sua convicccedilatildeo de cunho religioso o que o

mestre havia dito sobre a alma produz duacutevidas sobretudo naqueles que

acolhem a crenccedila popular de que a alma se dispersaria e seria destruiacuteda

por ocasiatildeo da morte Eacute tambeacutem Cebes quem sugere que seria nessaacuteria

lsquouma demonstraccedilao natildeo muito pequenarsquo para satisfazer a necessidade de

provar que a alma natildeo se dispersa e eacute destruiacuteda como essas pessoas

dizem (69e-70a)

(ii) O segundo argumento eacute na verdade introduzido por Cebes que

certamente entende que haacute necessidade de que Soacutecrates apresente outra

prova da imortalidade da alma uma vez que a primeira natildeo o havia

convencido (72e-73a)

(iii) Ao final do segundo argumento Siacutemias e Cebes tem uma participaccedilatildeo

essencial em apontar falhas no argumento da reminiscecircncia e desafiar

Soacutecrates a construir um novo argumento porque ainda natildeo se havia dado

uma resposta capaz de responder agrave crenccedilas das pessoas comuns de que a

alma se dispersaria e pereceria por ocasiatildeo da morte (77b-c)

(iv) Ainda na transiccedilatildeo para o terceiro argumento eacute Cebes quem pede que

Soacutecrates os liberte do temor pueril de que a alma eacute passiacutevel de dispersatildeo

e destruiccedilatildeo o que nada mais eacute do que um claro apelo para que o mestre

Soacutecrates o uacutenico capaz de provar que a alma eacute imortal conceda-lhes

uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma (77e)

(v) Depois do argumento das afinidades os amigos de Soacutecrates ressaltam

que natildeo havia sido apresentada uma prova suficiente e Cebes ao final

73

exige que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον)

(88b5-6) Essa exigecircncia de Cebes eacute acolhida por Soacutecrates e o argumento

final tenta responder precisamente a esta exigecircncia o que se pode ver na

sua conclusatildeo de que lsquoa alma eacute imortal e indestrutiacutevelrsquo (ψυχὴ ἀθάνατον

καὶ ἀνώλεθρον) (106e-107a)

Analisando os trecircs primeiros argumentos a partir das intervenccedilotildees dos amigos eacute

possiacutevel observar que eles ajudam a entender o que natildeo eacute uma prova suficiente e

satisfatoacuteria da imortalidade da alma

(i) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da existecircncia da alma

post mortem (argumento ciacuteclico)

(ii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da preexistecircncia da

alma (argumento da reminiscecircncia)

(iii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova de que a alma eacute

semelhante ao que eacute completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

(argumento das afinidades)

Adiante Cebes deixaraacute claro que eacute necessaacuterio provar que a alma eacute

completamente imortal e indestrutiacutevel e natildeo apenas que ela eacute capaz de existir por um

tempo determinado (88a) Soacutecrates acolheraacute a sua exigecircncia e no uacuteltimo argumento

tenta provar justamente que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ

ἀνώλεθρον) (Cf 106d8-107a1)

74

43 Fundamento e condiccedilotildees para reminiscecircncia (72e-74a)

O nosso aprendizado nada mais eacute do que reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute

tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos

(Cf72e1-73a3) Em suma reminiscecircncia ocorre basicamente quando algueacutem se recorda

de x atraveacutes de y Por exemplo quando algueacutem se recorda de Siacutemias atraveacutes do retrato

de Siacutemias Mas Platatildeo apresenta uma seacuterie de condiccedilotildees que devem acompanhar este

ato cognitivo para que seja propriamente caracterizado como reminiscecircncia

Depois que Cebes propotildee o novo argumento e Soacutecrates preliminarmente

conversa com Siacutemias e revisa o essencial sobre o ensino da reminiscecircncia Soacutecrates

apresenta um tipo de prefaacutecio ao argumento propriamente dito no qual ele introduz

condiccedilotildees gerais para que ocorra a reminiscecircncia em 73c-74a como indica Soacutecrates

dizendo que lsquose algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio quersquo (εἴ τίς τι ἀναμνησθήσεται

δεῖν) (73c1-3) Um determinado ato cognitivo soacute poderaacute ser apropriadamente

chamado de reminiscecircncia ndash em 73c temos o verbo ἀναμιμνήσκω e o substantivo

ἀνάμνησις ndash se cumpridas essas condiccedilotildees apresentadas em 73c-74a Seguimos a

sugestatildeo de Scott que identifica quatro condiccedilotildees93

(i) Noacutes devemos ter conhecido x antecipadamente (73c1-3) lsquose algueacutem for

recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimentorsquo

(ii) Noacutes devemos natildeo apenas reconhecer y mas tambeacutem pensar sobre x

(73c6-8) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

93 Scott 1995 p 55

75

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item ()rsquo

(iii) x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

(73c8-9) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto

do primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que

lhe veio agrave mentersquo A partir de 73d temos vaacuterios exemplos de

reminiscecircncia

bull amantes veem uma lira um manto ou algum outro objeto de seus amados

e recordam-se da imagem do amado

bull algueacutem vecirc a pintura de um cavalo ou a pintura de uma lira e recorda-se

de uma pessoa

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Cebes

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Siacutemias

(iv) quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma

coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7) lsquomas sempre que se recorda de algo a

partir de coisas semelhantes natildeo passa necessariamente pela experiecircncia

de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se recordou e o objeto

recordado se assemelhamrsquo

Essas condiccedilotildees teratildeo crucial importacircncia no desenvolvimento do argumento

mas agora vejamos a quarta condiccedilatildeo com mais cuidado Soacutecrates fala que pode haver

dois tipos de reminiscecircncia aquela a partir de itens semelhantes ao que foi recordado e

76

a partir de itens dissemelhantes (74a2-3) Soacutecrates passa a discorrer sobre a

reminiscecircncia a partir de itens semelhantes (ἀφ ὁμοίων) e apresenta seu exemplo

emblemaacutetico quando algueacutem vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias e recorda-se do proacuteprio

Siacutemias (73e9-10) Nesse caso o filoacutesofo impotildee uma experiecircncia adicional (προσπάσχω)

e necessaacuteria (ἀναγκαῖον) no processo de recordaccedilatildeo uma condiccedilatildeo sine qua non

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x (74a5-7) No caso do retrato por exemplo a reminiscecircncia tem que cumprir a

seguinte condiccedilatildeo eacute necessaacuterio perceber (ἐννοέω) se a semelhanccedila entre o retrato e

Siacutemias apresenta uma deficiecircncia no que concerne agrave similaridade (τι ἐλλείπει κατὰ

τὴν ὁμοιότητα) em relaccedilatildeo ao que a pintura recorda ndash Siacutemias (74a5-7) Aquele que olha

para o retrato de Siacutemias e recorda Siacutemias deve perceber a semelhanccedila que existe entre

Siacutemias o seu retraro mas tambeacutem perceber a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Neste caso Platatildeo certamente tenta

estabelecer o que a leitura natural do texto indica natildeo importa quatildeo bom seja o retrato

seraacute uma coacutepia do ldquooriginalrdquo e para que haja reminiscecircncia eacute necessaacuterio que se perceba

natildeo apenas a semelhanccedila evidente entre um retrato de boa qualidade e a pessoa que ele

lembra mas eacute imperativo que se perceba a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Eacute com essa uacuteltima condiccedilatildeo em curso

que Platatildeo introduz o ceacutelebre e paradigmaacutetico exemplo no argumento a reminiscecircncia

que ocorre quando algueacutem vecirc coisas iguais e se recorda do igual em si

77

44 Igual em si e coisas iguais (74a-74e)

O apelo inicial de Soacutecrates eacute para que se examine (σκοπέω) se lsquoo igual existersquo

ou se lsquoo igual eacute algorsquo (τι εἶναι ἴσον) que eacute em essecircncia uma questatildeo variante de 65d4-5

φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν (65d4-5)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10)

Em seguida comeccedila o processo de caracterizaccedilatildeo daquilo que se afirma existir

comeccedilando com a distinccedilatildeo baacutesica entre lsquoo igual em sirsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e lsquoas coisas ditas

iguai como um pedaccedilo de madeira igual a outro uma pedra igual a outra ou a qualquer

coisa desse tipo sendo coisas de natureza diferente (74a9-12) Platatildeo desenvolve esta

distinccedilatildeo ao longo do argumento sobretudo explorando a condiccedilatildeo para reminiscecircncia

que mencionamos antes quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em

alguma coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7)

Embora a questatildeo φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10) ainda continua obscura de

iniacutecio no argumento da reminiscecircncia ou seja nas primeiras linhas do argumento ainda

natildeo estaacute claro o que se quer dizer com lsquoo igual eacute algorsquo ou lsquoo igual existersquo ao longo do

argumento da reminiscecircncia o leitor percebe a tentativa consistente de estabelecer a

existecircncia de coisas como lsquoo igual em sirsquo de distinguir lsquoo igual em sirsquo das coisas

sensiacuteveis enquanto se estabelece a tese epistemoloacutegica de que conhecer eacute recordar o

conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo eacute apenas rememoraccedilatildeo daquele

conhecimento que a alma adquiriu antes do nascimento o que para Soacutecrates e seus

amigos prova que a alma jaacute existia antes de reencarnar

78

Portanto eacute neste contexto do argumento da reminiscecircncia que uma corrente

majoritaacuteria de interpretaccedilatildeo aponta pela primeira vez o que se entende por teoria das

Formas sendo lsquoigual em sirsquo uma Forma metafiacutesica que a alma conhece antes de nascer

numa condiccedilatildeo de pureza separada do corpo Vejamos o posicionamento de alguns

inteacuterpretes

(i) Gallop acredita que

bull A Teoria das Formas eacute introduzida em 65d e estaacute em cena no

argumento da reminiscecircncia

bull A pergunta φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (lsquoo igual eacute algorsquo) remete agrave

existecircncia de Formas metafiacutesicas

bull A doutrina da imortalidade eacute logicamente dependente da Teoria

das Formas e isto eacute declarado claramente em 76e-77a 92d-e and

l00b) firmando-se como teoria fundamental para o argumento da

reminiscecircncia

bull A Teoria das Formas eacute assumida em todo o diaacutelogo mas natildeo

provada94

(ii) Kahn por semelhante modo

94 Gallop 2002 p93 Cf Hackfort 1998 p69 97

79

bull A doutrina das Formas jaacute estaacute impliacutecita na descriccedilatildeo do objetivo

do filoacutesofo de ldquocontemplar as coisas em si com a proacutepria almardquo

(68e)

bull Eacute somente no argumento da reminiscecircncia que Soacutecrates comeccedila a

especificar a distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e Participantes

(74b-c) e eacute fundamental para a concepccedilatildeo da alma implicada no

argumento da imortalidade

bull A funccedilatildeo preciacutepua da teoria da reminiscecircncia consiste em

estabelecer a condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu

elo cognitivo com o ser transcendente 95

Agora voltaremos ao argumento e retomaremos esta questatildeo da teoria das

Formas posteriormente

Existe um igual

A primeira questatildeo ndash Existe um igual ndash eacute respondida por Siacutemias com grande

convicccedilatildeo (74a) A existecircncia dessas coisas que Soacutecrates chama agora de lsquoigual em sirsquo eacute

simplesmente assumida no argumento O argumento da reminiscecircncia depende em sua

origem de algo que as personagens simplesmente assumem que existe lsquoo igual em sirsquo

Ao longo de sua explanaccedilatildeo do mecanismo da reminiscecircncia Platatildeo caracteriza

lsquoo igual em sirsquo em contraste com as coisas sensiacuteveis e nos daacute uma compreensatildeo melhor

95 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

80

do objeto em questatildeo Eacute importante observar como esta estapa introdutoacuteria do

argumento eacute de iniacutecio conduzida a partir de pelo menos trecircs questotildees encadeadas

(i) Diriacuteamos como presumo que existe um igual () o igual em si

Diremos que isso existe ou natildeo (74a)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον () αὐτὸ τὸ ἴσον φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν

(ii) E tambeacutem sabemos o que eacute isso (74b)

ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν

(iii) De onde adquirimos o conhecimento disso (74b)

πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην

E tambeacutem sabemos o que eacute isso

A segunda questatildeo ndash lsquoE tambeacutem sabemos o que eacute issorsquo (74b) levanta um

problema sobre quem pode rememorar A primeira pessoa do plural ndash lsquoE tambeacutem

sabemos o que eacute issorsquo (74b) ndash e as condiccedilotildees para a reminiscecircncia apresentadas no

argumento sugerem que apenas os filoacutesofos podem rememorar Encontramos pelo

menos trecircs possiacuteveis interpretaccedilotildees de reminiscecircncia

(i) Interpretaccedilatildeo sofisticada lsquonoacutesrsquo em 74b indica um grupo seleto de

filoacutesofos iluminados que conhecem as Formas e com a posse desse

conhecimento esses filoacutesofos somente (no Feacutedon o ciacuterculo socraacutetico)

podem atender agraves condiccedilotildees para a reminiscecircncia dentre elas a condiccedilatildeo

crucial o reconhecimento da deficiecircncia de pedras e paus em contraste

81

com o Igual em si mesmo Reminiscecircncia ocorre quando em resposta agrave

percepccedilatildeo sensorial recordamos de uma Forma Scott acredita que em

74b Soacutecrates se concentra no conhecimento de uma uma entidade muito

distante do pensamento da maioria das pessoas a Forma da igualdade

Reminiscecircncia requer o conhecimento de Formas transcendentes e

apenas os filoacutesofos tecircm acesso a esse tipo niacutevel de conhecimento96

Franklin aponta um dos grandes problemas desta interpretaccedilatildeo se a

recordaccedilatildeo eacute restrita a uma classe seleta de aprendizes o argumento da

reminiscecircncia seria destinado a mostrar a preacute-existecircncia da alma somente

para aqueles que cumprem os requisitos97

(ii) Interpretaccedilatildeo ordinaacuteria lsquonoacutesrsquo em 74b remete ao ato cognitivo realizado

por todas as pessoas Reminiscecircncia diz respeito ao aprendizado

ordinaacuterio que qualquer pessoa pode experienciar O contexto do diaacutelogo

que visa provar a imortalidade da alma das pessoas em geral natildeo apenas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos favorece essa leitura98 Embora esta leitura

seja favorecida pelo contexto geral do diaacutelogo o contexto imediato

parece deixar claro que apenas filoacutesofos podem praticar reminiscecircncia

nos moldes apresentados aqui conhecimento do lsquoigual em sirsquo e

capacidade para cumprir as condiccedilotildees de reminiscecircncia

(iii) Interpretaccedilatildeo conciliatoacuteria estamos chamando de interpretaccedilatildeo

conciliatoacuteria aquela proposta por Kahn que tenta harmonizar as

interpretaccedilotildees sofisticada e ordinaacuteria Ele acredita que haacute duas teses em

96 Scott 1995 p56 97 Franklin 2005 p290 98 Franklin 2005 p289290

82

questatildeo no argumento uma a respeito da cogniccedilatildeo de todas as pessoas

todas rememoram todas se referem agraves Formas em todo juiacutezo perceptivo

mas apenas de modo inconsciente se referem ao Igual em si quando

julgam que pedaccedilotildees de paus e pedras satildeo iguais a outra tese diz respeito

agrave reminiscecircncia para filoacutesofos somente filoacutesofos quando rememoram

podem distinguir entre Formas e particulares e reconhecer a deficiecircncia

dos uacuteltimos99

A tentativa de conciliaccedilatildeo de Kahn parece a mais prudente Eacute inegaacutevel que

Platatildeo esteja apresentando condiccedilotildees para reminiscecircncia que apenas os filoacutesofos

(ciacuterculo socraacutetico) podem cumprir por outro lado a interpretaccedilatildeo estritamente

sofisticada eacute improvaacutevel porque natildeo se pode esperar que Platatildeo esteja querendo provar

apenas a imortalidade da alma de Soacutecrates e seus amigos Ao que parece todas as

pessoas podem lsquorememorarrsquo aquilo que a alma conheceu antes do nascimento mas

nigueacutem exceto o filoacutesofo saberia dar um relato (διδόναι λόγον) a respeito da

reminiscecircncia (76b) Portanto as condiccedilotildees para a reminiscecircncia devem ser cumpridas

por todas as pessoas mas de modo consciente pelos filoacutesofos

De onde adquirimos o conhecimento disso

A terceira questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o conhecimento dissorsquo (74b) ndash visa

esplicar o mecanismo de reminiscecircncia dando atenccedilatildeo especial para a seguinte condiccedilatildeo

para reminiscecircncia x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

99 Kahn in Benson 2011 p 124

83

O emprego do verbo lsquoconhecerrsquo (ἐπίσταμαι) e do substantivo lsquoconhecimentorsquo

(ἐπιστήμη) (74b) revela que Platatildeo estaacute tratando de atos cognitivos lsquoE tambeacutem sabemos

o que eacute issorsquo (καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν) lsquoDe onde adquirimos o conhecimento

dissorsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) (74b) Vejamos a explicaccedilatildeo de

Soacutecrates recordando tambeacutem a condiccedilatildeo apresentada haacute pouco antes

ldquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo

somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo item

mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto do

primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que lhe

veio agrave menterdquo(73c)

ldquoQuando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso trazemos agrave

mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delasrdquo (74b)

ldquoEntatildeo perguntou eacute mesmo a partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave

mente e adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais

sejam diferentesrdquo (74c)

Agora a questatildeo especiacutefica eacute como recordamos a lsquoo igual em sirsquo cujo

conhecimento adquirimos antes do nascimento O problema inicial que temos eacute

o papel dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia Quando utilizamos os

sentidos (αἴσθησις) natildeo somente conhecemos (γιγνώσκω) os objetos sensiacuteveis

(paus e pedras iguais por exemplo) mas tambeacutem nos vem agrave mente (ἐννοέω) um

84

segundo item (lsquoFormarsquo) (Cf 73c) Ao que parece existem dois atos cognitivos

integrados no mecanismo de reminiscecircncia o primeiro ato eacute o de conhecer

(γιγνώσκω) um objeto sensiacutevel pelo uso de αἴσθησις Quando isto ocorre um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto mas tambeacutem vem agrave mente

(ἐννοέω) um segundo item (73c) Eacute assim que deve acontecer quando

recordamos o lsquoigual em sirsquo cujo conhecimento obtemos antes de nascer pelo uso

de αἴσθησις vemos gravetos pedras e outras coisas iguais e a partir disso um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto a partir dessas coisas (ἐκ τούτων)

trazemos agrave mente aquilo (ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) (74b) Em 74c Soacutecrates repete a

ideia dizendo que eacute a partir dessas coisas iguais (ἐκ τούτων τῶν ἴσων) que se

traz agrave mente (ἐννοέω) e se toma (λαμβάνω) o conhecimento (ἐπιστήμη) do Igual

Esta ideia de que pensamos ou adquirimos conhecimento do Igual a

partir das coisas sensiacuteveis eacute recorrente no argumento (74c710 75a5-7 75a11-

b3 cf75e3-5) o seu significado remete agrave questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o

conhecimento disso (74b)rsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) ndash mas

ainda eacute difiacutecil entender precisamente o que significam expressotildees como

πόθενἐκ τούτωνἐκ τούτων τῶν ἴσων Se Platatildeo estiver realmente assumindo

que natildeo haacute outra maneira de adquirir o conhecimento do Igual mas por meio

dos sentidos somente sugere-se uma ideia diferente daquela apresentada ao

longo do diaacutelogo a de que os sentidos satildeo despreziacuteveis obstaacuteculos na busca do

filoacutesofo pelas lsquoFormasrsquo Essa caracterizaccedilatildeo extremamente pejoritaacuteria dos

sentidos e dos sensiacuteveis permanece no diaacutelogo ateacute a autobiografia intelectual de

Soacutecrates quando o filoacutesofo declara que seu novo modo de investigaccedilatildeo exclui a

utilizaccedilatildeo de αἴσθησις (99d4-e6)

85

Na primeira etapa do diaacutelogo em 65andash66a Platatildeo explica como

podemos adquirir conhecimento e parece ficar claro que natildeo pode ser atraveacutes

dos sentidos Fine apresenta assim a estrutura do argumento na primeira parte do

diaacutelogo (65a9ndashc10)

1 Os sentidos corporais natildeo satildeo precisos nem claros

2 Portanto natildeo podemos perceber nada com precisatildeo ou clareza

3 Portanto a percepccedilatildeo natildeo conteacutem qualquer verdade

4 Portanto sempre que a alma indaga (zetein 65a10) ou considera

(skopein 65b10) algo junto com o corpo ela eacute enganada pelo corpo

5 Portanto a alma natildeo pode alcanccedilar a verdade quando indaga ou

considera algo junto com o corpo

6 Se algueacutem natildeo consegue alcanccedilar a verdade natildeo pode alcanccedilar a

sabedoria

7 Portanto a percepccedilatildeo natildeo pode atingir a sabedoria nem a alma pode

alcanccedilar a sabedoria se investigar ou considerar algo junto com o

corpo

8 Portanto eacute pelo raciociacutenio que qualquer uma das coisas que satildeo se

torna manifesta para a alma

9 Portanto se a alma pode atingir a sabedoria seraacute pelo raciociacutenio100

No argumento da reminiscecircncia os sentidos desempenham um papel no

mecanismo de reminiscecircncia que permite a algueacutem rememorar a lsquoFormarsquo a partir

100 Fine 2016 p559

86

das coisas sensiacuteveis Por outro lado eacute pouco provaacutevel que por πόθενἐκ

τούτωνἐκ ἐκ τούτων τῶν ἴσων Platatildeo queira enfatiza a suficiecircncia das coisas

sensiacuteveis como objetos capazes de nos fazer trazer as lsquoFormasrsquo agrave mente

Provavelmente os objetos particulares oferecem um primeiro estiacutemulo para um

segundo ato cognitivo em que a alma utiliza o intelecto para alcanccedilar aquele

conhecimento esquecido das lsquocoisas em sirsquo Quando algueacutem vecirc paus e pedras

iguais o estiacutemulo dos sensiacuteveis como que aperta o gatilho para um segundo ato

cognitivo quando a alma atraveacutes da atividade intelectiva traz agrave mente o

conhecimento das lsquoFormasrsquo (75a4) o qual jaacute possuiacuteamos originalmente antes do

nascimento e que esquecemos ao nascer na ocasiatildeo em que a alma se aloja num

corpo (Cf75b-77a) Ainda assim enquanto presa ao corpo o maacuteximo que a

alma faz eacute rememorar o conhecimento adquirido previamente e natildeo adquirir o

conhecimento original da lsquoFormarsquo em primeira matildeo Portanto o papel da

percepccedilatildeo sensiacutevel eacute importante mas bastante restrito Na ausecircncia do corpo a

alma pode ter contato direto com as lsquoFormasrsquo

Ainda assim a participaccedilatildeo dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia

continua sendo difiacutecil de conciliar com a caracterizaccedilatildeo extremamente negativa

dos sentidos no diaacutelogo No argumento da afinidade a alma que se utiliza do

corpo para fazer qualquer tipo de consideraccedilatildeo eacute arrastada por ele para os

objetos sensiacuteveis e logo entra em estado de confusatildeo como se estivesse becircbada

por estar em contato com objetos desse tipo (Cf79c) A soluccedilatildeo parece

abandonar completamente os sentidos o que Soacutecrates faraacute com o seu novo modo

de investigaccedilatildeo (99d4-e6)

87

Distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo

Para que haja reminiscecircncia lsquoo igual em sirsquo que eacute rememorado deve ser um

objeto de conhecimento diferente das coisas sensiacuteveis Aleacutem disso eacute necessaacuterio

reconhecer a deficiecircncia das coisas sensiacuteveis em contraste com lsquoo igual em sirsquo A

distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo eacute fundamental para o mecanismo de

reminiscecircncia Esta distinccedilatildeo eacute basicamente expressa a partir da caracterizaccedilatildeo da

inferioridade ou deficiecircncia de coisas sensiacuteveis com o lsquoigual em sirsquo (74d-75b) A

reminiscecircncia requer que noacutes apontemos a diferenccedila entre τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x Aquele que rememora deve reconhecer que (75b5-8)

(i) Todas as coisas sensiacuteveis querem (προθυμέομαι) ser tal como (οἷον) lsquoo

igualrsquo

(ii) mas satildeo inferiores (φαῦλος) a ele

Aqui o texto eacute obscuro e natildeo fornece detalhes para a compreensatildeo dessa ideia de

deficiecircncia entre as lsquocoisas sensiacuteveisrsquo e lsquoo igual em sirsquo Natildeo apenas a ideia de

lsquodeficiecircnciarsquo lsquoinferioridadersquo (φαῦλος) eacute vaga mas tambeacutem a ideia de que coisas

sensiacuteveis como paus e pedras iguais tecircm um desejo ardoroso por ser do mesmo tipo do

igual em si O que fica claro eacute que Platatildeo estaacute tratando de duas classes de coisas e que

uma eacute nobre (igual em si) a outra vulgar (φαῦλος) (coisas iguais) Essa distinccedilatildeo seraacute

bem desenvolvida no argumento das afinidades Mas por enquanto Platatildeo nos priva de

88

mais informaccedilotildees A obscuridade da noccedilatildeo de lsquodeficiecircnciarsquo e de lsquozelo ardorosorsquo eacute

realmente uma fraqueza na exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo a ser cumprida por quem rememora

45 Estrutura Baacutesica do Argumento da Reminiscecircncia

Depois de explicar em linhas gerais o mecanismo de reminiscecircncia eacute possiacutevel

agora observar a estrutura geral do argumento e em seguida desenvolver o ponto preciso

do qual decorre a conclusatildeo de que a alma continua a existir depois da morte Eis a

estrutura do argumento seguida de um comentaacuterio

[1] Noacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o

Igual quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que

elas tentam ser como o Igual mas satildeo inferiores a elas (74e9-75a3)

[2] Noacutes natildeo pensamos no Igual nem haacute chance de isso ter acontecido exceto

pelos sentidos (τῶν αἰσθήσεων) (75a5-7)

[3] Tudo percebido pelos sentidos se esforccedila para ser como o Igual mas eacute

inferior (75b12)

[4] Noacutes devemos necessariamente ter adquirido o conhecimento (λαμβάνειν

ἐπιστήμην) original do Igual antes mesmo de utilizar os sentidos (75b4-8)

[5] Noacutes natildeo podemos ter adquirido o conhecimento original do Igual a partir

dessas coisas inferiores (sensiacuteveis) (75b4-8)

[6] Noacutes devemos ter adquirido o conhecimento original do Igual (e de todas as

outras coisas desse tipo) antes mesmo de utilizar os sentidos (75c4-5)

[7] Noacutes comeccedilamos a utilizar os sentidos quando nascemos (75b10-11)

89

[8] Portanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea conhecimento

do Igual (76c)

A ideia central do argumento eacute a necessidade de termos adquirido conhecimento

do igual em si antes do uso dos sentidos porque nem os sentidos nem os objetos

sensiacuteveis podem fornecer esse conhecimento Jaacute que comeccedilamos a usar os sentidos na

ocasiatildeo do nascimento a alma deve ter conhecido o igual em si antes do nascimento e

portanto a alma existe (e tem conhecimento do igual) antes do nascimento

Embora a rememoraccedilatildeo ocorra a partir dos sentidos a aquisiccedilatildeo original do

conhecimento das lsquoFormasrsquo natildeo pode ocorrer a partir do domiacutenio das coisas sensiacuteveis

porque eacute um domiacutenio de coisas inferiores deficientes que natildeo podem servir de fonte

primaacuteria para a obtenccedilatildeo do conhecimento original da lsquoFormarsquo Ateacute mesmo a

rememoraccedilatildeo do conhecimento adquirido previamente eacute difiacutecil e nem mesmo a

explanaccedilatildeo de como isto ocorre eacute bem clara O conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo natildeo

pode ser obtido enquanto alma reencarnada e nem mesmo eacute faacutecil recuperar o

conhecimento jaacute adquirido Apenas quando a alma estaacute separada do corpo eacute que poderia

ganhar conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo

A ideia de que eacute impossiacutevel adquirir conhecimento das coisas em si atraveacutes do

estiacutemulo dos objetos particulares eacute um dos pontos essenciais que levaratildeo agrave conclusatildeo de

que a alma soacute pode ter adquirido este conhecimento antes de nascer Quando relata a

inferioridade dos objetos sensiacuteveis em contraste com o igual em si Soacutecrates reconhece

que natildeo eacute possiacutevel que por meio da nossa percepccedilatildeo de objetos sensiacuteveis deficientes

possamos ter um conhecimento original do Igual em si A proacutepria capacidade de

observar que lsquosensiacuteveisrsquo querem ser tal como lsquoa coisa em sirsquo mas satildeo inferiores requer

90

obrigatoriamente um conhecimento preacutevio da lsquocoisa em sirsquo que se assemelha com o

objeto sensiacutevel o qual eacute deficiente e inferior em contraste com a lsquocoisa em sirsquo Por meio

da nossa percepccedilatildeo do domiacutenio dos sensiacuteveis seria impossiacutevel reconhecer a deficiecircncia

de pedras e paus iguais em contraste com o igual em si A proacutepria natureza deficiente do

domiacutenio dos sensiacuteveis eacute incapaz de providenciar conhecimento daquilo que eacute nobre

superior Pelo seu caraacuteter coisas sensiacuteveis natildeo podem ser fonte suficiente para o

conhecimento da lsquoFormarsquo A uacutenica resposta plausiacutevel para este problema segundo a

personagem Soacutecrates eacute que a nossa alma deve ter obtido o conhecimento do lsquoigual em

sirsquo antes mesmo de utilizar os sentidos porque ao utilizar os sentidos e perceber que a

deficiecircncia de paus e pedras em contraste com o igual em si a pessoa jaacute estaacute fazendo

uso desse conhecimento original do lsquoigual em sirsquo Essa ideia central jaacute comeccedila a ser

desenvolvida depois do mecanismo de reminiscecircncia ter sido explicado a partir de 74e

ldquoNoacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o Igual

quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que elas tentam

ser como o Igual mas satildeo inferiores a elasrdquo (74e9-75a3) Quando pela primeira vez

utilizamos os sentidos e jaacute podemos reconhecer a diferenccedila entre lsquosensiacuteveisrsquo e lsquoFormasrsquo

eacute necessaacuterio que nesta ocasiatildeo jaacute tenhamos obtido previamente o conhecimento da

lsquoFormarsquo Conforme Soacutecrates se jaacute comeccedilamos a utilizar os sentidos ao nascer

possuiacutemos conhecimento do igual em si antes mesmo do nascimento e as nossas almas

jaacute existiam antes do nascimento (75c)

91

46 Avaliaccedilatildeo do argumento

Ao final do argumento Soacutecrates acredita que provou que a alma existe antes do

nascimento lsquoPortanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea

conhecimento do Igualrsquo (76c) Eis algumas falhas do argumento

(i) A prova da reminiscecircncia falha porque se estabelece a partir de uma

mera pressuposiccedilatildeo de que lsquoFormasrsquo existem

(ii) A prova da reminiscecircncia falha porque natildeo estaacute claro que a alma natildeo

possa adquirir um conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo a partir

da reencarnaccedilatildeo

(iii) Soacutecrates conclui que fica provado que lsquoFormasrsquo e almas existem antes do

nascimento (76e5-7) mas em momento algum o argumento procura

provar que lsquoFormasrsquo existem

(iv) O argumento da reminiscecircncia natildeo prova que a alma eacute imortal Ainda

que o argumento se estabelecesse nada garantiria que a alma que

conhece as lsquoFormasrsquo no aleacutem natildeo seria destruiacuteda ainda antes de

reencarnar A doutrinda da reminiscecircncia soacute provaria que a nossa alma

sobreviveu no periacuteodo de tempo que vai do aleacutem quando a alma

conheceu as lsquoFormasrsquo ateacute o momento em que as recordamos Estaacute bem

claro que a alma poderia entatildeo se dispersar e destruir na hora da morte

92

47 Observaccedilotildees finais

O argumento eacute bastante difiacutecil e apresenta muitos problema de interpretaccedilatildeo

sobretudo porque Platatildeo deixa boa parte dos pontos centrais do argumento sem uma

explicaccedilatildeo suficiente Haacute muitas sentenccedilas ambiacuteguas e vagas e conceitos essenciais para

o argumento natildeo satildeo esclarecidos como o que significa dizer que as coisas sensiacuteveis

tecircm um forte desejo de ser como as lsquoFormasrsquo

Nestas consideraccedilotildees finais comentamos trecircs toacutepicos relacionados ao argumento

teoria das Formas imortalidade da alma e a sugestatildeo de Soacutecrates de que devemos

combinar argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

471 Teoria das Formas e a prova da imortalidade da alma

O problema da teoria das Formas eacute alvo de grande debate e a interpretaccedilatildeo

majoritaacuteria como apresentamos no estudo tende a reconhecer que a imortalidade da

alma depende da Teoria das Formas apresentada no argumento da reminiscecircncia A

nossa avaliaccedilatildeo do argumento sugere que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o

fim de apoiar a sua exposiccedilatildeo de uma mecanismo de reminiscecircncia que levaraacute a uma

prova de que a alma existe antes de nascer Natildeo temos aqui uma terminologia teacutecnica

para Formas e a distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo estaacute longe de ser clara

Portanto o maacuteximo que podemos reconhecer eacute uma teoria incipiente uma primeira

tentativa no diaacutelogo de estabelecer a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo e

que nos leva a reconhecer uma discreta tentativa de estabelecer ou esboccedilar uma teoria

das Formas Aleacutem disso esta tentativa visa dar suporte agrave explanaccedilatildeo sobre o mecanismo

93

de reminiscecircncia Alguns comentadores tendem a explorar a temaacutetica da teoria das

Formas no argumento das reminiscecircncia e chegam a conclusotildees exageradas como

Kahn segundo o qual Platatildeo comeccedila a desenvolver a noccedilatildeo de lsquoparticipaccedilatildeorsquo no

contexto do argumento da reminiscecircncia 101 Portanto a nossa avaliaccedilatildeo do argumento

indica que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o fim de dar suporte agrave sua

exposiccedilatildeo sobre o mecanismo de reminiscecircncia que fornece a prova para a preexistecircncia

da alma

472 Imortal (ἀθάνατος)

Temos no argumento da reminiscecircncia a primeira menccedilatildeo expliacutecita da palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) no diaacutelogo (73a2) Cebes afirma que a doutrina da reminiscecircncia

natildeo seria plausiacutevel se a nossa alma natildeo existisse em algum lugar antes de assumir a

forma humana (τοῦτο δὲ ἀδύνατον εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) e finaliza dizendo que a alma parece ser algo

imortal tambeacutem dessa maneira (ὥστε καὶ ταύτῃ ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι) (Cf

72e1-73a3) Cebes estimula Soacutecrates a construir uma prova da imortalidade da alma

com base na doutrina da reminiscecircncia que lhe parece tambeacutem tratar da imortalidade da

alma Note-se que o emprego da expressatildeo τι ἔοικεν εἶναι (73e2-3) indica que Cebes

natildeo tem qualquer convicccedilatildeo sobre isso A sua observaccedilatildeo eacute um convite para que

Soacutecrates lhe mostre se realmente o ensino da reminiscecircncia pode ser tomado como

prova da imortalidade da alma ou natildeo Cebes eacute o responsaacutevel por vincular incialmente

imortalidade da alma e argumento da reminiscecircncia

101 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

94

Mas a intervenccedilatildeo inicial de Soacutecrates visa ratificar a tese central da doutrina da

reminiscecircncia para Siacutemias aprender eacute recordar O filoacutesofo acha que Siacutemias natildeo estaacute

convencido de que o aprendizado pode ser reminiscecircncia e o convida a examinar a

doutrina a partir de outro acircngulo Siacutemias nega que tenha essa duacutevida mas reconhece que

precisa experimentar o ensino da reminiscecircncia (73b) Eacute a partir daiacute que Soacutecrates

introduz o segundo argumento da imortalidade da alma no Feacutedon em 73c Soacutecrates

sequem menciona a palavra lsquoimortalrsquo ao longo do argumento e a sua conclusatildeo aponta

para o que Cebes apresenta desde o iniacutecio a doutrina da reminiscecircncia soacute funciona ou

seja reminiscecircncia soacute lsquoseria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum

lugar antes de assumir essa forma humanarsquo (73a1-2) Ao final o argumento da

reminiscecircncia nem prova que a alma eacute imortal A insistecircncia de Soacutecrates de que

argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia juntos consistiria na prova completa que os

amigos esperam natildeo eacute acolhida pelos amigos (77c-d) que continuam assombrados com

a possibilidade de teestemunha em breve natildeo apenas a morte de Soacutecrates a separaccedilatildeo

entre alma e corpo mas a destruiccedilatildeo da sua alma (77e) O argumento ciacuteclico havia

mostrado que as almas existem depois da morte de onde voltam para alojar-se num

corpo A conclusatildeo do argumento da reminiscecircncia reforccedila apenas algo que jaacute havia

sido mencionado no argumento ciacuteclico ndash as almas existem antes de reencarnar ndash mas

agora a partir de um argumento aceito pelos amigos no que concerne agrave existecircncia da

alma antes do nascimento

A sugestatildeo para combinar os argumentos mostra que Soacutecrates entende que

preexistecircncia da alma (argumento da reminiscecircncia) + existecircncia post mortem da alma

(argumento ciacuteclico) = imortalidade da alma Mas a existecircncia da alma antes do

nascimento e a existecircncia da alma depois da morte tomadas juntas natildeo provam que a

95

alma eacute imortal A sugestatildeo de Soacutecrates deve ser entendida com base na concepccedilatildeo de

imortalidade vinculada agrave reencarnaccedilatildeo apresentada no antigo relato a qual Soacutecrates

ainda tem em mente quando sugere essa combinaccedilatildeo como veremos adiante

Tambeacutem vale lembrar que o uso de ὥστε καὶ (73e2) sugere que a discussatildeo

anterior no entendimento de Cebes jaacute poderia ser vista como uma tentativa de provar a

imortalidade da alma mas de modo algum ele considera que o argumento teve sucesso

nisso No Feacutedon natildeo encontramos qualquer sugestatildeo de que Cebes ou Siacutemias aceitam o

argumento ciacuteclico como prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma Tudo indica que

natildeo

(i) A introduccedilatildeo abrupta do ensino da reminiscecircncia com uma esperanccedila de

que pudesse provar a imortalidade da alma parece muito mais uma

admissatildeo velada de que Cebes natildeo estaacute satisfeito com a prova

apresentada do que simplesmente um reconhecimento de que o

argumento ciacuteclico prova a imortalidade da alma

(ii) Depois do argumento das afinidades em 85d as personagens se privam

de apresentar as suas criacuteticas natildeo pretendem importunar Soacutecrates na

ocasiatildeo adversa em que se encontra Essa deve ser uma das razotildees pelas

quais pelo menos na transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia Cebes

prefere incitar Soacutecrates a um novo argumento em vez de importunar o

mestre com suas objeccedilotildees diretas

(iii) A reaccedilatildeo esperada de Cebes caso estivesse de acordo com a primeira

prova apresentada seria a expressatildeo de sua satisfaccedilatildeo como ocorre no

96

final do uacuteltimo argumento (107a) quando ele simplesmente afirma que

natildeo tem nada para objetar

(iv) Ao final do proacuteprio argumento da reminiscecircncia mesmo depois da

sugestatildeo de que a uniatildeo do argumento ciacuteclico e do argumento da

reminiscecircncia provaria o que eles requerem o temor dos amigos diante

da possibilidade de que a alma de Soacutecrates pudesse ainda ser dissipada e

destruiacuteda e o clamor para que Soacutecrates pudesse ainda persuadi-lo a natildeo

temer por meio um novo argumento tambeacutem indicam que Cebes e Siacutemias

rejeitam o argumento ciacuteclico (e tambeacutem o da reminiscecircncia) como prova

da imortalidade da alma (77e)

(v) Tambeacutem depois do argumento das afinidades Soacutecrates pergunta se os

amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns dos argumentos

apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam apenas alguns e

rejeitam outros ressaltando que aceitam o argumento da reminiscecircncia

no que diz respeito agrave preexistecircncia da alma (91e-92a) Eacute bem provaacutevel

que o argumento ciacuteclico esteja na lista dos rejeitados

Ao dizer que a alma parece ser algo imortal (ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι)

(73a) Cebes estaacute reconhecendo que a discussatildeo que toma lugar na etapa demonstrativa

eacute especialmente sobre a imortalidade da alma Desde que ele mesmo apresenta a crenccedila

comum de que a alma pode ser destruiacuteda na separaccedilatildeo do corpo (70a) eacute especialmente

sobre a imortalidade da alma No Feacutedon os amigos de Soacutecrates natildeo aceitam um

argumento filosoacutefico que natildeo seja capaz de provar nada mais do que a imortalidade da

alma Esta transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia eacute sem duacutevida a ocasiatildeo precisa

97

em que Platatildeo emprega a palavra lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) pela primeira vez no diaacutelogo na

voz de Cebes com o fim de nos deixar saber que o tema da imortalidade da alma

individual (o contexto do Feacutedon deixa claro que o problema em questatildeo eacute provar que a

alma de Soacutecrates natildeo seraacute destruiacuteda assim que beber o veneno) se estabelece como tema

central do diaacutelogo

473 Eacute necessaacuterio combinar argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia

Haacute alguns indiacutecios textuais que mostram que Platatildeo se preocupa em relacionar o

argumento ciacuteclico e o argumento da reminiscecircncia Ao final do argumento da

reminiscecircncia Cebes concorda com Siacutemias de que soacute fora demonstrado (ἀποδείκνυμι)

metade (ἥμισυς) daquilo que seria necessaacuterio que a alma existe antes do nascimento

(ὅτι πρὶν γενέσθαι ἡμᾶς ἦν ἡμῶν ἡ ψυχή) (Cf77b1 77c2-3) Agora seria necessaacuterio

provar que a alma continua a existir depois da morte (77c) Soacutecrates entatildeo trata os dois

argumentos como unidade e pede que os amigos os combinem (συντίθημι) para obter

uma uacutenica prova (77c)

Alguns comentadores admitem pelo menos uma relaccedilatildeo complementaacuteria entre os

dois argumentos e ateacute que uma completa prova da imortalidade da alma dependeria da

combinaccedilatildeo dos dois102 Mas geralmente natildeo se oferece uma resposta convincente para

esse tratamento singular e relaccedilatildeo dos dois argumentos A nossa anaacutelise procura mostrar

que o elo de ligaccedilatildeo dos dois argumentos eacute a doutrina religiosa de cunho oacuterfico

pitagoacuterico apresentada no relato antigo em 70a e que eacute um componente fundamental da

doutrina da reminiscecircncia no Mecircnon As duas primeiras provas da imortalidade

102 Cf Bluck 1955 p62 Dorter 1982 p45 Hackfort 1955 p1998 White 1989 p80

98

oferecem uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a mesma crenccedila apresentada no antigo

relato Vejamos como isto ocorre

O argumento ciacuteclico eacute introduzido a partir de um lsquoantigo relatorsquo de cunho oacuterfico

e pitagoacuterico ndash a transmigraccedilatildeo da alma ndash e a doutrina da reminiscecircncia tal como vemos

no Mecircnon estaacute intrinsecamente ligada com a ideia de imortalidade e transmigraccedilatildeo da

alma Como diz Kahn no pensamento oacuterfico e pitagoacuterico a imortalidade eacute concebida

em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo das almas103 A doutrina da reminiscecircncia eacute apresentada no

Mecircnon 81a-e como doutrina que tem origem em autoridades ndash sacerdotes sacerdotisas e

poetas divinamente inspirados ndash que dizem que a alma humana eacute imortal e agraves vezes

chega ao fim o que eles chamam morrer e agraves vezes reencarna mas nunca perece A

alma eacute imortal e estaacute sujeita agrave reencarnaccedilatildeo e disso decorre a necessidade de viver de

modo tatildeo piedoso quanto possiacutevel (81b 86b) e de recordar tudo o que ainda natildeo foi

recordado (86b1-4) Fica claro que argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia manteacutem uma

relaccedilatildeo com aquela mesma crenccedila religiosa apresentada com o nome de lsquorelato antigorsquo ndash

a transmigraccedilatildeo da alma ndash a qual estaacute intrinsecamente ligada como a crenccedila na

imortalidade da alma O relato antigo diz basicamente o seguinte (70c-d)

(i) a alma dos que morrem existem no Hades

(ii) a alma dos que partiram existem no Hades de onde regressam para a vida

terrena

103 Cf Kahn 2007 p18

99

Natildeo eacute difiacutecil perceber que as duas premissas que constituem o antigo relato

estaratildeo presentes na conclusatildeo do argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

respectivamente

Antigo relato

As almas dos que morrem

existem no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem

existem no Hades (existecircncia post

mortem da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Reminiscecircncia As almas dos que morrem

existes antes do nascimento

A soluccedilatildeo de Soacutecrates para combinar os dois argumentos natildeo muda a prova

porque o argumento da reminiscecircncia simplesmente prova algo que jaacute estaacute presente no

argumento dos opostos almas existem antes do nascimento e reencarnam

100

O argumento eacute destinado a provar a imortalidade desde o iniacutecio com a clara

indicaccedilatildeo de Cebes mas a concepccedilatildeo de imortalidade em funccedilatildeo da doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma natildeo eacute aquilo que os amigos de Soacutecrates desejam como prova da

imortalidade da alma O tema da imortalidade deve ser tratado num sentido platocircnico

ldquoinovadorrdquo sem a dependecircncia ou vinculaccedilatildeo com a ideia de transmigraccedilatildeo No

decorrer do diaacutelogo os interlocutores apelam para a necessidade de que se fique claro

que natildeo eacute provando que as almas transmigram que podemos provar que as almas satildeo

imortais Transmigraccedilatildeo pode ocorrer por um periacuteodo de tempo e ao final a alma poderaacute

ser destruiacuteda Eacute necessaacuteria uma radical ruptura desta ideia para que se prove que a alma

eacute imortal nos termos de uma nova compreensatildeo filosoacutefica que natildeo depende do

componente religioso de cunho oacuterfico e pitagoacuterico Ao final dos dois primeiros

argumentos o problema continua o mesmo a alma existe antes e depois da morte mas

ateacute quando

Em suma argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia estatildeo vinculados

especialmente pelo antigo relato Esta observaccedilatildeo nos ajuda a entender por que esses

dois argumentos estatildeo interligados no Feacutedon

(i) a uacutenica ocasiatildeo em que temos uma transiccedilatildeo imediata para o argumento

seguinte

(ii) os uacutenicos argumentos em que Soacutecrates nunca emprega a palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος)

(iii) os uacutenicos que Soacutecrates trata como se fossem uma unidade cada um

prova uma metade ndash o ciacuteclico que a alma existe depois da morte o da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento (77c)

101

(iv) os uacutenicos argumentos que Soacutecrates diz que devem ser combinados

(συντίθημι) (77c)

(v) os uacutenicos argumentos especialmente conectados pela doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma (o relato antigo eacute um componente religioso da

doutrina da reminiscecircncia)

102

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)

51 Introduccedilatildeo

A literatura secundaacuteria costuma tratar o argumento das afinidades como sendo o

menos atrativo o mais fraco e o mais negligenciado pelos comentadores 104

O argumento das afinidades em si eacute apresentado em 78b-80b e eacute seguido por

uma discussatildeo de cunho miacutetico e especulativo em 80c-84b a qual Platatildeo utiliza para

defender o modo filosoacutefico de viver O argumento eacute bastante diferente dos demais ele

se constitui basicamente de duas analogias uma que estabelece a relaccedilatildeo entre almas e

Formas e outra entre almas e deuses com base nas quais se defende que a alma seria

mais como as Formas e como os deuses concluindo-se entatildeo que ela seria indissoluacutevel

imune agrave desintegraccedilatildeo por ocasiatildeo da morte ou algo proacuteximo disso

52 Contexto

Ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias acreditam que Soacutecrates

conseguira provar apenas que a alma continuaria a existir antes do nascimento mas

restaria ainda a necessidade de provar se a alma haveraacute de existir depois da morte

Siacutemias esclarece que a objeccedilatildeo levantada por Cebes no ponto de transiccedilatildeo entre a

primeira e a segunda parte do diaacutelogo ainda permanece sem soluccedilatildeo a crenccedila popular

de que na ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua

104 Cf Apolloni 1996 p5 Elton 1997 p313

103

existecircncia Ao final do argumento da reminiscecircncia os amigos de Soacutecrates parecem

convencidos de que Soacutecrates natildeo havia provado que a alma continua a existir depois da

morte

Platatildeo parece ter um interesse especial em enfatizar ao longo do diaacutelogo que os

amigos de Soacutecrates natildeo possuem nenhuma reserva em relaccedilatildeo ao argumento da

reminiscecircncia desde que ele natildeo seja utilizado para provar que a alma continua a existir

depois da morte

(i) Ao final do argumento da reminiscecircncia Siacutemias manifesta absoluta

confianccedila na conclusatildeo de que as almas existem antes do nascimento e

que Formas existem e diz que seu amigo Cebes natildeo rejeita o argumento

soacute natildeo concorda assim como ele mesmo que o argumento possa provar

que a alma continua a existir quando se separa do corpo (77a-b)

(ii) Depois do argumento das afinidades quando os amigos de Soacutecrates

apresentam suas famosas objeccedilotildees Cebes afirma que manteacutem a mesma

posiccedilatildeo de outrora ele acredita que estaacute completamente demonstrado que

a alma existia antes de nascer (conclusatildeo do argumento da

reminiscecircncia) mas natildeo estaacute convencido de que ela continua a existir

depois da morte (76e-77a)

(iii) Quando Soacutecrates refuta o argumento de Siacutemias (alma eacute harmonia) o

filoacutesofo pergunta se os amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns

dos argumentos apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam

apenas alguns e rejeitam outros Soacutecrates pergunta abertamente se eles

aceitam o argumento da reminiscecircncia e sua conclusatildeo de que as almas

104

existem em algum lugar antes de alojar-se num corpo e ambos

respondem positivamente Cebes diz que na ocasiatildeo em que Soacutecrates

apresentara o argumento ele estava completamente convencido e que

agora ele aceita o argumento mais do que qualquer outro Siacutemias por sua

vez concorda com o amigo e afirma que se surpreenderia se um dia

tivesse de mudar de opiniatildeo acerca desse argumento (91e-92a)

(iv) Pouco depois Soacutecrates convence Siacutemias de que o argumento de que a

alma eacute harmonia conflita com o argumento da reminiscecircncia (aprender eacute

recordar) jaacute que o argumento da reminiscecircncia requer que a alma tenha

existido antes de alojar-se no corpo enquanto a harmonia de uma lira natildeo

pode existir antes de uma lira ser construiacuteda Sendo assim Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos Sem titubear ele abandona o proacuteprio

argumento (alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e fica com o argumento da reminiscecircncia o

qual deriva de uma hipoacutetese digna de aceitaccedilatildeo e para que natildeo reste

nenhuma duacutevida ele ratifica que eacute certo que a alma existe antes de entrar

num corpo assim como existe a lsquoFormarsquo aquilo que eacute (92c-92d)

(v) Posteriormente Soacutecrates afirma que Cebes busca uma prova de que a

alma eacute imortal e indestrutiacutevel mas que segundo Cebes provar que a

alma eacute robusta divina e que jaacute existia antes do nascimento natildeo implica

que ela eacute imortal (ἀθάνατος) (95c)

105

Pelo menos ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias seratildeo

consistentes no seu posicionamento de que o argumento da reminiscecircncia demonstra a

existecircncia da alma antes do nascimento mas de modo algum a sua imortalidade (77b-c)

Jaacute que os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento da reminiscecircncia como prova

da existecircncia da alma depois da morte Soacutecrates apresenta uma soluccedilatildeo bem

controversa a combinaccedilatildeo dos dois argumentos num soacute Mas a conclusatildeo do argumento

da reminiscecircncia ndash a preexistecircncia da alma ndash jaacute estaacute presente na conclusatildeo do argumento

ciacuteclico os vivos procedem dos mortos e as almas dos mortos continuam a existir (72d8-

10) Se o argumento ciacuteclico fosse aceito ele por si soacute provaria as duas metades a que

Soacutecrates se refere a preexistecircncia da alma e a existecircncia da alma depois da morte Mas

se os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento ciacuteclico como eacute o que tudo indica a

combinaccedilatildeo dos argumentos natildeo resolve o problema colocado por Siacutemias e Cebes Eles

acreditam que o argumento da reminiscecircncia prova a preexistecircncia da alma mas por

outro lado natildeo se comprometem com o argumento ciacuteclico Soacutecrates parece entender a

posiccedilatildeo dos seus interlocutores porque nem mesmo espera que eles avaliem a sua nova

proposta (combinaccedilatildeo dos argumentos) como se jaacute soubesse que seria rejeitada pelos

amigos mas logo assume que seus amigos requerem um argumento ainda melhor (77c-

d)

Soacutecrates imediatamente desqualifica a motivaccedilatildeo dos amigos para continuar a

discussatildeo ele despreza a possibilidade de que os amigos tenham simplesmente rejeitado

a sua proposta de que os argumentos juntos provariam a imortalidade da alma e logo

assume que a necessidade de fundamentar melhor a questatildeo decorre meramente de um

temor pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo

especialmente se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) O argumento das

106

afinidades eacute introduzido por Platatildeo no Feacutedon para responder ao temor de Cebes de que

mesmo que a alma possa existir antes de nascermos (como demonstra o argumento da

reminiscecircncia) ela ainda poderia ser destruiacuteda quando morrermos retomando a a

questatildeo essencial que Cebes apresenta em 70 a

Em resposta agrave afirmaccedilatildeo do mestre Cebes ri e pede que Soacutecrates os liberte do

temor o qual por sua vez afirma que para isso seriam necessaacuterios encantamentos

diaacuterios (77e) A ocasiatildeo se torna notadamente laudatoacuteria Cebes exalta Soacutecrates como o

uacutenico capaz de livraacute-los do temor da morte ao mesmo tempo em que lamenta a sua

partida iminente Soacutecrates por sua vez louva a grandeza da Greacutecia e de seus cidadatildeos

onde eles encontrariam ldquoencantadoresrdquo capazes e aptos a substituiacute-lo depois de sua

partida especialmente se buscassem no proacuteprio ciacuterculo socraacutetico (78a) Numa grande

Greacutecia e entre muitos cidadatildeos Soacutecrates e seus disciacutepulos satildeo aqueles capazes de

realizar os encantamentos necessaacuterios para expurgar temores infundados numa clara

indicaccedilatildeo de que ainda que morra seu legado continuaraacute por meio dos seus amigos que

estatildeo ali presentes aguardando a ocasiatildeo fatiacutedica Mas Cebes tem pressa e natildeo responde

ao elogio do mestre Em vez disso impele-o a continuar e retomar a discussatildeo na acircnsia

de que Soacutecrates antes de partir apresente o argumento suficiente que acabara de

prometer (78b)

Portanto neste ponto do diaacutelogo tudo leva a crer que os amigos de Soacutecrates

acreditam que argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia ndash juntos ou separados ndash

natildeo demonstram a imortalidade da alma e que eles ainda esperam uma prova

satisfatoacuteria de Soacutecrates O filoacutesofo prontamente inicia um novo argumento o qual se

convencionou chamar de argumento das afinidades

107

53 O argumento propriamente dito

O argumento das afinidades trata diretamente do problema levantado por Cebes

em 70a ndash a possibilidade de a alma se dispersar O argumento ciacuteclico lida com o antigo

relato miacutetico da transmigraccedilatildeo das almas enquanto o segundo argumento eacute introduzido

no diaacutelogo por uma lembranccedila e sugestatildeo de Cebes de que a doutrina da reminiscecircncia

tambeacutem serviria para provar a imortalidade da alma mas agora Soacutecrates se dispotildee a

examinar se a alma eacute um tipo de coisa suscetiacutevel a dispersatildeo (mortal) ou natildeo (imortal)

Portanto o argumento tem o meacuterito de reorientar a discussatildeo para o problema crucial do

diaacutelogo ndash a imortalidade da alma ndash o qual requer uma prova satisfatoacuteria de que a alma

seria imune agrave dispersatildeo e assim imortal

Soacutecrates comeccedila apresentando o que seria um programa resumido do argumento

em 78b4-9

(i) Primeiro Soacutecrates apresenta uma questatildeo essencial que pode ser

dividida em duas partes (i) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que sofre

dispersatildeordquo (ii) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo sofre

dispersatildeordquo Essa questatildeo seraacute respondida inicialmente em 78c1-4

Posteriormente ele estende a sua explanaccedilatildeo em 78c5-79a11

(ii) Segundo Soacutecrates pergunta ldquoa qual desses dois tipos de coisas pertence a

almardquo Essa questatildeo receberaacute tratamento em 78b1-80ab

(iii) Por fim a conclusatildeo diraacute se a alma pertence a uma classe de coisas

suscetiacuteveis a dispersatildeo ou natildeo com base na qual os amigos de Soacutecrates

108

confiaratildeo ou temeratildeo por suas almas Essa conclusatildeo aparece em 80a10-

81a3

Vejamos entatildeo roteiro geral de como o argumento se desenvolve seguido de uma

comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

5 Existem duas ldquoclasses de seres uma visiacutevel e que nunca permanece no

mesmo estado uma invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado (79a6-

11)

6 A alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

109

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

110

A pergunta apresentada no programa inicial de Soacutecrates eacute respondida em 78c1-4

(i) a que tipo de coisa pertence aquilo que pode sofrer dispersatildeo

Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto agravequilo que eacute composto por natureza

sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto juntordquo (78c1-3)

(b) a que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo pode sofrer dispersatildeo

ldquoPor outro lado se haacute algo simples natildeo pertence somente a isso mais do que a

qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a sofrer decomposiccedilatildeordquo (78c 3-4)

Soacutecrates simplestemente assume que haacute coisas que sofrem dispersatildeo e coisas que

natildeo sofrem coisas que deixam de existir e outras natildeo natildeo havendo necessidade de

exposiccedilatildeo a esse respeito Cebes tambeacutem concorda que devem considerar esses dois

tipos de coisa O problema que se haacute de enfrentar natildeo eacute se haacute coisas que sofrem

dispersatildeo ou natildeo mas se a alma eacute suscetiacutevel agrave dispersatildeo Ao trazer essa questatildeo da

dispersatildeo ou natildeo das coisas no argumento das afinidades Soacutecrates estaacute lidando

diretamente com a alegaccedilatildeo de Cebes de que muitos temem que a alma se dispersa e se

esvai como fumo na ocasiatildeo da morte Portanto o argumento traz uma expectativa de

que Soacutecrates possa mostrar que alma natildeo estaacute entre o tipo de coisas que se dispersa

quando finalmente se teria um argumento suficiente

Com base na suscetibilidade ou natildeo agrave dispersatildeo a sua preocupaccedilatildeo agora eacute

estabelecer a existecircncia de duas classes de coisas (i) coisas compostas as quais satildeo

suscetiacuteveis a dispersatildeo (ii) coisas simples as quais satildeo imunes a dispersatildeo

111

As coisas compostas podem ser de dois tipos (i) aquelas que naturalmente tecircm

partes ndash compostas por natureza (ii) e aquelas cujas partes satildeo postas juntas num

proceso diferente daquele que as coisas naturalmente compostas experimentam (78c1)

A essas coisas compostas ldquopertencerdquo (προσήκω) o sofrer dispersatildeo (διαιρέω)

(78c2) Nesse contexto dispersatildeo eacute a decomposiccedilatildeo desagregamento ou divisatildeo dos

elementos que compotildeem algo composto Soacutecrates explica que assim como eacute possiacutevel a

composiccedilatildeo de elementos para a formaccedilatildeo de algo composto o processo contraacuterio ndash a

decomposiccedilatildeo ndash eacute plenamente possiacutevel a qual implica em destruiccedilatildeo do objeto (78c2-

3) Sendo assim sugere-se que um item composto pode sofrer destruiccedilatildeo enquanto um

item simples seria imune agrave destruiccedilatildeo

Assim o argumento sugere uma relaccedilatildeo entre composiccedilatildeo e destrutibilidade

simplicidade e indestrutibilidade Mas essa relaccedilatildeo encontra dificuldades se o escopo do

diaacutelogo contempla objetos materiais e imateriais seria razoaacutevel pensar que objetos

materiais compostos seriam suscetiacuteveis agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando sofre a

decomposiccedilatildeo das suas partes mas a ideia de que uma entidade imaterial e composta

poderia ser destruiacuteda ao sofrer decomposiccedilatildeo eacute bem diferente Tambeacutem seria difiacutecil

entender como o argumento ajudaria a provar que uma entidade imaterial e simples

seria imune agrave destruiccedilatildeo

Embora o termo ldquopertencerdquo (προσήκω) seja vago eacute plausiacutevel que Soacutecrates natildeo

esteja propondo que as coisas compostas devem necessariamente sofrer dispersatildeo mas

simplesmente que elas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo Portanto o que fica estabelecido eacute

que coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo enquanto coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo o que acaba criando uma expectativa inevitaacutevel de que a alma seria em breve

tida como algo simples e imune agrave dispersatildeo Mas a ideia eacute construir um argumento

112

analoacutegico baseado na lsquosemelhanccedilarsquo entre a alma e as lsquoFormasrsquo Sendo assim eacute

necessaacuterio apresentar paulatinamente os atributos da lsquoFormarsquo e estabelecer a afinidade

entre almas e lsquoFormasrsquo No proacuteximo passo Soacutecrates afirma que as coisas lsquosimplesrsquo satildeo

as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo e logo depois identifica essas

coisas como sendo as lsquoFormasrsquo enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees

diferentes e nunca se encontram no mesmo estado satildeo as lsquocompostasrsquo os lsquoobjetos

particularesrsquo (Cf 78c-d)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

No proacuteximo passo em 78c6-8 Soacutecrates faz a seguinte associaccedilatildeo

(i) coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes (τὰ δὲ ἄλλοτ᾽ ἄλλως) e

nunca se encontram no mesmo estado (μηδέποτε κατὰ ταὐτά) coisas compostas

(ii) coisas que estatildeo sempre no mesmo estado (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) e condiccedilatildeo

(ὡσαύτως ἔχει) coisas simples

O argumento se baseia numa associaccedilatildeo bastante plausiacutevel (μάλιστα εἰκός)

(78c7) O contexto imediato sugere que a associaccedilatildeo eacute razoaacutevel porque as coisas

compostas sofrem dispersatildeo que eacute um tipo de variaccedilatildeo um tipo de mudanccedila no estado

e condiccedilatildeo do objeto Sendo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo dos seus componentes as coisas

113

compostas estatildeo fadadas agrave mutaccedilatildeo e inconstacircncia As coisas simples por sua vez satildeo

imunes agrave dispersatildeo sendo plausiacutevel associaacute-las com aquilo que eacute constante e natildeo varia

Dando um novo passo na construccedilatildeo dessa cadeia de associaccedilotildees Soacutecrates

busca um grupo de coisas que pode ser identificado como lsquocoisas que estatildeo sempre no

mesmo estadorsquo O filoacutesofo entatildeo faz um convite aberto para retomar as coisas que

discutiam no argumento anterior lsquoas coisas em sirsquo (lsquoFormasrsquo) lsquoFormasrsquo satildeo o que

Soacutecrates identificaraacute como o tipo de coisa que natildeo sofre alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

(78c10-78d1) e aquilo que serviraacute de base para a construccedilatildeo da analogia central do

argumento Com a introduccedilatildeo das lsquoFormasrsquo na discussatildeo os termos lsquocompostorsquo

(σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) satildeo completamente abandonados

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

Agora Soacutecrates pede para voltar agravequelas coisas sobre as quais jaacute haviam

conversado no argumento anterior a essecircncia (ἡ οὐσία) cujo ser ou existecircncia (τοῦ

εἶναι) se apresenta por meio de um loacutegos que consiste de perguntas e respostas (78c10-

78d2) Segundo Gallop lsquodar um loacutegosrsquo nesse contexto pode significar tanto lsquodar uma

definiccedilatildeorsquo como lsquoapresentar uma provarsquo podendo significar tanto lsquodefinir a natureza

essencial das lsquoFormasrsquo como lsquoprovar que elas existemrsquo105 Neste contexto Soacutecrates

retoma esse grupo de coisas apresentados antes como ldquoo igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em si aquilo que eacuterdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d3-4) que desde o contexto do argumento das

105 Gallop 2002 p139

114

reminiscecircncias estamos chamando de lsquoFormasrsquo apenas de uma terminologia teacutecnica

ainda natildeo aparecer nesta fase do diaacutelogo

Expressotildees como ἡ οὐσία τὸ ὄν αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ τὸ ἴσον e αὐτὸ ὃ ἔστιν

natildeo satildeo novas no diaacutelogo mas ganham um significado especial no contexto do

argumento das afinidades No argumento da reminiscecircncia a expressatildeo αὐτὸ ὃ ἔστιν ou

apenas ὃ ἔστιν (a qual aparece agora em αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) jaacute se destaca como

foacutermula usual para designar de modo geral o objeto da discussatildeo (Cf74b2 74d6

75b1) o que reflete uma tentativa de fixar uma foacutermula ndash ὃ ἔστιν (o que eacute) ndash para

designar objetos que ele costuma apresentar pelo uso de exemplos como τὸ καλόν e τὸ

ἴσον Os termos εἶδος e ἰδέα conhecidos como termos teacutecnicos para designar lsquoFormasrsquo

ainda natildeo foram introduzidos no diaacutelogo exceto quando εἶδος eacute empregado em sua

acepccedilatildeo comum como em 73d9 a imagem do amado (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς)

Nesta etapa do argumento das afinidades Soacutecrates identifica lsquoaquilo que eacutersquo as

lsquoFormasrsquo como sendo coisas cujo estado natildeo muda ou altera e esta passagem visa

estabelecer justamente isso em 78d10-d9 depois de estabelecer que nenhum elemento

da classe em questatildeo deve ser posto de fora do exame ndash eacute necessaacuterio considerar lsquocada

um deles que eacutersquo (αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι) cada membro da classe em questatildeo ndash ele

estabelece que cada membro dessa classe eacute o tipo de coisa que

(i) cada coisa que eacute sendo uniforme e sozinha por si soacute permanece sempre na

mesma condiccedilatildeo e estado

(ii) em hipoacutetese alguma cada coisa que eacute se sujeitaria a qualquer tipo de

mudanccedila

115

Duas expressotildees merecem particular atenccedilatildeo lsquouniformersquo (μονοειδής) e lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) A primeira ndash lsquouniformersquo ndash pode ser entendida como algo

que possui apenas um componente ou parte ou simplesmente como algo de uma soacute

aparecircncia Se a primeira ideia prevalece o termo μονοειδής pode ser entendido como

sinocircnimo para o termo lsquosimplesrsquo o qual natildeo aparece novamente no decorrer do

argumento Mas essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute completamente segura ou definitiva

Platatildeo certamente tem uma razatildeo especial para incorporar a expressatildeo lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) neste ponto da discussatildeo dada a sua frequecircncia no diaacutelogo e

o contexto imediato Temos no diaacutelogo dois empregos frequentes da expressatildeo uma em

referecircncia agraves lsquoFormasrsquo outra em referecircncia agraves almas

(i) lsquoa Forma sozinha por si mesmorsquo a expressatildeo jaacute havia sido empregada em

relaccedilatildeo a essas coisas que Soacutecrates chama de lsquoaquilo que eacutersquo na primeira etapa do

diaacutelogo quando o filoacutesofo fala da necessidade de utilizar o pensamento sozinho

por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) para

perseguir cada coisa em si a qual eacute sozinha por si mesma (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ) e

sem mistura (66a1-3)

(ii) a alma sozinha sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν ἡ ψυχὴ) a expressatildeo

eacute empregada com frequecircncia para a alma na ocasiatildeo em que se afasta do corpo e

pode finalmente sozinha por si mesma alcanccedilar lsquoaquilo que eacutersquo a verdade ou o

conhecimento puro 64c7-8 65d1 66e6-67a1 Em 70a7 depois de Cebes

apresentar a crenccedila popular na dispersatildeo da alma como fumo a questatildeo crucial eacute

saber se a alma realmente existiria em algum lugar sozinha por si mesma (αὐτὴ

καθ᾽ αὑτὴν) quando viesse a separar-se do corpo e de suas mazelas

116

(iv) Portanto quando Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute uniforme e lsquosozinha por si

mesmarsquo neste ponto do argumento das afinidades ele traz de volta toda a

discussatildeo anterior e prepara a introduccedilatildeo da analogia entre lsquoalmarsquo e

lsquoFormarsquo Posteriormente em 79dc-d Soacutecrates diz abertamente que jaacute

haviam discutido sobre a necessidade de a alma se separar do corpo e

sozinha por si mesma alcanccedilar aquilo que eacute puro Depois de apresentado

o argumento das afinidades em si em 83a-b Soacutecrates volta a lembrar que

a filosofia tem o papel de persuadir a alma a distanciar-se do corpo e dos

sentidos e sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) refletir naquilo que

eacute sozinho por si mesmo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ)

No proacuteximo passo em 78d10-e6 o desafio eacute identificar o tipo de coisa que

nunca eacute constante e entatildeo estabelecer o contraste entre as coisas que satildeo sempre

constantes (lsquoFormasrsquo) e as coisas que natildeo satildeo (objetos particulares)

Soacutecrates entatildeo introduz uma multiplicidade de objetos particulares (i) as muitas

coisas belas ndash pessoas belas cavalos belos roupas belas e tudo mais desse tipo (ii) as

coisas iguais (iii) as coisas que compartilham o mesmo nome das coisas mencionadas

antes Esses objetos particulares ao contraacuterio daqueles ldquonunca e de modo algum

permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre sirdquo Desse modo em

contraste com aslsquoFormasrsquo os particulares apresentam dois tipos de variaccedilatildeo eles

variam em relaccedilatildeo a si mesmos ndash num dado momento um cavalo belo pode se tornar

menos belo do que era antes e variam entre si ndash num dado momento um cavalo belo

pode se tornar menos belo do que outros cavalos belos O ponto que se estabelece eacute a

mutabilidade dos objetos particulares os quais estatildeo sujeitos a serem caracterizados por

117

atributos diferentes em ocasiotildees diferentes Aleacutem disso eacute razoaacutevel considerar que os

objetos particulares variam porque satildeo passiacuteveis agrave dispersatildeo eles passam a existir pela

composiccedilatildeo de suas partes e chegam ao fim com a desintegraccedilatildeo das suas partes Fica

entatildeo estabelecido o contraste entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares lsquoFormasrsquo

permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos particulares estatildeo

sempre mudando O terreno foi preparado para a apresentaccedilatildeo da semelhanccedila entre

almas e lsquoFormasrsquo

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

Soacutecrates manteacutem a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares agora

apresentando mais um elemento de contraste entre ambos as coisas particulares satildeo

percebidas pelos sentidos as coisas que permanecem no mesmo estado satildeo apreendidas

somente pelo raciociacutenio do pensamento (τῆς διανοίας λογισμῷ) Mais uma vez fica

claro que o argumento das afinidades retoma a discussatildeo apresentada na primeira etapa

do Feacutedon especialmente em 65b-e Soacutecrates jaacute havia estabelecido que a alma deve

raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) atraveacutes do pensamento

sozinho (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) e sem a interaccedilatildeo dos sentidos para que possa alcanccedilar as

coisas em si mesmas (Cf 65c2-9 65e7 66a1-2)

Soacutecrates esclarece entatildeo que coisas invisiacuteveis ndashlsquoFormasrsquondash soacute podem ser

apreendidas pelo pensamento da razatildeo e sugere que apenas coisas visiacuteveis ndash objetos

particulares ndash satildeo percebidos pelos sentidos Agora a ecircnfase recai sobre a invisibilidade

das lsquoFormasrsquo e natildeo sobre a vilania do corpo e seus sentidos

118

5 Existem duas ldquoclasses de seresrdquo (εἴδη τῶν ὄντων) uma visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e

que nunca permanece no mesmo estado uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que sempre

permanece no mesmo estado (79a6-11)

A distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo invisiacuteveis e particulares visiacuteveis serve de base para

que Soacutecrates estabeleccedila a existecircncia de duas classes de coisas ndash as invisiacuteveis e as

visiacuteveis ndash e relacione essa informaccedilatildeo com aquilo que havia apresentado antes que

lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos

particulares estatildeo sempre mudando Assim em 79a6-11 ele estabelece que existem duas

ldquoclasses de seresrdquo sendo uma delas visiacutevel e que nunca permanece no mesmo estado e

a outra invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado O proacuteximo passo eacute

introduzir dois elementos no argumento das afinidades ndash corpo e alma ndash e identificar

com base na semelhanccedila e afinidade a classe a qual cada um deles possa pertencer

6 A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

Pela primeira vez os termos lsquocorporsquo e lsquoalmarsquo satildeo introduzidos no argumento das

afinidades O ponto de partida de Soacutecrates eacute a ideia da composiccedilatildeo baacutesica do ser

humano em corpo e alma o que natildeo enfrenta qualquer objeccedilatildeo no diaacutelogo (79b1-3)

Essa concepccedilatildeo de que somos parte corpo e parte alma serve de base para praticamente

toda a discussatildeo que segue Jaacute fora estabelecido que haacute duas ldquoclasses de seresrdquo ndash uma

visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que objetos particulares satildeo membros

119

da classe de coisas visiacuteveis que satildeo passiacuteveis de mudanccedila e que no contexto geral do

argumento mudanccedila inclui dispersatildeo e destruiccedilatildeo

Jaacute fora estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo membros da classe de coisas invisiacuteveis e

que permanecem sempre no mesmo estado ndash natildeo satildeo passiacuteveis a mudanccedila e assim natildeo

podem sofrer dispersatildeo e destruiccedilatildeo Se assim como as lsquoFormasrsquo a alma fosse um

membro da classe de coisas invisiacuteveis e nunca sofresse alteraccedilatildeo ficaria demonstrado

que ela natildeo sofreria dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando deixa o corpo natildeo havendo razatildeo

para temer Embora o argumento gere a expectativa de que Soacutecrates simplesmente

coloque almas na classe de coisas invisiacuteveis e corpo na classe de coisas visiacuteveis ele

introduz a ideia de semelhanccedila e afinidade

(i) o tipo de coisa visiacutevel eacute mais semelhante e tem mais afinidade (ὁμοιότερον

καὶ συγγενέστερον) com o corpo (79b4-5)

(ii) a alma seria invisiacutevel pelo menos para as pessoas (79b6-7)

(iii) a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo

enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a almardquo (79b16-17)

Portanto a conclusatildeo considera as duas partes constitutivas do indiviacuteduo natildeo se

diz simplesmente que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel e que o corpo eacute mais

semelhante ao visiacutevel mas que a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do

que o corpo enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma Isto levanta

o problema do grau de semelhanccedila entre alma e invisiacutevel O que temos aqui natildeo eacute uma

declaraccedilatildeo de que a alma eacute ao maacuteximo semelhante ao invisiacutevel mas apenas que a alma

eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo Isso pode ser um ponto de fraqueza do

120

argumento se considerarmos que corpo e o invisiacutevel satildeo extremamente dissemelhantes

admitir que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo pode continuar sendo

uma fraca declaraccedilatildeo da semelhanccedila entre alma e o invisiacutevel A alma poderia ter pouca

semelhanccedila com o invisiacutevel embora continuasse sendo mais semelhante ao invisiacutevel do

que o corpo

Aleacutem disso a invisibilidade da alma natildeo garante a sua imutabilidade Platatildeo jaacute

havia estabelecido a existecircncia de uma classe de seres visiacuteveis e que nunca permanecem

no mesmo estado e uma classe de seres invisiacuteveis e que sempre permanecem no mesmo

estado (79a6-11) Mas agora ainda que se consiga estabelecer que ldquoa alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo ou que a alma eacute invisiacutevel e o

corpo natildeo a invisibilidade da alma natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade

As lsquoFormasrsquo satildeo membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e

natildeo as almas

Eis algumas outras fraquezas do argumento

(i) A ideia de semelhanccedila eacute essencial no argumento mas em momento algum

Platatildeo apresenta uma clara definiccedilatildeo de lsquosemelhanccedilarsquo ou lsquoafinidadersquo o que faz

com que o argumento se estabeleccedila sobre uma vaga noccedilatildeo de semelhanccedila

(ii) Talvez a ideia baacutesica de lsquosemelhanccedilarsquo seja a de lsquoter caracteriacutesticas em

comumrsquo Neste caso a caracteriacutestica comum que alma e o tipo de coisa invisiacutevel

(lsquoFormasrsquo) possuem eacute a invisibilidade e a caracteriacutestica comum que o corpo e o

tipo de coisa visiacutevel (objetos particulares) compartilham eacute a visibilidade

Contudo ainda que alma e o tipo de coisa invisiacutevel possuam essa caracteriacutestica

em comum a qual estaacute ausente no corpo isto natildeo eacute suficiente para concluir que

121

a alma eacute mais semelhante ao tipo de coisa invisiacutevel (lsquoFormasrsquo) do que o corpo

eacute106 Ainda que se possa dizer que a alma eacute invisiacutevel assim como a lsquoFormarsquo eacute

invisiacutevel natildeo eacute possiacutevel dizer que a alma permanece sempre na mesma

condiccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo permanece na mesma condiccedilatildeo Aina que a

alma seja invisiacutevel isto natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade ela

continua passiacutevel a mudanccedila que no contexto do argumento inclui destruiccedilatildeo

Os amigos ainda podem temer que a alma se desintegre quando deixa o corpo

(iii) Outro problema para o estabelecimento de uma analogia eficiente eacute o

desbalanccedilo na relaccedilatildeo entre corpo e os membros da classe de coisas visiacuteveis e

alma e os membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis Eacute evidente que

o corpo eacute um objeto particular razatildeo pela qual em 81d10 pessoas belas

aparecem na lista de coisas particulares ao lado de cavalos belos e roupas belas

Portanto ele natildeo apenas possui maacutexima semelhanccedila com objetos particulares

visiacuteveis e mutaacuteveis mas que ele eacute um objeto particular visiacutevel e mutaacutevel No

caso da alma pode-se dizer que ela eacute mais semelhante agrave classe de coisas

invisiacuteveis do que o corpo eacute mas natildeo eacute possiacutevel dizer que ela eacute uma lsquoFormarsquo

invisiacutevel e imutaacutevel

(iv) A hesitaccedilatildeo de Cebes em aceitar que a alma eacute invisiacutevel pode gerar

dificuldades no estabelecimento de uma analogia coerente Ele concorda

plenamente com a ideia de que o corpo possui semelhanccedila com o tipo de coisa

visiacutevel ldquoeacute bem evidente a qualquer pessoardquo assevera Cebes (79b6) Contudo

quando Soacutecrates pergunta se a alma seria visiacutevel ou invisiacutevel Cebes apresenta

uma reserva ldquoPelo menos ao ser humano eacute invisiacutevelrdquo (79b8) Soacutecrates entatildeo

106 Gallop 2002 p140

122

necessita esclarecer que estatildeo considerando coisas que satildeo visiacuteveis ou invisiacuteveis

ao ser humano (79b9-11) Esta hesitaccedilatildeo de Cebes tem gerado diferentes

interpretaccedilotildees Gallop afirma que seria uma maneira de anunciar a possiacutevel

objeccedilatildeo de que a alma natildeo seria invisiacutevel para os deuses107 Rowe dize que

Cebes estaria representando a tradicional perspectiva homeacuterica da morte

segundo a qual as almas satildeo invisiacuteveis apenas para os vivos108 Bostock sugere

uma perspectiva materialista da alma ele diz que embora Platatildeo acredite que a

alma eacute totalmente imaterial ele natildeo esperaria unanimidade a esse respeito e

lembra que agrave eacutepoca de Platatildeo havia concepccedilotildees filosoacuteficas segundo as quais a

alma seria material embora composta de elementos extremamente pequenos

invisiacuteveis pelo menos para os ordinaacuterios olhos humanos Se este for realmente o

caso Cebes hesita em concordar plenamente com a idea assim como o fez em

relaccedilatildeo ao corpo e precisa enfatizar que a alma eacute invisiacutevel pelo menos para os

seres humanos109

Agora Soacutecrates busca ratificar a semelhanccedila entre almas e a classe de coisas

invisiacuteveis Essa etapa de 79c2-79d9 retoma a discussatildeo sobre a aquisiccedilatildeo do

conhecimento das lsquoFormasrsquo a qual aparece na primeira etapa do Feacutedon e agora aparece

no argumento das afinidades Mais uma vez o leitor eacute convidado a considerar a

discussatildeo anterior e que o argumento individual natildeo estaacute isolado do contexto geral da

obra

107 Gallop 2002 p140 108 Rowe 1993 p185 109 Cf Bostok 1989 p118

123

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

Na etapa anterior em 79b Soacutecrates apresenta a sua primeira consideraccedilatildeo sobre

a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis Agora ele apresenta a sua

segunda consideraccedilatildeo sobre a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis

mas num contexto bem mais complexo

Esta complexa passagem retoma a discussatildeo anterior sobre a busca do

conhecimento Na primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates afirma que o corpo (τὸ σῶμα) eacute

obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do conhecimento (φρόνησις) porque os sentidos corporais

natildeo satildeo confiaacuteveis e natildeo garantem nem precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) no

exame (65a9-65b7) O argumento das afinidades retoma toda essa discussatildeo num

contexto mais complexo e com implicaccedilotildees adicionais e a passagem termina justamente

com um esclarecimento de que essa experiecircncia da alma em contato com as lsquoFormasrsquo eacute

o que se pode chamar de conhecimento (φρόνησις) (79d6-7)

Em 79c2-9 Soacutecrates explica que alma que examina por meio do corpo e dos

sentidos eacute arrastada pelo corpo diretamente para objetos particulares Aqui

provavelmente se estabelece a mesma ideia de relaccedilatildeo ou afinidade que Soacutecrates

descreve em seguida quando fala da relaccedilatildeo entre alma e lsquoFormarsquo (Cf 79d3 συγγενὴς)

124

Como o corpo possui uma lsquorelaccedilatildeorsquo com os objetos fiacutesicos a alma deve examinaacute-los

lsquopor meio do corporsquo (διὰ τοῦ σώματος) lsquopor meio dos sentidos corporaisrsquo (δι᾽

αἰσθήσεως) Essa lsquorelaccedilatildeorsquo eacute tatildeo forte que a alma natildeo tem escolha e passivamente eacute

arrastada pelo corpo (ἕλκεται ὑπὸ τοῦ σώματος) para aquilo com que tem afinidade

para as coisas que nunca permanecem no mesmo estado (εἰς τὰ οὐδέποτε κατὰ ταὐτὰ

ἔχοντα) Desse modo a alma perde o controle do processo cognitivo nessa ocasiatildeo em

que o corpo assume a lideranccedila

Pouco antes havia sido estabelecido que objetos particulares satildeo membros da

classe de coisas visiacuteveis (Cf 79a6-11) Assim a forte relaccedilatildeo entre corpo e objetos

particulares decorre da filiaccedilatildeo de ambos na mesma classe de coisas Para examinar os

membros dessa classe de coisas visiacuteveis a alma teraacute de se utilizar do corpo Por outro

lado Soacutecrates ressalta a discrepacircncia entre a alma e os objetos particulares quando

entra em contato com eles a alma anda errante confusa trocircpega porque esta eacute a

natureza dessas coisas com as quais estaacute em contato Soacutecrates havia estabelecido que ldquoa

alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo (79b16-17) e agora

ratifica que as almas natildeo tecircm afinidades com a classe de coisas visiacuteveis Por um lado o

corpo e os sentidos corporais satildeo a via para o exame dos objetos sensiacuteveis por outro eacute

um empecilho para o alcance dos membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis

as lsquoFormasrsquo

Soacutecrates emprega forte linguagem pejorativa para enfatizar a natureza inferior

dos objetos particulares a alma anda erraacutetica confusa trocircpega como se estivesse

embriagada porque estaacute em contato com objetos dessa natureza O corpo jaacute foi

apresentado como um vilatildeo que oblitera o percurso da alma que tenta alcanccedilar as

lsquoFormasrsquo e agora natildeo apenas os sentidos corporais mas tambeacutem os objetos particulares

125

satildeo apresentados como algo vil de natureza inferior O objeto de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo eacute

a lsquoFormarsquo e para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio que a alma se dissocie do corpo e se dirija aos

objetos congecircneres

Em busca de estabelecer a familiaridade entre a alma e as lsquoFormasrsquo Platatildeo

apresenta a discrepacircncia entre alma e objetos particulares quando a alma examina

atraveacutes do corpo ela eacute arrastada para objetos particulares e fica em estado de

perturbaccedilatildeo Isso acontece porque a alma entra em contato com aquilo com que natildeo

possui lsquoafinidadersquo ela eacute arrastada pelo corpo para aquilo que tem lsquoafinidadersquo com ele

mesmo natildeo com a alma (79c2-9) Em 79d1-9 Soacutecrates explica o que acontece quando

a alma examina lsquosozinha por si mesmarsquo (αὐτὴ καθ᾽ αὑτήν) sem a mediaccedilatildeo do corpo e

de seus sentidos ela se encaminha para aquilo com que tem relaccedilatildeo familiaridade ou

afinidade (συγγενής) ndash o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo

Enquanto a alma que examina por meio do corpo eacute arrastada por ele para objetos

particulares a alma que examina sem interaccedilatildeo com o corpo (sozinha por si mesma)

encaminha a si mesma (οἴχεται) para os objetos com os quais tem lsquoafinidadersquo

recuperando o papel ativo que lhe eacute natural no processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento

Ela entatildeo alcanccedila as lsquoFormasrsquo e fica em harmonia com elas porque alma e lsquoFormasrsquo satildeo

afins e essa dita lsquoafinidadersquo possibilita que a alma conheccedila seu afim e se relacione

harmonicamente com ele Com base na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e

no livre acesso e harmonia entre a alma sozinha e a lsquolsquoFormarsquoque repousa a conclusatildeo de

que ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que ao que natildeo estaacuterdquo (79d10-e6)

A ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre alma e lsquoFormasrsquo eacute

expressamente estabelecida pelo termo συγγενής (79d3 Cf 79e1-2 84b2) Jaacute na

126

primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates apresenta uma vaga ideia de que o que eacute lsquopurorsquo pode

conhecer o que eacute puro e o que eacute impuro natildeo pode conhecer o que eacute puro A alma pura

(sozinha por si mesma dissociada do corpo e dos sentidos corporais) pode conhecer

aquilo que eacute puro (sem mistura) mas quando impura (em comunhatildeo com o corpo) natildeo

pode ter acesso agravequilo eacute puro ndash as lsquoFormasrsquo (Cf 67a-b) Conforme essa ideia a alma

por si soacute sem mistura tem direto acesso aos objetos de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo Por outro

lado quando estaacute impura o corpo lhe oblitera o acesso agraves lsquoFormasrsquo Ao que parece essa

ideia eacute retomada e desenvolvida no argumento das afinidades sendo alma e lsquoFormasrsquo

entidades congecircneres a alma tem livre acesso cognitivo a elas

Mas a ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo ou lsquoafinidadersquo eacute tambeacutem vaga e obscura

no contexto do argumento das afinidades Existe uma forte evidecircncia textual de que os

termos lsquorelaccedilatildeorsquo e lsquosemelhanccedilarsquo satildeo utilizados como sinocircnimos no argumento Em

79b4-5 Soacutecrates pergunta ldquoqual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e

ter mais afinidade (ὁμοιότερον καὶ συγγενέστερον) com o corpordquo Pouco depois

apenas a expressatildeo ὁμοιότερον eacute empregada na resposta (no lugar de ὁμοιότερον καὶ

συγγενέστερον) ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo

(79b16-17) Esse padratildeo se repete pouco depois com a pergunta formulada com os dois

termos ndash ldquo() com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e

afinidade (ψυχὴ ὁμοιότερον εἶναι καὶ συγγενέστερον)rdquo (79e1-2) ndash e a resposta apenas

com um termo ndash ldquo() a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (ὁμοιότερόν ἐστι ψυχὴ τῷ ἀεὶ ὡσαύτως ἔχοντι μᾶλλον ἢ

τῷ μή) (79e5-6) Gallop afirma que Platatildeo se baseia na ideia empedocleana de que

lsquosemelhante conhece semelhantersquo com base na qual para uma coisa conhecer outra as

127

duas devem possuir algumas caracteriacutesticas ou componentes compartilhados110

Contudo o contexto natildeo deixa claro que Platatildeo realmente emprega essa ideia de

maneira consistente no argumento das afinidades Dizer que ldquoa alma se assemelha mais

ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (79e5-6) natildeo eacute o

mesmo que dizer que alma e lsquoFormasrsquo compartilham a mesma caracteriacutestica a

imutalibilidade Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute pura eterna imutaacutevel mas hesita em dizer

que a alma eacute pura eterna imutaacutevel imortal A linguagem da lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo

no argumento das afinidades eacute sempre uma linguagem que apela mais para algum niacutevel

de aproximaccedilatildeo do que para a ideia de compartilhamento de caracteriacutesticas essenciais

Portanto o que se pode afirmar com base no texto eacute que deve existir um tipo de

profunda relaccedilatildeo de lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo entre almas e lsquoFormasrsquo o que confere agraves

almas acesso cognitivo privilegiado a lsquoFormasrsquo

Eacute tambeacutem importante notar que ao contraacuterio dos objetos particulares as

lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas como uma classe de coisas superiores que exerce impacto

positivo sobre as almas no contato da alma com a lsquoFormarsquo a alma deixa seu andar

erraacutetico e passa a comportar-se como uma lsquoFormarsquo ela permanece no mesmo estado e

condiccedilatildeo relativamente agraves Formas (79d1-9)

Em 79d1-2 temos uma caracterizaccedilatildeo mais completa das lsquocoisas que satildeorsquo

Cada lsquolsquoFormarsquo eacute

110 Cf Gallop 2002 p140 No De Anima 404b16-18 Aristoacuteteles afirma que Platatildeo no Timeu

sustenta que a alma e as coisas que ela conhece seriam compostas pelos mesmos componentes

particulares pois ldquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhanterdquo

128

(i) invisiacutevel (τὸ ἀιδές) embora a lsquoinvisibilidadersquo das lsquolsquoFormasrsquo natildeo apareccedila

nesta lista em 79d1-2 haacute pouco havia ficado estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo

membros da classe de coisas invisiacuteveis (79a6-11)

(ii) pura (τὸ καθαρόν) na primeira etapa do diaacutelogo Platatildeo utiliza a expressatildeo

lsquosem misturarsquo para comunicar a ideia de pureza Nesse contexto apenas

utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν

εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ χρώμενος) eacute possiacutevel perseguir cada uma das coisas que

satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ εἰλικρινὲς ἕκαστον

τῶν ὄντων) (66a1-3) Agora Platatildeo utiliza o termo τὸ καθαρόν para caracterizar

essa qualidade permanente da lsquoFormarsquo certamente enfatizando que a lsquoFormarsquo

estaacute completamente separada da classe de coisas visiacuteveis Eacute interessante

observar que embora na primeira etapa do diaacutelogo a expressatildeo lsquosem misturarsquo

possa ser empregada para lsquoo pensamentorsquo e para lsquoas coisas que satildeorsquo em

momento algum eacute dito que a alma eacute pura (τὸ καθαρόν) Platatildeo estaacute

provavelmente tentando estabelecer uma terminologia proacutepria para lsquoaquilo que

eacutersquo Eacute interessante observar que ele continua utilizando a expressatildeo lsquoa alma

sozinha por si mesmo e sem misturarsquo (ψυχὴν αὐτὴν καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινῆ) com

referecircncia agrave alma que se dissocia do corpo no contexto da etapa especulativa que

segue o argumento em si (81c1-2)

(iii) eterna (ἀεὶ ὂν) a lsquoFormarsquo sempre eacute Essa eacute uma caracteriacutestica esperada

porque o argumento jaacute havia estabelecido que lsquoFormasrsquo estatildeo sempre no mesmo

estado e condiccedilatildeo sendo dispersatildeo e destruiccedilatildeo mudanccedilas no estado e condiccedilatildeo

do ser O problema que motiva o argumento das afinidades eacute justamente o receio

129

de que a alma natildeo seja o tipo de coisa que lsquosempre eacutersquo o temor de que ela exista

apenas por um tempo e em seguida seja destruiacuteda

(iv) imortal (ἀθάνατον) Platatildeo coroa a sua caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo com o

reconhecimento de que elas satildeo imortais o que eacute de suma importacircncia num

diaacutelogo cujo tema eacute a imortalidade da alma O termo ἀθάνατον aparece pela

primeira vez no diaacutelogo na transiccedilatildeo entre o primeiro e o segundo argumento

quando Cebes de modo casual sugere que tambeacutem segundo o ensino da

reminiscecircncia a alma parece ser imortal (73a2-3) Depois disso ἀθάνατον volta

a aparecer novamente apenas no argumento das afinidades Esta passagem

(79d1-2) eacute o primeiro registro de uso da palavra ἀθάνατον por Soacutecrates e ele o

faz para caracterizar a lsquoFormarsquo Mas assim como Soacutecrates nunca diz no

contexto do argumento das afinidades que a alma eacute pura (καθαρόν) ou eterna

(ἀεὶ ὂν) em nenhum momento a personagem afirma que a alma eacute imortal

(ἀθάνατον) O que se conclui no argumento das afinidades eacute que a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότατον εἶναι ψυχή) ao que eacute imortal (Cf 80a1-b3) E esta eacute

pela primeira vez no diaacutelogo em que Soacutecrates se utiliza da palavra lsquoimortalrsquo na

conclusatildeo do argumento Ao que parece a discussatildeo se movimento rumo agravequilo

que finalmente se pretende provar a imortalidade da alma o argumento ciacuteclico

conclui que a alma continua a existir depois morte o argumento das

reminiscecircncias que a alma existe antes do nascimento e o das afinidades que a

alma eacute mais semelhante ao que eacute imortal Posteriormente depois de ouvir as

objeccedilotildees dos amigos a respeito do argumento das afinidades Soacutecrates faz um

resumo de todas as objeccedilotildees e criacuteticas levantadas contra os trecircs argumentos que

ele havia apresentado e reconhece que ningueacutem pode morrer confiante a menos

130

que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι

ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον) (88b5-6) Se natildeo fosse possiacutevel

provar seria plausiacutevel temer que na ocasiatildeo da morte a alma poderia ficar

completamente destruiacuteda (88b6-8) Pela primeira vez no diaacutelogo Soacutecrates

formula uma questatildeo que exige nada menos do que uma conclusatildeo de que a

alma eacute imortal a qual seraacute apresentada no uacuteltimo argumento

(v) algo que permanece na mesma condiccedilatildeo (ὡσαύτως ἔχον) por fim Soacutecrates

retoma a ideia jaacute apresentada em 78c10-d9 onde diz que as lsquoFormasrsquo satildeo coisas

lsquoque estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estadorsquo (ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ)

Sendo algo que permenece sempre na mesma condiccedilatildeo a lsquoFormarsquo eacute tambeacutem

imune a destruiccedilatildeo

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

Agora temos uma mudanccedila na forma da conclusatildeo111

i Em 79b1-b17

ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacuterdquo

ii Em 79d10-e6

ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacuterdquo

111 Gallop 2002 p 140

131

Como jaacute dissemos a conclusatildeo de que as almas devem ter maior semelhanccedila

com as lsquoFormasrsquo (aquilo que eacute puro eterno imortal e permanece na mesma condiccedilatildeo)

do que com os lsquoobjetos particularesrsquo (aquilo que nunca estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

se baseia na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e no acesso livre e relaccedilatildeo

harmocircnica entre a alma sozinha e a lsquoFormarsquo Isto se explica em termos de

lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre a alma que conhece e o objeto que eacute conhecido (a

lsquoFormarsquo)

Esta etapa do argumento e a conclusatildeo a que chega eacute passiacutevel de criacuteticas aleacutem

das que jaacute foram apresentadas

(i) O argumento eacute inconsistente Apresenta-se a alma como ser passiacutevel de

mudanccedila quando em contato com o mundo fiacutesico ndash ldquoanda erraacutetica confusa e

trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a natureza das coisas que

ela estaacute alcanccedilandordquo (79c7-8) ndash ao mesmo tempo em que afirma que a alma

apresenta maacutexima semelhanccedila e afinidade com aquilo que natildeo muda de modo

algum (79d10-e6) Eacute difiacutecil conciliar essa dupla caracterizaccedilatildeo da alma no

argumento razatildeo pela qual Bostock assevera que Platatildeo apresenta a alma com

caraacuteter camaleocircnico porque assume a natureza daquilo com que estaacute em contato

Sendo assim o argumento mostraria que a alma tem maior afinidade com aquilo

que sofre variaccedilatildeo (o corpo por exemplo) do que com aquilo que estaacute sempre na

mesma condiccedilatildeo112

(ii) A linguagem eacute bastante imprecisa Termos-chave como lsquosemelhanccedilarsquo e

lsquoafinidadersquo natildeo satildeo definidos e o contexto natildeo oferece suporte suficiente para

112 Bostock 1989 p 119

132

uma compreensatildeo satisfatoacuteria Eacute possiacutevel que o argumento se baseie no

princiacutepio de que lsquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhantersquo mas o contexto

natildeo fornece uma evidecircncia definitiva de que Platatildeo estaacute recorrendo

especificamente a essa ideia

(iii) O argumento apresenta fraquezas O fato de a alma compartilhar com as

lsquoFormasrsquo uma dada caracteriacutestica que o corpo natildeo possui natildeo mostra que a alma

eacute mais semelhante a elas do que o corpo eacute o fato de a alma sozinha poder

alcanccedilar as lsquoFormasrsquo e ter harmonia em contato com elas natildeo eacute suficiente para

estabelecer que as almas satildeo ao maacuteximo semelhantes agraves Formas imutaacuteveis e

com isso concluir que a alma assim como a lsquoFormarsquo eacute imune a qualquer

variaccedilatildeo e consequente destruiccedilatildeo

Soacutecrates agora oferece um argumento suplementar em favor da semelhanccedila entre

a alma e lsquoFormasrsquo O argumento assume a existecircncia de certa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre

alma e corpo em que o corpo se subordina ao governo da alma e entre divino e mortal

em que o mortal se subordina ao governo do divino

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

133

Platatildeo introduz uma terminologia nova no argumento o divino (τὸ θεῖον) e o

mortal (τὸ θνητόν) A terminologia divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) natildeo foi usada

ateacute agora no argumento Platatildeo entatildeo alinha a alma com o divino (τὸ θεῖον) os quais

exercem papel de governantes e o corpo com o mortal (τὸ θνητόν) os quais exercem

papel de governados estabelecendo uma relaccedilatildeo de semelhanccedila bastante vaga o divino

e a alma devem ser parecidos porque ambos dominam e governam enquanto o corpo e

o mortal dever ser parecidos porque ambos satildeo dominados e governados (79e-80a2-6)

A distinccedilatildeo entre divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) revela que o termo

lsquodivinorsquo eacute equivalente ao termo lsquoimortalrsquo113 Para a mente grega eacute natural que o lsquodivinorsquo

traga consigo a ideia de imortalidadersquo114 Contudo natildeo fica claro se Platatildeo introduz uma

nova linha de pensamento no argumento e dessa forma lsquodivinorsquo se refere a lsquodeusesrsquo ou

se essa passagem eacute uma extensatildeo da ideia em progresso e nesse caso lsquodivinorsquo poderia

ser uma referecircncia agraves lsquoFormasrsquo

A Forma jaacute foi apresentada como aquilo que eacute lsquoeternorsquo (ἀεὶ ὂν) e lsquoimortalrsquo

(ἀθάνατον) (79d2) e agora Platatildeo utiliza o termo divino (τὸ θεῖον) provavelmente

como equivalente ao termo lsquoimortalrsquo Platatildeo costuma tomar de empreacutestimo termos

comuns no acircmbito da religiatildeo grega para caracterizar a lsquolsquoFormarsquorsquo Ao utilizar o termo

lsquodivinorsquo ele procura estabelecer a distinccedilatildeo entre dois tipos de existecircncia o mortal

caracterizaria os objetos particulares os quais satildeo inferiores subjugados cuja existecircncia

eacute passageira suscetiacutevel agrave destruiccedilatildeo o lsquodivinorsquo (imortal) caracterizaria as lsquoFormasrsquo que

satildeo governantes ndash membros de um domiacutenio superior imunes agrave mudanccedila e destruiccedilatildeo

Talvez Platatildeo esteja utilizando agora o termo lsquodivinorsquo justamente para comunicar a

113 Rowe 1993 p187

114 Cf Taylor 1922 p176

134

ideia ainda que inacabada e imprecisa da superioridade das lsquoFormasrsquo sobre os objetos

particulares assim como os deuses imortais estatildeo acima dos mortais e os governam as

lsquoFormasrsquo divinas (imortais) satildeo superiores a tudo que pertence ao domiacutenio das coisas

mortais e de alguma maneira pode-se dizer que governam e dominam os objetos

particulares

Aleacutem disso Platatildeo coloca o lsquodivinorsquo no grupo de termos que qualificam as

lsquoFormasrsquo em (80b1-3) Se lsquodivinorsquo dificilmente se refere agraves Formas teriacuteamos uma

divisatildeo entre (i) lsquoo divinorsquo e (ii) a Forma lsquoaquilo que eacute imortal inteligiacutevel uniforme

indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo Mas o texto natildeo

sugere essa divisatildeo e aparentemente a lsquoFormarsquo eacute apresentada como aquilo que eacute divino

imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo Ao final a ideia de que lsquoa alma eacute como o divinorsquo necessariamente traz

consigo duas ideias inseparaacuteveis nesse contexto natureza superior (natureza divina) e

imortalidade A ideia de governo e domiacutenio em si mesmas natildeo ajudariam o argumento a

provar que a alma seria diferente dos objetos fiacutesicos e que ao contraacuterio deles natildeo estaacute

sujeita agrave destruiccedilatildeo A analogia serve apenas para mostrar que a alma eacute como o divino

superior e imortal

Contudo os comentadores geralmente acreditam que dificilmente o termo

lsquodivinorsquo se refere a Formas por causa da ideia baacutesica de lsquogovernarrsquo115 Realmente eacute

difiacutecil entender em que sentido lsquoFormasrsquo exercem algum tipo de domiacutenio sobre objetos

mortais Isso natildeo fica claro no argumento

Uma das maiores fraquezas do argumento eacute a ausecircncia da ideia de hegemonia

absoluta da alma sobre o corpo Haacute vaacuterios exemplos no diaacutelogo em que a lsquoalma

115 Cf Rowe 1993 p187

135

governantersquo e lsquoo corpo governadorsquo trocam de papel Na primeira etapa do diaacutelogo a

personagem Soacutecrates menciona a crenccedila das religiotildees de misteacuterio segundo a qual ldquonoacutes

seres humanos estamos num tipo de prisatildeordquo (62b) Nesse caso a alma estaria

subordinada ao corpo em que se aloja do qual natildeo poderia deliberadamente se libertar

Adiante eacute dito que a alma se subordina agraves demandas corporais ndash fome doenccedilas desejos

eroacuteticos apetites temores fantasias futilidade (66b-d) Por exemplo ldquoeacute o corpo que

nos forccedila a adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircnciardquo (66d) No

contexto do argumento das afinidades a alma eacute arrastada passivamente pelo corpo para

os objetos particulares (79c) Pelo menos nesses casos natildeo se vecirc com clareza a alma

exercendo um papel soberano sobre o corpo aparentemente contradizendo o que a

passagem afirma sobre a alma que domina e governa o corpo Ainda que a ideia de

governar lsquopor naturezarsquo pode ser entendida como um conceito meramente normativo em

Platatildeo ndash algo que deve ser feito mas que nem sempre eacute ndash a ideia natildeo deixa de ser

estranha num diaacutelogo em que se enfatiza a constante submissatildeo da alma agraves demandas

corporais116 Se governar o corpo significa disciplinaacute-lo resistir aos seus desejos e

examinar com independecircncia a alma costuma falhar no exerciacutecio da sua natural

condiccedilatildeo de governante117

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

116 Gallop 2002 p139

117 Cf Bostock 1989 p 119

136

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

Nesta etapa final Soacutecrates conduz o argumento para uma conclusatildeo com base

em tudo que foi dito (ἐκ πάντων τῶν εἰρημένων) (80a10-80b1) Aqui fica bem claro que

o argumento eacute do tipo analoacutegico baseia-se na extrema semelhanccedila (ὁμοιότατον) entre

alma e a lsquoFormarsquo Ao dizer que a alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) agravequilo

que eacute divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmo Soacutecrates retoma vaacuterios aspectos em que a alma e Forma satildeo

semelhantes

Em suma o argumento apresenta trecircs pontos cruciais de semelhanccedila entre alma

e lsquoFormarsquo

(i) Invisibilidade

Existem duas classes de coisas visiacutevel e invisiacutevel

A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute

(ii) Inteligibilidade

O corpo arrasta a alma para objetos particulares e em contato com eles fica

confusa Sozinha por si a alma alcanccedila a lsquoFormarsquo (aquilo que eacute puro eterno

imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo) e fica em harmonia com ela

A alma possui maior semelhanccedila e afinidade (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) com a Forma (aquilo que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo) do

que com o objeto particular (aquilo que natildeo estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

(iii) Divindade

137

Ao divino e agrave alma compete o governar e dominar

A alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal)

Essas trecircs etapas do diaacutelogo estabelecem a semelhanccedila baacutesica entre alma e

lsquoFormarsquo e mostram que almas e lsquoFormasrsquo possuem apenas alguns atributos em comum

Apesar disso o argumento analoacutegico de Platatildeo parece tomar por certo que o fato de

alma e lsquoFormarsquo sejam semelhantes em alguns aspectos isso garantiria que alma e

lsquoFormarsquo seriam extremamente semelhante pelo menos em todos os aspectos que

Soacutecrates alista em 80b1-3

A conclusatildeo traz uma forte declaraccedilatildeo de semelhanccedila no argumento em vez de

simplesmente falar na lsquomaior semelhanccedila e afinidadersquo (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) da alma com a Forma (79c1-2) que a lsquoalma se assemelha (ὁμοιότερόν)

mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacutersquo (79c5) ou que

a alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal) (80a7) agora se enfatiza a semelhanccedila entre

alma e lsquoFormarsquo pelo uso do superlativo ὁμοιότατον Gallop esclarece que o superlativo

ὁμοιότατον pode ter um sentido intensivo ndash lsquomuito ou extremamente semelhantersquo ndash ou

pode significar lsquomais semelhante do que qualquer outra coisarsquo118 Embora o argumento

natildeo persuada o leitor de que a alma eacute lsquoextremamentersquo semelhante agraves lsquoFormasrsquo isso natildeo

significa que em seu cliacutemax a ideia apresentada natildeo seja justamente aquela da

intensidade O anuacutencio de que estatildeo chegando a uma conclusatildeo com base em tudo que

fora dito a apresentaccedilatildeo de um complexo cataacutelogo de atributos das Formas com as

quais as almas se assemelham (80a10-b3) e a conhecida convicccedilatildeo de Soacutecrates de que a

alma de modo algum se dissolve por ocasiatildeo da morte podem indicar que a personagem

118 Gallop 2002 p142

138

procura afirmar nada menos do que uma grande ou extrema semelhanccedila entre alma e

lsquoFormasrsquo Se este for o caso a ideia eacute realmente de que a alma eacute extremamente

semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e

sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo (80b1-3)

Quase todos os itens dessa lista em 80b1-3 aparecem ao longo do argumento

Trecircs itens satildeo mais importantes para o proacutepoacutesito especiacutefico do argumento que eacute o de

afastar o temor de que a alma se desintegra na hora da morte imortal lsquosempre na

mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo e indissoluacutevel Mas eacute o termo indissoluacutevel

(ἀδιάλυτος) que chama atenccedilatildeo nessa etapa de conclusatildeo ele aparece pela primeira vez

no argumento e provavelmente tem alguma ligaccedilatildeo ou talvez ateacute sirva de substituto do

termo lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) que aparece no iniacutecio do argumento em 78c O termo

ἀδιάλυτος pode expressar aquilo que eacute impossiacutevel de ser dissolvido (ou desintegrado)

ou aquilo que embora possa ser dissolvido natildeo o seraacute119 Mas se o termo realmente

retoma a ideia de que coisas simples (ἀσύνθετος) satildeo imunes agrave dispersatildeo enquanto as

compostas somente satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo (Cf 78c1-4) a ideia natildeo pode ser nada

menos do que impossibilidade de dissoluccedilatildeo As coisas compostas podem ser

dissolvidas ou dispersas num processo inverso ao que colocou as suas partes juntas mas

isto natildeo significa elas necessariamente seratildeo dissolvidas As almas satildeo extremamente

semelhantes (seja laacute o que isso significa) agraves Formas entatildeo elas devem ser indissoluacuteveis

imunes agrave desintegraccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo eacute

Enquanto a alma eacute insoluacutevel o corpo eacute soluacutevel (διάλυτος) (80b4) e o termo

soluacutevel (διάλυτος) provavelmente recupera ou estaacute relacionado ao termorsquocompostorsquo

(σύνθετος) que aparece em 78c Logo depois de serem introduzidos no diaacutelogo os

119 Rowe 1993 p188

139

termos lsquocompostorsquo (σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) natildeo aparecem novamente no

argumento mas curiosamente Soacutecrates termina o argumento em si com termos que

recuperam a ideia de lsquosimplesrsquo e lsquocompostorsquo A ideia de solubilidade e insolubilidade

que aparecem na lista em 80b1-5 passam a ser cruciais na conclusatildeo final em 80b9-c1

onde satildeo empregados διαλύω e ἀδιάλυτος ldquo() acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissordquo (ἆρ᾽ οὐχὶ σώματι μὲν ταχὺ

διαλύεσθαι προσήκει ψυχῇ δὲ αὖ τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι ἢ ἐγγύς τι τούτου)

O argumento das afinidades enfrenta a criacutetica de ser o uacutenico argumento

analoacutegico no Feacutedon por ser de natureza analoacutegica natildeo eacute probatoacuterio Como lembra

Bostock o proacuteprio Platatildeo certamente sabia que analogias natildeo podem ser consideradas

como provas conclusivas E embora analogias possam ser bastante persuasivas quando

completas e propriamente detalhadas isso natildeo acontece com o argumento das

afinidades120 Assim como Bostock os comentadores em geral criticam o argumento

das afinidades por ser o uacutenico do tipo analoacutegico no diaacutelogo e como argumento

analoacutegico eacute fraco pouco persuasivo

(a) Bluck assevera que o argumento das afinidades natildeo constitui uma prova ele

eacute um mero argumento de probabilidade sem rigor loacutegico cuja funccedilatildeo eacute

simplesmente preparar o terreno para o uacuteltimo argumento o qual Platatildeo

considera como sendo uma prova real e final da imortalidade da alma121

120 Bostock 1989 p120-121

121 Bluck 1955 p73

140

(b) Dorter observa que enquanto os outros argumentos satildeo estabelecidos com

uma boa dose de rigor formal o argumento das afinidades eacute baseado meramente

em analogia estando assim aberto agrave rejeiccedilatildeo por qualquer pessoa que natildeo aceite

analogia122

(c) Elton afirma que Platatildeo inclui o argumento das afinidades para expor as

armadilhas do raciociacutenio analoacutegico e natildeo para apoiar a defesa da imortalidade

Assim o argumento funcionaria como liccedilatildeo objetiva sobre como natildeo fazer boa

filosofia isto eacute sobre como natildeo argumentar em favor da imortalidade da

alma123

(d) Gallop entende que o argumento tomado como analogia eacute fraco apresenta

uma fraca cadeia de argumentos que tenta estabelecer a analogia entre almas e

Formas124

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Com base na extrema semelhanccedila entre alma e lsquoFormarsquo a personagem Soacutecrates

chega a uma conclusatildeo final ldquoao corpo pertence (προσήκει) a raacutepida dissoluccedilatildeo (τάχυ

διαλύεσθαι) enquanto agrave alma por sua vez ser inteiramente indissoluacutevel (τὸ παράπαν

ἀδιαλύτῳ) ou algo proacuteximo disso (ἤ ἐγγύς τι τούτου)rdquo (80b8-11)

Platatildeo retoma a ideia vaga de lsquopertencerrsquo (προσήκω) que ele emprega

anteriormente em 78c Agora ele diz que pertence ao corpo o sofrer dissoluccedilatildeo

122 Dorter 1982 p 72

123 Elton 1997 p 313316

124 Gallop 2002 p 140

141

(διαλύω) antes que pertence agraves coisas compostas o sofrer dispersatildeo (διαιρέω) (78c2)

Agora pertence agrave alma o ser completamente indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) antes ao simples o

natildeo se sujeitar a sofrer dispersatildeo (78c3-4) O verbo προσήκω e as palavras com mesmo

campo semacircntico ndash διαιρέω διαλύω ἀδιάλυτος ndash sugerem que Platatildeo aproxima

intencionalmente os dois contextos (78c e 80b) A ideia de que haacute coisas simples e

compostas eacute crucial no iniacutecio do argumento mas depois de 78c ela eacute abandonada Logo

depois que Soacutecrates relaciona as coisas simples com lsquoas coisas que estatildeo sempre no

mesmo estado e condiccedilatildeorsquo (Formas) e as compostas com lsquoaquelas cuja condiccedilatildeo varia

em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estadorsquo (objetos particulares)

(78c6-8) ele introduz definitivamente as lsquoFormasrsquo no argumento (78c10-d7) A partir

daiacute Soacutecrates natildeo menciona a distinccedilatildeo entre lsquocoisas simplesrsquo e lsquocoisas compostasrsquo

novamente mas fica claro que as lsquoFormasrsquo satildeo as coisas simples e imunes agrave dispersatildeo e

as compostas e suscetiacuteveis agrave dispersatildeo satildeo lsquoobjetos particularesrsquo A ideia de sofrer

dissoluccedilatildeo (διαλύω) sofrer dispersatildeo (διαιρέω) e ser indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) natildeo se

sujeitar a sofrer dispersatildeo satildeo cruciais para o argumento que visa confrontar a crenccedila

popular de que a alma seria destruiacuteda (διαφθείρω) e pereceria (ἀπόλλυμι) na ocasiatildeo da

separaccedilatildeo do corpo ocasiatildeo em que seria dispersa (διασκεδάννυμι) como vento e

fumaccedila (70a3-6) que na compreensatildeo de Soacutecrates natildeo passa de uma crenccedila ldquopueril de

que o vento realmente dissipe (διαφύομαι) e disperse (διασκεδάννυμι) a alma na ocasiatildeo

em que ela deixa o corpordquo (77d7-e1)

Dentre outras coisas a conclusatildeo desponta por causa falta de clareza O proacuteprio

termo lsquopertencerrsquo eacute vago sem qualquer sentido especializado O argumento utiliza uma

linguagem de confianccedila seguranccedila e certeza apenas quando caracteriza as lsquoFormasrsquo

elas satildeo imortais indissoluacuteveis Mas quando se refere agrave alma diz-se vagamente que a

142

ela lsquopertencersquo o ser completamente indissoluacutevel A ideia de lsquopertencerrsquo (προσήκει) natildeo

traz qualquer certeza ou garantia e apenas atenua a conclusatildeo

A expressatildeo lsquoou algo proacuteximo dissorsquo (ἤ ἐγγύς τι τούτου) (80b11) conduz o leitor

para um mar de incertezas Ao que parece o texto faz um tipo de confissatildeo mais ou

menos aberta de que o argumento das afinidades repousa no terreno da incerteza A

conclusatildeo reflete uma maneira platocircnica de reconhecer a inseguranccedila do argumento

como se fosse uma admissatildeo mais ou menos velada de que o argumento apresenta

problemas125

Como jaacute foi dito o argumento procurar estabelecer que (i) a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute (ii) que a alma deve possuir

maior afinidade com a Forma do que com o objeto particular porque quando examina

sozinha alcanccedila a lsquoFormarsquo e fica em harmonia com ela (iii) que a alma eacute como (ἔοικεν)

o divino (imortal) porque compete a ambos governar e dominar Com base nessas trecircs

comparaccedilotildees Soacutecrates conclui que lsquoa alma eacute extemamente semelhante ao que eacute ao

divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmorsquo portanto lsquoa alma seria o tipo de coisa completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissorsquo Contudo as trecircs comparaccedilotildees baacutesicas soacute

providenciam base para a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevelrsquo ou

algo proacuteximo dissorsquo se aceitarmos que a semelhanccedila em alguns aspectos entre alma e

lsquoFormasrsquo ndash invisibilidade inteligibilidade divindade ndash pode garantir a semelhanccedila em

vaacuterios outros aspectos como indissolubilidade Se isso natildeo for aceito dificilmente

algueacutem poderia afirmar que a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevel

ou algo proacuteximo dissorsquo decorre das trecircs comparaccedilotildees baacutesicas do diaacutelogo

125 Rowe 1993 p189

143

Por fim resta apenas reconhecer todas as deficiecircncias do argumento apontadas

ao longo desta seccedilatildeo para concluir que o argumento das afinidades falha em provar que

a alma eacute imortal Por outro lado o argumento eacute extremamente importante para

convencer os amigos de que a alma eacute um tipo de ser ldquointermediaacuteriordquo o argumento deixa

claro que ela natildeo eacute nem possui afinidades com os objetos particulares mas mesmo

assim consegue interagir com eles a ponto de carregar consigo elementos corporais Por

outro lado ela se assemelha ao maacuteximo com as lsquoFormasrsquo mas ainda assim natildeo eacute uma

delas Portanto a uacutenica saiacuteda para entender essa forte e consistente caracterizaccedilatildeo da

alma no argumento das afinidades eacute concluir que ela eacute um ente que se coloca entre

lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos particularesrsquo o que poderiacuteamos chamar de ente intermediaacuterio

bull Formas

bull Alma

bull Objetos sensiacuteveis

Embora seja um argumento analoacutegico que natildeo eacute suficiente para persuadir os

amigos de que a alma eacute completamente indissoluacutevel o argumento tem os seguintes

meacuteritos geralmente desprezados pela literatura criacutetica

(i) O argumento eacute a primeira tentativa direta de provar que a alma eacute por

natureza imune agrave morte A exigecircncia que Cebes apresentaraacute adiante eacute

basicamente que se apresente um argumento capaz de provar aquilo que

o argumento das afinidades pelo menos aponta provar que a alma eacute

completamente indissoluacutevel ou seja imortal e indestrutiacutevel

144

(ii) O argumento eacute a primeira tentativa de provar a imortalidade da alma sem

qualquer vinculaccedilatildeo com a doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo

(iii) O argumento apresenta pela primeira vez uma caracterizaccedilatildeo consistente

das lsquoFormasrsquo em contraste com os objetos particulares Pela primeira vez

podemos vislumbrar com maior clareza que Platatildeo considera a existecircncia

de trecircs coisas lsquoFormasrsquo lsquoalmasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo Eacute precisamente

neste ponto do diaacutelogo que jaacute temos uma caracterizaccedilatildeo suficiente das

lsquoFormasrsquo para reconhecermos que Platatildeo possui uma teoria segundo a

qual existem entidades ldquosuperioresrdquo distintas das almas e dos sensiacuteveis

(iv) A caracterizaccedilatildeo da alma como ente lsquointermediaacuteriorsquo eacute de fundamental

importacircncia para a correta interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento Platatildeo

certamente espera que interpretemos o uacuteltimo argumento a partir desta

compreensatildeo da alma como ente cuja existecircncia estaacute entre lsquoFormasrsquo e

lsquosensiacuteveisrsquo

54 Etapa Especulativa (80c-84b)

O argumento em si finda em 80b mas daacute margem para que Soacutecrates introduza

imediatamente um tipo de discussatildeo complementar com base no que foi dito no

argumento das afinidades em si Mas essa etapa que inicia em 80c consiste numa

elaboraccedilatildeo especulativa e miacutetica A passagem do argumento em si para essa nova etapa

eacute bastante sutil O primeiro tema desenvolvido nessa etapa trata da distinccedilatildeo baacutesica do

ser humano ndash corpo e alma ndash e manteacutem uma especial ligaccedilatildeo com a conclusatildeo final do

argumento das afinidades Contudo natildeo deve ser tomado como parte ou extensatildeo do

145

argumento em si porque fica claro que o argumento natildeo acomoda qualquer especulaccedilatildeo

de cunho miacutetico-religioso Aleacutem disso a nova etapa se volta para a glorificaccedilatildeo do

modo de vida filosoacutefico e finda com a conclusatildeo de que esse modo de vida eacute o que

finalmente garante a ausecircncia dos temores do filoacutesofo

541 Corpo e alma (80c-d)

bull Corpo (80c2-d4)

No argumento das afinidades fica estabelecido que haacute duas classes de coisas

visiacutevel e invisiacutevel sendo a alma mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17) Agora Soacutecrates retoma

parte dessa ideia reafirmando a distinccedilatildeo baacutesica do ser humano em corpo que eacute a parte

visiacutevel (τὸ ὁρατὸν) da pessoa e pouco depois falaraacute da alma que eacute a parte invisiacutevel (τὸ

ἀιδές) (80d5)

Na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates afirma que o corpo se

dissolve rapidamente (τάχυ διαλύεσθαι) (80b9) mas agora a personagem Soacutecrates

parece confrontar o proacuteprio argumento com a ideia de que o cadaacutever ao qual pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ διαπίπτειν καὶ

διαπνεῖσθαι) natildeo sofre todas essas coisas imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν

πέπονθεν) mas lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado Aleacutem disso certas

partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά ἐστιν) (80c2-d4) Sendo assim a

146

dissoluccedilatildeo do corpo eacute vista agora mais como um processo que varia em cada caso do

que algo imediato como foi apresentado na conclusatildeo do argumento das afinidades

Talvez esse remendo visa reforccedilar a ideia de que a alma natildeo eacute imediatamente

desintegrada na hora da morte se nem mesmo o corpo ndash a parte visiacutevel do ser humano ndash

eacute dissolvido imediatamente apoacutes a morte quanto mais a alma a parte invisiacutevel do ser

humano

Apesar dessa constataccedilatildeo da durabilidade do cadaacutever que de algum modo

aponta para uma imprecisatildeo na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates

reafirma a sua convicccedilatildeo de que lsquodissolver-se desintegrar-se dissipar-sersquo satildeo proacuteprios

do corpo natildeo da almarsquo (80c4-5) como se estivesse reforccedilando ou dando um suporte

adicional para a ideia jaacute apresentada pelo argumento das afinidades

bull Alma (80d5-e1)

Platatildeo tambeacutem se utiliza da ideia de semelhanccedila entre almas e lsquoFormasrsquo

apresentada no argumento das afinidades nessa etapa especulativa No argumento das

afinidades a alma que examina sem a mediaccedilatildeo corporal se encaminha para as Formas

aquilo com que ela possui semelhanccedila e afinidade e fica em harmonia com elas (79c-d)

no acircmbito especulativo miacutetico-religioso a alma que se liberta do corpo vai para um

lugar da mesma natureza um lugar nobre puro invisiacutevel (γενναῖον καὶ καθαρὸν καὶ

ἀιδῆ) chamado Hades onde fica junto a uma divindade boa e saacutebia (παρὰ τὸν ἀγαθὸν

καὶ φρόνιμον θεόν) (80d5-7) A alma que vive em constante afastamento do corpo parte

para o aleacutem pura (sem carregar elementos corporais consigo) e desse modo lsquose

147

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5)

Aleacutem disso assim como no argumento das afinidades a alma que se utilizada do

corpo eacute arrastada para o mundo fiacutesico e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se

estivesse embriagada e soacute cessa o desvio quando entra em contato com lsquoaquilo que

permanece sempre na mesma condiccedilatildeorsquo (79c6-8) na versatildeo miacutetico-religiosa de Platatildeo a

alma soacute encontra plena realizaccedilatildeo (εὐδαίμων) quando deixa o mundo fiacutesico e natildeo eacute mais

afetado pelas mazelas oriundas do corpo como lsquoo desvio insensatez tipos selvagens de

amor e os outros males humanosrsquo (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀγρίων ἐρώτων καὶ

τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων) (81a6-8)

Como lida agora com o domiacutenio miacutetico-religioso e especulativo Soacutecrates

concede agrave divindade seu lugar de primazia apenas se a divindade quiser (ἂν θεὸς θέλῃ)

a sua alma tambeacutem percorreraacute esse mesmo caminho em direccedilatildeo ao divino e agrave completa

realizaccedilatildeo (80d7-8) No entanto ele nutre uma boa esperanccedila de que o divino lhe

permitiraacute desfrutar desse destino assim como havia manifestado antes ao falar da

esperanccedila (ἐλπίς) que os filoacutesofos nutrem de que apenas no Hades alcanccedilariam a

sabedoria que desejaram ao longo de uma vida inteira (68a7-b6) Vale lembra que o

Hades que havia sido completamente excluiacutedo do argumento das afinidades eacute

retomado nessa etapa especulativa

Por fim assim como no argumento das afinidades Soacutecrates confronta o temor

pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo especialmente

se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) a etapa especulativa tambeacutem visa

confrontar a ideia de que na ocasiatildeo da morte a alma seria lsquoimediatamente dissipada e

destruiacuteda como afirmam as pessoasrsquo (εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ ἀπόλωλεν ὥς φασιν οἱ

148

πολλοὶ ἄνθρωποι)rsquo Soacutecrates reforccedila que isso natildeo aconteceria lsquolonge disso caros

Siacutemias e Cebesrsquo (80d9-e2) E a sua apresentaccedilatildeo do percurso da alma depois da morte

com base na doutrina da reencarnaccedilatildeo ilustra a sua posiccedilatildeo de que a alma natildeo eacute

aniquilada na hora da morte mas experimenta diferentes tipos de existecircncia de acordo

com a vida que teve unificando todas essas temaacuteticas

542 Vida Filosoacutefica

Um dos objetivos dessa etapa especulativa eacute a defesa da vida dedicada agrave

filosofia Platatildeo explora o tema da vida filosoacutefica e o relaciona a diversos temas

especiacuteficos

bull Filosofia e Reencarnaccedilatildeo

Se por um lado o destino do filoacutesofo depende da vontade divina por outro

depende do modo de vida ndash filosoacutefico ou natildeo ndash que a pessoa leva O destino da alma e o

modo de vida de uma pessoa satildeo diretamente ligados ao tema da reencarnaccedilatildeo nesta

etapa O objetivo desta longa seccedilatildeo em que Platatildeo utiliza a doutrina da reencarnaccedilatildeo

conforme seus interesses eacute apresentar uma vigorosa defesa da vida filosoacutefica mais do

que propagar a crenccedila na reencarnaccedilatildeo

A reencarnaccedilatildeo eacute experimentada por aqueles que natildeo se dedicam agrave filosofia e

assim natildeo se purificam durante a vida Aqueles que se entregam ao modo de vida

corporal entregando-se aos seus deleites nunca podem chegar ao Hades no estado de

pureza e a sua alma parte para o aleacutem contaminada e carregada com os resiacuteduos

149

corporais e logo reencarna em outro corpo porque o Hades natildeo lhe permite ali ficar em

contato com os deuses (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) Isto levaria a uma consequente

reencarnaccedilatildeo num corpo de acordo com o gecircnero de vida praticado ( Essa temaacutetica eacute

desenvolvida e ilustrada atraveacutes de trecircs grupos cada grupo caracterizado pela

reencarnaccedilatildeo correspondente ao modo de vida que teve

(i) Aqueles que se entregam agrave glutonaria e embriaguecircs reencarnam como

burros e animais dessa natureza (81e)

(ii) Aqueles que praticam injusticcedilas tiranias e roubos retornam como lobos

falcotildees e abutres (82a)

(iii) Aqueles que praticam a virtude popular e poliacutetica ndash temperanccedila e justiccedila

ndash mas por mero haacutebito sem o exerciacutecio consciente da filosofia e

inteligecircncia nascem como uma espeacutecies sociais como eles satildeo podem

voltar como abelhas vespas formigas ou novamente como humano

(82b-c)

Todo o cenaacuterio em que a personagem principal discute a reencarnaccedilatildeo da alma eacute

construiacutedo para uma seguinte exaltaccedilatildeo do modo de vida filosoacutefico e tudo que se

relaciona a ele

543 Filosofia e salvaccedilatildeo da alma

Filosofia eacute o uacutenico meio de salvaccedilatildeo de um interminaacutevel ciclo de reencarnaccedilotildees

Eacute impossiacutevel quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees e chegar agrave linhagem dos deuses sem o

150

exerciacutecio da Filosofia a qual prepara os filoacutesofos para partirem completamente

purificados para o Hades (82b10-c1) Esse modo de vida filosoacutefico no qual a alma

encontra redenccedilatildeo eacute exemplificado em 82c3-8 os filoacutesofos se afastam e se manteacutem

afastados de todos os desejos que dizem respeito ao corpo como o desejo daquele que

ama o dinheiro e receia pobreza e o daquele que ama poder e honra e receia desonra e

maacute reputaccedilatildeo Platatildeo se utiliza da ideia religiosa da metempsicose e da quebra dos

ciclos de renascimentos ao seu interesse de propagar a sua proacutepria praacutetica filosoacutefica

como via uacutenica de salvaccedilatildeo No Feacutedon vemos um tipo de ldquoproselitismo filosoacuteficordquo jaacute

que natildeo haacute outro meio de quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees o melhor a se fazer eacute

dedicar a vida agrave praacutetica de morrer e estar morto ou seja tornar-se um filoacutesofo

544 Filosofia e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo

O tema da lsquosalvaccedilatildeo da almarsquo (entendida como a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees) e o tema da lsquopurificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo da almarsquo estatildeo intrinsecamente

relacionados A vida de reclusatildeo da alma dissociada do corpo e dedicada agrave filosofia o

que o filoacutesofo chama de verdadeiro filosofar (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e exerciacutecio de

morte (μελέτη θανάτου) (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) eacute basicamente o que Platatildeo

apresenta como purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo (καθαρμός) e libertaccedilatildeo (λύσις) se

efetuam por meio da filosofia (82d5-6) Semelhante ideia eacute apresentada no primeiro

estaacutegio do diaacutelogo onde lsquopurificarrsquo eacute a alma afastar-se ao maacuteximo do corpo e viver

longe dele (67c5-d1) O corpo eacute como uma prisatildeo e somente a filosofia pode efetuar a

libertaccedilatildeo da alma encarcerada em seu proacuteprio corpo Sem a praacutetica da filosofia a alma

eacute cativa do corpo e obrigada a examinar as lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) por meio dele

151

como atraveacutes de uma prisatildeo (82e3-4) Tambeacutem no primeiro estaacutegio do Feacutedon o tema

da purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo eacute desenvolvido juntamente com a ideia de que o corpo eacute um

tipo de prisatildeo da alma a constante reclusatildeo da alma ldquoeacute um um ato de constante

libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de cadeiasrdquo (67d1-2)

Quando algueacutem eacute iniciado na filosofia o processo de libertaccedilatildeo comeccedila a tomar

lugar paulatinamente (83a9-b1)

bull Filosofia gentilmente aconselha a alma

bull Filosofia tenta libertar a alma do exame atraveacutes dos sentidos

bull Filosofia persuade a distanciar a alma dos sentidos exceto

quando eacute imperativo usaacute-los

bull Filosofia encoraja a alma a recolher-se em si mesma e a confiar

apenas em si mesma quando usa a inteligecircncia para captar as

coisas que satildeo sozinhas por si mesmas (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν

ὄντων)

bull Filosofia encoraja a alma a considerar falso tudo que examine por

outros meios

bull Filosofia ajuda a identificar o que eacute sensiacutevel e visiacutevel e o que eacute

inteligiacutevel e invisiacutevel

152

545 Afinidade entre alma e o divino

O argumento das afinidades em si procura estabelecer a afinidade entre almas e

lsquoFormasrsquo enquanto a etapa especulativa procura estabelecer a versatildeo miacutetico-religiosa da

lsquoafinidadersquo ou seja a afinidade entre alma e o domiacutenio do divino que inclui o lugar as

divindades e tudo que faccedila parte desse domiacutenio Esta etapa chega ao fim com a

declaraccedilatildeo de que ao findar a vida a alma vai alcanccedilar aquilo que com ela possui

lsquoafinidadersquo e que eacute do mesmo tipo dela (εἰς τὸ συγγενὲς καὶ εἰς τὸ τοιοῦτον) (84b2-3)

Platatildeo utiliza vaacuterias expressotildees e termos para expressar a ideia de semelhanccedila relaccedilatildeo

afinidade familiaridade mesma natureza O termo συγγενής em particular eacute aparece

duas vezes no argumento das afinidades em si uma para estabelecer a familiaridade ou

afinidade entre corpo e a classe de coisas visiacuteveis e a alma e a classe de coisas

invisiacuteveis (79d3) outra para estabelecer a afinidade entre lsquoo que eacute puro eterno imortal

e permanece na mesma condiccedilatildeorsquo e a alma (79e1-2) Nesta conclusatildeo em 84b2-3 na

qual eacute dito apenas que a alma que deixa o corpo vai alcanccedilar aquilo com que ela possui

lsquoafinidadersquo (συγγενής) o contexto miacutetico-religioso sugere o encontro entre alma e o

domiacutenio do divino como jaacute havia sido sugerido pelo menos em duas ocasiotildees em

80d5-7 a alma que se liberta do corpo vai para outro lugar da mesma natureza que a sua

(εἰς τοιοῦτον τόπον ἕτερον) um lugar nobre puro invisiacutevel chamado Hades onde fica

junto a uma divindade boa e saacutebia em 81a4-5 a alma que parte para o aleacutem pura lsquose

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5) Toda

aspiraccedilatildeo post mortem do filoacutesofo nesta etapa especulativa diz respeito ao mundo

idealizado pela perspectiva miacutetico-religiosa e a semelhanccedila entre a alma e o domiacutenio do

153

divino e imortal parece tentar reforccedilar aquilo que foi apresentado no argumento das

afinidades em si Mas eacute importante lembrar que as lsquoFormasrsquo ainda satildeo objeto de desejo

do filoacutesofo durante a vida na etapa especulativa em 82e3-4 menciona-se o exame das

lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) e pouco depois a utilizaccedilatildeo da inteligecircncia para captar lsquoas

coisas que satildeo sozinhas por si mesmasrsquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν ὄντων) Nesse caso o

objetivo eacute reforccedilar a ideia de que eacute necessaacuterio examinar as lsquoFormasrsquo sem a

intermediaccedilatildeo corporal

546 Vida filosoacutefica e o temor da desintegraccedilatildeo da alma

No argumento das afinidades em si a extrema semelhanccedila entre almas e

lsquoFormasrsquo leva agrave conclusatildeo final de que a alma deve ser algo indissoluacutevel e assim natildeo

haveria razatildeo para nutrir os temores pueris de Cebes e Siacutemias de que a alma se

desintegraria assim que deixasse o corpo Por semelhante modo na etapa especulativa a

ideia de semelhanccedila entre a alma do filoacutesofo e o domiacutenio do divino eacute imediatamente

seguida pela afirmaccedilatildeo de que de modo algum a alma vai ser dissipada pelo vento e

destruiacuteda por ocasiatildeo da morte Mas nesse contexto especulativo natildeo eacute a afinidade da

alma com o divino que fundamenta a ideia de que a alma natildeo se desintegra na hora da

morte as a vida vida filosoacutefica eacute o que assegura que a alma natildeo seraacute desintegrada na

ocasiatildeo da morte eacute com base no modo de vida filosoacutefico (ἐκ δὴ τῆς τοιαύτης τροφῆς)

que natildeo haacute risco algum de que se tema que a alma possa ser dissolvida por ocasiatildeo da

morte esvaindo-se conforme o vento passando a natildeo mais existir em lugar algum

(84b3-7)

154

Esta seccedilatildeo especulativa retoma em grande parte a defesa de Soacutecrates na primeira

parte do diaacutelogo pela qual Soacutecrates tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que

natildeo estaacute convencido de que a morte eacute o melhor para o filoacutesofo procurando justificar sua

confianccedila e intrigante atitude diante da morte iminente e ateacute mesmo seu desejo de

morrer (60c-62c) Tanto em sua defesa como nessa etapa especulativa a vida filosoacutefica

eacute o que fundamenta qualquer esperanccedila no porvir

155

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)

61 Introduccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento eacute bastante discordante Ele tem a reputaccedilatildeo

de ser difiacutecil e insatisfatoacuterio e qualquer nova proposta de interpretaccedilatildeo tende a ser

tomada como mais uma maneira possiacutevel de lecirc-lo126

A etapa que vem depois do argumento das afinidades aparentemente prepara o

terreno para a introduccedilatildeo do argumento final propriamente dito mas a relaccedilatildeo entre ela

e o argumento final estaacute longe ser clara Esta longa estapa se desenvolve ateacute a

introduccedilatildeo do uacuteltimo argumento propriamente dito em 105c

61 O impacto do Argumento das Afinidades

Com base na afinidade entre alma e lsquoFormarsquo o argumento das afinidades conclui

que a alma eacute algo completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11) O

argumento natildeo consegue estabelece a prova definitiva da imortalidade mas representa

um grande avanccedilo na discussatildeo que evolui de duas provas vinculadas a uma concepccedilatildeo

de imortalidade da alma vinculada a uma crenccedila de cunho oacuterfico e pitagoacuterico segundo a

qual imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma se confundem para um argumento que

apesar de analoacutegico ataca o cerne de questatildeo a natureza da alma a sua imunidade agrave

126 Sedley 2011 p 31

156

morte O argumento provoca um forte impacto nos amigos pela primeira vez

apresentam suas proacuteprias ideias a teoria da alma-harmonia o tecelatildeo e seus mantos

Sobretudo Cebes poderaacute reconhecer que a alma eacute um ser especial diferente dos objetos

particulares divina longeva mais duradoura do que o corpo Mesmo assim a sua

afinidade com as lsquoFormasrsquo no argumento analoacutegico natildeo consegue convencecirc-lo de que

ela seria imortal completamente indissoluacutevel O proacuteprio Soacutecrates reconhece a fraqueza

do argumento ao concluir que a alma poderia ser algo proacuteximo de indissoluacutevel

Dialogando com a conclusatildeo do argumento das afinidades Cebes exigiraacute uma prova de

que a alma eacute imortal e completamente indestrutiacutevel A expressatildeo completamente

indestrutiacutevel visa explicar o tipo de concepccedilatildeo de imortalidade que eacute requerida agora

imortal natildeo apenas com o sentido de divino na religiatildeo tradicional ou vinculada agrave

doutrina da transmigraccedilatildeo da alma na tradiccedilatildeo oacuterfica e pitagoacuterica ou a quase

indissolubilidade da alma como uma admissatildeo de sua imortalidade mas a imortalidade

num sentido filosoacutefico especializado ndash a alma imortal eacute a alma completamente imune a

destruiccedilatildeo a alma cuja natureza eacute essencialmente viva e natildeo admite morte e destruiccedilatildeo

em hipoacutetese alguma Ateacute o momento Soacutecrates natildeo apresenta uma resposta para o

problema apresentado inicialmente por Cebes em 70a a desintegraccedilatildeo da alma na

ocasiatildeo em que se desaloja do corpo O argumento ciacuteclico estabelece apenas a

continuidade da vida em geral e a continuidade da alma em particular O argumento da

reminiscecircncia estabelece a existecircncia da alma antes de alojar-se no corpo e os amigos de

Soacutecrates enfaticamente apoiam essa tese em vaacuterias partes do diaacutelogo mas o maacuteximo

que isto poderia provar seria que a existecircncia da alma do momento em que no aleacutem

capta as lsquoFormasrsquo para a corrente reencarnaccedilatildeo sem qualquer garantia de que ao deixar

novamente o corpo a alma seria destruiacuteda e o argumento das afinidade como

157

acabamos de relatar acentua a duacutevida de que a alma seria completamente indissoluacutevel

O problema continua o mesmo ainda existe a possibilidade de dispersatildeo e aniquilaccedilatildeo

da alma

Mas sem duacutevida o argumento das afinidades provoca um especial impacto nos

amigos de Soacutecrates como acabamos de sugerir Soacutecrates silencia por um longo periacuteodo

e os amigos conversam em voz baixa O filoacutesofo entatildeo pergunta o que se passa A

verdade eacute que Siacutemias e Cebes tecircm algumas dificuldades com o argumento mas natildeo

querem perturbaacute-lo em sua presente desgraccedila (84c-d) O argumento analoacutegico natildeo

persuade os amigos de que a alma eacute imune agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo O temor persiste

Soacutecrates quebra o silecircncio para reforccedilar que natildeo vecirc a sua situaccedilatildeo que enfrenta como

infortuacutenio e ateacute evoca dotes divinatoacuterios com o fim de expressar a sua confianccedila de que

se reuniraacute com os deuses no Hades (84e-85a) e para pedir que os amigos apresentem

suas consideraccedilotildees (85a) O argumento das afinidades inspira os amigos de Soacutecrates a

apresentar as suas proacuteprias objeccedilotildees baseadas em algum tipo de analogia entre a alma e

a harmonia produzia por um instrument musical e a alma e o tecelatildeo com os mantos

que fabrica e com os quais se veste

62 Objeccedilotildees de Siacutemias e Cebes

Siacutemias e Cebes apresentam suas proacuteprias objeccedilotildees

(i) Siacutemias (85e-86d) a alma eacute como uma harmonia e o corpo eacute como uma

lira e suas cordas A harmonia eacute algo invisiacutevel incorpoacutereo e

158

absolutamente belo e divino na lira afinada enquanto a proacutepria lira e

suas cordas satildeo corpos e semelhantes ao mortal A alma perece com o

corpo assim como a harmonia deixa de existir quando a lira for destruiacuteda

(ii) Cebes (87a-88b) a analogia involve um tecelatildeo e seu manto Cebes estaacute

convencido de que alma existe antes do nascimento (argumento da

reminiscecircncia) mas ainda duvida que ela continue existindo apoacutes a

morte O tecelatildeo representa a alma e o manto representa os corpos nas

vaacuterias reencarnaccedilotildees Jaacute que o manto eacute mais fraacutegil do que o tecelatildeo ele

precisaraacute fazer e vestir vaacuterios mantos ao longo da vida assim como a

alma precisaraacute reencarnar em vaacuterios corpos sendo assim mais duraacutevel do

que o corpo mas natildeo imortal

Soacutecrates Soacutecrates faz uma breve revisatildeo dos dois argumentos em 91c7ndashd7 com o

sutil propoacutesito de revelar que os problemas das objeccedilotildees dos amigos O primeiro deles eacute

a discordacircncia dos proacuteprios amigos

(i) Os amigos natildeo concordam sequer no seguinte ponto fundamental

quando a alma deve perecer Siacutemias acredita a alma perece com ou antes

do corpo (86b2) Cebes acredita que a alma deve ter uma consistecircncia e

duraccedilatildeo maior do que a do corpo vindo a perecer apoacutes o corpo num dos

ciclos de reencarnaccedilotildees (87d1 e2)

(ii) Os amigos tambeacutem discordam na compreensatildeo da relaccedilatildeo de

interdependecircncia entre alma e corpo Com a sua teoria da alma-

159

harmonia Siacutemias tende a pensar que eacute a alma que depende do corpo

sendo destruiacuteda a lira (corpo) a harmonia que produz (a alma) tambeacutem

perece (86c5) Quando Cebes retrata o tecelatildeo (alma) como fazedor de

sua proacutepria vestimenta (corpo) ele daacute a entender que a alma deve durar

mais do que o corpo (87e1)

Quando confronta diretamente Siacutemias Soacutecrates facilmente lhe mostra que a sua

posiccedilatildeo eacute inconsistente e contraditoacuteria porque ele tenta sustentar o argumento da

reminiscecircnca e a teoria da alma-harmonia ao mesmo tempo Por um lado ele concorda

que a alma eacute como uma harmonia e assim sua existecircncia estaacute completamente

dependente do corpo ndash a harmonia de uma lira natildeo pode existir independentemente da

lira Por outro ele concorda com o argumento da reminiscecircncia segundo o qual a alma

existe independentemente do corpo antes mesmo do nascimento (92bndashe) Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos e sem titubear ele abandona o proacuteprio argumento

(alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e

reafirma o argumento da reminiscecircncia o qual deriva de uma hipoacutetese digna de

aceitaccedilatildeo Como o proacuteprio Siacutemias admite natildeo se trata propriamente de um argumento

uma demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) mas sim de uma objeccedilatildeo baseada numa imagem e

verossimilhanccedila (μετὰ εἰκότος τινὸς καὶ εὐπρεπείας) Para que natildeo reste nenhuma

duacutevida ele termina ratificando que eacute certo que a alma existe antes de entrar num corpo

assim como existe a Forma aquilo que eacute (92c-92d) Platatildeo deixa claro que a noccedilatildeo de

da alma-harmonia eacute completamente insustentaacutevel

No argumento do tecelatildeo e seus mantos a alma sobrevive a vaacuterios ciclos de

reencarnaccedilotildees mas perece no final sendo apenas mais resistente do que o corpo mas

160

natildeo imortal (87a-88b) A partir deste argumento Cebes apresenta objeccedilotildees gerais

essenciais para corrigir o rumo do diaacutelogo e para a construccedilatildeo do uacuteltimo argumento Em

suma eis a suas objeccedilotildees

(i) Cebes aponta o problema natildeo estaacute demonstrado que a alma continua a

existir em algum lugar depois da morte (87a4-5) Com essa consideraccedilatildeo

ele aponta a falha dos trecircs argumentos em providenciar uma prova final

da imortalidade da alma

(ii) Cebes critica a insuficiecircncia dos argumentos apresentados ainda que se

suponha que a alma eacute de natureza robusta (αὐτὸ φύσει ἰσχυρὸν εἶναι) e

resiste a uma seacuterie de ciclos de renascimentos (πολλάκις γιγνομένην

ψυχὴν ἀντέχειν) ainda assim natildeo haacute garantia de que ela natildeo se

desgastaria e numa das mortes ficaria totalmente aniquilada (ἔν τινι τῶν

θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) sem que ningueacutem saiba em qual

dessas mortes isso poderia ocorrer (88a1-10) A sua observaccedilatildeo estaacute

imediatamente relacionada ao seu argumento do tecelatildeo e do manto mas

parece se aplicar tambeacutem a todos os argumentos apresentados ateacute agora

a comeccedilar pelo argumento ciacuteclico o qual tenta provar que a alma

sobrevive atraveacutes dos ciclos de reencarnaccedilotildees mas natildeo garante que num

desses ciclos a alma simplesmente seria destruiacuteda

(iii) Cebes apresenta a necessidade lsquoprovar que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevelrsquo (ἀποδεῖξαι ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε

καὶ ἀνώλεθρον) (88b3-6)

161

(iv) Cebes critica a confianccedila e atitude de Soacutecrates diante da morte iminente

eacute insensato se mostrar confiante perante a morte a natildeo ser que se possa

lsquoprovar que a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrsquo (88b3-6)

Sem isso aquele que estaacute na iminecircncia da morte deve temer

constantemente que a sua alma seja completamente destruiacuteda

(παντάπασιν ἀπόληται) na ocasiatildeo em que ela se separa do corpo (88b6-

8) Mais uma vez essa criacutetica contempla a atitude de Soacutecrates diante da

morte em todo o diaacutelogo

(v) Cebes conduz a discussatildeo para um momento dramaacutetico de crise depois

de sua explanaccedilatildeo os amigos ficam tristes confusos increacutedulos (88c1-

5)

(vi) Cebes cria ocasiatildeo para o narrador Feacutedon exaltar Soacutecrates o qual se

posiciona para continuar a discussatildeo o filoacutesofo recebe a criacutetica com

maestria e como um general cujo exeacutercito foi disperso realinha as

fileiras de batalha e convoca os soldados para retornar ao campo de

batalha ndash o campo da argumentaccedilatildeo (88e-89a)

O problema da mortalidade da alma ainda persiste Se a alma for mortal a alma

de Soacutecrates corre o risco de ser destruiacuteda em breve assim que tomar o veneno e o corpo

perecer

A discussatildeo vem se desenrolando passo a passo O primeiro argumento que

aponta para a necessidade de provar que a alma eacute lsquoo tipo de coisa completamente

indissoluacutevelrsquo (τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι) eacute o argumento das afinidades mas ele

mesmo falha com a conclusatildeo de que a alma pode ser lsquoalgo proacuteximo de ser

162

completamente indissoluacutevelrsquo (80b10-11) O argumento do tecelatildeo e seus mantos

desenvolve semelhante problemaacutetica a ideia de uma alma robusta longeva quase

imortal e indestrutiacutevel mas que depois de uma sobreviver a uma seacuterie de reencarnaccedilotildees

se desgasta e num desses ciclos acaba aniquilada

Sendo assim Cebes requer uma prova definitiva de que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevel o que fica claro pela adiccedilatildeo das palavras lsquocompletamentersquo e

lsquoindestrutiacutevelrsquo O risco de que a alma lsquoficasse completamente aniquilada em uma das

mortesrsquo (ἔν τινι τῶν θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) (88a9-10) exige um argumento

que prove que ela eacute completamente imortal e indestrutiacutevel (παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ

ἀνώλεθρον) (88b5-6) Esta reivindicaccedilatildeo eacute essencial neste ponto do diaacutelogo porque

Soacutecrates a acolhe e o argumento final busca satisfazecirc-la ldquoa alma eacute imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ ἀνώλεθρον (106e8-107a1)

Essa lista de observaccedilotildees de Cebes eacute acolhida recapitulada e utilizada por

Soacutecrates como paracircmetro a ser seguido na construccedilatildeo do proacuteximo argumento Eis a

recapitulaccedilatildeo que Soacutecrates faz das objeccedilotildees de Cebes (95b-e)

(i) Deve ser demonstrado que a nossa alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ἀξιοῖς

ἐπιδειχθῆναι ἡμῶν τὴν ψυχὴν ἀνώλεθρόν τε καὶ ἀθάνατον οὖσαν)

(ii) Sem uma demonstraccedilatildeo da imortalidade da alma a mera confianccedila e

esperanccedila do filoacutesofo de ter um vida feliz e melhor no aleacutem eacute nada mais

do que uma confianccedila insana e vatilde

(iii) Apresentar a alma como algo resistente e divino (τὸ δὲ ἀποφαίνειν ὅτι

ἰσχυρόν τί ἐστιν ἡ ψυχὴ καὶ θεοειδὲς) e que existia antes mesmo de nos

163

tornarmos seres humanos natildeo prova a sua imortalidade mas apenas a sua

longa duraccedilatildeo em algum lugar

(iv) A entrada da alma num corpo humano jaacute eacute para ela como se fosse uma

doenccedila o iniacutecio da sua ruiacutena ateacute que se extinga na morte

(v) Sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι ὡς

ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou

vaacuterias vezes num corpo

(vi) Toda pessoa que tem bom senso deve temer a morte se natildeo souberem o

que eacute imortal e natildeo poderem oferecer um argumento sobre isso

Quando Soacutecrates pergunta se os amigos aceitaram todos os argumentos

apresentados ou apenas alguns (πότερον οὖν ἔφη πάντας τοὺς ἔμπροσθε λόγους οὐκ

ἀποδέχεσθε ἢ τοὺς μέν τοὺς δ᾽ οὔ) Cebes e Siacutemias revelam que apenas alguns haviam

sido aceitos outros natildeo mas ambos salientam que aceitam completamente o argumento

das reminiscecircncias ndash as almas existem antes do nascimento (91e-92a) Cebes aceita

algumas das demonstraccedilotildees anteriores o que significa que em sua perspectiva o

diaacutelogo havia progredido na explanaccedilatildeo sobre a natureza da alma ndash os argumentos

anteriores (pelo menos alguns) ajudam a entender a superioridade da alma em relaccedilatildeo

ao corpo ndash mas natildeo satildeo suficientes para provar o que se requer nesta ocasiatildeo ndash a

imortalidade da alma Eles ajudam a entender a alma em parte principalmente a sua

superioridade em relaccedilatildeo ao corpo mas ainda natildeo satildeo suficientes para atender as

exigecircncias de Cebes provar que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Em suma Cebes

admite que a alma eacute (91e-92a95c)

164

A alma eacute lsquorobustarsquo (ἰσχυρός) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquodivinarsquo (θεοειδής) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquolongevarsquo (πολυχρόνιος) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquopreexistentersquo (argumento

da reminiscecircncia)

Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

Apesar de o argumento de Cebes ndash tecelatildeo e o seu manto ndash seja tambeacutem baseado

numa mera lsquoimagemrsquo ou lsquoilustraccedilatildeorsquo sem demonstraccedilatildeo (assim como o de Siacutemias) que

eacute como a maioria das pessoas fundamental suas opiniotildees (τοῖς πολλοῖς δοκεῖ

ἀνθρώποις) (92d) e mesmo assim a ideia apresente claras inconsistecircncias ndash natildeo haacute

razatildeo para pensar que a alma pode sofrer um processo de desgaste vestindo o corpo ao

longo de diversas reencarnaccedilotildees porque natildeo eacute o manto que veste o tecelatildeo mas o

tecelatildeo o manto e assim o que se deteriora pelo uso eacute o mantocorpo natildeo o

tecelatildeoalma ndash ainda assim as objeccedilotildees gerais que Cebes levanta satildeo bem colocadas e

Soacutecrates afirma que lsquoisto requer uma exposiccedilatildeo sobre a causa da geraccedilatildeo e da

destruiccedilatildeorsquo (95e-96a) A nova etapa inicia com a autobiografia intelectual de Soacutecrates

que nos apresenta a busca inicial de Soacutecrates pela verdadeira lsquocausarsquo das coisas Durante

este estaacutegio Soacutecrates encontra uma resposta completamente sem sentido para a sua

busca da causa verdadeira Isto faz com que ele apele para uma outro tipo de

investigaccedilatildeo da causa

A cuidadosa leitura do texto sugere que a etapa entre as objeccedilotildees de Cebes e o

argumento final apresenta trecircs tipos de resposta concernentes agrave lsquocausarsquo das coisas

165

Quando em sua juventude Soacutecrates se decepciona com aquilo que os filoacutesofos da

natureza consideram como αἴτια Soacutecrates diz que ldquo(hellip) chamar esse tipo de coisa de

causa eacute completamente sem sentidordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

(99a4-5) Soacutecrates entatildeo busca outra resposta Na seccedilatildeo seguinte temos duas tentativas

de desenvolver uma noccedilatildeo platocircnica de causa Quando a personagem Soacutecrates expressa

a sua primeira formulaccedilatildeo de uma noccedilatildeo proacutepria de causa nos termos lsquoeacute por causa da

beleza que todas as coisas satildeo belasrsquo (100d7-8)rsquo ele diz que ele pensa que esta lhe

parece a afirmaccedilatildeo lsquomais segurarsquo (τοῦτο γάρ μοι δοκεῖ ἀσφαλέστατον εἶναι) (100d8-9)

Ele repete a ideia para deixar claro o tipo de resposta que ele chama de mais segura

lsquocontudo eacute seguro responder tanto a mim mesmo quanto a qualquer outra pessoa que eacute

por causa da beleza que as coisas belas se tornam belasrsquo (ἀλλ᾽ ἀσφαλὲς εἶναι καὶ ἐμοὶ

καὶ ὁτῳοῦν ἄλλῳ ἀποκρίνασθαι ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ γίγνεται καλά) (100e1-3) Mas

depois desta primeira tentativa Platatildeo desenvolve ainda mais a sua noccedilatildeo de causa

preparando terreno para a introduccedilatildeo do argumento final Portanto achamos razoaacutevel

dividir a etapa entre as objeccedilotildees gerais de Cebes e o uacuteltimo argumento da seguinte

maneira em trecircs ocasiotildees

(i) Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras127 ndash 96a-99c

(ii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo segura de causa ndash 99d-101e

(iii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c128

127 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

128 O texto natildeo traz a palavra lsquointeligentersquo mas apenas lsquooutra resposta segurarsquo (Cf 105b5-c1)

166

Essa etapa eacute desenvolvida ateacute a introduccedilatildeo do argumento final em 105c

63 Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras129 ndash 96a-99c

Soacutecrates apresenta sua chamada autobiografia intelectual que eacute introduzida no

diaacutelogo logo depois que a personagem recapitula as objeccedilotildees gerais de Cebes O

filoacutesofo imediatamente silencia por um tempo e quando retoma a discussatildeo louva a

busca de Cebes por algo que natildeo eacute trivial (95e8-9) e reconhece que diante das objeccedilotildees

eacute necessaacuterio discutir como um todo sobre a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (ὅλως γὰρ

δεῖ περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς τὴν αἰτίαν διαπραγματεύσασθαι) (95e10-96a3)

Nesta seccedilatildeo autobiograacutefica a personagem fala das suas proacuteprias experiecircncias (τά

γε ἐμὰ πάθη) em busca de conhecer a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (96a2) Em sua

mocidade era dado agrave lsquoinvestigaccedilatildeo sobre a naturezarsquo (περὶ φύσεως ἱστορίαν) buscando

conhecer as causas das coisas Parecia-lhe maravilhoso conhecer as causas de casa coisa

(εἰδέναι τὰς αἰτίας ἑκάστου) ldquopor que cada coisa eacute gerada perece e subsisterdquo (96a6-10)

Mas ele percebeu que o conhecimento sobre as causas era insatisfatoacuterio A sua

esperanccedila de que o livro de Anaxaacutegoras lhe ensinaria sobre as lsquocausasrsquo terminou numa

grande decepccedilatildeo e ao final ele rejeitou o modo de investigaccedilatildeo que os filoacutesofos da

natureza empregaram na busca da causa

129 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

167

Ao longo desta etapa a personagem Soacutecrates apresenta vaacuterios exemplos de

lsquocausasrsquo de acordo com os filoacutesofos da natureza Eis alguns alguns deles

OBSERVACcedilAtildeO CAUSA

96d-e

Um homem eacute maior do que o outro Cabeccedila

Um cavalo eacute maior do que o outro Cabeccedila

Dez eacute mais numeroso do que oito Adiccedilatildeo do dois

Dois cuacutebitos eacute maior do que um Dois cuacutebito excede um cuacutebito pela

metade

100c-d

Algo eacute belo Brilho da cor forma outra desse tipo

Soacutecrates rejeita este tipo de abordagem dos fiacutesicos contemporacircneos elas natildeo

podem ser a verdadeira αἰτίαι das coisas Soacutecrate sugere que a resposta dos filoacutesofos da

natureza para a sua busca pela causa verdadeira eacute algo do tipo completamente sem

sentido ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽

αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον) (99a4-5)

Decepcionado o filoacutesofo recorre a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele

chama de lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς

αἰτίας) (99c-d) Na seccedilatildeo que se inicia Platatildeo apresenta duas tentativas de resposta para

a questatildeo da causa verdadeira

168

64 Modo proacuteprio de investigaccedilatildeo (99c-101e)

Quando Soacutecrates ainda jovem busca a verdadeira causa das coisas fica

decepcionado com o tipo de resposta totalmente sem sentido apresentada pelos filoacutesofos

da natureza e resolve recorrer a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele chama de

lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς αἰτίας) (99c-

d) O novo modo de investigaccedilatildeo ao contraacuterio do anterior natildeo se baseia nos sentidos

corporais (99d-e) mas em argumentos (εἰς τοὺς λόγους) (99e) Ao longo do diaacutelogo

Platatildeo salienta que haacute coisas como o Belo em si cujo alcance pleno soacute pode ocorrer

atraveacutes da alma sozinha sem a mediaccedilatildeo corporal De alguma maneira a nova

abordagem tem uma ligaccedilatildeo direta com aquilo que jaacute havia sido apresentado ao longo

do diaacutelogo A ligaccedilatildeo fica clara posteriormente a nova abordagem tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de coisas como o belo em si e sabemos que jaacute em 65d Platatildeo

fala da existecircncia de coisas desse tipo

A partir deste ponto Soacutecrates se dispotildee a explicar com mais clareza esse novo

modo de investigaccedilatildeo A chamada autobiografia intelectual de Soacutecrates inicia com o

problema da αἰτία e nesta nova seccedilatildeo o texto deixa claro que a busca de Soacutecrates pela

verdadeira αἰτία continua A partir de agora Platatildeo poderaacute apresentar a sua tentativa de

contruir uma noccedilatildeo platocircnica de αἰτία com o fim de provar a imortalidade da alma

Antes de tudo eacute necessaacuterio observar que Platatildeo procurar deixar claro que toda a

seccedilatildeo que se inicia tem o compromisso expresso de estabelecer princiacutepios para provar a

imortalidada da alma Em 100b8-9 ele explica o objetivo desta seccedilatildeo lsquodemonstrar a

169

causa e descobrir que a alma eacute imortalrsquo (τὴν αἰτίαν ἐπιδείξειν καὶ ἀνευρήσειν ὡς

ἀθάνατον ἡ ψυχή) (100b8-9) Portanto a demonstraccedilatildeo da causa estaacute a serviccedilo da prova

da imortalidade da alma que eacute sem duacutevida o objetivo principal do diaacutelogo Outro

elemento importante nesta seccedilatildeo eacute o estabelecimento de uma hipoacutetese essencial ou

fundamental que eacute introduzida e reafirmada no diaacutelogo

O novo modo de investigaccedilatildeo que rompe completamente com os filoacutesofos da

natureza parte do pressuposto de uma hipoacutetese essencial lsquoFormasrsquorsquoFormasrsquo existem e

as coisas recebem os seus nomes pela sua participaccedilatildeo nelas A hipoacutetese de que existem

coisas como o belo em si nas quais as demais coisas participam passa a ser a condiccedilatildeo

sine qua non para a busca da causa verdadeira Em suma Soacutecrates considera o seguinte

(102a-d)

(i) Deve-se partir da hipoacutetese de que existe algo que eacute belo em si e por si

bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo(ὑποθέμενος εἶναί τι

καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7)

(ii) Admitindo a existecircncia dessas coisas eacute necessaacuterio considerar o seguinte

ldquose existe outra coisa bela aleacutem do que eacute belo em si natildeo eacute bela por causa

de coisa alguma a natildeo ser porque participa daquele belo em sirdquo (εἴ τί

ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ

διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ) (100c3-6) Depois Soacutecrates diz que lsquoeacute

pela beleza que as coisas belas satildeo belasrsquo (100d4-6)

(iii) Platatildeo desenvolve uma ideia de partipaccedilatildeo eacute por participar no belo em

si que as coisas belas satildeo belas Platatildeo desenvolve a sua ideia de

170

participaccedilatildeo utilizando principalmente trecircs palavras lsquoparticipaccedilatildeorsquo

(μετέχω) (100c5) lsquopresenccedilarsquo (παρουσία) (100d5) e lsquocomunhatildeorsquo

(κοινωνία) (100d6)

Com a hipoacutetese fundamental Platatildeo deixa claro que estaacute estabelecendo a noccedilatildeo

de lsquocausarsquo quando Soacutecrates diz que as coisas belas satildeo belas porque participam daquele

belo em sirdquo (100c3-6) finaliza com a pergunta ldquoconcordas com esse tipo de causardquo (τῇ

τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς) (100c6-7) Apesar da nossa divisatildeo para fins didaacuteticos entre

hipoacutetese fundamental e lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo na verdade a hipoacutetese

fundamental eacute a condiccedilatildeo baacutesica para o estabelecimento da lsquoresposta mais segura

poreacutem ignorantersquo

Tendo como base a hipoacutetese fundamental a noccedilatildeo de causa eacute desenvolvida

principalmente a partir das seguintes formulaccedilotildees

(i) Dativo de causa ndash lsquopor causa dersquo eacute bem comum especialmente no

contexto da resposta lsquomais segura poreacutem ignorantersquo para se referir agrave

lsquoFormarsquo como causa τῷ καλῷ (100d7 e2) πλήθει (101b6) and ἡμίσει

(101b7)

(ii) A preposiccedilatildeo διά + accusativo a construccedilatildeo pode ser encontrada em

101a onde Soacutecrates diz que coisas grandes satildeo grandes lsquopor causa da

grandezarsquo (διὰ τὸ μέγεθος) e coisas pequenas satildeo pequenas lsquopor causa da

pequenezrsquo (διὰ τὴν σμικρότητα) e em 101b quando Soacutecrates diz que dez

excede oito διὰ τὸ πλῆθος

171

(iii) O substantivo αἰτίααἴτιον no contexto da autobiografia intelectual de

Soacutecrates em 97c-99c αἰτία aparece pelo menos 19 vezes A partir do

momento em que Soacutecrates afirma que recorreu a uma lsquosegunda

navegaccedilatildeorsquo e ao longo do primeiro esboccedilo de uma noccedilatildeo de causa

(resposta mais segura poreacutem ignorante) αἰτία eacute empregada pelo menos 9

vezes em 99d 100-c 101b-101c

(iv) O verbo ποιέω em 99b100d130

O uso de todas essas formulaccedilotildees nessa etapa do Feacutedon deve indicar que Platatildeo

tem um interesse especial em construir uma noccedilatildeo de lsquocausarsquo embora isto ocorra de

maneira progressiva ao longo desta etapa comeccedilando com uma trivial ideia de αἰτία

especialmente no contexto da lsquoresposta segura poreacutem ignorantersquo e desenvolvendo a

noccedilatildeo no contexto da resposta lsquosegura e inteligentersquo onde Formas realmente produzem

algo nos objetos particulares Mesmo que o mecanismo de causaccedilatildeo natildeo seja

completamente expliacutecito nesse contexto veremos que a ideia de Formas como causa

passa a ser bem mais do que a de mera lsquoculparsquo lsquoresponsabilidade porrsquo Todo esse

esforccedilo platocircnico utilizando todos os meios possiacuteveis para expressar uma noccedilatildeo de

lsquocausarsquo numa soacute etapa do diaacutelogo nos faz rejeitar o pensamento de Vlastos de que

nenhuma dessas formulaccedilotildees eacute utilizada por Platatildeo com o fim de expressar qualquer

noccedilatildeo de causa131

130 Hackfort 1998 p 143-144

131 Vlastos 1969 p 146

172

Nesta etapa a noccedilatildeo fraca trivial de lsquocausarsquo eacute amparada principalmente pelo uso

do dativo numa lista de exemplos apresentados por Platatildeo que satildeo a principal fonte de

explicaccedilatildeo da ideia de lsquoFormarsquo como causa

(i) Beleza ldquoEacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι

τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ καλά) (100d7-8)

(ii) Beleza Grandeza Pequenez ldquoEacute por causa da beleza que as coisas belas

satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ καλά) e ldquoeacute por causa da grandeza que as

coisas grandes se tornam grandes as maiores e por causa da pequenez

que as coisas menores se tornam menoresrdquo (καὶ μεγέθει ἄρα τὰ μεγάλα

μεγάλα καὶ τὰ μείζω μείζω καὶ σμικρότητι τὰ ἐλάττω ἐλάττω) (100e2-

6)

(iii) Dois ldquoE vocecirc gritaria bem alto que natildeo conhece qualquer outra maneira

de cada coisa se originar exceto pela participaccedilatildeo em cada Forma

apropriada na qual venha a participar e nesses casos vocecirc natildeo possui

qualquer outra causa para algo tornar-se dois a natildeo ser a sua participaccedilatildeo

no doisrdquo (καὶ μέγα ἂν βοῴης ὅτι οὐκ οἶσθα ἄλλως πως ἕκαστον

γιγνόμενον ἢ μετασχὸν τῆς ἰδίας οὐσίας ἑκάστου οὗ ἂν μετάσχῃ καὶ ἐν

τούτοις οὐκ ἔχεις ἄλλην τινὰ αἰτίαν τοῦ δύο γενέσθαι ἀλλ᾽ ἢ τὴν τῆς

δυάδος μετάσχεσιν) (101c2-5)

Ainda que todos os indiacutecios textuais sugiram que Platatildeo estaacute desenvolvendo uma

noccedilatildeo de αἰτία eacute realmente difiacutecil entender com precisatildeo o que exatamente significa

173

dizer que ldquoeacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ

πάντα τὰ καλὰ καλά)rdquo (100d7-8) Agrave luz da lsquohipoacutetese das Formasrsquo que o contexto sugere

que se considere o que Platatildeo procura dizer com isto eacute que existe uma uacutenica Forma ndash o

belo em si ndash que eacute causarazatildeoresponsaacutevel (αἰτία) por fazer com que tudo que eacute belo

seja belo por causa da sua participaccedilatildeo na beleza Mas ainda assim natildeo fica claro que

tipo de αἰτία eacute esta e nem como ela seraacute uacuteltil para provar a imortalidade da alma Natildeo haacute

nenhuma indicaccedilatildeo de como entidades metafiacutesicas atuam no mecanismo de causaccedilatildeo

que Platatildeo por alguma razatildeo natildeo explicita

Neste contexto se Forma eacute uma αἰτία ndash e tudo indica que ela eacute ndash isto significa

apenas que as coisas satildeo e se tornam o que elas satildeo atraveacutes da participaccedilatildeo nas Formas

(100b-e 101c) Assim na ausecircncia de informaccedilatildeo suficiente sobre o mecanismo de

causaccedilatildeo apresentado por Platatildeo parece prudente consentir que o filoacutesofo estaacute

trabalhando com o sentido primaacuterio de αἰτία neste contexto que eacute a ideia de

lsquoresponsabilidadersquo ou lsquoacusaccedilatildeorsquo Gallop explica que aplicado a agentes humanos αἰτία

significa responsaacutevel ou culpado (cf 116c8) e o verbo cognato significa acusar

ou culpar Este conceito que estaacute enraizado na noccedilatildeo de responsabilidade humana (cf

98e2-99a4) eacute provavelmente a ideia baacutesica no contexto da primeira resposta ndash a mais

segura poreacutem ignorante132 Portanto quando dizemos que a lsquoFormarsquo eacute a αἰτία estamos

dizendo simplesmente que ela eacute lsquoresponsaacutevel por fazer com que algo seja ou se torne o

que ele eacute pela sua participaccedilatildeo ou comunhatildeo nela como na ideia de que as coisas belas

participam no belorsquo (μετέχει τοῦ καλοῦ) (100c5-6) Essa parece a opccedilatildeo mais razoaacutevel

na ausecircncia de explicaccedilotildees mais detalhadas que possam garantir uma noccedilatildeo de αἰτία

132 Gallop 2002 p169

174

ainda sem um compromisso metafiacutesico profundo Portanto a noccedilatildeo de lsquocausarsquo eacute

bastante limitada e chega ateacute a ser tautoloacutegica lsquoeacute por causa da beleza que todas as

coisas belas satildeo belasrsquo lsquotodas as coisas belas satildeo belas por causa da belezarsquo Certamente

por causa desse vaacutecuo de informaccedilotildees suficientes sobre a noccedilatildeo de lsquocausarsquo e seu

mecanismo de causaccedilatildeo eacute que Platatildeo sugere que essa resposta eacute a mais segura no

sentido de que jaacute aponta para lsquoFormasrsquo como causa rompendo completamente com a

ideia de causa dos filoacutesofos da natureza mas ainda assim eacute ignorante por natildeo ter

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente sendo assim vaga inconsistente e tautoloacutegica

Mas eacute importante lembrar que a maioria dos comentadores acredita que neste

contexto da lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo a noccedilatildeo de causa jaacute deve ser

interpretada agrave luz de uma teoria metafiacutesica completa das Formas sendo as Formas

objetos com existecircncia133 Hackfort em seu comentaacuterio canocircnico do Feacutedon sugere que

a noccedilatildeo de causa que Platatildeo apresenta neste contexto deve ser entendida agrave luz da

doutrina das Formas134

A nossa pesquisa confirma que agora lsquoFormasrsquo podem ser interpretadas como

lsquoFormasrsquo com base no contexto anterior (argumento das afinidades) e contexto imediato

(no proacuteximo passo Platatildeo estabelece uma terminologia padratildeo para lsquoFormasrsquo)

Portanto quando Soacutecrates pela primeira vez hipotetiza a existecircncia de coisas como

lsquobelo em si e por si bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo (100b5-7) ele

mesmo lembra que natildeo estaacute falando de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas daquilo natildeo

havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) No argumento das afinidades as lsquoFormasrsquo satildeo

133 Cf Vlastos 1969 p298

134 Hackfort 1998 p146

175

consistentemente caracterizadas como entidades metafiacutesicas Antes de avanccedilar com a

noccedilatildeo de causa vejamos novamente um breve apanhado de algumas passagens em que

as personagens tratam lsquoFormasrsquo como se jaacute fossem velhas conhecidas e as personagens

pressupotildee um saber a respeito delas como facilmente compreensiacutevel e sem necessidade

de uma fundamentaccedilatildeo detalhada135

bull Primeiro estaacutegio do diaacutelogo pela primeira vez Soacutecrates introduz coisas

como o justo em si no diaacutelogo ldquoafirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo (φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν) (65d4-5) Ainda

que seja a primeira vez que o filoacutesofo apresente esse tipo de coisa e sem

qualquer explicaccedilatildeo adicional Siacutemias parece conhecer bem essas coisas

ldquoPor Zeus claro que simrdquo Soacutecrates complementa ldquoestou falando de

todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila e todas as

demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacuterdquo (τῆς

οὐσίας ὅ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) (65d13-e1) Juntamente com isto haacute

duas questotildees fundamentais sobre essas coisas em si ldquoE alguma vez

vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo ldquoE vocecirc jaacute

alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por meio

do corpordquo(65d-e) Neste contexto as perguntas ainda natildeo estatildeo

comprometidas com uma teoria metafiacutesica A questatildeo levantada eacute

concernente agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento lsquoverrsquo eacute simplesmente uma

135 Schafer 2012 p152

176

referecircncia aos sentidos As coisas sobre as quais fala satildeo captadas pela

alma pura sem a mediaccedilatildeo corporal136

bull Argumento da reminiscecircncia a mesma questatildeo do tipo φαμέν τι εἶναι

volta a ser empregada em 74a9-13 Digamos como presumo que existe

um Igual (φαμέν πού τι εἶναι ἴσον) Soacutecrates se refere ao lsquoigual em si

mesmorsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) que passa a ser o exemplo principal no

argumento (74a 74c 74e) Siacutemias fala que eles natildeo cessam de falar de

coisas como ldquoo Belo o Bom e toda essecircncia dessa naturezardquo (καλόν τέ τι

καὶ ἀγαθὸν καὶ πᾶσα ἡ τοιαύτη οὐσία) (76d) Ao final do argumento

Siacutemias afirma que as duas coisas satildeo necessaacuterias as coisas das quais eles

falavam devem existir (ταῦτα ἔστιν) assim como tambeacutem as nossas

almas antes do nosso nascimento (καὶ τὴν ἡμετέραν ψυχὴν εἶναι καὶ πρὶν

γεγονέναι ἡμᾶς) (76e) Neste contexto jaacute haacute indiacutecios de que Platatildeo estaacute

utilizando uma teoria para apoiar o argumento da reminiscecircncia mas

ainda eacute difiacutecil entender com clareza a distinccedilatildeo entre igual em si e coisas

iguais entre aquilo que eacute nobre e as coisas vulgares e deficientes Eacute

possiacutevel reconhecer no maacuteximo um esboccedilo incipiente de uma teoria

segundo a qual haacute duas classes de coisas uma representada no diaacutelogo

pelo lsquoigual em sirsquo em contraste com a outra classe representa pelas

multiplicidade de lsquocoisas iguaisrsquo as quais satildeo vulgares e deficientes

quando comparadas com o lsquoigual em sirsquo

bull Argumento das afinidades o argumento inicia com um lembrete de

que vatildeo tratar daquela mesma essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) sobre a qual

136 Dancy 2007 p246

177

estavam discutindo antes Mas neste contexto pela primeira vez Platatildeo

apresenta uma consistente caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo O exemplo

primordial no argumento da reminiscecircncia ndash αὐτὸ τὸ ἴσον ndash volta a ser

mencionado ao lado de outros exemplos ldquoO igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em sirdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d) mas agora se sabe que essas coisas fazem

parte de uma classe de entidades especiais que Platatildeo caracteriza bem

neste argumento porque a prova da imortalidade da alma depende da

semelhanccedila e afinidade entre alma e lsquoFormasrsquo Eacute neste contexto em que

pela primeira vez no diaacutelogo as propriedades de trancendecircncia

invisibilidade imortalidade eternidade uniformidade imutabilidade e

outras propriedades das lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas com detalhes

inclusive num viacutevido contraste com as coisas que integram uma outra

classe de objetos as coisas sensiacuteveis

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento antes de apresentar a sua

hipoacutetese Soacutecrates lembra que vai falar de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas

daquilo natildeo havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) Entatildeo Soacutecrates

hipotetiza que ldquohaacute algo como belo em si e por si bom grande e todas as

demais coisas como essasrdquo (εἶναί τι καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν

καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7) O contexto anterior (argumento

das afinidades) e o contexto imediato (a introduccedilatildeo de uma terminologia

especializada para Formas) indicam que Platatildeo estaacute tratando de entidades

metafiacutesicas

178

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento o narrador Feacutedon fala que

os amigos de Soacutecrates concordaram com ele de que cada uma das

Formas existe (εἶναί τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b)

Apesar de jaacute termos suporte textual suficiente para entendermos que lsquoFormasrsquo

satildeo entidades metafiacutesicas Formas platocircnicas ainda estamos limitados pela texto que na

ausecircncia de detalhes nos convida a interpretar a noccedilatildeo de causa como sendo a mais

baacutesica possiacutevel ateacute que Platatildeo desenvolva uma noccedilatildeo mais sofisticada

Portanto no iniacutecio natildeo eacute plausiacutevel afirmar que uma ordem superior de realidade

literalmente causa um determinado evento Na ausecircncia de suporte textual e filosoacutefico o

sentido regular da palavra αἰτία ndash ser responsaacutevel ou culpado ndash deve ser preferido

Na proacutexima etapa teremos um contexto renovado sobretudo no que tange agraves Formas

um vocabulaacuterio especializado uma terminologia especiacutefica para Formas aparece pela

primeira vez e se firma no diaacutelogo Aleacutem disso uma explanaccedilatildeo sobre lsquoFormas em sirsquo e

lsquoFormas opostasrsquo traratildeo uma nova compreensatildeo da noccedilatildeo de causa no diaacutelogo

65 Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c

Ateacute agora eacute importante reconhecer que a primeira tentativa de contruir uma

noccedilatildeo de αἰτία aponta para a lsquoFormarsquo como sendo a αἰτία de cada coisa Imputa-se ao

lsquobelo em sirsquo a responsabilidade pelas coisas serem ou tornarem-se o que elas satildeo A

ideia ainda eacute limitada imprecisa e o proacuteprio Platatildeo faz questatildeo de mostrar isto no texto

chamando essa primeira tentativa de mais segura do que qualquer outra tentativa de

encontrar uma causa apresentada pelos filoacutesofos da natureza mas ainda assim

179

lsquoignorantersquo sem fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente Eacute necessaacuterio passar a uma nova

tentativa de construccedilatildeo da noccedilatildeo de causa a partir de 102a Este posterior

desenvolvimento seraacute fundamental para a compreensatildeo do argumento final em si que eacute

introduzido no dialogo apenas em 105c

O texto indica o momento de transiccedilatildeo da primeira para a segunda tentativa de

construir uma noccedilatildeo de causa A conversa inesperada entre Equeacutecrates e o narrador

Feacutedon indicam essa transiccedilatildeo em 102a-b

(i) Equeacutecrates elogia o filoacutesofo pelo brilhante raciociacutenio apresentado

(ii) O narrador Feacutedon ratifica que todos os presentes concordaram com a

exposiccedilatildeo e Equeacutecrates acrescenta que eles que natildeo estiveram laacute

tambeacutem concordaram

(iii) Equeacutecrates pede que o narrador revele o que aconteceu depois

(iv) Antes de revelar o que aconteceu depois o narrador Feacutedon salienta que a

discussatildeo seguinte (uacuteltimo argumento) soacute ocorreu depois que os amigos

concordaram que Formas existem e que por participar nelas as demais

coisas recebem o seu nome

O primeiro passo para o desenvolvimento desta seccedilatildeo eacute a reafirmaccedilatildeo da

hipoacutetese receacutem-apresentada mas agora com uma designaccedilatildeo especial para lsquoFormasrsquo

bull lsquoE foi acordado que cada uma das Formas existersquo (καὶ ὡμολογεῖτο εἶναί

τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b1) e que as demais coisas participando delas

180

(Formas) levam o seu nomersquo (καὶ τούτων τἆλλα μεταλαμβάνοντα αὐτῶν

τούτων τὴν ἐπωνυμίαν ἴσχειν (102b2-3)

Portanto a primeira coisa que Platatildeo procura estabelecer eacute que a hipoacutetese das

lsquoFormasrsquo lsquoFormasrsquo continua sendo essencial nesta nova etapa A lsquooutra respostarsquo que

seraacute apresentada tambeacutem depende dessa hipoacutetese essencial que se estabelece como

condiccedilatildeo sine qua non para a construccedilatildeo de uma noccedilatildeo de causa que sirva de base para

a prova final da imortalidade da alma em 105c-107b)

A outra observaccedilatildeo fundamental eacute que pela primeira vez no diaacutelogo Platatildeo

utiliza o termo εἶδος no diaacutelogo para designar aquilo que ele vinha chamando de lsquocoisa

em sirsquo lsquoessecircnciarsquo lsquoaquilo que eacute lsquoo belo em sirsquo Portanto as formulaccedilotildees natildeo

terminoloacutegicas satildeo utilizadas ateacute o contexto da lsquoresposta segura mas ignorantersquo e

somente a partir de 102b observamos a tentativa de fixaccedilatildeo da terminologia Platatildeo

finalmente utiliza um termo especiacutefico ndash εἶδος ndash para marcar a especificidade da

entidade que eacute a lsquocausarsquo das coisas Os termos εἶδος e ἰδέα satildeo os principais termos para

designar essas entidades neste contexto Em 102b-106d temos a sugestatildeo de que satildeo

termos intercambiaacuteveis Aleacutem deles a palavra μορφή tambeacutem aparece carregada do

mesmo significado numa passagem em que Platatildeo fala de τὸ εἶδος e μορφή (103e2-7)

O termo εἶδος jaacute havia aparecido antes no diaacutelogo mas em momento algum para

designar diretamente os elementos singulares da filosofia platocircnica ndash as Formas

inteligiacuteveis

181

bull lsquoa imagem do amadorsquo (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς) (72d9) nesta passagem o

termo possui a sua ideia baacutesica ndash o aspecto exterior a forma visiacutevel de

algo

bull lsquoexistem duas classes de seres a visiacutevel e a invisiacutevelrsquo (δύο εἴδη τῶν

ὄντων τὸ μὲν ὁρατόν τὸ δὲ ἀιδές) (79a6) o termo εἶδος eacute utilizado para

expressar a ideia de lsquoclassesrsquo ou lsquogecircnerosrsquo de existecircncia

bull lsquoa menos que a nossa alma existisse em algum lugar antes de assumir

essa forma humana (εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) vaacuterias vezes εἶδος eacute empregado para

expressar a ideia que fica estabelecida no argumento das reminiscecircncias

ndash a alma existe antes de passar a adquirir a lsquoformarsquo o lsquoaspectorsquo ou

mesmo a lsquoespeacuteciersquo humana (Cf76c 79b 87a 92b)

bull lsquoSiacutemias tem duacutevidas e tambeacutem receia que a alma seja algo mais divino e

mais belo do que o corpo e ainda assim pereccedila por ser um tipo de

harmoniarsquo (Σιμμίας ἀπιστεῖ τε καὶ φοβεῖται μὴ ἡ ψυχὴ ὅμως καὶ

θειότερον καὶ [91d] κάλλιον ὂν τοῦ σώματος προαπολλύηται ἐν

ἁρμονίας εἴδει οὖσα) (91c9-d1-2) Aqui εἶδος expressa mais uma vez a

ideia de um lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de existecircncia A alma poderia perecer pelo

seu gecircnero de existecircncia ser lsquoum tiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de harmonia

bull lsquoSe ele me mostrasse essas coisas eu estaria pronto a parar de buscar

qualquer outro tipo de causarsquo (καὶ εἴ μοι ταῦτα ἀποφαίνοι

παρεσκευάσμην ὡς οὐκέτι ποθεσόμενος αἰτίας ἄλλο εἶδος) (98a1-2)

Esta eacute uma referecircncia a Anaxaacutegoras segundo o qual o νοῦς seria o

responsaacutevel pela ordenaccedilatildeo e causa de todas as coisas (νοῦς ἐστιν ὁ

182

διακοσμῶν τε καὶ πάντων αἴτιος) (Cf 97c1-2) O termo εἶδος expressa

meramente um lsquotiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de causa Se Anaxaacutegoras pudesse

demonstrar a αἰτία de todas as coisas Soacutecrates dispensaria a busca por

outro lsquotiporsquo de causa Mas o filoacutesofo se desponta com Anaxaacutegoras e

pouco depois utiliza o termo εἶδος com o mesmo sentido para falar de um

lsquooutro tipo de causarsquo aquele que Soacutecrates encontra por si mesmo

Soacutecrates entatildeo passa a demonstrar o lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de causa (τῆς

αἰτίας τὸ εἶδος) que descobriu a partir de proacutepria investigaccedilatildeo

investigaccedilatildeo (100b4-6) lsquoesse outro tipo de causarsquo tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de algo como lsquoo Belo em sirsquo lsquoo Bom em sirsquo

Portanto a partir de 102b temos pela primeira vez no diaacutelogo os termos εἶδος e

ἰδέα (utilizados intercambiavelmente) para falar de entidades inteligiacuteveis que satildeo

responsaacuteveis por fazer com que as coisas sejam ou se tornem o que elas A partir de

agora os termos εἶδος e ἰδέα satildeo empregados consistentemente como terminologia

especializada para Formas Vejamos uma tabela com as ocorrecircncias de termos para

Formas neste contexto e depois uma breve apreciaccedilatildeo considerando o contexto de cada

passagem

102b1 τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν

102d6 αὐτὸ τὸ μέγεθος

183

103e3 αὐτὸ τὸ εἶδος

103e5 τὴν ἐκείνου μορφὴν

104d9-10 ἐκείνῃ τῇ μορφῇ

104b9 ἐκείνην τὴν ἰδέαν

104c7 τὰ εἴδη τὰ ἐναντία

104d2 τὴν αὑτοῦ ἰδέαν

104d6 ἡ τῶν τριῶν ἰδέα

104d9 ἡ ἐναντία ἰδέα

104e1 ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα

105d13

τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν

106d6 τὸ τῆς ζωῆς εἶδος

184

Vejamos de forma bastante resumida cada exemplo em seu contexto antes de

passarmos agrave anaacutelise desta seccedilatildeo

bull 102b1 esta primeira ocorrecircncia de εἶδος revela o termo aplicado

diretamente a entidades que possuem existecircncia (cada εἶδος existe) e

Platatildeo procura mostrar a relaccedilatildeo entre εἶδος e as coisas a participaccedilatildeo

das coisas em um εἶδος eacute a causa delas possuiacuterem as suas qualidades e

assim puderem ser chamadas pelo seu nome apropriado

bull 103e2-5 Platatildeo explica a relaccedilatildeo entre a entidade inteligiacutevel e as coisas

A Forma em si (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de levar o seu nome para sempre

(εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον) Mas existe tambeacutem outra coisa que natildeo eacute uma

lsquoForma em sirsquo (αὐτὸ τὸ εἶδος) mas tem o privileacutegio de levar um nome

porque possui sempre aquela μορφή (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί) O

contexto sugere que αὐτὸ τὸ εἶδος e μορφή se referem a Formas Esse

jogo entre palavras de mesmo domiacutenio semacircntico eacute repetido novamente

em 104d9-10 mas com ἰδέα e μορφή

bull 104b9-c1 Platatildeo introduz o termo ἰδέα para designar lsquoFormarsquo as coisas

que carregam consigo uma ἰδέα oposta tambeacutem natildeo toleram a ἰδέα

oposta rival Em 104c7 ele desenvolve a explicaccedilatildeo dizendo que natildeo satildeo

apenas τὰ εἴδη τὰ ἐναντία (as Formas opostas) que natildeo toleram a

aproximaccedilatildeo do oposto rival mas os objetos particulares que participam

numa Forma oposta

bull 104d1-3 Quando uma lsquoForma em sirsquo ocupa algo ela lhe impotildee a proacutepria

Forma dela (τὴν αὑτοῦ ἰδέαν αὐτὸ) e uma Forma oposta Em 104d9-10

185

Soacutecrates salienta que a respeito desse tipo de coisa (as coisas ocupadas

por lsquoFormas em sirsquo) a Forma oposta (ἡ ἐναντία ἰδέα) jamais viraacute sobre

aquela Forma rival (ἐκείνῃ τῇ μορφῇ) que estaacute nela Aqui temos ἰδέα e

μορφή como termos intercambiaacuteveis

bull 104d6 A etapa seguinte providencia um exemplo numeacuterico que figura

como chave hermenecircutica para a compreensatildeo da passagem Pela

primeira vez se apresenta de maneira especiacutefica a Forma de algo a

Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) Acompanhando a ideia anterior

quando Forma do trecircs ocupa algo ela faz com que ele seja

necessariamente trecircs e iacutempar A Forma do trecircs traz para a coisa que

ocupa (i) a proacutepria Forma ndash razatildeo pela qual ela eacute necessaacuteriamente trecircs

(ii) a Forma oposta correspondente ndash a Forma Iacutempar A Forma rival do

par natildeo poderaacute vir sobre a Forma oposta que nela estaacute Formas opostas

natildeo podem coexistir naquilo que eacute ocupado pela Forma em si e pela

Forma oposta que a Forma em si traz Temos um exemplo claro em

104e1 lsquoassim a Forma do par jamais sobreviraacute ao trecircsrsquo (ἐπὶ τὰ τρία ἄρα

ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει)

bull 105d13-14 o mesmo exemplo ndash a Forma do par ndash eacute relembrado no

argumento final lsquoO que haacute pouco concordaacutevamos que natildeo admite a

Forma do parrsquo (τὸ μὴ δεχόμενον τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν τί νυνδὴ

ὠνομάζομεν) Cebes responde o iacutempar (105d13-14) Este exemplo daacute

iniacutecio a uma lista que finda com a conclusatildeo de que a alma eacute imortal o

justo natildeo admite a injusticcedila a cultura natildeo admite o inculto o imortal natildeo

186

admite a morte a alma natildeo admite a morte Jaacute que a alma natildeo admite a

morte ela eacute imortal (105d16-e7)

bull 106d5-7 ao final Soacutecrates relaciona a alma com trecircs coisas que satildeo

imortais e nunca perecem o deus (ὁ θεὸς) a proacutepria Forma de vida (αὐτὸ

τὸ τῆς ζωῆς εἶδος) e tudo mais que seja imortal (τι ἄλλο ἀθάνατόν ἐστιν)

(106d5-7) Esse tipo de contruccedilatildeo lsquoa Forma de Xrsquo aparece apenas trecircs

vezes (i) a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) (104d6) A Forma do par (ἡ

τοῦ ἀρτίου ἰδέα) (104e1 105d13-14) A Forma da vida (τὸ τῆς ζωῆς

εἶδος) (106d5-6)

651 A grandeza casual (102b-d)

A questatildeo inicial nesta etapa eacute lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor

do que Feacutedonrsquo (102b) Antes de prosseguir na anaacutelise conveacutem observar que ela nos

remete ao contexto anterior e sugere a evoluccedilatildeo filosoacutefica da argumentaccedilatildeo quando

Soacutecrates buscava as causas das coisas sob a influecircncia dos filoacutesofos da natureza

acreditava que estava correto quando pensava que ao colocar um homem alto ao lado de

um homem baixo aquele se apresentava maior do que o menor pela altura da cabeccedila

(96e) Mas quando descobre seu proacuteprio modo de filosofar e descobre a verdadeira

causa das coisas ele sugere que natildeo se deve admitir que algueacutem eacute maior do que outro

pela cabeccedila mas lsquoeacute por causa da grandeza que as coisas grandes satildeo grandesrsquo (μεγέθει

ἄρα τὰ μεγάλα μεγάλα) (100e-101a) Essa questatildeo eacute retomada no uacuteltimo argumento Eis

os trecircs estaacutegios da discussatildeo

187

(i) X eacute maior do que Y pela cabeccedila (resposta completamente sem sentido)

(96d-e 101a)

(ii) X eacute maior do que Y pela grandeza (lsquoresposta mais segura poreacutem

ignorantersquo) (100e-101a)

(iii) X eacute maior do que Y pela grandeza acidental (102c-d)

(iv) lsquoA Grandeza essencialrsquo (resposta segura e inteligente) (102d-e)

O problema que se coloca agora eacute que Siacutemias eacute ao mesmo tempo maior do que

Soacutecrates e menor do que Feacutedon Platatildeo procura explicar em termos da relaccedilatildeo entre as

coisas como no caso em que X (Siacutemias) eacute maior do que Y (Soacutecrates) e Y (Soacutecrates) eacute

menor do que X (Siacutemias) O primeiro ponto eacute reafirmar a rejeiccedilatildeo do tipo de lsquocausarsquo

apresentado pelos filoacutesofos da natureza Natildeo eacute pela cabeccedila que algueacutem eacute maior do que

outro Esta rejeiccedilatildeo eacute expressa nos termos

bull Natildeo eacute pela natureza de Siacutemias natildeo eacute por Siacutemias ser Siacutemias (ou nos

termos dos filoacutesofos da natureza natildeo eacute simplesmente pela cabeccedila de

Siacutemias) que ele eacute maior

bull Natildeo eacute por Feacutedon ser Feacutedon (natildeo eacute por Feacutedon ser maior natildeo eacute pela

cabeccedila de Feacutedon) que Siacutemias eacute menor do que ele

Existe outro erro que Platatildeo nos previne de cometer achar que ao dizer

lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor do que Feacutedonrsquo isto corresponde

188

literalmente agrave verdade (102b9-c1) Neste ponto Platatildeo introduz uma ideia de lsquograndeza

casualrsquo que natildeo pode ser tomada como a verdade final

bull Siacutemias eacute maior do que Soacutecrates mas lsquopela grandeza que ele casualmente

temrsquo (ἀλλὰ τῷ μεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων) (102c1-3)

Essa grandeza casual se mostra apenas nas relaccedilotildees a grandeza em Siacutemias

excede a pequenez em Soacutecrates enquanto a pequeneza em Siacutemias eacute excedida pela

grandeza em Feacutedon A grandeza ou pequenez em Siacutemias eacute o produto do nosso ato de

comparaacute-lo com outro Soacutecrates entatildeo escolhe um exemplo em que Siacutemias natildeo eacute nada

aleacutem do centro ldquoacidentalrdquo de duas relaccedilotildees opostas grandeza e pequenez137

Esse tipo de lsquoqualidade acidentalrsquo que certos elementos possuem nas relaccedilotildees

com outros jaacute foi sugerido no argumento das reminiscecircncias pedras e gravetos agraves vezes

parecem iguais para uns e desiguais para outros Nesta ocasiatildeo Platatildeo dirige a atenccedilatildeo

para lsquoo Igual em sirsquo salientando que existe uma diferenccedila entre o Igual em si e as coisas

iguais (74b-c) Na passagem que agora analisamos Platatildeo inicia com Siacutemias e suas

qualidades casuais e faz um desvio para o elemento que realmente importa nesta seccedilatildeo

lsquoa grandeza em sirsquo Como no argumento das reminiscecircncias Platatildeo poderia muito bem

dizer lsquoa grandez em sirsquo eacute diferente de dizer que algo eacute grande em relaccedilatildeo a alguma

outra coisa Agora estamos tratando de uma entidade especiacutefica e responsaacutevel por outro

tipo de qualidade

137 Cf Burger 1984 p 162

189

OrsquoBrien jaacute havia sugerido Platatildeo comeccedila com uma vaga distinccedilatildeo entre uma

grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) que ele entende como um tipo de lsquograndeza

essencialrsquo e uma grandeza que Siacutemias casualmente possui (ὃ τυγχάνει ἔχων) para

introduzir uma distinccedilatildeo entre lsquoqualidades acidentaisrsquo e lsquoqualidades essenciaisrsquo que se

estabeleceraacute como elemento crucial na prova de Platatildeo (102c) 138 Esta explanaccedilatildeo

continua bastante uacutetil com a uacutenica ressalva de que natildeo vemos indiacutecio suficiente de que

ao falar de grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) Platatildeo jaacute esteja introduzindo a ideia de

lsquograndeza essencialrsquo Platatildeo trata dessa lsquograndeza essencialrsquo em contraste com a

lsquograndeza acidentalrsquo apenas com a introduccedilatildeo da lsquograndeza em sirsquo pouco depois (102d)

A expressatildeo lsquopor naturezarsquo eacute completamente trivial remete ao aspecto fiacutesico (a cabeccedila

como diriam os filoacutesofos da natureza)139

OrsquoBrien tambeacutem afirma que Platatildeo natildeo tem vocabulaacuterio teacutecnico para lsquoacidentalrsquo

e lsquoessencialrsquo e a maneira como Platatildeo expressa a presenccedila dessa qualidade essencial eacute o

uso de lsquosemprersquo e lsquonuncarsquo Alguns elementos carregam qualidades essenciais

perpetuamente

138 OrsquoBrien 1967 p199-200

139 Hackfort (1998 p154) rejeita a tese de OrsquoBrien segundo ele natildeo haacute qualquer indicaccedilatildeo de

que Platatildeo esteja fazendo uma distinccedilatildeo entre predicados essenciais e acidentais Segundo ele o

texto sugere que Siacutemias seria um depoacutesito de Formas Siacutemias eacute concebido como natildeo mais do

que um conteiner de formas um conteiner que sempre permanece o que eacute mas no qual residem

vaacuterias formas entre as quais dois opostos ndash grandeza e pequenez Essa tese de que Siacutemias eacute um

conteiner de Formas enfrenta pelo menos dois problemas baacutesicos mas estaacute claro no texto que a

Forma soacute aparece em 102d (a grandeza em si) e que essa ideia de um depoacutesito de Formas que

admite e acolhe em si Formas opostas (grandeza e pequenez) parece contrariar aquilo que seraacute

dito posteriormente opostos deixam o posto ou perecem na chegada do seu respectivo oposto

190

(i) O fogo eacute sempre quente e nunca frio

(ii) A neve eacute sempre fria e nunca quente

(iii) Trecircs eacute sempre iacutempar e nunca par

(iv) Dois eacute sempre par e nunca iacutempar

(v) E afinal Soacutecrates afirma que a alma estaacute sempre viva e nunca morta 140

Esta qualidade essencial perpeacutetua depende das Formas No argumento das

afinidades Platatildeo jaacute enfatiza que as lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado enquanto objetos particupares estatildeo sempre mudando (78c-e) Agora Platatildeo

mostraraacute que as Formas satildeo as responsaacuteveis pela qualidade essencial (algo que sempre

um item carrega consigo) de certos itens com os quais ela se relaciona Toda a discussatildeo

eacute conduzida para o sujeito principal deste contexto a grandeza em si

652 A Grandeza em si

Siacutemias eacute apenas lsquoacidentalmentersquo maior do que Soacutecrates Por outro lado existem

elementos que apresentam qualidades essenciais como diraacute Soacutecrates depois trecircs eacute

essencialmente iacutempar O ponto central nesta etapa eacute que os objetos particulares satildeo

constituiacutedos de qualidades que eles casualmente adquirem e perdem de acordo com as

suas relaccedilotildees ao longo do tempo qualidades que chamariacuteamos de acidentais Pode ser

que em algum periacuteodo do tempo Siacutemias fosse menor do que Soacutecrates e maior do que

140 OrsquoBrien 1967 p199-200

191

Feacutedon e em outro periacuteodo maior do que Soacutecrates e menor do que Feacutedon Em um dado

momento Siacutemias ocorre de ter uma qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e

Soacutecrates e em outro dado momento essa qualidade acidental eacute perdida para dar lugar a

outra qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e Soacutecrates Mas a qualidade essencial

eacute aquilo que um objeto particular possui atraveacutes da sua relaccedilatildeo com a Forma cujo

caraacuteter eacute singular e se mostra a mesma em todo tempo e em todas as relaccedilotildees Esta

discussatildeo inicial nos leva diretamente para a Forma ndash a lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ

μέγεθος) (102d6-8)

653 A Grandeza em si e a grandeza em noacutes

Possuidor de qualidades acidentais Siacutemias pode ser ao mesmo tempo μέγεθος

καὶ σμικρότητα (102c4-5) e possuir tanto o nome pequeno quanto o grande (102c11-

12) Mas o mesmo natildeo pode acontecer com lsquoa grandeza em sirsquo ou com lsquoa grandeza em

noacutesrsquo (102d)

bull A grandeza em si nunca admite ser ao mesmo tempo grande e pequena

bull A grandeza em noacutes jamais aceita o pequeno (oposto)

Eacute neste ponto que Platatildeo apresenta o princiacutepio da incompatibilidade de opostos

um oposto nunca seraacute seu oposto Existem coisas que jamais apresentam a

versatilidade de Siacutemias com suas qualidades acidentais ndash grandeza e pequenez ao

mesmo tempo ndash por causa da sua relaccedilatildeo com a lsquoForma em sirsquo e lsquoa Forma em noacutesrsquo

192

O termo αὐτὸ τὸ μέγεθος certamente eacute uma referecircncia a uma Forma mas natildeo

temos detalhes para saber se Platatildeo faz uma distinccedilatildeo no diaacutelogo entre Formas

transcendentes e Formas imanentes ao falar de lsquograndeza em sirsquo e lsquograndeza em noacutesrsquo

Mas essa distinccedilatildeo entre αὐτὸ τὸ μέγεθος e τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος estaacute longe de ser clara no

diaacutelogo natildeo fica claro se Platatildeo estaacute falando de uma Forma transcendente e de uma

Forma imanente e que o status ontoloacutegico da primeira diferente do da segunda como

Keyt defende inclusive afirmando que a Forma transcendente eacute por natureza

indestrutiacutevel enquanto a Forma imanente pode ser destruiacuteda141 Mas na verdade ateacute

agora nem mesmo sabemos ao certo se τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma referecircncia a Formas

imanentes142 Apenas no desenvolvimento da discussatildeo eacute que Platatildeo deixaraacute claro que

τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma Forma Apenas a partir de 104d eacute que temos a explicaccedilatildeo

completa existem Formas que ocupam um particular e que carregam consigo outra

Forma Mesmo nesse contexto seraacute difiacutecil entender a distinccedilatildeo no status ontoloacutegico das

duas Formas Mas Keyt estaacute parcialmente correto em ao observar que o contexto nos

levaraacute a pensar que a Forma na coisa (o que poderiacuteamos chamar de Forma imanente)

sofre uma experiecircncia negativa ndash destruiccedilatildeo ndash com a chegada da Forma oposta Mas eacute

bom lembrar que essa destruiccedilatildeo talvez natildeo seja literal porque a ideia estaacute vinculada e

se expressa por meio da metaacutefora militar Ainda assim em momento alguma o texto

sugere que a Forma que traz consigo a outra Forma pode sofrer destruiccedilatildeo a partir de

104d a metaacutefora militar perde a sua forccedila Em vez da ameaccedila de uma oposta rival que

pode destruir a Forma que ocupa um objeto temos uma Forma que natildeo admite em

141 Keyt 1963 p168

142 Cf Gallop 2002 p 195

193

qualquer hipoacutetese a ameaccedila de uma Forma oposta rival Mas ao final Platatildeo natildeo deixa

claro se temos aqui a claacutessica distinccedilatildeo entre Forma transcendente e imanente Agora

neste contexto inicial o que eacute essencial eacute observar que Platatildeo marca a distinccedilatildeo entre

duas coisas lsquoa Forma em sirsquo e lsquoalgo em noacutesrsquo E a repeticcedilatildeo desta distinccedilatildeo sugere que

ela tem importacircncia nesta etapa

bull a grandeza em noacutesrsquo (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος) (102d6-8)

bull o pequeno em noacutes (τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν) (102de5-6)

bull o oposto que estaacute em noacutes (τὸ ἐν ἡμῖν) (103b4-5)

Este algo lsquoem noacutesrsquo (ἐν ἡμῖν μέγεθος) nem sempre eacute intepretado como Forma

aleacutem de Formas imanentes pode tambeacutem ser interpretada como um tipo especial de

particular ou ainda como um elemento imanente que nem eacute uma Forma nem mesmo um

particular

bull OrsquoBrien entende que algo ἐν ἡμῖν natildeo eacute uma Forma mas um tipo

especial de particular que ele chama de lsquoparticularizaccedilatildeorsquo que como as

Formas natildeo podem admitir seus opostos Mas seu status ontoloacutegico se

manteacutem ndash eles satildeo particulares natildeo um terceiro tipo de entidade143

143 OrsquoBrien 1967 p201-202

194

Mas a nossa leitura baseada no contexto imediato tende a privilegiar a ideia de

que haacute dias Formas em jogo aqui ndash a Forma em si e a Forma em noacutes ndash ainda que Gallop

advirta que a terminologia apresentada por Platatildeo natildeo eacute suficiente para garantir uma

distinccedilatildeo consistente entre Formas lsquoimanentesrsquo e lsquotranscendentesrsquo (embora o contexto

tambeacutem natildeo negue essa ideia)144 Alguns comentadores tendem a enfatizar que Formas

no Feacutedon satildeo Formas imanentes

bull Hackfort entende que ateacute mesmo lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ μέγεθος)

(102d6-8) eacute uma referecircncia a uma Forma imanente porque Soacutecrates estaacute

aqui lidando com isto elementos que se aproximam e residem em

objetos fiacutesicos145

Mas sabemos que eacute possiacutevel que Platatildeo assuma que Formas possuem existecircncia

proacutepria peculiar e independente e ainda assim eacute possiacutevel que elas estejam presentes nas

coisas O inteacuterprete do Feacutedon precisa lidar constantemente com as lacunas deixadas por

Platatildeo num diaacutelogo cujo objetivo natildeo eacute apresentar uma teoria das Formas mas provar a

imortalidade da alma

Mas o ponto essencial eacute que duas Formas estatildeo em jogo aqui lsquoa gradeza em sirsquo

e lsquoa grandeza em noacutesrsquo satildeo Formas O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao

ontoloacutegica entre a lsquoForma em sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica

144 Gallop 2002 p195

145 Hackfort 1998 p150

195

entre elas ndash uma Forma suprema e uma Forma subordinante Essa passagem introduz

um princiacutepio que seraacute desenvolvido apenas em 104d

654 Incompatibilidade de opostos

O princiacutepio que agora Platatildeo se esforccedila para apresentar eacute o da incompatibilidade

dos opostos enquanto Siacutemias pode participar na grandeza e pequenez ao mesmo tempo

nem a lsquograndeza em sirsquo nem lsquoa grandeza em noacutesrsquo aceitaraacute em condiccedilatildeo o seu oposto

Platatildeo expotildee a noccedilatildeo de incompatibilidade de opostos apresentando uma seacuterie de

exemplos ao longo da lsquoresposta segura e inteligente (102d-e)

bull A grandeza em si jamais quer ser grande e pequena ao mesmo tempo

(αὐτὸ τὸ μέγεθος οὐδέποτ᾽ ἐθέλειν ἅμα μέγα καὶ σμικρὸν εἶναι) (102d5-

7)

bull A grandeza em noacutes jamais admite o pequeno e nem quer ser excedida (τὸ

ἐν ἡμῖν μέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σμικρὸν οὐδ᾽ ἐθέλειν

ὑπερέχεσθαι) (102d7-9)

bull Aquilo que eacute grande natildeo ousa ser pequeno (ἐκεῖνο δὲ οὐ τετόλμηκεν

μέγα ὂν σμικρὸν εἶναι) (102e5-6)

bull Por semelhante modo o pequeno em noacutes natildeo quer de modo algum ser ou

tornar-se grande (ὡς δ᾽ αὕτως καὶ τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν οὐκ ἐθέλει ποτὲ

μέγα γίγνεσθαι οὐδὲ εἶναι) (102e5-6)

bull Nem qualquer dos opostos pode ao mesmo tempo permanecer o que era

e ser ou se tornar o seu oposto mas parte em retirada ou perece ao sofrer

196

esse golpe (οὐδ᾽ ἄλλο οὐδὲν τῶν ἐναντίων ἔτι ὂν ὅπερ ἦν ἅμα

τοὐναντίον γίγνεσθαί τε καὶ εἶναι ἀλλ᾽ ἤτοι ἀπέρχεται ἢ ἀπόλλυται ἐν

τούτῳ τῷ παθήματι) (102e8-103a2)

bull O oposto em si de modo algum viria a ser oposto de si mesmo nem o

oposto em noacutes nem o oposto na natureza (αὐτὸ τὸ ἐναντίον ἑαυτῷ

ἐναντίον οὐκ ἄν ποτε γένοιτο οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

(103b4-5)

bull () O oposto jamais seraacute oposto de si mesmo (μηδέποτε ἐναντίον ἑαυτῷ

τὸ ἐναντίον ἔσεσθαι) (103c7-8)

Platatildeo cuidadosamente utiliza uma metaacutefora militar como observa Burnet para

ilustrar essa incompatibilidade146 A lsquoForma em noacutesrsquo e a lsquoForma oposta rivalrsquo satildeo

caracterizados como se fossem inimigos em confronto num campo de batalha quando

um combatente avanccedila o outro eacute obrigado a partir em retirada ou acaba perecendo na

chegada do inimigo Esta viacutevida metaacutefora eacute aplicada incialmente para os opostos

grandeza e a pequenez Quando a pequenez ndash o oposto (τὸ ἐναντίον) da grandeza ndash

avanccedila sobre ela a grandeza possui apenas duas opccedilotildees (102d9-102e2)

(i) Fugir e partir em retirada (ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν)

(ii) Ou sobrevindo a pequenez ser eliminada (ἢ προσελθόντος ἐκείνου

ἀπολωλέναι)

146 Cf Burnet p 102

197

Sendo assim se alguma Forma estaacute em uma determinada coisa essa coisa natildeo

admitiraacute qualquer Forma oposta ela bateraacute em retirada ou pereceraacute

655 Objeccedilatildeo de um anocircnimo (103a-103c)

Depois de apresentar o princiacutepio da incompatibilidade de opostos um

interlocutor anocircnimo tenta relacionar o argumento presente com o primeiro argumento

apresentado ndash argumento ciacuteclico ndash e Soacutecrates aproveita para apresentar as distinccedilotildees

baacutesicas sobretudo explicando que a noccedilatildeo de opostos agora eacute completamente nova

antes se falava de coisas grandes mas agora da grandeza em si A distinccedilatildeo eacute

apresentada em 103b

(i) Primeiro argumento a coisa oposta proveacutem de seu oposto (ἐκ τοῦ

ἐναντίου πράγματος τὸ ἐναντίον πρᾶγμα γίγνεσθαι)

(ii) Uacuteltimo argumento o oposto em si (αὐτὸ τὸ ἐναντίον) jamais pode ser

oposto de si mesmo nem o que estaacute em noacutes (οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν) nem o que

estaacute na natureza (οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

656 Fogo calor neve e frio (103c-d)

Na continuaccedilatildeo Platatildeo enfatiza o papel do portador de opostos O princiacutepio

tambeacutem seraacute aplicado a ele Haacute principalmente trecircs elementos em cena nesta etapa

bull Forma oposta

198

bull Portador da Forma oposta

bull Forma oposta rival

Sabemos que nem a Forma em si nem a Forma oposta podem admitir a Forma

oposta rival Sabemos o que acontece a metafoacutera militar continua operando neste

contexto Mas agora Platatildeo chama atenccedilatildeo para a reaccedilatildeo do portador do oposto quando

a Forma oposta se aproxima o portador do oposto (que natildeo eacute uma Forma) e a Forma

que ele carrega consigo teratildeo de partir em retirada ou perecer Isto ficaraacute claro em 104b

mesmo a coisa que natildeo eacute um oposto mas carrega consigo um oposto natildeo admite a

Forma oposta rival O nuacutemero trecircs (natildeo eacute uma Forma) natildeo admite a Forma oposta rival

ndash par ndash porque carrega consigo a Forma iacutempar Neste caso a metafoacutera militar permanece

viva Seria razoaacutevel pensar num combatente que natildeo possui um inimigo especiacutefico mas

por forccedila de alianccedila estaacute junto ao aliado num campo de batalha e o inimigo do seu

aliado passa a ser o seu inimigo ao se aproximar tambeacutem teraacute de bater em retirada ou

perecer

Platatildeo apresenta uma seacuterie de exemplos nesta seccedilatildeo De iniacutecio temos uma lista

de quatro elementos distintos fogo calor neve e frio Agora fogo e neve satildeo portadores

de opostos e na relaccedilatildeo com as Formas opostas que carregam tambeacutem natildeo admitiratildeo o

oposto rival Os primeiros exemplos satildeo os seguintes em 103c-d

(i) A neve o frio o oposto do frio ndash o calor a neve eacute diferente do frio que

carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do frio ndash o calor ndash a neve

199

se retira ou eacute destruiacuteda Portanto a neve natildeo admite o oposto do frio que

carrega consigo ndash o calor

(ii) O fogo o calor o oposto do calor ndash o frio o fogo eacute diferente do calor

que carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do calor ndash o frio ndash ou

se retira ou eacute destruiacutedo Nesta etapa existe um reforccedilo aleacutem de recusar o

oposto do calor que carrega consigo o fogo jamais permaneceraacute o

mesmo quando se aproxima a frieza ndash jamais seraacute fogo e frio ao mesmo

tempo A ideia lembra a que aparece em 103a nenhum oposto enquanto

permanece o mesmo pode ser ou tornar-se no seu oposto Agora o

princiacutepio tambeacutem se aplica agravequilo que carrega consigo um oposto

Os comentadores debatem se fogo e neve satildeo Formas ou natildeo neste contexto

especialmente se forem considerados no mesmo niacutevel que o exemplo numeacuterico lsquotrecircsrsquo

que seraacute apresentado no proacuteximo passo no diaacutelogo

(i) Vlastos entende que tudo eacute referecircncia a Formas nesta passagem fogo

neve quente frio147

(ii) Hackfort afirma que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo lsquoformas imanentesrsquo que podem

residir em objetos concretos sendo necessaacuterio usar a letra minuacutescula

inicial para distingui-la da Forma transcendente Mas sugere Hackfort

147 Vlastos 1969 p318

200

sugere que Platatildeo provavelmente teria achado complicado especificar

neste ponto o que ele tinha em mente 148

(iii) OrsquoBrien sugere que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo devem ser entendidos como

particularizaccedilotildees da Forma mas pouco depois admite que a verdade eacute

que na presente passagem natildeo podemos dizer se lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo uma

lsquoformarsquo ou uma lsquoparticularizaccedilatildeo da formarsquo149

(iv) Burnet salienta que natildeo foi sugerido em momento algum que o fogo e a

neve satildeo Formas e parece improvaacutevel que sejam assim considerados

Por outro lado trecircs que para o propoacutesito do presente argumento estaacute no

niacutevel do fogo e da neve eacute reconhecido como Forma Burnet entatildeo

ressalta que eacute essa incerteza que cria todas as dificuldades da presente

passagem150

Apesar da incerteza que a falta de detalhes do texto traz tomaremos a posiccedilatildeo de

que nesses exemplos em 105b-c natildeo temos Forma como a a Forma do fogo por

exemplo A nossa conclusatildeo decorre da seguinte observaccedilatildeo no Feacutedon haacute Formas que

trazem Formas opostas para aquilo que ocupam (104d) mas nunca Formas que

participam em Formas e este seria o caso se admitiacutessemos a Forma do fogo segundo

esses exemplos Esta passagem eacute de fundamental importacircncia porque introduz o caso da

alma e o argumento final propriamente dito e seraacute retomado adiante

148 Hackfort 1998 149-150

149 OrsquoBrien 1967 p202 203

150 Burnet 1911 p104

201

O que importa por enquanto eacute observar que Platatildeo apresenta trecircs elementos neste

cenaacuterio um portador de um oposto o oposto portado e o oposto rival O portador

(fogoneve) natildeo eacute uma Forma mas portador da Forma oposta (calorfrio)

Fogo ndash portador (natildeo eacute Forma)

Calor ndash Forma oposta carregada pelo Fogo

Frio ndash Forma oposta rival

657 Os exemplos numeacutericos (103e-104c)

A introduccedilatildeo de exemplos numeacutericos traz um desenvolvimento filosoacutefico

consideraacutevel neste contexto Aqui temos uma passagem de exemplos de coisas fiacutesicas

(fogo neve) para um exemplo numeacuterico que nem sempre eacute bem aceito pelos

comentadores Mas Gallop lembra que a transiccedilatildeo decorrer da aproximaccedilatildeo entre alma e

nuacutemero Natildeo se pode perder de vista que Platatildeo estaacute preparando o terreno para

apresentar a sua uacuteltima prova da imortalidade da alma e exemplos numeacutericos servem

para ligar e ateacute mesmo esconder a seacuteria lacuna entre a alma e as coisas fiacutesicas com as

quais ela foi ateacute agora comparada No uacuteltimo argumento a alma seraacute pensada como

transmissora de vida aos corpos que ocupa assim como o fogo e a neve transmitem

calor e frio sendo essa analogia enfraquecida pelo fato de que a alma ao contraacuterio do

fogo e da neve natildeo eacute observaacutevel (79b7-15) Portanto a transiccedilatildeo para a alma eacute

202

facilitada pelo exemplo de trecircs uma vez que nuacutemeros assim como a alma natildeo satildeo

sensiacuteveis observaacuteveis em si mesmos151

Desde o iniacutecio Formas satildeo protagonistas na discussatildeo

bull A proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute apresentada como um tipo de

dignataacuteria a quem pertence originalmente o direito de portar seu nome

para sempre

bull Natildeo somente a proacutepria Forma (μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de ter o

mesmo nome para sempre mas tambeacutem certas coisas que natildeo satildeo

Formas mas que tem sempre a sua Forma (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν

ἀεί) (103e2-5)

bull As coisas que possuem uma Forma e manteacutem um viacutenculo essencial com

ela sem que jamais dela se separe satildeo as coisas que tambeacutem possuem o

direito de portar seu nome para sempre (104a)

Portanto a proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute um tipo de dignataacuteria a quem

pertence originalmente o direito de portar seu nome para sempre Parece que Platatildeo

utiliza a imagem de membros de famiacutelias de alto prestiacutegio suas dignidades possuem o

direito de portar os tiacutetulos de nobreza da famiacutelia perpetuamente Formas satildeo aquelas que

possuem naturalmente esse privileacutegio Mas assim como em famiacutelias da nobreza tiacutetulos

de honra podem ser concedidos agravequeles que se agregam agrave famiacutelia por exemplo pelo

viacutenculo de casamento Essa metaacutefora sutilmente elaborada eacute o que daacute sustentaccedilatildeo a essa

passagem assim como a metaacutefora militar sustenta a ideia da incompatibilidade dos

151 Gallop 2002 p200

203

opostos Os opostos natildeo podem coexistir mas a Forma e aquilo que a possui estatildeo em

alianccedila perpeacutetua Vejamos os exemplos (104-c)

bull O nuacutemero trecircs possui um viacutenculo essencial com o iacutempar (Forma) ele

deve ser sempre designado com o seu nome (trecircs) mas tambeacutem com o

nome iacutempar (o nome da Forma que carrega consigo) O trecircs eacute sempre

iacutempar porque possui a Forma do iacutempar o que lhe agracia com o direito

de ldquonobrezardquo de ter o tiacutetulo para sempre

bull O mesmo se aplica ao nuacutemero cinco e ao demais nuacutemeros iacutempares eles

natildeo satildeo o iacutempar (τὸ περιττὸν a Forma) mas lsquocada um deles eacute sempre

iacutemparrsquo (ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός) (tem o direito de serem

perpetuamente chamados de iacutempares pelo viacutenculo inalienaacutevel com a

Forma)

bull O mesmo se aplica ao dois ao quatro e a todos os nuacutemeros pares eles

natildeo satildeo o par (τὸ ἄρτιον) mas lsquocada um deles eacute sempre parrsquo (ἕκαστος

αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί)

Em todos esses exemplos numeacutericos temos a relaccedilatildeo essencial entre um portador

que natildeo eacute uma Forma mas que possui um viacutenculo perpeacutetuo com uma Forma o que lhe

daacute o direito de ser chamado para sempre de certo nome Mas no primeiro exemplo

Platatildeo sugere que esse portador possui uma relaccedilatildeo com outra Forma a qual tambeacutem

lhe garante seu proacuteprio nome o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome (trecircs) Se o trecircs deve ser sempre designado com nome iacutempar por causa do seu

204

viacutenculo com o iacutempar (a Forma) o texto fortemente sugere que o trecircs eacute chamado de trecircs

por causa da sua relaccedilatildeo essencial com outra Forma Mas isto natildeo fica claro agora e

posteriormente teremos mais indiacutecios que apoiam esta tese que talvez seja essencial para

a compreensatildeo da uacuteltima prova da imortalidade da alma no Feacutedon

658 Coisas que natildeo admitem opostos (104b-c)

Neste proacuteximo passo temos algumas das passagens mais disputadas no Feacutedon

Primeiro Platatildeo busca esclarecer que natildeo eacute apenas o oposto que natildeo admite o oposto

rival mas tambeacutem o portador deste oposto A mesma ideia da incompatibilidade de

opostos toma lugar no diaacutelogo mas a ecircnfase recai sobre o portador dos opostos

ldquoNatildeo satildeo apenas aqueles opostos dos quais falamos (opostos muacutetuos)

que natildeo se admitem entre si mas tambeacutem as coisas que natildeo apresentam

respectivos opostos mas possuem um oposto (Forma) natildeo admitem

aquela Forma oposta ao oposto que estaacute neles (ἐκείνην τὴν ἰδέαν ἣ ἂν τῇ

ἐν αὐτοῖς οὔσῃ ἐναντία ᾖ) Se ocorresse de ela se aproximar essas coisas

que possuem opostos bateriam em retirada ou pereceriamrdquo (104b6-c3)

O exemplo do nuacutemero trecircs revela claramente o tipo de coisa em questatildeo o

nuacutemero trecircs natildeo eacute uma Forma mas eacute portador de uma Forma oposta ndash a Forma iacutempar

205

estaacute no trecircs Sendo assim o proacuteprio trecircs jamais acomodaraacute consigo a Forma oposta rival

(o par) (104c1-3)

Eacute importante notar que a metaacutefora militar continua em cena neste contexto da

lsquoresposta segura e inteligentersquo principalmente em 102d-104c A aproximaccedilatildeo da Forma

oposta pode trazer destruiccedilatildeo agraves coisas que possuem um Forma oposta Eacute interessante

observar que o mesmo verbo lsquoperecerrsquo - ἀπόλλυμι - que Soacutecrates utiliza na sua

autobiografia intelectual (96a 97b 97c) quando relata a fase em que estava em busca

da causa da geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo eacute empregado pelo menos seis vezes em 102d-104c

para expressar a ideia da metaacutefora militar Temos a sugestatildeo de que Platatildeo ainda estaacute

discutindo como as coisas surgem e como satildeo destruiacutedas mas a partir de uma nova

noccedilatildeo de αἰτίαι e num contexto completamente novo Formas satildeo αἰτίαι e agora Platatildeo

explica como elas fazem com que as coisas sejam o que elas e como elas participam na

destruiccedilatildeo de coisas Sobrevindo uma Forma oposta rival as coisas que possuem uma

Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι) Na chegada do par o nuacutemero trecircs perece

Geralmente passa despercebido que a partir de 104d Platatildeo natildeo emprega

diretamente a metaacutefora militar na discussatildeo ndash a ideia de fugir e partir em retirada (ἢ

φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ) ou de perecer na chegada da Forma oposta (ἢ προσελθόντος

ἐκείνου ἀπολωλέναι) natildeo eacute mais mencionada diretamente e parece arrefecer com a

introduccedilatildeo de Formas que natildeo admitem opostos rivais daquele que carrega consigo

659 Outras coisas que natildeo admitem opostos (104c-105b)

206

Neste novo passo o desafio proposto pela personagem Soacutecrates eacute definir lsquoque

tipo de coisas satildeo essasrsquo ou seja quais satildeo essas coisas indefinidas ateacute entatildeo que

tambeacutem natildeo admitem Formas opostas

ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas natildeo resistem ao avanccedilo das rivais

mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao avanccedilo dos opostosrdquo (οὐκ

ἄρα μόνον τὰ εἴδη τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα ἄλληλα ἀλλὰ καὶ ἄλλ᾽ ἄττα

τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα) (104c7-9)

ldquoEntatildeo vocecirc gostaria disse se fosse possiacutevel que determinaacutessemos que tipo de

coisas elas satildeo (βούλει οὖν ἦ δ᾽ ὅς ἐὰν οἷοί τ᾽ ὦμεν ὁρισώμεθα ὁποῖα ταῦτά

ἐστιν) (104c11-12)

Platatildeo jaacute havia estabecido que a Forma oposta que estaacute em algo natildeo pode

admitir acomodar ou coexistir com a Forma oposta Agora ele introduz um novo

sujeito que natildeo eacute a Forma oposta mas uma Forma que traz a Forma oposta para aquilo

que ocupa Agora nem a coisa ocupada pela Forma oposta pode acomodar em si a

Forma oposta rival nem mesmo a Forma que traz a Forma oposta para o objeto que

ocupa poderaacute admitir essa Forma oposta rival Eacute certamente desta Forma que natildeo eacute um

oposto mas natildeo admite opostos que Soacutecrates pergunta se Cebes quer definir

A questatildeo colocada em 104c7-9 ndash ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas

natildeo resistem ao avanccedilo das rivais mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao

avanccedilo dos opostosrdquo ndash (104c7-9) e que levanta o pedido pela determinaccedilatildeo desse lsquotipo

de coisasrsquo (104c11-12) natildeo tem em si mesma nenhum elemento que a comprometa

207

unicamente com a ideia de algo que participa de uma Forma Vejamos que nesta

questatildeo especiacutefica

bull Soacutecrates natildeo sugere a ideia de que as coisas em questatildeo possuem opostos

nelas (como em 104b6-c3) o que necessariamente indicaria que Platatildeo

estaria falando de portadores que carregam opostos em si Essa parte eacute

omitida e a ideia eacute geneacuterica algumas outras coisas

bull Agora Soacutecrates utiliza ἄττα um pronome indefinido o qual deixa a

questatildeo em aberto Eacute realmente estranha a sugestatildeo de uma indefiniccedilatildeo

quando jaacute havia sido dada uma resposta para o problema o portador de

opostos inclusive com o exemplo do nuacutemero trecircs (104c8)

Se realmente levarmos em consideraccedilatildeo a indefiniccedilatildeo sugerida pelo pronome

poderiacuteamos considerar que Platatildeo poderia estar sugerindo um terceiro elemento que

engrossaria essa linha de resistecircncia contra o oposto rival

bull Uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta rival

bull A coisa que participa de uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta

que rivaliza com a Forma oposta que carrega em si

bull Um elemento indefinido tambeacutem natildeo admitiria a Forma oposta que

rivaliza com a Forma oposta que um portador carrega em si

208

Mas os termos empregados por Platatildeo satildeo ambiacuteguos natildeo apenas ἄττα mas o

pronome demonstativo ταῦτά em lsquoque tipos de coisas satildeo essasrsquo (ὁποῖα ταῦτά ἐστιν)

(104c11-12) sugerem que eacute algo novo Embora haja duas possiacuteveis interpretaccedilotildees para

aquilo que se quer definir com base na obscura construccedilatildeo gramatical em 104d1-3 ndash as

coisas ocupadas por Formas e as Formas que ocupam coisas ndash a nossa opccedilatildeo eacute pela

ideia de que essas coisas satildeo lsquoaquelas que ocupam algo e as compelem a adquirir a sua

proacutepria Forma e uma Forma opostarsquo Essa interpretaccedilatildeo se baseia principalmente no

passo seguinte com o exemplo da Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) que eacute aquilo que

ocupa trecircs e o compele ser trecircs e iacutempar (104d5-7) Fazendo uma revisatildeo a pergunta

lsquoque tipo de coisas satildeo essasrsquo nos remete a lsquoaquelas coisas que ocupam outras e as

compelem a possuir a sua proacutepria Forma e a Forma opostarsquo que por sua vez nos remete

agrave Forma do trecircs que eacute o sujeito que ocupa e compele e que por sua vez faz com que

trecircs seja necessariamente trecircs e iacutempar

A Forma do trecircs eacute responsaacutevel inclusive pela Forma oposta nas coisas Tambeacutem

vale lembrar que ao comentarmos 104c vimos que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado como iacutempar por causa do seu viacutenculo essencial com a Forma oposta (iacutempar)

que carrega consigo mas Platatildeo tambeacutem afirma que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado com o seu nome (trecircs) sem explicar por que deixando a questatildeo em aberto

Mas agora temos a sugestatildeo de que o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome por causa da Forma do trecircs Natildeo eacute por acaso que temos agora justamente a Forma

de trecircs (104d)

Platatildeo entatildeo firma a ideia ldquoa Forma oposta natildeo poderia jamais sobrevir agravequela

Forma que realiza esse trabalhordquo (ἡ ἐναντία ἰδέα ἐκείνῃ τῇ μορφῇ ἣ ἂν τοῦτο

ἀπεργάζηται οὐδέποτ᾽ ἂν ἔλθοι) (104d9-10) O verbo ἀπεργάζομαι sugere que a ideia

209

de lsquocausarsquo neste contexto eacute bem mais desenvolvida do que a mera ideia de

lsquoresponsabilidadersquo no contexto da resposta segura mas ignorante Agora Formas fazem

algo e assim produzem um efeito num objeto particular Antes jaacute tiacutenhamos a ideia de

participaccedilatildeo ndash lsquoFormasrsquo estatildeo presentes em contato ou comunhatildeo (κοινωνία παρουσία

100d5 6) com as coisas e satildeo responsaacuteveis por fazer com que elas sejam o que elas satildeo

Mas agora os verbos revelam uma atividade que gera causa ou produz um efeito nos

objetos particulares A partir de 104c a linguagem do movimento forccedila possessatildeo

domiacutenio e trabalho caracterizam plenamente as Formas elas ocupam (κατέχω)

particulares compelem-nos (ἀναγκάζω) a adquirir certas qualidades carregam

(ἐπιφέρω) consigo outras Formas natildeo admitem (δέχομαι ) as Formas opostas rivais e

produzem (ἀπεργάζομαι) algo naquilo que ocupa152 O verbo ἀπεργάζομαι traz a ideia

de um trabalho realizado e trazido ao fim A μορφή eacute um sujeito ativo cujo trabalho

produz o resultado esperado ela caracteriza aquilo que ocupa de duas maneiras por ela

mesma (a proacutepria Forma) e pela Forma oposta que carrega consigo Portanto aqui jaacute

podemos falar de Formas como αἰτία num sentido que vai bem aleacutem de mera

lsquoresponsabilidadersquo Forma neste contexto eacute um agente ativo de uma ordem mais alta de

realidade que eacute literalmente ldquoresponsaacutevel porrdquo fazer com que um efeito especiacutefico seja

produzido num objeto particular Formas satildeo a causa verdadeira que a personagem

Soacutecrates estava agrave procura Pelo menos esta eacute a mensagem que o texto sugere

O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao ontoloacutegica entre a lsquoForma em

sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica entre elas ndash uma Forma

suprema e uma Forma subordinante Mas pelo menos temos a sugestatildeo de que eacute papel

152 Cf Teloh 1975 p 21

210

da lsquoForma em sirsquo trazer a lsquoForma em noacutesrsquo e produzir causar ou fazer com que a coisa

que ocupa seja o que ela eacute (104d)

A Forma eacute vista agora como principal responsaacutevel pelas coisas serem o que satildeo

bull A Forma Trecircs determina que aquilo que ela ocupa seja trecircs ndash a coisa

ocupada pela Forma trecircs eacute necessariamente trecircs

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel por carregar a Forma oposta para a coisa

que ocupa eacute dessa maneira que ela tambeacutem determina que aquilo que ela

ocupa tambeacutem seja iacutempar

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel pela exclusatildeo da Forma oposta Iacutempar

A Forma eacute agora natildeo apenas uma forccedila de ocupaccedilatildeo mas um combatente que

traz consigo um aliado na prevenccedilatildeo e defesa da aacuterea ocupada contra a chegada do

oposto rival Agora natildeo apenas a coisa ocupada natildeo admite a Forma oposta mas

tambeacutem a proacutepria Forma que ocupa natildeo admite a Forma oposta rival da Forma que ela

traz para a coisa que ocupa

A passagem seguinte eacute uma extensatildeo daquilo que foi apresentado agora e deve

ser interpretada agrave luz do que foi dito Alguns pontos satildeo explicitados a comeccedilar pela

ideia de que a Forma traz consigo uma Forma oposta para as coisas que ocupam e

jamais admite o oposto daquilo que leva consigo Para explicar essa nova ideia um novo

verbo empregado o verbo ἐπιφέρει eacute utilizado para descrever a accedilatildeo da Forma que

mesmo natildeo sendo um oposto carrega consigo outra Forma (a Forma oposta) (104e-

105a) O verbo eacute utilizado especificamente aqui em 104e-105a em conexatildeo com o que

211

foi apresentado em 104d para trazer luz ao trabalho realizado pela Forma o trabalho de

carregar a Forma oposta para aquilo que ocupa Pelo menos trecircs exemplos mostram que

a Forma carrega consigo a Forma oposta

bull ἡ τριὰς (a Forma Triacuteade) ἡ δυὰς (a Forma Dois) τὸ πῦρ (a Forma Fogo)

ndash natildeo sendo um oposto (οὐκ οὖσα ἐναντία) carrega sempre consigo um

oposto (τὸ ἐναντίον ἀεὶ αὐτῷ ἐπιφέρει) e jamais admite (δέχεται) o

oposto rival do que carrega consigo (104e8-105a5)

Por fim Soacutecrates reforccedila a ideia novamente

ldquoNatildeo apenas o oposto natildeo admite o seu oposto mas haacute tambeacutem aquilo

que carrega um oposto para a coisa que ocupa e isto que carrega nunca

admite o oposto do que carregardquo

μὴ μόνον τὸ ἐναντίον τὸ ἐναντίον μὴ δέχεσθαι ἀλλὰ καὶ ἐκεῖνο ὃ ἂν

ἐπιφέρῃ τι ἐναντίον ἐκείνῳ ἐφ᾽ ὅτι ἂν αὐτὸ ἴῃ αὐτὸ τὸ ἐπιφέρον τὴν τοῦ

ἐπιφερομένου ἐναντιότητα μηδέποτε δέξασθαι ( 105a2-5)

Essa lista de exemplos numeacutericos provavelmente eacute uma lista de Formas uma

vez que temos nesta passagem um desenvolvimento da ideia apresentada em 104d ἡ

τριὰς ἡ δυὰς τὸ πῦρ τὰ πέντε τὰ δέκα τὸ διπλάσιον τὸ ἡμιόλιον τὸ ἥμισυ (1004e-

105b) certamente satildeo Formas e em 104d-105b procuram estabelecer o princiacutepio de que

212

Formas satildeo causas que ocupam objetos carregam consigo as Formas opostas e realiza

neles uma obra completa fazendo com que eles sejam o que eles satildeo e prevenindo a

chegada de qualquer oposto rival Vaacuterios exemplos satildeo apresentados para ratificar a

ideia de que a Forma mesmo natildeo sendo um oposto natildeo admite o oposto daquele

oposto que carrega consigo (105a-b)

Depois de estabelecer o princiacutepio essencial que envolve Formas Formas opostas

e coisas ocupadas Soacutecrates se oferece para refrescar a memoacuteria do Cebes ainda que

esteja sendo repetitivo ldquoMas lembre-se mais uma vez pois natildeo haacute mal algum em ouvir

isso muitas vezesrdquo (πάλιν δὲ ἀναμιμνῄσκου οὐ γὰρ χεῖρον πολλάκις ἀκούειν) (105a5-

6) Os exemplos podem ser divididos em duas etapas

bull Cinco natildeo admitiraacute a Forma do par153

bull Dez o dobro de cinco natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar (que eacute o oposto da

Forma do par que o dez carrega consigo)

bull Dobro (embora seja oposto de algo) natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar

bull Fraccedilotildees como frac12 e outras assim natildeo admitiratildeo a Forma do todo

6510 Exemplos adicionais (105b-c)

Ao final Soacutecrates convida Cebes para voltar ao comeccedilo e apresenta alguns

exemplos adicionais que introduzem o caso da alma Eacute difiacutecil saber se Platatildeo continua a

153 Platatildeo omite ἡ ἰδέα mas ela pode ser recuperada no contexto imediato numa construccedilatildeo

semelhante agrave que emprega agora ἐπὶ τὰ τρία ἄρα ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει (104e1) τὰ

πέντε τὴν τοῦ ἀρτίου οὐ δέξεται (105a6-7)

213

desenvolver a ideia de ocupaccedilatildeo em continuaccedilatildeo com o contexto anterior a ideia de que

a Forma ocupa algo A ruptura com o contexto anterior pode ter ocorrido quando

Soacutecrates deixa os exemplos eminentemente numeacutericos e convida a voltar ao comeccedilo

Por outro lado eacute tambeacutem possiacutevel que ele utilize exemplos adicionais para retomar a

ideia de uma Forma ocupar algo Em 104d o verbo κατέχω eacute utilizado e agora em

105b-d o verbo ἐγγίγνομαι ndash lsquoentrar ir pararsquo ndash eacute utilizado trecircs vezes depois uma vez

mais no caso da alma Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas movendo-se

para objetos particulares e neles produzindo efeitos eacute o mais comum 102e1 103d7

d10 104b10 c7 Se realmente Platatildeo continua com essa ideia desenvolvida no contexto

anterior Fogo Febre e Unidade satildeo Formas que entram nas coisas trazem consigo a

Forma oposta e produzem nela um efeito calor doenccedila imparidade Vejamos os

exemplos em 105b8-c6

bull O que vem para o corpo que o torna quente natildeo eacute o calor mas o fogo

bull O que vem para o corpo que o torna enfermo natildeo eacute a doenccedila mas a

febre

bull O que vem para o nuacutemero que o torna par natildeo eacute a imparidade mas a

unidade

Gallop lembra que se esses exemplos forem tomados como Formas o sentido da

relaccedilatildeo entre Formas e as coisas que elas ocupam natildeo eacute meramente loacutegico mas

causal154

154 Gallop 2002 p221

214

Finalmente os exemplos introduzem a alma e com isso o uacuteltimo argumento

bull O que vem para o corpo que o torna vivo eacute a alma (105c8-d4)

215

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)

O argumento final propriamente dito comeccedila precisamente em 105c9 e finda em

107b10155 A tradiccedilatildeo interpretativa diverge na delimitaccedilatildeo do argumento mas nos

parece claro que a etapa que interpotildee entre as objeccedilotildees de Cebes e o uacuteltimo argumento

propriamente dito que soacute eacute introduzido em 105c visa preparar o terreno para a

compreensatildeo do uacuteltimo argumento mas natildeo deve ser confundido com o argumento

propriamente dito

O argumento eacute introduzido com o fim de responder as objeccedilotildees gerais de Cebes

de que a alma pode passar por diversos ciclos de reencarnaccedilotildees e ao final ser destruiacuteda

Isto indica que desde o iniacutecio o argumento pretende lidar com almas individuais Aleacutem

disso o amplo contexto do Feacutedon nos mostra que as demonstraccedilotildees visam assegurar

que a alma de Soacutecrates natildeo pereceraacute na ocasiatildeo da morte O problema colocado por

Cebes era justamente que sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι

ὡς ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou vaacuterias vezes

num corpo e a questatildeo de Cebes tem em vista a alma de Soacutecrates e o receio dos seus

disciacutepulos de que ela seria dispersa e destruiacuteda na hora da morte (Cf 95b-e) A palavra

alma (ψυχή) aparece sem o artigo e no singular ao longo do argumento e na conclusatildeo

em 106e8-107a1 temos a palavra no singular e tambeacutem no plural ndash lsquoalmarsquo e lsquoas nossas

almarsquo (ἡμῶν αἱ ψυχαὶ) o que revela que o argumento estaacute tratando de almas individuais

Informaccedilotildees adicionais sobre a natureza da alma em questatildeo seratildeo apresentadas adiante

155 Keyt 1963 p 169 ldquoO argumento propriamente dito para a imortalidade da alma comeccedila com

a afirmaccedilatildeo de que a alma sempre chega a tudo o que ocupa tendo vida em 105crdquo

216

71 Estrutura baacutesica do argumento e Comentaacuterio

O argumento eacute relativamente simples Eis a estrutura baacutesica do argumento eacute a

seguinte

[1] A alma sempre carrega vida para o que ela ocupa (105c9-d5)

[2] A vida eacute oposta agrave morte (105d6-9)

Portanto

[3] A alma jamais admitiraacute a morte e portanto eacute imortal (105d10-e9)

Portanto

[4] Se o imortal fosse indestrutiacutevel a alma seria indestrutiacutevel (105e10-106d1

e1-4)

[5] O imortal eacute indestrutiacutevel (106d2-9)

Portanto

[6] A alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)

Vejamos uma explanaccedilatildeo do argumento

217

A exegese textual levanta a suspeita de que a primeira premissa eacute construiacuteda a

partir de um paralelo com 104d1-7156 O elemento mais importante eacute a ideia de

lsquoocupaccedilatildeorsquo com o emprego do verbo κατέχω em 104d e 105d

ἃ ὅτι ἂν κατάσχῃ (104d)

ὅτι ἃ ἂν ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ (104d)

ψυχὴ ὅτι ἂν αὐτὴ κατάσχῃ (105d)

lsquoqualquer coisa que aqueles ocupemrsquo

lsquoquaisquer coisas que a Forma do trecircs ocupersquo

lsquoqualquer coisa que a alma ocupersquo

Temos entatildeo uma relaccedilatildeo entre os dois contextos mas com uma diferenccedila

crucial ndash o sujeito

156 Pelo menos Hackfort (1998 p162) e Keyt (1963 p169) defendem a ideia de que essa

primeira declaraccedilatildeo do argumento final em 105d3-5 manteacutem um paralelo com 104d5-7 A

exegese textual confirma esse paralelo Platatildeo natildeo dependeria especificamente do vocabulaacuterio

em 104d sem uma razatildeo forte para isso A dificuldade eacute saber o que o exegeta vai fazer com esta

informaccedilatildeo

218

Sujeito Predicado Objeto

ἃ κατάσχῃ ὅτι (particular)

ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ ὅτι (particular)

ψυχὴ κατάσχῃ ὅτι (particular ndash corpo)

Enquanto o sujeito em 104d eacute a Forma que ocupa um particular em 105d o

sujeito eacute a alma Temos aqui o que poderia ser o primeiro grande embaraccedilo no uacuteltimo

argumento apesar de natildeo haver nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de uma Forma da alma no

uacuteltimo argumento algueacutem pode sugerir que ela seria requerida pelo paralelo

(104d105d) Se aplicaacutessemos o modelo e princiacutepio de 104d para o caso da alma talvez

tiveacutessemos a Forma da alma como segue

Trecircs Alma

Forma do trecircs Forma da alma

Forma do trecircs ocupa algo e carrega consigo

a Forma oposta ndash a Forma do iacutempar

Forma da alma ocupa algo e carrega consigo a

Forma oposta ndash a Forma da Vida

Forma do trecircs produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente trecircs e

iacutempar

Forma da alma produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente alma e

viva

Forma do trecircs natildeo admite a Forma oposta

(Forma do par) que rivaliza com a Forma

que carrega (Forma do iacutempar)

Forma da alma natildeo admite a Forma oposta

(Forma da morte) que revaliza com a Forma que

carrega ndash a Forma da vida

219

Alguns comentadores antigos e contemporacircneos insistem na ideia de que existe

uma Forma da alma e que assim como particulares participam em Formas as almas

individuais participam na Forma da alma sobretudo por causa do paralelo entre 104d e

105d Archer-Hind admite que a ideia de uma Forma da alma eacute uma mostruosidade

metafiacutesica da qual natildeo podemos escapar no Feacutedon157 O inteacuterprete contemporacircneo

Prince se esforccedila para provar a tese de que existe uma Forma da alma e que ela

desempenha um papel central no uacuteltimo argumento para a imortalidade da alma De

iniacutecio ele apela para o argumento de que Platatildeo natildeo diz que existe uma Forma da alma

mas tambeacutem natildeo rejeita esta ideia158 Apesar do seu esforccedilo para provar a sua tese o

silecircncio de Platatildeo natildeo pode ser tomado como uma fala em favor de uma Forma da alma

da qual o argumento final depende Talvez Platatildeo pudesse ateacute construir um argumento

melhor com base na existecircncia de uma Forma da alma seguindo a ideia de 104d1-7

Mas natildeo o fez ou porque natildeo considerava a possibilidade da existecircncia de uma Forma

da alma ou porque simplesmente desprezou essa possibilidade ou por algum outro

motivo O silecircncio absoluto de Platatildeo nos diz simplesmente que uma Forma da alma eacute

algo que natildeo estaacute presente no argumento final ainda que possa existir

Voltando agrave questatildeo do paralelo estaacute bem claro que Platatildeo natildeo o manteacutem no

uacuteltimo argumento Existe uma diferenccedila significativa entre o emprego do verbo κατέχω

em 104d e 105d no primeiro caso a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα ἡ τριάς) ocupa o

nuacutemero trecircs e eacute a causa pela qual trecircs eacute trecircs e eacute iacutempar Em 105d o cenaacuterio muda a

157 Archer-Hind 1894 p 116

158 Prince 2011 p1-2

220

alma ocupa o corpo e natildeo eacute a causa pela qual o corpo eacute 159 O elemento que

aparentemente remanesce eacute que tanto a Forma do trecircs quanto a alma trazem uma Forma

para aquilo que ocupam

Mas a ideia das duas passagens paralelas levou alguns comentadores a acreditar

que para seguir de perto o paralelo entre 104d1-7 e 105d3-5 no uacuteltimo argumento a

alma eacute uma Forma ou eacute considerada como tal

(i) Hackfort defende que a alma jaacute eacute considerada como uma Forma

imanente juntamente com todos os exemplos apresentados em 105c o

fogo a febre a unidade e conclui que o uso do verbo κατέχω em 105d

com base em 104d revela sem sombra de duacutevida que o que estaacute em jogo

no uacuteltimo argumento eacute a alma como Forma imanente que ocupa o

corpo160

(ii) Keyt tambeacutem considera que o argumento final inicia com uma

declaraccedilatildeo que eacute paralela a 104d5-7 e chega a uma conclusatildeo um pouco

diferente embora natildeo possamos dizer que no uacuteltimo argumento Platatildeo

admite que a alma eacute uma Forma eacute plausiacutevel dizer que ele a trata como se

fosse uma Forma imanente e a primeira premissa simplesmente admite

159 Cf Archer-Hind 1894 p 116

160 Hackfort 1998 p162

221

que qualquer coisa que tem a alma tem vida ou seja quando uma alma

estaacute presente em um corpo esse corpo estaacute vivo 161

Mas essa posiccedilatildeo estaacute longe de ser defensaacutevel Como diz Dixsaut Platatildeo natildeo diz

que existe uma Forma e evita cuidadosamente dizer isso 162 E se a alma fosse uma

Forma no Feacutedon seria suficiente simplesmente assumir que ela eacute eterna imortal e

incorruptiacutevel como todas as outras

Aleacutem de todos esses argumentos eacute necessaacuterio observar que apesar da insinuaccedilatildeo

textual de que as passagens 104d e 105d apresentam um paralelo na verdade os uacuteltimos

exemplos que Platatildeo apresenta e que introduzem a alma no cenaacuterio mostram que

Platatildeo jaacute natildeo mais estaacute seguindo exatamente a ideia apresentada em 104d A ideia de

uma Forma do trecircs natildeo exerce influecircncia sobre os exemplos em 105b8-c6 fogo febre

unidade

Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas se movendo para objetos

particulares e neles produzindo efeito eacute comum mas no caso de fogo febre unidade

alma natildeo temos uma clara indicaccedilatildeo de que satildeo Formas O contexto sugere que

Soacutecrates estaacute aqui lidando com uma Forma do fogo por exemplo assim como 104d

temos a Forma do trecircs Este eacute um problema constante nesta seccedilatildeo nem sempre Platatildeo

tem o interesse de explicitar o status metafiacutesico de diferentes tipos de coisa Sedley diz

que uma causa no Feacutedon pode ser uma coisa fiacutesica como o fogo um processo

161 Keyt 1963 p169

162 Dixsaut 1991 p 397

222

matemaacutetico como adiccedilatildeo o bem alma a inteligecircncia ou uma Forma como grandeza ou

pequenez163 Mas vale lembrar que nem sempre o texto eacute completamente vago e

hermeacutetico A ausecircncia de especificaccedilotildees 105b8-c6 jaacute pode ser um primeiro indiacutecio de

que Platatildeo natildeo trata de uma Forma Ademais natildeo eacute difiacutecil ver como esses objetos que

desempenham um papel crucial na prova final (fogo febre unidade) tem um tratamento

diferente de 1054d onde a Forma do trecircs ocupa algo e o compele a ser trecircs e iacutempar Em

105b8-c6 temos uma ideia diferente

(i) o Fogo que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(ii) a Febre que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(iii) a Unidade que vem para o nuacutemero natildeo faz com que o nuacutemero seja

nuacutemero

(iv) a Alma que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

Platatildeo estaacute realmente preparando o leitor para o uacuteltimo argumento de modo que

dois dos trecircs exemplos apresentam o corpo (fogo-corpo febre-corpo) para facilitar a

transiccedilatildeo para o exemplo alma-corpo Tambeacutem eacute importante observar que 104d eacute

apresentado como resposta para a busca por alguma outra coisa que natildeo eacute um oposto

mas natildeo admite o oposto rival do oposto que carrega consigo O uacutenico exemplo

numeacuterico em 105b-c rompe com essa ideia de 104d porque o dobro tambeacutem possui um

oposto Talvez a inclusatildeo deste elemento que possui um oposto seja uma abertura para a

possibilidade de no proacuteximo argumento considerarmos a proacutepria alma e corpo como

163 Sedley 1998 p 115

223

opostos O ponto que eacute necessaacuterio observar eacute que os uacuteltimos exemplos natildeo seguem

completamente 104d e servem de modelo para o caso da alma

Portanto o contexto realmente natildeo sugere que esses uacuteltimos exemplos sejam

tomados como Formas Se quisermos comparar temos na verdade o seguinte

(i) Em 104d1-7 Forma do Trecircs ndash trecircs (objeto que a Forma ocupa e compele

a ser o que eacute) ndash Forma oposta que a Forma do Trecircs carrega consigo

(iacutempar) ndash Forma oposta rival (par)

(ii) Em 105b8-c6 Fogo ndash corpo (objeto que o fogo ocupa) ndash calor (qualidade

essencial que o fogo possui)

(iii) Em 105d3-5 Alma ndash corpo (objeto que a alma ocupa) ndash vida (qualidade

essencial que a alma possui) Forma da Vida (Forma na qual a alma

participa) ndash Forma oposta rival (morte)

Aleacutem disso temos no Feacutedon Formas que trazem Formas opostas para aquilo que

ocupam (104d) mas nunca Formas que participam em Formas Isto mostra que nos

exemplos em 105b-c fogo por exemplo natildeo eacute uma Forma Fogo tem em si a

caracteriacutestica de uma Forma ndash o calor ndash porque participa numa Forma assim como o

nuacutemero trecircs eacute iacutempar porque participa na Forma do iacutempar Neste caso se fogo fosse uma

Forma estariacuteamos admitindo que Forma participa numa Forma e isto natildeo eacute o caso

O mesmo se aplica agrave alma a qual possui a qualidade essencial ndash vida ndash porque

participa na Forma da vida Eacute descabido pensar que a alma eacute uma Forma que participa

em outra Forma A conclusatildeo de Hackfort e outros comentadores de que a alma eacute uma

224

Forma com base no paralelo entre 104d e 105d natildeo procede Eacute improvaacutevel que Platatildeo

queira provar que a alma eacute imortal se ao mesmo tempo a considera uma Forma uma vez

que no Feacutedon a imortalidade das Formas eacute simplesmente assumida Como diz Loriaux

estamos convencidos de que se o Feacutedon natildeo diz em nenhum lugar que a alma eacute uma

Forma eacute porque nunca pretendeu fazecirc-lo164

Em suma o argumento final natildeo eacute de modo algum apresentado com base na

ideia de uma Forma da alma nem mesmo a alma individual eacute uma Forma transcendente

ou uma Forma imanente Nenhuma dessas leituras possui apoio textual seguro e

definitivo

Portanto seria a alma um tipo de ser com um status ontoloacutegico intermediaacuterio

Seria a alma uma entidade que natildeo eacute uma Forma nem um objeto particular mas que

estaacute entre os dois A resposta deve considerar especialmente o argumento das

afinidades

No argumento das afinidades Platatildeo caracteriza dois grupos de seres Formas

fazem parte do grupo de coisas invisiacuteveis imortais invariaacuteveis eternas e objetos

particulares Mas imediatamente apoacutes a divisatildeo apresenta a alma como ser que possui

extrema semelhanccedila e afinidade com as Formas e que ao mesmo tempo possui alguma

semelhanccedila com objetos particulares tambeacutem a alma pode sofrer mudanccedila por

exemplo Portanto temos pelo menos uma sugestatildeo de que a alma natildeo pertenceria a

nenhum dos dois grupos e talvez Bostock esteja certo ao dizer que natildeo haacute razatildeo para

acreditar que na ontologia platocircnica soacute existe lugar para apenas duas classes de coisas

Formas e particulares165

164 Loriaux 1975 p132

165 Bostock 1989 118

225

Se a alma fosse uma Forma natildeo seria necessaacuterio provar que ela eacute imortal mas

se Platatildeo a considerasse como particular teriacuteamos um conflito no Feacutedon enquanto

Platatildeo tenta provar que a alma eacute imortal ao mesmo tempo se esforccedila para caracterizar

objetos particulares como membros de uma classe de coisas passiacuteveis agrave dissoluccedilatildeo e

destruiccedilatildeo Portanto eacute plausiacutevel que a alma esteja numa posiccedilatildeo ldquointermediaacuteriardquo

enquanto se relaciona harmonicamente com as Formas quando opera sem a mediaccedilatildeo

corporal e compartilha algumas de suas caracteriacutesticas mas natildeo todas Por outro lado

assim como particulares a alma pode sofrer variaccedilatildeo mudanccedila

O argumento das afinidades provoca um impacto no proacuteprio Cebes o qual

entende que a alma natildeo eacute uma Forma mas tambeacutem reconhece que ela eacute superior em

relaccedilatildeo ao corpo (91e-92a95c) eacute robusta divina longeva goza da capacidade de

existecircncia sem o corpo (preexistecircncia) e de conhecer Formas o que seria impossiacutevel

para membros comuns da classe de coisas visiacuteveis

No argumento final propriamente dito a vida e a morte satildeo opostos Tudo que

possui a alma eacute vivo Eacute portanto a alma que traz vida ao corpo A proacutepria alma carrega

consigo uma Forma da vida Ela natildeo eacute um oposto mas natildeo admite o oposto rival do

oposto que leva consigo ou seja natildeo admite a morte

O argumento comeccedila em 105d com um paralelo com 104c1-3 Formas que

trazem consigo Formas opostas e natildeo admitem as Fomas rivais Assim como as Formas

as almas ocupam um objeto Soacute temos esse paralelo entre almas e Formas no Feacutedon

Neste caso poderiacuteamos ateacute pensar que Platatildeo estaria apresentando um terceiro tipo de

coisa que natildeo eacute oposto mas carrega um oposto e natildeo admite um oposto rival ndash a alma

um intermediaacuterio Esta seria a maneira mais harmocircnica de entender o porquecirc do paralelo

226

entre almas que ocupam um corpo e o compele a ser vivo e Formas que ocupam um

nuacutemero e o compele a ser iacutempar Sendo um intermediaacuterio a semelhanccedila eacute explicada

Platatildeo tem que lidar com o problema apresentado antes a possibilidade de a

alma sofrer um ataque da Forma rival restando uma das duas opccedilotildees bater em retirada

ou perecer (Cf 104b6-c3) Caso o oposto rival arremeta contra o nuacutemero trecircs ele bateraacute

em retirada ou pereceraacute (ἀλλ᾽ ἐπιούσης αὐτῆς ἤτοι ἀπολλύμενα ἢ ὑπεκχωροῦντα)

(104b10-c1) E se isto puder acontecer com a alma Platatildeo estaria assumindo que a alma

pode perecer Teriacuteamos o seguinte com base em 104b-c

Almas satildeo objetos particulares que carregam a Forma da vida e assim

jamais admitiratildeo a morte Isto significa que elas jamais admitiratildeo

acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte Quando a Forma rival

arremeter contra a alma ou ela bateraacute em retirada ou tombaraacute morta

Mas o argumento claramente elimina esta possibilidade Platatildeo tenta mostrar que

a alma possui uma relaccedilatildeo essencial com uma Forma cuja natureza natildeo pode aceitar de

modo algum lsquomortersquo a Forma da vida Sendo assim a alma eacute essencialmente viva a

Forma oposta natildeo pode trazer morte para aquilo que carrega consigo a Forma da vida O

que acontece quando a alma sofre o ataque da Forma oposta eacute o seguinte ldquoSendo

assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao que parece

tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo ela parte

retirando-se da presenccedila da morterdquo (106e4-6)

O segundo modelo de coisas que natildeo satildeo opostos mas natildeo admitem opostos (o

caso das Formas) parece providenciar um exemplo de algo que natildeo pode perecer com o

227

ataque da Forma rival a proacutepria Forma que ocupa algo As Formas satildeo imortais e

indestrutiacuteveis assim como as almas segundo a conclusatildeo do argumento final Quando

as Formas que ocupam algo sofrem o ataque de uma Forma rival elas saem ilesas e

intactas Portanto o viacutenculo essencial das almas com aquilo que a torna essencialmente

viva e imortal faz com que ela seja como as Formas que ocupam um objeto e natildeo

podem perecer pelo ataque da Forma rival daquela que carrega consigo Se a alma for

uma entidade diferenciada um intermediaacuterio eacute mais faacutecil entender essa aproximaccedilatildeo

entre alma e Forma Se a considerarmos um intermediaacuterio teriacuteamos o seguinte com

base no modelo apresentado no contexto anterior em 104d

Almas satildeo intermediaacuterios que carregam a Forma da vida e assim jamais

admitiratildeo a morte (Cf105d10-e9) Isto significa que elas jamais

admitiratildeo acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte e que elas

natildeo pereceratildeo por ocasiatildeo da arremetida da Forma rival assim como eacute

impossiacutevel que uma Forma rival golpeie e aniquile uma Forma que

ocupa um corpo e carrega uma Forma oposta

Assim com as Formas satildeo ldquoblindadasrdquo contra os ataques das Formas rivais as

almas satildeo ldquoblindadasrdquo ou seja imunes agrave morte por causa do seu viacutenculo com a Forma

da vida A fase final da prova lida com o problema da aproximaccedilatildeo dos opostos nos

exemplos apresentados na etapa anterior sobrevindo uma Forma oposta rival os

particulares que possuem uma Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι)

O encontro com a Forma rival termina imediatamente com uma das duas

possibilidades fuga ou perecimento (104b6-c3) Platatildeo percebe este problema e

228

soluccedilatildeo para ele eacute que a alma por seu viacutenculo com a Forma da vida eacute essencialmente

viva e para Soacutecrates isto significa que ela eacute imortal Soacutecrates e Cebes tambeacutem

concluem que tudo que eacute imortal eacute indestrutiacutevel porque se o imortal natildeo fosse

indestrutiacutevel nada mais seria (Cf 106e) Portanto neste argumento Platatildeo associa as

ideias de vida imortalidade e indestrutibilidade (106d2-9)

(i) Tudo o que tem a alma eacute essencialmente vivo

(ii) Tudo o que eacute essencialmente vivo eacute ἀθάνατος

(iii) Tudo o que eacute ἀθάνατος eacute indestrutiacutevel

(iv) Portanto tudo que tem uma alma eacute indestrutiacutevel

(v) Portanto a alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)166

Eacute interessante observar que no contexto do argumento ciacuteclico alma viva eacute alma

reencarnada e alma morta eacute alma desencarnada Agora a proacutepria alma e natildeo o corpo

animado (alma alojada no corpo) eacute imortal e indestrutiacutevel lsquoIndestrutiacutevelrsquo e lsquoimortalrsquo natildeo

satildeo mais a pessoa que tem a alma mas a proacutepria alma

O argumento final eacute o uacutenico argumento no Feacutedon cuja conclusatildeo decisivamente

declara que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Eacute sem duacutevida o argumento que mais se

aproxima de uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma

Contudo a uacuteltima prova da imortalidade da alma apresenta falhas e dificilmente

se estabelece como prova da imortalidade da alma

166 Keyt 1963 p171

229

(i) Platatildeo parece se equivocar quanto ao que constitui o oposto da morte ele

considera que lsquovidarsquo eacute oposto de lsquomortersquo

(ii) O argumento eacute circular reivindica que a alma eacute imortal porque natildeo

admite morte

(iii) A uacutenica razatildeo clara pela qual a alma eacute imortal eacute que ela possui um

viacutenculo com a Forma da vida a qual eacute imortal e indestrutiacutevel (Cf106b)

Essa declaraccedilatildeo de que a Forma da vida eacute imortal eacute um estranho

argumento para a imortalidade da alma porque todas as Formas satildeo

imortais e indestrutiacuteveis

(iv) No argumento aquilo que eacute essencialmente vivo eacute necessariamente

imortal mas este ponto eacute questionaacutevel Portanto a transiccedilatildeo entre algo

essencialmente vivo para algo imortal eacute questionaacutevel Tambeacutem eacute

importante notar que Platatildeo considera apenas a Forma da vida e na

transiccedilatildeo da vida para imortalidade ele natildeo considera a Forma da

imortalidade Mas eacute possiacutevel que Platatildeo considera que a Forma da vida

engloba imortalidade e indestrutibilidade

(v) Soacutecrates simplesmente assume que o que eacute essencialmente vivo eacute

imortal e que o que eacute imortal eacute indestrutiacutevel A conclusatildeo de que a alma

eacute imortal parece uma mera inferecircncia a partir do viacutenculo essencial da

alma com a vida e a necessaacuteria rejeiccedilatildeo da morte

(vi) Keyt aponta uma falaacutecia de ldquoequivocaccedilatildeordquo no uso dos termos ἀθάνατος

θάνατοςθνητός No iniacutecio do argumento ἀθάνατος eacute oposto de θάνατος

mas ao final eacute oposto de θνητός (Cf 105e2-3 106e5-6)167

167 Keyt 1963 p170

230

(vii) A teoria das Formas ainda eacute incipiente Vaacuterios pontos da passagem

merecem uma explicaccedilatildeo mais detalhada no que concerne agrave teoria das

Formas

(viii) A identidade da alma como um portador de uma Forma eacute essencial para a

compreensatildeo do argumento mas Platatildeo natildeo deixa claro o que eacute a alma

A nossa anaacutelise a considera como uma entidade intermediaacuteria com base

nas evidecircncias apresentadas ao longo do diaacutelogo mas em momento

algum Platatildeo deixa isto claro

(ix) A relaccedilatildeo entre a etapa anterior e o argumento propriamente dito estaacute

longe de ser clara Este problema deixa o argumento aberto a

interpretaccedilotildees diversas

72 A reaccedilatildeo ao uacuteltimo argumento

O argumento final do Feacutedon eacute o uacutenico no diaacutelogo a persuadir Cebes de que a

alma eacute imortal Ele eacute construiacutedo em resposta agraves objeccedilotildees de Cebes e ao final da

exposiccedilatildeo o ceacutetico mais obstinado no mundo (77a) como salienta Hackforth natildeo

levanta qualquer objeccedilatildeo (107a1-3)168 Agora natildeo haacute mais receio de que a alma por ser

mortal seja destruiacuteda num dos ciclos de reencarnaccedilotildees e a corajosa atitude de Soacutecrates

diante da iminente execuccedilatildeo eacute sensata visto que estaacute amparada pelo argumento final

Mas a reaccedilatildeo de Siacutemias eacute diferente ele diz que natildeo tem nada a objetar mas por

ser o assunto tatildeo denso e a natureza humana fadada ao fracasso ele diz ldquoeu estou

compelido a ter uma descrenccedila em meu iacutentimo a respeito do que foi dito (ἀναγκάζομαι

168 Hackfort 1998 p 165

231

ἀπιστίαν ἔτι ἔχειν παρ᾽ ἐμαυτῷ περὶ τῶν εἰρημένων) (1007a8-b3) Ainda assim Siacutemias

eacute incapaz de apontar falhas especiacuteficas no argumento chamando atenccedilatildeo para um

problema mais geral da existecircncia humana e da sua proacutepria experiecircncia e descrenccedila em

relaccedilatildeo agrave natureza e estado futuro da alma

Soacutecrates parece bastante confidente a respeito do argumento e diz a Siacutemias que

concorda que ateacute mesmo as primeiras hipoacuteteses sejam revisitadas mas logo afirma que

se forem analisadas pelos amigos de maneira suficiente eles seguiratildeo o argumento e

natildeo haveraacute mais necessidade de prosseguir a pesquisa (107b4-9) Siacutemias simplesmente

concorda com a afirmaccedilatildeo do amigo ldquovocecirc fala a verdaderdquo (107b10)

Cebes o mais capaz dos interlocutores estaacute completamente convencido A

resposta de Siacutemias pode sugerir sua insatisfaccedilatildeo depois de ouvir o argumento contudo

duacutevida de Siacutemias eacute bastante geral e natildeo diz respeito ao argumento em si169

169 Conforme Sedley (2009 p146) Platatildeo criou esse argumento para explicar por que Soacutecrates

partiu confiante e alegre para a morte e sendo assim seria inconcebiacutevel que Platatildeo pretenda

transmitir a mensagem de que o ato final de Soacutecrates como um maacutertir filosoacutefico e sua aceitaccedilatildeo

confiante da morte baseava-se em um argumento duacutebio

232

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A nossa anaacutelise das provas da imortalidade da alma no Feacutedon revela que as duas

primeiras provas estatildeo comprometidas com uma concepccedilatildeo de imortalidade vinculada agrave

doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo da alma O argumento ciacuteclico conclui

apenas que a alma continua a existir depois da morte enquanto o argumento da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento O argumento das afinidades eacute o

primeiro argumento que ataca diretamente o problema apresentado por Cebes ndash a

possibilidade de a alma se desintegrar na hora em que se separa do corpo O argumento

tenta provar que a alma eacute por natureza imune agrave morte algo completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso Mas o uacuteltimo argumento eacute sem duacutevida a grande

prova da imortalidade da alma no Feacutedon Mas todos os argumentos apresentam falhas e

nenhum se estabelece como prova inequiacutevoca da imortalidade da alma nem mesmo o

argumento final apesar de Soacutecrates e os amigos natildeo apontarem qualquer falha no

argumento Os amigos de Soacutecrates satildeo finalmente libertos dos temores de que a alma

individual seja desintegrada e o filoacutesofo pode partir seguro para o aleacutem onde desfrutaraacute

dos benefiacutecios de ter dedicado a vida ao exerciacutecio de morrer e estar morto

233

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO

[57a] EQUEacuteCRATES Feacutedon vocecirc mesmo estava presente no dia em que Soacutecrates

bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por outra pessoa

FEacuteDON Eu mesmo estava presente Equeacutecrates

EQUEacuteCRATES Entatildeo o que ele falou antes de morrer Como foi a sua morte Eu

gostaria de ouvir sobre isso pois nenhum cidadatildeo de Fliunte visita Atenas com

frequecircncia nessa eacutepoca [57b] e haacute tempo natildeo vem de laacute sequer um estrangeiro capaz de

informar com precisatildeo o que aconteceu Contam apenas que Soacutecrates morreu ao tomar o

veneno e nada mais

[58a] FEacuteDON Tampouco souberam como foi o julgamento

EQUEacuteCRATES Sim sobre isso uma pessoa nos informou e ficamos surpresos por que

se sabe que ele morreu bem depois da realizaccedilatildeo do julgamento Afinal por que isso

aconteceu Feacutedon

FEacuteDON Por coincidecircncia Equeacutecrates Aconteceu que no dia anterior ao seu

julgamento a popa do navio que os atenienses costumam enviar para Delos tinha sido

coberta

EQUEacuteCRATES E que navio eacute esse

234

FEacuteDON Esse eacute o navio como dizem os atenienses em que certa vez Teseu foi a [58b]

Creta levando os ldquodois grupos de seterdquo os quais ele salvou bem como salvou a si

mesmo Conta-se que nessa eacutepoca prometeram a Apolo que se eles fossem salvos lhe

retribuiriam com o envio de uma missatildeo anual para Delos E eacute justamente essa missatildeo

anual que desde aquela eacutepoca ateacute agora eles sempre enviam ao deus No tempo

decorrido entre o iniacutecio e o fim da missatildeo a lei ateniense determina que a cidade

permaneccedila purificada e que natildeo se mate ningueacutem em nome dela ateacute que o barco

enviado a Delos retorne ao seu ponto de partida E quando eventualmente ventos

contraacuterios deteacutem a tripulaccedilatildeo o que ocorre [58c] agraves vezes a viagem demora bastante A

missatildeo tem iniacutecio depois que o sacerdote de Apolo cobre a popa do navio e como eu

disse por coincidecircncia isso aconteceu bem na veacutespera do julgamento Eacute por essa razatildeo

que Soacutecrates passou muito tempo na prisatildeo entre o dia do julgamento e a ocasiatildeo de sua

morte

EQUEacuteCRATES E sobre a morte dele precisamente Feacutedon O que se disse e o que se

fez e quais de seus amigos estiveram com ele Ou os magistrados natildeo permitiram que

estivessem presentes e ele acabou morrendo longe dos amigos

[58d] FEacuteDON De forma alguma Natildeo apenas alguns na verdade muitos estiveram

presentes

EQUEacuteCRATES Entatildeo a menos que vocecirc esteja ocupado empenhe-se para nos

informar tudo com a maior clareza possiacutevel

235

FEacuteDON Natildeo estou ocupado e desejo descrever para vocecircs como ocorreu ateacute porque

lembrar de Soacutecrates sempre me daacute o maior prazer seja quando eu mesmo falo ou

quando escuto algueacutem falando sobre ele

EQUEacuteCRATES Mas certamente Feacutedon estes que iratildeo te escutar natildeo satildeo diferentes

Portanto tente relatar tudo com a maacutexima precisatildeo

[58e] FEacuteDON Eu realmente tive uma experiecircncia paradoxal estando ao seu lado

naquela ocasiatildeo pois natildeo fui tomado de compaixatildeo enquanto presenciava a morte de

um amigo O fato eacute que ele me parecia feliz Equeacutecrates tanto pela sua conduta quanto

pelas suas palavras tatildeo destemida e nobre a maneira como morreu Por essa razatildeo ateacute

me passou pela cabeccedila que embora estivesse indo para o Hades ele ia na [59a]

companhia de uma Moira Divina e que ao chegar ali estaria bem se eacute que algueacutem jaacute

experimentou isso Por isso mesmo natildeo fui tomado de forte compaixatildeo o que

pareceria natural ao se presenciar tal sofrimento tampouco senti prazer como aquele a

que estamos acostumados quando nos envolvemos com filosofia ndash de fato nossas

conversas foram dessa natureza Todavia eu experimentei um sentimento atiacutepico uma

estranha mescla de prazer e dor ao me dar conta de que ele estava prestes a morrer logo

mais E todos noacutes ali presentes tiacutenhamos semelhante disposiccedilatildeo de acircnimo ora rindo ora

chorando embora um dentre noacutes se destacasse

[59b] Apolodoro ndash vocecirc certamente conhece o indiviacuteduo e o seu jeito de ser

EQUEacuteCRATES Como natildeo

236

FEacuteDON Pois bem ele estava no limite dessa disposiccedilatildeo e eu mesmo fiquei abalado

assim como os demais

EQUEacuteCRATES Quem por acaso esteva ali presente Feacutedon

FEacuteDON Dentre os locais estavam Apolodoro como acabei de dizer Critoacutebulo e seu

pai Hermoacutegenes Epiacutegenes Eacutesquines e Antiacutestenes estavam tambeacutem Ctesipo do demo

Peacircnia Menecircxeno e alguns outros locais Platatildeo creio eu estava doente

EQUEacuteCRATES E havia alguns estrangeiros

[59c] FEacuteDON Sim Siacutemias de Tebas Cebes e Fedondes estavam laacute e de Meacutegara

Euclides e Teacutercio

EQUEacuteCRATES Quem mais Aristipo e Cleocircmbroto tambeacutem estavam presentes

FEacuteDON Com certeza natildeo Disseram que eles estavam em Egina

EQUEacuteCRATES Algueacutem mais estava presente

FEacuteDON Acho que eram basicamente esses todos os presentes

EQUEacuteCRATES Agora entatildeo poderia me falar sobre as conversas que tiveram

[59d] FEacuteDON Eu tentarei lhe descrever tudo desde o iniacutecio Nos dias que precederam a

sua morte eu e os demais amigos costumaacutevamos visitar Soacutecrates diariamente Como o

Tribunal onde ocorreu o julgamento fica perto da prisatildeo noacutes nos encontraacutevamos ali

bem cedo e todos os dias aguardaacutevamos que a prisatildeo fosse aberta Enquanto isso

ficaacutevamos conversando uns com os outros pois a prisatildeo natildeo abria cedo Mas assim que

abria entraacutevamos para ficar com Soacutecrates e

237

[59e] quase sempre passaacutevamos o dia todo com ele E naquela ocasiatildeo nos reunimos

mais cedo pois no dia anterior quando saiacutemos da prisatildeo ao anoitecer tomamos

conhecimento de que o barco havia chegado de Delos Entatildeo combinamos de chegar no

dia seguinte o mais cedo possiacutevel no lugar de costume o que de fato aconteceu

Chegamos e o porteiro que costumava nos receber saiu ao nosso encontro para nos pedir

que aguardaacutessemos e natildeo entraacutessemos ateacute que ele mesmo nos autorizasse ldquoEacute que os

Onzerdquo disse ele ldquoestatildeo liberando Soacutecrates das correntes e notificando que ele haacute morrer

naquele mesmo diardquo Mas natildeo demorou muito ateacute que ele voltasse para nos autorizar a

[60a] entrada Em seguida entramos e nos deparamos com Soacutecrates jaacute solto das

corrrentes e Xantipa que vocecirc conhece segurando seu filho e sentada ao seu lado E

assim que Xantipa nos viu comeccedilou a gritar e a falar aquele tipo de coisa que as

mulheres costumam dizer ldquoSoacutecrates esta eacute a uacuteltima vez que seus amigos se dirigem a

vocecirc e vocecirc a elesrdquo Entatildeo Soacutecrates olhou para Criacuteton e lhe disse ldquoCriacuteton que algueacutem

a leve para casardquo

Parte do pessoal que acompanhava Criacuteton tirou a mulher dali enquanto ela

gritava e [60b] batia no peito Soacutecrates por sua vez sentando-se na cama dobrou a

perna e comeccedilou a esfregaacute-la com a matildeo e enquanto esfregava disse ldquoQuatildeo estranho

amigos parece ser aquilo que as pessoas chamam de prazer Quatildeo surpreendente eacute sua

relaccedilatildeo natural com o que parece ser o seu oposto a dor Ambos se recusam a

permanecer ao mesmo tempo num indiviacuteduo mas se algueacutem busca e captura um deles eacute

238

quase sempre forccedilado a capturar tambeacutem o outro como se [60c] estivessem unidos por

uma soacute cabeccedila embora sendo duas coisas distintas E me parece querdquo disse ele ldquose

Esopo tivesse refletido sobre eles teria composto uma faacutebula em que um deus

desejando reconciliar a ambos que viviam em guerra mas natildeo sendo capaz resolveu

unir a cabeccedila deles em uma soacute Por esse motivo se um deles se fizer presente em

algueacutem o outro vem em seguida Eacute o que parece acontecer comigo quando

acorrentado sentia dor na perna retiradas as correntes o prazer jaacute veio logo em

seguidardquo

Cebes o interrompeu e lhe disse ldquoPor Zeus Soacutecrates fez bem demais em

recordar-me [60d] Muitos jaacute me perguntaram sobre os poemas que vocecirc fez

versificando as obras de Esopo e sobre o proecircmio a Apolo Anteontem o proacuteprio

Eveno me perguntou o que deu na sua cabeccedila para comeccedilar essa atividade soacute depois que

veio para a prisatildeo uma vez que nunca havia se ocupado com isso antes Se tiver

interesse que eu decirc uma resposta a Eveno quando ele voltar a me perguntar porque sei

que ele iraacute me perguntar novamente diga-me o que devo lhe dizerrdquo

[60e] ldquoSimples Cebesrdquo respondeu ldquodiga-lhe a verdade que natildeo compus

poemas querendo tornar-me seu rival ou de suas poesias pois sabia que natildeo seria faacutecil

mas para tentar entender o sentido de certos sonhos e cumprir meu dever religioso no

caso de ser essa a muacutesica que os sonhos me orientavam a compor Deixe-me explicar

tive o mesmo sonho ao longo de toda a minha vida e apesar de cada vez aparecer sob

239

um aspecto diferente dizia sempre a mesma coisa ldquoSoacutecratesrdquo dizia ldquocomponha e

trabalha a muacutesicardquo Antes eu pensava que o sonho estava me exortando e me

incentivando a fazer exatamente aquilo que eu jaacute vinha fazendo assim como quem

incentiva os corredores da mesma maneira o sonho me incentiva a fazer exatamente

aquilo que eu jaacute vinha fazendo ou seja compor muacutesica uma vez que a filosofia era a

mais excelsa muacutesica e que era isso o que eu fazia No entanto [61a] depois que

ocorreu o julgamento e a festa do deus adiou a minha morte pareceu-me conveniente

que se o sonho estivesse recorrentemente me ordenando compor muacutesica no sentido

popular eu natildeo lhe desobedecesse mas comeccedilasse a compocirc-la Pois pareceu-me mais

seguro partir somente depois de ter cumprido [61b] meu dever religioso compondo

poemas em obediecircncia ao sonho Foi assim que em primeiro lugar eu compus um

poema dedicado ao deus da festa em curso Mas depois desse poema ao deus passei a

refletir que o poeta quando se propotildee a ser poeta deve compor mitos e natildeo

argumentos E como eu natildeo sou inventor de mitos peguei os que estavam agrave minha

disposiccedilatildeo e jaacute conhecia de antematildeo os mitos de Esopo e dei forma poeacutetica agravequeles

com os quais primeiro me deparei Portanto Cebes explica tudo isso a Eveno tambeacutem

lhe diga que [61c] passe bem e que se for sensato venha a ser meu seguidor o mais

raacutepido possiacutevel Parto hoje ao que parece pois assim ordenam os ateniensesrdquo

240

Entatildeo Siacutemias disse ldquoque tipo de apelo eacute esse que faz a Eveno Soacutecrates Eu jaacute

me encontrei com ele diversas vezes e estou bem certo pelo que percebi que de modo

algum ele atenderaacute de bom grado ao seu apelordquo

ldquoComo natildeordquo disse ele ldquoEveno natildeo eacute filoacutesofordquo

ldquoParece-me que simrdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo Eveno desejeraacute atender ao meu apelo e qualquer um que desempenha

essa atividade com dignidade Contudo natildeo praticaraacute talvez violecircncia contra si

mesmo pois dizem [61d] que isso eacute iliacutecitordquo E enquanto dizia essas coisas colocou os

peacutes no chatildeo e sentado nesta posiccedilatildeo continuou o resto da conversa

Cebes entatildeo perguntou-lhe ldquoComo vocecirc pode dizer Soacutecrates que eacute iliacutecito

praticar violecircncia contra si mesmo e que o filoacutesofo desejaria seguir algueacutem que estaacute

morrendordquo

ldquoO quecirc Cebes Vocecirc e Siacutemias natildeo ouviram falar sobre esse assunto em seu

conviacutevio com Filolaurdquo

ldquoNada com clareza Soacutecratesrdquo

ldquoNa verdade eu tambeacutem falo desse assunto com base em coisas que ouvi falar

[61e] poreacutem nada me impede de dizer o que chegou aos meus ouvidos A propoacutesito

talvez o mais conveniente a quem estaacute prestes a viajar para o aleacutem seja mesmo examinar

a fundo e contar os mitos sobre essa viagem de que tipo acreditamos que ela seja Pois

que outra coisa fariacuteamos no tempo que nos resta ateacute o pocircr do solrdquo

241

ldquoEntatildeo por que razatildeo afirmam que eacute iliacutecito matar a si mesmo Soacutecrates Pois eu

mesmo ainda respondendo agravequela sua pergunta jaacute ouvi de Filolau quando ele convivia

conosco e tambeacutem de alguns outros que natildeo se deve fazer isso Mas nunca ouvi

algueacutem falar algo sobre esse assunto com clarezardquo

[62a] ldquoTenha acircnimordquo disse ldquopois de repente vocecirc poderaacute ouvir Contudo talvez

vocecirc se surpreenda por essa ser a uacutenica questatildeo simples entre as outras a qual nunca

ocorre a algueacutem como as demais que haacute ocasiatildeo em que para algumas pessoas melhor

seria estar morto do que viver vocecirc se surpreenderia se para essas pessoas ndash a quem

seria melhor estar morto ndash fosse iacutempio fazer um bem a si mesmas mas tivessem de

esperar por outro benfeitorrdquo

Cebes riu discretamente e lhe disse ldquoQue Zeus seja a minha testemunhardquo

falando em seu proacuteprio dialeto

[62b] ldquoA questatildeo ficaria sem sentidordquo disse Soacutecrates ldquopelo menos posta dessa

forma todavia eacute provaacutevel que tenha algum sentido A propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e

que ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendar Poreacutem Cebes acho que uma coisa estaacute bem

colocada que satildeo os deuses que cuidam de noacutes e que noacutes seres humanos somos um

propriedade dos deuses Vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoPenso simrdquo disse Cebes

242

[62c] ldquoPois entatildeordquo disse ele ldquose acaso um de seus bens viesse a matar a si

mesmo sem que vocecirc tivesse dado sinal de que o queria morto acaso natildeo se exasperaria

com ele e se pudesse lhe aplicaria uma puniccedilatildeo

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoSendo assim talvez tenha algum sentido a proibiccedilatildeo de tirarmos a proacutepria vida

sem que antes um deus nos imponha uma necessidade tal como a que agora estaacute diante

de noacutesrdquo

[62d] ldquoPelo menos isso parece plausiacutevelrdquo disse Cebes ldquoMas o que vocecirc disse haacute

pouco ndash que os filoacutesofos desejariam prontamente morrer ndash parece absurdo se o que

dissemos for razoaacutevel que o deus eacute quem cuida de noacutes e que noacutes somos seus bens Pois

natildeo faz sentido dizer que as pessoas mais sensatas natildeo deveriam ficar irritadas ao

perderem um cuidado administrado pelos mais nobres seres que existem ndash os deuses

Presumo que pelo menos uma pessoa sensata natildeo [62e] pensaria que poderia cuidar

melhor de si mesmo depois de libertar-se Soacute uma pessoa insensata talvez pensasse que

deveria fugir de seu dono pois natildeo raciocinaria que em vez de fugir de um senhor

beneacutevolo deveria antes permanecer atrelada a ele o maacuteximo possiacutevel Por esse motivo

sua fuga seria irrefletida Uma pessoa sensata por sua vez desejaria permanecer para

sempre ao lado de quem eacute melhor do que ela Portanto Soacutecrates o mais plausiacutevel eacute o

contraacuterio do que dissemos conveacutem que as pessoas sensatas se irritem por morrer e que

as insensatas se alegremrdquo

243

[63a] Ao ouvir isso Soacutecrates me parecia se contentar com a persistecircncia de

Cebes E olhando para noacutes disse ldquoCebes estaacute mesmo sempre perscrutando os

argumentos e natildeo se deixa persuadir pela primeira coisa que algueacutem venha a lhe dizerrdquo

E Siacutemias disse ldquoCom efeito Soacutecrates parece-me que agora algo faz sentido no

que Cebes estaacute dizendo com que motivaccedilatildeo homens verdadeiramente saacutebios fugiriam

de donos que satildeo melhores do que eles e os deixariam facilmente Parece-me que

Cebes em sua fala referia-se diretamente a vocecirc que aceita sem dificuldade

abandonar tanto a noacutes quanto aos beneacutevolos governantes os deuses como vocecirc mesmo

reconhecerdquo

[63b] ldquoEacute justo o que vocecircs falamrdquo disse ldquoE acho que vocecircs estatildeo dizendo que

eu devo me defender de seus questionamentos como se estiveacutessemos num tribunalrdquo

ldquoCertamenterdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo vamos em frenterdquo disse ele ldquoQue eu tente me defender perante vocecircs

de modo mais convincente do que perante os meus juiacutezes Siacutemias e Cebesrdquo disse ldquose

eu natildeo pensasse que em primeiro lugar eu me juntaria a outros deuses saacutebios e bons e

depois a pessoas mortas [63c] que satildeo melhores do que as daqui seria injusto se eu natildeo

me irritasse por morrer Todavia estejam certos de que eu espero me juntar a homens

bons embora natildeo insista muito nisso no entanto que eu espero me juntar a deuses

senhores absolutamente bons estejam certos de que se haacute algo que eu asseguraria seria

isso Eacute por esse motivo que natildeo me irrito como aconteceria se natildeo fosse assim mas

244

tenho uma boa expectativa de que haja algo reservado para os mortos Pelo menos o que

se diz haacute muito tempo eacute que haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para

os mausrdquo

[63d] ldquoMas entatildeo Soacutecratesrdquo perguntou Siacutemias ldquovocecirc vai partir com esse

pensamento em sua cabeccedila ou vai compartilhaacute-lo conosco Pois me parece que ele eacute

mesmo um bem comum a todos noacutes e ao mesmo tempo serviraacute como sua defesa caso

venha a nos persuadir do que estaacute dizendordquo

ldquoTentarei fazecirc-lordquo disse ldquomas antes vejamos o que eacute isso que o nosso amigo

Criacuteton estaacute aparentemente querendo dizer jaacute haacute algum tempordquo

ldquoQue mais poderia ser Soacutecratesrdquo questionou Criacuteton ldquoHaacute algum tempo o

homem que vai lhe ministrar o veneno tem me dito que eu devo te orientar a falar o

miacutenimo possiacutevel Segundo ele a temperatura corporal sobe quando as pessoas estatildeo

conversando e isso deve ser [63e] evitado na aplicaccedilatildeo do veneno Haacute casos em que a

pessoa natildeo segue essa orientaccedilatildeo e eacute obrigada a tomar o veneno duas ou trecircs vezesrdquo

ldquoMande-o passearrdquo disse Soacutecrates ldquoEle que prepare uma duas ou ateacute trecircs doses

se for necessaacuterio eacute o trabalho delerdquo

ldquoJaacute adivinhava a sua respostardquo disse Criacuteton ldquomas eacute que haacute tempo ele me

perturba com issordquo

245

ldquoEsqueccedila-ordquo disse ldquoMas para vocecircs meus juiacutezes quero agora oferecer a

explicaccedilatildeo de como me parece plausiacutevel que um homem que dedicou de fato sua vida agrave

filosofia esteja confiante em face da morte iminente e tenha uma boa

[64a] expectativa de que receberaacute as maiores benesses no aleacutem quando morrer Como

isso pode ser Siacutemias e Cebes eu tentarei lhes explicarrdquo

ldquoTodos que se entregam corretamente agrave filosofia correm o risco de as demais

pessoas natildeo perceberem que eles se dedicam a morrer e estar morto e nada mais do que

isso Portanto caso isso seja verdade suponho que seria um absurdo almejar

exclusivamente isso durante uma vida inteira e afinal irritar-se por justamente ter

alcanccedilado aquilo que se desejou e se praticou por longo tempordquo

[64b] Siacutemias riu e disse ldquopor Zeus Soacutecrates agora vocecirc me fez rir embora hoje

eu natildeo esteja para brincadeira Pois acho que se a maioria das pessoas ouvisse isso daiacute

pensaria que se aplica bem aos filoacutesofos E nossos conterracircneos concordariam com eles

de que os filoacutesofos desejam a morte e eles perceberiam que isso mesmo que merecemrdquo

ldquoMas eles estariam dizendo a verdade Siacutemias com exceccedilatildeo de que natildeo deixam

de notar Pois eles natildeo notam qual eacute o sentido em que os verdadeiros filoacutesofos desejam

morrer e merecem morrer e o tipo de morte em questatildeo Conversemos sobre isso

apenas entre noacutesrdquo disse ldquoe [64c] mandemos essa maioria passear Consideramos que a

morte eacute alguma coisardquo

ldquoCom certezardquo disse Siacutemias em sua resposta

246

ldquoAcaso natildeo seria outra coisa senatildeo a separaccedilatildeo da alma do corpo E estar morto

natildeo seria isto o corpo apartado da alma passar a estar sozinho ele por si mesmo

enquanto a alma apartada do corpo passar a estar sozinha ela por si mesma A morte

seria outra coisa senatildeo isso

ldquoNatildeo eacute isso mesmordquo disse

[64d] ldquoObserve agora meu amigo se vocecirc tem a mesma visatildeo que eu tenho

Pois acredito que eacute a partir disso que vamos conhecer melhor o que propomos examinar

Vocecirc acha que o filoacutesofo se preocupa com aquilo que chamam de prazeres tais como os

de comer e beber

ldquoMinimamente Soacutecratesrdquo respondeu Siacutemias

ldquoE com o prazer sexualrdquo

ldquoDe modo algumrdquo

ldquoE quanto agraves demais diligecircncias relativas ao corpo Vocecirc acha que algueacutem como

um [64e] filoacutesofo daria valor a essas coisas Por exemplo a posse de vestes e calccedilados

de luxo e outros objetos que embelezam o corpo vocecirc acha que valorizaria ou

desprezaria essas coisas a menos que fosse realmente necessaacuterio se envolver com elas

ldquoEu acho que as desprezariardquo respondeu ldquopelo menos o filoacutesofo de verdaderdquo

ldquoEntatildeo vocecirc natildeo acha que em sumardquo perguntou ldquoa preocupaccedilatildeo de algueacutem

assim natildeo recairia sobre o corpo mas se voltaria para na medida do possiacutevel libertar-se

dele e inclinar-se para a almardquo

247

ldquoSim eu achordquo

ldquoEm primeiro lugar natildeo fica claro que em questotildees dessa natureza o[65a] filoacutesofo

busca desvincular o maacuteximo possiacutevel a sua alma da comunhatildeo com seu corpo

diferentemente das demais pessoas

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoDe fato a maioria das pessoas presume Siacutemias que o indiviacuteduo para quem

nada disso eacute apraziacutevel e que natildeo toma parte nessas coisas que mencionei natildeo merece

viver para essa maioria quem natildeo tem qualquer interesse nas coisas que se obteacutem por

meio do corpo estaacute agrave beira da morterdquo

ldquoEacute bem verdade o que vocecirc falardquo

ldquoE o que dizer sobre a aquisiccedilatildeo da proacutepria sabedoria O corpo seria ou [65b]

natildeo um obstaacuteculo caso algueacutem o tomasse como um parceiro na investigaccedilatildeo Estou

perguntando aproximadamente o seguinte visatildeo e audiccedilatildeo captam alguma verdade para

as pessoas ou os poetas tecircm razatildeo em estar sempre repetindo para noacutes aquela ladainha

de que nada ouvimos ou vemos com precisatildeo E se de fato esses sentidos do corpo natildeo

tecircm precisatildeo nem clareza dificilmente os demais teriam pois satildeo todos inferiores a

esses dois presumo eu Vocecirc tambeacutem natildeo achardquo

ldquoCom certezardquo disse

248

ldquoEntatildeordquo disse ele ldquoquando a alma alcanccedila a verdade Pois sempre que busca

examinar algo em companhia do corpo fica claro que nessas circunstacircncias eacute enganada

por elerdquo

[65c] ldquoVocecirc estaacute falando a verdaderdquo

ldquoPortanto natildeo seria porventura no ato de raciocinar e natildeo de outro modo que as

coisas que satildeo se mostram com clareza para a almardquo

ldquoSimrdquo

ldquoA alma raciocina melhor suponho eu quando nenhuma dessas coisas seja

audiccedilatildeo visatildeo dor ou algum prazer vier a perturbaacute-la mas mandando o corpo passear

ficar o maacuteximo possiacutevel sozinha ndash ela por si mesma ndash e mantendo-se o quanto puder

livre de comunhatildeo e contato com o corpo busca alcanccedilar aquilo que eacute

ldquoEacute assim mesmordquo

ldquoNatildeo eacute tambeacutem nessa ocasiatildeo que a alma do filoacutesofo despreza o corpo e [65d]

foge dele em busca de ficar sozinha ndash ela por si mesmardquo

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoE sobre a seguinte questatildeo Siacutemias afirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo

ldquoPor Zeus claro que simrdquo

ldquoE tambeacutem um belo e um bomrdquo

ldquoComo natildeordquo

249

ldquoE alguma vez vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo

ldquoDe modo algumrdquo disse

ldquoE vocecirc jaacute alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por

meio do corpo Eu estou falando de todas as coisas como grandeza sauacutede [65e] forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacute Por acaso

eacute por meio do corpo que se pode contemplar a absoluta verdade delas ou eacute somente

aquele que se puser a pensar com rigor e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber

cada coisa em si que poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Certamente

Entatildeo natildeo faria isso da maneira mais pura aquele que por meio do proacuteprio

pensamento [66a] chegasse na medida do possiacutevel a cada coisa sem comprometer o

pensamento com a visatildeo e sem deixar que o raciociacutenio seja acompanhado por algum

outro sentido mas utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura natildeo

tentaria perseguir cada uma das coisas que satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura

depois de afastar-se na medida do possiacutevel dos olhos dos ouvidos e por assim dizer do

corpo inteiro uma vez que quando o corpo entra em comunhatildeo com a alma ele

atrapalha e impede a alma de apoderar-se da verdade e da sabedoria Natildeo seria assim

Siacutemias que essa pessoa alcanccedilaria a coisa que eacuterdquo

ldquoGrande verdaderdquo disse Siacutemias ldquoo que vocecirc estaacute dizendo Soacutecratesrdquo

250

[66b] ldquoPor causa de tudo issordquo disse ldquoeacute necessaacuterio que os legiacutetimos filoacutesofos

partilhem um tipo de crenccedila que deixam transparecer no teor de conversas como esta ldquoeacute

possiacutevel que haja um tipo de atalho que nos conduza em companhia da razatildeo na

investigaccedilatildeo porque enquanto [66c] tivermos o corpo e a nossa alma estiver em

conexatildeo com esse mau jamais possuiremos de modo satisfatoacuterio aquilo que almejamos

e costumamos chamar de verdade Pois o corpo nos daacute muito trabalho na medida em

que necessita de nutriccedilatildeo aleacutem disso algumas doenccedilas nos impedem de caccedilar a coisa

que eacute quando nos acometem Ele nos enche de desejos eroacuteticos apetites temores

fantasias de todo tipo e muita futilidade a ponto de ser plenamente verdadeiro o que se

costuma dizer o corpo natildeo nos daacute chance de pensar em algo em momento algum

Guerras revoltas lutas tudo isso eacute produzido tatildeo somente pelo corpo e seus apetites

pois eacute a [66d] aquisiccedilatildeo de riquezas que origina as guerras e eacute o corpo que nos forccedila a

adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircncia Por todas essas razotildees eacute

devido ao corpo que natildeo temos tempo de fazer da filosofia a nossa ocupaccedilatildeo E o pior

de tudo eacute que se tivermos uma folga dele e nos voltarmos a examinar algo o corpo

novamente se intromete em cada etapa de nossa investigaccedilatildeo com o distuacuterbio e a

perturbaccedilatildeo que produz e nos aturde de tal modo que natildeo podemos contemplar a

verdade por causa dele Todavia jaacute estaacute demonstrado por noacutes que se [66e] acaso

pudermos chegar a um conhecimento puro de algo devemos nos separar do corpo e

observar as coisas por si mesmas com a alma por si mesma Como parece soacute teremos

251

aquilo que desejamos e dizemos ser amantes a sabedoria por ocasiatildeo de nossa morte

como o argumento daacute a entender e natildeo enquanto estivermos vivos Pois se natildeo eacute

possiacutevel obter um conhecimento puro de algo enquanto houver a companhia do corpo

das duas uma ou natildeo haacute como obter esse conhecimento ou isso soacute seraacute possiacutevel depois

da morte pois essa eacute a uacutenica ocasiatildeo em que a [67a] alma fica ela proacutepria por si mesma

separada do corpo ao passo que antes de morrer isso natildeo acontece E durante a vida

como parece ficaremos o quanto mais proacuteximo do conhecimento se evitarmos ao

maacuteximo interaccedilatildeo e comunhatildeo com o corpo exceto quando absolutamente necessaacuterio e

natildeo nos infectarmos com a sua natureza mas nos purificarmos dele ateacute que o proacuteprio

deus nos liberte Se dessa maneira nos preservarmos puros e nos desvencilharmos da

insensatez do corpo estaremos presumivelmente na companhia de outros que satildeo como

noacutes e [67b] conheceremos por noacutes mesmos tudo que eacute sem mistura e isso suponho eu

eacute a verdade Pois natildeo eacute liacutecito que o impuro alcance o purordquo Eu acho que eacute esse tipo de

coisa Siacutemias que eacute necessaacuterio os verdadeiros amantes do conhecimento pensarem e

partilharem entre si Ou vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoMais do que qualquer coisa Soacutecratesrdquo

ldquoPortantordquo disse Soacutecrates ldquose tudo isso for verdade amigo haacute uma grande

esperanccedila para quem chega ao lugar para onde me dirijo agora de que ali mais do que

em qualquer outro [67c] lugar iraacute adquirir plenamente tudo aquilo que buscamos com

bastante afinco no decorrer da vida Assim a jornada que me eacute imposta agora se mostra

252

atrelada a uma boa esperanccedila e o mesmo se daacute para qualquer pessoa que considera seu

pensamento preparado como se estivesse purificadordquo

Certamente disse Siacutemias

ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o

quanto possiacutevel a alma do corpo e acostumaacute-la ela proacutepria por si mesma a concentrar-se

e recolher-se apartada de cada membro do corpo e a viver o maacuteximo possiacutevel ela

proacutepria por si mesma tanto [67d] agora como no porvir liberta do corpo como que

liberta de cadeias

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoE acaso natildeo eacute justamente isto que se chama morte libertaccedilatildeo e separaccedilatildeo da

alma do corpordquo

ldquoSem duacutevidardquo disse

ldquoEntatildeo como dizemos satildeo apenas aqueles que praticam filosofia corretamente

que estatildeo sempre ansiosos para liberar a alma E a ocupaccedilatildeo dos filoacutesofos natildeo seria

justamente isto natildeo eacute uma liberaccedilatildeo e uma separaccedilatildeo da alma do corpo Ou natildeo eacute

ldquoEvidente que eacuterdquo

[67e] ldquoE acaso natildeo viraria uma piada como eu dizia no iniacutecio um homem que

se irrita com a chegada da morte depois de passar a vida inteira treinando para estar o

quanto mais perto delardquo

ldquoUma piada com certezardquo

253

ldquoPortanto Siacutemiasrdquo disse ldquoos que filosofam apropriadamente se exercitam em

morrer e satildeo as uacuteltimas pessoas a temer a morte Examina a questatildeo com base no que

vou dizer Se esses filoacutesofos estatildeo em completa desavenccedila com o corpo e desejam que a

alma esteja sozinha por si [68a] mesma e se na hora de tudo isso acontecer eles

passassem a temer e a irritar-se natildeo seria totalmente sem sentido que se dirigissem a

contragosto para o lugar onde em sua chegada esperam encontrar o que amaram a vida

inteira ndash a sabedoria ndash e onde esperam se livrar da convivecircncia com o que estavam em

desavenccedila Porventura natildeo haacute muitos homens que na [68b] ocasiatildeo da morte de

pessoas queridas tais como efebos esposas e filhos desejam voluntariamente partir com

elas para o Hades levados pela esperanccedila de ali ver e conviver com seus entes

queridos Natildeo seria o mesmo caso de uma pessoa que ama a sabedoria e manteacutem

fortemente essa msma esperanccedila ndash de ter em nenhum algum a natildeo ser no Hades um

encontro digno com ela Acaso essa pessoa se irritaria ao morrer e se encaminharia a

contragosto para o Hades Longe disso meu amigo se for realmente um filoacutesofo pois

ele susteraacute firmemente a opiniatildeo de que em nenhum algum a natildeo ser no Hades ele teraacute

um encontro puro com a sabedoria Se tudo isso for realmente assim volto a questionar

natildeo eacute completamente sem sentido que uma pessoa desse tipo venha a temer a morterdquo

ldquoTotalmente sem sentido por Zeusrdquo disse

ldquoEntatildeordquo disse ldquoquando vocecirc vir uma pessoa irritada porque estaacute prestes a

morrer vocecirc [68c] natildeo teraacute uma prova suficiente de que natildeo se trata de um filoacutesofo

254

mas de um amante do corpo Suponho que essa pessoa seja amante do dinheiro ou

amante da honra ou de ambas as coisasrdquo

ldquoEacute exatamente como vocecirc estaacute falandordquo disse

ldquoAcaso Siacutemiasrdquo perguntou ldquoa chamada coragem natildeo pertence especialmente

agravequeles que tecircm tal disposiccedilatildeordquo

ldquoNatildeo resta duacutevidardquo disse

ldquoE quanto agrave temperanccedila nome empregado ateacute mesmo pela maioria dos homens

a qual consiste em natildeo ser instigado pelos apetites em atitude de desprezo e

comedimento Acaso natildeo pertence exclusivamente a essas pessoas que desprezam

sobretudo o corpo e vivem dedicados agrave filosofia

[68d] ldquoNecessariamenterdquo disse

ldquoPoisrdquo disse ele ldquose vocecirc quiser pensar na coragem e na temperanccedila das demais

pessoas vai se deparar com algo sem sentidordquo

ldquoComo assim Soacutecratesrdquo

ldquoVocecirc natildeo saberdquo perguntou ldquoque todas essas pessoas consideram a morte como

sendo um dos grandes males

ldquoClaro que seirdquo disse

Entatildeo eacute por medo de males maiores que os corajosos encaram a morte quando a

tem de encarar

Isso mesmo

255

Se for assim o pacircnico e o medo tornam as pessoas corajosas com exceccedilatildeo dos

filoacutesofos Contudo eacute absurdo que medo e covardia tornem algueacutem corajoso

[68e] Completamente

E o que dizer dos que entre elas satildeo temperantes Natildeo lhes ocorre o mesmo

uma intemperanccedila os torna temperantes Podemos ateacute dizer que eacute impossiacutevel mas o que

lhes ocorre eacute o mesmo que se passa com os que possuem essa simploacuteria temperanccedila

porque temem ser privados dos diversos prazeres que desejam absteacutem-se de alguns

apenas quando se rendem a outros E ainda que chamem de intemperanccedila o ser

controlado pelos prazeres o que ocorre eacute que [69a] controlam certos prazeres apenas

quando se rendem a outros Eacute aquilo que eu acabei de dizer de um certo modo eacute por

causa da intemperanccedila que elas tecircm se tornado temperantes

Eacute o que parece

Meu querido Siacutemias no tocante agrave virtude natildeo seria uma transaccedilatildeo vaacutelida trocar

prazeres por prazeres dores por dores temor por temor e superior por inferior como se

fossem dinheiro porque a uacutenica moeda vaacutelida pela qual se deveria trocar todas essas

coisas seria o conhecimento Mediante essa moeda ndash o conhecimento ndash seria possiacutevel

realizar transaccedilotildees de [69b] compra e venda de coragem temperanccedila justiccedila e em

suma de toda verdadeira virtude sendo irrelevante a adiccedilatildeo ou subtraccedilatildeo de prazeres

temores e outras coisas desse tipo Se essas coisas satildeo separadas do conhecimento e

trocadas umas pelas outras esse tipo de virtude seria enganosa proacutepria de escravos sem

256

qualquer valor ou verdade inerente Mas a verdade realmente seria que a temperanccedila a

justiccedila e a coragem satildeo um tipo de purificaccedilatildeo de todas as coisas desse [69c] tipo

sendo o proacuteprio conhecimento um rito de purificaccedilatildeo E eacute improvaacutevel que os fundadores

dos misteacuterios que seguimos eram pessoas mediacuteocres Na realidade desde tempos tardios

eles tecircm dito em linguagem enigmaacutetica que todo natildeo iniciado e descumpridor dos ritos

jazeraacute na lama quando adentrar o Hades enquanto o purificado e iniciado que ali

chegam habitaratildeo com os deuses Pois eacute fato que como dizem os que celebram os ritos

muitos carregam o tirso mas [69d] poucos satildeo bacantes E estes satildeo na minha opiniatildeo

os que se ocupam corretamente da filosofia Eu desejei me tornar um deles de toda

maneira empreguei toda a minha forccedila nunca desperdiccedilando uma oportunidade de

minha vida Se desejei a coisa certa e alcancei o alvo saberei quando chegar ao aleacutem

dentro em breve se a divindade assim desejar conforme eu penso Portanto Siacutemias e

Cebes disse ele nisso consiste a minha defesa de quatildeo [69e] natural eacute que eu os esteja

deixando e tambeacutem os senhores aqui presentes sem anguacutestia ou irritaccedilatildeo pois

considero que laacute mais do que aqui encontrarei bons senhores e companheiros Para

muitos forneccedilo uma defesa sem credibilidade Portanto se para vocecircs eu estivesse

sendo mais persuasivo na minha defesa do que eu fui para os juiacutezes de Atenas eu jaacute me

daria por satisfeito

Depois que Soacutecrates falou essas coisas Cebes interveio e disse Soacutecrates acho

que vocecirc [70a] falou muito bem mas quando o assunto eacute a alma vocecirc gera profunda

257

duacutevida nas pessoas Existe o receio de que ao separar-se do corpo a alma estaria em

nenhum lugar ela seria destruiacuteda e pereceria no exato dia da morte imediatamente

quando se separa do corpo e ao deixaacute-lo desapareceria logo depois de se dissipar como

vento e fumaccedila natildeo mais estando em nenhum lugar Se acaso estivesse em algum lugar

recolhida e sozinha separada dos males que haacute [70b] pouco vocecirc expocircs haveria uma

tremenda e bela esperanccedila Soacutecrates de que vocecirc fala a verdade Mas talvez essa

questatildeo de saber se a alma do ser humano existe depois da morte e possui alguma

capacidade e conhecimento requeira uma soacutelida persuasatildeo e feacute

Vocecirc diz a verdade Cebes respondeu Soacutecrates Mas o que faremos entatildeo

Gostaria de discutir sobre esse assunto para ver o que eacute ou natildeo plausiacutevel

Eu particularmente disse Cebes ouviria com prazer qualquer que fosse a tua

opiniatildeo sobre esse assunto

Eu realmente acho disse Soacutecrates que ningueacutem que ouviu essa nossa conversa

nem [70c] mesmo um comedioacutegrafo diria que dou uma de charlatatildeo com um discurso

descabido Se vocecirc estaacute de acordo devemos iniciar a investigaccedilatildeo

ARGUMENTO CIacuteCLICO

Examinemos a questatildeo da seguinte maneira se de algum modo as almas das

pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeo Existe um relato antigo o qual guardamos

258

na memoacuteria segundo o qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam

novamente para caacute provindo dos mortos Se realmente eacute verdade que os vivos provecircm

dos mortos que mais se poderia concluir [70d] senatildeo que as nossas almas estatildeo no

aleacutem Pois de modo algum as almas voltariam a reencarnar se jaacute natildeo existissem Essa

seria uma prova suficiente de que isso eacute verdade se realmente ficasse evidente que os

seres vivos provecircm exclusivamente dos mortos Mas se isso natildeo for verdade

precisamos de um novo argumento

Seguramente disse Cebes

Mas se vocecirc quiser compreender mais facilmente disse natildeo examine somente o

que se vincula ao ser humano mas considere tambeacutem todos os animais e plantas Em

suma considerando [70e] tudo o que tem uma geraccedilatildeo vejamos se todas essas coisas

satildeo geradas da seguinte maneira os opostos de seus opostos e de nenhum outro tudo

quanto apresenta uma relaccedilatildeo semelhante como o belo cujo oposto eacute o feio o justo

cujo oposto eacute o injusto e inuacutemeros outros exemplos como esses Portanto

examinaremos se tudo que tem um oposto eacute gerado necessariamente de seu oposto e de

nenhum outro Por exemplo algo que se torna maior natildeo se torna maior

necessariamente a partir de ter sido menor antes

Sim

[71a] E o que se torna menor natildeo eacute a partir de ser maior antes que depois

torna-se menor

259

Eacute assim mesmo disse

E a partir do forte o deacutebil e a partir do lento o raacutepido

Seguramente

E o inferior proveacutem do superior e o mais justo do mais injusto

Como natildeo

Temos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina dessa maneira as

coisas opostas a partir dos seus opostos

Seguramente

E o que mais Natildeo ocorre tambeacutem o seguinte em cada par de opostos jaacute que

satildeo dois [71b] opostos em cada caso existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo um do

primeiro para o segundo e outro do segundo para o primeiro Entre uma coisa maior e

uma menor natildeo haacute aumento e diminuiccedilatildeo e a isso chamamos de aumentar e diminuir

Sim disse

E tambeacutem separaccedilatildeo e uniatildeo resfriamento e aquecimento e assim por diante

Mesmo que natildeo tenhamos um nome para cada processo natildeo ocorre necessariamente o

mesmo em cada par de opostos isto eacute cada um proveacutem de outro havendo um processo

de geraccedilatildeo que vai de um para o outro

Seguramente disse

[71c] Existe entatildeo perguntou um oposto para o viver assim como estar

adormecido eacute oposto de estar acordado

260

Seguramente respondeu

E o que seria

Estar morto disse

Entatildeo cada um desses natildeo proveacutem a partir do outro jaacute que satildeo opostos E jaacute que

satildeo dois natildeo existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo entre ambos

Como natildeo

Eu te falarei um dos pares que eu mencionei haacute pouco disse Soacutecrates o proacuteprio

par e os seus processos de geraccedilatildeo Vocecirc em seguida me falaraacute o outro Eu estou

falando do estar dormindo e estar acordado e que o estar acordado proveacutem do estar

dormindo e o estar [71d] dormindo proveacutem do estar acordado e seus processos de

geraccedilatildeo satildeo cair no sono e despertar Isso eacute suficiente para vocecirc ou natildeo perguntou

Completamente

Agora vocecirc me diz do mesmo jeito falou no tocante agrave vida e agrave morte Vocecirc natildeo

concorda que estar vivo eacute o oposto de estar morto

Certamente

E que eles provecircm um do outro

Sim

O que eacute entatildeo que proveacutem do que estaacute vivo

O que estaacute morto respondeu

E o que disse do que estaacute morto

261

O que estaacute vivo devo concordar respondeu

Nesse caso eacute dos que estatildeo mortos Cebes que tanto as coisas quanto as pessoas

que vivem provecircm

[71e] Estaacute bem claro disse

Portanto as nossas almas estatildeo no Hades

Eacute o que parece

Certamente dos dois processos de geraccedilatildeo em questatildeo ao menos um deles eacute

bastante oacutebvio pois presumo que o morrer eacute obviamente um deles ou natildeo

Seguramente disse

O que entatildeo faremos Natildeo retribuiremos com o processo de geraccedilatildeo oposta pois

do jeito que estaacute a natureza ficaraacute capenga Ou natildeo seria necessaacuterio equilibrar o morrer

com o processo de geraccedilatildeo oposto

Sem duacutevida disse

E qual seria

O reviver

[72a] Entatildeo disse se de fato existe o reviver este natildeo seria a geraccedilatildeo a partir

dos que estatildeo mortos para os que estatildeo vivos

Seguramente

Portanto concordamos tambeacutem nisso os que estatildeo vivos provecircm dos que estatildeo

mortos natildeo menos do que os que estatildeo mortos provecircm dos que estatildeo vivos e essa me

262

parece uma prova suficiente de que as almas dos que estatildeo mortos necessariamente

existem em algum lugar de onde regressam agrave vida

Soacutecrates eu acho que disse com base no que foi acordado as coisas satildeo

necessariamente desse jeito

Cebes disse veja como em minha opiniatildeo nosso acordo natildeo eacute infundado se

nesse processo de geraccedilatildeo nem sempre um oposto retribuiacutesse o outro como perfazendo

um movimento [72b] circular mas o processo de geraccedilatildeo fosse linear indo apenas a

partir de um oposto para o outro sem que retornasse novamente para o primeiro

fazendo assim a trajetoacuteria reversa vocecirc natildeo sabe que todas as coisas ao final teriam a

mesma forma experimentariam uma mesma condiccedilatildeo e o processo de geraccedilatildeo

estancaria

Tem razatildeo falou

Natildeo eacute difiacutecil disse entender o que estou dizendo Por exemplo se houvesse o

adormecer sem um despertar correspondente proveniente do adormecer natildeo percebe

que tudo isso faria [72c] de Eudiacutemion um caso ordinaacuterio e sem repercussatildeo em nenhum

lugar pois tudo quedaria na mesma condiccedilatildeo que ele o dormir E se todas as coisas se

unissem mas natildeo se separassem logo ocorreria o dito de Anaxaacutegoras ldquotodas as coisas

juntasrdquo Da mesma maneira caro Cebes se tudo quanto participa da vida viesse a

morrer e as coisas mortas permanecessem na mesma forma depois de mortas sem

retornar de novo agrave vida acaso natildeo seria absolutamente necessaacuterio que ao [72d] final

263

tudo acabasse morto e nada vivo E se as coisas vivas nascessem a partir de outras

coisas vivas e as coisas vivas morrem o que as impediria de fenecer na morte

Acho que nada Soacutecrates disse Cebes Vocecirc fala a verdade sem omissatildeo

Para mim Cebes eacute exatamente assim E noacutes natildeo estamos enganados em

concordar nesse assunto pois realmente existe o reviver os vivos nascem dos mortos e

as almas dos mortos existem

ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA

[72e] Ainda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que vocecirc

ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute do que

reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no

passado as coisas que agora recordamos Mas isto seria impossiacutevel a menos que a nossa

alma existisse em algum lugar antes [73a] de assumir essa forma humana De modo

que tambeacutem de acordo com esse ensino a alma parece ser imortal

Mas Cebes Siacutemias questionou quais satildeo mesmo as provas de tudo isso

Recorda-me pois no momento natildeo me lembro bem

Consiste disse Cebes de um uacutenico e beliacutessimo argumento quando as pessoas

satildeo questionadas por algueacutem que lhes questiona bem elas respondem todas as coisas

com propriedade Mas se conhecimento e reta razatildeo jaacute natildeo estivessem internalizados

264

natildeo seriam [73b] capazes de fazer isso E quando algueacutem lhes mostra diagramas ou algo

desse tipo aiacute fica bem claro que as coisas satildeo mesmo assim

Mas se vocecirc Siacutemias natildeo estaacute convencido com esse argumento falou Soacutecrates

examina a questatildeo a partir de outro acircngulo e vecirc se compartilha do nosso pensamento

Pois vocecirc estaacute em duacutevida sobre como o aprendizado pode ser reminiscecircncia natildeo eacute isso

Natildeo tenho essa duacutevida respondeu Siacutemias Mas eu necessito experimentar esse

ensino ndash a reminiscecircncia Soacute pela tentativa de explanaccedilatildeo de Cebes jaacute recordo e me

convenccedilo mas o meu interesse de ouvir natildeo diminuiu

[73c] Veja o seguinte respondeu Soacutecrates Concordamos sem duacutevida que se

algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimento

Seguramente disse

Acaso natildeo concordamos tambeacutem que se o conhecimento adveacutem de uma forma

peculiar ocorre reminiscecircncia Explicarei que forma peculiar eacute essa Quando algueacutem

vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem

lhe vem agrave mente um segundo item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas

de um distinto do primeiro natildeo seria [73d] correto dizer que recordou esse segundo

item que lhe veio agrave mente

O que vocecirc quer dizer

265

Vou exemplificar Presumo que o conhecimento de uma pessoa eacute diferente do

conhecimento de uma lira natildeo eacute

Como natildeo

Entatildeo vocecirc deve saber que acontece o seguinte com os amantes quando veem

uma lira um manto ou alguma outra coisa que seus amados costumam utilizar eles

reconhecem a lira e logo trazem agrave mente a imagem do amado a quem pertence a lira

Isso eacute reminiscecircncia O mesmo ocorre com aquele que vecirc Siacutemias e geralmente recorda-

se de Cebes e presumo que existem inuacutemeros casos como esse

Por Zeus inuacutemeros disse Siacutemias

[73e] Portanto disse esse tipo de coisa natildeo eacute reminiscecircncia Especialmente

quando algueacutem tem uma experiecircncia de reminiscecircncia que envolve coisas do passado jaacute

esquecidas

Seguramente disse

O que mais perguntou Natildeo eacute possiacutevel que algueacutem veja a pintura de um cavalo

ou a pintura de uma lira e recorde-se de uma pessoa e quando vecirc a pintura de Siacutemias

recorde-se de Cebes

Seguramente

E quando vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias recorde-se do proacuteprio Siacutemias

[74a] Certamente disse

266

De acordo com todos esses exemplos a reminiscecircncia natildeo pode ocorrer tanto a

partir de coisas semelhantes quanto de coisas dissemelhantes

Sim

Mas sempre que se recorda de algo a partir de coisas semelhantes natildeo passa

necessariamente pela experiecircncia de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se

recordou e o objeto recordado se assemelham

Seguramente disse

Examina agora disse Soacutecrates se isso estaacute certo Diriacuteamos como presumo que

existe um Igual Natildeo estou me referindo a um graveto igual a outro a uma pedra igual a

outra ou a qualquer coisa desse tipo mas a algo de natureza diferente e que estaacute aleacutem

de tudo isso o Igual em si mesmo Diremos que isso existe ou natildeo

[74b] Por Zeus a reposta eacute um retumbante sim respondeu Siacutemias

Acaso sabemos o que eacute isso

Seguramente disse

Mas de onde adquirimos o conhecimento disso Foi das coisas que

mencionamos haacute pouco Quando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso

trazemos agrave mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delas Ou natildeo acha que

haja distinccedilatildeo entre eles Examina o caso de pedras e gravetos iguais enquanto

permanecem o mesmo agraves vezes natildeo parecem iguais para uns e desiguais para outros

Seguramente

267

[74c] E mais os Iguais em si mesmo jaacute te pareceram desiguais ou a Igualdade

jaacute te pareceu Desigualdade

Jamais Soacutecrates

Nesse caso disse essas coisas iguais e o Igual em si natildeo satildeo a mesma coisa

Natildeo mesmo Soacutecrates

Entatildeo perguntou eacute mesmo partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave mente e

adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais sejam diferentes

Verdade disse

E aquilo que se recordou natildeo eacute igual ou diferente das coisas a partir das quais se

recordou

Seguramente

Mas natildeo faz diferenccedila disse Contanto que vocecirc veja algo e a partir dessa visatildeo

traga [74d] outra coisa agrave mente seja igual ou diferente jaacute eacute necessariamente um caso de

reminiscecircncia

Seguramente

E natildeo nos ocorre o mesmo tipo de coisa em relaccedilatildeo aos gravetos e outras coisas

iguais sobre a qual falamos haacute pouco Acaso esses iguais natildeo nos parecem que satildeo tal

como eacute o Igual em si Carecem ou natildeo de algo para serem tal como eacute o Igual em si

mesmo

Carecem e muito disse

268

Acaso concordamos tambeacutem com o seguinte quando algueacutem vecirc um objeto e

pensa que [74e] isso que vecirc tem a pretensatildeo de ser tal como uma daquelas realidades

mas acaba sendo inferior natildeo se presume que o dono desse pensamento

necessariamente jaacute tivesse um conhecimento preacutevio da realidade com a qual diz ele o

objeto visto se assemelha ainda que deficientemente

Necessariamente

Natildeo acha entatildeo que temos tido uma experiecircncia dessa natureza em relaccedilatildeo agraves

coisas iguais e ao Igual em si mesmo

Completamente

[75a] Entatildeo necessariamente adquirimos um conhecimento preacutevio do Igual

ainda antes da ocasiatildeo em que pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos

que todas elas almejam ser tal como o Igual mas satildeo inferiores a elas

Isso mesmo

Certamente concordamos com o seguinte natildeo haacute como jaacute termos pensado no

Igual nem haacute chance de isso acontecer a natildeo ser a partir da visatildeo tato ou algum outro

sentido Como eu digo os sentidos satildeo todos o mesmo

Satildeo todos o mesmo Soacutecrates pelo menos em relaccedilatildeo ao que o argumento

pretende provar

269

Entatildeo os sentidos natildeo nos fazem pensar que todas as coisas que pertencem ao

domiacutenio [75b] dos sentidos ndash as coisas sensiacuteveis ndash querem ser como o Igual mas satildeo

inferiores a ele O que diriacuteamos

Eacute assim mesmo

E antes de comeccedilarmos a ver ouvir e a utilizar os outros sentidos presumo que

foi necessaacuterio ter adquirido o conhecimento daquilo que eacute o Igual em si mesmo e soacute

entatildeo passar a comparar as coisas iguais decorrentes dos sentidos com o Igual em si

mesmo e a notar que todas elas almejam ser da mesma natureza que ele mas lhes satildeo

inferiores

Foi mesmo necessaacuterio Soacutecrates com base no que dissemos antes

Pois natildeo foi logo apoacutes o nascimento que comeccedilamos a ver a ouvir e a utilizar os

demais sentidos

Seguramente

[75c] Como estamos dizendo devemos ter adquirido o conhecimento do Igual

antes mesmo disso

Sim

Portanto parece-me que adquirimos esse conhecimento necessariamente antes

de nascer

Parece

270

Se o adquirimos antes de nascer e jaacute nascemos com ele natildeo conheciacuteamos antes

e imediatamente depois do nascimento natildeo somente o Igual mas tambeacutem o Maior o

Menor e todas [75d] as outras coisas dessa natureza Pois o nosso presente argumento

natildeo eacute mais sobre o Igual do que sobre o Belo em si mesmo o Justo e o Piedoso e como

tenho dito a respeito de tudo que identificamos com o selo lsquoo que eacute em si mesmorsquo tanto

nas perguntas que formulamos quanto nas respostas que damos Desse modo

adquirimos o conhecimento de tudo isso necessariamente antes de nascer

Isso mesmo

E se o conhecimento adquirido natildeo fosse esquecido sempre nasceriacuteamos em

posse dele e sempre o manteriacuteamos ao longo da vida Pois conhecer eacute isso manter o

conhecimento adquirido e natildeo se desvencilhar mais dele E o esquecimento Siacutemias natildeo

seria o que chamamos de perda do conhecimento

[75e] Sem sombra de duacutevida disse Soacutecrates

No tocante aos conhecimentos que tivemos no passado a respeito daquelas

coisas penso que se os adquirimos antes de nascer perdemos por ocasiatildeo do

nascimento e os recuperamos posteriormente utilizando os sentidos Assim o que

chamamos de aprendizagem natildeo consistiria em recuperar um conhecimento que nos

pertencia E natildeo estariacuteamos certos ao chamar isso de reminiscecircncia

Seguramente

271

[76a] Isso jaacute se mostrou possiacutevel quando algueacutem tem uma percepccedilatildeo de algo

utilizando a visatildeo audiccedilatildeo ou algum outro sentido a partir disso traz agrave mente um

segundo item o qual jaacute havia esquecido cuja relaccedilatildeo com o primeiro pode ser de

semelhanccedila ou dissemelhanccedila Como digo uma das duas ou nascemos em posse do

conhecimento dessas coisas e todos noacutes mantemos esse conhecimento ao longo da vida

ou aqueles que dizemos que aprendem nada mais fazem do que recordar de modo que

a aprendizagem seria reminiscecircncia

Isso mesmo Soacutecrates

Entatildeo Siacutemias qual opccedilatildeo vocecirc escolhe Noacutes nascemos em posse do

conhecimento ou soacute [76b] posteriormente eacute que recordamos as coisas cujo

conhecimento adquirimos previamente

No momento Soacutecrates natildeo tenho como escolher

Como natildeo Faccedila a sua escolha e diga o que pensa do seguinte caso uma pessoa

que tem conhecimento saberia ou natildeo dar uma explicaccedilatildeo daquilo que conhece

Certamente saberia Soacutecrates

Vocecirc acha que todas as pessoas saberiam dar uma explicaccedilatildeo sobre as coisas que

acabamos de falar

Gostaria que fosse assim disse Siacutemias mas receio que amanhatilde por volta dessa

hora natildeo haveraacute um ser humano que possa fazer isso com propriedade

272

[76c] Entatildeo Siacutemias disse ele vocecirc natildeo acha que todas as pessoas conhecem

aquelas coisas

De modo algum

Acaso elas se recordam das coisas que um dia aprenderam

Necessariamente

Quando as nossas almas adquiriram o conhecimento delas Eacute claro que natildeo foi a

partir do momento em que nascemos como seres humanos

Claro que natildeo

Antes entatildeo

Sim

Entatildeo Siacutemias as almas existiram anteriormente antes de assumirem a forma

humana ndash estavam destituiacutedas de corpo ndash e possuiacuteam conhecimento

A natildeo ser Soacutecrates que adquirimos esses conhecimentos na mesma hora em que

nascemos Resta ainda essa opccedilatildeo de tempo

[76d] Que seja meu amigo Mas em que ocasiatildeo noacutes os perdemos Nascemos

sem eles como acordamos haacute pouco ou noacutes os perdemos na ocasiatildeo em que os

adquirimos Ou vocecirc pode mencionar outra ocasiatildeo

De modo algum Soacutecrates Nem me dei conta que eu falava coisas sem sentido

Entatildeo Siacutemias disse ele vamos colocar as coisas assim se realmente existem as

coisas sobre as quais natildeo paramos de falar ndash o Belo o Bom e toda essecircncia dessa

273

natureza ndash associando [76e] a elas as coisas que derivam dos sentidos descobrindo a

sua existecircncia preacutevia bem como a nossa ciecircncia dela e comparando aquelas coisas com

essa a nossa conclusatildeo com base nisso eacute que a nossa alma necessariamente existia antes

de nosso nascimento Se tais coisas natildeo existissem natildeo seria necessaacuterio outro

argumento Natildeo seria igualmente necessaacuterio que elas existam e as nossas almas existam

antes do nosso nascimento E se elas natildeo existissem tampouco as nossas almas

Extraordinaacuterio Soacutecrates disse Siacutemias Tambeacutem acho que existe a mesma

necessidade e eacute bom para noacutes que o argumento repouse nessa equivalecircncia a nossa

alma existe antes do nosso [77a] nascimento assim como aquelas coisas existem como

vocecirc acabou de mencionar Pois estaacute claro para mim que todas as coisas desse tipo ndash

Belo Bom e outras da mesma natureza todas as demais que agora mesmo expotildee ndash

existem mais do que tudo E acho que estaacute suficientemente demonstrado

E Cebes perguntou Soacutecrates Pois devemos persuadir Cebes tambeacutem

Eu pelo menos penso que estaacute suficientemente demonstrado disse Siacutemias

Contudo Cebes [77b] se destaca entre as pessoas por ser difiacutecil de acreditar em

argumentos Eu penso que ele estaacute perfeitamente convencido de que a nossa alma

existia antes do nosso nascimento mas se ela ainda haveraacute de existir quando

morrermos Soacutecrates disse ele natildeo ficou demonstrado nem para ele nem para mim A

objeccedilatildeo que Cebes levantou haacute pouco ainda permanece a crenccedila popular de que na

ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua existecircncia Pois o

274

que a impede de nascer e se formar a partir de uma outra origem de existir antes de

alojar-se no corpo que lhe confere humanidade e depois de alojada separar-se do

corpo vindo entatildeo a morrer e a ser destruiacuteda

[77c] Fala bem Siacutemias disse Cebes Pois parece que estaacute demonstrado apenas

metade do que se deveria que a nossa alma existia antes de nascer Contudo ainda eacute

necessaacuterio provar que ela existiraacute depois da morte tal como existia antes de nascer para

que a prova fique completa

Estaacute demonstrado Siacutemias e Cebes disse Soacutecrates agora mesmo basta querer

combinar num soacute este argumento e aquele anterior com o qual concordamos de que

tudo o que vive vem a [77d] ser a partir do que estaacute morto Pois se a alma tem uma

existecircncia preacutevia eacute necessaacuterio que ela ao viver e nascer provenha tatildeo somente a partir

da morte e do estar morto Como natildeo seria necessaacuterio que ela existisse depois da morte

jaacute que ela deve nascer novamente Portanto estaacute demonstrado o que vocecircs acabaram de

questionar Apesar disso eu acho que tanto vocecirc quanto o Siacutemias teriam prazer de

estudar esse argumento com mais profundidade por causa do seu temor [77e] pueril de

que o vento realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania

Cebes riu e disse tenta nos convencer Soacutecrates como se temecircssemos Melhor

ainda retiro o lsquocomo se temecircssemosrsquo porque talvez tenhamos mesmo uma crianccedila

275

dentro de noacutes que teme coisas desse tipo Portanto tenta convencecirc-la a natildeo temer a

morte como se fosse o Bicho Papatildeo

Eacute necessaacuterio Soacutecrates proferir encantamentos todos os dias ateacute que o temor

desapareccedila

[78a] Mas onde Soacutecrates perguntou conseguimos um bom encantador para

esse tipo de problema jaacute que vocecirc estaacute nos deixando

Grande eacute a Greacutecia Cebes disse Soacutecrates onde encontraraacute nobres varotildees

Tambeacutem devem especular e buscar um encantador dessa envergadura na multidatildeo de

povos baacuterbaros sem poupar dinheiro e trabalho pois natildeo investiria o seu dinheiro em

nada mais rentaacutevel Devem buscar tambeacutem entre vocecircs mesmos pois dificilmente

encontraratildeo algueacutem mais capacitado do que vocecircs para esse mister

[78b] Mas isto seraacute feito disse Cebes Vamos retomar de onde paramos se a

ideia te agrada

Como natildeo Claro que me agrada

Muito bem disse

ARGUMENTO DAS AFINIDADES

Sendo assim disse Soacutecrates devemos nos perguntar o seguinte a que tipo de

coisa pertence aquela que eacute suscetiacutevel a sofrer dispersatildeo Que tipo de coisa temeriacuteamos

276

que fosse dissipada e que tipo de coisa natildeo E em seguida passemos a examinar a qual

desses dois tipos de coisas pertence a alma e com base nisso ter confianccedila ou temor em

relaccedilatildeo agrave nossa proacutepria alma

Eacute verdade disse ele

[78c] Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto e ao que eacute composto por

natureza sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto junto Por outro lado se haacute algo

simples pertence somente a isso mais do que a qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a

sofrer decomposiccedilatildeo

Eacute assim que penso disse Cebes

Entatildeo natildeo seria bem plausiacutevel que as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado

e condiccedilatildeo sejam aquilo que eacute simples enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em

ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estado sejam as compostas

Eacute o que me parece

Entatildeo nos voltemos agora disse para aquelas mesmas coisas que tratamos num

argumento [78d] anterior Refiro-me agravequela essecircncia cujo ser estaacute sendo discutido por

meio de perguntas e respostas estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estado ou sua

condiccedilatildeo oscila em diferentes ocasiotildees O igual em si o belo em si aquilo que cada

coisa eacute em si aquilo que eacute se sujeitariam a algum tipo de mudanccedila Ou cada uma

dessas coisas em si sendo uniforme e sozinha permanece sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado sem se sujeitar a qualquer tipo de alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

277

Eacute necessaacuterio que permaneccedilam na mesma condiccedilatildeo e estado Soacutecrates disse

Cebes

[78e] O que diriacuteamos a respeito das muitas coisas belas tal como pessoas

cavalos roupas e outras coisas desse tipo ou das coisas iguais ou de todas as outras que

compartilham o mesmo nome daquelas que mencionamos Acaso se manteacutem no mesmo

estado ou em completo contraste com aquelas como se pode dizer nunca e de modo

algum permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre si

Concordo mais uma vez disse Cebes elas nunca permanecem no mesmo estado

[79a] Mas as outras coisas natildeo se poderia tocar ver ou perceber pelos demais

sentidos enquanto essas que permanecem no mesmo estado natildeo se podem apreender

por qualquer outro meio a natildeo ser pelo raciociacutecio do pensamento por serem invisiacuteveis

algo que natildeo se vecirc

O que vocecirc diz eacute totalmente verdadeiro disse

Entatildeo pretende que estabeleccedilamos disse que existem duas classes de seres a

visiacutevel e a invisiacutevel

Faccedilamos isso

A invisiacutevel sempre permanece no mesmo estado enquanto a visiacutevel nunca

permanece no mesmo estado

Vamos estabelecer isso tambeacutem disse

[79b] Avancemos entatildeo disse temos algo mais do que corpo e alma

278

Nada aleacutem disso respondeu

Entatildeo qual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e ter mais

afinidade com o corpo

Estaacute bem evidente a qualquer pessoa disse que eacute o visiacutevel

E quanto agrave alma Visiacutevel ou invisiacutevel

Pelo menos ao ser humano eacute invisiacutevel Soacutecrates disse

Mas noacutes estaacutevamos conversando justamente sobre as coisas que seriam e as que

natildeo seriam visiacuteveis agrave natureza do ser humano ou estava pensando em alguma outra

Natildeo agrave natureza do ser humano

O que entatildeo diriacuteamos a respeito da alma Seria algo visiacutevel ou invisiacutevel

Natildeo visiacutevel

Invisiacutevel entatildeo

Sim

Entatildeo a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma

[79c] Eacute absolutamente necessaacuterio Soacutecrates

E natildeo era isto que diziacuteamos antes quando a alma se utiliza do corpo para

examinar algo seja por meio da visatildeo audiccedilatildeo ou por meio de algum outro sentido ndash

pois examinar algo por meio do corpo eacute examinar por meio dos sentidos ndash eacute entatildeo

arrastada pelo corpo para as coisas que nunca permanecem na mesma condiccedilatildeo e assim

279

ela anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a

natureza das coisas que ela estaacute alcanccedilando

Certamente

[79d] Mas quando ela proacutepria por si mesma examina nessa ocasiatildeo se

encaminha para o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo E por

causa da sua afinidade com isso a alma sempre vem a estar com ele sempre que lhe eacute

possiacutevel se colocar ela proacutepria por si mesma Nessa ocasiatildeo deixa de andar erraacutetica ela

permanece sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo relativamente a essas coisas por que

esta eacute a natureza das coisas que estaacute alcanccedilando Essa experiecircncia da alma natildeo seria

chamada de conhecimento

O que vocecirc disse respondeu eacute completamente belo e verdadeiro Soacutecrates

[79e] Mais uma vez e com base tanto no que jaacute foi dito quanto no que dizemos

agora com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e afinidade

Acredito que respondeu a partir dessa linha de inquiriccedilatildeo Soacutecrates todas as

pessoas ateacute algueacutem com grande dificuldade de aprendizagem reconheceria que de todo

jeito a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo

que natildeo estaacute

E quanto ao corpo

Assemelha-se mais a esse outro tipo de coisa

280

[80a] Veja a questatildeo agora sob este acircngulo quando a alma e o corpo estatildeo

juntos por imposiccedilatildeo da natureza o corpo eacute o que serve e eacute governado enquanto a alma

governa e domina Tendo em vista essa relaccedilatildeo pergunto novamente qual dos dois

vocecirc acha que se assemelha mais ao divino e qual ao mortal Ou natildeo acha que o divino

eacute por natureza o que domina e dirige enquanto o mortal o que eacute dirigido e serve

Com certeza

Entatildeo a alma eacute como qual dos dois

Eacute evidente Soacutecrates que a alma eacute como o divino enquanto o corpo eacute como o

mortal

[80b] Examina agora Cebes disse ele se de tudo que temos dito podemos

concluir o seguinte que a alma eacute mais semelhante ao divino imortal inteligiacutevel

uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo enquanto

o corpo por outro lado eacute mais semelhante ao humano mortal multiforme sensiacutevel

soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo Teriacuteamos algo a dizer contra isso

amigo Cebes algo que se contraponha a esse resultado

Natildeo temos

Mas entatildeo Sendo as coisas desse jeito acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

[80c] Como natildeo

281

UacuteLTIMO ARGUMENTO

[105c] Diga-me entatildeo perguntou Soacutecrates o que deve estar presente num corpo

para que ele tenha vida

Uma alma respondeu

[105d] E eacute sempre assim

Com certeza disse ele

Portanto quando a alma ocupa algo chega sempre trazendo vida para ele

Claro que chega respondeu

E existe ou natildeo um oposto para a vida

Existe falou

O quecirc

Morte

Entatildeo a alma jamais admitiraacute o oposto daquilo que traz consigo como foi

acordado antes

Mas natildeo tenha duacutevida disso falou Cebes

Como eacute mesmo que agorinha chamaacutevamos aquilo que natildeo admite a forma do

par

Iacutempar respondeu

E ao que natildeo admite o justo ou o musical

282

[105e] O natildeo musical disse e o natildeo justo

Muito bem E como chamariacuteamos aquilo que natildeo admite morte

Imortal disse

Entatildeo a alma natildeo admite morte

Natildeo

Portanto a alma eacute imortal

Isso imortal

Muito bem falou Poderiacuteamos dizer que isto foi provado O que vocecirc acha

Sim e de modo suficiente Soacutecrates

Se os injustos fossem necessariamente impereciacuteveis trecircs certamente seriam

impereciacuteveis natildeo seria

[106a] Entatildeo Cebes perguntou se o iacutempar fosse necessariamente indestrutiacutevel

o trecircs tambeacutem natildeo seria indestrutiacutevel

Como natildeo

Agora se o natildeo quente tambeacutem fosse necessariamente indestrutiacutevel quando

algueacutem aproximasse calor agrave neve ela natildeo bateria em retirada intacta e sem derreter

Pois nem pereceria nem ficaria ali de novo e admitiria o calor

Corretamente disse

283

Por semelhante modo se o natildeo frio fosse indestrutiacutevel quando algo frio

arremetesse contra o fogo ele jamais apagaria ou pereceria mas bateria em retirada e

seguiria intacto

Necessariamente disse

[106b] Agora natildeo seria necessaacuterio falar tambeacutem dessa maneira a respeito do

imortal Se o imortal tambeacutem fosse indestrutiacutevel seria impossiacutevel que a alma viesse a

perecer quando a morte arremetesse contra ela Porque como foi dito natildeo admitiraacute a

morte e nem tombaraacute morta assim como concordamos que nem o trecircs nem o iacutempar

seratildeo pares nem o fogo e o calor que haacute nele seratildeo frios Mas algueacutem poderia

questionar o que impediria o iacutempar ndash mesmo que natildeo se transforme em par quando este

arremete contra ele assim como concordamos ndash de perecer e o par lhe tomar o posto

Contra isto natildeo teriacuteamos como argumentar que o iacutempar natildeo perece porque ele natildeo eacute

indestrutiacutevel Se concordaacutessemos a esse respeito facilmente argumentariacuteamos que o trecircs

e o iacutempar bateriam em retirada quando o par arremetesse contra ele Argumentariacuteamos

assim tambeacutem no caso do fogo do calor e tudo mais Natildeo eacute mesmo

Absolutamente

Portanto agora no que diz respeito ao imortal se concordaacutessemos que ele eacute

tambeacutem [106d] indestrutiacutevel a alma seria imortal e indestrutiacutevel Caso contraacuterio seria

necessaacuterio outro argumento

284

Mas isto natildeo eacute necessaacuterio por esta razatildeo disse dificilmente outra coisa natildeo

admitiria destruiccedilatildeo se o imortal sendo eterno a admitisse

E eu acho que pelo menos a divindade respondeu Soacutecrates e a proacutepria forma da

vida e se existe alguma outra coisa imortal todas as pessoas concordariam que nunca

perecem

Sem duacutevida todas as pessoas concordariam por Zeus disse e eu penso que os deuses

ainda mais

[106e] Portanto jaacute que o imortal tambeacutem eacute indestrutiacutevel e a alma natildeo seria

outra coisa a natildeo ser imortal ela tambeacutem seria indestrutiacutevel ou natildeo

Eacute absolutamente necessaacuterio

Sendo assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao

que parece tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo

ela parte retirando-se da presenccedila da morte

Eacute o que parece

[107a] Sendo assim eacute mais do que certo que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel e

que as nossas almas realmente existiratildeo no Hades

De minha parte Soacutecrates disse ele natildeo tenho mais nenhuma objeccedilatildeo nem

desconfio das coisas que disse Mas caso Siacutemias que estaacute aqui ou mesmo outra pessoa

tenha algo a dizer esta eacute a hora de falar Porque se algueacutem quiser dizer ou ouvir alguma

coisa sobre este assunto natildeo conheccedilo nenhuma outra ocasiatildeo aleacutem desta para fazecirc-lo

285

[107b] De minha parte Soacutecrates disse Cebes natildeo tenho nada a acrescentar e

nem desconfio do que vocecirc falou Contudo pela complexidade da temaacutetica que

abordamos em nossa conversa e por natildeo ter apreccedilo pela fraqueza humana ainda

necessito carregar comigo certa desconfianccedila a respeito de nossa conversa

Natildeo apenas isto Siacutemias disse Soacutecrates Vocecircs estaacute fazendo uma boa colocaccedilatildeo

Ateacute mesmo as primeiras hipoacutetese ainda que pareccedilam confiaacuteveis para noacutes devemos

igualmente voltar a examinaacute-las mais claramente E eu acho que se vocecirc analisaacute-las

suficientemente seguiraacute o argumento ateacute o maacuteximo que algueacutem possa seguir Se isto

ficar claro para vocecirc natildeo teraacute de prosseguir na pesquisa

Isso eacute verdade disse ele

286

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  • Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
    • AGRADECIMENTOS
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • SUMAacuteRIO
    • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)
    • 3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)
    • 4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)
    • 5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)
    • 6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)
    • 7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)
    • 8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
    • 9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO
    • 10 BIBLIOGRAFIA
Page 4: FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS - USP · 2019. 2. 21. · O diálogo inicia com uma conversa entre Fédon e Equécrates, o qual solicita uma narrativa detalhada sobre a morte de

AGRADECIMENTOS

Agrave Capes pela bolsa fornecida

RESUMO

O tema principal do Feacutedon de Platatildeo eacute a imortalidade da alma Meu objetivo

nesta tese eacute apresentar um estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no

Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo

ABSTRACT

The main topic of the Platorsquos Phaedo is the immortality of the soul My aim in

this thesis is to present a study of the arguments for immortality of the soul in the

Phaedo and a partial translation of the dialogue

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip9

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip13

3 ARGUMENTO CIacuteCLICOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip32

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip70

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADEShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip102

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOShelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip155

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITOhelliphelliphelliphelliphellip215

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip228

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIALhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip233

10 BIBLIOGRAFIA helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip286

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

Apesar da vasta literatura criacutetica destinada ao estudo dos argumentos sobre a

imortalidade da alma no Feacutedon a temaacutetica eacute sobremodo complexa e continua

desafiando os pesquisadores Temas tidos como tradicionais e consolidados sobre a

alma em Platatildeo merecem ser revisitados reavaliados e confrontados com nova

investigaccedilatildeo uma vez que a formaccedilatildeo e inclinaccedilatildeo pessoal de cada estudioso permite

investigar Platatildeo de diferentes maneiras e chegar a diferentes respostas a partir de

diferentes meacutetodos e instrumentos hermenecircuticos razatildeo pela qual Platatildeo continua

exercendo encanto duradouro sobre todos noacutes1 Sendo assim eacute natural que haja um

renovado interesse pelos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma e ele comeccedila a ser

desenvolvido a partir do primeiro estaacutegio do diaacutelogo quando Soacutecrates apresenta a sua

defesa perante seus amigos de seu modo de vida e atitude perante a morte Nesta

ocasiatildeo ele afirma a sua convicccedilatildeo de que a alma do verdadeiro filoacutesofo ndash aquele que

vive na praacutetica da morte ao longo de toda a sua vida ndash desceraacute ao Hades onde se juntaria

aos deuses Nesta primeira etapa a imortalidade eacute simplesmente assumida nas

declaraccedilotildees de Soacutecrates como lsquotenho uma boa expectativa de que haja algo reservado

para os mortosrsquo A sua convicccedilatildeo eacute conforme a tradiccedilatildeo aquilo que os antigos diziam

lsquoque haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para os mausrsquo (63c5-7) Mas

Soacutecrates natildeo convence aos amigos com a sua esperanccedila de cunho meramente religioso

Haacute pessoas que acreditam que a alma poderia ser destruiacuteda na ocasiatildeo em que se separa

1 Valditara in Fermani Migliori Valditara (org) 2007 p5

10

do corpo Esta crenccedila na aniquilaccedilatildeo da alma deve ser enfrentada com argumentaccedilatildeo

filosoacutefica Seria necessaacuterio um grande esforccedilo de Soacutecrates para mostrar que a alma da

pessoa que morre continua a existir com capacidade e conhecimento (ὡς ἔστι τε ψυχὴ

ἀποθανόντος τοῦ ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) (Cf70a1-b4) Com

esta problemaacutetica se inicia uma seccedilatildeo demonstrativa em que o tema da imortalidade

recebe tratamento filosoacutefico especializado Nesta etapa temos quatro argumentos ou

provas da imortalidade da alma (i) argumento ciacuteclico ou dos opostos (70c-72d) (ii)

argumento da reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento das afinidades (78b-80b) (iv)

uacuteltimo argumento (96a-107b) O objetivo deste trabalho eacute apresentar um estudo de cada

argumento sobre a imortalidade da alma no Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo ndash

de toda a primeira etapa do diaacutelogo e de cada argumento propriamente dito

Natildeo pretendemos fazer uma exposiccedilatildeo e anaacutelise exaustiva de cada argumento

Natildeo raramente cada linha de cada argumento eacute objeto de amplo debate e uma discussatildeo

exaustiva de cada toacutepico levantado vai aleacutem do escopo de nossa pesquisa O nosso

objetivo eacute reavaliar as provas da imortalidade com o fim de observar como cada uma

delas procura se estabelecer como prova da imortalidade da alma Em diaacutelogo com a

tradiccedilatildeo criacutetica esperamos reafirmar posiccedilotildees interpretativas jaacute consagradas mas

tambeacutem sugerir rupturas e novos caminhos de interpretaccedilatildeo sempre que possiacutevel

Sobre a nossa interpretaccedilatildeo do diaacutelogo eacute importante dizer que privilegiamos a

exegese textual e a interpretaccedilatildeo de cada argumento propriamente dito mas

considerando o contexto imediato o contexto mais amplo da obra e a relaccedilatildeo muacutetua

entre os argumentos evitando interpretar cada argumento como se fosse uma unidade

isolada Considerando o contexto amplo do diaacutelogo apresentamos um breve estudo

11

sobre a doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico que eacute um dos saberes tradicionais com os

quais Platatildeo dialoga com frequecircncia no Feacutedon

Teremos o cuidado de dialogar com a tradiccedilatildeo interpretativa cujo esforccedilo para a

compreender o Feacutedon eacute notaacutevel e sua contribuiccedilatildeo para a compreensatildeo do diaacutelogo eacute

inestimaacutevel Mas evitaremos ao maacuteximo transportar projetar e impor ao diaacutelogo

posiccedilotildees filosoacuteficas desenvolvidas posteriormente evitando interpretaccedilotildees anacrocircnicas

Aleacutem disso eacute importante reconhecer que em geral a interpretaccedilatildeo de um

diaacutelogo platocircnico eacute em parte predeterminada e moldada pelo que jaacute ouvimos a respeito

dele Um exemplo disso eacute a tendecircncia de acompanhar a literatura criacutetica em sua

costumeira propagaccedilatildeo da ideia de que o Feacutedon pretende ser uma exposiccedilatildeo e defesa

dos lsquopilares gecircmeosrsquo do Platonismo imortalidade da alma e teoria das Formas A

propagaccedilatildeo dessa ideia tem levado inteacuterpretes a conceber ou pelo menos sugerir a

existecircncia de uma dupla temaacutetica de igual importacircncia no Feacutedon2 Nossa tese diverge

desta tendecircncia reconhecendo que o tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma

individual e que o diaacutelogo natildeo pretende apresentar uma exposiccedilatildeo e defesa da teoria

das Formas como a tradiccedilatildeo interpretativa consagrou mas sim uma sistemaacutetica defesa

da imortalidade da alma Embora lsquoFormasrsquo e outros temas tenham importacircncia no

diaacutelogo do iniacutecio ao fim o Feacutedon estaacute voltado para o problema da imortalidade da alma

Portanto procuramos reler o Feacutedon sem excessiva dependecircncia daquilo que jaacute se

disse a respeito dos argumentos sobre a imortalidade da alma Nem mesmo abraccedilaremos

a ideia de que Platatildeo espera que o leitor entreveja teorias filosoacuteficas complexas em

passagens nas quais o filoacutesofos natildeo apresenta uma exposiccedilatildeo consistente sobre elas

2 Cf Burger 1984 p2 Cf Bluck 1955 p2 Cf Gallop 2002 p97 ldquoA doutrina da imortalidade

eacute logicamente dependente da Teoria das Formasrdquo

12

Tambeacutem evitamos incorrer na tentativa de complementar o que Platatildeo deixou

(deliberadamente ou natildeo) vago e inconcluso no Feacutedon

Aleacutem do estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon esta

tese tambeacutem apresenta uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo uma traduccedilatildeo de toda a

primeira etapa do Feacutedon (57a-70c) e a traduccedilatildeo de cada argumento propriamente dito

Noacutes apresentamos um comentaacuterio sobre as seccedilotildees que circundam cada argumento e

todas as citaccedilotildees do Feacutedon apresentadas na tese inclusive das seccedilotildees que natildeo

traduzimos integralmente satildeo de nossa autoria Nossa traduccedilatildeo seraacute baseada na mais

recente ediccedilatildeo do texto grego a ediccedilatildeo inglesa de E A Duke W F Hicken W S M

Nicoll D B Robinson e J C G Strachan (Oxford Classical Texts 1995)

13

2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)

21 Panorama Geral

O diaacutelogo inicia com uma conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates o qual solicita

uma narrativa detalhada sobre a morte de Soacutecrates Ele quer saber minuciosamente tudo

que Soacutecrates conversou com seus amigos e tudo que aconteceu no caacutercere horas antes

de sua execuccedilatildeo (58d) Jaacute se passou algum tempo entre a morte de Soacutecrates e a conversa

entre Feacutedon e Equeacutecrates (57a-b) Feacutedon entatildeo assume o papel de narrador e se dispotildee a

satisfazer o pedido de Equeacutecrates Antes de comeccedilar a extensa narrativa Feacutedon revela

algo de fundamental importacircncia e que geralmente passa despercebido pelos

inteacuterpretes o proacuteprio narrador declara a sua crenccedila particular de que a alma de Soacutecrates

iria para o Hades com uma divina Moira (58e-59a) Soacutecrates faraacute uma afirmaccedilatildeo

semelhante em breve Sobretudo na primeira etapa do diaacutelogo a imortalidade da alma

individual (alma de Soacutecrates) eacute simplesmente assumida pelo narrador e pelo proacuteprio

Soacutecrates a partir de um discurso de cunho religioso

Conforme o relato de Feacutedon antes de beber o veneno Soacutecrates sustenta que o

verdadeiro filoacutesofo encara a morte com naturalidade Os amigos de Soacutecrates querem

saber por que o filoacutesofo estaacute contente em morrer o que lhes parece absurdo O filoacutesofo

entatildeo oferece-lhes uma defesa que pretende ser mais convincente do que aquela

apresentada aos juiacutezes e que visa justificar sua presente atitude diante da morte seu

desejo de morrer (60c-62c)3 Enquanto apresenta sua defesa Soacutecrates desenvolve o

3 Enquanto na Apologia de Soacutecrates o filoacutesofo discursa para a cidade e tenta se defender da

acusaccedilatildeo de corromper a juventude e de introduzir novas divindades na cidade na segunda

14

tema da vida filosoacutefica afirmando que o legiacutetimo filoacutesofo dedica a vida ao exerciacutecio da

filosofia que consiste num exerciacutecio de morrer e de estar morto que antecipa os

benefiacutecios advindos com a morte a saber a liberaccedilatildeo do corpo o rival da alma o qual

oblitera a insaciaacutevel busca do filoacutesofo pela verdade (64a-65a) Vivendo assim o

legiacutetimo filoacutesofo jamais receia a morte pois eacute ela que lhe abre as portas para uma

melhor existecircncia4

Enquanto desenvolve a defesa da atitude do legiacutetimo filoacutesofo frente agrave morte

Soacutecrates simplesmente assume a sobrevivecircncia de sua alma post mortem com base tatildeo

somente na esperanccedila (ἐλπίς) de que em lugar algum a natildeo ser no Hades eacute que o

verdadeiro filoacutesofo alcanccedilaraacute de modo pleno e digno a sabedoria que almeja concluindo

que o filoacutesofo deve crer nisso (οἴεσθαί γε χρή) (68a-b) Dessa forma Soacutecrates alinha sua

crenccedila na sobrevivecircncia da alma post mortem com a crenccedila de Feacutedon no proacutelogo do

diaacutelogo Portanto a imortalidade da alma eacute simplesmente assumida nesta etapa do

diaacutelogo como uma ideia do acircmbito da religiatildeo Platatildeo dialoga com os saberes

tradicionais jaacute estabelecidos A proposta do diaacutelogo desde o iniacutecio se delineia a

discussatildeo sobre a imortalidade da alma deveraacute passar do niacutevel da crenccedila religiosa

baseada na ἐλπίς para um patamar de discussatildeo filosoacutefica

A postura de Soacutecrates imediatamente provoca a reaccedilatildeo de seu amigo Cebes que

embora elogie a fala do filoacutesofo exibe sua insatisfaccedilatildeo no que foi dito concernente agrave

alma Soacutecrates natildeo deu garantia de que a alma ao separar-se do corpo continuaria

existindo em algum lugar Cebes menciona a duacutevida que as pessoas nutrem de que a

morte traria consigo a destruiccedilatildeo da alma a qual desvaneceria tal qual sopro ou fumo na

defesa ele tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que natildeo estaacute convencido de que a morte

eacute o melhor para o filoacutesofo

4 No Feacutedon a morte eacute definida como a separaccedilatildeo da alma e do corpo (64c4-9)

15

ocasiatildeo em que se separa do corpo (69e-70a) A personagem Cebes eacute quem reclama o

tratamento filosoacutefico da temaacutetica da imortalidade da alma e em resposta agrave sua

colocaccedilatildeo eacute que Soacutecrates se dispotildee a mostrar que a alma da pessoa que morre continua

existindo mantendo capacidade e sabedoria (ὡς ἔστι τε ψυχὴ ἀποθανόντος τοῦ

ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) mas adverte que essa empresa natildeo seria

faacutecil (69e-70b) Daacute-se iniacutecio a uma longa etapa argumentativa no diaacutelogo na qual

Soacutecrates apresenta quatro argumentos ou provas da imortalidade da alma no Feacutedon (i)

argumento ciacuteclico (ou argumento dos opostos) (70c-72d) (ii) argumento da

reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento da afinidade (78b-80b) (iv) uacuteltimo argumento

(96a-107b)

22 A alma e o alcance das coisas em si

Antes de tratarmos especificamento do nosso objeto de estudo ndash as provas da

imortalidade da alma ndash vejamos alguns toacutepicos importantes na primeira etapa do

diaacutelogo comeccedilando pela alma e o alcance das coisas em si Enquanto desenvolve o

tema da vida filosoacutefica Soacutecrates considera que haacute coisas como lsquoo justo em si mesmorsquo

(δίκαιον αὐτὸ) (65d4-5) que ele tambeacutem chama de essecircncia (ἡ οὐσία) (65d13) lsquoas

coisas que satildeorsquo (τά ὄντα) (66a3) ou lsquocoisas em si mesmasrsquo (αὐτὰ τὰ πράγματα) (66e1-

2) O filoacutesofo vive agrave caccedila dessas coisas almejando apoderar-se da verdade (ἀλήθειά) e

do conhecimento (φρόνησις) (66a5-6) mas o corpo se impotildee como rival da alma porque

oblitera essa busca do filoacutesofo Em suma essa busca da lsquocoisa em sirsquo envolve o objeto

de conhecimento definido a purificaccedilatildeo filosoacutefica e o instrumento de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Segue uma breve explicaccedilatildeo de cada um deles

16

(i) O objeto de conhecimento satildeo lsquoas coisas em sirsquo Quando Soacutecrates comeccedila a

explicar que o corpo eacute um obstaacuteculo para a alma alcanccedilar a verdade ele diz

que soacute atraveacutes do exerciacutecio da razatildeo eacute que τι τῶν ὄντων lsquoalgo dessas coisasrsquo

se mostram para a alma (65c2-3)5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τά

ὄντα) e logo depois no singular (τὸ ὄν) (65c3 9) Soacutecrates apresenta vaacuterios

exemplos de lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em si mesmorsquo lsquoo belorsquo e lsquoo bomrsquo (65d4-

7) e imediatamente estende a questatildeo a toda classe de coisas desse tipo ldquoEu

estou falando de todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa

eacuterdquo (65d11-65e1)

(ii) A purificaccedilatildeo (κάθαρσις) filosoacutefica eacute o maacuteximo afastamento possiacutevel da

alma do corpo 6 Isto equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (64a) e

eacute necessaacuterio porque o corpo (τὸ σῶμα) eacute obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do

conhecimento (φρόνησις) uma vez que os sentidos natildeo satildeo confiaacuteveis

visatildeo audiccedilatildeo e os demais sentidos do corpo (αἴσθησις) natildeo oferecem

precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) (65a9-65b7)

(iii) A aquisiccedilatildeo do conhecimento ocorre atraveacutes do pensamento sozinho (αὐτῇ

τῇ διανοίᾳ) sem mistura ou sem interaccedilatildeo com os sentidos (65e7 66a1-2) A

5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τῶν ὄντων) e no singular (τοῦ ὄντος) (65c3 9) Conforme

Rowe (1993 p 140) o termo singular τοῦ ὄντος eacute o coletivo equivalente de τῶν ὄντων

6 ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o mais possiacutevel a

alma do corpo e acostumaacute-la sozinha por si mesma concentrando-se e recolhendo-se agrave parte de

cada membro do corpo e vivendo o maacuteximo possiacutevel sozinha por si mesma tanto agora como

no porvir num ato de constante libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de

cadeiasrdquo (67c5-d1)

17

alma deve raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν)

para que possa alcanccedilar as coisas em si mesmas (65c2-9 Cf 65e-66a)

Soacutecrates sugere que eacute possiacutevel utilizar a faculdade cognitiva da alma sem a

interferecircncia do corpo e seus sentidos de modo que a alma funcione com

independecircncia7 Eacute somente quando algum de noacutes se puser a pensar com rigor

e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber cada coisa em si que se

poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Essa apresentaccedilatildeo da busca da alma pelas lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em sirsquo lsquoo belo

em sirsquo lsquoo bom em sirsquo (64e-66a) leva inteacuterpretes a pensar que uma doutrina das Formas

jaacute estaacute presente na primeira etapa do diaacutelogo Eacute largamente aceito que a chamada teoria

das Formas eacute introduzida pela primeira vez no diaacutelogo em 65d4-5 8 Mas essa

compreensatildeo geralmente se baseia no contexto posterior do Feacutedon uma vez que em

65d4-5 ainda natildeo haacute elementos suficientes para sustentar essa conclusatildeo Natildeo haacute duacutevida

que uma teoria das Formas ou o esboccedilo do que seria uma teoria das Formas

desenvolve-se a partir da formulaccedilatildeo que aparece em 65d mas isto natildeo significa que

neste ponto do diaacutelogo e com base nesta incipiente apresentaccedilatildeo de coisas como o justo

7 Cf Chen 1990 p5455 o qual esclarece que vaacuterios lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo (alguns usados

figurativamente como lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo) satildeo utilizados para denotar cogniccedilatildeo intelectual das

coisas em si mesmas reforccedilando a ideia de que a alma pode trabalhar de modo independente

para alcanccedilar as coisas em si γιγνώσκω (65e4) φρονέω (66c5) ἅπτω (65b9 c9) ἐφάπτω

(65d11 67b2) λογίζομαι (65c2 66a1 substantivo λογισμός) διανοέομαι (65e3 66a2

substantivo διάνοια) θεατέον (θεάομαι 66e1) θεωρέω (65e2) καθοράω (66d7)

8 Bostock 1989 p 194 Gallop 2002 p93 Hackfort 1998 p 50 Silverman 2002 p49

18

em si que a alma anseia alcanccedilar jaacute possamos falar de uma complexa teoria metafiacutesica

uma teoria das Formas no Feacutedon9 Eis algumas razotildees para isto

(i) A terminologia eacute imprecisa

(ii) Natildeo haacute indiacutecios suficientes de que lsquocoisas em sirsquo sejam entidades

metafiacutesicas Eacute difiacutecil que Platatildeo jaacute estivesse introduzindo algum termo

teacutecnico nessa altura do diaacutelogo e noacutes natildeo devemos importar qualquer

noccedilatildeo filosoacutefica posterior para tentar entender essa passagem10

(iii) Em 65d4 temos a pergunta φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν

(ldquoafirmamos que existe um justo em si mesmo ou natildeordquo) a qual tem

sido largamente considerada como pergunta-chave para a introduccedilatildeo da

chamada teoria das Formas no diaacutelogo Contudo essa pergunta segue

uma formulaccedilatildeo ordinaacuteria da liacutengua grega Pouco antes disso Soacutecrates jaacute

havia formulado uma pergunta semelhante em relaccedilatildeo agrave morte em 64c2

ἡγούμεθά τι τὸν θάνατον εἶναι (ldquoConsideramos que a morte eacute alguma

coisardquo) Nesta passagem temos apenas um ordinaacuterio modo de expressatildeo

da liacutengua grega sem qualquer alusatildeo agrave existecircncia de entidades

metafiacutesicas De modo algum Soacutecrates estaacute se referindo a uma Forma da

morte mas apenas agrave ordinaacuteria existecircncia do evento morte neste contexto

pessoas morrem logo existe um tipo de coisa que chamamos morte

Neste contexto Soacutecrates estaacute preparando os amigos para admitirem que

morte eacute a separaccedilatildeo da alma de seu corpo (64c4-5) Em 65d4 o filoacutesofo

9 Rowe 1993 p 140-141

10 Rowe 1993 p141

19

repete a formulaccedilatildeo da pergunta mas agora falando das lsquocoisas em sirsquo

Portanto esse tipo de pergunta natildeo eacute necessariamente uma formulaccedilatildeo

teacutecnica para inquirir sobre a existecircncia de Formas metafiacutesicas

(iv) Seria estranho que Platatildeo introduzisse Formas metafiacutesicas sem que

discutisse as suas qualidades como faz no argumento das afinidades

onde Platatildeo qualifica essas lsquocoisas em sirsquo de maneira clara satildeo puras

distintas e superiores aos objetos particulares invisiacuteveis eternas

imortais permanecem sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo existem agrave

parte dos objetos sensiacuteveis e somente a alma sozinha por si mesma pode

alcanccedilar Neste contexto expressotildees como τὸ ὄν (78d4) podem ser pela

primeira vez admitidas como clara referecircncia a certas entidades

metafiacutesicas

(v) Uma abrupta inclusatildeo de uma teoria metafiacutesica neste ponto do diaacutelogo

seria improvaacutevel

(vi) Seria estranho que Platatildeo jaacute estivesse apresentando uma teoria das

Formas na primeira etapa do diaacutelogo e inicie a etapa demonstrativa com

o argumento ciacuteclico onde natildeo temos qualquer referecircncia a lsquoFormasrsquo

23 Transiccedilatildeo para a etapa demonstrativa

Quando Soacutecrates apenas assume a crenccedila de que a sua alma continuaria a existir

no Hades depois da morte e a imortalidade eacute asssumida conforme os padrotildees de uma

tradiccedilatildeo religiosa Cebes coloca em conflito duas tradiccedilotildees diacutespares a respeito da alma

post mortem ndash uma admitia que a alma eacute aniquilada e desvanece como sopro ou fumo

20

por ocasiatildeo da morte enquanto a outra afirma que a alma continua existindo mantendo

capacidade e sabedoria (69e-70b) Este conflito ou noacute dramaacutetico na narrativa deve ser

solucionado por Soacutecrates a partir de uma longa investigaccedilatildeo que se desenrola na etapa

demonstrativa do diaacutelogo na qual Soacutecrates toma posiccedilatildeo e ataca vigorosamente a ideia

de que a alma pode ser destruiacuteda quando se separa do corpo Portanto esse conflito que

Platatildeo coloca bem na etapa de transiccedilatildeo entre o primeiro estaacutegio do diaacutelogo e a etapa

demonstrativa eacute de suma importacircncia no Feacutedon tudo o que foi dito antes prepara o

leitor para a apresentaccedilatildeo desse conflito e tudo que seraacute dito posteriormente propotildee a

soluccedilatildeo desse conflito (Cf 69e-70c)

Este ponto de tensatildeo do diaacutelogo eacute agravado por aquilo que Sedley chama de

espetaacuteculo paradoxal no Feacutedon Soacutecrates tenta persuadir seus amigos pitagoacutericos sobre

a verdade de sua proacutepria doutrina11 Sedley afirma que Cebes e Siacutemias satildeo pitagoacutericos e

que a doutrina da sobrevivecircncia da alma depois da morte eacute uma inalienaacutevel parte do

pensamento pitagoacuterico12 Antes de avaliarmos os argumentos sobre a imortalidade da

alma no Feacutedon conveacutem apresentar algumas evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no

Feacutedon e conhecer melhor os amigos de Soacutecrates que estatildeo extremamente interessados

em confrontar essa doutrina popular segundo a qual a alma eacute passiacutevel de aniquilaccedilatildeo na

ocasiatildeo em que se separa da morte

24 Evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

241 Temas pitagoacutericos presentes no diaacutelogo

11 Sedley 1995 p11

12 Sedley 1995 p12

21

Ao final da antiguidade havia uma visatildeo generalizada de que Orfeu e Pitaacutegoras

tinham ensinado a mesma doutrina teoloacutegica e que Pitaacutegoras havia aprendido de Orfeu

discursos e misteacuterios Os antigos acreditavam que Pitaacutegoras seria um devoto de Orfeu e

do mestre havia recebido suas doutrinas esoteacutericas A associaccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo passa a ser tatildeo comum que foi cunhada a expressatildeo oacuterfico-pitagoacuterico para

fazer referecircncia a praacuteticas cuacutelticas teorias da alma e ideias escatoloacutegicas compartilhadas

por orfismo e pitagorismo13

Pesquisadores recentes e contemporacircneos tendem a associar pitagoacutericos e oacuterficos

e a transmigraccedilatildeo da alma como principal ponto de encontro entre os dois grupos

Alguns propotildeem que Pitaacutegoras teria sido um tipo de mestre de religiatildeo e miacutestico mais

do que um filoacutesofo Essa tese foi defendida por Rohde para quem os primeiros

pitagoacutericos adotaram teorias de natureza puramente religiosa as quais se aproximavam

das religiotildees de misteacuterio como o Orfismo Rohde apresenta vaacuterios temas

compartilhados por oacuterficos e pitagoacutericos

(i) a crenccedila na necessidade de a alma expiar uma culpa atraveacutes de

transmigraccedilotildees e puniccedilotildees infernais

(ii) a doutrina da alma prisioneira de um corpo

(iii) a nova encarnaccedilatildeo seria condicionada pela vida passada

(iv) a vida em comunidades isoladas

(v) praacutetica do ascetismo iniciaccedilotildees e purificaccedilotildees como meio de salvaccedilatildeo 14

13 Bernabeacute 2014 p141

14 Cf Rohde 1950 p375

22

Pesquisadores contemporacircneos como Kingsley tambeacutem acreditam que os

primeiros pitagoacutericos estavam ligados agrave religiatildeo

(i) eles mantinham profundas afinidades com oraacuteculos e revelaccedilotildees

(ii) a casa de Pitaacutegoras tinha a reputaccedilatildeo de casa de misteacuterios

(iii) eles seguiam preceitos rituais como dogmas a serem obedecidos

(iv) pitagoacutericos como Empeacutedocles apresentaram seu ensino como uma forma

de revelaccedilatildeo divina15

Pesquisas mais recentes tendem a apontar temas compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos na antiguidade mas tambeacutem ressaltam as suas distinccedilotildees Bernabeacute acredita

que Pitaacutegoras provavelmente tomou componentes de sua doutrina da literatura teoloacutegica

oacuterfica poreacutem eacute bem mais comedido em sua apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e

oacuterficos na antiguidade16 Ele apresenta vaacuterios temas em que oacuterficos e pitagoacutericos

coincidiam o quais resumimos aqui

(i) o tema da vida oacuterfica e da vida pitagoacuterica

(ii) o papel de destaque da deusa Memoacuteria na escatologia oacuterfica e a

importacircncia que pitagoacutericos atribuem agrave deusa Memoacuteria

(iii) a utilizaccedilatildeo de frases ou senhas difiacuteceis e que tem um profundo sentido

para os iniciados

15 Kingsley 1995 p 319

16 Bernabeacute 2014 p 143

23

(iv) a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma17

Por outro lado Bernabeacute tambeacutem ressalta as diferenccedilas apontando vaacuterios temas

da tradiccedilatildeo oacuterfica que estatildeo ausentes no pitagorismo como

(i) pessimismo em relaccedilatildeo ao corpo

(ii) a culpa que mancha alma

(iii) a busca por uma salvaccedilatildeo da alma individual alheia ao mundo poliacutetico

(iv) a relaccedilatildeo com o deus Dioniso e com os misteacuterios baacutequicos

(v) a purificaccedilatildeo por meios religiosos18

Zhmud ainda eacute mais contundente na distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

tentando reconstruir a figura mais filosoacutefica do Pitaacutegoras histoacuterico Conforme Zhmud a

primeira referecircncia ao personagem histoacuterico Pitaacutegoras eacute feita por Xenoacutefanes num

contexto em que satiriza a doutrina da metempsicose tal como Pitaacutegoras ensinava a

qual incluiacutea a possibilidade de a alma renascer em corpos de animais Portanto esse

testemunho conecta o nome de Pitaacutegoras com a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma

numa eacutepoca anterior agrave eacutepoca de Platatildeo19 Zhmud afirma que os pitagoacutericos se

apropriaram da doutrina oacuterfica da transmigraccedilatildeo da alma e a transformaram mas

acentua que a doutrina puramente religiosa natildeo teve consideraacutevel influecircncia na

construccedilatildeo pitagoacuterica de noccedilotildees filosoacuteficas da alma20 Ele tenta separar ao maacuteximo a

17 Bernabeacute 2014 p 144-146

18 Bernabeacute 2014 p147

19 Zhmud 2012 p30-31

20 Zhmud 2012 p388

24

figura de Pitaacutegoras das religiotildees de misteacuterios enquanto buscar recuperar uma

interpretaccedilatildeo mais ldquofilosoacuteficardquo de Pitaacutegoras Segundo ele esses satildeo os pontos decisivos

para uma distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos

(i) os oacuterficos tem o seu proacuteprio culto os pitagoacutericos natildeo

(ii) os pitagoacutericos adotam a doutrina oacuterfica da metempsicose mas a

divorciaram da escatologia e antropogonia oacuterfica deixando de ser uma

doutrina religiosa de salvaccedilatildeo

(iii) o motivo da culpa ancestral natildeo estaacute presente no antigo pitagorismo21

(iv) os pitagoacutericos natildeo veem a transmigraccedilatildeo da alma como puniccedilatildeo por

culpas preacutevias mas como sendo natural e apropriado que as almas se

alojem em corpos de humanos e de animais

(v) a transmigraccedilatildeo cumpre um ciclo de necessidade sendo bem diferente da

ideia oacuterfica de um ciclo de dores do qual a alma do iniciado anseia

escapar

(vi) aleacutem disso natildeo estaacute claro que para os pitagoacutericos a alma se libertaria do

ciclo de renascimentos e retornariam para os deuses como era o anseio

dos oacuterficos sendo possiacutevel que a versatildeo pitagoacuterica da metempsicose

implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da alma22

21 Em outras palavras os pitagoacutericos natildeo sustentam a ideia oacuterfica da culpa e impureza ancestral

fundamentada pelo mito oacuterfico de Dioniso e os Titatildes o qual servia de base para explicar a razatildeo

pela qual as almas tinham de transmigrar e seguir um caminho de salvaccedilatildeo por meio da

purificaccedilatildeo da alma

22 Zhmud 2012 p 228-230

25

Ao mesmo tempo que novas pesquisas ressaltam a distinccedilatildeo entre orfismo e

pitagorismo elas ratificam pontos fundamentais de contato entre eles como a doutrina

da transmigraccedilatildeo da alma embora cada ciacuterculo tivesse a sua proacutepria versatildeo e a

preocupaccedilatildeo com a purificaccedilatildeo embora os meios e objetivos de purificaccedilatildeo pudessem

ser diferentes 23 Satildeo justamente esses temas baacutesicos compartilhados por oacuterficos e

pitagoacutericos que aparecem no Feacutedon onde temos uma mistura de versotildees oacuterficas e

pitagoacutericas desses temas comuns

Vejamos algumas evidecircncias para um contexto pitagoacuterico no Feacutedon

242 Cenaacuterio

A conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates acontece em Fliunte uma pequena cidade

do Peloponeso centro da filosofia pitagoacuterica onde viveram vaacuterios dos uacuteltimos

pitagoacutericos24 Os historiadores dizem que com a perseguiccedilatildeo aos pitagoacutericos por volta

de 450 os lugares onde os pitagoacutericos se reuniam foram incendiados adeptos do ciacuterculo

pitagoacuterico foram mortos no nordeste da Itaacutelia e logo novos centros do pitagorismo

surgiram na Greacutecia central especialmente em Tebas e Fliunte 25 Natildeo sabemos ao certo

se o cenaacuterio teve alguma relevacircncia histoacuterica para Platatildeo

23 Natildeo haacute consenso sobre quem foram os primeiros a aderir agrave doutrina da metempsicose se

oacuterficos ou pitagoacutericos Ao que parece nem mesmo os antigos estavam seguros se os oacuterficos

haviam tomado suas doutrinas de Pitaacutegoras como sustentava Heroacutedoto ou se os pitagoacutericos dos

oacuterficos como propunham Jacircmblico e os neoplatocircnicos (Cf Bernabeacute 2004 p137)

24 Gallop p 2002 p74 Hackforth 1998 p29

25 Zhmud 2012 p107

26

243 Narrador

A histoacuteria eacute narrada por Feacutedon a Equeacutecrates O diaacutelogo inicia com a uma

enfaacutetica apresentaccedilatildeo do narrador Feacutedon ldquo Feacutedon vocecirc mesmo (αὐτός ὦ Φαίδων)

estava presente no dia em que Soacutecrates bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por

outra pessoardquo ldquoEu mesmo estava presente Equeacutecratesrdquo (αὐτός ὦ Ἐχέκρατες) (57a1

4) A figura histoacuterica parece ter sido um escravo que ao libertar-se aderiu ao ciacuterculo

socraacutetico e posteriormente fundou a sua proacutepria escola filosoacutefica26

Feacutedon eacute um disciacutepulo de Soacutecrates que natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo direta com o

pitagorismo Ele adere completamente agrave posiccedilatildeo de Soacutecrates de que a alma do filoacutesofo

desceraacute ao Hades ao contraacuterio dos pitagoacutericos que apresentam objeccedilotildees a essa crenccedila

(Cf 58e-59a) Apesar das suas raacutepidas intervenccedilotildees ao longo do diaacutelogo Feacutedon figura

como um aliado uacutetil para Soacutecrates na refutaccedilatildeo de Simmias e Cebes (89b-90d)

244 Testemunhas da morte de Soacutecrates

Feacutedon apresenta os amigos que estavam presente no dia da morte de Soacutecrates

Os atenienses satildeo Apolodoro Criacuteton Critoacutebulo com seu pai Hermoacutegenes Epiacutegenes

Eacutesquines Antiacutestenes Ctesipo Menexeno e mais alguns Platatildeo estava doente diz

Feacutedon (59b) Os estrangeiros eram Feacutedon Siacutemias Cebes Fedondes Euclides e

Teacuterpsion Estavam ausentes Aristipo e Cleocircmbroto (59c) Xenofonte reconhece a

distinccedilatildeo desse grupo ao dizer que Criacuteton Hermoacutegenes Siacutemias Cebes Fedondes e

outros estavam associados com Soacutecrates natildeo com o fim de se tornarem demagogos ou

26 Dorter 1982 p 9 10

27

para vencer demandas judiciais mas para se tornarem homens bons e nobres capazes

de prestar um bom serviccedilo agrave famiacutelia parentes amigos e concidadatildeos27

Entre essas personalidades estatildeo pelos menos trecircs pitagoacutericos Filolau de

Crotona e seus disciacutepulos Siacutemias e Cebes de Tebas os principais interlocutores de

Soacutecrates no diaacutelogo Embora Filolau seja apenas mencionado no diaacutelogo ele requer

mais atenccedilatildeo por causa da sua relaccedilatildeo com os principais interlocutores de Soacutecrates no

diaacutelogo

245 Filolau

O texto crucial para qualquer reconstruccedilatildeo da vida de Filolau eacute a passagem do

Feacutedon 61d a qual sugere que Filolau passou um tempo em Tebas onde ensinou a

Siacutemias e Cebes em algum momento anterior agrave morte de Soacutecrates em 39928 Os

testemunhos antigos recolhidos por Huffman sobre a vida de Filolau relatam

basicamente o seguinte

(i) Filolau foi um mestre pitagoacuterico de renome o qual teria nascido em

algum momento antes de 440 e poderia inclusive ter sido contemporacircneo

de Soacutecrates

(ii) Testemunhos divergem sobre a sua origem Crotona ou Tarento

27 Memoraacuteveis 1248 31117 312

28 Hufmann 1993 p1

28

(iii) Filolau e um amigo tiveram de deixar a Itaacutelia para fugir de um atentado ndash

puseram fogo no lugar onde os pitagoacutericos se reuniam29

(iv) Os antigos costumavam associar Filolau e Platatildeo 30

Apesar do problema da confiabilidade dos testemunhos antigos parece natildeo

haver duacutevida de que o Filolau a quem Platatildeo se refere no Feacutedon era realmente o famoso

mestre pitagoacuterico conhecido agrave eacutepoca de Platatildeo o qual teria nascido na estimativa de

Ruffman por volta de 470 31 Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve

vaacuterios pupilos dentre os quais Siacutemias e Cebes como sugere o Feacutedon32 Huffman

acredita que depois de Pitaacutegoras existem trecircs proeminentes nomes no pitagorismo

Hipaso (c 530-450) Filolau (c 470-385) e Arquitas (430-350) 33

246 Principais Interlocutores de Soacutecrates ndash Cebes e Siacutemias

Os principais interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon natildeo satildeo atenienses mas

tebanos (59c) Como diz Sedley eles satildeo filoacutesofos hiacutebridos disciacutepulos de Soacutecrates e

Filolau (61d)34 A relaccedilatildeo entre Filolau reconhecido mestre pitagoacuterico e Siacutemias e

Cebes eacute forte indiacutecio de que os amigos de Soacutecrates tambeacutem satildeo adeptos do pitagorismo

29 Hufmann 1993 p3-4 6-7

30 Hufmann 1993 p3-4 6-7

31 Hufmann 1993 p6

32 Zhmud 2012 p128

33 Zhmud 2012 p8

34 Sedley 1995 p13

29

Contra esta ideia Rowe afirma que a simples associaccedilatildeo com Filolau natildeo torna Siacutemias e

Cebes pitagoacutericos nem haacute registros fora do Feacutedon que testemunhem que eles satildeo

pitagoacutericos35 Mas eacute difiacutecil negar que Soacutecrates sugere uma relaccedilatildeo menor do que a de

mestre-disciacutepulo quando fala do processo de aprendizagem ao qual seus amigos se

submeteram quando estiveram aos peacutes de Filolau em Tebas Como explica Zhmud

Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve vaacuterios pupilos dentre os

quais Siacutemias e Cebes36

Siacutemias e Cebes tambeacutem satildeo fieacuteis membros do ciacuterculo socraacutetico eles satildeo

mencionados no Criacuteton (45a-b) como estrangeiros dispostos a coletar fundos para

subornar o guarda e comprar a fuga de Soacutecrates da prisatildeo

No Feacutedon Cebes eacute certamente o principal interlocutor de Soacutecrates

(i) Tem um gecircnio agradaacutevel ele ri em pelo menos trecircs ocasiotildees no diaacutelogo

(62a 77e 103b) Sua postura ceacutetica diante da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates

eacute fundamental para o desenvolvimento do diaacutelogo (81d-82b 102b-107a)

(ii) Ele eacute apresentado como algueacutem difiacutecil de convencer pelos argumentos

(63a)

(iii) Eacute um interlocutor capaz e interveacutem com frequecircncia no diaacutelogo pede que

Soacutecrates explique o que deveria responder a Eveno o qual deseja saber

por que Soacutecrates se dedica agrave composiccedilatildeo de poemas na cadeia (60d) ele

confronta a tese de que os filoacutesofos desejam morrer (63a-d) e confronta a

crenccedila de Soacutecrates na descida da alma ao Hades o que daacute iniacutecio agrave etapa

35 Rowe 1993 p7 36 Zhmud 2012 p128

30

demonstrativa (69e-70a) suas objeccedilotildees datildeo iniacutecio agrave etapa demonstrativa

(70a) e ao uacuteltimo argumento (95b-e) praticamente introduz o segundo

argumento no Feacutedon (72e-73b)

Siacutemias eacute mencionado no Fedro (242b) como algueacutem que ama os discursos No

Feacutedon ele eacute apresentado como um jovem bem interessado em filosofia (89a4) e o

proacuteprio Soacutecrates o reconhece como interlocutor inteligente (86d) Ele tem vaacuterias

participaccedilotildees importante no diaacutelogo

(i) Apresenta uma interessante teoria da alma-harmonia (61d7 86d2)

(ii) Apresenta objeccedilotildees em pontos-chave do diaacutelogo mas em geral tende a

concordar e reforccedilar o discurso de Soacutecrates ou o de Cebes (Cf77a-b)

(iii) Siacutemias ri em uma ocasiatildeo quando dialoga com Soacutecrates (64a)

(iv) Vaacuterias vezes o diaacutelogo ocorre entre ele e Soacutecrates (63c-69e 73b-77b

92b-95a)

(v) Uma das participaccedilotildees mais polecircmicas de Siacutemias ocorre depois da

apresentaccedilatildeo da conclusatildeo do uacuteltimo argumento enquanto Cebes natildeo

tem objeccedilotildees e nem razotildees para desconfiar do argumento de Soacutecrates

Siacutemias diz que natildeo tem nenhuma objeccedilatildeo ao argumento contudo por

causa da grandeza do assunto da debilidade humana ele se vecirc obrigado a

cultivar em seu iacutentimo alguma desconfianccedila (107a-107b)

31

247 Equeacutecrates

Equeacutecrates eacute cidadatildeo de Fliunte (57a) e ceacutelebre filoacutesofo pitagoacuterico Feacutedon narra

o diaacutelogo para um pitagoacuterico Equeacutecrates tem algumas participaccedilotildees importantes no

diaacutelogo

(i) No proacutelogo ele se mostra muito interessado em saber com detalhes o que

aconteceu com Soacutecrates na prisatildeo e requer uma explicaccedilatildeo com a

maacutexima exatidatildeo dos fatos ocorridos (58c) Ele quer saber tudo que se

passou com Soacutecrates na cadeia (57a-b 58c) inclusive quais amigos

estavam presentes (58c 59b)

(ii) Ele interrompe a narraccedilatildeo de Feacutedon em dois pontos importantes do

diaacutelogo (88c-89a 102a4-10)

(iii) Eacute uma personagem importante porque todo o diaacutelogo eacute narrado para ele

25 Conclusatildeo

Portanto tudo indica que as personagens principais do diaacutelogo estatildeo pelo menos

envolvidas com pitagoacutericos

32

3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)

31 Antigo Relato

A etapa demonstrativa oferece uma soluccedilatildeo para o problema apresentado no

estaacutegio de transiccedilatildeo do diaacutelogo certa ideia de que a alma poderia ser dispersa e

destruiacuteda na hora da morte (69e-70b) Em resposta agrave objeccedilatildeo de Cebes Soacutecrates se

propotildee a examinar o seguinte problema ldquo() se de algum modo as almas das pessoas

que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Aparentemente Soacutecrates considera que

se as almas dos que morrem estatildeo no Hades seria falsa a afirmaccedilatildeo de que as almas

podem ser destruiacutedas bem na hora em que a alma se separa do corpo Soacutecrates logo

introduz no diaacutelogo um antigo relato segundo o qual as almas passam por um ciclo de

transmigraccedilotildees

ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual as

almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute vindo

a ser dos mortosrdquo (70c5-8)

Esse antigo relato eacute apresentado em tom solene Soacutecrates evoca a autoridade da

lsquoantiga tradiccedilatildeorsquo (παλαιὸς τις λόγος) Platatildeo ressalta o tom solene da doutrina bem

como a forccedila peso e autoridade da tradiccedilatildeo com a qual estaacute lidando O conteacuteudo do

relato eacute basicamente a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma compartilhada especialmente

por oacuterficos e pitagoacutericos na antiguidade

33

Portanto Platatildeo estaacute em diaacutelogo com a crenccedila sustentada especialmente por

seitas de misteacuterios e natildeo pela religiatildeo tradicional certamente uma doutrina

compartilhada por oacuterficos e pitagoacutericos37 Aleacutem de um contexto pitagoacuterico haacute vaacuterias

alusotildees a crenccedilas sustentadas por religiotildees de misteacuterio como o Orfismo no Feacutedon Por

exemplo em 62b Soacutecrates fala do lsquoconteuacutedo que se encontra nos textos secretosrsquo e em

69c fala lsquodos que instituiacuteram os ritos iniciaacuteticosrsquo A proacutepria crenccedila na descida ao Hades

depois que a alma se separa do corpo eacute tipicamente oacuterfica (e pitagoacuterica) O que temos

no relato antigo e no argumento ciacuteclico ndash a ideia de transmigraccedilatildeo juntamente com a

descida ao Hades ndash eacute algo diferente da concepccedilatildeo homeacuterica e da religiatildeo grega

tradicional Esse dado diverge do ideaacuterio religioso homeacuterico e tradicional e identifica o

antigo relato e o contexto em que Platatildeo constroi o argumento ciacuteclico como sendo

tipicamente oacuterfico e pitagoacuterico 38

O Orfismo se estabelece como uma religiatildeo de misteacuterio cujo conteuacutedo

doutrinaacuterio e rituais sagrados eram mantidos em segredo Era uma religiatildeo livre

independente da estrutura social e ligada agraves camadas populares Vejamos algumas

crenccedilas oacuterficas e evidecircncias para um contexto oacuterfico no Feacutedon

32 Orfismo e o Feacutedon

321 Hades

37 Cf Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p91-92

38 Cf Bernabeacute 2011 p163

34

A mitologia do Hades estaacute no centro da crenccedila oacuterfica e ocupa lugar de relevacircncia

no contexto amplo do Feacutedon No Orfismo o Hades eacute tanto o senhor da morada do

mundo inferior como tambeacutem por extensatildeo o nome desse mundo do aleacutem 39 Sendo o

Orfismo uma religiatildeo que sustenta a transmigraccedilatildeo da alma e as recompensas e castigos

poacutestumos a descida ao Hades eacute um tema fundamental na tradiccedilatildeo oacuterfica40

Entre os documentos oacuterficos as lacircminas de ouro (as quais eram enterradas com

os mortos) satildeo uma das mais importantes fontes para o estudo da crenccedila oacuterfica sobre o

Hades A partir delas eacute possiacutevel reconstruir em linhas gerais a topografia infernal oacuterfica

o Hades oacuterfico eacute um lugar subterracircneo para onde se conduzem as almas e eacute tambeacutem a

mansatildeo de Hades Essa topografia infernal estaacute relacionada diretamente com a crenccedila

oacuterfica em puniccedilotildees e julgamento apoacutes a morte Os impuros seriam punidos no Hades de

acordo com a sua maacute conduta sobre a Terra Posteriormente eles retornariam agrave vida na

Terra como mais um tipo de puniccedilatildeo e tambeacutem como periacuteodo de provaccedilatildeo uma nova

oportunidade para aderir ao estilo de vida oacuterfica e assim purificar-se e preparar-se para

a descida ao Hades Platatildeo estaacute bem familiarizado com o tema dos castigos infernais os

quais aparecem em vaacuterias obras aleacutem do Feacutedon Na Repuacuteblica 330d eacute dito que

segundo os mitos sobre o Hades quem comete injusticcedila aqui deve pagar laacute a pena Nas

Leis 870d os que se ocupam dos misteacuterios dizem que no Hades haacute um castigo para os

delitos e que eacute obrigatoacuterio voltar ao mundo dos vivos para a pena exigida

Os iniciados aguardavam uma vida bem-aventurada no Hades e a libertaccedilatildeo final

do ciclo de transmigraccedilotildees vivendo o estilo de vida oacuterfico na esperanccedila de descer ao

39 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p509

40 Guthrie 1970 p165

35

Hades e desfrutar da recompensa41 Como veremos adiante Soacutecrates possui uma

expectativa semelhante agrave dos oacuterficos para ele seria natural que o filoacutesofo que dedica a

vida agrave filosofia deseje a morte uma vez que o legiacutetimo filoacutesofo deve esperar a definitiva

bem-aventuranccedila no Hades

Esse grupo de lacircminas de ouro testemunham inclusive instruccedilotildees aos iniciados

sobre como proceder corretamente na morada do Hades42 Elas apresentam orientaccedilotildees

como a necessidade de seguir pela direita e de beber da aacutegua da fonte correta a qual

permitiria que o iniciado permanecesse no Hades e desfrutasse da bem-aventuranccedila

definitiva em vez de voltar ao ciclo de transmigraccedilotildees43 As lacircminas tambeacutem trazem

foacutermulas ou senhas a serem pronunciadas pelos iniciados quando questionados pelos

guardiatildees as quais permitiam que o morto fosse reconhecido como puro e iniciado 44 A

Lacircmina de Farsalo por exemplo afirma que os guardiatildees que laacute estatildeo perguntaratildeo ao

iniciado por que motivo ele veio Outras perguntas comuns satildeo ldquoMas quem eacute vocecirc e de

onde eacuterdquo ou ldquoO que busca nas trevas do Hades sombriordquo 45 A resposta mais frequente

a essas perguntas eacute ldquoSou filho da Terra e do Ceacuteu estreladordquo 46

Aleacutem de instruccedilotildees aos iniciados tambeacutem eacute possiacutevel encontrar nessas lacircminas

de ouro a antecipaccedilatildeo do destino final no Hades Nas lacircminas de Turi e Pelina temos

inclusive o que espera o iniciado no Hades antecipando-lhes basicamente a bem-

41 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500 Guthrie 1970 p157-158

42 Albinus 2000 p147

43 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500-501

44 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Cf Gazzinneli 2007 p17

45 Gazzinelli 2007 p 75-76

46 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Gazzinelli 2007 p 75-76

36

aventuranccedila a ser desfrutada pela alma do iniciado a saber o abandono definitivo da

esfera humana e o acesso ao reino dos bem-aventurados47

Esse breve apanhado revela um pouco da centralidade e importacircncia do Hades

na crenccedila oacuterfica O leitor do Feacutedon pode perceber que natildeo apenas o Hades ocupa lugar

de importacircncia ao longo de todo o diaacutelogo mas que o tipo de expectativa que Soacutecrates

nutre pelo Hades em muito se assemelha agraves expectativas dos iniciados oacuterficos A crenccedila

no Hades estaacute presente em todo o diaacutelogo inclusive na conclusatildeo do argumento ciacuteclico

as almas dos que morrem vatildeo para o Hades (cf71e72a 72d)

Portanto no Feacutedon a personagem Soacutecrates eacute portadora de uma concepccedilatildeo do

destino humano que aponta para aleacutem do mundo visiacutevel e para aleacutem do corpo mortal

para uma forma superior de vida no Hades concepccedilatildeo compartilhada pelos oacuterficos e

pitagoacutericos48

Eacute possiacutevel identificar a existecircncia de pontos de encontro entre o Hades oacuterfico e o

Hades apresentado no Feacutedon assim como tambeacutem existe forte semelhanccedila entre a

expectativa oacuterfica da descida ao Hades e a expectativa de Soacutecrates da descida ao Hades

Eacute plausiacutevel que Platatildeo esteja realmente se apropriando e se utilizando de conceitos

oacuterficos de retribuiccedilotildees no Hades aos iniciados como conveacutem agrave sua filosofia O iniciado

oacuterfico enxerga a morte como algo bom e se prepara a vida inteira para essa ocasiatildeo que

se traduz na oportunidade de alcanccedilar a redenccedilatildeo final a separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo a libertaccedilatildeo do ciclo de transmigraccedilotildees Soacutecrates tambeacutem vecirc a morte sob uma

oacutetica natildeo muito diferente De acordo com a utilizaccedilatildeo platocircnica da ideia oacuterfica da

descida ao Hades a morte e a chegada ao Hades representam a redenccedilatildeo final do

47 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p518

48 Kahn 2007 p18 19

37

legiacutetimo filoacutesofo Eacute a ocasiatildeo em que ele livre dos impedimentos do corpo teraacute livre

acesso agrave verdade que busca durante toda a vida (Cf 68a-b) A realidade do Hades como

destino das almas continua presente no final do uacuteltimo argumento quando Soacutecrates

conclui natildeo apenas que a alma eacute imortal e impereciacutevel mas tambeacutem que ldquoas nossas

almas existiratildeo no Hadesrdquo (106e-107a)

322 Purificaccedilatildeo mito de Dioniso e praacuteticas oacuterficas

As crenccedilas oacuterficas se fundamentam sobre o mito de Dioniso e os Titatildes o mito

fundante da antropogonia oacuterfica Apesar de alguns pesquisadores questionarem a

antiguidade desse mito uma soacutelida tradiccedilatildeo de estudiosos do Orfismo vem sustentando

que se trata realmente de um mito fundamental na articulaccedilatildeo das crenccedilas da religiatildeo

oacuterfica Segundo uma soacutelida e difusa tradiccedilatildeo de um relacionamento incestuoso entre

Zeus e a filha Perseacutefone se origina o deus Dioniso o qual eacute destinado a se tornar o novo

rei dos deuses O nascimento suscita o ressentimento de Hera esposa de Zeus a qual

instiga os Titatildes contra Dioniso Os Titatildes enganam Dioniso com brinquedos com o

objetivo de o atrair Assim eles o matam desmembram em sete partes cozinham e o

devoram Contudo Atena descobre o fito em tempo de resgatar o coraccedilatildeo ainda

batendo o qual a deusa leva ateacute Zeus num cesto Indignado Zeus fulmina os Titatildes

ressuscita um novo Dioniso a partir de um coraccedilatildeo sobrevivente e cria a humanidade49

Sendo assim o homem possui um elemento mau impuro como heranccedila dos Titatildes e um

49 Albinus 2000 p112

38

elemento bom (a alma uma centelha do divino) como heranccedila de Dioniso Esses dois

elementos constituem a dual natureza humana representada pelo corpo e alma50

As praacuteticas oacuterficas buscam libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do

ciclo de reencarnaccedilotildees fazendo com que a alma retorne completamente agrave sua origem

dionisiacuteaca (a alma divina) Por causa da natureza titacircnica a alma estaacute obrigada a expiar

a culpa presa ao corpo ao longo de vaacuterias vidas Sendo de divina e imortal a alma

transmigra a outro corpo quando aquele em que estaacute alojada morre Para libertar-se da

maacutecula titacircnica o fiel deve seguir um estilo de vida governado por uma seacuterie de rituais e

observacircncias ateacute que cumpridas as condiccedilotildees a alma divina e imortal se liberta do ciclo

de transmigraccedilotildees e se reintegra a sua comunidade com os deuses Enquanto natildeo

cumpre as condiccedilotildees necessaacuterias prossegue o ciclo de males e transmigraccedilotildees a que a

alma impura estaacute sujeita51

323 O corpo como tumba da alma puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo

A partir do mito de Dioniso Zagreu se desenvolveu a ideia de que o corpo eacute vil

enquanto de natureza titacircnica e a alma divina e imortal enquanto de natureza

dionisiacuteaca Drsquoanna explica que desse mito procede a doutrina oacuterfica que concebe o

corpo como uma tumba ou sepulcro da alma bem como a crenccedila soterioloacutegica num tipo

de lsquoredenccedilatildeo finalrsquo do homem que consistiria na libertaccedilatildeo completa da alma de seu

caacutercere corporal52 Para os oacuterficos o corpo oblitera a libertaccedilatildeo da natureza dionisiacuteaca

50 Rohde 1950 p 341-342

51 Cf Drsquoanna 2010 p 77-78 Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p591-592

52 Drsquoanna 2010 p 98

39

do ser humano razatildeo pela qual eles parecem ter abraccedilado uma doutrina de que a alma eacute

um tipo de prisatildeo ou tumba do corpo53 Essa ideia de que o corpo eacute uma prisatildeo da alma

eacute identificada como um ensino oacuterfico no Craacutetilo 400c e tambeacutem aparece no Goacutergias

493a onde se diz que o corpo eacute para noacutes uma sepultura

De acordo com a doutrina oacuterfica o trabalho do ser humano eacute libertar-se das

cadeias desse corpo mortal no qual a alma estaacute atada como um prisioneiro numa cela A

morte liberta a alma apenas por um curto periacuteodo de tempo pois a alma deve voltar a

sofrer o aprisionamento em outro corpo mortal continuando a sua jornada submetendo-

se a um lsquociacuterculo de necessidadersquo Contudo existe um meio pelo qual o ser humano pode

livrar-se desse perpeacutetuo ciclo de renascimentos O ser humano precisa da revelaccedilatildeo dos

misteacuterios de Orfeu para encontrar um caminho de salvaccedilatildeo o fiel deve seguir as

ordenanccedilas previstas pela religiatildeo Os fieacuteis natildeo devem seguir apenas os sacros misteacuterios

da parte de Orfeu mas uma completa vida oacuterfica deve ser observada renunciando tudo

que relaciona a pessoa agrave mortalidade e agrave vida corporal Tambeacutem o Hades exerce um

papel nesse processo de purificaccedilatildeo da natureza mortal ali os impuros sofrem puniccedilatildeo e

satildeo purgados como um tipo de justiccedila compensatoacuteria A transmigraccedilatildeo tambeacutem eacute

fundamental para a purificaccedilatildeo uma vez que os atos de uma vida passada satildeo

recompensados uma proacutexima vida Tudo isso capacita o fiel a obter o favor e

purificaccedilatildeo da divindade 54

As praacuteticas oacuterficas para a purificaccedilatildeo eram transmitidas pelos orfeotelestaiacute

(ὀρφεοτελεσταί) sacerdotes que viviam um estilo de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός) Orfeu

53 Cf Craacutetilo 400c onde Platatildeo menciona semelhante doutrina antiga e a atribui aos oacuterficos

54 Rohde 1950 p342-344

40

era crido na antiguidade por ter introduzido os ritos (ὄργια) de iniciaccedilatildeo (τελετή) na

Greacutecia O objetivo dessa praacutetica cultual era esoteacuterico e soterioloacutegico visando a salvaccedilatildeo

escatoloacutegica55 Havia uma lista austera de normas de conduta e observacircncias como

ausecircncia dos ciacuterculos sociais ritos fuacutenebres ascetismo e abstinecircncia rituais para

purificaccedilatildeo da culpa e expiaccedilatildeo abstinecircncia de carne proibiccedilatildeo de matar animais

associada a uma dieta estritamente vegetariana56 Essa vida austera com todo rigor

asceacutetico se justifica porque para o oacuterfico o corpo com seus apetites e paixotildees eacute a fonte

de toda sorte de mau a natureza titacircnica que aprisiona a alma Sendo assim o estilo de

vida oacuterfico visa libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo Nesse processo de

purificaccedilatildeo o iniciado exalta e libera cada vez mais a sua natureza dionisiacuteaca (a alma

divina e imortal) de sua prisatildeo corporal ateacute que finalmente alcance uma condiccedilatildeo

suficiente para a definitiva descida ao Hades quando ele finalmente se juntaria aos

deuses imortais Cada reencarnaccedilatildeo traz uma oportunidade para abreviar o ciclo de

encarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo

Em suma existe uma lista de praacuteticas que cooperam para a redenccedilatildeo final do

iniciado as penas infernais as reencarnaccedilotildees o estilo de vida oacuterfica as praacuteticas dos

rituais de misteacuterios e o correto procedimento ao chegar ao Hades satildeo meios para a

obtenccedilatildeo da redenccedilatildeo final que basicamente consiste na separaccedilatildeo definitiva da alma

do corpo quando cessa o ciclo de reencarnaccedilotildees e a alma se une aos deuses no Hades

Encontramos vaacuterias referecircncias aos iniciados nos documentos oacuterficos como

mostramos nos seguintes exemplos

55 Albinus 2000 p103

56 Alderink 1981 p80-81 Albinus 2000 p103-104

41

(i) O Papiro de Gurob traz o seguinte verso 57 ldquoatraveacutes da iniciaccedilatildeo a mim

mutila para as penas dos pais descontarrdquo 58

(ii) Na lacircmina de ouro Feres haacute uma declaraccedilatildeo de que o iniciado que acaba

de chegar ao Hades natildeo mais teria penas a cumprir ficando assim livre

do ciclo de transmigraccedilatildeo ldquoEntre no campo sagrado Pois o iniciado

natildeo (tem) penardquo59

(iii) Na Lacircmina de Hipocircnio os iniciados eacute que satildeo dirigidos por um caminho

singular no Hades ldquoE vocecirc tendo bebido iraacute pelo caminho sagrado pelo

qual os outros iniciados (mystai) e baacutequicos (baacutecchoi) seguem

renomadosrdquo 60

(iv) Nas lacircminas de Turi I II III os iniciados se identificam como puros na

chegada ao Hades ldquoVenho dentre os puros oacute pura Rainha dos Infernosrdquo

Nas lacircminas de Turi I e II o iniciado solicita que por ser puro ele seja

enviado para ldquoo assento dos purosrdquo 61 62

57 Gazzinneli 2007 p67

58 Gazzinneli 2007 p67

59 Gazzinneli 2007 p81

60 Gazzinneli 2007 p73

61 Gazzinneli 2007 p78 79

62 A Repuacuteblica de Platatildeo faz alusatildeo aos oacuterficos e seus ritos de purificaccedilatildeo os quais envolveriam

sacrifiacutecios e conjuros durantes as festas denominadas misteacuterios As praacuteticas seriam chamadas de

expiaccedilatildeo e poderiam reparar as faltas pessoais e dos antepassados livrando os iniciados dos

males do Hades (Cf R 2 364b-365a)

42

324 Puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo no Feacutedon

Haacute vaacuterios exemplos claros da utilizaccedilatildeo das ideias oacuterficas de purificaccedilatildeo e

iniciaccedilatildeo no Feacutedon Platatildeo se utiliza do tema de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός)

especialmente a ideia da iniciaccedilatildeo purificaccedilatildeo e redenccedilatildeo Temos um bom exemplo em

69a-d pouco antes de Soacutecrates fazer referecircncia agrave antiga tradiccedilatildeo Nos ritos de

purificaccedilatildeo oacuterfica os iniciados geralmente passavam lama ou lodo no corpo com o

objetivo de limpar ou apagar a maacutecula63 No Feacutedon Soacutecrates afirma que os homens que

instituiacuteram os misteacuterios natildeo eram mediacuteocres e que eles estavam certos ao dizer que ao

chegar ao Hades os iniciados e purificados iratildeo habitar com os deuses enquanto os

natildeo-iniciados e impuros vatildeo jazer na lama (69c 110a5-6 111d5-e2 113a6-b6 c3-7

81a4-6) A lama ou lodo portanto tanto servia para propoacutesitos de purificaccedilatildeo nos

rituais oacuterficos conforme os testemunhos antigos quanto no Hades no caso de pessoas

natildeo-iniciadas

Soacutecrates nutre a esperanccedila de que seraacute recompensado no Hades e natildeo somente

ele mas todo aquele cuja mente estaacute pronta e purificada (67c) No Hades os iniciados

habitaratildeo com os deuses e os natildeo-iniciados jazeratildeo na lama (69c) Eacute bem provaacutevel que

Platatildeo esteja utilizando ideias escatoloacutegicas oacuterficas64

Tambeacutem eacute importante notar que a ideia de iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo no Feacutedon estaacute

conectada com a concepccedilatildeo oacuterfica do corpo como prisatildeo da alma Semelhante doutrina

do aprisionamento da alma no corpo eacute introduzida no Feacutedon em 62b por ocasiatildeo da

discussatildeo sobre o suiciacutedio e eacute apresentada por Soacutecrates como sendo uma doutrina

63 Albinus 2000 p 135

64 Bernabeacute in Adluri 2013 p127-128

43

extraordinaacuteria e natildeo faacutecil de entender completamente ldquoA propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e que

ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendarrdquo (Cf 67d1-2 81e2 92a1) Em 82e Soacutecrates

retoma a ideia de que a alma estaacute presa ao corpo dizendo que mesmo os filoacutesofos satildeo

obrigados a considerar as realidades atraveacutes do corpo como que atraveacutes de uma prisatildeo

em vez de fazecirc-lo estritamente por meio de si mesma Soacutecrates ainda ressalta que a

proacutepria filosofia percebe que o pior dessa prisatildeo eacute que ela opera por meio dos desejos

de modo que o encarcerado pode se tornar o maior cuacutemplice de seu encarceramento

(82e)

Essa central doutrina oacuterfica que divide alma e corpo fazendo do corpo um mero

obstaacuteculo para a alma natildeo apenas exerceu uma tremenda fascinaccedilatildeo sobre Platatildeo como

tambeacutem permeia todo o Feacutedon juntamente com o uso da linguagem oacuterfica de iniciaccedilatildeo

A inovaccedilatildeo platocircnica no Feacutedon prevecirc novos meios de redenccedilatildeo para o iniciado e

uma nova ideia de salvaccedilatildeo Platatildeo desenvolve sua visatildeo de que filosofia eacute um meio de

purificaccedilatildeo da alma65 A purificaccedilatildeo filosoacutefica consiste na praacutetica de separar a alma do

corpo o quanto for possiacutevel evitando ao maacuteximo qualquer comunhatildeo com ele Essa

kaacutetharsis filosoacutefica equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (Feacutedon 64a) Sendo

assim o novo caminho para a iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo eacute a praacutetica da filosofia (69d) em

vez dos atos de redenccedilatildeo oacuterficos 66

Enquanto os iniciados seguem um estilo de vida oacuterfico e praacuteticas rituais para

expurgar a penalidade ancestral e a natureza titacircnica Soacutecrates prescreve o cultivo de

6565 Cf Dilman 1992 p20-21

66 Cf Albinus 2000 p139

44

virtudes associadas agrave sabedoria e o exerciacutecio da razatildeo como meios de purificaccedilatildeo Em

suma tudo isso pode ser resumido na praacutetica ou exerciacutecio da filosofia que Soacutecrates

chama de exerciacutecio de morte (81a)

Os iniciados oacuterficos devem descer ao Hades munidos de foacutermulas maacutegicas e

senhas para serem reconhecidos pelos guardiatildees da morada infernal e conseguirem

acesso aos lugares excelentes na versatildeo platocircnica de salvaccedilatildeo a alma deve manter-se

na melhor condiccedilatildeo possiacutevel de modo que a pessoa viva da melhor maneira possiacutevel

pois o que mais ajuda ao moribundo do iniacutecio ao fim de sua jornada ao Hades eacute a

educaccedilatildeo e treinamento que carrega consigo (107c-d) Como este estilo de vida a qual

Soacutecrates se refere sempre eacute o estilo de vida daquele que cuida da alma atraveacutes da praacutetica

da verdadeira filosofia que no Feacutedon consiste em rejeitar o corpo e dedicar-se a

alcanccedilar a sabedoria pelo exerciacutecio do intelecto somente

Os oacuterficos almejam um tipo de salvaccedilatildeo que consiste na liberaccedilatildeo do ciclo de

renascimentos No Feacutedon Soacutecrates se apropria dessa ideia oacuterfica e a aplica agrave esperanccedila

do filoacutesofo de alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo de renascimento e morte No Feacutedon natildeo se

diz explicitamente que todas as almas vatildeo alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo tal como os

filoacutesofos alcanccedilaratildeo No entanto Soacutecrates deixa evidente a distinccedilatildeo entre as almas que

satildeo definitivamente liberadas e aquelas que continuam a transmigrar A liberaccedilatildeo

definitiva do ciclo de renascimento e morte e a subsequente recompensa do filoacutesofo eacute

geralmente expressa em termos miacutetico-religiosos como lsquohabitar com as divindadesrsquo

(69C 81a4-6 82b10) ou obter a suprema bem-aventuranccedila em lsquomoradas bem

construiacutedasrsquo que vatildeo aleacutem de qualquer descriccedilatildeo (114c) Portanto Platatildeo se utiliza de

estruturas da doutrina oacuterfica para construir um tipo de ldquosoteriologia filosoacuteficardquo cujo

fundamento da salvaccedilatildeo eacute a praacutetica da verdadeira filosofia O tema da recompensa

45

poacutestuma eacute utilizado por Platatildeo para expressar os benefiacutecios a serem desfrutados por

aqueles que dedicam a vida agrave filosofia

Jaacute que a purificaccedilatildeo filosoacutefica eacute o exerciacutecio ou praacutetica da filosofia o iniciado

natildeo eacute mais o adepto das praacuteticas oacuterficas mas o filoacutesofo Soacutecrates declara explicitamente

isto quando lembra dos ritos oacuterficos em honra a Dioniso Ele explica que os adeptos dos

Misteacuterios costumam dizer que muitos carregam o tirso mas poucos satildeo os Bacantes

numa referecircncia aos que aderem ao culto a Dioniso mas natildeo se comprometem

totalmente com o deus Ao contraacuterio dos religiosos de aparecircncia existem os Bacantes

iniciados que estatildeo intimamente ligados ao deus praticando os Misteacuterios conforme o

deus requer Soacutecrates entatildeo utiliza a ideia oacuterfica em tom de paroacutedia afirmando que os

poucos Bacantes que existem natildeo satildeo aqueles religiosos que se exercitam nos Misteacuterios

mas os filoacutesofos ndash aqueles que realmente dedicam a vida agrave filosofia Aleacutem de definir o

iniciado como aquele que pratica a filosofia Soacutecrates provavelmente estaacute fazendo uma

distinccedilatildeo entre verdadeiros e falsos filoacutesofos dando a entender que haacute muitos ditos

filoacutesofos mas assim como poucos satildeo os Bacantes poucos tambeacutem satildeo os verdadeiros

filoacutesofos (Cf69c-d) Platatildeo estaacute oferecendo filosofia como substituto para os

misteacuterios67 Ele faz isso utilizando estruturas e siacutembolos oacuterfico-pitagoacutericos como forma

de instruccedilatildeo sobre a vida filosoacutefica e sobre a vida apoacutes a morte68

67 Menn in Adluri 2013 p214

68 Bussanich in Adluri 2013 p250

46

325 Transmigraccedilatildeo da Alma

Ao longo do Feacutedon Soacutecrates estabelece uma relaccedilatildeo entre iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo (meios de redenccedilatildeo) recompensas no Hades (redenccedilatildeo final) e a teoria da

transmigraccedilatildeo das almas69 A transmigraccedilatildeo das almas eacute o conteuacutedo do antigo relato

segundo o qual as almas vatildeo para o Hades depois da morte e de laacute voltam (70c)

Conforme este relato o Hades eacute a origem e destino da alma dos vivos Natildeo temos

nenhuma informaccedilatildeo sobre a origem uacuteltima da alma de onde ela viria antes de iniciar

esse ciclo em que passa alternadamente pelo mundo dos vivos e pelo Hades o qual

figura como um tipo de lugar obrigatoacuterio para a alma desencarnada seja para uma

passagem temporaacuteria ou para uma estada permanente

O conteuacutedo baacutesico do antigo relato eacute a transmigraccedilatildeo das almas ou

metempsicose (i) a alma se separa do corpo por ocasiatildeo da morte e desce ao Hades

onde permanece por algum tempo (ii) a alma volta do Hades ao mundo dos vivos e

aloja-se em novo corpo A crenccedila de que a alma transmigra de um corpo a outro de

acordo com um ciclo de nascimentos eacute uma doutrina oacuterfica antiga mas na antiguidade

tambeacutem se costuma atribuir a sua origem a Pitaacutegoras e pitagoacutericos 70 No contexto da

religiatildeo oacuterfica a transmigraccedilatildeo estaacute relacionada com um culpa antiga que remonta ao

mito de Dioniso Zagreu Os Titatildes satildeo antepassados dos seres humanos e suas culpas

devem ser expiadas por eles O pagamento do castigo implica a liberaccedilatildeo do ciclo de

69 Cf Bernabeacute in Adluri 2013 p128

70 Albinus 2000 p117

47

transmigraccedilotildees 71 Haacute vaacuterios documentos oacuterficos da antiguidade que testemunham o

caraacuteter oacuterfico dessa doutrina como os seguintes

(i) As placas de osso de Oacutelbia apresenta a sequecircncia ldquovida morte

vidardquo um testemunho da crenccedila oacuterfica no ciclo contiacutenuo de vida e

morte 72

(ii) As Lacircminas de Pelina I e II (B2) tambeacutem registram a crenccedila no ciclo

de vida e morte ldquoOra vocecirc morre ora nasce trecircs vezes afortunado

neste dia

(iii) A lacircmina de Turi II o iniciado afirma que eacute da ldquoraccedila afortunadardquo e

reivindica o fim do ciclo de transmigraccedilotildees com base nas penas que

jaacute cumprira ldquoServi a pena relativa a obras em nada justasrdquo

(iv) A Lacircmina de Turi III testemunha ldquoVoei para longe do ciclo de

doloroso e pesado lamentordquo73

A doutrina da metempsicose seguiu sendo reconhecida como oacuterfica ao longo de

toda a antiguidade74

No Feacutedon a ideia da transmigraccedilatildeo da alma eacute bastante explorada por Soacutecrates

inclusive a doutrina do renascimento em animais geralmente atribuiacuteda a pitagoacutericos

Aqueles que natildeo se purificam durante a vida reencarnariam num corpo de acordo com o

71 Cf Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p601

72 Gazzinneli 2007 p 81 82

73 Gazzinneli 2007 p 81 82

74 Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p611

48

gecircnero de vida praticado alguns voltam agrave vida em corpos de variados animais outros

em corpos de seres humanos (Cf62b 67d 69c-d 80d) Almas que se libertam do corpo

manchadas impuras e contaminadas pelo elemento corporal temem de tal modo o

Hades que satildeo arrastadas de volta ao mundo visiacutevel passando a perambular em

monumentos fuacutenebres e sepulturas (81c-81d) Essas satildeo as almas dos maus os quais satildeo

obrigadas a perambular assim como castigo por causa do modo vida que havia levado

as quais andam errantes ateacute que possa alojar-se novamente em um corpo com os

mesmos viacutecios de outrora como glutonaria e desejo desmedido pela bebida Almas

assim podem renascer em asnos ou animais de semelhante natureza (81d-e) Almas

responsaacuteveis por injusticcedilas tiranias e roubos renasceriam na linhagem de lobos falcotildees

e abutres (82a) Dentre essas almas que natildeo se dedicaram agrave filosofia as que vatildeo para um

corpo melhor satildeo as pessoas sociais e civilizadas as quais praticaram a virtude popular

e ciacutevica a temperanccedila e a justiccedila as quais tanto podem retornar em corpos de abelhas

vespas ou formigas quanto podem retornar ao gecircnero humano para serem pessoas de

bem (82a-b) A praacutetica de virtudes sem a cooperaccedilatildeo da filosofia eacute proveitosa chegando

a interferir no processo de transmigraccedilatildeo mas nunca pode oferecer a redenccedilatildeo final a

libertaccedilatildeo do ciclo de renascimentos juntamente com as recompensas no Hades A

mensagem platocircnica central eacute que soacute via filosofia eacute possiacutevel se purificar durante a vida e

partir puro para o Hades Essas satildeo as almas dos filoacutesofos o verdadeiro filoacutesofo

(iniciado) chegaraacute agrave linhagem dos deuses e habitaraacute com eles uma vez que alcanccedilaram

a libertaccedilatildeo e purificaccedilatildeo que se efetuam por meio da praacutetica de uma vida dedicada agrave

filosofia (82b-d) A alma do filoacutesofo sendo purificada iraacute se encontrar com aquilo com

o que guarda afinidade de modo algum se esvaindo no momento da separaccedilatildeo do corpo

ou mesmo dissipada pelos ventos sem existir em parte alguma (84b) Contudo a alma

49

afeita ao corpo passa a incorporar o tipo de vida corporal e desse jeito nunca pode

chegar ao Hades no estado de pureza razatildeo pela qual logo volta a alojar-se em outro

corpo ficando privada da companhia do divino puro e uniforme (83d-e)

Ainda no mito escatoloacutegico final existe uma passagem que alude agrave

transmigraccedilatildeo da alma Soacutecrates fala do Taacutertaro o mais profundo abismo para onde

confluem todas as correntes dos rios e onde todas elas se originam As almas dos

mortos permanecem ali por um tempo determinado alguns permanecendo mais tempo

outras menos Cumprido o tempo as almas satildeo novamente enviadas para as geraccedilotildees

dos seres vivos (112a 113a)

Portanto a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma faz parte da estrutura baacutesica da

argumentaccedilatildeo no Feacutedon A essa doutrina esoteacuterica estatildeo relacionados outros temas

proacuteprios das religiotildees de misteacuterios como a divisatildeo entre corpo e alma a iniciaccedilatildeo e

purificaccedilatildeo dos fieacuteis e a descida ao Hades com as respectivas recompensas e puniccedilotildees

infernais

326 Imortalidade da alma

Para os adeptos dos ciacuterculos oacuterficos seria natural pensar que alma eacute imortal por

causa do seu caraacuteter divino dionisiacuteaco em oposiccedilatildeo ao elemento mortal do corpo de

natureza titacircnica Como diz Taylor a imortalidade da alma eacute uma mera consequecircncia de

uma heranccedila divina75 No escopo da religiatildeo grega se a alma eacute imortal deve ser no

75 Taylor 1922 p177

50

sentido de sua essencial natureza divina Ela por si mesma pertence agrave realidade divina

de modo que os termos imortal e divino satildeo intercambiaacuteveis76

Portanto na religiosidade grega de modo geral a afirmaccedilatildeo de que a alma eacute

imortal quer dizer para um grego natildeo soacute que manteacutem a capacidade de sentir de

entender e de estar verdadeiramente viva apoacutes a morte mas tambeacutem que a alma eacute

divina77 O Feacutedon dialoga com essa fonte e tradiccedilatildeo religiosa grega

Mais especificamente no contexto da religiosidade oacuterfica Albinus esclarece que

os antigos natildeo consideram a mitologia oacuterfica apenas como um tipo de histoacuteria ou mito

mas tambeacutem como um relato (λόγος) que expressa a relaccedilatildeo entre humanidade e

divindade mortalidade e imortalidade78 O ciclo de transmigraccedilotildees certamente

representa essa dupla ligaccedilatildeo da alma com o humano e mortal (quando encarnadas) e

divino e imortal (quando desencarnadas) Portanto o tema da imortalidade estaacute

associado ao tema da transmigraccedilatildeo na mitologia oacuterfica Eacute necessaacuterio compreender este

ponto para uma correta compreensatildeo do argumento ciacuteclico como prova da imortalidade

da alma provar que as almas transmigram eacute tambeacutem provar que elas satildeo imortais num

contexto religioso oacuterfico no qual natildeo temos aniquilaccedilatildeo completa da alma mas apenas

rompimento do ciclo de reencarnaccedilotildees Em suma

(i) Imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma satildeo temas indissociaacuteveis na

religiatildeo oacuterfica

76 Rohde 1950 p254

77 Bernabeacute 2000 p 171

78 Albinus 2000 p117

51

(ii) A transmigraccedilatildeo pode ser entendida como um importante aspecto da

doutrina da imortalidade da alma sendo a alma imortal o ser humano

natildeo escapa da penalidade que deve pagar ao longo do ciclo de

renascimentos79

(iii) Eacute tambeacutem a crenccedila na imortalidade da alma que sustenta toda a ideia de

purificaccedilatildeo e conseguinte libertaccedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilotildees quando o

oacuterfico alcanccedila um tipo de redenccedilatildeo final livre do corpo e do ciclo de

renascimentos ele passa a viver como uma divindade80

Portanto eacute natural que os oacuterficos combinem doutrina da transmigraccedilatildeo da alma e

a crenccedila na divindade e imortalidade da alma Ao que parece os pitagoacutericos tambeacutem

fizeram uma associaccedilatildeo semelhante entre a transmigraccedilatildeo e imortalidade da alma81 Eacute

esta concepccedilatildeo de imortalidade atrelada agrave doutrinda da transmigraccedilatildeo da alma que estaacute

presente no argumento ciacuteclico

Eacute razoaacutevel pensar que agrave eacutepoca de Platatildeo os gregos possuiacuteam uma seacuterie de teses

inconsistentes sobre a alma de modo que dogmas como o da imortalidade da alma natildeo

estavam bem claros para todas as pessoas Aleacutem disso ideias como a que Cebes

apresenta ndash a desintegraccedilatildeo da alma que se separa do corpo ndash poderiam tambeacutem ser

sustentadas pelo menos por algum grupo de pessoas

79 Bussanich in Adluri 2013 p243

80 Rohde 1950 p345

81 Bernabeacute 2000 p 172

52

327 Conclusatildeo

Noacutes encontramos uma rica presenccedila de doutrinas tipicamente oacuterficas no Feacutedon

e tudo indica que Platatildeo estaacute utilizando doutrinas oacuterficas e pitagoacutericas em seu diaacutelogo

Os motivos oacuterficos aparecem na primeira parte do Feacutedon e se manteacutem em cena no

diaacutelogo ateacute o mito escatoloacutegico final A pesquisa de Kingsley mostra que alusotildees a

crenccedilas oacuterficas no estaacutegio inicial do diaacutelogo satildeo retomadas no mito escatoloacutegico final

Ele utiliza dois temas oacuterficos para justificar a sua tese castigo poacutestumo dos impuros e a

recompensa dos puros A ideia de jazer na lama que eacute uma imagem das puniccedilotildees

infernais aos natildeo-iniciados cedo eacute introduzida no diaacutelogo e volta a aparecer trecircs vezes

no mito escatoloacutegico final no contexto dos vastos rios de lama infernais (Cf 69c5-6

110a5-6 11d5-e2 113a6-b6) O mais interessante eacute que o material apresentado

previamente no diaacutelogo oferece uma breve antecipaccedilatildeo do que viraacute pela frente

revelando que existe um tipo de exposiccedilatildeo sistemaacutetica dessa crenccedila oacuterfica no Feacutedon O

tema da recompensa no Hades para os iniciados e purificados apresenta o mesmo

padratildeo de antecipaccedilatildeo e posterior explanaccedilatildeo complementaacuteria no contexto do mito final

A imagem do impuro que sofre a pena de jazer na lama tem a sua contraparte na

imagem da alma pura que desce ao Hades para desfrutar da recompensa de viver com os

deuses imortais (69c6-7 111b6-c1 114b7-c2 114d3) Tambeacutem nesse caso as alusotildees

oacuterficas da etapa inicial do diaacutelogo voltam a aparecer no mito final e tornam-se uma

chave valiosa para a compreensatildeo da estrutura linguagem e significado do mito82

Tudo isso leva a crer que existe a presenccedila meticulosa das ideias oacuterficas na

estrutura fundamental do Feacutedon

82 Cf Kingsley 1992 p119-120

53

4 Anaacutelise do argumento ciacuteclico propriamente dito

O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma Platatildeo define morte como

lsquoseparaccedilatildeo da alma do corporsquo(64c) Ainda no primeiro estaacutegio do diaacutelogo a personagem

Soacutecrates defende que a alma que se separa do corpo natildeo se dispersa e perece como as

pessoas afirmam mas continua a existir sozinha por si mesma (Cf 64c 70a-b) Ainda

que a palavra lsquoimortalrsquo natildeo apareccedila no diaacutelogo ateacute 73a introduzida por Cebes e

Soacutecrates soacute a empregue pela primeira vez no contexto do argumento das afinidades

(Cf79d) a ideia de que a alma eacute imune agrave morte aparece bem cedo no diaacutelogo e as

provas do Feacutedon tecircm o objetivo de provar que a alma eacute imortal Natildeo seria possiacutevel

avaliar se as provas satildeo suficientes ou natildeo se os amigos de Soacutecrates natildeo tivessem bem

definido o que elas satildeo destinadas a provar ou pelo menos aquilo que eles esperam que

elas provem Eles natildeo apenas tecircm em mente o que o mestre precisa provar mas tambeacutem

satildeo capazes (ateacute certo ponto) de apontar a insuficiecircncia dessas provas

O argumento ciacuteclico jaacute eacute visto por Cebes como prova da imortalidade da alma

ele associa o primeiro argumento e o ensino da reminiscecircncia com a ideia de que ele

talvez pudesse tambeacutem mostrar que a alma eacute imortal (72e1-73a3) Cebes natildeo afirma que

o argumento ciacuteclico havia provado que a alma eacute imortal nem mesmo estaacute certo de que o

argumento da reminiscecircncia pode fazecirc-lo mas indica que eacute necessaacuterio uma nova prova

Desde o iniacutecio da etapa demonstrativa apenas uma prova da imortalidade da

alma poderaacute contrapor a crenccedila de que a alma perece na ocasiatildeo em que se separa do

corpo (70a) que eacute o problema motriz da etapa demonstrativa Esta crenccedila doutrina ou

posiccedilatildeo filosoacutefica eacute enfrentada por Platatildeo no diaacutelogo O termo εὐθύς colabora com essa

54

ideia de que a alma seria passiacutevel de desintegraccedilatildeo na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do

corpo Vejamos algumas passagens

(i) Antes de comeccedilar a etapa demonstrativa o que atormenta inicialmente os

amigos de Soacutecrates eacute a possibilidade de que a alma do mestre seja

destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo (70a4-5) (εὐθὺς

ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος)

(ii) Na transiccedilatildeo entre argumento da reminiscecircncia e das afinidades Soacutecrates

ainda tem em mente a problemaacutetica seria necessaacuterio continuar a

discussatildeo porque os amigos possuem um ldquotemor pueril de que o vento

realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania e natildeo

de brisardquo (77d) Apesar de o termo εὐθύς natildeo aparecer aqui a ideia

continua sendo desintegraccedilatildeo que ocorre na ocasiatildeo da morte O que

parece uma ironia socraacutetica na verdade estaacute de acordo com a concepccedilatildeo

de certas pessoas de a alma poderia ser dispersa pelo vento

especialmente por um vento forte

(iii) Na etapa que segue o argumento das afinidades Soacutecrates retoma o

problema que gera toda a etapa demonstrativa mas agora coloca duas

ideias em contraste e em ambos os casos Soacutecrates utiliza εὐθύς

bull Nem mesmo o cadaacutever que eacute material e assim a ele pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ

διαπίπτειν καὶ διαπνεῖσθαι) sofre todas essas coisas

55

imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν πέπονθεν) mas

lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado

Certas partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά

ἐστιν) (80c2-d4)

bull Em contraste com o cadaacutever cuja natureza eacute passiacutevel de

dissoluccedilatildeo Soacutecrates lembra que a alma eacute de natureza distinta ela

eacute a parte invisiacutevel da pessoa e possui afinidades com o nobre

puro e invisiacutevel e desceraacute ao Hades para se reunir com um deus

Sendo assim questiona se os amigos acham que a alma seria

dispersa e pereceria na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo

(ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ

ἀπόλωλεν) (80d) Aqui Soacutecrates mostra o absurdo de acreditar

que a alma que possui a mesma natureza imaterial das lsquoFormasrsquo

e do lsquodivinorsquo seria desintegrada na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo

do corpo enquanto o corpo ainda seria mais resistente agrave

destruiccedilatildeo do que a proacutepria alma Soacutecrates procura mostrar o

absurdo desta posiccedilatildeo com base nos argumentos jaacute apresentados

os quais jaacute haviam deixado claro que a alma eacute algo superior ao

corpo e de natureza diferente Ainda que natildeo tivesse ainda

oferecido uma prova suficiente da imortalidade da alma os trecircs

primeiros argumentos jaacute haviam mostrado que a alma natildeo eacute tal

como o corpo Soacutecrates critica a crenccedila que acaba tornando o

corpo mais duraacutevel do que a proacutepria alma

56

bull Pouco depois Siacutemias tenta responder agrave questatildeo de Soacutecrates com

a sua teoria da alma-harmonia e insiste em comprovar que a

alma sendo uma mistura de elementos corporais eacute a primeira a

perecer naquilo que chamamos de morte enquanto o corpo

perdura algum tempo (86c-d) Esta passagem nos revela mais um

detalhe da concepccedilatildeo da natureza da alma que estaacute em cena no

Feacutedon o receio de que a alma seja uma mistura de elementos

corporais e que ela seria passiacutevel agrave dispersatildeo e desintegraccedilatildeo na

ocasiatildeo da morte

bull Cebes ficaraacute contra a posiccedilatildeo de Siacutemias de que o corpo dura mais

do que a alma e com o seu argumento do tecelatildeo e seu manto

tenta mostrar que a alma dura mais do que o corpo mas nada

garante que ela eacute completamente imune agrave morte Desintegraccedilatildeo e

perecimento instantacircneo podem natildeo ocorrer mas nada garante

que natildeo haja a possibilidade de que a alma seja destruiacuteda no seu

uacuteltimo ciclo de reencarnaccedilatildeo (Cf 87-88b)

O argumento ciacuteclico eacute inserido num contexto em que se busca provar que a alma

eacute imune agrave morte contra a crenccedila numa alma passiacutevel a dissoluccedilatildeo e perecimento Mas

de iniacutecio o tema da imortalidade eacute tratado a partir de uma matriz baacutesica da religiosidade

oacuterfica imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma A abertura do argumento

ciacuteclico se daacute com um convite de Soacutecrates para examinar ldquo() se de algum modo as

almas das pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Este objeto de

investigaccedilatildeo coincide com o conteuacutedo do relato de uma tradiccedilatildeo religiosa de cunho

57

oacuterfico e pitagoacuterico ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o

qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

proveniente dos mortosrdquo (70c5-8)

O antigo relato tem em vista basicamente que a alma se engaja no ciclo de

reencarnaccedilatildeo ndash a alma deixa um corpo desce ao Hades e de laacute volta a reencarnar No

orfismo e pitagorismo natildeo existe a possibilidade de a alma ser desintegrada ou

destruiacuteda Se for verdade o que diz o relato lsquoque os vivos provecircm dos mortosrsquo Soacutecrates

entende que eacute necessaacuterio concluir que lsquoas nossas almas estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) Se

coisas vivas e pessoas vivas (tentativa de generalizar ndash tudo que eacute vivo) procedem

daqueles que estatildeo mortos (ἐκ τῶν τεθνεώτων τὰ ζῶντά τε καὶ οἱ ζῶντες γίγνονται) eacute

necessaacuterio concluir que as nossas almas estatildeo no Hades (εἰσὶν αἱ ψυχαὶ ἡμῶν ἐν

Ἅιδου) (71d14-e2) Portanto eacute necessaacuterio provar que os vivos provecircm dos mortosrsquo

Para isto eacute necessaacuterio um argumento com base no princiacutepio de que todos os opostos

provecircm dos opostos (70e1-2) A terminologia do argumento ciacuteclico deriva diretamente

daquela utilizada no antigo relato ndash verbo γίγνομαι seguido de ἐκ + genitivo ndash como se

pode observar

(i) ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual

as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute

provenientes dos mortosrdquo ( γίγνονται ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c8)

(ii) ldquoSe realmente eacute verdade que os vivos provecircm dos mortos ()rdquo

(γίγνεσθαι ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9)

(iii) ldquoSe realmente ficasse evidente que os vivos provecircm de nenhum lugar a

natildeo ser dos mortosrdquo (γίγνονται οἱ ζῶντες ἢ ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c9)

58

(iv) ldquoTodas as coisas tecircm origem assim opostos dos opostosrdquo (γίγνεται πάντα

ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

Apresentado o princiacutepio de que todos os opostos provecircm dos opostos Soacutecrates

convida ao exame

(i) ldquoVejamos se todas essas coisas satildeo geradas da seguinte maneira opostos dos

opostos (γίγνεται πάντα ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)

(ii) ldquoPortanto examinaremos se tudo que tem um oposto proveacutem

necessariamente de seu oposto e de nenhum outrordquo (70e5-6) (τοῦτο οὖν

σκεψώμεθα ἆρα ἀναγκαῖον ὅσοις ἔστι τι ἐναντίον μηδαμόθεν ἄλλοθεν αὐτὸ

γίγνεσθαι ἢ ἐκ τοῦ αὐτῷ ἐναντίου)

(iii) ldquoTemos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina desta maneira as

coisas opostas procedem de seus opostosrdquo (71a9-10) (ἱκανῶς οὖν ἔφη

ἔχομεν τοῦτο ὅτι πάντα οὕτω γίγνεται ἐξ ἐναντίων τὰ ἐναντία πράγματα)

Eis em linhas gerais a estrutura baacutesica do argumento seguida de comentaacuterio

[1] Tudo que tem um oposto proveacutem necessariamente de seu oposto (70e-71a)

[2] Para cada par de opostos existem dois processos opostos se um oposto x

passa a y haacute tambeacutem um processo de um oposto y que passa a x por exemplo

aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um processo do

quente ao frio (71a11-b10)

59

[3] Se os dois processos natildeo se equilibrassem (se algo viesse a ser quente a partir

de ser frio mas natildeo frio a partir de ser quente tudo findaria quente) tudo

acabaria no mesmo estado) (72a-b)

[4] Tudo natildeo acaba por ficar no mesmo estado (72a-d)

[5] Portanto se algo vem a ser um oposto y a partir de um oposto x ele tambeacutem

viraacute a ser um oposto x a partir de um oposto y (se algo vem a ser quente a partir

de frio ele tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

[6] Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

[7] Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que

estaacute vivo (71e-72a)

[8] As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

[9] Portanto as almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

[10] Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar)

(71e72a 72d)

A prova eacute estabelecida sobre o princiacutepio de que pares de opostos

obrigatoriamente sofrem determinados processos ciacuteclicos83 O termo ἀναγκαῖον eacute

fundamental na exegese do argumento porque marca esta necessidade ou

obrigatoriedade de que este princiacutepio de mudanccedila ocorra entre pares de opostos natildeo

deixando espaccedilo para exceccedilotildees (Cf70e 71b 72a) Visto dessa maneira o processo

ciacuteclico que ocorre entre pares de opostos eacute perpeacutetuo natildeo tem fim Mas Soacutecrates natildeo

apresenta nenhum argumento vaacutelido para sustentar esta posiccedilatildeo apenas assume que se

83 Gallop 2002 p 103

60

natildeo houvesse um balanccedilo nesse processo ciacuteclico todas as coisas acabariam no mesmo

estado entatildeo tudo chegaria ao fim (72a-d) Portanto o argumento inteiro repousa sobre

uma ideia assumida por Soacutecrates a ideia de que eacute impossiacutevel que tudo acabe no mesmo

estado

Este processo ciacuteclico obrigatoacuterio consiste no seguinte

Para cada par de opostos existem dois processos opostos um processo pelo qual

um oposto x passa a y e um processo pelo qual um oposto y passa a x por

exemplo aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um

processo do quente ao frio (71a11-b10)

Portanto se algo vem a ser oposto y a partir de oposto x ele tambeacutem viraacute a ser

oposto x a partir de oposto y (se algo vem a ser quente a partir de frio ele

tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)

A afirmaccedilatildeo de que deve haver processos em ambas as direccedilotildees eacute vital para

qualquer uso efetivo do princiacutepio de que os opostos vecircm dos opostos Este princiacutepio eacute

essencial para o funcionamento do argumento ciacuteclico como um todo84 Caso este

processo ciacuteclico natildeo seja obrigatoriamente mantido ad eternum o argumento possui

uma falha irreparaacutevel Este eacute um dos problemas vitais do argumento como voltaremos a

mencionar adiante Soacutecrates assume a obrigatoriedade do processo com base num

argumento invaacutelido a mera observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto

Em seguida Soacutecrates aplica o princiacutepio ao caso dos opostos vida e morte (71c6-

d3) a fim de provar que o que eacute vivo proveacutem do que eacute morto e o que eacute morto do que eacute

84 Gallop 2002 p109

61

vivo o que segundo ele levaria a uma necessaacuteria conclusatildeo de que lsquoas nossas almas

estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) O filoacutesofo afirma que existe um processo de tornar-se vivo

novamente (o reviver passar a viver novamente) (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) a partir do que

estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute vivo

(71e-72a) Este ponto eacute fundamental para a compreensatildeo do argumento e deve ser

entendido a partir de duas ideias que Platatildeo explora no argumento (i) a sua noccedilatildeo de

morte como separaccedilatildeo da alma e corpo e sua admissatildeo de que morte eacute um estado em

que a alma existe separadamente do corpo (64c4-8) (ii) a doutrina da transmigraccedilatildeo da

alma segundo a qual passar a viver novamente (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) significa que a alma

que jaacute havia alojado um corpo e lsquomorreursquo (desencarnou) reencarna volta a alojar-se

num corpo No antigo relato e no comentaacuterio seguinte temos o termo πάλιν (70c7-8d1)

para marcar a recorrecircncia a repeticcedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilatildeo e implica a ideia de

uma vida preacutevia Platatildeo tambeacutem emprega a expressatildeo lsquoaqueles que vivemrsquo como uma

referecircncia agrave pessoa composta de corpo e alma e lsquoaqueles que morreramrsquo para designar

aquele que jaacute esteve em vida e morreu (a alma desencarnou) (70c8-9)

Portanto quando Soacutecrates diz lsquoo que estaacute morto proveacutem do que estaacute vivorsquo

(71d10-11 72a5-6) seguindo ideia semelhante agravequela que aparece no antigo relato ndash os

vivos provecircm dos que jaacute morreram (ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9) ndash ele

reconhece que a alma que se aloja num corpo estaacute na verdade reencarnando porque

antes de se separar do corpo e descer ao Hades ela jaacute habitava um corpo e chama este

regresso ao corpo de lsquoreviverrsquo (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) que eacute o retorno da alma para o

corpo a reencarnaccedilatildeo Em algumas ocasiotildees Soacutecrates faz referecircncia agrave morte da alma e

isto deve ser meramente entendido como a sua separaccedilatildeo do corpo (77d2-4 84b2

88a6)

62

Estabelecido o processo ciacuteclico obrigatoacuterio que ocorre entre os opostos lsquovivorsquo e

lsquomortorsquo ndash lsquotornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute mortorsquo e lsquotornar-se

morto a partir do que estaacute vivorsquo Soacutecrates vecirc a necessidade de concluir que as nossas

alma existem (no Hades)

Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)

Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute

morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute

vivo (71e-72a)

As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)

As almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)

Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar) (71e72a

72d)

A conclusatildeo eacute de que as almas dos mortos existem Ao final do argumento

Soacutecrates revisa pontos essenciais que foram tratados e provados segundo ele reviver

os vivos nascem dos mortos e as almas dos mortos existem (72d8-10)

O argumento eacute cheio de problemas e dificilmente pode se estabelecer como

prova suficiente da imortalidade da alma Dentre os problemas destacamos os

seguintes

(i) Para cada par de opostos existem obrigatoriamente dois processos opostos e

com base neles o argumento ciacuteclico visa mostrar que o ciclo de morte e de

renascimento deve continuar ad infinitum porque de outro modo tudo

63

acabaria morto Como diz Hackfort em nenhuma outra hipoacutetese a

continuaccedilatildeo da vida poderia ser explicada sem o processo reverso da morte

para a vida tudo mais cedo ou mais tarde estaria permanentemente morto

Mas ele lembra que esse argumento soacute pode ter forccedila se supormos que natildeo

pode haver vida nova que haacute por exemplo um nuacutemero limite de almas Se

os vivos pudessem ter alguma outra origem que natildeo os mortos a necessidade

loacutegica desse princiacutepio desapareceria Mas Soacutecrates simplesmente assume que

seria impossiacutevel pensar que o processo ciacuteclico obrigatoacuterio natildeo existiria com

base na sua observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto (Cf72a-d)85 Assim a

obrigatoriedade deste processo natildeo parece vaacutelida (72a-d) Eacute plenamente

possiacutevel que haacute coisas que passam de quente a frio e findam neste estado

sem que passem de frio a quente novamente No caso de vida e morte algo

pode vir a morrer a partir de estar vivo e simplesmente findar morto A alma

pode vir a morrer a partir de estar viva e simplesmente terminar morta sem

que necessariamente venha a reencarnar O argumento de que haacute um

necessaacuterio equiliacutebrio no processo natildeo eacute provado

(ii) Alguns termos essenciais para o argumento natildeo satildeo definidos por exemplo

Platatildeo natildeo explica o que ele chama de opostos Aleacutem disso vaacuterios supostos

pares de opostos na verdade natildeo satildeo opostos os adjetivos em forma

comparativa ndash maior e menor mais justo e menos justo ndash natildeo satildeo pares de

opostos (70e4-71a11)

(iii) O argumento apresenta inconsistecircncias lsquoo que estaacute morto proveacutem do que

estaacute vivorsquo (71d10-11 72a5-6) A prova da existecircncia de nossas almas no

85 Hackforth 1998 p64

64

Hades se baseia na ideia de que lsquoas almas provecircm dos mortosrsquo Esta linha

central do argumento eacute problemaacutetica porque estaacute relacionado com a noccedilatildeo de

morte que Soacutecrates apresenta e com a ideia de reencarnaccedilatildeo com base na

qual Soacutecrates emprega a expressatildeo lsquoreviverrsquo A definiccedilatildeo de morte como

separaccedilatildeo da alma e corpo e o reconhecimento de que eles podem existir

separadamente eacute bastante questionaacutevel Em primeiro lugar natildeo se explica e

comprova que alma e corpo podem viver separadamente O corpo comeccedila a

degenerar assim que a alma deixa o corpo seria entatildeo o caso de acontecer o

mesmo com a alma Especialmente depois do argumento das afinidades

Soacutecrates e os amigos discutiratildeo este problema seria o cadaacutever mais

duradouro do que a alma Siacutemias propotildee que o corpo eacute mais duradouro do

que a alma (argumento da alma-harmonia) enquanto Cebes propotildee que a

alma seria mais longeva do que o corpo (argumento do tecelatildeo e seu manto)

mas sofreria degeneraccedilatildeo ao longo dos ciclos de reencarnaccedilatildeo (Cf91d

quando Soacutecrates faz um resumo das duas posiccedilotildees) Todos esses problemas

levantados pelos amigos decorrem em parte desta concepccedilatildeo vaga de morte

apresentada no primeiro estaacutegio do diaacutelogo e com base na qual pelo menos

os primeiros argumentos operam No uacuteltimo argumento a noccedilatildeo de lsquomortersquo eacute

diferente da simples ideia de lsquoseparaccedilatildeo do corporsquo Em segundo lugar no

argumento ciacuteclico a alma viva procede dos que estatildeo mortos a alma que

aloja-se num corpo jaacute se alojara num corpo de algueacutem que morreu Soacutecrates

entende que o processo ciacuteclico do morto para o vivo soacute funciona se lsquomortorsquo

aqui natildeo significa lsquoaniquiladorsquo porque soacute seria possiacutevel vir a estar viva a

partir de estar morta se a alma existisse mesmo quando estaacute morta

65

(desencarnada) (Cf70d1-2) e Soacutecrates natildeo explica por que razatildeo a alma

continua a existir quando deixa o corpo A ideia simultacircnea de lsquomortersquo e

lsquoexistecircnciarsquo (uma alma que morre existe) eacute por demais obscura A alma eacute

morta (separada do corpo) e viva (no sentido de que continua a existir) mas

o se espera eacute que morte implica deixar de existir e natildeo que algo morto

continua a existir Sendo assim o argumento dificilmente se estabelece com

base numa ideia que depende da ideia baacutesica da transmigraccedilatildeo O proacuteprio

Cebes levantaraacute um argumento para mostrar que nada garante ateacute o momento

que a alma que passa por um ciclo de reencarnaccedilotildees natildeo seja aniquilada num

desses ciclos (87d-e)

(iv) O argumento ciacuteclico sustenta que as almas devem oscilar perpetuamente

entre o estado de estar ldquovivordquo (unido a um corpo) e ldquomortordquo (separado de um

corpo) mas enquanto ele visa provar que esses ciclos de reencarnaccedilotildees

ocorrem para sempre Platatildeo natildeo tem nada a dizer propriamente sobre a

natureza da alma se ela eacute realmente imortal imune agrave morte e destruiccedilatildeo O

argumento ciacuteclico acaba sendo uma primeira tentativa malograda de

contrapor a crenccedila de que a alma que se separa do corpo imediatamente

perece com base numa conclusatildeo simples se a alma continua existindo ela

natildeo eacute destruiacuteda na hora da morte

(v) O argumento oferece uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma mas ao mesmo tempo estaacute em conflito com ela a

doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico admite a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees enquanto o argumento ciacuteclico sugere a continuidade perpeacutetua

deste processo ciacuteclico entre pares de opostos Aleacutem disso Soacutecrates contradiz

66

a si mesmo no diaacutelogo Soacutecrates menciona a libertaccedilatildeo do ciclo de

reencarnaccedilotildees atraveacutes da purificaccedilatildeo o filoacutesofo que se separa do corpo em

estado de pureza sem arrastar consigo elementos corporais rompe o ciclo de

reencarnaccedilotildees e passa a viver com a divindade no Hades (80d-81a) O

proacuteprio mito final tambeacutem contempla a possibilidade de que o ciclo seja

rompido (104c) Talvez Platatildeo queira alinhar o argumento com algum tipo

de versatildeo pitagoacuterica da metempsicose que implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da

alma Zhmud sugere a possibilidade de que oacuterficos e pitagoacutericos divergiam

neste ponto86 Mas isto eacute bastante questionaacutevel

(vi) Os comentaacuterios apresentados jaacute satildeo suficientes para mostrar que o

argumento ciacuteclico falha em estabelecer os trecircs pontos que Soacutecrates considera

ter sido provado o reviver os vivos nascem dos mortos e as almas dos

mortos existem (72d8-10)

Por fim conveacutem apresentar alguns comentaacuterios adicionais sobre o argumento

ciacuteclico como prova da imortalidade da alma

(i) O argumento visa provar que a alma eacute imortal a partir de uma concepccedilatildeo

oacuterifica e pitagoacuterica de imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma

O processo ciacuteclico apresentado eacute perpeacutetuo infindaacutevel inquebraacutevel

Soacutecrates natildeo considera qualquer possibilidade de que pudesse haver uma

ruptura num dos ciclos de morte (desencarnaccedilatildeo) e vida (encarnaccedilatildeo) ou

que a alma possa perecer num deles

86 Zhmud 2012 p 228-230

67

(ii) O que o argumento tenta provar de modo especiacutefico eacute que a alma existe

depois da morte por algum tempo indefinido curto espaccedilo de tempo

longo tempo ou por uma duraccedilatildeo infinita87 Portanto somente uma

limitada sobrevivecircncia post-mortem da alma88

O argumento possui um ponto a se considerar se a alma existe depois da morte

isto significa que a alma natildeo eacute dispersa e destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave sua separaccedilatildeo

da morte (Cf 70a) Esta eacute a primeira tentativa de atacar o problema apresentado Mas os

amigos aperfeiccediloam a exigecircncia seraacute necessaacuterio provar que a alma eacute imortal e natildeo que

possui existecircncia limitada

Tambeacutem eacute importante lembrar que o argumento ciacuteclico no Feacutedon vem sendo

interpretado por muito tempo como sendo um esforccedilo platocircnico para dar

respeitabilidade filosoacutefica agrave antiga doutrina religiosa da transmigraccedilatildeo da alma como jaacute

pensava Wolfe89 Esta posiccedilatildeo eacute seguida por alguns inteacuterpretes contemporacircneos como

Sedley para quem o projeto platocircnico natildeo eacute provar a imortalidade da alma de iniacutecio

mas confirmar a respeitabilidade cientiacutefica de uma tradiccedilatildeo religiosa providenciando

evidecircncias de que ela se conforma com uma lei universal que governa a natureza da

87 O neoplatocircnico Siriano afirma que o objetivo do argumento seria provar apenas que a alma

permanece no Hades seja por um curto espaccedilo de tempo por um longo tempo ou por uma

duraccedilatildeo infinita (Dam I1834-6 Olimp10111-12) (Cf Gertz 2011 p86)

88 Uma opiniatildeo que predominou entre os uacuteltimos inteacuterpretes neoplatocircnicos (Cf Gertz 2011

p95) Barnes (Cf Barnes amp Bonelli (ed) 2011 p306) segue essa posiccedilatildeo entre os

contemporacircneos ele acredita que nada no argumento implica imortalidade da alma concluindo

que o argumento natildeo foi designado para provar a imortalidade mas apenas uma duraccedilatildeo finita

da alma O argumento estaria comprometido em provar a existecircncia da alma em algum lugar

depois da morte e por algum tempo que eacute diferente de provar a imortalidade da alma Ele

ressalta que essa ideia de uma temporaacuteria sobrevivecircncia da morte estaacute presente no contexto mais

geral do Feacutedon como eacute o caso de Cebes a respeito do tecelatildeo e dos mantos que produz (cf 87d-

88b) e natildeo pode ser ignorada no contexto especiacutefico do argumento ciacuteclico

89 Cf Wolfe 1966 p237

68

mudanccedila90 Isto decorre da observaccedilatildeo de que o argumento ciacuteclico confirma o antigo

relato ndash a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma As duas premissas que o argumento ciacuteclico

visa provar satildeo (i) as almas dos que morrem existem no Hades (ii) as almas dos que

partiram existem no Hades de onde regressam para a vida terrena (70c) Vejamos a

comparaccedilatildeo

Antigo relato

As almas dos que morrem existem

no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem existem

no Hades (existecircncia post mortem

da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Mas eacute importante dizer que o argumento natildeo eacute incorporado ao Feacutedon porque

Platatildeo tem o objetivo de defender a crenccedila numa doutrina religiosa como se fosse um

religioso se utilizando da filosofia para fundamentar a sua crenccedila O objetivo claro do

diaacutelogo eacute provar a imortalidade da alma mas nesta primeira tentativa a concepccedilatildeo de

imortalidade se confunde com a de transmigraccedilatildeo

90 Sedley 2012 p147 148

69

Por fim natildeo haacute qualquer sinal de que o argumento ciacuteclico tenha sido bem

avaliado ou aceito pelos amigos de Soacutecrates No decorrer do diaacutelogo fica claro que

Platatildeo se distancia desse tipo de prova e busca desenvolver uma doutrina platocircnica da

imortalidade da alma a partir de uma concepccedilatildeo de imortalidade que independe da

transmigraccedilatildeo da alma embora possa servir agravequeles que sustentam a doutrina Eacute assim

que no uacuteltimo argumento depois de uma discussatildeo que independe do componente

religioso ao final depois de estabelecido que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Soacutecrates

acrescenta e estaacute no Hades (107a1)

A nossa anaacutelise indica que o argumento ciacuteclico natildeo prova efetivamente nem a

existecircncia da alma depois da morte nem a imortalidade da alma

70

4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)

41 Introduccedilatildeo

Concluiacutedo o argumento ciacuteclico Cebes imediatamente conduz a discussatildeo para o

ensino da reminiscecircncia

ldquoAinda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que

vocecirc ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute

do que reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido

em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos Mas isto

seria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum lugar

antes de assumir essa forma humana De modo que tambeacutem de acordo

com esse ensino a alma parece ser imortalrdquo (72e1-73a3)

Cebes eacute quem dessa vez sugere a segunda prova da imortalidade da alma De

acordo com a teoria da reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em

alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora simplesmente recordamos A doutrina

da reminiscecircncia tem um papel central em trecircs diaacutelogos platocircnicos Mecircnon Feacutedon e

Fedro mas em cada diaacutelogo a doutrina se mostra peculiar91 O Feacutedon inova com a

vinculaccedilatildeo da doutrina da reminiscecircncia e a ideia das lsquoFormasrsquo uma posiccedilatildeo que natildeo

existe no Mecircnon Como diz Kahn no Mecircnon a imortalidade da alma foi tomada como

91 Cf Kahn in Benson 2011 p 120

71

certa pela autoridade de saacutebios sacerdotes e sacerdotisas enquanto no Feacutedon ela deve

ser provada92

Se a doutrina apresentada no Feacutedon eacute uma continuaccedilatildeo ou natildeo do toacutepico

apresentado no Mecircnon ou se temos ou natildeo no Feacutedon uma apresentaccedilatildeo parcial de uma

soacute teoria desenvolvida ao longo dos trecircs diaacutelogos ndash Mecircnon Feacutedon Fedro ndash eacute uma

questatildeo que fica de fora do escopo de nosso estudo

42 Participaccedilatildeo positiva dos amigos

Com a participaccedilatildeo de Cebes introduzindo o ensino da reminiscecircncia e assim a

segunda prova da imortalidade da alma conveacutem salientar que essa postura positiva e

engajada marca os interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon O problema que vai se

revelando ao longo da conversa eacute que os argumentos apresentados por Soacutecrates satildeo

insuficientes para provar a imortalidade da alma e cada uma dessas tentativas frustradas

de provar a imortalidade da alma convida os amigos de Soacutecrates para uma participaccedilatildeo

mais efetiva como acontece quando Cebes pede para Soacutecrates mostrar se o ensino

bastante conhecido pelo ciacuterculo socraacutetico ndash reminiscecircncia ndash poderia provar a

imortalidade da alma (72e-73a) Os amigos de Soacutecrates tecircm uma participaccedilatildeo positiva

no diaacutelogo incentivam Soacutecrates a continuar a discussatildeo avaliam e rejeitam argumentos

apresentam consideraccedilotildees e objeccedilotildees sempre com o fim de obter a prova da

imortalidade da alma Eles satildeo muito mais do que supostos saacutebios que desconhem

aquilo que julgam conhecer com maestria Vejamos alguns exemplos

92 Kahn in Benson 2011 p 123

72

(i) Na primeira etapa do Feacutedon Cebes confronta a atitude de Soacutecrates diante

da morte baseada apenas em sua convicccedilatildeo de cunho religioso o que o

mestre havia dito sobre a alma produz duacutevidas sobretudo naqueles que

acolhem a crenccedila popular de que a alma se dispersaria e seria destruiacuteda

por ocasiatildeo da morte Eacute tambeacutem Cebes quem sugere que seria nessaacuteria

lsquouma demonstraccedilao natildeo muito pequenarsquo para satisfazer a necessidade de

provar que a alma natildeo se dispersa e eacute destruiacuteda como essas pessoas

dizem (69e-70a)

(ii) O segundo argumento eacute na verdade introduzido por Cebes que

certamente entende que haacute necessidade de que Soacutecrates apresente outra

prova da imortalidade da alma uma vez que a primeira natildeo o havia

convencido (72e-73a)

(iii) Ao final do segundo argumento Siacutemias e Cebes tem uma participaccedilatildeo

essencial em apontar falhas no argumento da reminiscecircncia e desafiar

Soacutecrates a construir um novo argumento porque ainda natildeo se havia dado

uma resposta capaz de responder agrave crenccedilas das pessoas comuns de que a

alma se dispersaria e pereceria por ocasiatildeo da morte (77b-c)

(iv) Ainda na transiccedilatildeo para o terceiro argumento eacute Cebes quem pede que

Soacutecrates os liberte do temor pueril de que a alma eacute passiacutevel de dispersatildeo

e destruiccedilatildeo o que nada mais eacute do que um claro apelo para que o mestre

Soacutecrates o uacutenico capaz de provar que a alma eacute imortal conceda-lhes

uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma (77e)

(v) Depois do argumento das afinidades os amigos de Soacutecrates ressaltam

que natildeo havia sido apresentada uma prova suficiente e Cebes ao final

73

exige que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον)

(88b5-6) Essa exigecircncia de Cebes eacute acolhida por Soacutecrates e o argumento

final tenta responder precisamente a esta exigecircncia o que se pode ver na

sua conclusatildeo de que lsquoa alma eacute imortal e indestrutiacutevelrsquo (ψυχὴ ἀθάνατον

καὶ ἀνώλεθρον) (106e-107a)

Analisando os trecircs primeiros argumentos a partir das intervenccedilotildees dos amigos eacute

possiacutevel observar que eles ajudam a entender o que natildeo eacute uma prova suficiente e

satisfatoacuteria da imortalidade da alma

(i) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da existecircncia da alma

post mortem (argumento ciacuteclico)

(ii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da preexistecircncia da

alma (argumento da reminiscecircncia)

(iii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova de que a alma eacute

semelhante ao que eacute completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

(argumento das afinidades)

Adiante Cebes deixaraacute claro que eacute necessaacuterio provar que a alma eacute

completamente imortal e indestrutiacutevel e natildeo apenas que ela eacute capaz de existir por um

tempo determinado (88a) Soacutecrates acolheraacute a sua exigecircncia e no uacuteltimo argumento

tenta provar justamente que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ

ἀνώλεθρον) (Cf 106d8-107a1)

74

43 Fundamento e condiccedilotildees para reminiscecircncia (72e-74a)

O nosso aprendizado nada mais eacute do que reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute

tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos

(Cf72e1-73a3) Em suma reminiscecircncia ocorre basicamente quando algueacutem se recorda

de x atraveacutes de y Por exemplo quando algueacutem se recorda de Siacutemias atraveacutes do retrato

de Siacutemias Mas Platatildeo apresenta uma seacuterie de condiccedilotildees que devem acompanhar este

ato cognitivo para que seja propriamente caracterizado como reminiscecircncia

Depois que Cebes propotildee o novo argumento e Soacutecrates preliminarmente

conversa com Siacutemias e revisa o essencial sobre o ensino da reminiscecircncia Soacutecrates

apresenta um tipo de prefaacutecio ao argumento propriamente dito no qual ele introduz

condiccedilotildees gerais para que ocorra a reminiscecircncia em 73c-74a como indica Soacutecrates

dizendo que lsquose algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio quersquo (εἴ τίς τι ἀναμνησθήσεται

δεῖν) (73c1-3) Um determinado ato cognitivo soacute poderaacute ser apropriadamente

chamado de reminiscecircncia ndash em 73c temos o verbo ἀναμιμνήσκω e o substantivo

ἀνάμνησις ndash se cumpridas essas condiccedilotildees apresentadas em 73c-74a Seguimos a

sugestatildeo de Scott que identifica quatro condiccedilotildees93

(i) Noacutes devemos ter conhecido x antecipadamente (73c1-3) lsquose algueacutem for

recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimentorsquo

(ii) Noacutes devemos natildeo apenas reconhecer y mas tambeacutem pensar sobre x

(73c6-8) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

93 Scott 1995 p 55

75

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item ()rsquo

(iii) x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

(73c8-9) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo

e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo

item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto

do primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que

lhe veio agrave mentersquo A partir de 73d temos vaacuterios exemplos de

reminiscecircncia

bull amantes veem uma lira um manto ou algum outro objeto de seus amados

e recordam-se da imagem do amado

bull algueacutem vecirc a pintura de um cavalo ou a pintura de uma lira e recorda-se

de uma pessoa

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Cebes

bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Siacutemias

(iv) quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma

coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7) lsquomas sempre que se recorda de algo a

partir de coisas semelhantes natildeo passa necessariamente pela experiecircncia

de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se recordou e o objeto

recordado se assemelhamrsquo

Essas condiccedilotildees teratildeo crucial importacircncia no desenvolvimento do argumento

mas agora vejamos a quarta condiccedilatildeo com mais cuidado Soacutecrates fala que pode haver

dois tipos de reminiscecircncia aquela a partir de itens semelhantes ao que foi recordado e

76

a partir de itens dissemelhantes (74a2-3) Soacutecrates passa a discorrer sobre a

reminiscecircncia a partir de itens semelhantes (ἀφ ὁμοίων) e apresenta seu exemplo

emblemaacutetico quando algueacutem vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias e recorda-se do proacuteprio

Siacutemias (73e9-10) Nesse caso o filoacutesofo impotildee uma experiecircncia adicional (προσπάσχω)

e necessaacuteria (ἀναγκαῖον) no processo de recordaccedilatildeo uma condiccedilatildeo sine qua non

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x (74a5-7) No caso do retrato por exemplo a reminiscecircncia tem que cumprir a

seguinte condiccedilatildeo eacute necessaacuterio perceber (ἐννοέω) se a semelhanccedila entre o retrato e

Siacutemias apresenta uma deficiecircncia no que concerne agrave similaridade (τι ἐλλείπει κατὰ

τὴν ὁμοιότητα) em relaccedilatildeo ao que a pintura recorda ndash Siacutemias (74a5-7) Aquele que olha

para o retrato de Siacutemias e recorda Siacutemias deve perceber a semelhanccedila que existe entre

Siacutemias o seu retraro mas tambeacutem perceber a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Neste caso Platatildeo certamente tenta

estabelecer o que a leitura natural do texto indica natildeo importa quatildeo bom seja o retrato

seraacute uma coacutepia do ldquooriginalrdquo e para que haja reminiscecircncia eacute necessaacuterio que se perceba

natildeo apenas a semelhanccedila evidente entre um retrato de boa qualidade e a pessoa que ele

lembra mas eacute imperativo que se perceba a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade

do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Eacute com essa uacuteltima condiccedilatildeo em curso

que Platatildeo introduz o ceacutelebre e paradigmaacutetico exemplo no argumento a reminiscecircncia

que ocorre quando algueacutem vecirc coisas iguais e se recorda do igual em si

77

44 Igual em si e coisas iguais (74a-74e)

O apelo inicial de Soacutecrates eacute para que se examine (σκοπέω) se lsquoo igual existersquo

ou se lsquoo igual eacute algorsquo (τι εἶναι ἴσον) que eacute em essecircncia uma questatildeo variante de 65d4-5

φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν (65d4-5)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10)

Em seguida comeccedila o processo de caracterizaccedilatildeo daquilo que se afirma existir

comeccedilando com a distinccedilatildeo baacutesica entre lsquoo igual em sirsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e lsquoas coisas ditas

iguai como um pedaccedilo de madeira igual a outro uma pedra igual a outra ou a qualquer

coisa desse tipo sendo coisas de natureza diferente (74a9-12) Platatildeo desenvolve esta

distinccedilatildeo ao longo do argumento sobretudo explorando a condiccedilatildeo para reminiscecircncia

que mencionamos antes quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em

alguma coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7)

Embora a questatildeo φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10) ainda continua obscura de

iniacutecio no argumento da reminiscecircncia ou seja nas primeiras linhas do argumento ainda

natildeo estaacute claro o que se quer dizer com lsquoo igual eacute algorsquo ou lsquoo igual existersquo ao longo do

argumento da reminiscecircncia o leitor percebe a tentativa consistente de estabelecer a

existecircncia de coisas como lsquoo igual em sirsquo de distinguir lsquoo igual em sirsquo das coisas

sensiacuteveis enquanto se estabelece a tese epistemoloacutegica de que conhecer eacute recordar o

conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo eacute apenas rememoraccedilatildeo daquele

conhecimento que a alma adquiriu antes do nascimento o que para Soacutecrates e seus

amigos prova que a alma jaacute existia antes de reencarnar

78

Portanto eacute neste contexto do argumento da reminiscecircncia que uma corrente

majoritaacuteria de interpretaccedilatildeo aponta pela primeira vez o que se entende por teoria das

Formas sendo lsquoigual em sirsquo uma Forma metafiacutesica que a alma conhece antes de nascer

numa condiccedilatildeo de pureza separada do corpo Vejamos o posicionamento de alguns

inteacuterpretes

(i) Gallop acredita que

bull A Teoria das Formas eacute introduzida em 65d e estaacute em cena no

argumento da reminiscecircncia

bull A pergunta φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (lsquoo igual eacute algorsquo) remete agrave

existecircncia de Formas metafiacutesicas

bull A doutrina da imortalidade eacute logicamente dependente da Teoria

das Formas e isto eacute declarado claramente em 76e-77a 92d-e and

l00b) firmando-se como teoria fundamental para o argumento da

reminiscecircncia

bull A Teoria das Formas eacute assumida em todo o diaacutelogo mas natildeo

provada94

(ii) Kahn por semelhante modo

94 Gallop 2002 p93 Cf Hackfort 1998 p69 97

79

bull A doutrina das Formas jaacute estaacute impliacutecita na descriccedilatildeo do objetivo

do filoacutesofo de ldquocontemplar as coisas em si com a proacutepria almardquo

(68e)

bull Eacute somente no argumento da reminiscecircncia que Soacutecrates comeccedila a

especificar a distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e Participantes

(74b-c) e eacute fundamental para a concepccedilatildeo da alma implicada no

argumento da imortalidade

bull A funccedilatildeo preciacutepua da teoria da reminiscecircncia consiste em

estabelecer a condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu

elo cognitivo com o ser transcendente 95

Agora voltaremos ao argumento e retomaremos esta questatildeo da teoria das

Formas posteriormente

Existe um igual

A primeira questatildeo ndash Existe um igual ndash eacute respondida por Siacutemias com grande

convicccedilatildeo (74a) A existecircncia dessas coisas que Soacutecrates chama agora de lsquoigual em sirsquo eacute

simplesmente assumida no argumento O argumento da reminiscecircncia depende em sua

origem de algo que as personagens simplesmente assumem que existe lsquoo igual em sirsquo

Ao longo de sua explanaccedilatildeo do mecanismo da reminiscecircncia Platatildeo caracteriza

lsquoo igual em sirsquo em contraste com as coisas sensiacuteveis e nos daacute uma compreensatildeo melhor

95 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

80

do objeto em questatildeo Eacute importante observar como esta estapa introdutoacuteria do

argumento eacute de iniacutecio conduzida a partir de pelo menos trecircs questotildees encadeadas

(i) Diriacuteamos como presumo que existe um igual () o igual em si

Diremos que isso existe ou natildeo (74a)

φαμέν πού τι εἶναι ἴσον () αὐτὸ τὸ ἴσον φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν

(ii) E tambeacutem sabemos o que eacute isso (74b)

ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν

(iii) De onde adquirimos o conhecimento disso (74b)

πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην

E tambeacutem sabemos o que eacute isso

A segunda questatildeo ndash lsquoE tambeacutem sabemos o que eacute issorsquo (74b) levanta um

problema sobre quem pode rememorar A primeira pessoa do plural ndash lsquoE tambeacutem

sabemos o que eacute issorsquo (74b) ndash e as condiccedilotildees para a reminiscecircncia apresentadas no

argumento sugerem que apenas os filoacutesofos podem rememorar Encontramos pelo

menos trecircs possiacuteveis interpretaccedilotildees de reminiscecircncia

(i) Interpretaccedilatildeo sofisticada lsquonoacutesrsquo em 74b indica um grupo seleto de

filoacutesofos iluminados que conhecem as Formas e com a posse desse

conhecimento esses filoacutesofos somente (no Feacutedon o ciacuterculo socraacutetico)

podem atender agraves condiccedilotildees para a reminiscecircncia dentre elas a condiccedilatildeo

crucial o reconhecimento da deficiecircncia de pedras e paus em contraste

81

com o Igual em si mesmo Reminiscecircncia ocorre quando em resposta agrave

percepccedilatildeo sensorial recordamos de uma Forma Scott acredita que em

74b Soacutecrates se concentra no conhecimento de uma uma entidade muito

distante do pensamento da maioria das pessoas a Forma da igualdade

Reminiscecircncia requer o conhecimento de Formas transcendentes e

apenas os filoacutesofos tecircm acesso a esse tipo niacutevel de conhecimento96

Franklin aponta um dos grandes problemas desta interpretaccedilatildeo se a

recordaccedilatildeo eacute restrita a uma classe seleta de aprendizes o argumento da

reminiscecircncia seria destinado a mostrar a preacute-existecircncia da alma somente

para aqueles que cumprem os requisitos97

(ii) Interpretaccedilatildeo ordinaacuteria lsquonoacutesrsquo em 74b remete ao ato cognitivo realizado

por todas as pessoas Reminiscecircncia diz respeito ao aprendizado

ordinaacuterio que qualquer pessoa pode experienciar O contexto do diaacutelogo

que visa provar a imortalidade da alma das pessoas em geral natildeo apenas

de Soacutecrates e dos socraacuteticos favorece essa leitura98 Embora esta leitura

seja favorecida pelo contexto geral do diaacutelogo o contexto imediato

parece deixar claro que apenas filoacutesofos podem praticar reminiscecircncia

nos moldes apresentados aqui conhecimento do lsquoigual em sirsquo e

capacidade para cumprir as condiccedilotildees de reminiscecircncia

(iii) Interpretaccedilatildeo conciliatoacuteria estamos chamando de interpretaccedilatildeo

conciliatoacuteria aquela proposta por Kahn que tenta harmonizar as

interpretaccedilotildees sofisticada e ordinaacuteria Ele acredita que haacute duas teses em

96 Scott 1995 p56 97 Franklin 2005 p290 98 Franklin 2005 p289290

82

questatildeo no argumento uma a respeito da cogniccedilatildeo de todas as pessoas

todas rememoram todas se referem agraves Formas em todo juiacutezo perceptivo

mas apenas de modo inconsciente se referem ao Igual em si quando

julgam que pedaccedilotildees de paus e pedras satildeo iguais a outra tese diz respeito

agrave reminiscecircncia para filoacutesofos somente filoacutesofos quando rememoram

podem distinguir entre Formas e particulares e reconhecer a deficiecircncia

dos uacuteltimos99

A tentativa de conciliaccedilatildeo de Kahn parece a mais prudente Eacute inegaacutevel que

Platatildeo esteja apresentando condiccedilotildees para reminiscecircncia que apenas os filoacutesofos

(ciacuterculo socraacutetico) podem cumprir por outro lado a interpretaccedilatildeo estritamente

sofisticada eacute improvaacutevel porque natildeo se pode esperar que Platatildeo esteja querendo provar

apenas a imortalidade da alma de Soacutecrates e seus amigos Ao que parece todas as

pessoas podem lsquorememorarrsquo aquilo que a alma conheceu antes do nascimento mas

nigueacutem exceto o filoacutesofo saberia dar um relato (διδόναι λόγον) a respeito da

reminiscecircncia (76b) Portanto as condiccedilotildees para a reminiscecircncia devem ser cumpridas

por todas as pessoas mas de modo consciente pelos filoacutesofos

De onde adquirimos o conhecimento disso

A terceira questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o conhecimento dissorsquo (74b) ndash visa

esplicar o mecanismo de reminiscecircncia dando atenccedilatildeo especial para a seguinte condiccedilatildeo

para reminiscecircncia x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro

99 Kahn in Benson 2011 p 124

83

O emprego do verbo lsquoconhecerrsquo (ἐπίσταμαι) e do substantivo lsquoconhecimentorsquo

(ἐπιστήμη) (74b) revela que Platatildeo estaacute tratando de atos cognitivos lsquoE tambeacutem sabemos

o que eacute issorsquo (καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν) lsquoDe onde adquirimos o conhecimento

dissorsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) (74b) Vejamos a explicaccedilatildeo de

Soacutecrates recordando tambeacutem a condiccedilatildeo apresentada haacute pouco antes

ldquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo

somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo item

mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto do

primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que lhe

veio agrave menterdquo(73c)

ldquoQuando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso trazemos agrave

mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delasrdquo (74b)

ldquoEntatildeo perguntou eacute mesmo a partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave

mente e adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais

sejam diferentesrdquo (74c)

Agora a questatildeo especiacutefica eacute como recordamos a lsquoo igual em sirsquo cujo

conhecimento adquirimos antes do nascimento O problema inicial que temos eacute

o papel dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia Quando utilizamos os

sentidos (αἴσθησις) natildeo somente conhecemos (γιγνώσκω) os objetos sensiacuteveis

(paus e pedras iguais por exemplo) mas tambeacutem nos vem agrave mente (ἐννοέω) um

84

segundo item (lsquoFormarsquo) (Cf 73c) Ao que parece existem dois atos cognitivos

integrados no mecanismo de reminiscecircncia o primeiro ato eacute o de conhecer

(γιγνώσκω) um objeto sensiacutevel pelo uso de αἴσθησις Quando isto ocorre um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto mas tambeacutem vem agrave mente

(ἐννοέω) um segundo item (73c) Eacute assim que deve acontecer quando

recordamos o lsquoigual em sirsquo cujo conhecimento obtemos antes de nascer pelo uso

de αἴσθησις vemos gravetos pedras e outras coisas iguais e a partir disso um

outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto a partir dessas coisas (ἐκ τούτων)

trazemos agrave mente aquilo (ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) (74b) Em 74c Soacutecrates repete a

ideia dizendo que eacute a partir dessas coisas iguais (ἐκ τούτων τῶν ἴσων) que se

traz agrave mente (ἐννοέω) e se toma (λαμβάνω) o conhecimento (ἐπιστήμη) do Igual

Esta ideia de que pensamos ou adquirimos conhecimento do Igual a

partir das coisas sensiacuteveis eacute recorrente no argumento (74c710 75a5-7 75a11-

b3 cf75e3-5) o seu significado remete agrave questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o

conhecimento disso (74b)rsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) ndash mas

ainda eacute difiacutecil entender precisamente o que significam expressotildees como

πόθενἐκ τούτωνἐκ τούτων τῶν ἴσων Se Platatildeo estiver realmente assumindo

que natildeo haacute outra maneira de adquirir o conhecimento do Igual mas por meio

dos sentidos somente sugere-se uma ideia diferente daquela apresentada ao

longo do diaacutelogo a de que os sentidos satildeo despreziacuteveis obstaacuteculos na busca do

filoacutesofo pelas lsquoFormasrsquo Essa caracterizaccedilatildeo extremamente pejoritaacuteria dos

sentidos e dos sensiacuteveis permanece no diaacutelogo ateacute a autobiografia intelectual de

Soacutecrates quando o filoacutesofo declara que seu novo modo de investigaccedilatildeo exclui a

utilizaccedilatildeo de αἴσθησις (99d4-e6)

85

Na primeira etapa do diaacutelogo em 65andash66a Platatildeo explica como

podemos adquirir conhecimento e parece ficar claro que natildeo pode ser atraveacutes

dos sentidos Fine apresenta assim a estrutura do argumento na primeira parte do

diaacutelogo (65a9ndashc10)

1 Os sentidos corporais natildeo satildeo precisos nem claros

2 Portanto natildeo podemos perceber nada com precisatildeo ou clareza

3 Portanto a percepccedilatildeo natildeo conteacutem qualquer verdade

4 Portanto sempre que a alma indaga (zetein 65a10) ou considera

(skopein 65b10) algo junto com o corpo ela eacute enganada pelo corpo

5 Portanto a alma natildeo pode alcanccedilar a verdade quando indaga ou

considera algo junto com o corpo

6 Se algueacutem natildeo consegue alcanccedilar a verdade natildeo pode alcanccedilar a

sabedoria

7 Portanto a percepccedilatildeo natildeo pode atingir a sabedoria nem a alma pode

alcanccedilar a sabedoria se investigar ou considerar algo junto com o

corpo

8 Portanto eacute pelo raciociacutenio que qualquer uma das coisas que satildeo se

torna manifesta para a alma

9 Portanto se a alma pode atingir a sabedoria seraacute pelo raciociacutenio100

No argumento da reminiscecircncia os sentidos desempenham um papel no

mecanismo de reminiscecircncia que permite a algueacutem rememorar a lsquoFormarsquo a partir

100 Fine 2016 p559

86

das coisas sensiacuteveis Por outro lado eacute pouco provaacutevel que por πόθενἐκ

τούτωνἐκ ἐκ τούτων τῶν ἴσων Platatildeo queira enfatiza a suficiecircncia das coisas

sensiacuteveis como objetos capazes de nos fazer trazer as lsquoFormasrsquo agrave mente

Provavelmente os objetos particulares oferecem um primeiro estiacutemulo para um

segundo ato cognitivo em que a alma utiliza o intelecto para alcanccedilar aquele

conhecimento esquecido das lsquocoisas em sirsquo Quando algueacutem vecirc paus e pedras

iguais o estiacutemulo dos sensiacuteveis como que aperta o gatilho para um segundo ato

cognitivo quando a alma atraveacutes da atividade intelectiva traz agrave mente o

conhecimento das lsquoFormasrsquo (75a4) o qual jaacute possuiacuteamos originalmente antes do

nascimento e que esquecemos ao nascer na ocasiatildeo em que a alma se aloja num

corpo (Cf75b-77a) Ainda assim enquanto presa ao corpo o maacuteximo que a

alma faz eacute rememorar o conhecimento adquirido previamente e natildeo adquirir o

conhecimento original da lsquoFormarsquo em primeira matildeo Portanto o papel da

percepccedilatildeo sensiacutevel eacute importante mas bastante restrito Na ausecircncia do corpo a

alma pode ter contato direto com as lsquoFormasrsquo

Ainda assim a participaccedilatildeo dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia

continua sendo difiacutecil de conciliar com a caracterizaccedilatildeo extremamente negativa

dos sentidos no diaacutelogo No argumento da afinidade a alma que se utiliza do

corpo para fazer qualquer tipo de consideraccedilatildeo eacute arrastada por ele para os

objetos sensiacuteveis e logo entra em estado de confusatildeo como se estivesse becircbada

por estar em contato com objetos desse tipo (Cf79c) A soluccedilatildeo parece

abandonar completamente os sentidos o que Soacutecrates faraacute com o seu novo modo

de investigaccedilatildeo (99d4-e6)

87

Distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo

Para que haja reminiscecircncia lsquoo igual em sirsquo que eacute rememorado deve ser um

objeto de conhecimento diferente das coisas sensiacuteveis Aleacutem disso eacute necessaacuterio

reconhecer a deficiecircncia das coisas sensiacuteveis em contraste com lsquoo igual em sirsquo A

distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo eacute fundamental para o mecanismo de

reminiscecircncia Esta distinccedilatildeo eacute basicamente expressa a partir da caracterizaccedilatildeo da

inferioridade ou deficiecircncia de coisas sensiacuteveis com o lsquoigual em sirsquo (74d-75b) A

reminiscecircncia requer que noacutes apontemos a diferenccedila entre τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον

quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo

a x Aquele que rememora deve reconhecer que (75b5-8)

(i) Todas as coisas sensiacuteveis querem (προθυμέομαι) ser tal como (οἷον) lsquoo

igualrsquo

(ii) mas satildeo inferiores (φαῦλος) a ele

Aqui o texto eacute obscuro e natildeo fornece detalhes para a compreensatildeo dessa ideia de

deficiecircncia entre as lsquocoisas sensiacuteveisrsquo e lsquoo igual em sirsquo Natildeo apenas a ideia de

lsquodeficiecircnciarsquo lsquoinferioridadersquo (φαῦλος) eacute vaga mas tambeacutem a ideia de que coisas

sensiacuteveis como paus e pedras iguais tecircm um desejo ardoroso por ser do mesmo tipo do

igual em si O que fica claro eacute que Platatildeo estaacute tratando de duas classes de coisas e que

uma eacute nobre (igual em si) a outra vulgar (φαῦλος) (coisas iguais) Essa distinccedilatildeo seraacute

bem desenvolvida no argumento das afinidades Mas por enquanto Platatildeo nos priva de

88

mais informaccedilotildees A obscuridade da noccedilatildeo de lsquodeficiecircnciarsquo e de lsquozelo ardorosorsquo eacute

realmente uma fraqueza na exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo a ser cumprida por quem rememora

45 Estrutura Baacutesica do Argumento da Reminiscecircncia

Depois de explicar em linhas gerais o mecanismo de reminiscecircncia eacute possiacutevel

agora observar a estrutura geral do argumento e em seguida desenvolver o ponto preciso

do qual decorre a conclusatildeo de que a alma continua a existir depois da morte Eis a

estrutura do argumento seguida de um comentaacuterio

[1] Noacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o

Igual quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que

elas tentam ser como o Igual mas satildeo inferiores a elas (74e9-75a3)

[2] Noacutes natildeo pensamos no Igual nem haacute chance de isso ter acontecido exceto

pelos sentidos (τῶν αἰσθήσεων) (75a5-7)

[3] Tudo percebido pelos sentidos se esforccedila para ser como o Igual mas eacute

inferior (75b12)

[4] Noacutes devemos necessariamente ter adquirido o conhecimento (λαμβάνειν

ἐπιστήμην) original do Igual antes mesmo de utilizar os sentidos (75b4-8)

[5] Noacutes natildeo podemos ter adquirido o conhecimento original do Igual a partir

dessas coisas inferiores (sensiacuteveis) (75b4-8)

[6] Noacutes devemos ter adquirido o conhecimento original do Igual (e de todas as

outras coisas desse tipo) antes mesmo de utilizar os sentidos (75c4-5)

[7] Noacutes comeccedilamos a utilizar os sentidos quando nascemos (75b10-11)

89

[8] Portanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea conhecimento

do Igual (76c)

A ideia central do argumento eacute a necessidade de termos adquirido conhecimento

do igual em si antes do uso dos sentidos porque nem os sentidos nem os objetos

sensiacuteveis podem fornecer esse conhecimento Jaacute que comeccedilamos a usar os sentidos na

ocasiatildeo do nascimento a alma deve ter conhecido o igual em si antes do nascimento e

portanto a alma existe (e tem conhecimento do igual) antes do nascimento

Embora a rememoraccedilatildeo ocorra a partir dos sentidos a aquisiccedilatildeo original do

conhecimento das lsquoFormasrsquo natildeo pode ocorrer a partir do domiacutenio das coisas sensiacuteveis

porque eacute um domiacutenio de coisas inferiores deficientes que natildeo podem servir de fonte

primaacuteria para a obtenccedilatildeo do conhecimento original da lsquoFormarsquo Ateacute mesmo a

rememoraccedilatildeo do conhecimento adquirido previamente eacute difiacutecil e nem mesmo a

explanaccedilatildeo de como isto ocorre eacute bem clara O conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo natildeo

pode ser obtido enquanto alma reencarnada e nem mesmo eacute faacutecil recuperar o

conhecimento jaacute adquirido Apenas quando a alma estaacute separada do corpo eacute que poderia

ganhar conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo

A ideia de que eacute impossiacutevel adquirir conhecimento das coisas em si atraveacutes do

estiacutemulo dos objetos particulares eacute um dos pontos essenciais que levaratildeo agrave conclusatildeo de

que a alma soacute pode ter adquirido este conhecimento antes de nascer Quando relata a

inferioridade dos objetos sensiacuteveis em contraste com o igual em si Soacutecrates reconhece

que natildeo eacute possiacutevel que por meio da nossa percepccedilatildeo de objetos sensiacuteveis deficientes

possamos ter um conhecimento original do Igual em si A proacutepria capacidade de

observar que lsquosensiacuteveisrsquo querem ser tal como lsquoa coisa em sirsquo mas satildeo inferiores requer

90

obrigatoriamente um conhecimento preacutevio da lsquocoisa em sirsquo que se assemelha com o

objeto sensiacutevel o qual eacute deficiente e inferior em contraste com a lsquocoisa em sirsquo Por meio

da nossa percepccedilatildeo do domiacutenio dos sensiacuteveis seria impossiacutevel reconhecer a deficiecircncia

de pedras e paus iguais em contraste com o igual em si A proacutepria natureza deficiente do

domiacutenio dos sensiacuteveis eacute incapaz de providenciar conhecimento daquilo que eacute nobre

superior Pelo seu caraacuteter coisas sensiacuteveis natildeo podem ser fonte suficiente para o

conhecimento da lsquoFormarsquo A uacutenica resposta plausiacutevel para este problema segundo a

personagem Soacutecrates eacute que a nossa alma deve ter obtido o conhecimento do lsquoigual em

sirsquo antes mesmo de utilizar os sentidos porque ao utilizar os sentidos e perceber que a

deficiecircncia de paus e pedras em contraste com o igual em si a pessoa jaacute estaacute fazendo

uso desse conhecimento original do lsquoigual em sirsquo Essa ideia central jaacute comeccedila a ser

desenvolvida depois do mecanismo de reminiscecircncia ter sido explicado a partir de 74e

ldquoNoacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o Igual

quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que elas tentam

ser como o Igual mas satildeo inferiores a elasrdquo (74e9-75a3) Quando pela primeira vez

utilizamos os sentidos e jaacute podemos reconhecer a diferenccedila entre lsquosensiacuteveisrsquo e lsquoFormasrsquo

eacute necessaacuterio que nesta ocasiatildeo jaacute tenhamos obtido previamente o conhecimento da

lsquoFormarsquo Conforme Soacutecrates se jaacute comeccedilamos a utilizar os sentidos ao nascer

possuiacutemos conhecimento do igual em si antes mesmo do nascimento e as nossas almas

jaacute existiam antes do nascimento (75c)

91

46 Avaliaccedilatildeo do argumento

Ao final do argumento Soacutecrates acredita que provou que a alma existe antes do

nascimento lsquoPortanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea

conhecimento do Igualrsquo (76c) Eis algumas falhas do argumento

(i) A prova da reminiscecircncia falha porque se estabelece a partir de uma

mera pressuposiccedilatildeo de que lsquoFormasrsquo existem

(ii) A prova da reminiscecircncia falha porque natildeo estaacute claro que a alma natildeo

possa adquirir um conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo a partir

da reencarnaccedilatildeo

(iii) Soacutecrates conclui que fica provado que lsquoFormasrsquo e almas existem antes do

nascimento (76e5-7) mas em momento algum o argumento procura

provar que lsquoFormasrsquo existem

(iv) O argumento da reminiscecircncia natildeo prova que a alma eacute imortal Ainda

que o argumento se estabelecesse nada garantiria que a alma que

conhece as lsquoFormasrsquo no aleacutem natildeo seria destruiacuteda ainda antes de

reencarnar A doutrinda da reminiscecircncia soacute provaria que a nossa alma

sobreviveu no periacuteodo de tempo que vai do aleacutem quando a alma

conheceu as lsquoFormasrsquo ateacute o momento em que as recordamos Estaacute bem

claro que a alma poderia entatildeo se dispersar e destruir na hora da morte

92

47 Observaccedilotildees finais

O argumento eacute bastante difiacutecil e apresenta muitos problema de interpretaccedilatildeo

sobretudo porque Platatildeo deixa boa parte dos pontos centrais do argumento sem uma

explicaccedilatildeo suficiente Haacute muitas sentenccedilas ambiacuteguas e vagas e conceitos essenciais para

o argumento natildeo satildeo esclarecidos como o que significa dizer que as coisas sensiacuteveis

tecircm um forte desejo de ser como as lsquoFormasrsquo

Nestas consideraccedilotildees finais comentamos trecircs toacutepicos relacionados ao argumento

teoria das Formas imortalidade da alma e a sugestatildeo de Soacutecrates de que devemos

combinar argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

471 Teoria das Formas e a prova da imortalidade da alma

O problema da teoria das Formas eacute alvo de grande debate e a interpretaccedilatildeo

majoritaacuteria como apresentamos no estudo tende a reconhecer que a imortalidade da

alma depende da Teoria das Formas apresentada no argumento da reminiscecircncia A

nossa avaliaccedilatildeo do argumento sugere que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o

fim de apoiar a sua exposiccedilatildeo de uma mecanismo de reminiscecircncia que levaraacute a uma

prova de que a alma existe antes de nascer Natildeo temos aqui uma terminologia teacutecnica

para Formas e a distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo estaacute longe de ser clara

Portanto o maacuteximo que podemos reconhecer eacute uma teoria incipiente uma primeira

tentativa no diaacutelogo de estabelecer a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo e

que nos leva a reconhecer uma discreta tentativa de estabelecer ou esboccedilar uma teoria

das Formas Aleacutem disso esta tentativa visa dar suporte agrave explanaccedilatildeo sobre o mecanismo

93

de reminiscecircncia Alguns comentadores tendem a explorar a temaacutetica da teoria das

Formas no argumento das reminiscecircncia e chegam a conclusotildees exageradas como

Kahn segundo o qual Platatildeo comeccedila a desenvolver a noccedilatildeo de lsquoparticipaccedilatildeorsquo no

contexto do argumento da reminiscecircncia 101 Portanto a nossa avaliaccedilatildeo do argumento

indica que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o fim de dar suporte agrave sua

exposiccedilatildeo sobre o mecanismo de reminiscecircncia que fornece a prova para a preexistecircncia

da alma

472 Imortal (ἀθάνατος)

Temos no argumento da reminiscecircncia a primeira menccedilatildeo expliacutecita da palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) no diaacutelogo (73a2) Cebes afirma que a doutrina da reminiscecircncia

natildeo seria plausiacutevel se a nossa alma natildeo existisse em algum lugar antes de assumir a

forma humana (τοῦτο δὲ ἀδύνατον εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) e finaliza dizendo que a alma parece ser algo

imortal tambeacutem dessa maneira (ὥστε καὶ ταύτῃ ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι) (Cf

72e1-73a3) Cebes estimula Soacutecrates a construir uma prova da imortalidade da alma

com base na doutrina da reminiscecircncia que lhe parece tambeacutem tratar da imortalidade da

alma Note-se que o emprego da expressatildeo τι ἔοικεν εἶναι (73e2-3) indica que Cebes

natildeo tem qualquer convicccedilatildeo sobre isso A sua observaccedilatildeo eacute um convite para que

Soacutecrates lhe mostre se realmente o ensino da reminiscecircncia pode ser tomado como

prova da imortalidade da alma ou natildeo Cebes eacute o responsaacutevel por vincular incialmente

imortalidade da alma e argumento da reminiscecircncia

101 Cf Kahn in Benson 2011 p 124

94

Mas a intervenccedilatildeo inicial de Soacutecrates visa ratificar a tese central da doutrina da

reminiscecircncia para Siacutemias aprender eacute recordar O filoacutesofo acha que Siacutemias natildeo estaacute

convencido de que o aprendizado pode ser reminiscecircncia e o convida a examinar a

doutrina a partir de outro acircngulo Siacutemias nega que tenha essa duacutevida mas reconhece que

precisa experimentar o ensino da reminiscecircncia (73b) Eacute a partir daiacute que Soacutecrates

introduz o segundo argumento da imortalidade da alma no Feacutedon em 73c Soacutecrates

sequem menciona a palavra lsquoimortalrsquo ao longo do argumento e a sua conclusatildeo aponta

para o que Cebes apresenta desde o iniacutecio a doutrina da reminiscecircncia soacute funciona ou

seja reminiscecircncia soacute lsquoseria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum

lugar antes de assumir essa forma humanarsquo (73a1-2) Ao final o argumento da

reminiscecircncia nem prova que a alma eacute imortal A insistecircncia de Soacutecrates de que

argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia juntos consistiria na prova completa que os

amigos esperam natildeo eacute acolhida pelos amigos (77c-d) que continuam assombrados com

a possibilidade de teestemunha em breve natildeo apenas a morte de Soacutecrates a separaccedilatildeo

entre alma e corpo mas a destruiccedilatildeo da sua alma (77e) O argumento ciacuteclico havia

mostrado que as almas existem depois da morte de onde voltam para alojar-se num

corpo A conclusatildeo do argumento da reminiscecircncia reforccedila apenas algo que jaacute havia

sido mencionado no argumento ciacuteclico ndash as almas existem antes de reencarnar ndash mas

agora a partir de um argumento aceito pelos amigos no que concerne agrave existecircncia da

alma antes do nascimento

A sugestatildeo para combinar os argumentos mostra que Soacutecrates entende que

preexistecircncia da alma (argumento da reminiscecircncia) + existecircncia post mortem da alma

(argumento ciacuteclico) = imortalidade da alma Mas a existecircncia da alma antes do

nascimento e a existecircncia da alma depois da morte tomadas juntas natildeo provam que a

95

alma eacute imortal A sugestatildeo de Soacutecrates deve ser entendida com base na concepccedilatildeo de

imortalidade vinculada agrave reencarnaccedilatildeo apresentada no antigo relato a qual Soacutecrates

ainda tem em mente quando sugere essa combinaccedilatildeo como veremos adiante

Tambeacutem vale lembrar que o uso de ὥστε καὶ (73e2) sugere que a discussatildeo

anterior no entendimento de Cebes jaacute poderia ser vista como uma tentativa de provar a

imortalidade da alma mas de modo algum ele considera que o argumento teve sucesso

nisso No Feacutedon natildeo encontramos qualquer sugestatildeo de que Cebes ou Siacutemias aceitam o

argumento ciacuteclico como prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma Tudo indica que

natildeo

(i) A introduccedilatildeo abrupta do ensino da reminiscecircncia com uma esperanccedila de

que pudesse provar a imortalidade da alma parece muito mais uma

admissatildeo velada de que Cebes natildeo estaacute satisfeito com a prova

apresentada do que simplesmente um reconhecimento de que o

argumento ciacuteclico prova a imortalidade da alma

(ii) Depois do argumento das afinidades em 85d as personagens se privam

de apresentar as suas criacuteticas natildeo pretendem importunar Soacutecrates na

ocasiatildeo adversa em que se encontra Essa deve ser uma das razotildees pelas

quais pelo menos na transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia Cebes

prefere incitar Soacutecrates a um novo argumento em vez de importunar o

mestre com suas objeccedilotildees diretas

(iii) A reaccedilatildeo esperada de Cebes caso estivesse de acordo com a primeira

prova apresentada seria a expressatildeo de sua satisfaccedilatildeo como ocorre no

96

final do uacuteltimo argumento (107a) quando ele simplesmente afirma que

natildeo tem nada para objetar

(iv) Ao final do proacuteprio argumento da reminiscecircncia mesmo depois da

sugestatildeo de que a uniatildeo do argumento ciacuteclico e do argumento da

reminiscecircncia provaria o que eles requerem o temor dos amigos diante

da possibilidade de que a alma de Soacutecrates pudesse ainda ser dissipada e

destruiacuteda e o clamor para que Soacutecrates pudesse ainda persuadi-lo a natildeo

temer por meio um novo argumento tambeacutem indicam que Cebes e Siacutemias

rejeitam o argumento ciacuteclico (e tambeacutem o da reminiscecircncia) como prova

da imortalidade da alma (77e)

(v) Tambeacutem depois do argumento das afinidades Soacutecrates pergunta se os

amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns dos argumentos

apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam apenas alguns e

rejeitam outros ressaltando que aceitam o argumento da reminiscecircncia

no que diz respeito agrave preexistecircncia da alma (91e-92a) Eacute bem provaacutevel

que o argumento ciacuteclico esteja na lista dos rejeitados

Ao dizer que a alma parece ser algo imortal (ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι)

(73a) Cebes estaacute reconhecendo que a discussatildeo que toma lugar na etapa demonstrativa

eacute especialmente sobre a imortalidade da alma Desde que ele mesmo apresenta a crenccedila

comum de que a alma pode ser destruiacuteda na separaccedilatildeo do corpo (70a) eacute especialmente

sobre a imortalidade da alma No Feacutedon os amigos de Soacutecrates natildeo aceitam um

argumento filosoacutefico que natildeo seja capaz de provar nada mais do que a imortalidade da

alma Esta transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia eacute sem duacutevida a ocasiatildeo precisa

97

em que Platatildeo emprega a palavra lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) pela primeira vez no diaacutelogo na

voz de Cebes com o fim de nos deixar saber que o tema da imortalidade da alma

individual (o contexto do Feacutedon deixa claro que o problema em questatildeo eacute provar que a

alma de Soacutecrates natildeo seraacute destruiacuteda assim que beber o veneno) se estabelece como tema

central do diaacutelogo

473 Eacute necessaacuterio combinar argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia

Haacute alguns indiacutecios textuais que mostram que Platatildeo se preocupa em relacionar o

argumento ciacuteclico e o argumento da reminiscecircncia Ao final do argumento da

reminiscecircncia Cebes concorda com Siacutemias de que soacute fora demonstrado (ἀποδείκνυμι)

metade (ἥμισυς) daquilo que seria necessaacuterio que a alma existe antes do nascimento

(ὅτι πρὶν γενέσθαι ἡμᾶς ἦν ἡμῶν ἡ ψυχή) (Cf77b1 77c2-3) Agora seria necessaacuterio

provar que a alma continua a existir depois da morte (77c) Soacutecrates entatildeo trata os dois

argumentos como unidade e pede que os amigos os combinem (συντίθημι) para obter

uma uacutenica prova (77c)

Alguns comentadores admitem pelo menos uma relaccedilatildeo complementaacuteria entre os

dois argumentos e ateacute que uma completa prova da imortalidade da alma dependeria da

combinaccedilatildeo dos dois102 Mas geralmente natildeo se oferece uma resposta convincente para

esse tratamento singular e relaccedilatildeo dos dois argumentos A nossa anaacutelise procura mostrar

que o elo de ligaccedilatildeo dos dois argumentos eacute a doutrina religiosa de cunho oacuterfico

pitagoacuterico apresentada no relato antigo em 70a e que eacute um componente fundamental da

doutrina da reminiscecircncia no Mecircnon As duas primeiras provas da imortalidade

102 Cf Bluck 1955 p62 Dorter 1982 p45 Hackfort 1955 p1998 White 1989 p80

98

oferecem uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a mesma crenccedila apresentada no antigo

relato Vejamos como isto ocorre

O argumento ciacuteclico eacute introduzido a partir de um lsquoantigo relatorsquo de cunho oacuterfico

e pitagoacuterico ndash a transmigraccedilatildeo da alma ndash e a doutrina da reminiscecircncia tal como vemos

no Mecircnon estaacute intrinsecamente ligada com a ideia de imortalidade e transmigraccedilatildeo da

alma Como diz Kahn no pensamento oacuterfico e pitagoacuterico a imortalidade eacute concebida

em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo das almas103 A doutrina da reminiscecircncia eacute apresentada no

Mecircnon 81a-e como doutrina que tem origem em autoridades ndash sacerdotes sacerdotisas e

poetas divinamente inspirados ndash que dizem que a alma humana eacute imortal e agraves vezes

chega ao fim o que eles chamam morrer e agraves vezes reencarna mas nunca perece A

alma eacute imortal e estaacute sujeita agrave reencarnaccedilatildeo e disso decorre a necessidade de viver de

modo tatildeo piedoso quanto possiacutevel (81b 86b) e de recordar tudo o que ainda natildeo foi

recordado (86b1-4) Fica claro que argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia manteacutem uma

relaccedilatildeo com aquela mesma crenccedila religiosa apresentada com o nome de lsquorelato antigorsquo ndash

a transmigraccedilatildeo da alma ndash a qual estaacute intrinsecamente ligada como a crenccedila na

imortalidade da alma O relato antigo diz basicamente o seguinte (70c-d)

(i) a alma dos que morrem existem no Hades

(ii) a alma dos que partiram existem no Hades de onde regressam para a vida

terrena

103 Cf Kahn 2007 p18

99

Natildeo eacute difiacutecil perceber que as duas premissas que constituem o antigo relato

estaratildeo presentes na conclusatildeo do argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia

respectivamente

Antigo relato

As almas dos que morrem

existem no Hades

As almas dos que morrem

existem no Hades de onde

regressam para a vida terrena

Ciacuteclico As almas dos que morrem

existem no Hades (existecircncia post

mortem da alma ndash conclusatildeo do

argumento ciacuteclico)

As almas dos que morrem

existem no Hades antes do

nascimento de onde regressam

para a vida terrena

Reminiscecircncia As almas dos que morrem

existes antes do nascimento

A soluccedilatildeo de Soacutecrates para combinar os dois argumentos natildeo muda a prova

porque o argumento da reminiscecircncia simplesmente prova algo que jaacute estaacute presente no

argumento dos opostos almas existem antes do nascimento e reencarnam

100

O argumento eacute destinado a provar a imortalidade desde o iniacutecio com a clara

indicaccedilatildeo de Cebes mas a concepccedilatildeo de imortalidade em funccedilatildeo da doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma natildeo eacute aquilo que os amigos de Soacutecrates desejam como prova da

imortalidade da alma O tema da imortalidade deve ser tratado num sentido platocircnico

ldquoinovadorrdquo sem a dependecircncia ou vinculaccedilatildeo com a ideia de transmigraccedilatildeo No

decorrer do diaacutelogo os interlocutores apelam para a necessidade de que se fique claro

que natildeo eacute provando que as almas transmigram que podemos provar que as almas satildeo

imortais Transmigraccedilatildeo pode ocorrer por um periacuteodo de tempo e ao final a alma poderaacute

ser destruiacuteda Eacute necessaacuteria uma radical ruptura desta ideia para que se prove que a alma

eacute imortal nos termos de uma nova compreensatildeo filosoacutefica que natildeo depende do

componente religioso de cunho oacuterfico e pitagoacuterico Ao final dos dois primeiros

argumentos o problema continua o mesmo a alma existe antes e depois da morte mas

ateacute quando

Em suma argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia estatildeo vinculados

especialmente pelo antigo relato Esta observaccedilatildeo nos ajuda a entender por que esses

dois argumentos estatildeo interligados no Feacutedon

(i) a uacutenica ocasiatildeo em que temos uma transiccedilatildeo imediata para o argumento

seguinte

(ii) os uacutenicos argumentos em que Soacutecrates nunca emprega a palavra

lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος)

(iii) os uacutenicos que Soacutecrates trata como se fossem uma unidade cada um

prova uma metade ndash o ciacuteclico que a alma existe depois da morte o da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento (77c)

101

(iv) os uacutenicos argumentos que Soacutecrates diz que devem ser combinados

(συντίθημι) (77c)

(v) os uacutenicos argumentos especialmente conectados pela doutrina da

transmigraccedilatildeo da alma (o relato antigo eacute um componente religioso da

doutrina da reminiscecircncia)

102

5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)

51 Introduccedilatildeo

A literatura secundaacuteria costuma tratar o argumento das afinidades como sendo o

menos atrativo o mais fraco e o mais negligenciado pelos comentadores 104

O argumento das afinidades em si eacute apresentado em 78b-80b e eacute seguido por

uma discussatildeo de cunho miacutetico e especulativo em 80c-84b a qual Platatildeo utiliza para

defender o modo filosoacutefico de viver O argumento eacute bastante diferente dos demais ele

se constitui basicamente de duas analogias uma que estabelece a relaccedilatildeo entre almas e

Formas e outra entre almas e deuses com base nas quais se defende que a alma seria

mais como as Formas e como os deuses concluindo-se entatildeo que ela seria indissoluacutevel

imune agrave desintegraccedilatildeo por ocasiatildeo da morte ou algo proacuteximo disso

52 Contexto

Ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias acreditam que Soacutecrates

conseguira provar apenas que a alma continuaria a existir antes do nascimento mas

restaria ainda a necessidade de provar se a alma haveraacute de existir depois da morte

Siacutemias esclarece que a objeccedilatildeo levantada por Cebes no ponto de transiccedilatildeo entre a

primeira e a segunda parte do diaacutelogo ainda permanece sem soluccedilatildeo a crenccedila popular

de que na ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua

104 Cf Apolloni 1996 p5 Elton 1997 p313

103

existecircncia Ao final do argumento da reminiscecircncia os amigos de Soacutecrates parecem

convencidos de que Soacutecrates natildeo havia provado que a alma continua a existir depois da

morte

Platatildeo parece ter um interesse especial em enfatizar ao longo do diaacutelogo que os

amigos de Soacutecrates natildeo possuem nenhuma reserva em relaccedilatildeo ao argumento da

reminiscecircncia desde que ele natildeo seja utilizado para provar que a alma continua a existir

depois da morte

(i) Ao final do argumento da reminiscecircncia Siacutemias manifesta absoluta

confianccedila na conclusatildeo de que as almas existem antes do nascimento e

que Formas existem e diz que seu amigo Cebes natildeo rejeita o argumento

soacute natildeo concorda assim como ele mesmo que o argumento possa provar

que a alma continua a existir quando se separa do corpo (77a-b)

(ii) Depois do argumento das afinidades quando os amigos de Soacutecrates

apresentam suas famosas objeccedilotildees Cebes afirma que manteacutem a mesma

posiccedilatildeo de outrora ele acredita que estaacute completamente demonstrado que

a alma existia antes de nascer (conclusatildeo do argumento da

reminiscecircncia) mas natildeo estaacute convencido de que ela continua a existir

depois da morte (76e-77a)

(iii) Quando Soacutecrates refuta o argumento de Siacutemias (alma eacute harmonia) o

filoacutesofo pergunta se os amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns

dos argumentos apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam

apenas alguns e rejeitam outros Soacutecrates pergunta abertamente se eles

aceitam o argumento da reminiscecircncia e sua conclusatildeo de que as almas

104

existem em algum lugar antes de alojar-se num corpo e ambos

respondem positivamente Cebes diz que na ocasiatildeo em que Soacutecrates

apresentara o argumento ele estava completamente convencido e que

agora ele aceita o argumento mais do que qualquer outro Siacutemias por sua

vez concorda com o amigo e afirma que se surpreenderia se um dia

tivesse de mudar de opiniatildeo acerca desse argumento (91e-92a)

(iv) Pouco depois Soacutecrates convence Siacutemias de que o argumento de que a

alma eacute harmonia conflita com o argumento da reminiscecircncia (aprender eacute

recordar) jaacute que o argumento da reminiscecircncia requer que a alma tenha

existido antes de alojar-se no corpo enquanto a harmonia de uma lira natildeo

pode existir antes de uma lira ser construiacuteda Sendo assim Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos Sem titubear ele abandona o proacuteprio

argumento (alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e fica com o argumento da reminiscecircncia o

qual deriva de uma hipoacutetese digna de aceitaccedilatildeo e para que natildeo reste

nenhuma duacutevida ele ratifica que eacute certo que a alma existe antes de entrar

num corpo assim como existe a lsquoFormarsquo aquilo que eacute (92c-92d)

(v) Posteriormente Soacutecrates afirma que Cebes busca uma prova de que a

alma eacute imortal e indestrutiacutevel mas que segundo Cebes provar que a

alma eacute robusta divina e que jaacute existia antes do nascimento natildeo implica

que ela eacute imortal (ἀθάνατος) (95c)

105

Pelo menos ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias seratildeo

consistentes no seu posicionamento de que o argumento da reminiscecircncia demonstra a

existecircncia da alma antes do nascimento mas de modo algum a sua imortalidade (77b-c)

Jaacute que os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento da reminiscecircncia como prova

da existecircncia da alma depois da morte Soacutecrates apresenta uma soluccedilatildeo bem

controversa a combinaccedilatildeo dos dois argumentos num soacute Mas a conclusatildeo do argumento

da reminiscecircncia ndash a preexistecircncia da alma ndash jaacute estaacute presente na conclusatildeo do argumento

ciacuteclico os vivos procedem dos mortos e as almas dos mortos continuam a existir (72d8-

10) Se o argumento ciacuteclico fosse aceito ele por si soacute provaria as duas metades a que

Soacutecrates se refere a preexistecircncia da alma e a existecircncia da alma depois da morte Mas

se os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento ciacuteclico como eacute o que tudo indica a

combinaccedilatildeo dos argumentos natildeo resolve o problema colocado por Siacutemias e Cebes Eles

acreditam que o argumento da reminiscecircncia prova a preexistecircncia da alma mas por

outro lado natildeo se comprometem com o argumento ciacuteclico Soacutecrates parece entender a

posiccedilatildeo dos seus interlocutores porque nem mesmo espera que eles avaliem a sua nova

proposta (combinaccedilatildeo dos argumentos) como se jaacute soubesse que seria rejeitada pelos

amigos mas logo assume que seus amigos requerem um argumento ainda melhor (77c-

d)

Soacutecrates imediatamente desqualifica a motivaccedilatildeo dos amigos para continuar a

discussatildeo ele despreza a possibilidade de que os amigos tenham simplesmente rejeitado

a sua proposta de que os argumentos juntos provariam a imortalidade da alma e logo

assume que a necessidade de fundamentar melhor a questatildeo decorre meramente de um

temor pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo

especialmente se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) O argumento das

106

afinidades eacute introduzido por Platatildeo no Feacutedon para responder ao temor de Cebes de que

mesmo que a alma possa existir antes de nascermos (como demonstra o argumento da

reminiscecircncia) ela ainda poderia ser destruiacuteda quando morrermos retomando a a

questatildeo essencial que Cebes apresenta em 70 a

Em resposta agrave afirmaccedilatildeo do mestre Cebes ri e pede que Soacutecrates os liberte do

temor o qual por sua vez afirma que para isso seriam necessaacuterios encantamentos

diaacuterios (77e) A ocasiatildeo se torna notadamente laudatoacuteria Cebes exalta Soacutecrates como o

uacutenico capaz de livraacute-los do temor da morte ao mesmo tempo em que lamenta a sua

partida iminente Soacutecrates por sua vez louva a grandeza da Greacutecia e de seus cidadatildeos

onde eles encontrariam ldquoencantadoresrdquo capazes e aptos a substituiacute-lo depois de sua

partida especialmente se buscassem no proacuteprio ciacuterculo socraacutetico (78a) Numa grande

Greacutecia e entre muitos cidadatildeos Soacutecrates e seus disciacutepulos satildeo aqueles capazes de

realizar os encantamentos necessaacuterios para expurgar temores infundados numa clara

indicaccedilatildeo de que ainda que morra seu legado continuaraacute por meio dos seus amigos que

estatildeo ali presentes aguardando a ocasiatildeo fatiacutedica Mas Cebes tem pressa e natildeo responde

ao elogio do mestre Em vez disso impele-o a continuar e retomar a discussatildeo na acircnsia

de que Soacutecrates antes de partir apresente o argumento suficiente que acabara de

prometer (78b)

Portanto neste ponto do diaacutelogo tudo leva a crer que os amigos de Soacutecrates

acreditam que argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia ndash juntos ou separados ndash

natildeo demonstram a imortalidade da alma e que eles ainda esperam uma prova

satisfatoacuteria de Soacutecrates O filoacutesofo prontamente inicia um novo argumento o qual se

convencionou chamar de argumento das afinidades

107

53 O argumento propriamente dito

O argumento das afinidades trata diretamente do problema levantado por Cebes

em 70a ndash a possibilidade de a alma se dispersar O argumento ciacuteclico lida com o antigo

relato miacutetico da transmigraccedilatildeo das almas enquanto o segundo argumento eacute introduzido

no diaacutelogo por uma lembranccedila e sugestatildeo de Cebes de que a doutrina da reminiscecircncia

tambeacutem serviria para provar a imortalidade da alma mas agora Soacutecrates se dispotildee a

examinar se a alma eacute um tipo de coisa suscetiacutevel a dispersatildeo (mortal) ou natildeo (imortal)

Portanto o argumento tem o meacuterito de reorientar a discussatildeo para o problema crucial do

diaacutelogo ndash a imortalidade da alma ndash o qual requer uma prova satisfatoacuteria de que a alma

seria imune agrave dispersatildeo e assim imortal

Soacutecrates comeccedila apresentando o que seria um programa resumido do argumento

em 78b4-9

(i) Primeiro Soacutecrates apresenta uma questatildeo essencial que pode ser

dividida em duas partes (i) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que sofre

dispersatildeordquo (ii) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo sofre

dispersatildeordquo Essa questatildeo seraacute respondida inicialmente em 78c1-4

Posteriormente ele estende a sua explanaccedilatildeo em 78c5-79a11

(ii) Segundo Soacutecrates pergunta ldquoa qual desses dois tipos de coisas pertence a

almardquo Essa questatildeo receberaacute tratamento em 78b1-80ab

(iii) Por fim a conclusatildeo diraacute se a alma pertence a uma classe de coisas

suscetiacuteveis a dispersatildeo ou natildeo com base na qual os amigos de Soacutecrates

108

confiaratildeo ou temeratildeo por suas almas Essa conclusatildeo aparece em 80a10-

81a3

Vejamos entatildeo roteiro geral de como o argumento se desenvolve seguido de uma

comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

5 Existem duas ldquoclasses de seres uma visiacutevel e que nunca permanece no

mesmo estado uma invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado (79a6-

11)

6 A alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

109

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Comentaacuterio

1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo (78c1-4)

110

A pergunta apresentada no programa inicial de Soacutecrates eacute respondida em 78c1-4

(i) a que tipo de coisa pertence aquilo que pode sofrer dispersatildeo

Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto agravequilo que eacute composto por natureza

sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto juntordquo (78c1-3)

(b) a que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo pode sofrer dispersatildeo

ldquoPor outro lado se haacute algo simples natildeo pertence somente a isso mais do que a

qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a sofrer decomposiccedilatildeordquo (78c 3-4)

Soacutecrates simplestemente assume que haacute coisas que sofrem dispersatildeo e coisas que

natildeo sofrem coisas que deixam de existir e outras natildeo natildeo havendo necessidade de

exposiccedilatildeo a esse respeito Cebes tambeacutem concorda que devem considerar esses dois

tipos de coisa O problema que se haacute de enfrentar natildeo eacute se haacute coisas que sofrem

dispersatildeo ou natildeo mas se a alma eacute suscetiacutevel agrave dispersatildeo Ao trazer essa questatildeo da

dispersatildeo ou natildeo das coisas no argumento das afinidades Soacutecrates estaacute lidando

diretamente com a alegaccedilatildeo de Cebes de que muitos temem que a alma se dispersa e se

esvai como fumo na ocasiatildeo da morte Portanto o argumento traz uma expectativa de

que Soacutecrates possa mostrar que alma natildeo estaacute entre o tipo de coisas que se dispersa

quando finalmente se teria um argumento suficiente

Com base na suscetibilidade ou natildeo agrave dispersatildeo a sua preocupaccedilatildeo agora eacute

estabelecer a existecircncia de duas classes de coisas (i) coisas compostas as quais satildeo

suscetiacuteveis a dispersatildeo (ii) coisas simples as quais satildeo imunes a dispersatildeo

111

As coisas compostas podem ser de dois tipos (i) aquelas que naturalmente tecircm

partes ndash compostas por natureza (ii) e aquelas cujas partes satildeo postas juntas num

proceso diferente daquele que as coisas naturalmente compostas experimentam (78c1)

A essas coisas compostas ldquopertencerdquo (προσήκω) o sofrer dispersatildeo (διαιρέω)

(78c2) Nesse contexto dispersatildeo eacute a decomposiccedilatildeo desagregamento ou divisatildeo dos

elementos que compotildeem algo composto Soacutecrates explica que assim como eacute possiacutevel a

composiccedilatildeo de elementos para a formaccedilatildeo de algo composto o processo contraacuterio ndash a

decomposiccedilatildeo ndash eacute plenamente possiacutevel a qual implica em destruiccedilatildeo do objeto (78c2-

3) Sendo assim sugere-se que um item composto pode sofrer destruiccedilatildeo enquanto um

item simples seria imune agrave destruiccedilatildeo

Assim o argumento sugere uma relaccedilatildeo entre composiccedilatildeo e destrutibilidade

simplicidade e indestrutibilidade Mas essa relaccedilatildeo encontra dificuldades se o escopo do

diaacutelogo contempla objetos materiais e imateriais seria razoaacutevel pensar que objetos

materiais compostos seriam suscetiacuteveis agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando sofre a

decomposiccedilatildeo das suas partes mas a ideia de que uma entidade imaterial e composta

poderia ser destruiacuteda ao sofrer decomposiccedilatildeo eacute bem diferente Tambeacutem seria difiacutecil

entender como o argumento ajudaria a provar que uma entidade imaterial e simples

seria imune agrave destruiccedilatildeo

Embora o termo ldquopertencerdquo (προσήκω) seja vago eacute plausiacutevel que Soacutecrates natildeo

esteja propondo que as coisas compostas devem necessariamente sofrer dispersatildeo mas

simplesmente que elas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo Portanto o que fica estabelecido eacute

que coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo enquanto coisas simples satildeo imunes agrave

dispersatildeo o que acaba criando uma expectativa inevitaacutevel de que a alma seria em breve

tida como algo simples e imune agrave dispersatildeo Mas a ideia eacute construir um argumento

112

analoacutegico baseado na lsquosemelhanccedilarsquo entre a alma e as lsquoFormasrsquo Sendo assim eacute

necessaacuterio apresentar paulatinamente os atributos da lsquoFormarsquo e estabelecer a afinidade

entre almas e lsquoFormasrsquo No proacuteximo passo Soacutecrates afirma que as coisas lsquosimplesrsquo satildeo

as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo e logo depois identifica essas

coisas como sendo as lsquoFormasrsquo enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees

diferentes e nunca se encontram no mesmo estado satildeo as lsquocompostasrsquo os lsquoobjetos

particularesrsquo (Cf 78c-d)

2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no

mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e

condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)

No proacuteximo passo em 78c6-8 Soacutecrates faz a seguinte associaccedilatildeo

(i) coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes (τὰ δὲ ἄλλοτ᾽ ἄλλως) e

nunca se encontram no mesmo estado (μηδέποτε κατὰ ταὐτά) coisas compostas

(ii) coisas que estatildeo sempre no mesmo estado (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) e condiccedilatildeo

(ὡσαύτως ἔχει) coisas simples

O argumento se baseia numa associaccedilatildeo bastante plausiacutevel (μάλιστα εἰκός)

(78c7) O contexto imediato sugere que a associaccedilatildeo eacute razoaacutevel porque as coisas

compostas sofrem dispersatildeo que eacute um tipo de variaccedilatildeo um tipo de mudanccedila no estado

e condiccedilatildeo do objeto Sendo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo dos seus componentes as coisas

113

compostas estatildeo fadadas agrave mutaccedilatildeo e inconstacircncia As coisas simples por sua vez satildeo

imunes agrave dispersatildeo sendo plausiacutevel associaacute-las com aquilo que eacute constante e natildeo varia

Dando um novo passo na construccedilatildeo dessa cadeia de associaccedilotildees Soacutecrates

busca um grupo de coisas que pode ser identificado como lsquocoisas que estatildeo sempre no

mesmo estadorsquo O filoacutesofo entatildeo faz um convite aberto para retomar as coisas que

discutiam no argumento anterior lsquoas coisas em sirsquo (lsquoFormasrsquo) lsquoFormasrsquo satildeo o que

Soacutecrates identificaraacute como o tipo de coisa que natildeo sofre alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

(78c10-78d1) e aquilo que serviraacute de base para a construccedilatildeo da analogia central do

argumento Com a introduccedilatildeo das lsquoFormasrsquo na discussatildeo os termos lsquocompostorsquo

(σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) satildeo completamente abandonados

3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)

objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)

Agora Soacutecrates pede para voltar agravequelas coisas sobre as quais jaacute haviam

conversado no argumento anterior a essecircncia (ἡ οὐσία) cujo ser ou existecircncia (τοῦ

εἶναι) se apresenta por meio de um loacutegos que consiste de perguntas e respostas (78c10-

78d2) Segundo Gallop lsquodar um loacutegosrsquo nesse contexto pode significar tanto lsquodar uma

definiccedilatildeorsquo como lsquoapresentar uma provarsquo podendo significar tanto lsquodefinir a natureza

essencial das lsquoFormasrsquo como lsquoprovar que elas existemrsquo105 Neste contexto Soacutecrates

retoma esse grupo de coisas apresentados antes como ldquoo igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em si aquilo que eacuterdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d3-4) que desde o contexto do argumento das

105 Gallop 2002 p139

114

reminiscecircncias estamos chamando de lsquoFormasrsquo apenas de uma terminologia teacutecnica

ainda natildeo aparecer nesta fase do diaacutelogo

Expressotildees como ἡ οὐσία τὸ ὄν αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ τὸ ἴσον e αὐτὸ ὃ ἔστιν

natildeo satildeo novas no diaacutelogo mas ganham um significado especial no contexto do

argumento das afinidades No argumento da reminiscecircncia a expressatildeo αὐτὸ ὃ ἔστιν ou

apenas ὃ ἔστιν (a qual aparece agora em αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) jaacute se destaca como

foacutermula usual para designar de modo geral o objeto da discussatildeo (Cf74b2 74d6

75b1) o que reflete uma tentativa de fixar uma foacutermula ndash ὃ ἔστιν (o que eacute) ndash para

designar objetos que ele costuma apresentar pelo uso de exemplos como τὸ καλόν e τὸ

ἴσον Os termos εἶδος e ἰδέα conhecidos como termos teacutecnicos para designar lsquoFormasrsquo

ainda natildeo foram introduzidos no diaacutelogo exceto quando εἶδος eacute empregado em sua

acepccedilatildeo comum como em 73d9 a imagem do amado (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς)

Nesta etapa do argumento das afinidades Soacutecrates identifica lsquoaquilo que eacutersquo as

lsquoFormasrsquo como sendo coisas cujo estado natildeo muda ou altera e esta passagem visa

estabelecer justamente isso em 78d10-d9 depois de estabelecer que nenhum elemento

da classe em questatildeo deve ser posto de fora do exame ndash eacute necessaacuterio considerar lsquocada

um deles que eacutersquo (αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι) cada membro da classe em questatildeo ndash ele

estabelece que cada membro dessa classe eacute o tipo de coisa que

(i) cada coisa que eacute sendo uniforme e sozinha por si soacute permanece sempre na

mesma condiccedilatildeo e estado

(ii) em hipoacutetese alguma cada coisa que eacute se sujeitaria a qualquer tipo de

mudanccedila

115

Duas expressotildees merecem particular atenccedilatildeo lsquouniformersquo (μονοειδής) e lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) A primeira ndash lsquouniformersquo ndash pode ser entendida como algo

que possui apenas um componente ou parte ou simplesmente como algo de uma soacute

aparecircncia Se a primeira ideia prevalece o termo μονοειδής pode ser entendido como

sinocircnimo para o termo lsquosimplesrsquo o qual natildeo aparece novamente no decorrer do

argumento Mas essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute completamente segura ou definitiva

Platatildeo certamente tem uma razatildeo especial para incorporar a expressatildeo lsquosozinha

por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) neste ponto da discussatildeo dada a sua frequecircncia no diaacutelogo e

o contexto imediato Temos no diaacutelogo dois empregos frequentes da expressatildeo uma em

referecircncia agraves lsquoFormasrsquo outra em referecircncia agraves almas

(i) lsquoa Forma sozinha por si mesmorsquo a expressatildeo jaacute havia sido empregada em

relaccedilatildeo a essas coisas que Soacutecrates chama de lsquoaquilo que eacutersquo na primeira etapa do

diaacutelogo quando o filoacutesofo fala da necessidade de utilizar o pensamento sozinho

por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) para

perseguir cada coisa em si a qual eacute sozinha por si mesma (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ) e

sem mistura (66a1-3)

(ii) a alma sozinha sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν ἡ ψυχὴ) a expressatildeo

eacute empregada com frequecircncia para a alma na ocasiatildeo em que se afasta do corpo e

pode finalmente sozinha por si mesma alcanccedilar lsquoaquilo que eacutersquo a verdade ou o

conhecimento puro 64c7-8 65d1 66e6-67a1 Em 70a7 depois de Cebes

apresentar a crenccedila popular na dispersatildeo da alma como fumo a questatildeo crucial eacute

saber se a alma realmente existiria em algum lugar sozinha por si mesma (αὐτὴ

καθ᾽ αὑτὴν) quando viesse a separar-se do corpo e de suas mazelas

116

(iv) Portanto quando Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute uniforme e lsquosozinha por si

mesmarsquo neste ponto do argumento das afinidades ele traz de volta toda a

discussatildeo anterior e prepara a introduccedilatildeo da analogia entre lsquoalmarsquo e

lsquoFormarsquo Posteriormente em 79dc-d Soacutecrates diz abertamente que jaacute

haviam discutido sobre a necessidade de a alma se separar do corpo e

sozinha por si mesma alcanccedilar aquilo que eacute puro Depois de apresentado

o argumento das afinidades em si em 83a-b Soacutecrates volta a lembrar que

a filosofia tem o papel de persuadir a alma a distanciar-se do corpo e dos

sentidos e sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) refletir naquilo que

eacute sozinho por si mesmo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ)

No proacuteximo passo em 78d10-e6 o desafio eacute identificar o tipo de coisa que

nunca eacute constante e entatildeo estabelecer o contraste entre as coisas que satildeo sempre

constantes (lsquoFormasrsquo) e as coisas que natildeo satildeo (objetos particulares)

Soacutecrates entatildeo introduz uma multiplicidade de objetos particulares (i) as muitas

coisas belas ndash pessoas belas cavalos belos roupas belas e tudo mais desse tipo (ii) as

coisas iguais (iii) as coisas que compartilham o mesmo nome das coisas mencionadas

antes Esses objetos particulares ao contraacuterio daqueles ldquonunca e de modo algum

permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre sirdquo Desse modo em

contraste com aslsquoFormasrsquo os particulares apresentam dois tipos de variaccedilatildeo eles

variam em relaccedilatildeo a si mesmos ndash num dado momento um cavalo belo pode se tornar

menos belo do que era antes e variam entre si ndash num dado momento um cavalo belo

pode se tornar menos belo do que outros cavalos belos O ponto que se estabelece eacute a

mutabilidade dos objetos particulares os quais estatildeo sujeitos a serem caracterizados por

117

atributos diferentes em ocasiotildees diferentes Aleacutem disso eacute razoaacutevel considerar que os

objetos particulares variam porque satildeo passiacuteveis agrave dispersatildeo eles passam a existir pela

composiccedilatildeo de suas partes e chegam ao fim com a desintegraccedilatildeo das suas partes Fica

entatildeo estabelecido o contraste entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares lsquoFormasrsquo

permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos particulares estatildeo

sempre mudando O terreno foi preparado para a apresentaccedilatildeo da semelhanccedila entre

almas e lsquoFormasrsquo

4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo

invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)

Soacutecrates manteacutem a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares agora

apresentando mais um elemento de contraste entre ambos as coisas particulares satildeo

percebidas pelos sentidos as coisas que permanecem no mesmo estado satildeo apreendidas

somente pelo raciociacutenio do pensamento (τῆς διανοίας λογισμῷ) Mais uma vez fica

claro que o argumento das afinidades retoma a discussatildeo apresentada na primeira etapa

do Feacutedon especialmente em 65b-e Soacutecrates jaacute havia estabelecido que a alma deve

raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) atraveacutes do pensamento

sozinho (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) e sem a interaccedilatildeo dos sentidos para que possa alcanccedilar as

coisas em si mesmas (Cf 65c2-9 65e7 66a1-2)

Soacutecrates esclarece entatildeo que coisas invisiacuteveis ndashlsquoFormasrsquondash soacute podem ser

apreendidas pelo pensamento da razatildeo e sugere que apenas coisas visiacuteveis ndash objetos

particulares ndash satildeo percebidos pelos sentidos Agora a ecircnfase recai sobre a invisibilidade

das lsquoFormasrsquo e natildeo sobre a vilania do corpo e seus sentidos

118

5 Existem duas ldquoclasses de seresrdquo (εἴδη τῶν ὄντων) uma visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e

que nunca permanece no mesmo estado uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que sempre

permanece no mesmo estado (79a6-11)

A distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo invisiacuteveis e particulares visiacuteveis serve de base para

que Soacutecrates estabeleccedila a existecircncia de duas classes de coisas ndash as invisiacuteveis e as

visiacuteveis ndash e relacione essa informaccedilatildeo com aquilo que havia apresentado antes que

lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos

particulares estatildeo sempre mudando Assim em 79a6-11 ele estabelece que existem duas

ldquoclasses de seresrdquo sendo uma delas visiacutevel e que nunca permanece no mesmo estado e

a outra invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado O proacuteximo passo eacute

introduzir dois elementos no argumento das afinidades ndash corpo e alma ndash e identificar

com base na semelhanccedila e afinidade a classe a qual cada um deles possa pertencer

6 A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)

Pela primeira vez os termos lsquocorporsquo e lsquoalmarsquo satildeo introduzidos no argumento das

afinidades O ponto de partida de Soacutecrates eacute a ideia da composiccedilatildeo baacutesica do ser

humano em corpo e alma o que natildeo enfrenta qualquer objeccedilatildeo no diaacutelogo (79b1-3)

Essa concepccedilatildeo de que somos parte corpo e parte alma serve de base para praticamente

toda a discussatildeo que segue Jaacute fora estabelecido que haacute duas ldquoclasses de seresrdquo ndash uma

visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que objetos particulares satildeo membros

119

da classe de coisas visiacuteveis que satildeo passiacuteveis de mudanccedila e que no contexto geral do

argumento mudanccedila inclui dispersatildeo e destruiccedilatildeo

Jaacute fora estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo membros da classe de coisas invisiacuteveis e

que permanecem sempre no mesmo estado ndash natildeo satildeo passiacuteveis a mudanccedila e assim natildeo

podem sofrer dispersatildeo e destruiccedilatildeo Se assim como as lsquoFormasrsquo a alma fosse um

membro da classe de coisas invisiacuteveis e nunca sofresse alteraccedilatildeo ficaria demonstrado

que ela natildeo sofreria dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando deixa o corpo natildeo havendo razatildeo

para temer Embora o argumento gere a expectativa de que Soacutecrates simplesmente

coloque almas na classe de coisas invisiacuteveis e corpo na classe de coisas visiacuteveis ele

introduz a ideia de semelhanccedila e afinidade

(i) o tipo de coisa visiacutevel eacute mais semelhante e tem mais afinidade (ὁμοιότερον

καὶ συγγενέστερον) com o corpo (79b4-5)

(ii) a alma seria invisiacutevel pelo menos para as pessoas (79b6-7)

(iii) a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo

enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a almardquo (79b16-17)

Portanto a conclusatildeo considera as duas partes constitutivas do indiviacuteduo natildeo se

diz simplesmente que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel e que o corpo eacute mais

semelhante ao visiacutevel mas que a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do

que o corpo enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma Isto levanta

o problema do grau de semelhanccedila entre alma e invisiacutevel O que temos aqui natildeo eacute uma

declaraccedilatildeo de que a alma eacute ao maacuteximo semelhante ao invisiacutevel mas apenas que a alma

eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo Isso pode ser um ponto de fraqueza do

120

argumento se considerarmos que corpo e o invisiacutevel satildeo extremamente dissemelhantes

admitir que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo pode continuar sendo

uma fraca declaraccedilatildeo da semelhanccedila entre alma e o invisiacutevel A alma poderia ter pouca

semelhanccedila com o invisiacutevel embora continuasse sendo mais semelhante ao invisiacutevel do

que o corpo

Aleacutem disso a invisibilidade da alma natildeo garante a sua imutabilidade Platatildeo jaacute

havia estabelecido a existecircncia de uma classe de seres visiacuteveis e que nunca permanecem

no mesmo estado e uma classe de seres invisiacuteveis e que sempre permanecem no mesmo

estado (79a6-11) Mas agora ainda que se consiga estabelecer que ldquoa alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo ou que a alma eacute invisiacutevel e o

corpo natildeo a invisibilidade da alma natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade

As lsquoFormasrsquo satildeo membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e

natildeo as almas

Eis algumas outras fraquezas do argumento

(i) A ideia de semelhanccedila eacute essencial no argumento mas em momento algum

Platatildeo apresenta uma clara definiccedilatildeo de lsquosemelhanccedilarsquo ou lsquoafinidadersquo o que faz

com que o argumento se estabeleccedila sobre uma vaga noccedilatildeo de semelhanccedila

(ii) Talvez a ideia baacutesica de lsquosemelhanccedilarsquo seja a de lsquoter caracteriacutesticas em

comumrsquo Neste caso a caracteriacutestica comum que alma e o tipo de coisa invisiacutevel

(lsquoFormasrsquo) possuem eacute a invisibilidade e a caracteriacutestica comum que o corpo e o

tipo de coisa visiacutevel (objetos particulares) compartilham eacute a visibilidade

Contudo ainda que alma e o tipo de coisa invisiacutevel possuam essa caracteriacutestica

em comum a qual estaacute ausente no corpo isto natildeo eacute suficiente para concluir que

121

a alma eacute mais semelhante ao tipo de coisa invisiacutevel (lsquoFormasrsquo) do que o corpo

eacute106 Ainda que se possa dizer que a alma eacute invisiacutevel assim como a lsquoFormarsquo eacute

invisiacutevel natildeo eacute possiacutevel dizer que a alma permanece sempre na mesma

condiccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo permanece na mesma condiccedilatildeo Aina que a

alma seja invisiacutevel isto natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade ela

continua passiacutevel a mudanccedila que no contexto do argumento inclui destruiccedilatildeo

Os amigos ainda podem temer que a alma se desintegre quando deixa o corpo

(iii) Outro problema para o estabelecimento de uma analogia eficiente eacute o

desbalanccedilo na relaccedilatildeo entre corpo e os membros da classe de coisas visiacuteveis e

alma e os membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis Eacute evidente que

o corpo eacute um objeto particular razatildeo pela qual em 81d10 pessoas belas

aparecem na lista de coisas particulares ao lado de cavalos belos e roupas belas

Portanto ele natildeo apenas possui maacutexima semelhanccedila com objetos particulares

visiacuteveis e mutaacuteveis mas que ele eacute um objeto particular visiacutevel e mutaacutevel No

caso da alma pode-se dizer que ela eacute mais semelhante agrave classe de coisas

invisiacuteveis do que o corpo eacute mas natildeo eacute possiacutevel dizer que ela eacute uma lsquoFormarsquo

invisiacutevel e imutaacutevel

(iv) A hesitaccedilatildeo de Cebes em aceitar que a alma eacute invisiacutevel pode gerar

dificuldades no estabelecimento de uma analogia coerente Ele concorda

plenamente com a ideia de que o corpo possui semelhanccedila com o tipo de coisa

visiacutevel ldquoeacute bem evidente a qualquer pessoardquo assevera Cebes (79b6) Contudo

quando Soacutecrates pergunta se a alma seria visiacutevel ou invisiacutevel Cebes apresenta

uma reserva ldquoPelo menos ao ser humano eacute invisiacutevelrdquo (79b8) Soacutecrates entatildeo

106 Gallop 2002 p140

122

necessita esclarecer que estatildeo considerando coisas que satildeo visiacuteveis ou invisiacuteveis

ao ser humano (79b9-11) Esta hesitaccedilatildeo de Cebes tem gerado diferentes

interpretaccedilotildees Gallop afirma que seria uma maneira de anunciar a possiacutevel

objeccedilatildeo de que a alma natildeo seria invisiacutevel para os deuses107 Rowe dize que

Cebes estaria representando a tradicional perspectiva homeacuterica da morte

segundo a qual as almas satildeo invisiacuteveis apenas para os vivos108 Bostock sugere

uma perspectiva materialista da alma ele diz que embora Platatildeo acredite que a

alma eacute totalmente imaterial ele natildeo esperaria unanimidade a esse respeito e

lembra que agrave eacutepoca de Platatildeo havia concepccedilotildees filosoacuteficas segundo as quais a

alma seria material embora composta de elementos extremamente pequenos

invisiacuteveis pelo menos para os ordinaacuterios olhos humanos Se este for realmente o

caso Cebes hesita em concordar plenamente com a idea assim como o fez em

relaccedilatildeo ao corpo e precisa enfatizar que a alma eacute invisiacutevel pelo menos para os

seres humanos109

Agora Soacutecrates busca ratificar a semelhanccedila entre almas e a classe de coisas

invisiacuteveis Essa etapa de 79c2-79d9 retoma a discussatildeo sobre a aquisiccedilatildeo do

conhecimento das lsquoFormasrsquo a qual aparece na primeira etapa do Feacutedon e agora aparece

no argumento das afinidades Mais uma vez o leitor eacute convidado a considerar a

discussatildeo anterior e que o argumento individual natildeo estaacute isolado do contexto geral da

obra

107 Gallop 2002 p140 108 Rowe 1993 p185 109 Cf Bostok 1989 p118

123

7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as

coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse

embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)

mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o

puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o

desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa

com a qual estaacute em contato (79d1-9)

Na etapa anterior em 79b Soacutecrates apresenta a sua primeira consideraccedilatildeo sobre

a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis Agora ele apresenta a sua

segunda consideraccedilatildeo sobre a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis

mas num contexto bem mais complexo

Esta complexa passagem retoma a discussatildeo anterior sobre a busca do

conhecimento Na primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates afirma que o corpo (τὸ σῶμα) eacute

obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do conhecimento (φρόνησις) porque os sentidos corporais

natildeo satildeo confiaacuteveis e natildeo garantem nem precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) no

exame (65a9-65b7) O argumento das afinidades retoma toda essa discussatildeo num

contexto mais complexo e com implicaccedilotildees adicionais e a passagem termina justamente

com um esclarecimento de que essa experiecircncia da alma em contato com as lsquoFormasrsquo eacute

o que se pode chamar de conhecimento (φρόνησις) (79d6-7)

Em 79c2-9 Soacutecrates explica que alma que examina por meio do corpo e dos

sentidos eacute arrastada pelo corpo diretamente para objetos particulares Aqui

provavelmente se estabelece a mesma ideia de relaccedilatildeo ou afinidade que Soacutecrates

descreve em seguida quando fala da relaccedilatildeo entre alma e lsquoFormarsquo (Cf 79d3 συγγενὴς)

124

Como o corpo possui uma lsquorelaccedilatildeorsquo com os objetos fiacutesicos a alma deve examinaacute-los

lsquopor meio do corporsquo (διὰ τοῦ σώματος) lsquopor meio dos sentidos corporaisrsquo (δι᾽

αἰσθήσεως) Essa lsquorelaccedilatildeorsquo eacute tatildeo forte que a alma natildeo tem escolha e passivamente eacute

arrastada pelo corpo (ἕλκεται ὑπὸ τοῦ σώματος) para aquilo com que tem afinidade

para as coisas que nunca permanecem no mesmo estado (εἰς τὰ οὐδέποτε κατὰ ταὐτὰ

ἔχοντα) Desse modo a alma perde o controle do processo cognitivo nessa ocasiatildeo em

que o corpo assume a lideranccedila

Pouco antes havia sido estabelecido que objetos particulares satildeo membros da

classe de coisas visiacuteveis (Cf 79a6-11) Assim a forte relaccedilatildeo entre corpo e objetos

particulares decorre da filiaccedilatildeo de ambos na mesma classe de coisas Para examinar os

membros dessa classe de coisas visiacuteveis a alma teraacute de se utilizar do corpo Por outro

lado Soacutecrates ressalta a discrepacircncia entre a alma e os objetos particulares quando

entra em contato com eles a alma anda errante confusa trocircpega porque esta eacute a

natureza dessas coisas com as quais estaacute em contato Soacutecrates havia estabelecido que ldquoa

alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo (79b16-17) e agora

ratifica que as almas natildeo tecircm afinidades com a classe de coisas visiacuteveis Por um lado o

corpo e os sentidos corporais satildeo a via para o exame dos objetos sensiacuteveis por outro eacute

um empecilho para o alcance dos membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis

as lsquoFormasrsquo

Soacutecrates emprega forte linguagem pejorativa para enfatizar a natureza inferior

dos objetos particulares a alma anda erraacutetica confusa trocircpega como se estivesse

embriagada porque estaacute em contato com objetos dessa natureza O corpo jaacute foi

apresentado como um vilatildeo que oblitera o percurso da alma que tenta alcanccedilar as

lsquoFormasrsquo e agora natildeo apenas os sentidos corporais mas tambeacutem os objetos particulares

125

satildeo apresentados como algo vil de natureza inferior O objeto de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo eacute

a lsquoFormarsquo e para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio que a alma se dissocie do corpo e se dirija aos

objetos congecircneres

Em busca de estabelecer a familiaridade entre a alma e as lsquoFormasrsquo Platatildeo

apresenta a discrepacircncia entre alma e objetos particulares quando a alma examina

atraveacutes do corpo ela eacute arrastada para objetos particulares e fica em estado de

perturbaccedilatildeo Isso acontece porque a alma entra em contato com aquilo com que natildeo

possui lsquoafinidadersquo ela eacute arrastada pelo corpo para aquilo que tem lsquoafinidadersquo com ele

mesmo natildeo com a alma (79c2-9) Em 79d1-9 Soacutecrates explica o que acontece quando

a alma examina lsquosozinha por si mesmarsquo (αὐτὴ καθ᾽ αὑτήν) sem a mediaccedilatildeo do corpo e

de seus sentidos ela se encaminha para aquilo com que tem relaccedilatildeo familiaridade ou

afinidade (συγγενής) ndash o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo

Enquanto a alma que examina por meio do corpo eacute arrastada por ele para objetos

particulares a alma que examina sem interaccedilatildeo com o corpo (sozinha por si mesma)

encaminha a si mesma (οἴχεται) para os objetos com os quais tem lsquoafinidadersquo

recuperando o papel ativo que lhe eacute natural no processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento

Ela entatildeo alcanccedila as lsquoFormasrsquo e fica em harmonia com elas porque alma e lsquoFormasrsquo satildeo

afins e essa dita lsquoafinidadersquo possibilita que a alma conheccedila seu afim e se relacione

harmonicamente com ele Com base na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e

no livre acesso e harmonia entre a alma sozinha e a lsquolsquoFormarsquoque repousa a conclusatildeo de

que ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que ao que natildeo estaacuterdquo (79d10-e6)

A ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre alma e lsquoFormasrsquo eacute

expressamente estabelecida pelo termo συγγενής (79d3 Cf 79e1-2 84b2) Jaacute na

126

primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates apresenta uma vaga ideia de que o que eacute lsquopurorsquo pode

conhecer o que eacute puro e o que eacute impuro natildeo pode conhecer o que eacute puro A alma pura

(sozinha por si mesma dissociada do corpo e dos sentidos corporais) pode conhecer

aquilo que eacute puro (sem mistura) mas quando impura (em comunhatildeo com o corpo) natildeo

pode ter acesso agravequilo eacute puro ndash as lsquoFormasrsquo (Cf 67a-b) Conforme essa ideia a alma

por si soacute sem mistura tem direto acesso aos objetos de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo Por outro

lado quando estaacute impura o corpo lhe oblitera o acesso agraves lsquoFormasrsquo Ao que parece essa

ideia eacute retomada e desenvolvida no argumento das afinidades sendo alma e lsquoFormasrsquo

entidades congecircneres a alma tem livre acesso cognitivo a elas

Mas a ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo ou lsquoafinidadersquo eacute tambeacutem vaga e obscura

no contexto do argumento das afinidades Existe uma forte evidecircncia textual de que os

termos lsquorelaccedilatildeorsquo e lsquosemelhanccedilarsquo satildeo utilizados como sinocircnimos no argumento Em

79b4-5 Soacutecrates pergunta ldquoqual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e

ter mais afinidade (ὁμοιότερον καὶ συγγενέστερον) com o corpordquo Pouco depois

apenas a expressatildeo ὁμοιότερον eacute empregada na resposta (no lugar de ὁμοιότερον καὶ

συγγενέστερον) ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo

(79b16-17) Esse padratildeo se repete pouco depois com a pergunta formulada com os dois

termos ndash ldquo() com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e

afinidade (ψυχὴ ὁμοιότερον εἶναι καὶ συγγενέστερον)rdquo (79e1-2) ndash e a resposta apenas

com um termo ndash ldquo() a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo

do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (ὁμοιότερόν ἐστι ψυχὴ τῷ ἀεὶ ὡσαύτως ἔχοντι μᾶλλον ἢ

τῷ μή) (79e5-6) Gallop afirma que Platatildeo se baseia na ideia empedocleana de que

lsquosemelhante conhece semelhantersquo com base na qual para uma coisa conhecer outra as

127

duas devem possuir algumas caracteriacutesticas ou componentes compartilhados110

Contudo o contexto natildeo deixa claro que Platatildeo realmente emprega essa ideia de

maneira consistente no argumento das afinidades Dizer que ldquoa alma se assemelha mais

ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (79e5-6) natildeo eacute o

mesmo que dizer que alma e lsquoFormasrsquo compartilham a mesma caracteriacutestica a

imutalibilidade Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute pura eterna imutaacutevel mas hesita em dizer

que a alma eacute pura eterna imutaacutevel imortal A linguagem da lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo

no argumento das afinidades eacute sempre uma linguagem que apela mais para algum niacutevel

de aproximaccedilatildeo do que para a ideia de compartilhamento de caracteriacutesticas essenciais

Portanto o que se pode afirmar com base no texto eacute que deve existir um tipo de

profunda relaccedilatildeo de lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo entre almas e lsquoFormasrsquo o que confere agraves

almas acesso cognitivo privilegiado a lsquoFormasrsquo

Eacute tambeacutem importante notar que ao contraacuterio dos objetos particulares as

lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas como uma classe de coisas superiores que exerce impacto

positivo sobre as almas no contato da alma com a lsquoFormarsquo a alma deixa seu andar

erraacutetico e passa a comportar-se como uma lsquoFormarsquo ela permanece no mesmo estado e

condiccedilatildeo relativamente agraves Formas (79d1-9)

Em 79d1-2 temos uma caracterizaccedilatildeo mais completa das lsquocoisas que satildeorsquo

Cada lsquolsquoFormarsquo eacute

110 Cf Gallop 2002 p140 No De Anima 404b16-18 Aristoacuteteles afirma que Platatildeo no Timeu

sustenta que a alma e as coisas que ela conhece seriam compostas pelos mesmos componentes

particulares pois ldquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhanterdquo

128

(i) invisiacutevel (τὸ ἀιδές) embora a lsquoinvisibilidadersquo das lsquolsquoFormasrsquo natildeo apareccedila

nesta lista em 79d1-2 haacute pouco havia ficado estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo

membros da classe de coisas invisiacuteveis (79a6-11)

(ii) pura (τὸ καθαρόν) na primeira etapa do diaacutelogo Platatildeo utiliza a expressatildeo

lsquosem misturarsquo para comunicar a ideia de pureza Nesse contexto apenas

utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν

εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ χρώμενος) eacute possiacutevel perseguir cada uma das coisas que

satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ εἰλικρινὲς ἕκαστον

τῶν ὄντων) (66a1-3) Agora Platatildeo utiliza o termo τὸ καθαρόν para caracterizar

essa qualidade permanente da lsquoFormarsquo certamente enfatizando que a lsquoFormarsquo

estaacute completamente separada da classe de coisas visiacuteveis Eacute interessante

observar que embora na primeira etapa do diaacutelogo a expressatildeo lsquosem misturarsquo

possa ser empregada para lsquoo pensamentorsquo e para lsquoas coisas que satildeorsquo em

momento algum eacute dito que a alma eacute pura (τὸ καθαρόν) Platatildeo estaacute

provavelmente tentando estabelecer uma terminologia proacutepria para lsquoaquilo que

eacutersquo Eacute interessante observar que ele continua utilizando a expressatildeo lsquoa alma

sozinha por si mesmo e sem misturarsquo (ψυχὴν αὐτὴν καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινῆ) com

referecircncia agrave alma que se dissocia do corpo no contexto da etapa especulativa que

segue o argumento em si (81c1-2)

(iii) eterna (ἀεὶ ὂν) a lsquoFormarsquo sempre eacute Essa eacute uma caracteriacutestica esperada

porque o argumento jaacute havia estabelecido que lsquoFormasrsquo estatildeo sempre no mesmo

estado e condiccedilatildeo sendo dispersatildeo e destruiccedilatildeo mudanccedilas no estado e condiccedilatildeo

do ser O problema que motiva o argumento das afinidades eacute justamente o receio

129

de que a alma natildeo seja o tipo de coisa que lsquosempre eacutersquo o temor de que ela exista

apenas por um tempo e em seguida seja destruiacuteda

(iv) imortal (ἀθάνατον) Platatildeo coroa a sua caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo com o

reconhecimento de que elas satildeo imortais o que eacute de suma importacircncia num

diaacutelogo cujo tema eacute a imortalidade da alma O termo ἀθάνατον aparece pela

primeira vez no diaacutelogo na transiccedilatildeo entre o primeiro e o segundo argumento

quando Cebes de modo casual sugere que tambeacutem segundo o ensino da

reminiscecircncia a alma parece ser imortal (73a2-3) Depois disso ἀθάνατον volta

a aparecer novamente apenas no argumento das afinidades Esta passagem

(79d1-2) eacute o primeiro registro de uso da palavra ἀθάνατον por Soacutecrates e ele o

faz para caracterizar a lsquoFormarsquo Mas assim como Soacutecrates nunca diz no

contexto do argumento das afinidades que a alma eacute pura (καθαρόν) ou eterna

(ἀεὶ ὂν) em nenhum momento a personagem afirma que a alma eacute imortal

(ἀθάνατον) O que se conclui no argumento das afinidades eacute que a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότατον εἶναι ψυχή) ao que eacute imortal (Cf 80a1-b3) E esta eacute

pela primeira vez no diaacutelogo em que Soacutecrates se utiliza da palavra lsquoimortalrsquo na

conclusatildeo do argumento Ao que parece a discussatildeo se movimento rumo agravequilo

que finalmente se pretende provar a imortalidade da alma o argumento ciacuteclico

conclui que a alma continua a existir depois morte o argumento das

reminiscecircncias que a alma existe antes do nascimento e o das afinidades que a

alma eacute mais semelhante ao que eacute imortal Posteriormente depois de ouvir as

objeccedilotildees dos amigos a respeito do argumento das afinidades Soacutecrates faz um

resumo de todas as objeccedilotildees e criacuteticas levantadas contra os trecircs argumentos que

ele havia apresentado e reconhece que ningueacutem pode morrer confiante a menos

130

que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι

ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον) (88b5-6) Se natildeo fosse possiacutevel

provar seria plausiacutevel temer que na ocasiatildeo da morte a alma poderia ficar

completamente destruiacuteda (88b6-8) Pela primeira vez no diaacutelogo Soacutecrates

formula uma questatildeo que exige nada menos do que uma conclusatildeo de que a

alma eacute imortal a qual seraacute apresentada no uacuteltimo argumento

(v) algo que permanece na mesma condiccedilatildeo (ὡσαύτως ἔχον) por fim Soacutecrates

retoma a ideia jaacute apresentada em 78c10-d9 onde diz que as lsquoFormasrsquo satildeo coisas

lsquoque estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estadorsquo (ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ)

Sendo algo que permenece sempre na mesma condiccedilatildeo a lsquoFormarsquo eacute tambeacutem

imune a destruiccedilatildeo

8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)

Agora temos uma mudanccedila na forma da conclusatildeo111

i Em 79b1-b17

ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacuterdquo

ii Em 79d10-e6

ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma

condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacuterdquo

111 Gallop 2002 p 140

131

Como jaacute dissemos a conclusatildeo de que as almas devem ter maior semelhanccedila

com as lsquoFormasrsquo (aquilo que eacute puro eterno imortal e permanece na mesma condiccedilatildeo)

do que com os lsquoobjetos particularesrsquo (aquilo que nunca estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

se baseia na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e no acesso livre e relaccedilatildeo

harmocircnica entre a alma sozinha e a lsquoFormarsquo Isto se explica em termos de

lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre a alma que conhece e o objeto que eacute conhecido (a

lsquoFormarsquo)

Esta etapa do argumento e a conclusatildeo a que chega eacute passiacutevel de criacuteticas aleacutem

das que jaacute foram apresentadas

(i) O argumento eacute inconsistente Apresenta-se a alma como ser passiacutevel de

mudanccedila quando em contato com o mundo fiacutesico ndash ldquoanda erraacutetica confusa e

trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a natureza das coisas que

ela estaacute alcanccedilandordquo (79c7-8) ndash ao mesmo tempo em que afirma que a alma

apresenta maacutexima semelhanccedila e afinidade com aquilo que natildeo muda de modo

algum (79d10-e6) Eacute difiacutecil conciliar essa dupla caracterizaccedilatildeo da alma no

argumento razatildeo pela qual Bostock assevera que Platatildeo apresenta a alma com

caraacuteter camaleocircnico porque assume a natureza daquilo com que estaacute em contato

Sendo assim o argumento mostraria que a alma tem maior afinidade com aquilo

que sofre variaccedilatildeo (o corpo por exemplo) do que com aquilo que estaacute sempre na

mesma condiccedilatildeo112

(ii) A linguagem eacute bastante imprecisa Termos-chave como lsquosemelhanccedilarsquo e

lsquoafinidadersquo natildeo satildeo definidos e o contexto natildeo oferece suporte suficiente para

112 Bostock 1989 p 119

132

uma compreensatildeo satisfatoacuteria Eacute possiacutevel que o argumento se baseie no

princiacutepio de que lsquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhantersquo mas o contexto

natildeo fornece uma evidecircncia definitiva de que Platatildeo estaacute recorrendo

especificamente a essa ideia

(iii) O argumento apresenta fraquezas O fato de a alma compartilhar com as

lsquoFormasrsquo uma dada caracteriacutestica que o corpo natildeo possui natildeo mostra que a alma

eacute mais semelhante a elas do que o corpo eacute o fato de a alma sozinha poder

alcanccedilar as lsquoFormasrsquo e ter harmonia em contato com elas natildeo eacute suficiente para

estabelecer que as almas satildeo ao maacuteximo semelhantes agraves Formas imutaacuteveis e

com isso concluir que a alma assim como a lsquoFormarsquo eacute imune a qualquer

variaccedilatildeo e consequente destruiccedilatildeo

Soacutecrates agora oferece um argumento suplementar em favor da semelhanccedila entre

a alma e lsquoFormasrsquo O argumento assume a existecircncia de certa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre

alma e corpo em que o corpo se subordina ao governo da alma e entre divino e mortal

em que o mortal se subordina ao governo do divino

9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado

pela alma (79e9-80a2)

10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ

θνητόν) eacute o governado (80a2-6)

11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-

9)

133

Platatildeo introduz uma terminologia nova no argumento o divino (τὸ θεῖον) e o

mortal (τὸ θνητόν) A terminologia divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) natildeo foi usada

ateacute agora no argumento Platatildeo entatildeo alinha a alma com o divino (τὸ θεῖον) os quais

exercem papel de governantes e o corpo com o mortal (τὸ θνητόν) os quais exercem

papel de governados estabelecendo uma relaccedilatildeo de semelhanccedila bastante vaga o divino

e a alma devem ser parecidos porque ambos dominam e governam enquanto o corpo e

o mortal dever ser parecidos porque ambos satildeo dominados e governados (79e-80a2-6)

A distinccedilatildeo entre divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) revela que o termo

lsquodivinorsquo eacute equivalente ao termo lsquoimortalrsquo113 Para a mente grega eacute natural que o lsquodivinorsquo

traga consigo a ideia de imortalidadersquo114 Contudo natildeo fica claro se Platatildeo introduz uma

nova linha de pensamento no argumento e dessa forma lsquodivinorsquo se refere a lsquodeusesrsquo ou

se essa passagem eacute uma extensatildeo da ideia em progresso e nesse caso lsquodivinorsquo poderia

ser uma referecircncia agraves lsquoFormasrsquo

A Forma jaacute foi apresentada como aquilo que eacute lsquoeternorsquo (ἀεὶ ὂν) e lsquoimortalrsquo

(ἀθάνατον) (79d2) e agora Platatildeo utiliza o termo divino (τὸ θεῖον) provavelmente

como equivalente ao termo lsquoimortalrsquo Platatildeo costuma tomar de empreacutestimo termos

comuns no acircmbito da religiatildeo grega para caracterizar a lsquolsquoFormarsquorsquo Ao utilizar o termo

lsquodivinorsquo ele procura estabelecer a distinccedilatildeo entre dois tipos de existecircncia o mortal

caracterizaria os objetos particulares os quais satildeo inferiores subjugados cuja existecircncia

eacute passageira suscetiacutevel agrave destruiccedilatildeo o lsquodivinorsquo (imortal) caracterizaria as lsquoFormasrsquo que

satildeo governantes ndash membros de um domiacutenio superior imunes agrave mudanccedila e destruiccedilatildeo

Talvez Platatildeo esteja utilizando agora o termo lsquodivinorsquo justamente para comunicar a

113 Rowe 1993 p187

114 Cf Taylor 1922 p176

134

ideia ainda que inacabada e imprecisa da superioridade das lsquoFormasrsquo sobre os objetos

particulares assim como os deuses imortais estatildeo acima dos mortais e os governam as

lsquoFormasrsquo divinas (imortais) satildeo superiores a tudo que pertence ao domiacutenio das coisas

mortais e de alguma maneira pode-se dizer que governam e dominam os objetos

particulares

Aleacutem disso Platatildeo coloca o lsquodivinorsquo no grupo de termos que qualificam as

lsquoFormasrsquo em (80b1-3) Se lsquodivinorsquo dificilmente se refere agraves Formas teriacuteamos uma

divisatildeo entre (i) lsquoo divinorsquo e (ii) a Forma lsquoaquilo que eacute imortal inteligiacutevel uniforme

indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo Mas o texto natildeo

sugere essa divisatildeo e aparentemente a lsquoFormarsquo eacute apresentada como aquilo que eacute divino

imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo Ao final a ideia de que lsquoa alma eacute como o divinorsquo necessariamente traz

consigo duas ideias inseparaacuteveis nesse contexto natureza superior (natureza divina) e

imortalidade A ideia de governo e domiacutenio em si mesmas natildeo ajudariam o argumento a

provar que a alma seria diferente dos objetos fiacutesicos e que ao contraacuterio deles natildeo estaacute

sujeita agrave destruiccedilatildeo A analogia serve apenas para mostrar que a alma eacute como o divino

superior e imortal

Contudo os comentadores geralmente acreditam que dificilmente o termo

lsquodivinorsquo se refere a Formas por causa da ideia baacutesica de lsquogovernarrsquo115 Realmente eacute

difiacutecil entender em que sentido lsquoFormasrsquo exercem algum tipo de domiacutenio sobre objetos

mortais Isso natildeo fica claro no argumento

Uma das maiores fraquezas do argumento eacute a ausecircncia da ideia de hegemonia

absoluta da alma sobre o corpo Haacute vaacuterios exemplos no diaacutelogo em que a lsquoalma

115 Cf Rowe 1993 p187

135

governantersquo e lsquoo corpo governadorsquo trocam de papel Na primeira etapa do diaacutelogo a

personagem Soacutecrates menciona a crenccedila das religiotildees de misteacuterio segundo a qual ldquonoacutes

seres humanos estamos num tipo de prisatildeordquo (62b) Nesse caso a alma estaria

subordinada ao corpo em que se aloja do qual natildeo poderia deliberadamente se libertar

Adiante eacute dito que a alma se subordina agraves demandas corporais ndash fome doenccedilas desejos

eroacuteticos apetites temores fantasias futilidade (66b-d) Por exemplo ldquoeacute o corpo que

nos forccedila a adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircnciardquo (66d) No

contexto do argumento das afinidades a alma eacute arrastada passivamente pelo corpo para

os objetos particulares (79c) Pelo menos nesses casos natildeo se vecirc com clareza a alma

exercendo um papel soberano sobre o corpo aparentemente contradizendo o que a

passagem afirma sobre a alma que domina e governa o corpo Ainda que a ideia de

governar lsquopor naturezarsquo pode ser entendida como um conceito meramente normativo em

Platatildeo ndash algo que deve ser feito mas que nem sempre eacute ndash a ideia natildeo deixa de ser

estranha num diaacutelogo em que se enfatiza a constante submissatildeo da alma agraves demandas

corporais116 Se governar o corpo significa disciplinaacute-lo resistir aos seus desejos e

examinar com independecircncia a alma costuma falhar no exerciacutecio da sua natural

condiccedilatildeo de governante117

12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal

inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado

consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal

116 Gallop 2002 p139

117 Cf Bostock 1989 p 119

136

multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo

(80a10-b8)

Nesta etapa final Soacutecrates conduz o argumento para uma conclusatildeo com base

em tudo que foi dito (ἐκ πάντων τῶν εἰρημένων) (80a10-80b1) Aqui fica bem claro que

o argumento eacute do tipo analoacutegico baseia-se na extrema semelhanccedila (ὁμοιότατον) entre

alma e a lsquoFormarsquo Ao dizer que a alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) agravequilo

que eacute divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmo Soacutecrates retoma vaacuterios aspectos em que a alma e Forma satildeo

semelhantes

Em suma o argumento apresenta trecircs pontos cruciais de semelhanccedila entre alma

e lsquoFormarsquo

(i) Invisibilidade

Existem duas classes de coisas visiacutevel e invisiacutevel

A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute

(ii) Inteligibilidade

O corpo arrasta a alma para objetos particulares e em contato com eles fica

confusa Sozinha por si a alma alcanccedila a lsquoFormarsquo (aquilo que eacute puro eterno

imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo) e fica em harmonia com ela

A alma possui maior semelhanccedila e afinidade (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) com a Forma (aquilo que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo) do

que com o objeto particular (aquilo que natildeo estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)

(iii) Divindade

137

Ao divino e agrave alma compete o governar e dominar

A alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal)

Essas trecircs etapas do diaacutelogo estabelecem a semelhanccedila baacutesica entre alma e

lsquoFormarsquo e mostram que almas e lsquoFormasrsquo possuem apenas alguns atributos em comum

Apesar disso o argumento analoacutegico de Platatildeo parece tomar por certo que o fato de

alma e lsquoFormarsquo sejam semelhantes em alguns aspectos isso garantiria que alma e

lsquoFormarsquo seriam extremamente semelhante pelo menos em todos os aspectos que

Soacutecrates alista em 80b1-3

A conclusatildeo traz uma forte declaraccedilatildeo de semelhanccedila no argumento em vez de

simplesmente falar na lsquomaior semelhanccedila e afinidadersquo (ὁμοιότερον εἶναι καὶ

συγγενέστερον) da alma com a Forma (79c1-2) que a lsquoalma se assemelha (ὁμοιότερόν)

mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacutersquo (79c5) ou que

a alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal) (80a7) agora se enfatiza a semelhanccedila entre

alma e lsquoFormarsquo pelo uso do superlativo ὁμοιότατον Gallop esclarece que o superlativo

ὁμοιότατον pode ter um sentido intensivo ndash lsquomuito ou extremamente semelhantersquo ndash ou

pode significar lsquomais semelhante do que qualquer outra coisarsquo118 Embora o argumento

natildeo persuada o leitor de que a alma eacute lsquoextremamentersquo semelhante agraves lsquoFormasrsquo isso natildeo

significa que em seu cliacutemax a ideia apresentada natildeo seja justamente aquela da

intensidade O anuacutencio de que estatildeo chegando a uma conclusatildeo com base em tudo que

fora dito a apresentaccedilatildeo de um complexo cataacutelogo de atributos das Formas com as

quais as almas se assemelham (80a10-b3) e a conhecida convicccedilatildeo de Soacutecrates de que a

alma de modo algum se dissolve por ocasiatildeo da morte podem indicar que a personagem

118 Gallop 2002 p142

138

procura afirmar nada menos do que uma grande ou extrema semelhanccedila entre alma e

lsquoFormasrsquo Se este for o caso a ideia eacute realmente de que a alma eacute extremamente

semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e

sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo (80b1-3)

Quase todos os itens dessa lista em 80b1-3 aparecem ao longo do argumento

Trecircs itens satildeo mais importantes para o proacutepoacutesito especiacutefico do argumento que eacute o de

afastar o temor de que a alma se desintegra na hora da morte imortal lsquosempre na

mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo e indissoluacutevel Mas eacute o termo indissoluacutevel

(ἀδιάλυτος) que chama atenccedilatildeo nessa etapa de conclusatildeo ele aparece pela primeira vez

no argumento e provavelmente tem alguma ligaccedilatildeo ou talvez ateacute sirva de substituto do

termo lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) que aparece no iniacutecio do argumento em 78c O termo

ἀδιάλυτος pode expressar aquilo que eacute impossiacutevel de ser dissolvido (ou desintegrado)

ou aquilo que embora possa ser dissolvido natildeo o seraacute119 Mas se o termo realmente

retoma a ideia de que coisas simples (ἀσύνθετος) satildeo imunes agrave dispersatildeo enquanto as

compostas somente satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo (Cf 78c1-4) a ideia natildeo pode ser nada

menos do que impossibilidade de dissoluccedilatildeo As coisas compostas podem ser

dissolvidas ou dispersas num processo inverso ao que colocou as suas partes juntas mas

isto natildeo significa elas necessariamente seratildeo dissolvidas As almas satildeo extremamente

semelhantes (seja laacute o que isso significa) agraves Formas entatildeo elas devem ser indissoluacuteveis

imunes agrave desintegraccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo eacute

Enquanto a alma eacute insoluacutevel o corpo eacute soluacutevel (διάλυτος) (80b4) e o termo

soluacutevel (διάλυτος) provavelmente recupera ou estaacute relacionado ao termorsquocompostorsquo

(σύνθετος) que aparece em 78c Logo depois de serem introduzidos no diaacutelogo os

119 Rowe 1993 p188

139

termos lsquocompostorsquo (σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) natildeo aparecem novamente no

argumento mas curiosamente Soacutecrates termina o argumento em si com termos que

recuperam a ideia de lsquosimplesrsquo e lsquocompostorsquo A ideia de solubilidade e insolubilidade

que aparecem na lista em 80b1-5 passam a ser cruciais na conclusatildeo final em 80b9-c1

onde satildeo empregados διαλύω e ἀδιάλυτος ldquo() acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissordquo (ἆρ᾽ οὐχὶ σώματι μὲν ταχὺ

διαλύεσθαι προσήκει ψυχῇ δὲ αὖ τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι ἢ ἐγγύς τι τούτου)

O argumento das afinidades enfrenta a criacutetica de ser o uacutenico argumento

analoacutegico no Feacutedon por ser de natureza analoacutegica natildeo eacute probatoacuterio Como lembra

Bostock o proacuteprio Platatildeo certamente sabia que analogias natildeo podem ser consideradas

como provas conclusivas E embora analogias possam ser bastante persuasivas quando

completas e propriamente detalhadas isso natildeo acontece com o argumento das

afinidades120 Assim como Bostock os comentadores em geral criticam o argumento

das afinidades por ser o uacutenico do tipo analoacutegico no diaacutelogo e como argumento

analoacutegico eacute fraco pouco persuasivo

(a) Bluck assevera que o argumento das afinidades natildeo constitui uma prova ele

eacute um mero argumento de probabilidade sem rigor loacutegico cuja funccedilatildeo eacute

simplesmente preparar o terreno para o uacuteltimo argumento o qual Platatildeo

considera como sendo uma prova real e final da imortalidade da alma121

120 Bostock 1989 p120-121

121 Bluck 1955 p73

140

(b) Dorter observa que enquanto os outros argumentos satildeo estabelecidos com

uma boa dose de rigor formal o argumento das afinidades eacute baseado meramente

em analogia estando assim aberto agrave rejeiccedilatildeo por qualquer pessoa que natildeo aceite

analogia122

(c) Elton afirma que Platatildeo inclui o argumento das afinidades para expor as

armadilhas do raciociacutenio analoacutegico e natildeo para apoiar a defesa da imortalidade

Assim o argumento funcionaria como liccedilatildeo objetiva sobre como natildeo fazer boa

filosofia isto eacute sobre como natildeo argumentar em favor da imortalidade da

alma123

(d) Gallop entende que o argumento tomado como analogia eacute fraco apresenta

uma fraca cadeia de argumentos que tenta estabelecer a analogia entre almas e

Formas124

13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo

de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)

Com base na extrema semelhanccedila entre alma e lsquoFormarsquo a personagem Soacutecrates

chega a uma conclusatildeo final ldquoao corpo pertence (προσήκει) a raacutepida dissoluccedilatildeo (τάχυ

διαλύεσθαι) enquanto agrave alma por sua vez ser inteiramente indissoluacutevel (τὸ παράπαν

ἀδιαλύτῳ) ou algo proacuteximo disso (ἤ ἐγγύς τι τούτου)rdquo (80b8-11)

Platatildeo retoma a ideia vaga de lsquopertencerrsquo (προσήκω) que ele emprega

anteriormente em 78c Agora ele diz que pertence ao corpo o sofrer dissoluccedilatildeo

122 Dorter 1982 p 72

123 Elton 1997 p 313316

124 Gallop 2002 p 140

141

(διαλύω) antes que pertence agraves coisas compostas o sofrer dispersatildeo (διαιρέω) (78c2)

Agora pertence agrave alma o ser completamente indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) antes ao simples o

natildeo se sujeitar a sofrer dispersatildeo (78c3-4) O verbo προσήκω e as palavras com mesmo

campo semacircntico ndash διαιρέω διαλύω ἀδιάλυτος ndash sugerem que Platatildeo aproxima

intencionalmente os dois contextos (78c e 80b) A ideia de que haacute coisas simples e

compostas eacute crucial no iniacutecio do argumento mas depois de 78c ela eacute abandonada Logo

depois que Soacutecrates relaciona as coisas simples com lsquoas coisas que estatildeo sempre no

mesmo estado e condiccedilatildeorsquo (Formas) e as compostas com lsquoaquelas cuja condiccedilatildeo varia

em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estadorsquo (objetos particulares)

(78c6-8) ele introduz definitivamente as lsquoFormasrsquo no argumento (78c10-d7) A partir

daiacute Soacutecrates natildeo menciona a distinccedilatildeo entre lsquocoisas simplesrsquo e lsquocoisas compostasrsquo

novamente mas fica claro que as lsquoFormasrsquo satildeo as coisas simples e imunes agrave dispersatildeo e

as compostas e suscetiacuteveis agrave dispersatildeo satildeo lsquoobjetos particularesrsquo A ideia de sofrer

dissoluccedilatildeo (διαλύω) sofrer dispersatildeo (διαιρέω) e ser indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) natildeo se

sujeitar a sofrer dispersatildeo satildeo cruciais para o argumento que visa confrontar a crenccedila

popular de que a alma seria destruiacuteda (διαφθείρω) e pereceria (ἀπόλλυμι) na ocasiatildeo da

separaccedilatildeo do corpo ocasiatildeo em que seria dispersa (διασκεδάννυμι) como vento e

fumaccedila (70a3-6) que na compreensatildeo de Soacutecrates natildeo passa de uma crenccedila ldquopueril de

que o vento realmente dissipe (διαφύομαι) e disperse (διασκεδάννυμι) a alma na ocasiatildeo

em que ela deixa o corpordquo (77d7-e1)

Dentre outras coisas a conclusatildeo desponta por causa falta de clareza O proacuteprio

termo lsquopertencerrsquo eacute vago sem qualquer sentido especializado O argumento utiliza uma

linguagem de confianccedila seguranccedila e certeza apenas quando caracteriza as lsquoFormasrsquo

elas satildeo imortais indissoluacuteveis Mas quando se refere agrave alma diz-se vagamente que a

142

ela lsquopertencersquo o ser completamente indissoluacutevel A ideia de lsquopertencerrsquo (προσήκει) natildeo

traz qualquer certeza ou garantia e apenas atenua a conclusatildeo

A expressatildeo lsquoou algo proacuteximo dissorsquo (ἤ ἐγγύς τι τούτου) (80b11) conduz o leitor

para um mar de incertezas Ao que parece o texto faz um tipo de confissatildeo mais ou

menos aberta de que o argumento das afinidades repousa no terreno da incerteza A

conclusatildeo reflete uma maneira platocircnica de reconhecer a inseguranccedila do argumento

como se fosse uma admissatildeo mais ou menos velada de que o argumento apresenta

problemas125

Como jaacute foi dito o argumento procurar estabelecer que (i) a alma eacute mais

semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute (ii) que a alma deve possuir

maior afinidade com a Forma do que com o objeto particular porque quando examina

sozinha alcanccedila a lsquoFormarsquo e fica em harmonia com ela (iii) que a alma eacute como (ἔοικεν)

o divino (imortal) porque compete a ambos governar e dominar Com base nessas trecircs

comparaccedilotildees Soacutecrates conclui que lsquoa alma eacute extemamente semelhante ao que eacute ao

divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado consigo mesmorsquo portanto lsquoa alma seria o tipo de coisa completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissorsquo Contudo as trecircs comparaccedilotildees baacutesicas soacute

providenciam base para a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevelrsquo ou

algo proacuteximo dissorsquo se aceitarmos que a semelhanccedila em alguns aspectos entre alma e

lsquoFormasrsquo ndash invisibilidade inteligibilidade divindade ndash pode garantir a semelhanccedila em

vaacuterios outros aspectos como indissolubilidade Se isso natildeo for aceito dificilmente

algueacutem poderia afirmar que a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevel

ou algo proacuteximo dissorsquo decorre das trecircs comparaccedilotildees baacutesicas do diaacutelogo

125 Rowe 1993 p189

143

Por fim resta apenas reconhecer todas as deficiecircncias do argumento apontadas

ao longo desta seccedilatildeo para concluir que o argumento das afinidades falha em provar que

a alma eacute imortal Por outro lado o argumento eacute extremamente importante para

convencer os amigos de que a alma eacute um tipo de ser ldquointermediaacuteriordquo o argumento deixa

claro que ela natildeo eacute nem possui afinidades com os objetos particulares mas mesmo

assim consegue interagir com eles a ponto de carregar consigo elementos corporais Por

outro lado ela se assemelha ao maacuteximo com as lsquoFormasrsquo mas ainda assim natildeo eacute uma

delas Portanto a uacutenica saiacuteda para entender essa forte e consistente caracterizaccedilatildeo da

alma no argumento das afinidades eacute concluir que ela eacute um ente que se coloca entre

lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos particularesrsquo o que poderiacuteamos chamar de ente intermediaacuterio

bull Formas

bull Alma

bull Objetos sensiacuteveis

Embora seja um argumento analoacutegico que natildeo eacute suficiente para persuadir os

amigos de que a alma eacute completamente indissoluacutevel o argumento tem os seguintes

meacuteritos geralmente desprezados pela literatura criacutetica

(i) O argumento eacute a primeira tentativa direta de provar que a alma eacute por

natureza imune agrave morte A exigecircncia que Cebes apresentaraacute adiante eacute

basicamente que se apresente um argumento capaz de provar aquilo que

o argumento das afinidades pelo menos aponta provar que a alma eacute

completamente indissoluacutevel ou seja imortal e indestrutiacutevel

144

(ii) O argumento eacute a primeira tentativa de provar a imortalidade da alma sem

qualquer vinculaccedilatildeo com a doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo

(iii) O argumento apresenta pela primeira vez uma caracterizaccedilatildeo consistente

das lsquoFormasrsquo em contraste com os objetos particulares Pela primeira vez

podemos vislumbrar com maior clareza que Platatildeo considera a existecircncia

de trecircs coisas lsquoFormasrsquo lsquoalmasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo Eacute precisamente

neste ponto do diaacutelogo que jaacute temos uma caracterizaccedilatildeo suficiente das

lsquoFormasrsquo para reconhecermos que Platatildeo possui uma teoria segundo a

qual existem entidades ldquosuperioresrdquo distintas das almas e dos sensiacuteveis

(iv) A caracterizaccedilatildeo da alma como ente lsquointermediaacuteriorsquo eacute de fundamental

importacircncia para a correta interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento Platatildeo

certamente espera que interpretemos o uacuteltimo argumento a partir desta

compreensatildeo da alma como ente cuja existecircncia estaacute entre lsquoFormasrsquo e

lsquosensiacuteveisrsquo

54 Etapa Especulativa (80c-84b)

O argumento em si finda em 80b mas daacute margem para que Soacutecrates introduza

imediatamente um tipo de discussatildeo complementar com base no que foi dito no

argumento das afinidades em si Mas essa etapa que inicia em 80c consiste numa

elaboraccedilatildeo especulativa e miacutetica A passagem do argumento em si para essa nova etapa

eacute bastante sutil O primeiro tema desenvolvido nessa etapa trata da distinccedilatildeo baacutesica do

ser humano ndash corpo e alma ndash e manteacutem uma especial ligaccedilatildeo com a conclusatildeo final do

argumento das afinidades Contudo natildeo deve ser tomado como parte ou extensatildeo do

145

argumento em si porque fica claro que o argumento natildeo acomoda qualquer especulaccedilatildeo

de cunho miacutetico-religioso Aleacutem disso a nova etapa se volta para a glorificaccedilatildeo do

modo de vida filosoacutefico e finda com a conclusatildeo de que esse modo de vida eacute o que

finalmente garante a ausecircncia dos temores do filoacutesofo

541 Corpo e alma (80c-d)

bull Corpo (80c2-d4)

No argumento das afinidades fica estabelecido que haacute duas classes de coisas

visiacutevel e invisiacutevel sendo a alma mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto

o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17) Agora Soacutecrates retoma

parte dessa ideia reafirmando a distinccedilatildeo baacutesica do ser humano em corpo que eacute a parte

visiacutevel (τὸ ὁρατὸν) da pessoa e pouco depois falaraacute da alma que eacute a parte invisiacutevel (τὸ

ἀιδές) (80d5)

Na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates afirma que o corpo se

dissolve rapidamente (τάχυ διαλύεσθαι) (80b9) mas agora a personagem Soacutecrates

parece confrontar o proacuteprio argumento com a ideia de que o cadaacutever ao qual pertence o

dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ διαπίπτειν καὶ

διαπνεῖσθαι) natildeo sofre todas essas coisas imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν

πέπονθεν) mas lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)

especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado Aleacutem disso certas

partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά ἐστιν) (80c2-d4) Sendo assim a

146

dissoluccedilatildeo do corpo eacute vista agora mais como um processo que varia em cada caso do

que algo imediato como foi apresentado na conclusatildeo do argumento das afinidades

Talvez esse remendo visa reforccedilar a ideia de que a alma natildeo eacute imediatamente

desintegrada na hora da morte se nem mesmo o corpo ndash a parte visiacutevel do ser humano ndash

eacute dissolvido imediatamente apoacutes a morte quanto mais a alma a parte invisiacutevel do ser

humano

Apesar dessa constataccedilatildeo da durabilidade do cadaacutever que de algum modo

aponta para uma imprecisatildeo na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates

reafirma a sua convicccedilatildeo de que lsquodissolver-se desintegrar-se dissipar-sersquo satildeo proacuteprios

do corpo natildeo da almarsquo (80c4-5) como se estivesse reforccedilando ou dando um suporte

adicional para a ideia jaacute apresentada pelo argumento das afinidades

bull Alma (80d5-e1)

Platatildeo tambeacutem se utiliza da ideia de semelhanccedila entre almas e lsquoFormasrsquo

apresentada no argumento das afinidades nessa etapa especulativa No argumento das

afinidades a alma que examina sem a mediaccedilatildeo corporal se encaminha para as Formas

aquilo com que ela possui semelhanccedila e afinidade e fica em harmonia com elas (79c-d)

no acircmbito especulativo miacutetico-religioso a alma que se liberta do corpo vai para um

lugar da mesma natureza um lugar nobre puro invisiacutevel (γενναῖον καὶ καθαρὸν καὶ

ἀιδῆ) chamado Hades onde fica junto a uma divindade boa e saacutebia (παρὰ τὸν ἀγαθὸν

καὶ φρόνιμον θεόν) (80d5-7) A alma que vive em constante afastamento do corpo parte

para o aleacutem pura (sem carregar elementos corporais consigo) e desse modo lsquose

147

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5)

Aleacutem disso assim como no argumento das afinidades a alma que se utilizada do

corpo eacute arrastada para o mundo fiacutesico e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se

estivesse embriagada e soacute cessa o desvio quando entra em contato com lsquoaquilo que

permanece sempre na mesma condiccedilatildeorsquo (79c6-8) na versatildeo miacutetico-religiosa de Platatildeo a

alma soacute encontra plena realizaccedilatildeo (εὐδαίμων) quando deixa o mundo fiacutesico e natildeo eacute mais

afetado pelas mazelas oriundas do corpo como lsquoo desvio insensatez tipos selvagens de

amor e os outros males humanosrsquo (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀγρίων ἐρώτων καὶ

τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων) (81a6-8)

Como lida agora com o domiacutenio miacutetico-religioso e especulativo Soacutecrates

concede agrave divindade seu lugar de primazia apenas se a divindade quiser (ἂν θεὸς θέλῃ)

a sua alma tambeacutem percorreraacute esse mesmo caminho em direccedilatildeo ao divino e agrave completa

realizaccedilatildeo (80d7-8) No entanto ele nutre uma boa esperanccedila de que o divino lhe

permitiraacute desfrutar desse destino assim como havia manifestado antes ao falar da

esperanccedila (ἐλπίς) que os filoacutesofos nutrem de que apenas no Hades alcanccedilariam a

sabedoria que desejaram ao longo de uma vida inteira (68a7-b6) Vale lembra que o

Hades que havia sido completamente excluiacutedo do argumento das afinidades eacute

retomado nessa etapa especulativa

Por fim assim como no argumento das afinidades Soacutecrates confronta o temor

pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo especialmente

se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) a etapa especulativa tambeacutem visa

confrontar a ideia de que na ocasiatildeo da morte a alma seria lsquoimediatamente dissipada e

destruiacuteda como afirmam as pessoasrsquo (εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ ἀπόλωλεν ὥς φασιν οἱ

148

πολλοὶ ἄνθρωποι)rsquo Soacutecrates reforccedila que isso natildeo aconteceria lsquolonge disso caros

Siacutemias e Cebesrsquo (80d9-e2) E a sua apresentaccedilatildeo do percurso da alma depois da morte

com base na doutrina da reencarnaccedilatildeo ilustra a sua posiccedilatildeo de que a alma natildeo eacute

aniquilada na hora da morte mas experimenta diferentes tipos de existecircncia de acordo

com a vida que teve unificando todas essas temaacuteticas

542 Vida Filosoacutefica

Um dos objetivos dessa etapa especulativa eacute a defesa da vida dedicada agrave

filosofia Platatildeo explora o tema da vida filosoacutefica e o relaciona a diversos temas

especiacuteficos

bull Filosofia e Reencarnaccedilatildeo

Se por um lado o destino do filoacutesofo depende da vontade divina por outro

depende do modo de vida ndash filosoacutefico ou natildeo ndash que a pessoa leva O destino da alma e o

modo de vida de uma pessoa satildeo diretamente ligados ao tema da reencarnaccedilatildeo nesta

etapa O objetivo desta longa seccedilatildeo em que Platatildeo utiliza a doutrina da reencarnaccedilatildeo

conforme seus interesses eacute apresentar uma vigorosa defesa da vida filosoacutefica mais do

que propagar a crenccedila na reencarnaccedilatildeo

A reencarnaccedilatildeo eacute experimentada por aqueles que natildeo se dedicam agrave filosofia e

assim natildeo se purificam durante a vida Aqueles que se entregam ao modo de vida

corporal entregando-se aos seus deleites nunca podem chegar ao Hades no estado de

pureza e a sua alma parte para o aleacutem contaminada e carregada com os resiacuteduos

149

corporais e logo reencarna em outro corpo porque o Hades natildeo lhe permite ali ficar em

contato com os deuses (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) Isto levaria a uma consequente

reencarnaccedilatildeo num corpo de acordo com o gecircnero de vida praticado ( Essa temaacutetica eacute

desenvolvida e ilustrada atraveacutes de trecircs grupos cada grupo caracterizado pela

reencarnaccedilatildeo correspondente ao modo de vida que teve

(i) Aqueles que se entregam agrave glutonaria e embriaguecircs reencarnam como

burros e animais dessa natureza (81e)

(ii) Aqueles que praticam injusticcedilas tiranias e roubos retornam como lobos

falcotildees e abutres (82a)

(iii) Aqueles que praticam a virtude popular e poliacutetica ndash temperanccedila e justiccedila

ndash mas por mero haacutebito sem o exerciacutecio consciente da filosofia e

inteligecircncia nascem como uma espeacutecies sociais como eles satildeo podem

voltar como abelhas vespas formigas ou novamente como humano

(82b-c)

Todo o cenaacuterio em que a personagem principal discute a reencarnaccedilatildeo da alma eacute

construiacutedo para uma seguinte exaltaccedilatildeo do modo de vida filosoacutefico e tudo que se

relaciona a ele

543 Filosofia e salvaccedilatildeo da alma

Filosofia eacute o uacutenico meio de salvaccedilatildeo de um interminaacutevel ciclo de reencarnaccedilotildees

Eacute impossiacutevel quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees e chegar agrave linhagem dos deuses sem o

150

exerciacutecio da Filosofia a qual prepara os filoacutesofos para partirem completamente

purificados para o Hades (82b10-c1) Esse modo de vida filosoacutefico no qual a alma

encontra redenccedilatildeo eacute exemplificado em 82c3-8 os filoacutesofos se afastam e se manteacutem

afastados de todos os desejos que dizem respeito ao corpo como o desejo daquele que

ama o dinheiro e receia pobreza e o daquele que ama poder e honra e receia desonra e

maacute reputaccedilatildeo Platatildeo se utiliza da ideia religiosa da metempsicose e da quebra dos

ciclos de renascimentos ao seu interesse de propagar a sua proacutepria praacutetica filosoacutefica

como via uacutenica de salvaccedilatildeo No Feacutedon vemos um tipo de ldquoproselitismo filosoacuteficordquo jaacute

que natildeo haacute outro meio de quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees o melhor a se fazer eacute

dedicar a vida agrave praacutetica de morrer e estar morto ou seja tornar-se um filoacutesofo

544 Filosofia e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo

O tema da lsquosalvaccedilatildeo da almarsquo (entendida como a quebra do ciclo de

reencarnaccedilotildees) e o tema da lsquopurificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo da almarsquo estatildeo intrinsecamente

relacionados A vida de reclusatildeo da alma dissociada do corpo e dedicada agrave filosofia o

que o filoacutesofo chama de verdadeiro filosofar (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e exerciacutecio de

morte (μελέτη θανάτου) (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) eacute basicamente o que Platatildeo

apresenta como purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo (καθαρμός) e libertaccedilatildeo (λύσις) se

efetuam por meio da filosofia (82d5-6) Semelhante ideia eacute apresentada no primeiro

estaacutegio do diaacutelogo onde lsquopurificarrsquo eacute a alma afastar-se ao maacuteximo do corpo e viver

longe dele (67c5-d1) O corpo eacute como uma prisatildeo e somente a filosofia pode efetuar a

libertaccedilatildeo da alma encarcerada em seu proacuteprio corpo Sem a praacutetica da filosofia a alma

eacute cativa do corpo e obrigada a examinar as lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) por meio dele

151

como atraveacutes de uma prisatildeo (82e3-4) Tambeacutem no primeiro estaacutegio do Feacutedon o tema

da purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo eacute desenvolvido juntamente com a ideia de que o corpo eacute um

tipo de prisatildeo da alma a constante reclusatildeo da alma ldquoeacute um um ato de constante

libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de cadeiasrdquo (67d1-2)

Quando algueacutem eacute iniciado na filosofia o processo de libertaccedilatildeo comeccedila a tomar

lugar paulatinamente (83a9-b1)

bull Filosofia gentilmente aconselha a alma

bull Filosofia tenta libertar a alma do exame atraveacutes dos sentidos

bull Filosofia persuade a distanciar a alma dos sentidos exceto

quando eacute imperativo usaacute-los

bull Filosofia encoraja a alma a recolher-se em si mesma e a confiar

apenas em si mesma quando usa a inteligecircncia para captar as

coisas que satildeo sozinhas por si mesmas (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν

ὄντων)

bull Filosofia encoraja a alma a considerar falso tudo que examine por

outros meios

bull Filosofia ajuda a identificar o que eacute sensiacutevel e visiacutevel e o que eacute

inteligiacutevel e invisiacutevel

152

545 Afinidade entre alma e o divino

O argumento das afinidades em si procura estabelecer a afinidade entre almas e

lsquoFormasrsquo enquanto a etapa especulativa procura estabelecer a versatildeo miacutetico-religiosa da

lsquoafinidadersquo ou seja a afinidade entre alma e o domiacutenio do divino que inclui o lugar as

divindades e tudo que faccedila parte desse domiacutenio Esta etapa chega ao fim com a

declaraccedilatildeo de que ao findar a vida a alma vai alcanccedilar aquilo que com ela possui

lsquoafinidadersquo e que eacute do mesmo tipo dela (εἰς τὸ συγγενὲς καὶ εἰς τὸ τοιοῦτον) (84b2-3)

Platatildeo utiliza vaacuterias expressotildees e termos para expressar a ideia de semelhanccedila relaccedilatildeo

afinidade familiaridade mesma natureza O termo συγγενής em particular eacute aparece

duas vezes no argumento das afinidades em si uma para estabelecer a familiaridade ou

afinidade entre corpo e a classe de coisas visiacuteveis e a alma e a classe de coisas

invisiacuteveis (79d3) outra para estabelecer a afinidade entre lsquoo que eacute puro eterno imortal

e permanece na mesma condiccedilatildeorsquo e a alma (79e1-2) Nesta conclusatildeo em 84b2-3 na

qual eacute dito apenas que a alma que deixa o corpo vai alcanccedilar aquilo com que ela possui

lsquoafinidadersquo (συγγενής) o contexto miacutetico-religioso sugere o encontro entre alma e o

domiacutenio do divino como jaacute havia sido sugerido pelo menos em duas ocasiotildees em

80d5-7 a alma que se liberta do corpo vai para outro lugar da mesma natureza que a sua

(εἰς τοιοῦτον τόπον ἕτερον) um lugar nobre puro invisiacutevel chamado Hades onde fica

junto a uma divindade boa e saacutebia em 81a4-5 a alma que parte para o aleacutem pura lsquose

encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ

ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5) Toda

aspiraccedilatildeo post mortem do filoacutesofo nesta etapa especulativa diz respeito ao mundo

idealizado pela perspectiva miacutetico-religiosa e a semelhanccedila entre a alma e o domiacutenio do

153

divino e imortal parece tentar reforccedilar aquilo que foi apresentado no argumento das

afinidades em si Mas eacute importante lembrar que as lsquoFormasrsquo ainda satildeo objeto de desejo

do filoacutesofo durante a vida na etapa especulativa em 82e3-4 menciona-se o exame das

lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) e pouco depois a utilizaccedilatildeo da inteligecircncia para captar lsquoas

coisas que satildeo sozinhas por si mesmasrsquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν ὄντων) Nesse caso o

objetivo eacute reforccedilar a ideia de que eacute necessaacuterio examinar as lsquoFormasrsquo sem a

intermediaccedilatildeo corporal

546 Vida filosoacutefica e o temor da desintegraccedilatildeo da alma

No argumento das afinidades em si a extrema semelhanccedila entre almas e

lsquoFormasrsquo leva agrave conclusatildeo final de que a alma deve ser algo indissoluacutevel e assim natildeo

haveria razatildeo para nutrir os temores pueris de Cebes e Siacutemias de que a alma se

desintegraria assim que deixasse o corpo Por semelhante modo na etapa especulativa a

ideia de semelhanccedila entre a alma do filoacutesofo e o domiacutenio do divino eacute imediatamente

seguida pela afirmaccedilatildeo de que de modo algum a alma vai ser dissipada pelo vento e

destruiacuteda por ocasiatildeo da morte Mas nesse contexto especulativo natildeo eacute a afinidade da

alma com o divino que fundamenta a ideia de que a alma natildeo se desintegra na hora da

morte as a vida vida filosoacutefica eacute o que assegura que a alma natildeo seraacute desintegrada na

ocasiatildeo da morte eacute com base no modo de vida filosoacutefico (ἐκ δὴ τῆς τοιαύτης τροφῆς)

que natildeo haacute risco algum de que se tema que a alma possa ser dissolvida por ocasiatildeo da

morte esvaindo-se conforme o vento passando a natildeo mais existir em lugar algum

(84b3-7)

154

Esta seccedilatildeo especulativa retoma em grande parte a defesa de Soacutecrates na primeira

parte do diaacutelogo pela qual Soacutecrates tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que

natildeo estaacute convencido de que a morte eacute o melhor para o filoacutesofo procurando justificar sua

confianccedila e intrigante atitude diante da morte iminente e ateacute mesmo seu desejo de

morrer (60c-62c) Tanto em sua defesa como nessa etapa especulativa a vida filosoacutefica

eacute o que fundamenta qualquer esperanccedila no porvir

155

6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)

61 Introduccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento eacute bastante discordante Ele tem a reputaccedilatildeo

de ser difiacutecil e insatisfatoacuterio e qualquer nova proposta de interpretaccedilatildeo tende a ser

tomada como mais uma maneira possiacutevel de lecirc-lo126

A etapa que vem depois do argumento das afinidades aparentemente prepara o

terreno para a introduccedilatildeo do argumento final propriamente dito mas a relaccedilatildeo entre ela

e o argumento final estaacute longe ser clara Esta longa estapa se desenvolve ateacute a

introduccedilatildeo do uacuteltimo argumento propriamente dito em 105c

61 O impacto do Argumento das Afinidades

Com base na afinidade entre alma e lsquoFormarsquo o argumento das afinidades conclui

que a alma eacute algo completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11) O

argumento natildeo consegue estabelece a prova definitiva da imortalidade mas representa

um grande avanccedilo na discussatildeo que evolui de duas provas vinculadas a uma concepccedilatildeo

de imortalidade da alma vinculada a uma crenccedila de cunho oacuterfico e pitagoacuterico segundo a

qual imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma se confundem para um argumento que

apesar de analoacutegico ataca o cerne de questatildeo a natureza da alma a sua imunidade agrave

126 Sedley 2011 p 31

156

morte O argumento provoca um forte impacto nos amigos pela primeira vez

apresentam suas proacuteprias ideias a teoria da alma-harmonia o tecelatildeo e seus mantos

Sobretudo Cebes poderaacute reconhecer que a alma eacute um ser especial diferente dos objetos

particulares divina longeva mais duradoura do que o corpo Mesmo assim a sua

afinidade com as lsquoFormasrsquo no argumento analoacutegico natildeo consegue convencecirc-lo de que

ela seria imortal completamente indissoluacutevel O proacuteprio Soacutecrates reconhece a fraqueza

do argumento ao concluir que a alma poderia ser algo proacuteximo de indissoluacutevel

Dialogando com a conclusatildeo do argumento das afinidades Cebes exigiraacute uma prova de

que a alma eacute imortal e completamente indestrutiacutevel A expressatildeo completamente

indestrutiacutevel visa explicar o tipo de concepccedilatildeo de imortalidade que eacute requerida agora

imortal natildeo apenas com o sentido de divino na religiatildeo tradicional ou vinculada agrave

doutrina da transmigraccedilatildeo da alma na tradiccedilatildeo oacuterfica e pitagoacuterica ou a quase

indissolubilidade da alma como uma admissatildeo de sua imortalidade mas a imortalidade

num sentido filosoacutefico especializado ndash a alma imortal eacute a alma completamente imune a

destruiccedilatildeo a alma cuja natureza eacute essencialmente viva e natildeo admite morte e destruiccedilatildeo

em hipoacutetese alguma Ateacute o momento Soacutecrates natildeo apresenta uma resposta para o

problema apresentado inicialmente por Cebes em 70a a desintegraccedilatildeo da alma na

ocasiatildeo em que se desaloja do corpo O argumento ciacuteclico estabelece apenas a

continuidade da vida em geral e a continuidade da alma em particular O argumento da

reminiscecircncia estabelece a existecircncia da alma antes de alojar-se no corpo e os amigos de

Soacutecrates enfaticamente apoiam essa tese em vaacuterias partes do diaacutelogo mas o maacuteximo

que isto poderia provar seria que a existecircncia da alma do momento em que no aleacutem

capta as lsquoFormasrsquo para a corrente reencarnaccedilatildeo sem qualquer garantia de que ao deixar

novamente o corpo a alma seria destruiacuteda e o argumento das afinidade como

157

acabamos de relatar acentua a duacutevida de que a alma seria completamente indissoluacutevel

O problema continua o mesmo ainda existe a possibilidade de dispersatildeo e aniquilaccedilatildeo

da alma

Mas sem duacutevida o argumento das afinidades provoca um especial impacto nos

amigos de Soacutecrates como acabamos de sugerir Soacutecrates silencia por um longo periacuteodo

e os amigos conversam em voz baixa O filoacutesofo entatildeo pergunta o que se passa A

verdade eacute que Siacutemias e Cebes tecircm algumas dificuldades com o argumento mas natildeo

querem perturbaacute-lo em sua presente desgraccedila (84c-d) O argumento analoacutegico natildeo

persuade os amigos de que a alma eacute imune agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo O temor persiste

Soacutecrates quebra o silecircncio para reforccedilar que natildeo vecirc a sua situaccedilatildeo que enfrenta como

infortuacutenio e ateacute evoca dotes divinatoacuterios com o fim de expressar a sua confianccedila de que

se reuniraacute com os deuses no Hades (84e-85a) e para pedir que os amigos apresentem

suas consideraccedilotildees (85a) O argumento das afinidades inspira os amigos de Soacutecrates a

apresentar as suas proacuteprias objeccedilotildees baseadas em algum tipo de analogia entre a alma e

a harmonia produzia por um instrument musical e a alma e o tecelatildeo com os mantos

que fabrica e com os quais se veste

62 Objeccedilotildees de Siacutemias e Cebes

Siacutemias e Cebes apresentam suas proacuteprias objeccedilotildees

(i) Siacutemias (85e-86d) a alma eacute como uma harmonia e o corpo eacute como uma

lira e suas cordas A harmonia eacute algo invisiacutevel incorpoacutereo e

158

absolutamente belo e divino na lira afinada enquanto a proacutepria lira e

suas cordas satildeo corpos e semelhantes ao mortal A alma perece com o

corpo assim como a harmonia deixa de existir quando a lira for destruiacuteda

(ii) Cebes (87a-88b) a analogia involve um tecelatildeo e seu manto Cebes estaacute

convencido de que alma existe antes do nascimento (argumento da

reminiscecircncia) mas ainda duvida que ela continue existindo apoacutes a

morte O tecelatildeo representa a alma e o manto representa os corpos nas

vaacuterias reencarnaccedilotildees Jaacute que o manto eacute mais fraacutegil do que o tecelatildeo ele

precisaraacute fazer e vestir vaacuterios mantos ao longo da vida assim como a

alma precisaraacute reencarnar em vaacuterios corpos sendo assim mais duraacutevel do

que o corpo mas natildeo imortal

Soacutecrates Soacutecrates faz uma breve revisatildeo dos dois argumentos em 91c7ndashd7 com o

sutil propoacutesito de revelar que os problemas das objeccedilotildees dos amigos O primeiro deles eacute

a discordacircncia dos proacuteprios amigos

(i) Os amigos natildeo concordam sequer no seguinte ponto fundamental

quando a alma deve perecer Siacutemias acredita a alma perece com ou antes

do corpo (86b2) Cebes acredita que a alma deve ter uma consistecircncia e

duraccedilatildeo maior do que a do corpo vindo a perecer apoacutes o corpo num dos

ciclos de reencarnaccedilotildees (87d1 e2)

(ii) Os amigos tambeacutem discordam na compreensatildeo da relaccedilatildeo de

interdependecircncia entre alma e corpo Com a sua teoria da alma-

159

harmonia Siacutemias tende a pensar que eacute a alma que depende do corpo

sendo destruiacuteda a lira (corpo) a harmonia que produz (a alma) tambeacutem

perece (86c5) Quando Cebes retrata o tecelatildeo (alma) como fazedor de

sua proacutepria vestimenta (corpo) ele daacute a entender que a alma deve durar

mais do que o corpo (87e1)

Quando confronta diretamente Siacutemias Soacutecrates facilmente lhe mostra que a sua

posiccedilatildeo eacute inconsistente e contraditoacuteria porque ele tenta sustentar o argumento da

reminiscecircnca e a teoria da alma-harmonia ao mesmo tempo Por um lado ele concorda

que a alma eacute como uma harmonia e assim sua existecircncia estaacute completamente

dependente do corpo ndash a harmonia de uma lira natildeo pode existir independentemente da

lira Por outro ele concorda com o argumento da reminiscecircncia segundo o qual a alma

existe independentemente do corpo antes mesmo do nascimento (92bndashe) Siacutemias teria

de escolher um dos argumentos e sem titubear ele abandona o proacuteprio argumento

(alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e

reafirma o argumento da reminiscecircncia o qual deriva de uma hipoacutetese digna de

aceitaccedilatildeo Como o proacuteprio Siacutemias admite natildeo se trata propriamente de um argumento

uma demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) mas sim de uma objeccedilatildeo baseada numa imagem e

verossimilhanccedila (μετὰ εἰκότος τινὸς καὶ εὐπρεπείας) Para que natildeo reste nenhuma

duacutevida ele termina ratificando que eacute certo que a alma existe antes de entrar num corpo

assim como existe a Forma aquilo que eacute (92c-92d) Platatildeo deixa claro que a noccedilatildeo de

da alma-harmonia eacute completamente insustentaacutevel

No argumento do tecelatildeo e seus mantos a alma sobrevive a vaacuterios ciclos de

reencarnaccedilotildees mas perece no final sendo apenas mais resistente do que o corpo mas

160

natildeo imortal (87a-88b) A partir deste argumento Cebes apresenta objeccedilotildees gerais

essenciais para corrigir o rumo do diaacutelogo e para a construccedilatildeo do uacuteltimo argumento Em

suma eis a suas objeccedilotildees

(i) Cebes aponta o problema natildeo estaacute demonstrado que a alma continua a

existir em algum lugar depois da morte (87a4-5) Com essa consideraccedilatildeo

ele aponta a falha dos trecircs argumentos em providenciar uma prova final

da imortalidade da alma

(ii) Cebes critica a insuficiecircncia dos argumentos apresentados ainda que se

suponha que a alma eacute de natureza robusta (αὐτὸ φύσει ἰσχυρὸν εἶναι) e

resiste a uma seacuterie de ciclos de renascimentos (πολλάκις γιγνομένην

ψυχὴν ἀντέχειν) ainda assim natildeo haacute garantia de que ela natildeo se

desgastaria e numa das mortes ficaria totalmente aniquilada (ἔν τινι τῶν

θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) sem que ningueacutem saiba em qual

dessas mortes isso poderia ocorrer (88a1-10) A sua observaccedilatildeo estaacute

imediatamente relacionada ao seu argumento do tecelatildeo e do manto mas

parece se aplicar tambeacutem a todos os argumentos apresentados ateacute agora

a comeccedilar pelo argumento ciacuteclico o qual tenta provar que a alma

sobrevive atraveacutes dos ciclos de reencarnaccedilotildees mas natildeo garante que num

desses ciclos a alma simplesmente seria destruiacuteda

(iii) Cebes apresenta a necessidade lsquoprovar que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevelrsquo (ἀποδεῖξαι ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε

καὶ ἀνώλεθρον) (88b3-6)

161

(iv) Cebes critica a confianccedila e atitude de Soacutecrates diante da morte iminente

eacute insensato se mostrar confiante perante a morte a natildeo ser que se possa

lsquoprovar que a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrsquo (88b3-6)

Sem isso aquele que estaacute na iminecircncia da morte deve temer

constantemente que a sua alma seja completamente destruiacuteda

(παντάπασιν ἀπόληται) na ocasiatildeo em que ela se separa do corpo (88b6-

8) Mais uma vez essa criacutetica contempla a atitude de Soacutecrates diante da

morte em todo o diaacutelogo

(v) Cebes conduz a discussatildeo para um momento dramaacutetico de crise depois

de sua explanaccedilatildeo os amigos ficam tristes confusos increacutedulos (88c1-

5)

(vi) Cebes cria ocasiatildeo para o narrador Feacutedon exaltar Soacutecrates o qual se

posiciona para continuar a discussatildeo o filoacutesofo recebe a criacutetica com

maestria e como um general cujo exeacutercito foi disperso realinha as

fileiras de batalha e convoca os soldados para retornar ao campo de

batalha ndash o campo da argumentaccedilatildeo (88e-89a)

O problema da mortalidade da alma ainda persiste Se a alma for mortal a alma

de Soacutecrates corre o risco de ser destruiacuteda em breve assim que tomar o veneno e o corpo

perecer

A discussatildeo vem se desenrolando passo a passo O primeiro argumento que

aponta para a necessidade de provar que a alma eacute lsquoo tipo de coisa completamente

indissoluacutevelrsquo (τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι) eacute o argumento das afinidades mas ele

mesmo falha com a conclusatildeo de que a alma pode ser lsquoalgo proacuteximo de ser

162

completamente indissoluacutevelrsquo (80b10-11) O argumento do tecelatildeo e seus mantos

desenvolve semelhante problemaacutetica a ideia de uma alma robusta longeva quase

imortal e indestrutiacutevel mas que depois de uma sobreviver a uma seacuterie de reencarnaccedilotildees

se desgasta e num desses ciclos acaba aniquilada

Sendo assim Cebes requer uma prova definitiva de que a alma eacute completamente

imortal e indestrutiacutevel o que fica claro pela adiccedilatildeo das palavras lsquocompletamentersquo e

lsquoindestrutiacutevelrsquo O risco de que a alma lsquoficasse completamente aniquilada em uma das

mortesrsquo (ἔν τινι τῶν θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) (88a9-10) exige um argumento

que prove que ela eacute completamente imortal e indestrutiacutevel (παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ

ἀνώλεθρον) (88b5-6) Esta reivindicaccedilatildeo eacute essencial neste ponto do diaacutelogo porque

Soacutecrates a acolhe e o argumento final busca satisfazecirc-la ldquoa alma eacute imortal e

indestrutiacutevelrdquo (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ ἀνώλεθρον (106e8-107a1)

Essa lista de observaccedilotildees de Cebes eacute acolhida recapitulada e utilizada por

Soacutecrates como paracircmetro a ser seguido na construccedilatildeo do proacuteximo argumento Eis a

recapitulaccedilatildeo que Soacutecrates faz das objeccedilotildees de Cebes (95b-e)

(i) Deve ser demonstrado que a nossa alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ἀξιοῖς

ἐπιδειχθῆναι ἡμῶν τὴν ψυχὴν ἀνώλεθρόν τε καὶ ἀθάνατον οὖσαν)

(ii) Sem uma demonstraccedilatildeo da imortalidade da alma a mera confianccedila e

esperanccedila do filoacutesofo de ter um vida feliz e melhor no aleacutem eacute nada mais

do que uma confianccedila insana e vatilde

(iii) Apresentar a alma como algo resistente e divino (τὸ δὲ ἀποφαίνειν ὅτι

ἰσχυρόν τί ἐστιν ἡ ψυχὴ καὶ θεοειδὲς) e que existia antes mesmo de nos

163

tornarmos seres humanos natildeo prova a sua imortalidade mas apenas a sua

longa duraccedilatildeo em algum lugar

(iv) A entrada da alma num corpo humano jaacute eacute para ela como se fosse uma

doenccedila o iniacutecio da sua ruiacutena ateacute que se extinga na morte

(v) Sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι ὡς

ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou

vaacuterias vezes num corpo

(vi) Toda pessoa que tem bom senso deve temer a morte se natildeo souberem o

que eacute imortal e natildeo poderem oferecer um argumento sobre isso

Quando Soacutecrates pergunta se os amigos aceitaram todos os argumentos

apresentados ou apenas alguns (πότερον οὖν ἔφη πάντας τοὺς ἔμπροσθε λόγους οὐκ

ἀποδέχεσθε ἢ τοὺς μέν τοὺς δ᾽ οὔ) Cebes e Siacutemias revelam que apenas alguns haviam

sido aceitos outros natildeo mas ambos salientam que aceitam completamente o argumento

das reminiscecircncias ndash as almas existem antes do nascimento (91e-92a) Cebes aceita

algumas das demonstraccedilotildees anteriores o que significa que em sua perspectiva o

diaacutelogo havia progredido na explanaccedilatildeo sobre a natureza da alma ndash os argumentos

anteriores (pelo menos alguns) ajudam a entender a superioridade da alma em relaccedilatildeo

ao corpo ndash mas natildeo satildeo suficientes para provar o que se requer nesta ocasiatildeo ndash a

imortalidade da alma Eles ajudam a entender a alma em parte principalmente a sua

superioridade em relaccedilatildeo ao corpo mas ainda natildeo satildeo suficientes para atender as

exigecircncias de Cebes provar que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Em suma Cebes

admite que a alma eacute (91e-92a95c)

164

A alma eacute lsquorobustarsquo (ἰσχυρός) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquodivinarsquo (θεοειδής) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquolongevarsquo (πολυχρόνιος) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

A alma eacute lsquopreexistentersquo (argumento

da reminiscecircncia)

Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel

Apesar de o argumento de Cebes ndash tecelatildeo e o seu manto ndash seja tambeacutem baseado

numa mera lsquoimagemrsquo ou lsquoilustraccedilatildeorsquo sem demonstraccedilatildeo (assim como o de Siacutemias) que

eacute como a maioria das pessoas fundamental suas opiniotildees (τοῖς πολλοῖς δοκεῖ

ἀνθρώποις) (92d) e mesmo assim a ideia apresente claras inconsistecircncias ndash natildeo haacute

razatildeo para pensar que a alma pode sofrer um processo de desgaste vestindo o corpo ao

longo de diversas reencarnaccedilotildees porque natildeo eacute o manto que veste o tecelatildeo mas o

tecelatildeo o manto e assim o que se deteriora pelo uso eacute o mantocorpo natildeo o

tecelatildeoalma ndash ainda assim as objeccedilotildees gerais que Cebes levanta satildeo bem colocadas e

Soacutecrates afirma que lsquoisto requer uma exposiccedilatildeo sobre a causa da geraccedilatildeo e da

destruiccedilatildeorsquo (95e-96a) A nova etapa inicia com a autobiografia intelectual de Soacutecrates

que nos apresenta a busca inicial de Soacutecrates pela verdadeira lsquocausarsquo das coisas Durante

este estaacutegio Soacutecrates encontra uma resposta completamente sem sentido para a sua

busca da causa verdadeira Isto faz com que ele apele para uma outro tipo de

investigaccedilatildeo da causa

A cuidadosa leitura do texto sugere que a etapa entre as objeccedilotildees de Cebes e o

argumento final apresenta trecircs tipos de resposta concernentes agrave lsquocausarsquo das coisas

165

Quando em sua juventude Soacutecrates se decepciona com aquilo que os filoacutesofos da

natureza consideram como αἴτια Soacutecrates diz que ldquo(hellip) chamar esse tipo de coisa de

causa eacute completamente sem sentidordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

(99a4-5) Soacutecrates entatildeo busca outra resposta Na seccedilatildeo seguinte temos duas tentativas

de desenvolver uma noccedilatildeo platocircnica de causa Quando a personagem Soacutecrates expressa

a sua primeira formulaccedilatildeo de uma noccedilatildeo proacutepria de causa nos termos lsquoeacute por causa da

beleza que todas as coisas satildeo belasrsquo (100d7-8)rsquo ele diz que ele pensa que esta lhe

parece a afirmaccedilatildeo lsquomais segurarsquo (τοῦτο γάρ μοι δοκεῖ ἀσφαλέστατον εἶναι) (100d8-9)

Ele repete a ideia para deixar claro o tipo de resposta que ele chama de mais segura

lsquocontudo eacute seguro responder tanto a mim mesmo quanto a qualquer outra pessoa que eacute

por causa da beleza que as coisas belas se tornam belasrsquo (ἀλλ᾽ ἀσφαλὲς εἶναι καὶ ἐμοὶ

καὶ ὁτῳοῦν ἄλλῳ ἀποκρίνασθαι ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ γίγνεται καλά) (100e1-3) Mas

depois desta primeira tentativa Platatildeo desenvolve ainda mais a sua noccedilatildeo de causa

preparando terreno para a introduccedilatildeo do argumento final Portanto achamos razoaacutevel

dividir a etapa entre as objeccedilotildees gerais de Cebes e o uacuteltimo argumento da seguinte

maneira em trecircs ocasiotildees

(i) Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras127 ndash 96a-99c

(ii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo segura de causa ndash 99d-101e

(iii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c128

127 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

128 O texto natildeo traz a palavra lsquointeligentersquo mas apenas lsquooutra resposta segurarsquo (Cf 105b5-c1)

166

Essa etapa eacute desenvolvida ateacute a introduccedilatildeo do argumento final em 105c

63 Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras129 ndash 96a-99c

Soacutecrates apresenta sua chamada autobiografia intelectual que eacute introduzida no

diaacutelogo logo depois que a personagem recapitula as objeccedilotildees gerais de Cebes O

filoacutesofo imediatamente silencia por um tempo e quando retoma a discussatildeo louva a

busca de Cebes por algo que natildeo eacute trivial (95e8-9) e reconhece que diante das objeccedilotildees

eacute necessaacuterio discutir como um todo sobre a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (ὅλως γὰρ

δεῖ περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς τὴν αἰτίαν διαπραγματεύσασθαι) (95e10-96a3)

Nesta seccedilatildeo autobiograacutefica a personagem fala das suas proacuteprias experiecircncias (τά

γε ἐμὰ πάθη) em busca de conhecer a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (96a2) Em sua

mocidade era dado agrave lsquoinvestigaccedilatildeo sobre a naturezarsquo (περὶ φύσεως ἱστορίαν) buscando

conhecer as causas das coisas Parecia-lhe maravilhoso conhecer as causas de casa coisa

(εἰδέναι τὰς αἰτίας ἑκάστου) ldquopor que cada coisa eacute gerada perece e subsisterdquo (96a6-10)

Mas ele percebeu que o conhecimento sobre as causas era insatisfatoacuterio A sua

esperanccedila de que o livro de Anaxaacutegoras lhe ensinaria sobre as lsquocausasrsquo terminou numa

grande decepccedilatildeo e ao final ele rejeitou o modo de investigaccedilatildeo que os filoacutesofos da

natureza empregaram na busca da causa

129 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente

sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute

extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)

167

Ao longo desta etapa a personagem Soacutecrates apresenta vaacuterios exemplos de

lsquocausasrsquo de acordo com os filoacutesofos da natureza Eis alguns alguns deles

OBSERVACcedilAtildeO CAUSA

96d-e

Um homem eacute maior do que o outro Cabeccedila

Um cavalo eacute maior do que o outro Cabeccedila

Dez eacute mais numeroso do que oito Adiccedilatildeo do dois

Dois cuacutebitos eacute maior do que um Dois cuacutebito excede um cuacutebito pela

metade

100c-d

Algo eacute belo Brilho da cor forma outra desse tipo

Soacutecrates rejeita este tipo de abordagem dos fiacutesicos contemporacircneos elas natildeo

podem ser a verdadeira αἰτίαι das coisas Soacutecrate sugere que a resposta dos filoacutesofos da

natureza para a sua busca pela causa verdadeira eacute algo do tipo completamente sem

sentido ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽

αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον) (99a4-5)

Decepcionado o filoacutesofo recorre a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele

chama de lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς

αἰτίας) (99c-d) Na seccedilatildeo que se inicia Platatildeo apresenta duas tentativas de resposta para

a questatildeo da causa verdadeira

168

64 Modo proacuteprio de investigaccedilatildeo (99c-101e)

Quando Soacutecrates ainda jovem busca a verdadeira causa das coisas fica

decepcionado com o tipo de resposta totalmente sem sentido apresentada pelos filoacutesofos

da natureza e resolve recorrer a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele chama de

lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς αἰτίας) (99c-

d) O novo modo de investigaccedilatildeo ao contraacuterio do anterior natildeo se baseia nos sentidos

corporais (99d-e) mas em argumentos (εἰς τοὺς λόγους) (99e) Ao longo do diaacutelogo

Platatildeo salienta que haacute coisas como o Belo em si cujo alcance pleno soacute pode ocorrer

atraveacutes da alma sozinha sem a mediaccedilatildeo corporal De alguma maneira a nova

abordagem tem uma ligaccedilatildeo direta com aquilo que jaacute havia sido apresentado ao longo

do diaacutelogo A ligaccedilatildeo fica clara posteriormente a nova abordagem tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de coisas como o belo em si e sabemos que jaacute em 65d Platatildeo

fala da existecircncia de coisas desse tipo

A partir deste ponto Soacutecrates se dispotildee a explicar com mais clareza esse novo

modo de investigaccedilatildeo A chamada autobiografia intelectual de Soacutecrates inicia com o

problema da αἰτία e nesta nova seccedilatildeo o texto deixa claro que a busca de Soacutecrates pela

verdadeira αἰτία continua A partir de agora Platatildeo poderaacute apresentar a sua tentativa de

contruir uma noccedilatildeo platocircnica de αἰτία com o fim de provar a imortalidade da alma

Antes de tudo eacute necessaacuterio observar que Platatildeo procurar deixar claro que toda a

seccedilatildeo que se inicia tem o compromisso expresso de estabelecer princiacutepios para provar a

imortalidada da alma Em 100b8-9 ele explica o objetivo desta seccedilatildeo lsquodemonstrar a

169

causa e descobrir que a alma eacute imortalrsquo (τὴν αἰτίαν ἐπιδείξειν καὶ ἀνευρήσειν ὡς

ἀθάνατον ἡ ψυχή) (100b8-9) Portanto a demonstraccedilatildeo da causa estaacute a serviccedilo da prova

da imortalidade da alma que eacute sem duacutevida o objetivo principal do diaacutelogo Outro

elemento importante nesta seccedilatildeo eacute o estabelecimento de uma hipoacutetese essencial ou

fundamental que eacute introduzida e reafirmada no diaacutelogo

O novo modo de investigaccedilatildeo que rompe completamente com os filoacutesofos da

natureza parte do pressuposto de uma hipoacutetese essencial lsquoFormasrsquorsquoFormasrsquo existem e

as coisas recebem os seus nomes pela sua participaccedilatildeo nelas A hipoacutetese de que existem

coisas como o belo em si nas quais as demais coisas participam passa a ser a condiccedilatildeo

sine qua non para a busca da causa verdadeira Em suma Soacutecrates considera o seguinte

(102a-d)

(i) Deve-se partir da hipoacutetese de que existe algo que eacute belo em si e por si

bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo(ὑποθέμενος εἶναί τι

καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7)

(ii) Admitindo a existecircncia dessas coisas eacute necessaacuterio considerar o seguinte

ldquose existe outra coisa bela aleacutem do que eacute belo em si natildeo eacute bela por causa

de coisa alguma a natildeo ser porque participa daquele belo em sirdquo (εἴ τί

ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ

διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ) (100c3-6) Depois Soacutecrates diz que lsquoeacute

pela beleza que as coisas belas satildeo belasrsquo (100d4-6)

(iii) Platatildeo desenvolve uma ideia de partipaccedilatildeo eacute por participar no belo em

si que as coisas belas satildeo belas Platatildeo desenvolve a sua ideia de

170

participaccedilatildeo utilizando principalmente trecircs palavras lsquoparticipaccedilatildeorsquo

(μετέχω) (100c5) lsquopresenccedilarsquo (παρουσία) (100d5) e lsquocomunhatildeorsquo

(κοινωνία) (100d6)

Com a hipoacutetese fundamental Platatildeo deixa claro que estaacute estabelecendo a noccedilatildeo

de lsquocausarsquo quando Soacutecrates diz que as coisas belas satildeo belas porque participam daquele

belo em sirdquo (100c3-6) finaliza com a pergunta ldquoconcordas com esse tipo de causardquo (τῇ

τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς) (100c6-7) Apesar da nossa divisatildeo para fins didaacuteticos entre

hipoacutetese fundamental e lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo na verdade a hipoacutetese

fundamental eacute a condiccedilatildeo baacutesica para o estabelecimento da lsquoresposta mais segura

poreacutem ignorantersquo

Tendo como base a hipoacutetese fundamental a noccedilatildeo de causa eacute desenvolvida

principalmente a partir das seguintes formulaccedilotildees

(i) Dativo de causa ndash lsquopor causa dersquo eacute bem comum especialmente no

contexto da resposta lsquomais segura poreacutem ignorantersquo para se referir agrave

lsquoFormarsquo como causa τῷ καλῷ (100d7 e2) πλήθει (101b6) and ἡμίσει

(101b7)

(ii) A preposiccedilatildeo διά + accusativo a construccedilatildeo pode ser encontrada em

101a onde Soacutecrates diz que coisas grandes satildeo grandes lsquopor causa da

grandezarsquo (διὰ τὸ μέγεθος) e coisas pequenas satildeo pequenas lsquopor causa da

pequenezrsquo (διὰ τὴν σμικρότητα) e em 101b quando Soacutecrates diz que dez

excede oito διὰ τὸ πλῆθος

171

(iii) O substantivo αἰτίααἴτιον no contexto da autobiografia intelectual de

Soacutecrates em 97c-99c αἰτία aparece pelo menos 19 vezes A partir do

momento em que Soacutecrates afirma que recorreu a uma lsquosegunda

navegaccedilatildeorsquo e ao longo do primeiro esboccedilo de uma noccedilatildeo de causa

(resposta mais segura poreacutem ignorante) αἰτία eacute empregada pelo menos 9

vezes em 99d 100-c 101b-101c

(iv) O verbo ποιέω em 99b100d130

O uso de todas essas formulaccedilotildees nessa etapa do Feacutedon deve indicar que Platatildeo

tem um interesse especial em construir uma noccedilatildeo de lsquocausarsquo embora isto ocorra de

maneira progressiva ao longo desta etapa comeccedilando com uma trivial ideia de αἰτία

especialmente no contexto da lsquoresposta segura poreacutem ignorantersquo e desenvolvendo a

noccedilatildeo no contexto da resposta lsquosegura e inteligentersquo onde Formas realmente produzem

algo nos objetos particulares Mesmo que o mecanismo de causaccedilatildeo natildeo seja

completamente expliacutecito nesse contexto veremos que a ideia de Formas como causa

passa a ser bem mais do que a de mera lsquoculparsquo lsquoresponsabilidade porrsquo Todo esse

esforccedilo platocircnico utilizando todos os meios possiacuteveis para expressar uma noccedilatildeo de

lsquocausarsquo numa soacute etapa do diaacutelogo nos faz rejeitar o pensamento de Vlastos de que

nenhuma dessas formulaccedilotildees eacute utilizada por Platatildeo com o fim de expressar qualquer

noccedilatildeo de causa131

130 Hackfort 1998 p 143-144

131 Vlastos 1969 p 146

172

Nesta etapa a noccedilatildeo fraca trivial de lsquocausarsquo eacute amparada principalmente pelo uso

do dativo numa lista de exemplos apresentados por Platatildeo que satildeo a principal fonte de

explicaccedilatildeo da ideia de lsquoFormarsquo como causa

(i) Beleza ldquoEacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι

τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ καλά) (100d7-8)

(ii) Beleza Grandeza Pequenez ldquoEacute por causa da beleza que as coisas belas

satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ καλά) e ldquoeacute por causa da grandeza que as

coisas grandes se tornam grandes as maiores e por causa da pequenez

que as coisas menores se tornam menoresrdquo (καὶ μεγέθει ἄρα τὰ μεγάλα

μεγάλα καὶ τὰ μείζω μείζω καὶ σμικρότητι τὰ ἐλάττω ἐλάττω) (100e2-

6)

(iii) Dois ldquoE vocecirc gritaria bem alto que natildeo conhece qualquer outra maneira

de cada coisa se originar exceto pela participaccedilatildeo em cada Forma

apropriada na qual venha a participar e nesses casos vocecirc natildeo possui

qualquer outra causa para algo tornar-se dois a natildeo ser a sua participaccedilatildeo

no doisrdquo (καὶ μέγα ἂν βοῴης ὅτι οὐκ οἶσθα ἄλλως πως ἕκαστον

γιγνόμενον ἢ μετασχὸν τῆς ἰδίας οὐσίας ἑκάστου οὗ ἂν μετάσχῃ καὶ ἐν

τούτοις οὐκ ἔχεις ἄλλην τινὰ αἰτίαν τοῦ δύο γενέσθαι ἀλλ᾽ ἢ τὴν τῆς

δυάδος μετάσχεσιν) (101c2-5)

Ainda que todos os indiacutecios textuais sugiram que Platatildeo estaacute desenvolvendo uma

noccedilatildeo de αἰτία eacute realmente difiacutecil entender com precisatildeo o que exatamente significa

173

dizer que ldquoeacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ

πάντα τὰ καλὰ καλά)rdquo (100d7-8) Agrave luz da lsquohipoacutetese das Formasrsquo que o contexto sugere

que se considere o que Platatildeo procura dizer com isto eacute que existe uma uacutenica Forma ndash o

belo em si ndash que eacute causarazatildeoresponsaacutevel (αἰτία) por fazer com que tudo que eacute belo

seja belo por causa da sua participaccedilatildeo na beleza Mas ainda assim natildeo fica claro que

tipo de αἰτία eacute esta e nem como ela seraacute uacuteltil para provar a imortalidade da alma Natildeo haacute

nenhuma indicaccedilatildeo de como entidades metafiacutesicas atuam no mecanismo de causaccedilatildeo

que Platatildeo por alguma razatildeo natildeo explicita

Neste contexto se Forma eacute uma αἰτία ndash e tudo indica que ela eacute ndash isto significa

apenas que as coisas satildeo e se tornam o que elas satildeo atraveacutes da participaccedilatildeo nas Formas

(100b-e 101c) Assim na ausecircncia de informaccedilatildeo suficiente sobre o mecanismo de

causaccedilatildeo apresentado por Platatildeo parece prudente consentir que o filoacutesofo estaacute

trabalhando com o sentido primaacuterio de αἰτία neste contexto que eacute a ideia de

lsquoresponsabilidadersquo ou lsquoacusaccedilatildeorsquo Gallop explica que aplicado a agentes humanos αἰτία

significa responsaacutevel ou culpado (cf 116c8) e o verbo cognato significa acusar

ou culpar Este conceito que estaacute enraizado na noccedilatildeo de responsabilidade humana (cf

98e2-99a4) eacute provavelmente a ideia baacutesica no contexto da primeira resposta ndash a mais

segura poreacutem ignorante132 Portanto quando dizemos que a lsquoFormarsquo eacute a αἰτία estamos

dizendo simplesmente que ela eacute lsquoresponsaacutevel por fazer com que algo seja ou se torne o

que ele eacute pela sua participaccedilatildeo ou comunhatildeo nela como na ideia de que as coisas belas

participam no belorsquo (μετέχει τοῦ καλοῦ) (100c5-6) Essa parece a opccedilatildeo mais razoaacutevel

na ausecircncia de explicaccedilotildees mais detalhadas que possam garantir uma noccedilatildeo de αἰτία

132 Gallop 2002 p169

174

ainda sem um compromisso metafiacutesico profundo Portanto a noccedilatildeo de lsquocausarsquo eacute

bastante limitada e chega ateacute a ser tautoloacutegica lsquoeacute por causa da beleza que todas as

coisas belas satildeo belasrsquo lsquotodas as coisas belas satildeo belas por causa da belezarsquo Certamente

por causa desse vaacutecuo de informaccedilotildees suficientes sobre a noccedilatildeo de lsquocausarsquo e seu

mecanismo de causaccedilatildeo eacute que Platatildeo sugere que essa resposta eacute a mais segura no

sentido de que jaacute aponta para lsquoFormasrsquo como causa rompendo completamente com a

ideia de causa dos filoacutesofos da natureza mas ainda assim eacute ignorante por natildeo ter

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente sendo assim vaga inconsistente e tautoloacutegica

Mas eacute importante lembrar que a maioria dos comentadores acredita que neste

contexto da lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo a noccedilatildeo de causa jaacute deve ser

interpretada agrave luz de uma teoria metafiacutesica completa das Formas sendo as Formas

objetos com existecircncia133 Hackfort em seu comentaacuterio canocircnico do Feacutedon sugere que

a noccedilatildeo de causa que Platatildeo apresenta neste contexto deve ser entendida agrave luz da

doutrina das Formas134

A nossa pesquisa confirma que agora lsquoFormasrsquo podem ser interpretadas como

lsquoFormasrsquo com base no contexto anterior (argumento das afinidades) e contexto imediato

(no proacuteximo passo Platatildeo estabelece uma terminologia padratildeo para lsquoFormasrsquo)

Portanto quando Soacutecrates pela primeira vez hipotetiza a existecircncia de coisas como

lsquobelo em si e por si bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo (100b5-7) ele

mesmo lembra que natildeo estaacute falando de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas daquilo natildeo

havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) No argumento das afinidades as lsquoFormasrsquo satildeo

133 Cf Vlastos 1969 p298

134 Hackfort 1998 p146

175

consistentemente caracterizadas como entidades metafiacutesicas Antes de avanccedilar com a

noccedilatildeo de causa vejamos novamente um breve apanhado de algumas passagens em que

as personagens tratam lsquoFormasrsquo como se jaacute fossem velhas conhecidas e as personagens

pressupotildee um saber a respeito delas como facilmente compreensiacutevel e sem necessidade

de uma fundamentaccedilatildeo detalhada135

bull Primeiro estaacutegio do diaacutelogo pela primeira vez Soacutecrates introduz coisas

como o justo em si no diaacutelogo ldquoafirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo (φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν) (65d4-5) Ainda

que seja a primeira vez que o filoacutesofo apresente esse tipo de coisa e sem

qualquer explicaccedilatildeo adicional Siacutemias parece conhecer bem essas coisas

ldquoPor Zeus claro que simrdquo Soacutecrates complementa ldquoestou falando de

todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila e todas as

demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacuterdquo (τῆς

οὐσίας ὅ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) (65d13-e1) Juntamente com isto haacute

duas questotildees fundamentais sobre essas coisas em si ldquoE alguma vez

vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo ldquoE vocecirc jaacute

alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por meio

do corpordquo(65d-e) Neste contexto as perguntas ainda natildeo estatildeo

comprometidas com uma teoria metafiacutesica A questatildeo levantada eacute

concernente agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento lsquoverrsquo eacute simplesmente uma

135 Schafer 2012 p152

176

referecircncia aos sentidos As coisas sobre as quais fala satildeo captadas pela

alma pura sem a mediaccedilatildeo corporal136

bull Argumento da reminiscecircncia a mesma questatildeo do tipo φαμέν τι εἶναι

volta a ser empregada em 74a9-13 Digamos como presumo que existe

um Igual (φαμέν πού τι εἶναι ἴσον) Soacutecrates se refere ao lsquoigual em si

mesmorsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) que passa a ser o exemplo principal no

argumento (74a 74c 74e) Siacutemias fala que eles natildeo cessam de falar de

coisas como ldquoo Belo o Bom e toda essecircncia dessa naturezardquo (καλόν τέ τι

καὶ ἀγαθὸν καὶ πᾶσα ἡ τοιαύτη οὐσία) (76d) Ao final do argumento

Siacutemias afirma que as duas coisas satildeo necessaacuterias as coisas das quais eles

falavam devem existir (ταῦτα ἔστιν) assim como tambeacutem as nossas

almas antes do nosso nascimento (καὶ τὴν ἡμετέραν ψυχὴν εἶναι καὶ πρὶν

γεγονέναι ἡμᾶς) (76e) Neste contexto jaacute haacute indiacutecios de que Platatildeo estaacute

utilizando uma teoria para apoiar o argumento da reminiscecircncia mas

ainda eacute difiacutecil entender com clareza a distinccedilatildeo entre igual em si e coisas

iguais entre aquilo que eacute nobre e as coisas vulgares e deficientes Eacute

possiacutevel reconhecer no maacuteximo um esboccedilo incipiente de uma teoria

segundo a qual haacute duas classes de coisas uma representada no diaacutelogo

pelo lsquoigual em sirsquo em contraste com a outra classe representa pelas

multiplicidade de lsquocoisas iguaisrsquo as quais satildeo vulgares e deficientes

quando comparadas com o lsquoigual em sirsquo

bull Argumento das afinidades o argumento inicia com um lembrete de

que vatildeo tratar daquela mesma essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) sobre a qual

136 Dancy 2007 p246

177

estavam discutindo antes Mas neste contexto pela primeira vez Platatildeo

apresenta uma consistente caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo O exemplo

primordial no argumento da reminiscecircncia ndash αὐτὸ τὸ ἴσον ndash volta a ser

mencionado ao lado de outros exemplos ldquoO igual em si o belo em si

aquilo que cada coisa eacute em sirdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ

ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d) mas agora se sabe que essas coisas fazem

parte de uma classe de entidades especiais que Platatildeo caracteriza bem

neste argumento porque a prova da imortalidade da alma depende da

semelhanccedila e afinidade entre alma e lsquoFormasrsquo Eacute neste contexto em que

pela primeira vez no diaacutelogo as propriedades de trancendecircncia

invisibilidade imortalidade eternidade uniformidade imutabilidade e

outras propriedades das lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas com detalhes

inclusive num viacutevido contraste com as coisas que integram uma outra

classe de objetos as coisas sensiacuteveis

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento antes de apresentar a sua

hipoacutetese Soacutecrates lembra que vai falar de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas

daquilo natildeo havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) Entatildeo Soacutecrates

hipotetiza que ldquohaacute algo como belo em si e por si bom grande e todas as

demais coisas como essasrdquo (εἶναί τι καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν

καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7) O contexto anterior (argumento

das afinidades) e o contexto imediato (a introduccedilatildeo de uma terminologia

especializada para Formas) indicam que Platatildeo estaacute tratando de entidades

metafiacutesicas

178

bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento o narrador Feacutedon fala que

os amigos de Soacutecrates concordaram com ele de que cada uma das

Formas existe (εἶναί τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b)

Apesar de jaacute termos suporte textual suficiente para entendermos que lsquoFormasrsquo

satildeo entidades metafiacutesicas Formas platocircnicas ainda estamos limitados pela texto que na

ausecircncia de detalhes nos convida a interpretar a noccedilatildeo de causa como sendo a mais

baacutesica possiacutevel ateacute que Platatildeo desenvolva uma noccedilatildeo mais sofisticada

Portanto no iniacutecio natildeo eacute plausiacutevel afirmar que uma ordem superior de realidade

literalmente causa um determinado evento Na ausecircncia de suporte textual e filosoacutefico o

sentido regular da palavra αἰτία ndash ser responsaacutevel ou culpado ndash deve ser preferido

Na proacutexima etapa teremos um contexto renovado sobretudo no que tange agraves Formas

um vocabulaacuterio especializado uma terminologia especiacutefica para Formas aparece pela

primeira vez e se firma no diaacutelogo Aleacutem disso uma explanaccedilatildeo sobre lsquoFormas em sirsquo e

lsquoFormas opostasrsquo traratildeo uma nova compreensatildeo da noccedilatildeo de causa no diaacutelogo

65 Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c

Ateacute agora eacute importante reconhecer que a primeira tentativa de contruir uma

noccedilatildeo de αἰτία aponta para a lsquoFormarsquo como sendo a αἰτία de cada coisa Imputa-se ao

lsquobelo em sirsquo a responsabilidade pelas coisas serem ou tornarem-se o que elas satildeo A

ideia ainda eacute limitada imprecisa e o proacuteprio Platatildeo faz questatildeo de mostrar isto no texto

chamando essa primeira tentativa de mais segura do que qualquer outra tentativa de

encontrar uma causa apresentada pelos filoacutesofos da natureza mas ainda assim

179

lsquoignorantersquo sem fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente Eacute necessaacuterio passar a uma nova

tentativa de construccedilatildeo da noccedilatildeo de causa a partir de 102a Este posterior

desenvolvimento seraacute fundamental para a compreensatildeo do argumento final em si que eacute

introduzido no dialogo apenas em 105c

O texto indica o momento de transiccedilatildeo da primeira para a segunda tentativa de

construir uma noccedilatildeo de causa A conversa inesperada entre Equeacutecrates e o narrador

Feacutedon indicam essa transiccedilatildeo em 102a-b

(i) Equeacutecrates elogia o filoacutesofo pelo brilhante raciociacutenio apresentado

(ii) O narrador Feacutedon ratifica que todos os presentes concordaram com a

exposiccedilatildeo e Equeacutecrates acrescenta que eles que natildeo estiveram laacute

tambeacutem concordaram

(iii) Equeacutecrates pede que o narrador revele o que aconteceu depois

(iv) Antes de revelar o que aconteceu depois o narrador Feacutedon salienta que a

discussatildeo seguinte (uacuteltimo argumento) soacute ocorreu depois que os amigos

concordaram que Formas existem e que por participar nelas as demais

coisas recebem o seu nome

O primeiro passo para o desenvolvimento desta seccedilatildeo eacute a reafirmaccedilatildeo da

hipoacutetese receacutem-apresentada mas agora com uma designaccedilatildeo especial para lsquoFormasrsquo

bull lsquoE foi acordado que cada uma das Formas existersquo (καὶ ὡμολογεῖτο εἶναί

τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b1) e que as demais coisas participando delas

180

(Formas) levam o seu nomersquo (καὶ τούτων τἆλλα μεταλαμβάνοντα αὐτῶν

τούτων τὴν ἐπωνυμίαν ἴσχειν (102b2-3)

Portanto a primeira coisa que Platatildeo procura estabelecer eacute que a hipoacutetese das

lsquoFormasrsquo lsquoFormasrsquo continua sendo essencial nesta nova etapa A lsquooutra respostarsquo que

seraacute apresentada tambeacutem depende dessa hipoacutetese essencial que se estabelece como

condiccedilatildeo sine qua non para a construccedilatildeo de uma noccedilatildeo de causa que sirva de base para

a prova final da imortalidade da alma em 105c-107b)

A outra observaccedilatildeo fundamental eacute que pela primeira vez no diaacutelogo Platatildeo

utiliza o termo εἶδος no diaacutelogo para designar aquilo que ele vinha chamando de lsquocoisa

em sirsquo lsquoessecircnciarsquo lsquoaquilo que eacute lsquoo belo em sirsquo Portanto as formulaccedilotildees natildeo

terminoloacutegicas satildeo utilizadas ateacute o contexto da lsquoresposta segura mas ignorantersquo e

somente a partir de 102b observamos a tentativa de fixaccedilatildeo da terminologia Platatildeo

finalmente utiliza um termo especiacutefico ndash εἶδος ndash para marcar a especificidade da

entidade que eacute a lsquocausarsquo das coisas Os termos εἶδος e ἰδέα satildeo os principais termos para

designar essas entidades neste contexto Em 102b-106d temos a sugestatildeo de que satildeo

termos intercambiaacuteveis Aleacutem deles a palavra μορφή tambeacutem aparece carregada do

mesmo significado numa passagem em que Platatildeo fala de τὸ εἶδος e μορφή (103e2-7)

O termo εἶδος jaacute havia aparecido antes no diaacutelogo mas em momento algum para

designar diretamente os elementos singulares da filosofia platocircnica ndash as Formas

inteligiacuteveis

181

bull lsquoa imagem do amadorsquo (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς) (72d9) nesta passagem o

termo possui a sua ideia baacutesica ndash o aspecto exterior a forma visiacutevel de

algo

bull lsquoexistem duas classes de seres a visiacutevel e a invisiacutevelrsquo (δύο εἴδη τῶν

ὄντων τὸ μὲν ὁρατόν τὸ δὲ ἀιδές) (79a6) o termo εἶδος eacute utilizado para

expressar a ideia de lsquoclassesrsquo ou lsquogecircnerosrsquo de existecircncia

bull lsquoa menos que a nossa alma existisse em algum lugar antes de assumir

essa forma humana (εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ

ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) vaacuterias vezes εἶδος eacute empregado para

expressar a ideia que fica estabelecida no argumento das reminiscecircncias

ndash a alma existe antes de passar a adquirir a lsquoformarsquo o lsquoaspectorsquo ou

mesmo a lsquoespeacuteciersquo humana (Cf76c 79b 87a 92b)

bull lsquoSiacutemias tem duacutevidas e tambeacutem receia que a alma seja algo mais divino e

mais belo do que o corpo e ainda assim pereccedila por ser um tipo de

harmoniarsquo (Σιμμίας ἀπιστεῖ τε καὶ φοβεῖται μὴ ἡ ψυχὴ ὅμως καὶ

θειότερον καὶ [91d] κάλλιον ὂν τοῦ σώματος προαπολλύηται ἐν

ἁρμονίας εἴδει οὖσα) (91c9-d1-2) Aqui εἶδος expressa mais uma vez a

ideia de um lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de existecircncia A alma poderia perecer pelo

seu gecircnero de existecircncia ser lsquoum tiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de harmonia

bull lsquoSe ele me mostrasse essas coisas eu estaria pronto a parar de buscar

qualquer outro tipo de causarsquo (καὶ εἴ μοι ταῦτα ἀποφαίνοι

παρεσκευάσμην ὡς οὐκέτι ποθεσόμενος αἰτίας ἄλλο εἶδος) (98a1-2)

Esta eacute uma referecircncia a Anaxaacutegoras segundo o qual o νοῦς seria o

responsaacutevel pela ordenaccedilatildeo e causa de todas as coisas (νοῦς ἐστιν ὁ

182

διακοσμῶν τε καὶ πάντων αἴτιος) (Cf 97c1-2) O termo εἶδος expressa

meramente um lsquotiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de causa Se Anaxaacutegoras pudesse

demonstrar a αἰτία de todas as coisas Soacutecrates dispensaria a busca por

outro lsquotiporsquo de causa Mas o filoacutesofo se desponta com Anaxaacutegoras e

pouco depois utiliza o termo εἶδος com o mesmo sentido para falar de um

lsquooutro tipo de causarsquo aquele que Soacutecrates encontra por si mesmo

Soacutecrates entatildeo passa a demonstrar o lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de causa (τῆς

αἰτίας τὸ εἶδος) que descobriu a partir de proacutepria investigaccedilatildeo

investigaccedilatildeo (100b4-6) lsquoesse outro tipo de causarsquo tem como hipoacutetese

fundamental a existecircncia de algo como lsquoo Belo em sirsquo lsquoo Bom em sirsquo

Portanto a partir de 102b temos pela primeira vez no diaacutelogo os termos εἶδος e

ἰδέα (utilizados intercambiavelmente) para falar de entidades inteligiacuteveis que satildeo

responsaacuteveis por fazer com que as coisas sejam ou se tornem o que elas A partir de

agora os termos εἶδος e ἰδέα satildeo empregados consistentemente como terminologia

especializada para Formas Vejamos uma tabela com as ocorrecircncias de termos para

Formas neste contexto e depois uma breve apreciaccedilatildeo considerando o contexto de cada

passagem

102b1 τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν

102d6 αὐτὸ τὸ μέγεθος

183

103e3 αὐτὸ τὸ εἶδος

103e5 τὴν ἐκείνου μορφὴν

104d9-10 ἐκείνῃ τῇ μορφῇ

104b9 ἐκείνην τὴν ἰδέαν

104c7 τὰ εἴδη τὰ ἐναντία

104d2 τὴν αὑτοῦ ἰδέαν

104d6 ἡ τῶν τριῶν ἰδέα

104d9 ἡ ἐναντία ἰδέα

104e1 ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα

105d13

τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν

106d6 τὸ τῆς ζωῆς εἶδος

184

Vejamos de forma bastante resumida cada exemplo em seu contexto antes de

passarmos agrave anaacutelise desta seccedilatildeo

bull 102b1 esta primeira ocorrecircncia de εἶδος revela o termo aplicado

diretamente a entidades que possuem existecircncia (cada εἶδος existe) e

Platatildeo procura mostrar a relaccedilatildeo entre εἶδος e as coisas a participaccedilatildeo

das coisas em um εἶδος eacute a causa delas possuiacuterem as suas qualidades e

assim puderem ser chamadas pelo seu nome apropriado

bull 103e2-5 Platatildeo explica a relaccedilatildeo entre a entidade inteligiacutevel e as coisas

A Forma em si (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de levar o seu nome para sempre

(εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον) Mas existe tambeacutem outra coisa que natildeo eacute uma

lsquoForma em sirsquo (αὐτὸ τὸ εἶδος) mas tem o privileacutegio de levar um nome

porque possui sempre aquela μορφή (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί) O

contexto sugere que αὐτὸ τὸ εἶδος e μορφή se referem a Formas Esse

jogo entre palavras de mesmo domiacutenio semacircntico eacute repetido novamente

em 104d9-10 mas com ἰδέα e μορφή

bull 104b9-c1 Platatildeo introduz o termo ἰδέα para designar lsquoFormarsquo as coisas

que carregam consigo uma ἰδέα oposta tambeacutem natildeo toleram a ἰδέα

oposta rival Em 104c7 ele desenvolve a explicaccedilatildeo dizendo que natildeo satildeo

apenas τὰ εἴδη τὰ ἐναντία (as Formas opostas) que natildeo toleram a

aproximaccedilatildeo do oposto rival mas os objetos particulares que participam

numa Forma oposta

bull 104d1-3 Quando uma lsquoForma em sirsquo ocupa algo ela lhe impotildee a proacutepria

Forma dela (τὴν αὑτοῦ ἰδέαν αὐτὸ) e uma Forma oposta Em 104d9-10

185

Soacutecrates salienta que a respeito desse tipo de coisa (as coisas ocupadas

por lsquoFormas em sirsquo) a Forma oposta (ἡ ἐναντία ἰδέα) jamais viraacute sobre

aquela Forma rival (ἐκείνῃ τῇ μορφῇ) que estaacute nela Aqui temos ἰδέα e

μορφή como termos intercambiaacuteveis

bull 104d6 A etapa seguinte providencia um exemplo numeacuterico que figura

como chave hermenecircutica para a compreensatildeo da passagem Pela

primeira vez se apresenta de maneira especiacutefica a Forma de algo a

Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) Acompanhando a ideia anterior

quando Forma do trecircs ocupa algo ela faz com que ele seja

necessariamente trecircs e iacutempar A Forma do trecircs traz para a coisa que

ocupa (i) a proacutepria Forma ndash razatildeo pela qual ela eacute necessaacuteriamente trecircs

(ii) a Forma oposta correspondente ndash a Forma Iacutempar A Forma rival do

par natildeo poderaacute vir sobre a Forma oposta que nela estaacute Formas opostas

natildeo podem coexistir naquilo que eacute ocupado pela Forma em si e pela

Forma oposta que a Forma em si traz Temos um exemplo claro em

104e1 lsquoassim a Forma do par jamais sobreviraacute ao trecircsrsquo (ἐπὶ τὰ τρία ἄρα

ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει)

bull 105d13-14 o mesmo exemplo ndash a Forma do par ndash eacute relembrado no

argumento final lsquoO que haacute pouco concordaacutevamos que natildeo admite a

Forma do parrsquo (τὸ μὴ δεχόμενον τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν τί νυνδὴ

ὠνομάζομεν) Cebes responde o iacutempar (105d13-14) Este exemplo daacute

iniacutecio a uma lista que finda com a conclusatildeo de que a alma eacute imortal o

justo natildeo admite a injusticcedila a cultura natildeo admite o inculto o imortal natildeo

186

admite a morte a alma natildeo admite a morte Jaacute que a alma natildeo admite a

morte ela eacute imortal (105d16-e7)

bull 106d5-7 ao final Soacutecrates relaciona a alma com trecircs coisas que satildeo

imortais e nunca perecem o deus (ὁ θεὸς) a proacutepria Forma de vida (αὐτὸ

τὸ τῆς ζωῆς εἶδος) e tudo mais que seja imortal (τι ἄλλο ἀθάνατόν ἐστιν)

(106d5-7) Esse tipo de contruccedilatildeo lsquoa Forma de Xrsquo aparece apenas trecircs

vezes (i) a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) (104d6) A Forma do par (ἡ

τοῦ ἀρτίου ἰδέα) (104e1 105d13-14) A Forma da vida (τὸ τῆς ζωῆς

εἶδος) (106d5-6)

651 A grandeza casual (102b-d)

A questatildeo inicial nesta etapa eacute lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor

do que Feacutedonrsquo (102b) Antes de prosseguir na anaacutelise conveacutem observar que ela nos

remete ao contexto anterior e sugere a evoluccedilatildeo filosoacutefica da argumentaccedilatildeo quando

Soacutecrates buscava as causas das coisas sob a influecircncia dos filoacutesofos da natureza

acreditava que estava correto quando pensava que ao colocar um homem alto ao lado de

um homem baixo aquele se apresentava maior do que o menor pela altura da cabeccedila

(96e) Mas quando descobre seu proacuteprio modo de filosofar e descobre a verdadeira

causa das coisas ele sugere que natildeo se deve admitir que algueacutem eacute maior do que outro

pela cabeccedila mas lsquoeacute por causa da grandeza que as coisas grandes satildeo grandesrsquo (μεγέθει

ἄρα τὰ μεγάλα μεγάλα) (100e-101a) Essa questatildeo eacute retomada no uacuteltimo argumento Eis

os trecircs estaacutegios da discussatildeo

187

(i) X eacute maior do que Y pela cabeccedila (resposta completamente sem sentido)

(96d-e 101a)

(ii) X eacute maior do que Y pela grandeza (lsquoresposta mais segura poreacutem

ignorantersquo) (100e-101a)

(iii) X eacute maior do que Y pela grandeza acidental (102c-d)

(iv) lsquoA Grandeza essencialrsquo (resposta segura e inteligente) (102d-e)

O problema que se coloca agora eacute que Siacutemias eacute ao mesmo tempo maior do que

Soacutecrates e menor do que Feacutedon Platatildeo procura explicar em termos da relaccedilatildeo entre as

coisas como no caso em que X (Siacutemias) eacute maior do que Y (Soacutecrates) e Y (Soacutecrates) eacute

menor do que X (Siacutemias) O primeiro ponto eacute reafirmar a rejeiccedilatildeo do tipo de lsquocausarsquo

apresentado pelos filoacutesofos da natureza Natildeo eacute pela cabeccedila que algueacutem eacute maior do que

outro Esta rejeiccedilatildeo eacute expressa nos termos

bull Natildeo eacute pela natureza de Siacutemias natildeo eacute por Siacutemias ser Siacutemias (ou nos

termos dos filoacutesofos da natureza natildeo eacute simplesmente pela cabeccedila de

Siacutemias) que ele eacute maior

bull Natildeo eacute por Feacutedon ser Feacutedon (natildeo eacute por Feacutedon ser maior natildeo eacute pela

cabeccedila de Feacutedon) que Siacutemias eacute menor do que ele

Existe outro erro que Platatildeo nos previne de cometer achar que ao dizer

lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor do que Feacutedonrsquo isto corresponde

188

literalmente agrave verdade (102b9-c1) Neste ponto Platatildeo introduz uma ideia de lsquograndeza

casualrsquo que natildeo pode ser tomada como a verdade final

bull Siacutemias eacute maior do que Soacutecrates mas lsquopela grandeza que ele casualmente

temrsquo (ἀλλὰ τῷ μεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων) (102c1-3)

Essa grandeza casual se mostra apenas nas relaccedilotildees a grandeza em Siacutemias

excede a pequenez em Soacutecrates enquanto a pequeneza em Siacutemias eacute excedida pela

grandeza em Feacutedon A grandeza ou pequenez em Siacutemias eacute o produto do nosso ato de

comparaacute-lo com outro Soacutecrates entatildeo escolhe um exemplo em que Siacutemias natildeo eacute nada

aleacutem do centro ldquoacidentalrdquo de duas relaccedilotildees opostas grandeza e pequenez137

Esse tipo de lsquoqualidade acidentalrsquo que certos elementos possuem nas relaccedilotildees

com outros jaacute foi sugerido no argumento das reminiscecircncias pedras e gravetos agraves vezes

parecem iguais para uns e desiguais para outros Nesta ocasiatildeo Platatildeo dirige a atenccedilatildeo

para lsquoo Igual em sirsquo salientando que existe uma diferenccedila entre o Igual em si e as coisas

iguais (74b-c) Na passagem que agora analisamos Platatildeo inicia com Siacutemias e suas

qualidades casuais e faz um desvio para o elemento que realmente importa nesta seccedilatildeo

lsquoa grandeza em sirsquo Como no argumento das reminiscecircncias Platatildeo poderia muito bem

dizer lsquoa grandez em sirsquo eacute diferente de dizer que algo eacute grande em relaccedilatildeo a alguma

outra coisa Agora estamos tratando de uma entidade especiacutefica e responsaacutevel por outro

tipo de qualidade

137 Cf Burger 1984 p 162

189

OrsquoBrien jaacute havia sugerido Platatildeo comeccedila com uma vaga distinccedilatildeo entre uma

grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) que ele entende como um tipo de lsquograndeza

essencialrsquo e uma grandeza que Siacutemias casualmente possui (ὃ τυγχάνει ἔχων) para

introduzir uma distinccedilatildeo entre lsquoqualidades acidentaisrsquo e lsquoqualidades essenciaisrsquo que se

estabeleceraacute como elemento crucial na prova de Platatildeo (102c) 138 Esta explanaccedilatildeo

continua bastante uacutetil com a uacutenica ressalva de que natildeo vemos indiacutecio suficiente de que

ao falar de grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) Platatildeo jaacute esteja introduzindo a ideia de

lsquograndeza essencialrsquo Platatildeo trata dessa lsquograndeza essencialrsquo em contraste com a

lsquograndeza acidentalrsquo apenas com a introduccedilatildeo da lsquograndeza em sirsquo pouco depois (102d)

A expressatildeo lsquopor naturezarsquo eacute completamente trivial remete ao aspecto fiacutesico (a cabeccedila

como diriam os filoacutesofos da natureza)139

OrsquoBrien tambeacutem afirma que Platatildeo natildeo tem vocabulaacuterio teacutecnico para lsquoacidentalrsquo

e lsquoessencialrsquo e a maneira como Platatildeo expressa a presenccedila dessa qualidade essencial eacute o

uso de lsquosemprersquo e lsquonuncarsquo Alguns elementos carregam qualidades essenciais

perpetuamente

138 OrsquoBrien 1967 p199-200

139 Hackfort (1998 p154) rejeita a tese de OrsquoBrien segundo ele natildeo haacute qualquer indicaccedilatildeo de

que Platatildeo esteja fazendo uma distinccedilatildeo entre predicados essenciais e acidentais Segundo ele o

texto sugere que Siacutemias seria um depoacutesito de Formas Siacutemias eacute concebido como natildeo mais do

que um conteiner de formas um conteiner que sempre permanece o que eacute mas no qual residem

vaacuterias formas entre as quais dois opostos ndash grandeza e pequenez Essa tese de que Siacutemias eacute um

conteiner de Formas enfrenta pelo menos dois problemas baacutesicos mas estaacute claro no texto que a

Forma soacute aparece em 102d (a grandeza em si) e que essa ideia de um depoacutesito de Formas que

admite e acolhe em si Formas opostas (grandeza e pequenez) parece contrariar aquilo que seraacute

dito posteriormente opostos deixam o posto ou perecem na chegada do seu respectivo oposto

190

(i) O fogo eacute sempre quente e nunca frio

(ii) A neve eacute sempre fria e nunca quente

(iii) Trecircs eacute sempre iacutempar e nunca par

(iv) Dois eacute sempre par e nunca iacutempar

(v) E afinal Soacutecrates afirma que a alma estaacute sempre viva e nunca morta 140

Esta qualidade essencial perpeacutetua depende das Formas No argumento das

afinidades Platatildeo jaacute enfatiza que as lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado enquanto objetos particupares estatildeo sempre mudando (78c-e) Agora Platatildeo

mostraraacute que as Formas satildeo as responsaacuteveis pela qualidade essencial (algo que sempre

um item carrega consigo) de certos itens com os quais ela se relaciona Toda a discussatildeo

eacute conduzida para o sujeito principal deste contexto a grandeza em si

652 A Grandeza em si

Siacutemias eacute apenas lsquoacidentalmentersquo maior do que Soacutecrates Por outro lado existem

elementos que apresentam qualidades essenciais como diraacute Soacutecrates depois trecircs eacute

essencialmente iacutempar O ponto central nesta etapa eacute que os objetos particulares satildeo

constituiacutedos de qualidades que eles casualmente adquirem e perdem de acordo com as

suas relaccedilotildees ao longo do tempo qualidades que chamariacuteamos de acidentais Pode ser

que em algum periacuteodo do tempo Siacutemias fosse menor do que Soacutecrates e maior do que

140 OrsquoBrien 1967 p199-200

191

Feacutedon e em outro periacuteodo maior do que Soacutecrates e menor do que Feacutedon Em um dado

momento Siacutemias ocorre de ter uma qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e

Soacutecrates e em outro dado momento essa qualidade acidental eacute perdida para dar lugar a

outra qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e Soacutecrates Mas a qualidade essencial

eacute aquilo que um objeto particular possui atraveacutes da sua relaccedilatildeo com a Forma cujo

caraacuteter eacute singular e se mostra a mesma em todo tempo e em todas as relaccedilotildees Esta

discussatildeo inicial nos leva diretamente para a Forma ndash a lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ

μέγεθος) (102d6-8)

653 A Grandeza em si e a grandeza em noacutes

Possuidor de qualidades acidentais Siacutemias pode ser ao mesmo tempo μέγεθος

καὶ σμικρότητα (102c4-5) e possuir tanto o nome pequeno quanto o grande (102c11-

12) Mas o mesmo natildeo pode acontecer com lsquoa grandeza em sirsquo ou com lsquoa grandeza em

noacutesrsquo (102d)

bull A grandeza em si nunca admite ser ao mesmo tempo grande e pequena

bull A grandeza em noacutes jamais aceita o pequeno (oposto)

Eacute neste ponto que Platatildeo apresenta o princiacutepio da incompatibilidade de opostos

um oposto nunca seraacute seu oposto Existem coisas que jamais apresentam a

versatilidade de Siacutemias com suas qualidades acidentais ndash grandeza e pequenez ao

mesmo tempo ndash por causa da sua relaccedilatildeo com a lsquoForma em sirsquo e lsquoa Forma em noacutesrsquo

192

O termo αὐτὸ τὸ μέγεθος certamente eacute uma referecircncia a uma Forma mas natildeo

temos detalhes para saber se Platatildeo faz uma distinccedilatildeo no diaacutelogo entre Formas

transcendentes e Formas imanentes ao falar de lsquograndeza em sirsquo e lsquograndeza em noacutesrsquo

Mas essa distinccedilatildeo entre αὐτὸ τὸ μέγεθος e τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος estaacute longe de ser clara no

diaacutelogo natildeo fica claro se Platatildeo estaacute falando de uma Forma transcendente e de uma

Forma imanente e que o status ontoloacutegico da primeira diferente do da segunda como

Keyt defende inclusive afirmando que a Forma transcendente eacute por natureza

indestrutiacutevel enquanto a Forma imanente pode ser destruiacuteda141 Mas na verdade ateacute

agora nem mesmo sabemos ao certo se τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma referecircncia a Formas

imanentes142 Apenas no desenvolvimento da discussatildeo eacute que Platatildeo deixaraacute claro que

τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma Forma Apenas a partir de 104d eacute que temos a explicaccedilatildeo

completa existem Formas que ocupam um particular e que carregam consigo outra

Forma Mesmo nesse contexto seraacute difiacutecil entender a distinccedilatildeo no status ontoloacutegico das

duas Formas Mas Keyt estaacute parcialmente correto em ao observar que o contexto nos

levaraacute a pensar que a Forma na coisa (o que poderiacuteamos chamar de Forma imanente)

sofre uma experiecircncia negativa ndash destruiccedilatildeo ndash com a chegada da Forma oposta Mas eacute

bom lembrar que essa destruiccedilatildeo talvez natildeo seja literal porque a ideia estaacute vinculada e

se expressa por meio da metaacutefora militar Ainda assim em momento alguma o texto

sugere que a Forma que traz consigo a outra Forma pode sofrer destruiccedilatildeo a partir de

104d a metaacutefora militar perde a sua forccedila Em vez da ameaccedila de uma oposta rival que

pode destruir a Forma que ocupa um objeto temos uma Forma que natildeo admite em

141 Keyt 1963 p168

142 Cf Gallop 2002 p 195

193

qualquer hipoacutetese a ameaccedila de uma Forma oposta rival Mas ao final Platatildeo natildeo deixa

claro se temos aqui a claacutessica distinccedilatildeo entre Forma transcendente e imanente Agora

neste contexto inicial o que eacute essencial eacute observar que Platatildeo marca a distinccedilatildeo entre

duas coisas lsquoa Forma em sirsquo e lsquoalgo em noacutesrsquo E a repeticcedilatildeo desta distinccedilatildeo sugere que

ela tem importacircncia nesta etapa

bull a grandeza em noacutesrsquo (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος) (102d6-8)

bull o pequeno em noacutes (τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν) (102de5-6)

bull o oposto que estaacute em noacutes (τὸ ἐν ἡμῖν) (103b4-5)

Este algo lsquoem noacutesrsquo (ἐν ἡμῖν μέγεθος) nem sempre eacute intepretado como Forma

aleacutem de Formas imanentes pode tambeacutem ser interpretada como um tipo especial de

particular ou ainda como um elemento imanente que nem eacute uma Forma nem mesmo um

particular

bull OrsquoBrien entende que algo ἐν ἡμῖν natildeo eacute uma Forma mas um tipo

especial de particular que ele chama de lsquoparticularizaccedilatildeorsquo que como as

Formas natildeo podem admitir seus opostos Mas seu status ontoloacutegico se

manteacutem ndash eles satildeo particulares natildeo um terceiro tipo de entidade143

143 OrsquoBrien 1967 p201-202

194

Mas a nossa leitura baseada no contexto imediato tende a privilegiar a ideia de

que haacute dias Formas em jogo aqui ndash a Forma em si e a Forma em noacutes ndash ainda que Gallop

advirta que a terminologia apresentada por Platatildeo natildeo eacute suficiente para garantir uma

distinccedilatildeo consistente entre Formas lsquoimanentesrsquo e lsquotranscendentesrsquo (embora o contexto

tambeacutem natildeo negue essa ideia)144 Alguns comentadores tendem a enfatizar que Formas

no Feacutedon satildeo Formas imanentes

bull Hackfort entende que ateacute mesmo lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ μέγεθος)

(102d6-8) eacute uma referecircncia a uma Forma imanente porque Soacutecrates estaacute

aqui lidando com isto elementos que se aproximam e residem em

objetos fiacutesicos145

Mas sabemos que eacute possiacutevel que Platatildeo assuma que Formas possuem existecircncia

proacutepria peculiar e independente e ainda assim eacute possiacutevel que elas estejam presentes nas

coisas O inteacuterprete do Feacutedon precisa lidar constantemente com as lacunas deixadas por

Platatildeo num diaacutelogo cujo objetivo natildeo eacute apresentar uma teoria das Formas mas provar a

imortalidade da alma

Mas o ponto essencial eacute que duas Formas estatildeo em jogo aqui lsquoa gradeza em sirsquo

e lsquoa grandeza em noacutesrsquo satildeo Formas O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao

ontoloacutegica entre a lsquoForma em sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica

144 Gallop 2002 p195

145 Hackfort 1998 p150

195

entre elas ndash uma Forma suprema e uma Forma subordinante Essa passagem introduz

um princiacutepio que seraacute desenvolvido apenas em 104d

654 Incompatibilidade de opostos

O princiacutepio que agora Platatildeo se esforccedila para apresentar eacute o da incompatibilidade

dos opostos enquanto Siacutemias pode participar na grandeza e pequenez ao mesmo tempo

nem a lsquograndeza em sirsquo nem lsquoa grandeza em noacutesrsquo aceitaraacute em condiccedilatildeo o seu oposto

Platatildeo expotildee a noccedilatildeo de incompatibilidade de opostos apresentando uma seacuterie de

exemplos ao longo da lsquoresposta segura e inteligente (102d-e)

bull A grandeza em si jamais quer ser grande e pequena ao mesmo tempo

(αὐτὸ τὸ μέγεθος οὐδέποτ᾽ ἐθέλειν ἅμα μέγα καὶ σμικρὸν εἶναι) (102d5-

7)

bull A grandeza em noacutes jamais admite o pequeno e nem quer ser excedida (τὸ

ἐν ἡμῖν μέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σμικρὸν οὐδ᾽ ἐθέλειν

ὑπερέχεσθαι) (102d7-9)

bull Aquilo que eacute grande natildeo ousa ser pequeno (ἐκεῖνο δὲ οὐ τετόλμηκεν

μέγα ὂν σμικρὸν εἶναι) (102e5-6)

bull Por semelhante modo o pequeno em noacutes natildeo quer de modo algum ser ou

tornar-se grande (ὡς δ᾽ αὕτως καὶ τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν οὐκ ἐθέλει ποτὲ

μέγα γίγνεσθαι οὐδὲ εἶναι) (102e5-6)

bull Nem qualquer dos opostos pode ao mesmo tempo permanecer o que era

e ser ou se tornar o seu oposto mas parte em retirada ou perece ao sofrer

196

esse golpe (οὐδ᾽ ἄλλο οὐδὲν τῶν ἐναντίων ἔτι ὂν ὅπερ ἦν ἅμα

τοὐναντίον γίγνεσθαί τε καὶ εἶναι ἀλλ᾽ ἤτοι ἀπέρχεται ἢ ἀπόλλυται ἐν

τούτῳ τῷ παθήματι) (102e8-103a2)

bull O oposto em si de modo algum viria a ser oposto de si mesmo nem o

oposto em noacutes nem o oposto na natureza (αὐτὸ τὸ ἐναντίον ἑαυτῷ

ἐναντίον οὐκ ἄν ποτε γένοιτο οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

(103b4-5)

bull () O oposto jamais seraacute oposto de si mesmo (μηδέποτε ἐναντίον ἑαυτῷ

τὸ ἐναντίον ἔσεσθαι) (103c7-8)

Platatildeo cuidadosamente utiliza uma metaacutefora militar como observa Burnet para

ilustrar essa incompatibilidade146 A lsquoForma em noacutesrsquo e a lsquoForma oposta rivalrsquo satildeo

caracterizados como se fossem inimigos em confronto num campo de batalha quando

um combatente avanccedila o outro eacute obrigado a partir em retirada ou acaba perecendo na

chegada do inimigo Esta viacutevida metaacutefora eacute aplicada incialmente para os opostos

grandeza e a pequenez Quando a pequenez ndash o oposto (τὸ ἐναντίον) da grandeza ndash

avanccedila sobre ela a grandeza possui apenas duas opccedilotildees (102d9-102e2)

(i) Fugir e partir em retirada (ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν)

(ii) Ou sobrevindo a pequenez ser eliminada (ἢ προσελθόντος ἐκείνου

ἀπολωλέναι)

146 Cf Burnet p 102

197

Sendo assim se alguma Forma estaacute em uma determinada coisa essa coisa natildeo

admitiraacute qualquer Forma oposta ela bateraacute em retirada ou pereceraacute

655 Objeccedilatildeo de um anocircnimo (103a-103c)

Depois de apresentar o princiacutepio da incompatibilidade de opostos um

interlocutor anocircnimo tenta relacionar o argumento presente com o primeiro argumento

apresentado ndash argumento ciacuteclico ndash e Soacutecrates aproveita para apresentar as distinccedilotildees

baacutesicas sobretudo explicando que a noccedilatildeo de opostos agora eacute completamente nova

antes se falava de coisas grandes mas agora da grandeza em si A distinccedilatildeo eacute

apresentada em 103b

(i) Primeiro argumento a coisa oposta proveacutem de seu oposto (ἐκ τοῦ

ἐναντίου πράγματος τὸ ἐναντίον πρᾶγμα γίγνεσθαι)

(ii) Uacuteltimo argumento o oposto em si (αὐτὸ τὸ ἐναντίον) jamais pode ser

oposto de si mesmo nem o que estaacute em noacutes (οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν) nem o que

estaacute na natureza (οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)

656 Fogo calor neve e frio (103c-d)

Na continuaccedilatildeo Platatildeo enfatiza o papel do portador de opostos O princiacutepio

tambeacutem seraacute aplicado a ele Haacute principalmente trecircs elementos em cena nesta etapa

bull Forma oposta

198

bull Portador da Forma oposta

bull Forma oposta rival

Sabemos que nem a Forma em si nem a Forma oposta podem admitir a Forma

oposta rival Sabemos o que acontece a metafoacutera militar continua operando neste

contexto Mas agora Platatildeo chama atenccedilatildeo para a reaccedilatildeo do portador do oposto quando

a Forma oposta se aproxima o portador do oposto (que natildeo eacute uma Forma) e a Forma

que ele carrega consigo teratildeo de partir em retirada ou perecer Isto ficaraacute claro em 104b

mesmo a coisa que natildeo eacute um oposto mas carrega consigo um oposto natildeo admite a

Forma oposta rival O nuacutemero trecircs (natildeo eacute uma Forma) natildeo admite a Forma oposta rival

ndash par ndash porque carrega consigo a Forma iacutempar Neste caso a metafoacutera militar permanece

viva Seria razoaacutevel pensar num combatente que natildeo possui um inimigo especiacutefico mas

por forccedila de alianccedila estaacute junto ao aliado num campo de batalha e o inimigo do seu

aliado passa a ser o seu inimigo ao se aproximar tambeacutem teraacute de bater em retirada ou

perecer

Platatildeo apresenta uma seacuterie de exemplos nesta seccedilatildeo De iniacutecio temos uma lista

de quatro elementos distintos fogo calor neve e frio Agora fogo e neve satildeo portadores

de opostos e na relaccedilatildeo com as Formas opostas que carregam tambeacutem natildeo admitiratildeo o

oposto rival Os primeiros exemplos satildeo os seguintes em 103c-d

(i) A neve o frio o oposto do frio ndash o calor a neve eacute diferente do frio que

carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do frio ndash o calor ndash a neve

199

se retira ou eacute destruiacuteda Portanto a neve natildeo admite o oposto do frio que

carrega consigo ndash o calor

(ii) O fogo o calor o oposto do calor ndash o frio o fogo eacute diferente do calor

que carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do calor ndash o frio ndash ou

se retira ou eacute destruiacutedo Nesta etapa existe um reforccedilo aleacutem de recusar o

oposto do calor que carrega consigo o fogo jamais permaneceraacute o

mesmo quando se aproxima a frieza ndash jamais seraacute fogo e frio ao mesmo

tempo A ideia lembra a que aparece em 103a nenhum oposto enquanto

permanece o mesmo pode ser ou tornar-se no seu oposto Agora o

princiacutepio tambeacutem se aplica agravequilo que carrega consigo um oposto

Os comentadores debatem se fogo e neve satildeo Formas ou natildeo neste contexto

especialmente se forem considerados no mesmo niacutevel que o exemplo numeacuterico lsquotrecircsrsquo

que seraacute apresentado no proacuteximo passo no diaacutelogo

(i) Vlastos entende que tudo eacute referecircncia a Formas nesta passagem fogo

neve quente frio147

(ii) Hackfort afirma que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo lsquoformas imanentesrsquo que podem

residir em objetos concretos sendo necessaacuterio usar a letra minuacutescula

inicial para distingui-la da Forma transcendente Mas sugere Hackfort

147 Vlastos 1969 p318

200

sugere que Platatildeo provavelmente teria achado complicado especificar

neste ponto o que ele tinha em mente 148

(iii) OrsquoBrien sugere que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo devem ser entendidos como

particularizaccedilotildees da Forma mas pouco depois admite que a verdade eacute

que na presente passagem natildeo podemos dizer se lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo uma

lsquoformarsquo ou uma lsquoparticularizaccedilatildeo da formarsquo149

(iv) Burnet salienta que natildeo foi sugerido em momento algum que o fogo e a

neve satildeo Formas e parece improvaacutevel que sejam assim considerados

Por outro lado trecircs que para o propoacutesito do presente argumento estaacute no

niacutevel do fogo e da neve eacute reconhecido como Forma Burnet entatildeo

ressalta que eacute essa incerteza que cria todas as dificuldades da presente

passagem150

Apesar da incerteza que a falta de detalhes do texto traz tomaremos a posiccedilatildeo de

que nesses exemplos em 105b-c natildeo temos Forma como a a Forma do fogo por

exemplo A nossa conclusatildeo decorre da seguinte observaccedilatildeo no Feacutedon haacute Formas que

trazem Formas opostas para aquilo que ocupam (104d) mas nunca Formas que

participam em Formas e este seria o caso se admitiacutessemos a Forma do fogo segundo

esses exemplos Esta passagem eacute de fundamental importacircncia porque introduz o caso da

alma e o argumento final propriamente dito e seraacute retomado adiante

148 Hackfort 1998 149-150

149 OrsquoBrien 1967 p202 203

150 Burnet 1911 p104

201

O que importa por enquanto eacute observar que Platatildeo apresenta trecircs elementos neste

cenaacuterio um portador de um oposto o oposto portado e o oposto rival O portador

(fogoneve) natildeo eacute uma Forma mas portador da Forma oposta (calorfrio)

Fogo ndash portador (natildeo eacute Forma)

Calor ndash Forma oposta carregada pelo Fogo

Frio ndash Forma oposta rival

657 Os exemplos numeacutericos (103e-104c)

A introduccedilatildeo de exemplos numeacutericos traz um desenvolvimento filosoacutefico

consideraacutevel neste contexto Aqui temos uma passagem de exemplos de coisas fiacutesicas

(fogo neve) para um exemplo numeacuterico que nem sempre eacute bem aceito pelos

comentadores Mas Gallop lembra que a transiccedilatildeo decorrer da aproximaccedilatildeo entre alma e

nuacutemero Natildeo se pode perder de vista que Platatildeo estaacute preparando o terreno para

apresentar a sua uacuteltima prova da imortalidade da alma e exemplos numeacutericos servem

para ligar e ateacute mesmo esconder a seacuteria lacuna entre a alma e as coisas fiacutesicas com as

quais ela foi ateacute agora comparada No uacuteltimo argumento a alma seraacute pensada como

transmissora de vida aos corpos que ocupa assim como o fogo e a neve transmitem

calor e frio sendo essa analogia enfraquecida pelo fato de que a alma ao contraacuterio do

fogo e da neve natildeo eacute observaacutevel (79b7-15) Portanto a transiccedilatildeo para a alma eacute

202

facilitada pelo exemplo de trecircs uma vez que nuacutemeros assim como a alma natildeo satildeo

sensiacuteveis observaacuteveis em si mesmos151

Desde o iniacutecio Formas satildeo protagonistas na discussatildeo

bull A proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute apresentada como um tipo de

dignataacuteria a quem pertence originalmente o direito de portar seu nome

para sempre

bull Natildeo somente a proacutepria Forma (μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de ter o

mesmo nome para sempre mas tambeacutem certas coisas que natildeo satildeo

Formas mas que tem sempre a sua Forma (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν

ἀεί) (103e2-5)

bull As coisas que possuem uma Forma e manteacutem um viacutenculo essencial com

ela sem que jamais dela se separe satildeo as coisas que tambeacutem possuem o

direito de portar seu nome para sempre (104a)

Portanto a proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute um tipo de dignataacuteria a quem

pertence originalmente o direito de portar seu nome para sempre Parece que Platatildeo

utiliza a imagem de membros de famiacutelias de alto prestiacutegio suas dignidades possuem o

direito de portar os tiacutetulos de nobreza da famiacutelia perpetuamente Formas satildeo aquelas que

possuem naturalmente esse privileacutegio Mas assim como em famiacutelias da nobreza tiacutetulos

de honra podem ser concedidos agravequeles que se agregam agrave famiacutelia por exemplo pelo

viacutenculo de casamento Essa metaacutefora sutilmente elaborada eacute o que daacute sustentaccedilatildeo a essa

passagem assim como a metaacutefora militar sustenta a ideia da incompatibilidade dos

151 Gallop 2002 p200

203

opostos Os opostos natildeo podem coexistir mas a Forma e aquilo que a possui estatildeo em

alianccedila perpeacutetua Vejamos os exemplos (104-c)

bull O nuacutemero trecircs possui um viacutenculo essencial com o iacutempar (Forma) ele

deve ser sempre designado com o seu nome (trecircs) mas tambeacutem com o

nome iacutempar (o nome da Forma que carrega consigo) O trecircs eacute sempre

iacutempar porque possui a Forma do iacutempar o que lhe agracia com o direito

de ldquonobrezardquo de ter o tiacutetulo para sempre

bull O mesmo se aplica ao nuacutemero cinco e ao demais nuacutemeros iacutempares eles

natildeo satildeo o iacutempar (τὸ περιττὸν a Forma) mas lsquocada um deles eacute sempre

iacutemparrsquo (ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός) (tem o direito de serem

perpetuamente chamados de iacutempares pelo viacutenculo inalienaacutevel com a

Forma)

bull O mesmo se aplica ao dois ao quatro e a todos os nuacutemeros pares eles

natildeo satildeo o par (τὸ ἄρτιον) mas lsquocada um deles eacute sempre parrsquo (ἕκαστος

αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί)

Em todos esses exemplos numeacutericos temos a relaccedilatildeo essencial entre um portador

que natildeo eacute uma Forma mas que possui um viacutenculo perpeacutetuo com uma Forma o que lhe

daacute o direito de ser chamado para sempre de certo nome Mas no primeiro exemplo

Platatildeo sugere que esse portador possui uma relaccedilatildeo com outra Forma a qual tambeacutem

lhe garante seu proacuteprio nome o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome (trecircs) Se o trecircs deve ser sempre designado com nome iacutempar por causa do seu

204

viacutenculo com o iacutempar (a Forma) o texto fortemente sugere que o trecircs eacute chamado de trecircs

por causa da sua relaccedilatildeo essencial com outra Forma Mas isto natildeo fica claro agora e

posteriormente teremos mais indiacutecios que apoiam esta tese que talvez seja essencial para

a compreensatildeo da uacuteltima prova da imortalidade da alma no Feacutedon

658 Coisas que natildeo admitem opostos (104b-c)

Neste proacuteximo passo temos algumas das passagens mais disputadas no Feacutedon

Primeiro Platatildeo busca esclarecer que natildeo eacute apenas o oposto que natildeo admite o oposto

rival mas tambeacutem o portador deste oposto A mesma ideia da incompatibilidade de

opostos toma lugar no diaacutelogo mas a ecircnfase recai sobre o portador dos opostos

ldquoNatildeo satildeo apenas aqueles opostos dos quais falamos (opostos muacutetuos)

que natildeo se admitem entre si mas tambeacutem as coisas que natildeo apresentam

respectivos opostos mas possuem um oposto (Forma) natildeo admitem

aquela Forma oposta ao oposto que estaacute neles (ἐκείνην τὴν ἰδέαν ἣ ἂν τῇ

ἐν αὐτοῖς οὔσῃ ἐναντία ᾖ) Se ocorresse de ela se aproximar essas coisas

que possuem opostos bateriam em retirada ou pereceriamrdquo (104b6-c3)

O exemplo do nuacutemero trecircs revela claramente o tipo de coisa em questatildeo o

nuacutemero trecircs natildeo eacute uma Forma mas eacute portador de uma Forma oposta ndash a Forma iacutempar

205

estaacute no trecircs Sendo assim o proacuteprio trecircs jamais acomodaraacute consigo a Forma oposta rival

(o par) (104c1-3)

Eacute importante notar que a metaacutefora militar continua em cena neste contexto da

lsquoresposta segura e inteligentersquo principalmente em 102d-104c A aproximaccedilatildeo da Forma

oposta pode trazer destruiccedilatildeo agraves coisas que possuem um Forma oposta Eacute interessante

observar que o mesmo verbo lsquoperecerrsquo - ἀπόλλυμι - que Soacutecrates utiliza na sua

autobiografia intelectual (96a 97b 97c) quando relata a fase em que estava em busca

da causa da geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo eacute empregado pelo menos seis vezes em 102d-104c

para expressar a ideia da metaacutefora militar Temos a sugestatildeo de que Platatildeo ainda estaacute

discutindo como as coisas surgem e como satildeo destruiacutedas mas a partir de uma nova

noccedilatildeo de αἰτίαι e num contexto completamente novo Formas satildeo αἰτίαι e agora Platatildeo

explica como elas fazem com que as coisas sejam o que elas e como elas participam na

destruiccedilatildeo de coisas Sobrevindo uma Forma oposta rival as coisas que possuem uma

Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι) Na chegada do par o nuacutemero trecircs perece

Geralmente passa despercebido que a partir de 104d Platatildeo natildeo emprega

diretamente a metaacutefora militar na discussatildeo ndash a ideia de fugir e partir em retirada (ἢ

φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ) ou de perecer na chegada da Forma oposta (ἢ προσελθόντος

ἐκείνου ἀπολωλέναι) natildeo eacute mais mencionada diretamente e parece arrefecer com a

introduccedilatildeo de Formas que natildeo admitem opostos rivais daquele que carrega consigo

659 Outras coisas que natildeo admitem opostos (104c-105b)

206

Neste novo passo o desafio proposto pela personagem Soacutecrates eacute definir lsquoque

tipo de coisas satildeo essasrsquo ou seja quais satildeo essas coisas indefinidas ateacute entatildeo que

tambeacutem natildeo admitem Formas opostas

ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas natildeo resistem ao avanccedilo das rivais

mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao avanccedilo dos opostosrdquo (οὐκ

ἄρα μόνον τὰ εἴδη τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα ἄλληλα ἀλλὰ καὶ ἄλλ᾽ ἄττα

τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα) (104c7-9)

ldquoEntatildeo vocecirc gostaria disse se fosse possiacutevel que determinaacutessemos que tipo de

coisas elas satildeo (βούλει οὖν ἦ δ᾽ ὅς ἐὰν οἷοί τ᾽ ὦμεν ὁρισώμεθα ὁποῖα ταῦτά

ἐστιν) (104c11-12)

Platatildeo jaacute havia estabecido que a Forma oposta que estaacute em algo natildeo pode

admitir acomodar ou coexistir com a Forma oposta Agora ele introduz um novo

sujeito que natildeo eacute a Forma oposta mas uma Forma que traz a Forma oposta para aquilo

que ocupa Agora nem a coisa ocupada pela Forma oposta pode acomodar em si a

Forma oposta rival nem mesmo a Forma que traz a Forma oposta para o objeto que

ocupa poderaacute admitir essa Forma oposta rival Eacute certamente desta Forma que natildeo eacute um

oposto mas natildeo admite opostos que Soacutecrates pergunta se Cebes quer definir

A questatildeo colocada em 104c7-9 ndash ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas

natildeo resistem ao avanccedilo das rivais mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao

avanccedilo dos opostosrdquo ndash (104c7-9) e que levanta o pedido pela determinaccedilatildeo desse lsquotipo

de coisasrsquo (104c11-12) natildeo tem em si mesma nenhum elemento que a comprometa

207

unicamente com a ideia de algo que participa de uma Forma Vejamos que nesta

questatildeo especiacutefica

bull Soacutecrates natildeo sugere a ideia de que as coisas em questatildeo possuem opostos

nelas (como em 104b6-c3) o que necessariamente indicaria que Platatildeo

estaria falando de portadores que carregam opostos em si Essa parte eacute

omitida e a ideia eacute geneacuterica algumas outras coisas

bull Agora Soacutecrates utiliza ἄττα um pronome indefinido o qual deixa a

questatildeo em aberto Eacute realmente estranha a sugestatildeo de uma indefiniccedilatildeo

quando jaacute havia sido dada uma resposta para o problema o portador de

opostos inclusive com o exemplo do nuacutemero trecircs (104c8)

Se realmente levarmos em consideraccedilatildeo a indefiniccedilatildeo sugerida pelo pronome

poderiacuteamos considerar que Platatildeo poderia estar sugerindo um terceiro elemento que

engrossaria essa linha de resistecircncia contra o oposto rival

bull Uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta rival

bull A coisa que participa de uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta

que rivaliza com a Forma oposta que carrega em si

bull Um elemento indefinido tambeacutem natildeo admitiria a Forma oposta que

rivaliza com a Forma oposta que um portador carrega em si

208

Mas os termos empregados por Platatildeo satildeo ambiacuteguos natildeo apenas ἄττα mas o

pronome demonstativo ταῦτά em lsquoque tipos de coisas satildeo essasrsquo (ὁποῖα ταῦτά ἐστιν)

(104c11-12) sugerem que eacute algo novo Embora haja duas possiacuteveis interpretaccedilotildees para

aquilo que se quer definir com base na obscura construccedilatildeo gramatical em 104d1-3 ndash as

coisas ocupadas por Formas e as Formas que ocupam coisas ndash a nossa opccedilatildeo eacute pela

ideia de que essas coisas satildeo lsquoaquelas que ocupam algo e as compelem a adquirir a sua

proacutepria Forma e uma Forma opostarsquo Essa interpretaccedilatildeo se baseia principalmente no

passo seguinte com o exemplo da Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) que eacute aquilo que

ocupa trecircs e o compele ser trecircs e iacutempar (104d5-7) Fazendo uma revisatildeo a pergunta

lsquoque tipo de coisas satildeo essasrsquo nos remete a lsquoaquelas coisas que ocupam outras e as

compelem a possuir a sua proacutepria Forma e a Forma opostarsquo que por sua vez nos remete

agrave Forma do trecircs que eacute o sujeito que ocupa e compele e que por sua vez faz com que

trecircs seja necessariamente trecircs e iacutempar

A Forma do trecircs eacute responsaacutevel inclusive pela Forma oposta nas coisas Tambeacutem

vale lembrar que ao comentarmos 104c vimos que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado como iacutempar por causa do seu viacutenculo essencial com a Forma oposta (iacutempar)

que carrega consigo mas Platatildeo tambeacutem afirma que o nuacutemero trecircs deve ser sempre

designado com o seu nome (trecircs) sem explicar por que deixando a questatildeo em aberto

Mas agora temos a sugestatildeo de que o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu

nome por causa da Forma do trecircs Natildeo eacute por acaso que temos agora justamente a Forma

de trecircs (104d)

Platatildeo entatildeo firma a ideia ldquoa Forma oposta natildeo poderia jamais sobrevir agravequela

Forma que realiza esse trabalhordquo (ἡ ἐναντία ἰδέα ἐκείνῃ τῇ μορφῇ ἣ ἂν τοῦτο

ἀπεργάζηται οὐδέποτ᾽ ἂν ἔλθοι) (104d9-10) O verbo ἀπεργάζομαι sugere que a ideia

209

de lsquocausarsquo neste contexto eacute bem mais desenvolvida do que a mera ideia de

lsquoresponsabilidadersquo no contexto da resposta segura mas ignorante Agora Formas fazem

algo e assim produzem um efeito num objeto particular Antes jaacute tiacutenhamos a ideia de

participaccedilatildeo ndash lsquoFormasrsquo estatildeo presentes em contato ou comunhatildeo (κοινωνία παρουσία

100d5 6) com as coisas e satildeo responsaacuteveis por fazer com que elas sejam o que elas satildeo

Mas agora os verbos revelam uma atividade que gera causa ou produz um efeito nos

objetos particulares A partir de 104c a linguagem do movimento forccedila possessatildeo

domiacutenio e trabalho caracterizam plenamente as Formas elas ocupam (κατέχω)

particulares compelem-nos (ἀναγκάζω) a adquirir certas qualidades carregam

(ἐπιφέρω) consigo outras Formas natildeo admitem (δέχομαι ) as Formas opostas rivais e

produzem (ἀπεργάζομαι) algo naquilo que ocupa152 O verbo ἀπεργάζομαι traz a ideia

de um trabalho realizado e trazido ao fim A μορφή eacute um sujeito ativo cujo trabalho

produz o resultado esperado ela caracteriza aquilo que ocupa de duas maneiras por ela

mesma (a proacutepria Forma) e pela Forma oposta que carrega consigo Portanto aqui jaacute

podemos falar de Formas como αἰτία num sentido que vai bem aleacutem de mera

lsquoresponsabilidadersquo Forma neste contexto eacute um agente ativo de uma ordem mais alta de

realidade que eacute literalmente ldquoresponsaacutevel porrdquo fazer com que um efeito especiacutefico seja

produzido num objeto particular Formas satildeo a causa verdadeira que a personagem

Soacutecrates estava agrave procura Pelo menos esta eacute a mensagem que o texto sugere

O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao ontoloacutegica entre a lsquoForma em

sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica entre elas ndash uma Forma

suprema e uma Forma subordinante Mas pelo menos temos a sugestatildeo de que eacute papel

152 Cf Teloh 1975 p 21

210

da lsquoForma em sirsquo trazer a lsquoForma em noacutesrsquo e produzir causar ou fazer com que a coisa

que ocupa seja o que ela eacute (104d)

A Forma eacute vista agora como principal responsaacutevel pelas coisas serem o que satildeo

bull A Forma Trecircs determina que aquilo que ela ocupa seja trecircs ndash a coisa

ocupada pela Forma trecircs eacute necessariamente trecircs

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel por carregar a Forma oposta para a coisa

que ocupa eacute dessa maneira que ela tambeacutem determina que aquilo que ela

ocupa tambeacutem seja iacutempar

bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel pela exclusatildeo da Forma oposta Iacutempar

A Forma eacute agora natildeo apenas uma forccedila de ocupaccedilatildeo mas um combatente que

traz consigo um aliado na prevenccedilatildeo e defesa da aacuterea ocupada contra a chegada do

oposto rival Agora natildeo apenas a coisa ocupada natildeo admite a Forma oposta mas

tambeacutem a proacutepria Forma que ocupa natildeo admite a Forma oposta rival da Forma que ela

traz para a coisa que ocupa

A passagem seguinte eacute uma extensatildeo daquilo que foi apresentado agora e deve

ser interpretada agrave luz do que foi dito Alguns pontos satildeo explicitados a comeccedilar pela

ideia de que a Forma traz consigo uma Forma oposta para as coisas que ocupam e

jamais admite o oposto daquilo que leva consigo Para explicar essa nova ideia um novo

verbo empregado o verbo ἐπιφέρει eacute utilizado para descrever a accedilatildeo da Forma que

mesmo natildeo sendo um oposto carrega consigo outra Forma (a Forma oposta) (104e-

105a) O verbo eacute utilizado especificamente aqui em 104e-105a em conexatildeo com o que

211

foi apresentado em 104d para trazer luz ao trabalho realizado pela Forma o trabalho de

carregar a Forma oposta para aquilo que ocupa Pelo menos trecircs exemplos mostram que

a Forma carrega consigo a Forma oposta

bull ἡ τριὰς (a Forma Triacuteade) ἡ δυὰς (a Forma Dois) τὸ πῦρ (a Forma Fogo)

ndash natildeo sendo um oposto (οὐκ οὖσα ἐναντία) carrega sempre consigo um

oposto (τὸ ἐναντίον ἀεὶ αὐτῷ ἐπιφέρει) e jamais admite (δέχεται) o

oposto rival do que carrega consigo (104e8-105a5)

Por fim Soacutecrates reforccedila a ideia novamente

ldquoNatildeo apenas o oposto natildeo admite o seu oposto mas haacute tambeacutem aquilo

que carrega um oposto para a coisa que ocupa e isto que carrega nunca

admite o oposto do que carregardquo

μὴ μόνον τὸ ἐναντίον τὸ ἐναντίον μὴ δέχεσθαι ἀλλὰ καὶ ἐκεῖνο ὃ ἂν

ἐπιφέρῃ τι ἐναντίον ἐκείνῳ ἐφ᾽ ὅτι ἂν αὐτὸ ἴῃ αὐτὸ τὸ ἐπιφέρον τὴν τοῦ

ἐπιφερομένου ἐναντιότητα μηδέποτε δέξασθαι ( 105a2-5)

Essa lista de exemplos numeacutericos provavelmente eacute uma lista de Formas uma

vez que temos nesta passagem um desenvolvimento da ideia apresentada em 104d ἡ

τριὰς ἡ δυὰς τὸ πῦρ τὰ πέντε τὰ δέκα τὸ διπλάσιον τὸ ἡμιόλιον τὸ ἥμισυ (1004e-

105b) certamente satildeo Formas e em 104d-105b procuram estabelecer o princiacutepio de que

212

Formas satildeo causas que ocupam objetos carregam consigo as Formas opostas e realiza

neles uma obra completa fazendo com que eles sejam o que eles satildeo e prevenindo a

chegada de qualquer oposto rival Vaacuterios exemplos satildeo apresentados para ratificar a

ideia de que a Forma mesmo natildeo sendo um oposto natildeo admite o oposto daquele

oposto que carrega consigo (105a-b)

Depois de estabelecer o princiacutepio essencial que envolve Formas Formas opostas

e coisas ocupadas Soacutecrates se oferece para refrescar a memoacuteria do Cebes ainda que

esteja sendo repetitivo ldquoMas lembre-se mais uma vez pois natildeo haacute mal algum em ouvir

isso muitas vezesrdquo (πάλιν δὲ ἀναμιμνῄσκου οὐ γὰρ χεῖρον πολλάκις ἀκούειν) (105a5-

6) Os exemplos podem ser divididos em duas etapas

bull Cinco natildeo admitiraacute a Forma do par153

bull Dez o dobro de cinco natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar (que eacute o oposto da

Forma do par que o dez carrega consigo)

bull Dobro (embora seja oposto de algo) natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar

bull Fraccedilotildees como frac12 e outras assim natildeo admitiratildeo a Forma do todo

6510 Exemplos adicionais (105b-c)

Ao final Soacutecrates convida Cebes para voltar ao comeccedilo e apresenta alguns

exemplos adicionais que introduzem o caso da alma Eacute difiacutecil saber se Platatildeo continua a

153 Platatildeo omite ἡ ἰδέα mas ela pode ser recuperada no contexto imediato numa construccedilatildeo

semelhante agrave que emprega agora ἐπὶ τὰ τρία ἄρα ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει (104e1) τὰ

πέντε τὴν τοῦ ἀρτίου οὐ δέξεται (105a6-7)

213

desenvolver a ideia de ocupaccedilatildeo em continuaccedilatildeo com o contexto anterior a ideia de que

a Forma ocupa algo A ruptura com o contexto anterior pode ter ocorrido quando

Soacutecrates deixa os exemplos eminentemente numeacutericos e convida a voltar ao comeccedilo

Por outro lado eacute tambeacutem possiacutevel que ele utilize exemplos adicionais para retomar a

ideia de uma Forma ocupar algo Em 104d o verbo κατέχω eacute utilizado e agora em

105b-d o verbo ἐγγίγνομαι ndash lsquoentrar ir pararsquo ndash eacute utilizado trecircs vezes depois uma vez

mais no caso da alma Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas movendo-se

para objetos particulares e neles produzindo efeitos eacute o mais comum 102e1 103d7

d10 104b10 c7 Se realmente Platatildeo continua com essa ideia desenvolvida no contexto

anterior Fogo Febre e Unidade satildeo Formas que entram nas coisas trazem consigo a

Forma oposta e produzem nela um efeito calor doenccedila imparidade Vejamos os

exemplos em 105b8-c6

bull O que vem para o corpo que o torna quente natildeo eacute o calor mas o fogo

bull O que vem para o corpo que o torna enfermo natildeo eacute a doenccedila mas a

febre

bull O que vem para o nuacutemero que o torna par natildeo eacute a imparidade mas a

unidade

Gallop lembra que se esses exemplos forem tomados como Formas o sentido da

relaccedilatildeo entre Formas e as coisas que elas ocupam natildeo eacute meramente loacutegico mas

causal154

154 Gallop 2002 p221

214

Finalmente os exemplos introduzem a alma e com isso o uacuteltimo argumento

bull O que vem para o corpo que o torna vivo eacute a alma (105c8-d4)

215

7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)

O argumento final propriamente dito comeccedila precisamente em 105c9 e finda em

107b10155 A tradiccedilatildeo interpretativa diverge na delimitaccedilatildeo do argumento mas nos

parece claro que a etapa que interpotildee entre as objeccedilotildees de Cebes e o uacuteltimo argumento

propriamente dito que soacute eacute introduzido em 105c visa preparar o terreno para a

compreensatildeo do uacuteltimo argumento mas natildeo deve ser confundido com o argumento

propriamente dito

O argumento eacute introduzido com o fim de responder as objeccedilotildees gerais de Cebes

de que a alma pode passar por diversos ciclos de reencarnaccedilotildees e ao final ser destruiacuteda

Isto indica que desde o iniacutecio o argumento pretende lidar com almas individuais Aleacutem

disso o amplo contexto do Feacutedon nos mostra que as demonstraccedilotildees visam assegurar

que a alma de Soacutecrates natildeo pereceraacute na ocasiatildeo da morte O problema colocado por

Cebes era justamente que sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι

ὡς ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou vaacuterias vezes

num corpo e a questatildeo de Cebes tem em vista a alma de Soacutecrates e o receio dos seus

disciacutepulos de que ela seria dispersa e destruiacuteda na hora da morte (Cf 95b-e) A palavra

alma (ψυχή) aparece sem o artigo e no singular ao longo do argumento e na conclusatildeo

em 106e8-107a1 temos a palavra no singular e tambeacutem no plural ndash lsquoalmarsquo e lsquoas nossas

almarsquo (ἡμῶν αἱ ψυχαὶ) o que revela que o argumento estaacute tratando de almas individuais

Informaccedilotildees adicionais sobre a natureza da alma em questatildeo seratildeo apresentadas adiante

155 Keyt 1963 p 169 ldquoO argumento propriamente dito para a imortalidade da alma comeccedila com

a afirmaccedilatildeo de que a alma sempre chega a tudo o que ocupa tendo vida em 105crdquo

216

71 Estrutura baacutesica do argumento e Comentaacuterio

O argumento eacute relativamente simples Eis a estrutura baacutesica do argumento eacute a

seguinte

[1] A alma sempre carrega vida para o que ela ocupa (105c9-d5)

[2] A vida eacute oposta agrave morte (105d6-9)

Portanto

[3] A alma jamais admitiraacute a morte e portanto eacute imortal (105d10-e9)

Portanto

[4] Se o imortal fosse indestrutiacutevel a alma seria indestrutiacutevel (105e10-106d1

e1-4)

[5] O imortal eacute indestrutiacutevel (106d2-9)

Portanto

[6] A alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)

Vejamos uma explanaccedilatildeo do argumento

217

A exegese textual levanta a suspeita de que a primeira premissa eacute construiacuteda a

partir de um paralelo com 104d1-7156 O elemento mais importante eacute a ideia de

lsquoocupaccedilatildeorsquo com o emprego do verbo κατέχω em 104d e 105d

ἃ ὅτι ἂν κατάσχῃ (104d)

ὅτι ἃ ἂν ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ (104d)

ψυχὴ ὅτι ἂν αὐτὴ κατάσχῃ (105d)

lsquoqualquer coisa que aqueles ocupemrsquo

lsquoquaisquer coisas que a Forma do trecircs ocupersquo

lsquoqualquer coisa que a alma ocupersquo

Temos entatildeo uma relaccedilatildeo entre os dois contextos mas com uma diferenccedila

crucial ndash o sujeito

156 Pelo menos Hackfort (1998 p162) e Keyt (1963 p169) defendem a ideia de que essa

primeira declaraccedilatildeo do argumento final em 105d3-5 manteacutem um paralelo com 104d5-7 A

exegese textual confirma esse paralelo Platatildeo natildeo dependeria especificamente do vocabulaacuterio

em 104d sem uma razatildeo forte para isso A dificuldade eacute saber o que o exegeta vai fazer com esta

informaccedilatildeo

218

Sujeito Predicado Objeto

ἃ κατάσχῃ ὅτι (particular)

ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ ὅτι (particular)

ψυχὴ κατάσχῃ ὅτι (particular ndash corpo)

Enquanto o sujeito em 104d eacute a Forma que ocupa um particular em 105d o

sujeito eacute a alma Temos aqui o que poderia ser o primeiro grande embaraccedilo no uacuteltimo

argumento apesar de natildeo haver nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de uma Forma da alma no

uacuteltimo argumento algueacutem pode sugerir que ela seria requerida pelo paralelo

(104d105d) Se aplicaacutessemos o modelo e princiacutepio de 104d para o caso da alma talvez

tiveacutessemos a Forma da alma como segue

Trecircs Alma

Forma do trecircs Forma da alma

Forma do trecircs ocupa algo e carrega consigo

a Forma oposta ndash a Forma do iacutempar

Forma da alma ocupa algo e carrega consigo a

Forma oposta ndash a Forma da Vida

Forma do trecircs produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente trecircs e

iacutempar

Forma da alma produz causa faz com que a

coisa que ocupa seja necessariamente alma e

viva

Forma do trecircs natildeo admite a Forma oposta

(Forma do par) que rivaliza com a Forma

que carrega (Forma do iacutempar)

Forma da alma natildeo admite a Forma oposta

(Forma da morte) que revaliza com a Forma que

carrega ndash a Forma da vida

219

Alguns comentadores antigos e contemporacircneos insistem na ideia de que existe

uma Forma da alma e que assim como particulares participam em Formas as almas

individuais participam na Forma da alma sobretudo por causa do paralelo entre 104d e

105d Archer-Hind admite que a ideia de uma Forma da alma eacute uma mostruosidade

metafiacutesica da qual natildeo podemos escapar no Feacutedon157 O inteacuterprete contemporacircneo

Prince se esforccedila para provar a tese de que existe uma Forma da alma e que ela

desempenha um papel central no uacuteltimo argumento para a imortalidade da alma De

iniacutecio ele apela para o argumento de que Platatildeo natildeo diz que existe uma Forma da alma

mas tambeacutem natildeo rejeita esta ideia158 Apesar do seu esforccedilo para provar a sua tese o

silecircncio de Platatildeo natildeo pode ser tomado como uma fala em favor de uma Forma da alma

da qual o argumento final depende Talvez Platatildeo pudesse ateacute construir um argumento

melhor com base na existecircncia de uma Forma da alma seguindo a ideia de 104d1-7

Mas natildeo o fez ou porque natildeo considerava a possibilidade da existecircncia de uma Forma

da alma ou porque simplesmente desprezou essa possibilidade ou por algum outro

motivo O silecircncio absoluto de Platatildeo nos diz simplesmente que uma Forma da alma eacute

algo que natildeo estaacute presente no argumento final ainda que possa existir

Voltando agrave questatildeo do paralelo estaacute bem claro que Platatildeo natildeo o manteacutem no

uacuteltimo argumento Existe uma diferenccedila significativa entre o emprego do verbo κατέχω

em 104d e 105d no primeiro caso a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα ἡ τριάς) ocupa o

nuacutemero trecircs e eacute a causa pela qual trecircs eacute trecircs e eacute iacutempar Em 105d o cenaacuterio muda a

157 Archer-Hind 1894 p 116

158 Prince 2011 p1-2

220

alma ocupa o corpo e natildeo eacute a causa pela qual o corpo eacute 159 O elemento que

aparentemente remanesce eacute que tanto a Forma do trecircs quanto a alma trazem uma Forma

para aquilo que ocupam

Mas a ideia das duas passagens paralelas levou alguns comentadores a acreditar

que para seguir de perto o paralelo entre 104d1-7 e 105d3-5 no uacuteltimo argumento a

alma eacute uma Forma ou eacute considerada como tal

(i) Hackfort defende que a alma jaacute eacute considerada como uma Forma

imanente juntamente com todos os exemplos apresentados em 105c o

fogo a febre a unidade e conclui que o uso do verbo κατέχω em 105d

com base em 104d revela sem sombra de duacutevida que o que estaacute em jogo

no uacuteltimo argumento eacute a alma como Forma imanente que ocupa o

corpo160

(ii) Keyt tambeacutem considera que o argumento final inicia com uma

declaraccedilatildeo que eacute paralela a 104d5-7 e chega a uma conclusatildeo um pouco

diferente embora natildeo possamos dizer que no uacuteltimo argumento Platatildeo

admite que a alma eacute uma Forma eacute plausiacutevel dizer que ele a trata como se

fosse uma Forma imanente e a primeira premissa simplesmente admite

159 Cf Archer-Hind 1894 p 116

160 Hackfort 1998 p162

221

que qualquer coisa que tem a alma tem vida ou seja quando uma alma

estaacute presente em um corpo esse corpo estaacute vivo 161

Mas essa posiccedilatildeo estaacute longe de ser defensaacutevel Como diz Dixsaut Platatildeo natildeo diz

que existe uma Forma e evita cuidadosamente dizer isso 162 E se a alma fosse uma

Forma no Feacutedon seria suficiente simplesmente assumir que ela eacute eterna imortal e

incorruptiacutevel como todas as outras

Aleacutem de todos esses argumentos eacute necessaacuterio observar que apesar da insinuaccedilatildeo

textual de que as passagens 104d e 105d apresentam um paralelo na verdade os uacuteltimos

exemplos que Platatildeo apresenta e que introduzem a alma no cenaacuterio mostram que

Platatildeo jaacute natildeo mais estaacute seguindo exatamente a ideia apresentada em 104d A ideia de

uma Forma do trecircs natildeo exerce influecircncia sobre os exemplos em 105b8-c6 fogo febre

unidade

Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas se movendo para objetos

particulares e neles produzindo efeito eacute comum mas no caso de fogo febre unidade

alma natildeo temos uma clara indicaccedilatildeo de que satildeo Formas O contexto sugere que

Soacutecrates estaacute aqui lidando com uma Forma do fogo por exemplo assim como 104d

temos a Forma do trecircs Este eacute um problema constante nesta seccedilatildeo nem sempre Platatildeo

tem o interesse de explicitar o status metafiacutesico de diferentes tipos de coisa Sedley diz

que uma causa no Feacutedon pode ser uma coisa fiacutesica como o fogo um processo

161 Keyt 1963 p169

162 Dixsaut 1991 p 397

222

matemaacutetico como adiccedilatildeo o bem alma a inteligecircncia ou uma Forma como grandeza ou

pequenez163 Mas vale lembrar que nem sempre o texto eacute completamente vago e

hermeacutetico A ausecircncia de especificaccedilotildees 105b8-c6 jaacute pode ser um primeiro indiacutecio de

que Platatildeo natildeo trata de uma Forma Ademais natildeo eacute difiacutecil ver como esses objetos que

desempenham um papel crucial na prova final (fogo febre unidade) tem um tratamento

diferente de 1054d onde a Forma do trecircs ocupa algo e o compele a ser trecircs e iacutempar Em

105b8-c6 temos uma ideia diferente

(i) o Fogo que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(ii) a Febre que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

(iii) a Unidade que vem para o nuacutemero natildeo faz com que o nuacutemero seja

nuacutemero

(iv) a Alma que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo

Platatildeo estaacute realmente preparando o leitor para o uacuteltimo argumento de modo que

dois dos trecircs exemplos apresentam o corpo (fogo-corpo febre-corpo) para facilitar a

transiccedilatildeo para o exemplo alma-corpo Tambeacutem eacute importante observar que 104d eacute

apresentado como resposta para a busca por alguma outra coisa que natildeo eacute um oposto

mas natildeo admite o oposto rival do oposto que carrega consigo O uacutenico exemplo

numeacuterico em 105b-c rompe com essa ideia de 104d porque o dobro tambeacutem possui um

oposto Talvez a inclusatildeo deste elemento que possui um oposto seja uma abertura para a

possibilidade de no proacuteximo argumento considerarmos a proacutepria alma e corpo como

163 Sedley 1998 p 115

223

opostos O ponto que eacute necessaacuterio observar eacute que os uacuteltimos exemplos natildeo seguem

completamente 104d e servem de modelo para o caso da alma

Portanto o contexto realmente natildeo sugere que esses uacuteltimos exemplos sejam

tomados como Formas Se quisermos comparar temos na verdade o seguinte

(i) Em 104d1-7 Forma do Trecircs ndash trecircs (objeto que a Forma ocupa e compele

a ser o que eacute) ndash Forma oposta que a Forma do Trecircs carrega consigo

(iacutempar) ndash Forma oposta rival (par)

(ii) Em 105b8-c6 Fogo ndash corpo (objeto que o fogo ocupa) ndash calor (qualidade

essencial que o fogo possui)

(iii) Em 105d3-5 Alma ndash corpo (objeto que a alma ocupa) ndash vida (qualidade

essencial que a alma possui) Forma da Vida (Forma na qual a alma

participa) ndash Forma oposta rival (morte)

Aleacutem disso temos no Feacutedon Formas que trazem Formas opostas para aquilo que

ocupam (104d) mas nunca Formas que participam em Formas Isto mostra que nos

exemplos em 105b-c fogo por exemplo natildeo eacute uma Forma Fogo tem em si a

caracteriacutestica de uma Forma ndash o calor ndash porque participa numa Forma assim como o

nuacutemero trecircs eacute iacutempar porque participa na Forma do iacutempar Neste caso se fogo fosse uma

Forma estariacuteamos admitindo que Forma participa numa Forma e isto natildeo eacute o caso

O mesmo se aplica agrave alma a qual possui a qualidade essencial ndash vida ndash porque

participa na Forma da vida Eacute descabido pensar que a alma eacute uma Forma que participa

em outra Forma A conclusatildeo de Hackfort e outros comentadores de que a alma eacute uma

224

Forma com base no paralelo entre 104d e 105d natildeo procede Eacute improvaacutevel que Platatildeo

queira provar que a alma eacute imortal se ao mesmo tempo a considera uma Forma uma vez

que no Feacutedon a imortalidade das Formas eacute simplesmente assumida Como diz Loriaux

estamos convencidos de que se o Feacutedon natildeo diz em nenhum lugar que a alma eacute uma

Forma eacute porque nunca pretendeu fazecirc-lo164

Em suma o argumento final natildeo eacute de modo algum apresentado com base na

ideia de uma Forma da alma nem mesmo a alma individual eacute uma Forma transcendente

ou uma Forma imanente Nenhuma dessas leituras possui apoio textual seguro e

definitivo

Portanto seria a alma um tipo de ser com um status ontoloacutegico intermediaacuterio

Seria a alma uma entidade que natildeo eacute uma Forma nem um objeto particular mas que

estaacute entre os dois A resposta deve considerar especialmente o argumento das

afinidades

No argumento das afinidades Platatildeo caracteriza dois grupos de seres Formas

fazem parte do grupo de coisas invisiacuteveis imortais invariaacuteveis eternas e objetos

particulares Mas imediatamente apoacutes a divisatildeo apresenta a alma como ser que possui

extrema semelhanccedila e afinidade com as Formas e que ao mesmo tempo possui alguma

semelhanccedila com objetos particulares tambeacutem a alma pode sofrer mudanccedila por

exemplo Portanto temos pelo menos uma sugestatildeo de que a alma natildeo pertenceria a

nenhum dos dois grupos e talvez Bostock esteja certo ao dizer que natildeo haacute razatildeo para

acreditar que na ontologia platocircnica soacute existe lugar para apenas duas classes de coisas

Formas e particulares165

164 Loriaux 1975 p132

165 Bostock 1989 118

225

Se a alma fosse uma Forma natildeo seria necessaacuterio provar que ela eacute imortal mas

se Platatildeo a considerasse como particular teriacuteamos um conflito no Feacutedon enquanto

Platatildeo tenta provar que a alma eacute imortal ao mesmo tempo se esforccedila para caracterizar

objetos particulares como membros de uma classe de coisas passiacuteveis agrave dissoluccedilatildeo e

destruiccedilatildeo Portanto eacute plausiacutevel que a alma esteja numa posiccedilatildeo ldquointermediaacuteriardquo

enquanto se relaciona harmonicamente com as Formas quando opera sem a mediaccedilatildeo

corporal e compartilha algumas de suas caracteriacutesticas mas natildeo todas Por outro lado

assim como particulares a alma pode sofrer variaccedilatildeo mudanccedila

O argumento das afinidades provoca um impacto no proacuteprio Cebes o qual

entende que a alma natildeo eacute uma Forma mas tambeacutem reconhece que ela eacute superior em

relaccedilatildeo ao corpo (91e-92a95c) eacute robusta divina longeva goza da capacidade de

existecircncia sem o corpo (preexistecircncia) e de conhecer Formas o que seria impossiacutevel

para membros comuns da classe de coisas visiacuteveis

No argumento final propriamente dito a vida e a morte satildeo opostos Tudo que

possui a alma eacute vivo Eacute portanto a alma que traz vida ao corpo A proacutepria alma carrega

consigo uma Forma da vida Ela natildeo eacute um oposto mas natildeo admite o oposto rival do

oposto que leva consigo ou seja natildeo admite a morte

O argumento comeccedila em 105d com um paralelo com 104c1-3 Formas que

trazem consigo Formas opostas e natildeo admitem as Fomas rivais Assim como as Formas

as almas ocupam um objeto Soacute temos esse paralelo entre almas e Formas no Feacutedon

Neste caso poderiacuteamos ateacute pensar que Platatildeo estaria apresentando um terceiro tipo de

coisa que natildeo eacute oposto mas carrega um oposto e natildeo admite um oposto rival ndash a alma

um intermediaacuterio Esta seria a maneira mais harmocircnica de entender o porquecirc do paralelo

226

entre almas que ocupam um corpo e o compele a ser vivo e Formas que ocupam um

nuacutemero e o compele a ser iacutempar Sendo um intermediaacuterio a semelhanccedila eacute explicada

Platatildeo tem que lidar com o problema apresentado antes a possibilidade de a

alma sofrer um ataque da Forma rival restando uma das duas opccedilotildees bater em retirada

ou perecer (Cf 104b6-c3) Caso o oposto rival arremeta contra o nuacutemero trecircs ele bateraacute

em retirada ou pereceraacute (ἀλλ᾽ ἐπιούσης αὐτῆς ἤτοι ἀπολλύμενα ἢ ὑπεκχωροῦντα)

(104b10-c1) E se isto puder acontecer com a alma Platatildeo estaria assumindo que a alma

pode perecer Teriacuteamos o seguinte com base em 104b-c

Almas satildeo objetos particulares que carregam a Forma da vida e assim

jamais admitiratildeo a morte Isto significa que elas jamais admitiratildeo

acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte Quando a Forma rival

arremeter contra a alma ou ela bateraacute em retirada ou tombaraacute morta

Mas o argumento claramente elimina esta possibilidade Platatildeo tenta mostrar que

a alma possui uma relaccedilatildeo essencial com uma Forma cuja natureza natildeo pode aceitar de

modo algum lsquomortersquo a Forma da vida Sendo assim a alma eacute essencialmente viva a

Forma oposta natildeo pode trazer morte para aquilo que carrega consigo a Forma da vida O

que acontece quando a alma sofre o ataque da Forma oposta eacute o seguinte ldquoSendo

assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao que parece

tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo ela parte

retirando-se da presenccedila da morterdquo (106e4-6)

O segundo modelo de coisas que natildeo satildeo opostos mas natildeo admitem opostos (o

caso das Formas) parece providenciar um exemplo de algo que natildeo pode perecer com o

227

ataque da Forma rival a proacutepria Forma que ocupa algo As Formas satildeo imortais e

indestrutiacuteveis assim como as almas segundo a conclusatildeo do argumento final Quando

as Formas que ocupam algo sofrem o ataque de uma Forma rival elas saem ilesas e

intactas Portanto o viacutenculo essencial das almas com aquilo que a torna essencialmente

viva e imortal faz com que ela seja como as Formas que ocupam um objeto e natildeo

podem perecer pelo ataque da Forma rival daquela que carrega consigo Se a alma for

uma entidade diferenciada um intermediaacuterio eacute mais faacutecil entender essa aproximaccedilatildeo

entre alma e Forma Se a considerarmos um intermediaacuterio teriacuteamos o seguinte com

base no modelo apresentado no contexto anterior em 104d

Almas satildeo intermediaacuterios que carregam a Forma da vida e assim jamais

admitiratildeo a morte (Cf105d10-e9) Isto significa que elas jamais

admitiratildeo acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte e que elas

natildeo pereceratildeo por ocasiatildeo da arremetida da Forma rival assim como eacute

impossiacutevel que uma Forma rival golpeie e aniquile uma Forma que

ocupa um corpo e carrega uma Forma oposta

Assim com as Formas satildeo ldquoblindadasrdquo contra os ataques das Formas rivais as

almas satildeo ldquoblindadasrdquo ou seja imunes agrave morte por causa do seu viacutenculo com a Forma

da vida A fase final da prova lida com o problema da aproximaccedilatildeo dos opostos nos

exemplos apresentados na etapa anterior sobrevindo uma Forma oposta rival os

particulares que possuem uma Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι)

O encontro com a Forma rival termina imediatamente com uma das duas

possibilidades fuga ou perecimento (104b6-c3) Platatildeo percebe este problema e

228

soluccedilatildeo para ele eacute que a alma por seu viacutenculo com a Forma da vida eacute essencialmente

viva e para Soacutecrates isto significa que ela eacute imortal Soacutecrates e Cebes tambeacutem

concluem que tudo que eacute imortal eacute indestrutiacutevel porque se o imortal natildeo fosse

indestrutiacutevel nada mais seria (Cf 106e) Portanto neste argumento Platatildeo associa as

ideias de vida imortalidade e indestrutibilidade (106d2-9)

(i) Tudo o que tem a alma eacute essencialmente vivo

(ii) Tudo o que eacute essencialmente vivo eacute ἀθάνατος

(iii) Tudo o que eacute ἀθάνατος eacute indestrutiacutevel

(iv) Portanto tudo que tem uma alma eacute indestrutiacutevel

(v) Portanto a alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)166

Eacute interessante observar que no contexto do argumento ciacuteclico alma viva eacute alma

reencarnada e alma morta eacute alma desencarnada Agora a proacutepria alma e natildeo o corpo

animado (alma alojada no corpo) eacute imortal e indestrutiacutevel lsquoIndestrutiacutevelrsquo e lsquoimortalrsquo natildeo

satildeo mais a pessoa que tem a alma mas a proacutepria alma

O argumento final eacute o uacutenico argumento no Feacutedon cuja conclusatildeo decisivamente

declara que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Eacute sem duacutevida o argumento que mais se

aproxima de uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma

Contudo a uacuteltima prova da imortalidade da alma apresenta falhas e dificilmente

se estabelece como prova da imortalidade da alma

166 Keyt 1963 p171

229

(i) Platatildeo parece se equivocar quanto ao que constitui o oposto da morte ele

considera que lsquovidarsquo eacute oposto de lsquomortersquo

(ii) O argumento eacute circular reivindica que a alma eacute imortal porque natildeo

admite morte

(iii) A uacutenica razatildeo clara pela qual a alma eacute imortal eacute que ela possui um

viacutenculo com a Forma da vida a qual eacute imortal e indestrutiacutevel (Cf106b)

Essa declaraccedilatildeo de que a Forma da vida eacute imortal eacute um estranho

argumento para a imortalidade da alma porque todas as Formas satildeo

imortais e indestrutiacuteveis

(iv) No argumento aquilo que eacute essencialmente vivo eacute necessariamente

imortal mas este ponto eacute questionaacutevel Portanto a transiccedilatildeo entre algo

essencialmente vivo para algo imortal eacute questionaacutevel Tambeacutem eacute

importante notar que Platatildeo considera apenas a Forma da vida e na

transiccedilatildeo da vida para imortalidade ele natildeo considera a Forma da

imortalidade Mas eacute possiacutevel que Platatildeo considera que a Forma da vida

engloba imortalidade e indestrutibilidade

(v) Soacutecrates simplesmente assume que o que eacute essencialmente vivo eacute

imortal e que o que eacute imortal eacute indestrutiacutevel A conclusatildeo de que a alma

eacute imortal parece uma mera inferecircncia a partir do viacutenculo essencial da

alma com a vida e a necessaacuteria rejeiccedilatildeo da morte

(vi) Keyt aponta uma falaacutecia de ldquoequivocaccedilatildeordquo no uso dos termos ἀθάνατος

θάνατοςθνητός No iniacutecio do argumento ἀθάνατος eacute oposto de θάνατος

mas ao final eacute oposto de θνητός (Cf 105e2-3 106e5-6)167

167 Keyt 1963 p170

230

(vii) A teoria das Formas ainda eacute incipiente Vaacuterios pontos da passagem

merecem uma explicaccedilatildeo mais detalhada no que concerne agrave teoria das

Formas

(viii) A identidade da alma como um portador de uma Forma eacute essencial para a

compreensatildeo do argumento mas Platatildeo natildeo deixa claro o que eacute a alma

A nossa anaacutelise a considera como uma entidade intermediaacuteria com base

nas evidecircncias apresentadas ao longo do diaacutelogo mas em momento

algum Platatildeo deixa isto claro

(ix) A relaccedilatildeo entre a etapa anterior e o argumento propriamente dito estaacute

longe de ser clara Este problema deixa o argumento aberto a

interpretaccedilotildees diversas

72 A reaccedilatildeo ao uacuteltimo argumento

O argumento final do Feacutedon eacute o uacutenico no diaacutelogo a persuadir Cebes de que a

alma eacute imortal Ele eacute construiacutedo em resposta agraves objeccedilotildees de Cebes e ao final da

exposiccedilatildeo o ceacutetico mais obstinado no mundo (77a) como salienta Hackforth natildeo

levanta qualquer objeccedilatildeo (107a1-3)168 Agora natildeo haacute mais receio de que a alma por ser

mortal seja destruiacuteda num dos ciclos de reencarnaccedilotildees e a corajosa atitude de Soacutecrates

diante da iminente execuccedilatildeo eacute sensata visto que estaacute amparada pelo argumento final

Mas a reaccedilatildeo de Siacutemias eacute diferente ele diz que natildeo tem nada a objetar mas por

ser o assunto tatildeo denso e a natureza humana fadada ao fracasso ele diz ldquoeu estou

compelido a ter uma descrenccedila em meu iacutentimo a respeito do que foi dito (ἀναγκάζομαι

168 Hackfort 1998 p 165

231

ἀπιστίαν ἔτι ἔχειν παρ᾽ ἐμαυτῷ περὶ τῶν εἰρημένων) (1007a8-b3) Ainda assim Siacutemias

eacute incapaz de apontar falhas especiacuteficas no argumento chamando atenccedilatildeo para um

problema mais geral da existecircncia humana e da sua proacutepria experiecircncia e descrenccedila em

relaccedilatildeo agrave natureza e estado futuro da alma

Soacutecrates parece bastante confidente a respeito do argumento e diz a Siacutemias que

concorda que ateacute mesmo as primeiras hipoacuteteses sejam revisitadas mas logo afirma que

se forem analisadas pelos amigos de maneira suficiente eles seguiratildeo o argumento e

natildeo haveraacute mais necessidade de prosseguir a pesquisa (107b4-9) Siacutemias simplesmente

concorda com a afirmaccedilatildeo do amigo ldquovocecirc fala a verdaderdquo (107b10)

Cebes o mais capaz dos interlocutores estaacute completamente convencido A

resposta de Siacutemias pode sugerir sua insatisfaccedilatildeo depois de ouvir o argumento contudo

duacutevida de Siacutemias eacute bastante geral e natildeo diz respeito ao argumento em si169

169 Conforme Sedley (2009 p146) Platatildeo criou esse argumento para explicar por que Soacutecrates

partiu confiante e alegre para a morte e sendo assim seria inconcebiacutevel que Platatildeo pretenda

transmitir a mensagem de que o ato final de Soacutecrates como um maacutertir filosoacutefico e sua aceitaccedilatildeo

confiante da morte baseava-se em um argumento duacutebio

232

8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A nossa anaacutelise das provas da imortalidade da alma no Feacutedon revela que as duas

primeiras provas estatildeo comprometidas com uma concepccedilatildeo de imortalidade vinculada agrave

doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo da alma O argumento ciacuteclico conclui

apenas que a alma continua a existir depois da morte enquanto o argumento da

reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento O argumento das afinidades eacute o

primeiro argumento que ataca diretamente o problema apresentado por Cebes ndash a

possibilidade de a alma se desintegrar na hora em que se separa do corpo O argumento

tenta provar que a alma eacute por natureza imune agrave morte algo completamente

indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso Mas o uacuteltimo argumento eacute sem duacutevida a grande

prova da imortalidade da alma no Feacutedon Mas todos os argumentos apresentam falhas e

nenhum se estabelece como prova inequiacutevoca da imortalidade da alma nem mesmo o

argumento final apesar de Soacutecrates e os amigos natildeo apontarem qualquer falha no

argumento Os amigos de Soacutecrates satildeo finalmente libertos dos temores de que a alma

individual seja desintegrada e o filoacutesofo pode partir seguro para o aleacutem onde desfrutaraacute

dos benefiacutecios de ter dedicado a vida ao exerciacutecio de morrer e estar morto

233

9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO

[57a] EQUEacuteCRATES Feacutedon vocecirc mesmo estava presente no dia em que Soacutecrates

bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por outra pessoa

FEacuteDON Eu mesmo estava presente Equeacutecrates

EQUEacuteCRATES Entatildeo o que ele falou antes de morrer Como foi a sua morte Eu

gostaria de ouvir sobre isso pois nenhum cidadatildeo de Fliunte visita Atenas com

frequecircncia nessa eacutepoca [57b] e haacute tempo natildeo vem de laacute sequer um estrangeiro capaz de

informar com precisatildeo o que aconteceu Contam apenas que Soacutecrates morreu ao tomar o

veneno e nada mais

[58a] FEacuteDON Tampouco souberam como foi o julgamento

EQUEacuteCRATES Sim sobre isso uma pessoa nos informou e ficamos surpresos por que

se sabe que ele morreu bem depois da realizaccedilatildeo do julgamento Afinal por que isso

aconteceu Feacutedon

FEacuteDON Por coincidecircncia Equeacutecrates Aconteceu que no dia anterior ao seu

julgamento a popa do navio que os atenienses costumam enviar para Delos tinha sido

coberta

EQUEacuteCRATES E que navio eacute esse

234

FEacuteDON Esse eacute o navio como dizem os atenienses em que certa vez Teseu foi a [58b]

Creta levando os ldquodois grupos de seterdquo os quais ele salvou bem como salvou a si

mesmo Conta-se que nessa eacutepoca prometeram a Apolo que se eles fossem salvos lhe

retribuiriam com o envio de uma missatildeo anual para Delos E eacute justamente essa missatildeo

anual que desde aquela eacutepoca ateacute agora eles sempre enviam ao deus No tempo

decorrido entre o iniacutecio e o fim da missatildeo a lei ateniense determina que a cidade

permaneccedila purificada e que natildeo se mate ningueacutem em nome dela ateacute que o barco

enviado a Delos retorne ao seu ponto de partida E quando eventualmente ventos

contraacuterios deteacutem a tripulaccedilatildeo o que ocorre [58c] agraves vezes a viagem demora bastante A

missatildeo tem iniacutecio depois que o sacerdote de Apolo cobre a popa do navio e como eu

disse por coincidecircncia isso aconteceu bem na veacutespera do julgamento Eacute por essa razatildeo

que Soacutecrates passou muito tempo na prisatildeo entre o dia do julgamento e a ocasiatildeo de sua

morte

EQUEacuteCRATES E sobre a morte dele precisamente Feacutedon O que se disse e o que se

fez e quais de seus amigos estiveram com ele Ou os magistrados natildeo permitiram que

estivessem presentes e ele acabou morrendo longe dos amigos

[58d] FEacuteDON De forma alguma Natildeo apenas alguns na verdade muitos estiveram

presentes

EQUEacuteCRATES Entatildeo a menos que vocecirc esteja ocupado empenhe-se para nos

informar tudo com a maior clareza possiacutevel

235

FEacuteDON Natildeo estou ocupado e desejo descrever para vocecircs como ocorreu ateacute porque

lembrar de Soacutecrates sempre me daacute o maior prazer seja quando eu mesmo falo ou

quando escuto algueacutem falando sobre ele

EQUEacuteCRATES Mas certamente Feacutedon estes que iratildeo te escutar natildeo satildeo diferentes

Portanto tente relatar tudo com a maacutexima precisatildeo

[58e] FEacuteDON Eu realmente tive uma experiecircncia paradoxal estando ao seu lado

naquela ocasiatildeo pois natildeo fui tomado de compaixatildeo enquanto presenciava a morte de

um amigo O fato eacute que ele me parecia feliz Equeacutecrates tanto pela sua conduta quanto

pelas suas palavras tatildeo destemida e nobre a maneira como morreu Por essa razatildeo ateacute

me passou pela cabeccedila que embora estivesse indo para o Hades ele ia na [59a]

companhia de uma Moira Divina e que ao chegar ali estaria bem se eacute que algueacutem jaacute

experimentou isso Por isso mesmo natildeo fui tomado de forte compaixatildeo o que

pareceria natural ao se presenciar tal sofrimento tampouco senti prazer como aquele a

que estamos acostumados quando nos envolvemos com filosofia ndash de fato nossas

conversas foram dessa natureza Todavia eu experimentei um sentimento atiacutepico uma

estranha mescla de prazer e dor ao me dar conta de que ele estava prestes a morrer logo

mais E todos noacutes ali presentes tiacutenhamos semelhante disposiccedilatildeo de acircnimo ora rindo ora

chorando embora um dentre noacutes se destacasse

[59b] Apolodoro ndash vocecirc certamente conhece o indiviacuteduo e o seu jeito de ser

EQUEacuteCRATES Como natildeo

236

FEacuteDON Pois bem ele estava no limite dessa disposiccedilatildeo e eu mesmo fiquei abalado

assim como os demais

EQUEacuteCRATES Quem por acaso esteva ali presente Feacutedon

FEacuteDON Dentre os locais estavam Apolodoro como acabei de dizer Critoacutebulo e seu

pai Hermoacutegenes Epiacutegenes Eacutesquines e Antiacutestenes estavam tambeacutem Ctesipo do demo

Peacircnia Menecircxeno e alguns outros locais Platatildeo creio eu estava doente

EQUEacuteCRATES E havia alguns estrangeiros

[59c] FEacuteDON Sim Siacutemias de Tebas Cebes e Fedondes estavam laacute e de Meacutegara

Euclides e Teacutercio

EQUEacuteCRATES Quem mais Aristipo e Cleocircmbroto tambeacutem estavam presentes

FEacuteDON Com certeza natildeo Disseram que eles estavam em Egina

EQUEacuteCRATES Algueacutem mais estava presente

FEacuteDON Acho que eram basicamente esses todos os presentes

EQUEacuteCRATES Agora entatildeo poderia me falar sobre as conversas que tiveram

[59d] FEacuteDON Eu tentarei lhe descrever tudo desde o iniacutecio Nos dias que precederam a

sua morte eu e os demais amigos costumaacutevamos visitar Soacutecrates diariamente Como o

Tribunal onde ocorreu o julgamento fica perto da prisatildeo noacutes nos encontraacutevamos ali

bem cedo e todos os dias aguardaacutevamos que a prisatildeo fosse aberta Enquanto isso

ficaacutevamos conversando uns com os outros pois a prisatildeo natildeo abria cedo Mas assim que

abria entraacutevamos para ficar com Soacutecrates e

237

[59e] quase sempre passaacutevamos o dia todo com ele E naquela ocasiatildeo nos reunimos

mais cedo pois no dia anterior quando saiacutemos da prisatildeo ao anoitecer tomamos

conhecimento de que o barco havia chegado de Delos Entatildeo combinamos de chegar no

dia seguinte o mais cedo possiacutevel no lugar de costume o que de fato aconteceu

Chegamos e o porteiro que costumava nos receber saiu ao nosso encontro para nos pedir

que aguardaacutessemos e natildeo entraacutessemos ateacute que ele mesmo nos autorizasse ldquoEacute que os

Onzerdquo disse ele ldquoestatildeo liberando Soacutecrates das correntes e notificando que ele haacute morrer

naquele mesmo diardquo Mas natildeo demorou muito ateacute que ele voltasse para nos autorizar a

[60a] entrada Em seguida entramos e nos deparamos com Soacutecrates jaacute solto das

corrrentes e Xantipa que vocecirc conhece segurando seu filho e sentada ao seu lado E

assim que Xantipa nos viu comeccedilou a gritar e a falar aquele tipo de coisa que as

mulheres costumam dizer ldquoSoacutecrates esta eacute a uacuteltima vez que seus amigos se dirigem a

vocecirc e vocecirc a elesrdquo Entatildeo Soacutecrates olhou para Criacuteton e lhe disse ldquoCriacuteton que algueacutem

a leve para casardquo

Parte do pessoal que acompanhava Criacuteton tirou a mulher dali enquanto ela

gritava e [60b] batia no peito Soacutecrates por sua vez sentando-se na cama dobrou a

perna e comeccedilou a esfregaacute-la com a matildeo e enquanto esfregava disse ldquoQuatildeo estranho

amigos parece ser aquilo que as pessoas chamam de prazer Quatildeo surpreendente eacute sua

relaccedilatildeo natural com o que parece ser o seu oposto a dor Ambos se recusam a

permanecer ao mesmo tempo num indiviacuteduo mas se algueacutem busca e captura um deles eacute

238

quase sempre forccedilado a capturar tambeacutem o outro como se [60c] estivessem unidos por

uma soacute cabeccedila embora sendo duas coisas distintas E me parece querdquo disse ele ldquose

Esopo tivesse refletido sobre eles teria composto uma faacutebula em que um deus

desejando reconciliar a ambos que viviam em guerra mas natildeo sendo capaz resolveu

unir a cabeccedila deles em uma soacute Por esse motivo se um deles se fizer presente em

algueacutem o outro vem em seguida Eacute o que parece acontecer comigo quando

acorrentado sentia dor na perna retiradas as correntes o prazer jaacute veio logo em

seguidardquo

Cebes o interrompeu e lhe disse ldquoPor Zeus Soacutecrates fez bem demais em

recordar-me [60d] Muitos jaacute me perguntaram sobre os poemas que vocecirc fez

versificando as obras de Esopo e sobre o proecircmio a Apolo Anteontem o proacuteprio

Eveno me perguntou o que deu na sua cabeccedila para comeccedilar essa atividade soacute depois que

veio para a prisatildeo uma vez que nunca havia se ocupado com isso antes Se tiver

interesse que eu decirc uma resposta a Eveno quando ele voltar a me perguntar porque sei

que ele iraacute me perguntar novamente diga-me o que devo lhe dizerrdquo

[60e] ldquoSimples Cebesrdquo respondeu ldquodiga-lhe a verdade que natildeo compus

poemas querendo tornar-me seu rival ou de suas poesias pois sabia que natildeo seria faacutecil

mas para tentar entender o sentido de certos sonhos e cumprir meu dever religioso no

caso de ser essa a muacutesica que os sonhos me orientavam a compor Deixe-me explicar

tive o mesmo sonho ao longo de toda a minha vida e apesar de cada vez aparecer sob

239

um aspecto diferente dizia sempre a mesma coisa ldquoSoacutecratesrdquo dizia ldquocomponha e

trabalha a muacutesicardquo Antes eu pensava que o sonho estava me exortando e me

incentivando a fazer exatamente aquilo que eu jaacute vinha fazendo assim como quem

incentiva os corredores da mesma maneira o sonho me incentiva a fazer exatamente

aquilo que eu jaacute vinha fazendo ou seja compor muacutesica uma vez que a filosofia era a

mais excelsa muacutesica e que era isso o que eu fazia No entanto [61a] depois que

ocorreu o julgamento e a festa do deus adiou a minha morte pareceu-me conveniente

que se o sonho estivesse recorrentemente me ordenando compor muacutesica no sentido

popular eu natildeo lhe desobedecesse mas comeccedilasse a compocirc-la Pois pareceu-me mais

seguro partir somente depois de ter cumprido [61b] meu dever religioso compondo

poemas em obediecircncia ao sonho Foi assim que em primeiro lugar eu compus um

poema dedicado ao deus da festa em curso Mas depois desse poema ao deus passei a

refletir que o poeta quando se propotildee a ser poeta deve compor mitos e natildeo

argumentos E como eu natildeo sou inventor de mitos peguei os que estavam agrave minha

disposiccedilatildeo e jaacute conhecia de antematildeo os mitos de Esopo e dei forma poeacutetica agravequeles

com os quais primeiro me deparei Portanto Cebes explica tudo isso a Eveno tambeacutem

lhe diga que [61c] passe bem e que se for sensato venha a ser meu seguidor o mais

raacutepido possiacutevel Parto hoje ao que parece pois assim ordenam os ateniensesrdquo

240

Entatildeo Siacutemias disse ldquoque tipo de apelo eacute esse que faz a Eveno Soacutecrates Eu jaacute

me encontrei com ele diversas vezes e estou bem certo pelo que percebi que de modo

algum ele atenderaacute de bom grado ao seu apelordquo

ldquoComo natildeordquo disse ele ldquoEveno natildeo eacute filoacutesofordquo

ldquoParece-me que simrdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo Eveno desejeraacute atender ao meu apelo e qualquer um que desempenha

essa atividade com dignidade Contudo natildeo praticaraacute talvez violecircncia contra si

mesmo pois dizem [61d] que isso eacute iliacutecitordquo E enquanto dizia essas coisas colocou os

peacutes no chatildeo e sentado nesta posiccedilatildeo continuou o resto da conversa

Cebes entatildeo perguntou-lhe ldquoComo vocecirc pode dizer Soacutecrates que eacute iliacutecito

praticar violecircncia contra si mesmo e que o filoacutesofo desejaria seguir algueacutem que estaacute

morrendordquo

ldquoO quecirc Cebes Vocecirc e Siacutemias natildeo ouviram falar sobre esse assunto em seu

conviacutevio com Filolaurdquo

ldquoNada com clareza Soacutecratesrdquo

ldquoNa verdade eu tambeacutem falo desse assunto com base em coisas que ouvi falar

[61e] poreacutem nada me impede de dizer o que chegou aos meus ouvidos A propoacutesito

talvez o mais conveniente a quem estaacute prestes a viajar para o aleacutem seja mesmo examinar

a fundo e contar os mitos sobre essa viagem de que tipo acreditamos que ela seja Pois

que outra coisa fariacuteamos no tempo que nos resta ateacute o pocircr do solrdquo

241

ldquoEntatildeo por que razatildeo afirmam que eacute iliacutecito matar a si mesmo Soacutecrates Pois eu

mesmo ainda respondendo agravequela sua pergunta jaacute ouvi de Filolau quando ele convivia

conosco e tambeacutem de alguns outros que natildeo se deve fazer isso Mas nunca ouvi

algueacutem falar algo sobre esse assunto com clarezardquo

[62a] ldquoTenha acircnimordquo disse ldquopois de repente vocecirc poderaacute ouvir Contudo talvez

vocecirc se surpreenda por essa ser a uacutenica questatildeo simples entre as outras a qual nunca

ocorre a algueacutem como as demais que haacute ocasiatildeo em que para algumas pessoas melhor

seria estar morto do que viver vocecirc se surpreenderia se para essas pessoas ndash a quem

seria melhor estar morto ndash fosse iacutempio fazer um bem a si mesmas mas tivessem de

esperar por outro benfeitorrdquo

Cebes riu discretamente e lhe disse ldquoQue Zeus seja a minha testemunhardquo

falando em seu proacuteprio dialeto

[62b] ldquoA questatildeo ficaria sem sentidordquo disse Soacutecrates ldquopelo menos posta dessa

forma todavia eacute provaacutevel que tenha algum sentido A propoacutesito o que se diz nos

misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e

que ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece

extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendar Poreacutem Cebes acho que uma coisa estaacute bem

colocada que satildeo os deuses que cuidam de noacutes e que noacutes seres humanos somos um

propriedade dos deuses Vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoPenso simrdquo disse Cebes

242

[62c] ldquoPois entatildeordquo disse ele ldquose acaso um de seus bens viesse a matar a si

mesmo sem que vocecirc tivesse dado sinal de que o queria morto acaso natildeo se exasperaria

com ele e se pudesse lhe aplicaria uma puniccedilatildeo

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoSendo assim talvez tenha algum sentido a proibiccedilatildeo de tirarmos a proacutepria vida

sem que antes um deus nos imponha uma necessidade tal como a que agora estaacute diante

de noacutesrdquo

[62d] ldquoPelo menos isso parece plausiacutevelrdquo disse Cebes ldquoMas o que vocecirc disse haacute

pouco ndash que os filoacutesofos desejariam prontamente morrer ndash parece absurdo se o que

dissemos for razoaacutevel que o deus eacute quem cuida de noacutes e que noacutes somos seus bens Pois

natildeo faz sentido dizer que as pessoas mais sensatas natildeo deveriam ficar irritadas ao

perderem um cuidado administrado pelos mais nobres seres que existem ndash os deuses

Presumo que pelo menos uma pessoa sensata natildeo [62e] pensaria que poderia cuidar

melhor de si mesmo depois de libertar-se Soacute uma pessoa insensata talvez pensasse que

deveria fugir de seu dono pois natildeo raciocinaria que em vez de fugir de um senhor

beneacutevolo deveria antes permanecer atrelada a ele o maacuteximo possiacutevel Por esse motivo

sua fuga seria irrefletida Uma pessoa sensata por sua vez desejaria permanecer para

sempre ao lado de quem eacute melhor do que ela Portanto Soacutecrates o mais plausiacutevel eacute o

contraacuterio do que dissemos conveacutem que as pessoas sensatas se irritem por morrer e que

as insensatas se alegremrdquo

243

[63a] Ao ouvir isso Soacutecrates me parecia se contentar com a persistecircncia de

Cebes E olhando para noacutes disse ldquoCebes estaacute mesmo sempre perscrutando os

argumentos e natildeo se deixa persuadir pela primeira coisa que algueacutem venha a lhe dizerrdquo

E Siacutemias disse ldquoCom efeito Soacutecrates parece-me que agora algo faz sentido no

que Cebes estaacute dizendo com que motivaccedilatildeo homens verdadeiramente saacutebios fugiriam

de donos que satildeo melhores do que eles e os deixariam facilmente Parece-me que

Cebes em sua fala referia-se diretamente a vocecirc que aceita sem dificuldade

abandonar tanto a noacutes quanto aos beneacutevolos governantes os deuses como vocecirc mesmo

reconhecerdquo

[63b] ldquoEacute justo o que vocecircs falamrdquo disse ldquoE acho que vocecircs estatildeo dizendo que

eu devo me defender de seus questionamentos como se estiveacutessemos num tribunalrdquo

ldquoCertamenterdquo disse Siacutemias

ldquoEntatildeo vamos em frenterdquo disse ele ldquoQue eu tente me defender perante vocecircs

de modo mais convincente do que perante os meus juiacutezes Siacutemias e Cebesrdquo disse ldquose

eu natildeo pensasse que em primeiro lugar eu me juntaria a outros deuses saacutebios e bons e

depois a pessoas mortas [63c] que satildeo melhores do que as daqui seria injusto se eu natildeo

me irritasse por morrer Todavia estejam certos de que eu espero me juntar a homens

bons embora natildeo insista muito nisso no entanto que eu espero me juntar a deuses

senhores absolutamente bons estejam certos de que se haacute algo que eu asseguraria seria

isso Eacute por esse motivo que natildeo me irrito como aconteceria se natildeo fosse assim mas

244

tenho uma boa expectativa de que haja algo reservado para os mortos Pelo menos o que

se diz haacute muito tempo eacute que haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para

os mausrdquo

[63d] ldquoMas entatildeo Soacutecratesrdquo perguntou Siacutemias ldquovocecirc vai partir com esse

pensamento em sua cabeccedila ou vai compartilhaacute-lo conosco Pois me parece que ele eacute

mesmo um bem comum a todos noacutes e ao mesmo tempo serviraacute como sua defesa caso

venha a nos persuadir do que estaacute dizendordquo

ldquoTentarei fazecirc-lordquo disse ldquomas antes vejamos o que eacute isso que o nosso amigo

Criacuteton estaacute aparentemente querendo dizer jaacute haacute algum tempordquo

ldquoQue mais poderia ser Soacutecratesrdquo questionou Criacuteton ldquoHaacute algum tempo o

homem que vai lhe ministrar o veneno tem me dito que eu devo te orientar a falar o

miacutenimo possiacutevel Segundo ele a temperatura corporal sobe quando as pessoas estatildeo

conversando e isso deve ser [63e] evitado na aplicaccedilatildeo do veneno Haacute casos em que a

pessoa natildeo segue essa orientaccedilatildeo e eacute obrigada a tomar o veneno duas ou trecircs vezesrdquo

ldquoMande-o passearrdquo disse Soacutecrates ldquoEle que prepare uma duas ou ateacute trecircs doses

se for necessaacuterio eacute o trabalho delerdquo

ldquoJaacute adivinhava a sua respostardquo disse Criacuteton ldquomas eacute que haacute tempo ele me

perturba com issordquo

245

ldquoEsqueccedila-ordquo disse ldquoMas para vocecircs meus juiacutezes quero agora oferecer a

explicaccedilatildeo de como me parece plausiacutevel que um homem que dedicou de fato sua vida agrave

filosofia esteja confiante em face da morte iminente e tenha uma boa

[64a] expectativa de que receberaacute as maiores benesses no aleacutem quando morrer Como

isso pode ser Siacutemias e Cebes eu tentarei lhes explicarrdquo

ldquoTodos que se entregam corretamente agrave filosofia correm o risco de as demais

pessoas natildeo perceberem que eles se dedicam a morrer e estar morto e nada mais do que

isso Portanto caso isso seja verdade suponho que seria um absurdo almejar

exclusivamente isso durante uma vida inteira e afinal irritar-se por justamente ter

alcanccedilado aquilo que se desejou e se praticou por longo tempordquo

[64b] Siacutemias riu e disse ldquopor Zeus Soacutecrates agora vocecirc me fez rir embora hoje

eu natildeo esteja para brincadeira Pois acho que se a maioria das pessoas ouvisse isso daiacute

pensaria que se aplica bem aos filoacutesofos E nossos conterracircneos concordariam com eles

de que os filoacutesofos desejam a morte e eles perceberiam que isso mesmo que merecemrdquo

ldquoMas eles estariam dizendo a verdade Siacutemias com exceccedilatildeo de que natildeo deixam

de notar Pois eles natildeo notam qual eacute o sentido em que os verdadeiros filoacutesofos desejam

morrer e merecem morrer e o tipo de morte em questatildeo Conversemos sobre isso

apenas entre noacutesrdquo disse ldquoe [64c] mandemos essa maioria passear Consideramos que a

morte eacute alguma coisardquo

ldquoCom certezardquo disse Siacutemias em sua resposta

246

ldquoAcaso natildeo seria outra coisa senatildeo a separaccedilatildeo da alma do corpo E estar morto

natildeo seria isto o corpo apartado da alma passar a estar sozinho ele por si mesmo

enquanto a alma apartada do corpo passar a estar sozinha ela por si mesma A morte

seria outra coisa senatildeo isso

ldquoNatildeo eacute isso mesmordquo disse

[64d] ldquoObserve agora meu amigo se vocecirc tem a mesma visatildeo que eu tenho

Pois acredito que eacute a partir disso que vamos conhecer melhor o que propomos examinar

Vocecirc acha que o filoacutesofo se preocupa com aquilo que chamam de prazeres tais como os

de comer e beber

ldquoMinimamente Soacutecratesrdquo respondeu Siacutemias

ldquoE com o prazer sexualrdquo

ldquoDe modo algumrdquo

ldquoE quanto agraves demais diligecircncias relativas ao corpo Vocecirc acha que algueacutem como

um [64e] filoacutesofo daria valor a essas coisas Por exemplo a posse de vestes e calccedilados

de luxo e outros objetos que embelezam o corpo vocecirc acha que valorizaria ou

desprezaria essas coisas a menos que fosse realmente necessaacuterio se envolver com elas

ldquoEu acho que as desprezariardquo respondeu ldquopelo menos o filoacutesofo de verdaderdquo

ldquoEntatildeo vocecirc natildeo acha que em sumardquo perguntou ldquoa preocupaccedilatildeo de algueacutem

assim natildeo recairia sobre o corpo mas se voltaria para na medida do possiacutevel libertar-se

dele e inclinar-se para a almardquo

247

ldquoSim eu achordquo

ldquoEm primeiro lugar natildeo fica claro que em questotildees dessa natureza o[65a] filoacutesofo

busca desvincular o maacuteximo possiacutevel a sua alma da comunhatildeo com seu corpo

diferentemente das demais pessoas

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoDe fato a maioria das pessoas presume Siacutemias que o indiviacuteduo para quem

nada disso eacute apraziacutevel e que natildeo toma parte nessas coisas que mencionei natildeo merece

viver para essa maioria quem natildeo tem qualquer interesse nas coisas que se obteacutem por

meio do corpo estaacute agrave beira da morterdquo

ldquoEacute bem verdade o que vocecirc falardquo

ldquoE o que dizer sobre a aquisiccedilatildeo da proacutepria sabedoria O corpo seria ou [65b]

natildeo um obstaacuteculo caso algueacutem o tomasse como um parceiro na investigaccedilatildeo Estou

perguntando aproximadamente o seguinte visatildeo e audiccedilatildeo captam alguma verdade para

as pessoas ou os poetas tecircm razatildeo em estar sempre repetindo para noacutes aquela ladainha

de que nada ouvimos ou vemos com precisatildeo E se de fato esses sentidos do corpo natildeo

tecircm precisatildeo nem clareza dificilmente os demais teriam pois satildeo todos inferiores a

esses dois presumo eu Vocecirc tambeacutem natildeo achardquo

ldquoCom certezardquo disse

248

ldquoEntatildeordquo disse ele ldquoquando a alma alcanccedila a verdade Pois sempre que busca

examinar algo em companhia do corpo fica claro que nessas circunstacircncias eacute enganada

por elerdquo

[65c] ldquoVocecirc estaacute falando a verdaderdquo

ldquoPortanto natildeo seria porventura no ato de raciocinar e natildeo de outro modo que as

coisas que satildeo se mostram com clareza para a almardquo

ldquoSimrdquo

ldquoA alma raciocina melhor suponho eu quando nenhuma dessas coisas seja

audiccedilatildeo visatildeo dor ou algum prazer vier a perturbaacute-la mas mandando o corpo passear

ficar o maacuteximo possiacutevel sozinha ndash ela por si mesma ndash e mantendo-se o quanto puder

livre de comunhatildeo e contato com o corpo busca alcanccedilar aquilo que eacute

ldquoEacute assim mesmordquo

ldquoNatildeo eacute tambeacutem nessa ocasiatildeo que a alma do filoacutesofo despreza o corpo e [65d]

foge dele em busca de ficar sozinha ndash ela por si mesmardquo

ldquoEacute o que parecerdquo

ldquoE sobre a seguinte questatildeo Siacutemias afirmamos que existe um justo em si

mesmo ou natildeordquo

ldquoPor Zeus claro que simrdquo

ldquoE tambeacutem um belo e um bomrdquo

ldquoComo natildeordquo

249

ldquoE alguma vez vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo

ldquoDe modo algumrdquo disse

ldquoE vocecirc jaacute alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por

meio do corpo Eu estou falando de todas as coisas como grandeza sauacutede [65e] forccedila

e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacute Por acaso

eacute por meio do corpo que se pode contemplar a absoluta verdade delas ou eacute somente

aquele que se puser a pensar com rigor e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber

cada coisa em si que poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas

Certamente

Entatildeo natildeo faria isso da maneira mais pura aquele que por meio do proacuteprio

pensamento [66a] chegasse na medida do possiacutevel a cada coisa sem comprometer o

pensamento com a visatildeo e sem deixar que o raciociacutenio seja acompanhado por algum

outro sentido mas utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura natildeo

tentaria perseguir cada uma das coisas que satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura

depois de afastar-se na medida do possiacutevel dos olhos dos ouvidos e por assim dizer do

corpo inteiro uma vez que quando o corpo entra em comunhatildeo com a alma ele

atrapalha e impede a alma de apoderar-se da verdade e da sabedoria Natildeo seria assim

Siacutemias que essa pessoa alcanccedilaria a coisa que eacuterdquo

ldquoGrande verdaderdquo disse Siacutemias ldquoo que vocecirc estaacute dizendo Soacutecratesrdquo

250

[66b] ldquoPor causa de tudo issordquo disse ldquoeacute necessaacuterio que os legiacutetimos filoacutesofos

partilhem um tipo de crenccedila que deixam transparecer no teor de conversas como esta ldquoeacute

possiacutevel que haja um tipo de atalho que nos conduza em companhia da razatildeo na

investigaccedilatildeo porque enquanto [66c] tivermos o corpo e a nossa alma estiver em

conexatildeo com esse mau jamais possuiremos de modo satisfatoacuterio aquilo que almejamos

e costumamos chamar de verdade Pois o corpo nos daacute muito trabalho na medida em

que necessita de nutriccedilatildeo aleacutem disso algumas doenccedilas nos impedem de caccedilar a coisa

que eacute quando nos acometem Ele nos enche de desejos eroacuteticos apetites temores

fantasias de todo tipo e muita futilidade a ponto de ser plenamente verdadeiro o que se

costuma dizer o corpo natildeo nos daacute chance de pensar em algo em momento algum

Guerras revoltas lutas tudo isso eacute produzido tatildeo somente pelo corpo e seus apetites

pois eacute a [66d] aquisiccedilatildeo de riquezas que origina as guerras e eacute o corpo que nos forccedila a

adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircncia Por todas essas razotildees eacute

devido ao corpo que natildeo temos tempo de fazer da filosofia a nossa ocupaccedilatildeo E o pior

de tudo eacute que se tivermos uma folga dele e nos voltarmos a examinar algo o corpo

novamente se intromete em cada etapa de nossa investigaccedilatildeo com o distuacuterbio e a

perturbaccedilatildeo que produz e nos aturde de tal modo que natildeo podemos contemplar a

verdade por causa dele Todavia jaacute estaacute demonstrado por noacutes que se [66e] acaso

pudermos chegar a um conhecimento puro de algo devemos nos separar do corpo e

observar as coisas por si mesmas com a alma por si mesma Como parece soacute teremos

251

aquilo que desejamos e dizemos ser amantes a sabedoria por ocasiatildeo de nossa morte

como o argumento daacute a entender e natildeo enquanto estivermos vivos Pois se natildeo eacute

possiacutevel obter um conhecimento puro de algo enquanto houver a companhia do corpo

das duas uma ou natildeo haacute como obter esse conhecimento ou isso soacute seraacute possiacutevel depois

da morte pois essa eacute a uacutenica ocasiatildeo em que a [67a] alma fica ela proacutepria por si mesma

separada do corpo ao passo que antes de morrer isso natildeo acontece E durante a vida

como parece ficaremos o quanto mais proacuteximo do conhecimento se evitarmos ao

maacuteximo interaccedilatildeo e comunhatildeo com o corpo exceto quando absolutamente necessaacuterio e

natildeo nos infectarmos com a sua natureza mas nos purificarmos dele ateacute que o proacuteprio

deus nos liberte Se dessa maneira nos preservarmos puros e nos desvencilharmos da

insensatez do corpo estaremos presumivelmente na companhia de outros que satildeo como

noacutes e [67b] conheceremos por noacutes mesmos tudo que eacute sem mistura e isso suponho eu

eacute a verdade Pois natildeo eacute liacutecito que o impuro alcance o purordquo Eu acho que eacute esse tipo de

coisa Siacutemias que eacute necessaacuterio os verdadeiros amantes do conhecimento pensarem e

partilharem entre si Ou vocecirc natildeo pensa assimrdquo

ldquoMais do que qualquer coisa Soacutecratesrdquo

ldquoPortantordquo disse Soacutecrates ldquose tudo isso for verdade amigo haacute uma grande

esperanccedila para quem chega ao lugar para onde me dirijo agora de que ali mais do que

em qualquer outro [67c] lugar iraacute adquirir plenamente tudo aquilo que buscamos com

bastante afinco no decorrer da vida Assim a jornada que me eacute imposta agora se mostra

252

atrelada a uma boa esperanccedila e o mesmo se daacute para qualquer pessoa que considera seu

pensamento preparado como se estivesse purificadordquo

Certamente disse Siacutemias

ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o

quanto possiacutevel a alma do corpo e acostumaacute-la ela proacutepria por si mesma a concentrar-se

e recolher-se apartada de cada membro do corpo e a viver o maacuteximo possiacutevel ela

proacutepria por si mesma tanto [67d] agora como no porvir liberta do corpo como que

liberta de cadeias

ldquoCertamenterdquo disse

ldquoE acaso natildeo eacute justamente isto que se chama morte libertaccedilatildeo e separaccedilatildeo da

alma do corpordquo

ldquoSem duacutevidardquo disse

ldquoEntatildeo como dizemos satildeo apenas aqueles que praticam filosofia corretamente

que estatildeo sempre ansiosos para liberar a alma E a ocupaccedilatildeo dos filoacutesofos natildeo seria

justamente isto natildeo eacute uma liberaccedilatildeo e uma separaccedilatildeo da alma do corpo Ou natildeo eacute

ldquoEvidente que eacuterdquo

[67e] ldquoE acaso natildeo viraria uma piada como eu dizia no iniacutecio um homem que

se irrita com a chegada da morte depois de passar a vida inteira treinando para estar o

quanto mais perto delardquo

ldquoUma piada com certezardquo

253

ldquoPortanto Siacutemiasrdquo disse ldquoos que filosofam apropriadamente se exercitam em

morrer e satildeo as uacuteltimas pessoas a temer a morte Examina a questatildeo com base no que

vou dizer Se esses filoacutesofos estatildeo em completa desavenccedila com o corpo e desejam que a

alma esteja sozinha por si [68a] mesma e se na hora de tudo isso acontecer eles

passassem a temer e a irritar-se natildeo seria totalmente sem sentido que se dirigissem a

contragosto para o lugar onde em sua chegada esperam encontrar o que amaram a vida

inteira ndash a sabedoria ndash e onde esperam se livrar da convivecircncia com o que estavam em

desavenccedila Porventura natildeo haacute muitos homens que na [68b] ocasiatildeo da morte de

pessoas queridas tais como efebos esposas e filhos desejam voluntariamente partir com

elas para o Hades levados pela esperanccedila de ali ver e conviver com seus entes

queridos Natildeo seria o mesmo caso de uma pessoa que ama a sabedoria e manteacutem

fortemente essa msma esperanccedila ndash de ter em nenhum algum a natildeo ser no Hades um

encontro digno com ela Acaso essa pessoa se irritaria ao morrer e se encaminharia a

contragosto para o Hades Longe disso meu amigo se for realmente um filoacutesofo pois

ele susteraacute firmemente a opiniatildeo de que em nenhum algum a natildeo ser no Hades ele teraacute

um encontro puro com a sabedoria Se tudo isso for realmente assim volto a questionar

natildeo eacute completamente sem sentido que uma pessoa desse tipo venha a temer a morterdquo

ldquoTotalmente sem sentido por Zeusrdquo disse

ldquoEntatildeordquo disse ldquoquando vocecirc vir uma pessoa irritada porque estaacute prestes a

morrer vocecirc [68c] natildeo teraacute uma prova suficiente de que natildeo se trata de um filoacutesofo

254

mas de um amante do corpo Suponho que essa pessoa seja amante do dinheiro ou

amante da honra ou de ambas as coisasrdquo

ldquoEacute exatamente como vocecirc estaacute falandordquo disse

ldquoAcaso Siacutemiasrdquo perguntou ldquoa chamada coragem natildeo pertence especialmente

agravequeles que tecircm tal disposiccedilatildeordquo

ldquoNatildeo resta duacutevidardquo disse

ldquoE quanto agrave temperanccedila nome empregado ateacute mesmo pela maioria dos homens

a qual consiste em natildeo ser instigado pelos apetites em atitude de desprezo e

comedimento Acaso natildeo pertence exclusivamente a essas pessoas que desprezam

sobretudo o corpo e vivem dedicados agrave filosofia

[68d] ldquoNecessariamenterdquo disse

ldquoPoisrdquo disse ele ldquose vocecirc quiser pensar na coragem e na temperanccedila das demais

pessoas vai se deparar com algo sem sentidordquo

ldquoComo assim Soacutecratesrdquo

ldquoVocecirc natildeo saberdquo perguntou ldquoque todas essas pessoas consideram a morte como

sendo um dos grandes males

ldquoClaro que seirdquo disse

Entatildeo eacute por medo de males maiores que os corajosos encaram a morte quando a

tem de encarar

Isso mesmo

255

Se for assim o pacircnico e o medo tornam as pessoas corajosas com exceccedilatildeo dos

filoacutesofos Contudo eacute absurdo que medo e covardia tornem algueacutem corajoso

[68e] Completamente

E o que dizer dos que entre elas satildeo temperantes Natildeo lhes ocorre o mesmo

uma intemperanccedila os torna temperantes Podemos ateacute dizer que eacute impossiacutevel mas o que

lhes ocorre eacute o mesmo que se passa com os que possuem essa simploacuteria temperanccedila

porque temem ser privados dos diversos prazeres que desejam absteacutem-se de alguns

apenas quando se rendem a outros E ainda que chamem de intemperanccedila o ser

controlado pelos prazeres o que ocorre eacute que [69a] controlam certos prazeres apenas

quando se rendem a outros Eacute aquilo que eu acabei de dizer de um certo modo eacute por

causa da intemperanccedila que elas tecircm se tornado temperantes

Eacute o que parece

Meu querido Siacutemias no tocante agrave virtude natildeo seria uma transaccedilatildeo vaacutelida trocar

prazeres por prazeres dores por dores temor por temor e superior por inferior como se

fossem dinheiro porque a uacutenica moeda vaacutelida pela qual se deveria trocar todas essas

coisas seria o conhecimento Mediante essa moeda ndash o conhecimento ndash seria possiacutevel

realizar transaccedilotildees de [69b] compra e venda de coragem temperanccedila justiccedila e em

suma de toda verdadeira virtude sendo irrelevante a adiccedilatildeo ou subtraccedilatildeo de prazeres

temores e outras coisas desse tipo Se essas coisas satildeo separadas do conhecimento e

trocadas umas pelas outras esse tipo de virtude seria enganosa proacutepria de escravos sem

256

qualquer valor ou verdade inerente Mas a verdade realmente seria que a temperanccedila a

justiccedila e a coragem satildeo um tipo de purificaccedilatildeo de todas as coisas desse [69c] tipo

sendo o proacuteprio conhecimento um rito de purificaccedilatildeo E eacute improvaacutevel que os fundadores

dos misteacuterios que seguimos eram pessoas mediacuteocres Na realidade desde tempos tardios

eles tecircm dito em linguagem enigmaacutetica que todo natildeo iniciado e descumpridor dos ritos

jazeraacute na lama quando adentrar o Hades enquanto o purificado e iniciado que ali

chegam habitaratildeo com os deuses Pois eacute fato que como dizem os que celebram os ritos

muitos carregam o tirso mas [69d] poucos satildeo bacantes E estes satildeo na minha opiniatildeo

os que se ocupam corretamente da filosofia Eu desejei me tornar um deles de toda

maneira empreguei toda a minha forccedila nunca desperdiccedilando uma oportunidade de

minha vida Se desejei a coisa certa e alcancei o alvo saberei quando chegar ao aleacutem

dentro em breve se a divindade assim desejar conforme eu penso Portanto Siacutemias e

Cebes disse ele nisso consiste a minha defesa de quatildeo [69e] natural eacute que eu os esteja

deixando e tambeacutem os senhores aqui presentes sem anguacutestia ou irritaccedilatildeo pois

considero que laacute mais do que aqui encontrarei bons senhores e companheiros Para

muitos forneccedilo uma defesa sem credibilidade Portanto se para vocecircs eu estivesse

sendo mais persuasivo na minha defesa do que eu fui para os juiacutezes de Atenas eu jaacute me

daria por satisfeito

Depois que Soacutecrates falou essas coisas Cebes interveio e disse Soacutecrates acho

que vocecirc [70a] falou muito bem mas quando o assunto eacute a alma vocecirc gera profunda

257

duacutevida nas pessoas Existe o receio de que ao separar-se do corpo a alma estaria em

nenhum lugar ela seria destruiacuteda e pereceria no exato dia da morte imediatamente

quando se separa do corpo e ao deixaacute-lo desapareceria logo depois de se dissipar como

vento e fumaccedila natildeo mais estando em nenhum lugar Se acaso estivesse em algum lugar

recolhida e sozinha separada dos males que haacute [70b] pouco vocecirc expocircs haveria uma

tremenda e bela esperanccedila Soacutecrates de que vocecirc fala a verdade Mas talvez essa

questatildeo de saber se a alma do ser humano existe depois da morte e possui alguma

capacidade e conhecimento requeira uma soacutelida persuasatildeo e feacute

Vocecirc diz a verdade Cebes respondeu Soacutecrates Mas o que faremos entatildeo

Gostaria de discutir sobre esse assunto para ver o que eacute ou natildeo plausiacutevel

Eu particularmente disse Cebes ouviria com prazer qualquer que fosse a tua

opiniatildeo sobre esse assunto

Eu realmente acho disse Soacutecrates que ningueacutem que ouviu essa nossa conversa

nem [70c] mesmo um comedioacutegrafo diria que dou uma de charlatatildeo com um discurso

descabido Se vocecirc estaacute de acordo devemos iniciar a investigaccedilatildeo

ARGUMENTO CIacuteCLICO

Examinemos a questatildeo da seguinte maneira se de algum modo as almas das

pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeo Existe um relato antigo o qual guardamos

258

na memoacuteria segundo o qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam

novamente para caacute provindo dos mortos Se realmente eacute verdade que os vivos provecircm

dos mortos que mais se poderia concluir [70d] senatildeo que as nossas almas estatildeo no

aleacutem Pois de modo algum as almas voltariam a reencarnar se jaacute natildeo existissem Essa

seria uma prova suficiente de que isso eacute verdade se realmente ficasse evidente que os

seres vivos provecircm exclusivamente dos mortos Mas se isso natildeo for verdade

precisamos de um novo argumento

Seguramente disse Cebes

Mas se vocecirc quiser compreender mais facilmente disse natildeo examine somente o

que se vincula ao ser humano mas considere tambeacutem todos os animais e plantas Em

suma considerando [70e] tudo o que tem uma geraccedilatildeo vejamos se todas essas coisas

satildeo geradas da seguinte maneira os opostos de seus opostos e de nenhum outro tudo

quanto apresenta uma relaccedilatildeo semelhante como o belo cujo oposto eacute o feio o justo

cujo oposto eacute o injusto e inuacutemeros outros exemplos como esses Portanto

examinaremos se tudo que tem um oposto eacute gerado necessariamente de seu oposto e de

nenhum outro Por exemplo algo que se torna maior natildeo se torna maior

necessariamente a partir de ter sido menor antes

Sim

[71a] E o que se torna menor natildeo eacute a partir de ser maior antes que depois

torna-se menor

259

Eacute assim mesmo disse

E a partir do forte o deacutebil e a partir do lento o raacutepido

Seguramente

E o inferior proveacutem do superior e o mais justo do mais injusto

Como natildeo

Temos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina dessa maneira as

coisas opostas a partir dos seus opostos

Seguramente

E o que mais Natildeo ocorre tambeacutem o seguinte em cada par de opostos jaacute que

satildeo dois [71b] opostos em cada caso existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo um do

primeiro para o segundo e outro do segundo para o primeiro Entre uma coisa maior e

uma menor natildeo haacute aumento e diminuiccedilatildeo e a isso chamamos de aumentar e diminuir

Sim disse

E tambeacutem separaccedilatildeo e uniatildeo resfriamento e aquecimento e assim por diante

Mesmo que natildeo tenhamos um nome para cada processo natildeo ocorre necessariamente o

mesmo em cada par de opostos isto eacute cada um proveacutem de outro havendo um processo

de geraccedilatildeo que vai de um para o outro

Seguramente disse

[71c] Existe entatildeo perguntou um oposto para o viver assim como estar

adormecido eacute oposto de estar acordado

260

Seguramente respondeu

E o que seria

Estar morto disse

Entatildeo cada um desses natildeo proveacutem a partir do outro jaacute que satildeo opostos E jaacute que

satildeo dois natildeo existem tambeacutem dois processos de geraccedilatildeo entre ambos

Como natildeo

Eu te falarei um dos pares que eu mencionei haacute pouco disse Soacutecrates o proacuteprio

par e os seus processos de geraccedilatildeo Vocecirc em seguida me falaraacute o outro Eu estou

falando do estar dormindo e estar acordado e que o estar acordado proveacutem do estar

dormindo e o estar [71d] dormindo proveacutem do estar acordado e seus processos de

geraccedilatildeo satildeo cair no sono e despertar Isso eacute suficiente para vocecirc ou natildeo perguntou

Completamente

Agora vocecirc me diz do mesmo jeito falou no tocante agrave vida e agrave morte Vocecirc natildeo

concorda que estar vivo eacute o oposto de estar morto

Certamente

E que eles provecircm um do outro

Sim

O que eacute entatildeo que proveacutem do que estaacute vivo

O que estaacute morto respondeu

E o que disse do que estaacute morto

261

O que estaacute vivo devo concordar respondeu

Nesse caso eacute dos que estatildeo mortos Cebes que tanto as coisas quanto as pessoas

que vivem provecircm

[71e] Estaacute bem claro disse

Portanto as nossas almas estatildeo no Hades

Eacute o que parece

Certamente dos dois processos de geraccedilatildeo em questatildeo ao menos um deles eacute

bastante oacutebvio pois presumo que o morrer eacute obviamente um deles ou natildeo

Seguramente disse

O que entatildeo faremos Natildeo retribuiremos com o processo de geraccedilatildeo oposta pois

do jeito que estaacute a natureza ficaraacute capenga Ou natildeo seria necessaacuterio equilibrar o morrer

com o processo de geraccedilatildeo oposto

Sem duacutevida disse

E qual seria

O reviver

[72a] Entatildeo disse se de fato existe o reviver este natildeo seria a geraccedilatildeo a partir

dos que estatildeo mortos para os que estatildeo vivos

Seguramente

Portanto concordamos tambeacutem nisso os que estatildeo vivos provecircm dos que estatildeo

mortos natildeo menos do que os que estatildeo mortos provecircm dos que estatildeo vivos e essa me

262

parece uma prova suficiente de que as almas dos que estatildeo mortos necessariamente

existem em algum lugar de onde regressam agrave vida

Soacutecrates eu acho que disse com base no que foi acordado as coisas satildeo

necessariamente desse jeito

Cebes disse veja como em minha opiniatildeo nosso acordo natildeo eacute infundado se

nesse processo de geraccedilatildeo nem sempre um oposto retribuiacutesse o outro como perfazendo

um movimento [72b] circular mas o processo de geraccedilatildeo fosse linear indo apenas a

partir de um oposto para o outro sem que retornasse novamente para o primeiro

fazendo assim a trajetoacuteria reversa vocecirc natildeo sabe que todas as coisas ao final teriam a

mesma forma experimentariam uma mesma condiccedilatildeo e o processo de geraccedilatildeo

estancaria

Tem razatildeo falou

Natildeo eacute difiacutecil disse entender o que estou dizendo Por exemplo se houvesse o

adormecer sem um despertar correspondente proveniente do adormecer natildeo percebe

que tudo isso faria [72c] de Eudiacutemion um caso ordinaacuterio e sem repercussatildeo em nenhum

lugar pois tudo quedaria na mesma condiccedilatildeo que ele o dormir E se todas as coisas se

unissem mas natildeo se separassem logo ocorreria o dito de Anaxaacutegoras ldquotodas as coisas

juntasrdquo Da mesma maneira caro Cebes se tudo quanto participa da vida viesse a

morrer e as coisas mortas permanecessem na mesma forma depois de mortas sem

retornar de novo agrave vida acaso natildeo seria absolutamente necessaacuterio que ao [72d] final

263

tudo acabasse morto e nada vivo E se as coisas vivas nascessem a partir de outras

coisas vivas e as coisas vivas morrem o que as impediria de fenecer na morte

Acho que nada Soacutecrates disse Cebes Vocecirc fala a verdade sem omissatildeo

Para mim Cebes eacute exatamente assim E noacutes natildeo estamos enganados em

concordar nesse assunto pois realmente existe o reviver os vivos nascem dos mortos e

as almas dos mortos existem

ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA

[72e] Ainda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que vocecirc

ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute do que

reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no

passado as coisas que agora recordamos Mas isto seria impossiacutevel a menos que a nossa

alma existisse em algum lugar antes [73a] de assumir essa forma humana De modo

que tambeacutem de acordo com esse ensino a alma parece ser imortal

Mas Cebes Siacutemias questionou quais satildeo mesmo as provas de tudo isso

Recorda-me pois no momento natildeo me lembro bem

Consiste disse Cebes de um uacutenico e beliacutessimo argumento quando as pessoas

satildeo questionadas por algueacutem que lhes questiona bem elas respondem todas as coisas

com propriedade Mas se conhecimento e reta razatildeo jaacute natildeo estivessem internalizados

264

natildeo seriam [73b] capazes de fazer isso E quando algueacutem lhes mostra diagramas ou algo

desse tipo aiacute fica bem claro que as coisas satildeo mesmo assim

Mas se vocecirc Siacutemias natildeo estaacute convencido com esse argumento falou Soacutecrates

examina a questatildeo a partir de outro acircngulo e vecirc se compartilha do nosso pensamento

Pois vocecirc estaacute em duacutevida sobre como o aprendizado pode ser reminiscecircncia natildeo eacute isso

Natildeo tenho essa duacutevida respondeu Siacutemias Mas eu necessito experimentar esse

ensino ndash a reminiscecircncia Soacute pela tentativa de explanaccedilatildeo de Cebes jaacute recordo e me

convenccedilo mas o meu interesse de ouvir natildeo diminuiu

[73c] Veja o seguinte respondeu Soacutecrates Concordamos sem duacutevida que se

algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse

conhecimento

Seguramente disse

Acaso natildeo concordamos tambeacutem que se o conhecimento adveacutem de uma forma

peculiar ocorre reminiscecircncia Explicarei que forma peculiar eacute essa Quando algueacutem

vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem

lhe vem agrave mente um segundo item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas

de um distinto do primeiro natildeo seria [73d] correto dizer que recordou esse segundo

item que lhe veio agrave mente

O que vocecirc quer dizer

265

Vou exemplificar Presumo que o conhecimento de uma pessoa eacute diferente do

conhecimento de uma lira natildeo eacute

Como natildeo

Entatildeo vocecirc deve saber que acontece o seguinte com os amantes quando veem

uma lira um manto ou alguma outra coisa que seus amados costumam utilizar eles

reconhecem a lira e logo trazem agrave mente a imagem do amado a quem pertence a lira

Isso eacute reminiscecircncia O mesmo ocorre com aquele que vecirc Siacutemias e geralmente recorda-

se de Cebes e presumo que existem inuacutemeros casos como esse

Por Zeus inuacutemeros disse Siacutemias

[73e] Portanto disse esse tipo de coisa natildeo eacute reminiscecircncia Especialmente

quando algueacutem tem uma experiecircncia de reminiscecircncia que envolve coisas do passado jaacute

esquecidas

Seguramente disse

O que mais perguntou Natildeo eacute possiacutevel que algueacutem veja a pintura de um cavalo

ou a pintura de uma lira e recorde-se de uma pessoa e quando vecirc a pintura de Siacutemias

recorde-se de Cebes

Seguramente

E quando vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias recorde-se do proacuteprio Siacutemias

[74a] Certamente disse

266

De acordo com todos esses exemplos a reminiscecircncia natildeo pode ocorrer tanto a

partir de coisas semelhantes quanto de coisas dissemelhantes

Sim

Mas sempre que se recorda de algo a partir de coisas semelhantes natildeo passa

necessariamente pela experiecircncia de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se

recordou e o objeto recordado se assemelham

Seguramente disse

Examina agora disse Soacutecrates se isso estaacute certo Diriacuteamos como presumo que

existe um Igual Natildeo estou me referindo a um graveto igual a outro a uma pedra igual a

outra ou a qualquer coisa desse tipo mas a algo de natureza diferente e que estaacute aleacutem

de tudo isso o Igual em si mesmo Diremos que isso existe ou natildeo

[74b] Por Zeus a reposta eacute um retumbante sim respondeu Siacutemias

Acaso sabemos o que eacute isso

Seguramente disse

Mas de onde adquirimos o conhecimento disso Foi das coisas que

mencionamos haacute pouco Quando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso

trazemos agrave mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delas Ou natildeo acha que

haja distinccedilatildeo entre eles Examina o caso de pedras e gravetos iguais enquanto

permanecem o mesmo agraves vezes natildeo parecem iguais para uns e desiguais para outros

Seguramente

267

[74c] E mais os Iguais em si mesmo jaacute te pareceram desiguais ou a Igualdade

jaacute te pareceu Desigualdade

Jamais Soacutecrates

Nesse caso disse essas coisas iguais e o Igual em si natildeo satildeo a mesma coisa

Natildeo mesmo Soacutecrates

Entatildeo perguntou eacute mesmo partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave mente e

adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais sejam diferentes

Verdade disse

E aquilo que se recordou natildeo eacute igual ou diferente das coisas a partir das quais se

recordou

Seguramente

Mas natildeo faz diferenccedila disse Contanto que vocecirc veja algo e a partir dessa visatildeo

traga [74d] outra coisa agrave mente seja igual ou diferente jaacute eacute necessariamente um caso de

reminiscecircncia

Seguramente

E natildeo nos ocorre o mesmo tipo de coisa em relaccedilatildeo aos gravetos e outras coisas

iguais sobre a qual falamos haacute pouco Acaso esses iguais natildeo nos parecem que satildeo tal

como eacute o Igual em si Carecem ou natildeo de algo para serem tal como eacute o Igual em si

mesmo

Carecem e muito disse

268

Acaso concordamos tambeacutem com o seguinte quando algueacutem vecirc um objeto e

pensa que [74e] isso que vecirc tem a pretensatildeo de ser tal como uma daquelas realidades

mas acaba sendo inferior natildeo se presume que o dono desse pensamento

necessariamente jaacute tivesse um conhecimento preacutevio da realidade com a qual diz ele o

objeto visto se assemelha ainda que deficientemente

Necessariamente

Natildeo acha entatildeo que temos tido uma experiecircncia dessa natureza em relaccedilatildeo agraves

coisas iguais e ao Igual em si mesmo

Completamente

[75a] Entatildeo necessariamente adquirimos um conhecimento preacutevio do Igual

ainda antes da ocasiatildeo em que pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos

que todas elas almejam ser tal como o Igual mas satildeo inferiores a elas

Isso mesmo

Certamente concordamos com o seguinte natildeo haacute como jaacute termos pensado no

Igual nem haacute chance de isso acontecer a natildeo ser a partir da visatildeo tato ou algum outro

sentido Como eu digo os sentidos satildeo todos o mesmo

Satildeo todos o mesmo Soacutecrates pelo menos em relaccedilatildeo ao que o argumento

pretende provar

269

Entatildeo os sentidos natildeo nos fazem pensar que todas as coisas que pertencem ao

domiacutenio [75b] dos sentidos ndash as coisas sensiacuteveis ndash querem ser como o Igual mas satildeo

inferiores a ele O que diriacuteamos

Eacute assim mesmo

E antes de comeccedilarmos a ver ouvir e a utilizar os outros sentidos presumo que

foi necessaacuterio ter adquirido o conhecimento daquilo que eacute o Igual em si mesmo e soacute

entatildeo passar a comparar as coisas iguais decorrentes dos sentidos com o Igual em si

mesmo e a notar que todas elas almejam ser da mesma natureza que ele mas lhes satildeo

inferiores

Foi mesmo necessaacuterio Soacutecrates com base no que dissemos antes

Pois natildeo foi logo apoacutes o nascimento que comeccedilamos a ver a ouvir e a utilizar os

demais sentidos

Seguramente

[75c] Como estamos dizendo devemos ter adquirido o conhecimento do Igual

antes mesmo disso

Sim

Portanto parece-me que adquirimos esse conhecimento necessariamente antes

de nascer

Parece

270

Se o adquirimos antes de nascer e jaacute nascemos com ele natildeo conheciacuteamos antes

e imediatamente depois do nascimento natildeo somente o Igual mas tambeacutem o Maior o

Menor e todas [75d] as outras coisas dessa natureza Pois o nosso presente argumento

natildeo eacute mais sobre o Igual do que sobre o Belo em si mesmo o Justo e o Piedoso e como

tenho dito a respeito de tudo que identificamos com o selo lsquoo que eacute em si mesmorsquo tanto

nas perguntas que formulamos quanto nas respostas que damos Desse modo

adquirimos o conhecimento de tudo isso necessariamente antes de nascer

Isso mesmo

E se o conhecimento adquirido natildeo fosse esquecido sempre nasceriacuteamos em

posse dele e sempre o manteriacuteamos ao longo da vida Pois conhecer eacute isso manter o

conhecimento adquirido e natildeo se desvencilhar mais dele E o esquecimento Siacutemias natildeo

seria o que chamamos de perda do conhecimento

[75e] Sem sombra de duacutevida disse Soacutecrates

No tocante aos conhecimentos que tivemos no passado a respeito daquelas

coisas penso que se os adquirimos antes de nascer perdemos por ocasiatildeo do

nascimento e os recuperamos posteriormente utilizando os sentidos Assim o que

chamamos de aprendizagem natildeo consistiria em recuperar um conhecimento que nos

pertencia E natildeo estariacuteamos certos ao chamar isso de reminiscecircncia

Seguramente

271

[76a] Isso jaacute se mostrou possiacutevel quando algueacutem tem uma percepccedilatildeo de algo

utilizando a visatildeo audiccedilatildeo ou algum outro sentido a partir disso traz agrave mente um

segundo item o qual jaacute havia esquecido cuja relaccedilatildeo com o primeiro pode ser de

semelhanccedila ou dissemelhanccedila Como digo uma das duas ou nascemos em posse do

conhecimento dessas coisas e todos noacutes mantemos esse conhecimento ao longo da vida

ou aqueles que dizemos que aprendem nada mais fazem do que recordar de modo que

a aprendizagem seria reminiscecircncia

Isso mesmo Soacutecrates

Entatildeo Siacutemias qual opccedilatildeo vocecirc escolhe Noacutes nascemos em posse do

conhecimento ou soacute [76b] posteriormente eacute que recordamos as coisas cujo

conhecimento adquirimos previamente

No momento Soacutecrates natildeo tenho como escolher

Como natildeo Faccedila a sua escolha e diga o que pensa do seguinte caso uma pessoa

que tem conhecimento saberia ou natildeo dar uma explicaccedilatildeo daquilo que conhece

Certamente saberia Soacutecrates

Vocecirc acha que todas as pessoas saberiam dar uma explicaccedilatildeo sobre as coisas que

acabamos de falar

Gostaria que fosse assim disse Siacutemias mas receio que amanhatilde por volta dessa

hora natildeo haveraacute um ser humano que possa fazer isso com propriedade

272

[76c] Entatildeo Siacutemias disse ele vocecirc natildeo acha que todas as pessoas conhecem

aquelas coisas

De modo algum

Acaso elas se recordam das coisas que um dia aprenderam

Necessariamente

Quando as nossas almas adquiriram o conhecimento delas Eacute claro que natildeo foi a

partir do momento em que nascemos como seres humanos

Claro que natildeo

Antes entatildeo

Sim

Entatildeo Siacutemias as almas existiram anteriormente antes de assumirem a forma

humana ndash estavam destituiacutedas de corpo ndash e possuiacuteam conhecimento

A natildeo ser Soacutecrates que adquirimos esses conhecimentos na mesma hora em que

nascemos Resta ainda essa opccedilatildeo de tempo

[76d] Que seja meu amigo Mas em que ocasiatildeo noacutes os perdemos Nascemos

sem eles como acordamos haacute pouco ou noacutes os perdemos na ocasiatildeo em que os

adquirimos Ou vocecirc pode mencionar outra ocasiatildeo

De modo algum Soacutecrates Nem me dei conta que eu falava coisas sem sentido

Entatildeo Siacutemias disse ele vamos colocar as coisas assim se realmente existem as

coisas sobre as quais natildeo paramos de falar ndash o Belo o Bom e toda essecircncia dessa

273

natureza ndash associando [76e] a elas as coisas que derivam dos sentidos descobrindo a

sua existecircncia preacutevia bem como a nossa ciecircncia dela e comparando aquelas coisas com

essa a nossa conclusatildeo com base nisso eacute que a nossa alma necessariamente existia antes

de nosso nascimento Se tais coisas natildeo existissem natildeo seria necessaacuterio outro

argumento Natildeo seria igualmente necessaacuterio que elas existam e as nossas almas existam

antes do nosso nascimento E se elas natildeo existissem tampouco as nossas almas

Extraordinaacuterio Soacutecrates disse Siacutemias Tambeacutem acho que existe a mesma

necessidade e eacute bom para noacutes que o argumento repouse nessa equivalecircncia a nossa

alma existe antes do nosso [77a] nascimento assim como aquelas coisas existem como

vocecirc acabou de mencionar Pois estaacute claro para mim que todas as coisas desse tipo ndash

Belo Bom e outras da mesma natureza todas as demais que agora mesmo expotildee ndash

existem mais do que tudo E acho que estaacute suficientemente demonstrado

E Cebes perguntou Soacutecrates Pois devemos persuadir Cebes tambeacutem

Eu pelo menos penso que estaacute suficientemente demonstrado disse Siacutemias

Contudo Cebes [77b] se destaca entre as pessoas por ser difiacutecil de acreditar em

argumentos Eu penso que ele estaacute perfeitamente convencido de que a nossa alma

existia antes do nosso nascimento mas se ela ainda haveraacute de existir quando

morrermos Soacutecrates disse ele natildeo ficou demonstrado nem para ele nem para mim A

objeccedilatildeo que Cebes levantou haacute pouco ainda permanece a crenccedila popular de que na

ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua existecircncia Pois o

274

que a impede de nascer e se formar a partir de uma outra origem de existir antes de

alojar-se no corpo que lhe confere humanidade e depois de alojada separar-se do

corpo vindo entatildeo a morrer e a ser destruiacuteda

[77c] Fala bem Siacutemias disse Cebes Pois parece que estaacute demonstrado apenas

metade do que se deveria que a nossa alma existia antes de nascer Contudo ainda eacute

necessaacuterio provar que ela existiraacute depois da morte tal como existia antes de nascer para

que a prova fique completa

Estaacute demonstrado Siacutemias e Cebes disse Soacutecrates agora mesmo basta querer

combinar num soacute este argumento e aquele anterior com o qual concordamos de que

tudo o que vive vem a [77d] ser a partir do que estaacute morto Pois se a alma tem uma

existecircncia preacutevia eacute necessaacuterio que ela ao viver e nascer provenha tatildeo somente a partir

da morte e do estar morto Como natildeo seria necessaacuterio que ela existisse depois da morte

jaacute que ela deve nascer novamente Portanto estaacute demonstrado o que vocecircs acabaram de

questionar Apesar disso eu acho que tanto vocecirc quanto o Siacutemias teriam prazer de

estudar esse argumento com mais profundidade por causa do seu temor [77e] pueril de

que o vento realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo

especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania

Cebes riu e disse tenta nos convencer Soacutecrates como se temecircssemos Melhor

ainda retiro o lsquocomo se temecircssemosrsquo porque talvez tenhamos mesmo uma crianccedila

275

dentro de noacutes que teme coisas desse tipo Portanto tenta convencecirc-la a natildeo temer a

morte como se fosse o Bicho Papatildeo

Eacute necessaacuterio Soacutecrates proferir encantamentos todos os dias ateacute que o temor

desapareccedila

[78a] Mas onde Soacutecrates perguntou conseguimos um bom encantador para

esse tipo de problema jaacute que vocecirc estaacute nos deixando

Grande eacute a Greacutecia Cebes disse Soacutecrates onde encontraraacute nobres varotildees

Tambeacutem devem especular e buscar um encantador dessa envergadura na multidatildeo de

povos baacuterbaros sem poupar dinheiro e trabalho pois natildeo investiria o seu dinheiro em

nada mais rentaacutevel Devem buscar tambeacutem entre vocecircs mesmos pois dificilmente

encontraratildeo algueacutem mais capacitado do que vocecircs para esse mister

[78b] Mas isto seraacute feito disse Cebes Vamos retomar de onde paramos se a

ideia te agrada

Como natildeo Claro que me agrada

Muito bem disse

ARGUMENTO DAS AFINIDADES

Sendo assim disse Soacutecrates devemos nos perguntar o seguinte a que tipo de

coisa pertence aquela que eacute suscetiacutevel a sofrer dispersatildeo Que tipo de coisa temeriacuteamos

276

que fosse dissipada e que tipo de coisa natildeo E em seguida passemos a examinar a qual

desses dois tipos de coisas pertence a alma e com base nisso ter confianccedila ou temor em

relaccedilatildeo agrave nossa proacutepria alma

Eacute verdade disse ele

[78c] Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto e ao que eacute composto por

natureza sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto junto Por outro lado se haacute algo

simples pertence somente a isso mais do que a qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a

sofrer decomposiccedilatildeo

Eacute assim que penso disse Cebes

Entatildeo natildeo seria bem plausiacutevel que as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado

e condiccedilatildeo sejam aquilo que eacute simples enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em

ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estado sejam as compostas

Eacute o que me parece

Entatildeo nos voltemos agora disse para aquelas mesmas coisas que tratamos num

argumento [78d] anterior Refiro-me agravequela essecircncia cujo ser estaacute sendo discutido por

meio de perguntas e respostas estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estado ou sua

condiccedilatildeo oscila em diferentes ocasiotildees O igual em si o belo em si aquilo que cada

coisa eacute em si aquilo que eacute se sujeitariam a algum tipo de mudanccedila Ou cada uma

dessas coisas em si sendo uniforme e sozinha permanece sempre na mesma condiccedilatildeo e

estado sem se sujeitar a qualquer tipo de alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma

277

Eacute necessaacuterio que permaneccedilam na mesma condiccedilatildeo e estado Soacutecrates disse

Cebes

[78e] O que diriacuteamos a respeito das muitas coisas belas tal como pessoas

cavalos roupas e outras coisas desse tipo ou das coisas iguais ou de todas as outras que

compartilham o mesmo nome daquelas que mencionamos Acaso se manteacutem no mesmo

estado ou em completo contraste com aquelas como se pode dizer nunca e de modo

algum permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre si

Concordo mais uma vez disse Cebes elas nunca permanecem no mesmo estado

[79a] Mas as outras coisas natildeo se poderia tocar ver ou perceber pelos demais

sentidos enquanto essas que permanecem no mesmo estado natildeo se podem apreender

por qualquer outro meio a natildeo ser pelo raciociacutecio do pensamento por serem invisiacuteveis

algo que natildeo se vecirc

O que vocecirc diz eacute totalmente verdadeiro disse

Entatildeo pretende que estabeleccedilamos disse que existem duas classes de seres a

visiacutevel e a invisiacutevel

Faccedilamos isso

A invisiacutevel sempre permanece no mesmo estado enquanto a visiacutevel nunca

permanece no mesmo estado

Vamos estabelecer isso tambeacutem disse

[79b] Avancemos entatildeo disse temos algo mais do que corpo e alma

278

Nada aleacutem disso respondeu

Entatildeo qual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e ter mais

afinidade com o corpo

Estaacute bem evidente a qualquer pessoa disse que eacute o visiacutevel

E quanto agrave alma Visiacutevel ou invisiacutevel

Pelo menos ao ser humano eacute invisiacutevel Soacutecrates disse

Mas noacutes estaacutevamos conversando justamente sobre as coisas que seriam e as que

natildeo seriam visiacuteveis agrave natureza do ser humano ou estava pensando em alguma outra

Natildeo agrave natureza do ser humano

O que entatildeo diriacuteamos a respeito da alma Seria algo visiacutevel ou invisiacutevel

Natildeo visiacutevel

Invisiacutevel entatildeo

Sim

Entatildeo a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute

mais semelhante ao visiacutevel do que a alma

[79c] Eacute absolutamente necessaacuterio Soacutecrates

E natildeo era isto que diziacuteamos antes quando a alma se utiliza do corpo para

examinar algo seja por meio da visatildeo audiccedilatildeo ou por meio de algum outro sentido ndash

pois examinar algo por meio do corpo eacute examinar por meio dos sentidos ndash eacute entatildeo

arrastada pelo corpo para as coisas que nunca permanecem na mesma condiccedilatildeo e assim

279

ela anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a

natureza das coisas que ela estaacute alcanccedilando

Certamente

[79d] Mas quando ela proacutepria por si mesma examina nessa ocasiatildeo se

encaminha para o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo E por

causa da sua afinidade com isso a alma sempre vem a estar com ele sempre que lhe eacute

possiacutevel se colocar ela proacutepria por si mesma Nessa ocasiatildeo deixa de andar erraacutetica ela

permanece sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo relativamente a essas coisas por que

esta eacute a natureza das coisas que estaacute alcanccedilando Essa experiecircncia da alma natildeo seria

chamada de conhecimento

O que vocecirc disse respondeu eacute completamente belo e verdadeiro Soacutecrates

[79e] Mais uma vez e com base tanto no que jaacute foi dito quanto no que dizemos

agora com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e afinidade

Acredito que respondeu a partir dessa linha de inquiriccedilatildeo Soacutecrates todas as

pessoas ateacute algueacutem com grande dificuldade de aprendizagem reconheceria que de todo

jeito a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo

que natildeo estaacute

E quanto ao corpo

Assemelha-se mais a esse outro tipo de coisa

280

[80a] Veja a questatildeo agora sob este acircngulo quando a alma e o corpo estatildeo

juntos por imposiccedilatildeo da natureza o corpo eacute o que serve e eacute governado enquanto a alma

governa e domina Tendo em vista essa relaccedilatildeo pergunto novamente qual dos dois

vocecirc acha que se assemelha mais ao divino e qual ao mortal Ou natildeo acha que o divino

eacute por natureza o que domina e dirige enquanto o mortal o que eacute dirigido e serve

Com certeza

Entatildeo a alma eacute como qual dos dois

Eacute evidente Soacutecrates que a alma eacute como o divino enquanto o corpo eacute como o

mortal

[80b] Examina agora Cebes disse ele se de tudo que temos dito podemos

concluir o seguinte que a alma eacute mais semelhante ao divino imortal inteligiacutevel

uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo enquanto

o corpo por outro lado eacute mais semelhante ao humano mortal multiforme sensiacutevel

soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo Teriacuteamos algo a dizer contra isso

amigo Cebes algo que se contraponha a esse resultado

Natildeo temos

Mas entatildeo Sendo as coisas desse jeito acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa

que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa

completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso

[80c] Como natildeo

281

UacuteLTIMO ARGUMENTO

[105c] Diga-me entatildeo perguntou Soacutecrates o que deve estar presente num corpo

para que ele tenha vida

Uma alma respondeu

[105d] E eacute sempre assim

Com certeza disse ele

Portanto quando a alma ocupa algo chega sempre trazendo vida para ele

Claro que chega respondeu

E existe ou natildeo um oposto para a vida

Existe falou

O quecirc

Morte

Entatildeo a alma jamais admitiraacute o oposto daquilo que traz consigo como foi

acordado antes

Mas natildeo tenha duacutevida disso falou Cebes

Como eacute mesmo que agorinha chamaacutevamos aquilo que natildeo admite a forma do

par

Iacutempar respondeu

E ao que natildeo admite o justo ou o musical

282

[105e] O natildeo musical disse e o natildeo justo

Muito bem E como chamariacuteamos aquilo que natildeo admite morte

Imortal disse

Entatildeo a alma natildeo admite morte

Natildeo

Portanto a alma eacute imortal

Isso imortal

Muito bem falou Poderiacuteamos dizer que isto foi provado O que vocecirc acha

Sim e de modo suficiente Soacutecrates

Se os injustos fossem necessariamente impereciacuteveis trecircs certamente seriam

impereciacuteveis natildeo seria

[106a] Entatildeo Cebes perguntou se o iacutempar fosse necessariamente indestrutiacutevel

o trecircs tambeacutem natildeo seria indestrutiacutevel

Como natildeo

Agora se o natildeo quente tambeacutem fosse necessariamente indestrutiacutevel quando

algueacutem aproximasse calor agrave neve ela natildeo bateria em retirada intacta e sem derreter

Pois nem pereceria nem ficaria ali de novo e admitiria o calor

Corretamente disse

283

Por semelhante modo se o natildeo frio fosse indestrutiacutevel quando algo frio

arremetesse contra o fogo ele jamais apagaria ou pereceria mas bateria em retirada e

seguiria intacto

Necessariamente disse

[106b] Agora natildeo seria necessaacuterio falar tambeacutem dessa maneira a respeito do

imortal Se o imortal tambeacutem fosse indestrutiacutevel seria impossiacutevel que a alma viesse a

perecer quando a morte arremetesse contra ela Porque como foi dito natildeo admitiraacute a

morte e nem tombaraacute morta assim como concordamos que nem o trecircs nem o iacutempar

seratildeo pares nem o fogo e o calor que haacute nele seratildeo frios Mas algueacutem poderia

questionar o que impediria o iacutempar ndash mesmo que natildeo se transforme em par quando este

arremete contra ele assim como concordamos ndash de perecer e o par lhe tomar o posto

Contra isto natildeo teriacuteamos como argumentar que o iacutempar natildeo perece porque ele natildeo eacute

indestrutiacutevel Se concordaacutessemos a esse respeito facilmente argumentariacuteamos que o trecircs

e o iacutempar bateriam em retirada quando o par arremetesse contra ele Argumentariacuteamos

assim tambeacutem no caso do fogo do calor e tudo mais Natildeo eacute mesmo

Absolutamente

Portanto agora no que diz respeito ao imortal se concordaacutessemos que ele eacute

tambeacutem [106d] indestrutiacutevel a alma seria imortal e indestrutiacutevel Caso contraacuterio seria

necessaacuterio outro argumento

284

Mas isto natildeo eacute necessaacuterio por esta razatildeo disse dificilmente outra coisa natildeo

admitiria destruiccedilatildeo se o imortal sendo eterno a admitisse

E eu acho que pelo menos a divindade respondeu Soacutecrates e a proacutepria forma da

vida e se existe alguma outra coisa imortal todas as pessoas concordariam que nunca

perecem

Sem duacutevida todas as pessoas concordariam por Zeus disse e eu penso que os deuses

ainda mais

[106e] Portanto jaacute que o imortal tambeacutem eacute indestrutiacutevel e a alma natildeo seria

outra coisa a natildeo ser imortal ela tambeacutem seria indestrutiacutevel ou natildeo

Eacute absolutamente necessaacuterio

Sendo assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao

que parece tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo

ela parte retirando-se da presenccedila da morte

Eacute o que parece

[107a] Sendo assim eacute mais do que certo que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel e

que as nossas almas realmente existiratildeo no Hades

De minha parte Soacutecrates disse ele natildeo tenho mais nenhuma objeccedilatildeo nem

desconfio das coisas que disse Mas caso Siacutemias que estaacute aqui ou mesmo outra pessoa

tenha algo a dizer esta eacute a hora de falar Porque se algueacutem quiser dizer ou ouvir alguma

coisa sobre este assunto natildeo conheccedilo nenhuma outra ocasiatildeo aleacutem desta para fazecirc-lo

285

[107b] De minha parte Soacutecrates disse Cebes natildeo tenho nada a acrescentar e

nem desconfio do que vocecirc falou Contudo pela complexidade da temaacutetica que

abordamos em nossa conversa e por natildeo ter apreccedilo pela fraqueza humana ainda

necessito carregar comigo certa desconfianccedila a respeito de nossa conversa

Natildeo apenas isto Siacutemias disse Soacutecrates Vocecircs estaacute fazendo uma boa colocaccedilatildeo

Ateacute mesmo as primeiras hipoacutetese ainda que pareccedilam confiaacuteveis para noacutes devemos

igualmente voltar a examinaacute-las mais claramente E eu acho que se vocecirc analisaacute-las

suficientemente seguiraacute o argumento ateacute o maacuteximo que algueacutem possa seguir Se isto

ficar claro para vocecirc natildeo teraacute de prosseguir na pesquisa

Isso eacute verdade disse ele

286

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Platos Phaedordquo Logical Analysis and History of Philosophy 12 85ndash102

Zhmud Leonid 2012 Pythagoras and the Early Pythagoreans Oxford Oxford

University Press

  • Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
    • AGRADECIMENTOS
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • SUMAacuteRIO
    • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)
    • 3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)
    • 4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)
    • 5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)
    • 6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)
    • 7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)
    • 8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
    • 9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO
    • 10 BIBLIOGRAFIA
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