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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia Francisco Perpetuo Santos Diniz Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental- Territorial Ribeirinho e o Desenvolvimento Local Belém 2012

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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado

Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

Francisco Perpetuo Santos Diniz

Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental-

Territorial Ribeirinho e o Desenvolvimento Local

Belém

2012

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Francisco Perpetuo Santos Diniz

Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental-Territorial

Ribeirinho e o Desenvolvimento Local

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Maria das Graças da Silva.

Belém

2012

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA

Diniz, Francisco Perpetuo Santos

Relações entre práticas educativas, saber ambiental-territorial ribeirinho e o desenvolvimento local./ Francisco Perpetuo Santos Diniz. Belém, 2012

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará. Belém, 2012.

Orientador: Maria das Graças Silva

1. Prática de ensino. 2. Educação ambiental. 3. Sustentabilidade. 4. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. I. Silva, Maria das Graças (Orientador). II. Título.

CDD: 21 ed. 370.733

___________________________________________________________________________________________

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Francisco Perpetuo Santos Diniz

Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental-Territorial

Ribeirinho e o Desenvolvimento Local

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Pará. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Maria das Graças da Silva.

Data de aprovação: 17/09/2012

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Profª. Drª. Maria das Graças da Silva – Orientadora – Orientadora – UEPA.

Doutora em Planejamento Urbano e Regional – Universidade Federal de Rio de Janeiro, (2002), Brasil.

__________________________________________________________ Profª Dra. Maria Goretti da Costa Tavares– (Examinadora externa) – UFPA Doutora em Geografia – Universidade Federal do Rio de Janeiro, (1999), Brasil.

__________________________________________________________ Profª. Dra. Josebel Akel Fares – (Examinadora interna) – UEPA Doutora em Comunicação e Semiótica pela Universidade Católica de São Paulo (2003), Brasil.

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Para Deus por ter concedido minha

saúde e a oportunidade de realizar esta

dissertação.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente à minha mãe, ao meu pai, à minha esposa

Michelle Almeida Diniz e ao meu filho Davi Almeida Diniz que estiveram presentes

no período de estudos de mestrado.

Aos amigos que conquistei no mestrado, Rosilene e Lana Cordeiro, em

especial a Suely Scardini, que apesar da distância me deu o apoio necessário.

Destaco também, Ana Cristina, amiga que foi fundamental no processo de revisão e

estruturação dos textos de qualificação e dissertação.

Aos Professores do Mestrado que apesar de ministrarem diferentes

disciplinas, sempre demonstraram preocupações com as dissertações dos discentes

de minha turma (2010) do Mestrado em Educação.

À Profª. Dra. Josebel Akel Fares que muito contribuiu nas sugestões e

chamadas de atenção no processo de qualificação.

À Profª Dra. Maria Goretti da Costa Tavares que muito tem contribuído com a

minha formação acadêmica, agradeço ao apoio nas orientações do processo de

qualificação e defesa de dissertação. Tive a satisfação de construir parte

considerável deste trabalho a partir de suas orientações. É uma Professora muito

especial.

À minha orientadora, Profª. Drª. Maria das Graças Silva, por ter me dado a

oportunidade em ser aprovado no Mestrado em Educação – UEPA/2010, pela

paciência que teve nas orientações da dissertação. Tive em toda minha vida escolar

e acadêmica vários professores, mas nem todos foram especiais, quanto esta

professora, que pela sua inteligência nas falas e sugestões deste trabalho, precisão

nas informações, sinceridade, humildade, sabedoria na escrita de textos serviram de

base para consulta e companheirismo nos momentos difíceis, faz parte de um grupo

seleto de Professores que elegi como especiais.

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Ser rizomático é produzir hastes e filamentos que

parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectam com

elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a

novos e estranhos usos. Estamos cansados da árvore.

Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou

radículas, já sofremos muito. Toda cultura arborescente é

fundada sobre elas, da biologia à linguística. Ao contrário,

nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser

que sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o

adventício e o rizoma.

Deleuze e Guatarri

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RESUMO

PERPETUO, Francisco S. D. Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental-Territorial Ribeirinho e o Desenvolvimento Local. 2012. f. 183. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém, 2012.

O desenvolvimento sustentável, da forma como foi mundialmente pensado, repleto de carga ideológica, política e econômica, está longe de atender às necessidades de sobrevivência das populações amazônicas, especialmente as tradicionais-ribeirinhas. Portanto, partindo da premissa de que na Amazônia, especialmente em contextos ribeirinhos, os saberes socioambientais e práticas educativas orientam a construção de territórios da sustentabilidade fundados em relações estabelecidas com o meio físico, pois, para estas populações, a natureza acaba se tornando a extensão de suas vidas, assegura a reprodução socioeconômica, identitária e cultural. Este processo foi estudado e sistematizado na comunidade ribeirinha de Igarapé Grande, Ilha João Pilatos, Ananindeua - Pará. Este estudo teve como sujeitos da pesquisa sete famílias que habitam a localidade. O objetivo geral da pesquisa buscou analisar as interfaces entre saberes e práticas socioeducativas ambientais dos ilhéus e suas repercussões para a sustentabilidade da Comunidade Igarapé Grande. Já os objetivos específicos procuraram: examinar processos educacionais ribeirinhos fundados nas relações estabelecidas com a natureza; compreender processos de territorialização das práticas socioeducativas ambientais e/ou de educação ambientais desenvolvidos pelos ilhéus; analisar formas que práticas educativas cotidianas interferem positivamente na sustentabilidade local; Analisar processos sociais que interferem negativamente na sustentabilidade local. Entre os procedimentos metodológicos mais significativos da pesquisa podemos elencar: o caráter qualitativo por levar em consideração o significado das falas dos sujeitos, não havendo preocupações com a quantidade de pessoas entrevistadas; a cartografia deleuze-guattariana, especialmente o registro e acompanhamento de mapas e territórios de percursos, da pesca, da religiosidade, da sustentabilidade e não sustentabilidade, de espaços de usos comum e do território do turismo. Houve o registro da construção de saberes e territórios da sustentabilidade socioeducativa nos locais de lazer, trabalho e socialização cultural dos sujeitos, prática que marca muita semelhança com a etnografia. Na análise dos dados foram utilizados procedimentos da análise do discurso e da iconografia. As entrevistas foram filmadas e a pesquisa e revisão bibliográfica foram realizadas ao longo de toda pesquisa. Os saberes socioambientais e práticas educativas foram pesquisados em ambientes não escolares, inserem-se na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia do Mestrado da UEPA. Fica o registro de que cotidianos ribeirinhos e as relações que mantêm com a natureza dão fundamentos para o entendimento de saberes e processos educativos que ocorrem de forma singular e que assegura a permanência de hábitos e saberes ao longo de gerações. Palavras-chave: Educação. Saberes. Território. Sustentabilidade socioambiental.

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ABSTRACT

Perpetuo, Francisco S. D. Relations between Educational Practices, Ribeirinho Environmental-Territorial Knowledge and Local Development. 2012. f. 183. Dissertation (Master of Education) – Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém, 2012.

Sustainable development, in the manner in which it has been considered worldwide, with its ideological, political and economic load, is far from meeting the survival needs of the Amazon populations, especially those in the traditional-riverbank context. The initial premise is thus that in the Amazon, especially in the riverbank contexts, socioenvironmental knowledge and educational practices guide the construction of territories of sustainability founded on relations with the physical environment, since for these populations nature ends up being an extension of their lives, assuring socioeconomic, identity and cultural reproduction. This process was studied and systematized in for the riverbank community of Igarapé Grande, João Pilatos Island, Ananindeua - Pará. The subjects for this study were seven families living in the area. The general objective of this research was to analyze the interfaces between knowledge and environmental socioeducational practices of the islanders and their repercussions for sustainability in the Igarapé Grande community. As for the specific objectives, they were: Examine riverbank educational processes founded on relations established with nature; Understand the territorialization of environmental socioeducational and/or environmental education practices developed by the islanders; Analyze forms in which daily educational practices positively interfere in local sustainability; Analyze social processes that negatively interfere in local sustainability; Among the most significant methodological procedures in this study we can list: the qualitative character that takes into account the significance of the words of the subject, without concerns for the quantity of subjects interviewed; the Deleuze-Guattarian cartography, especially the recording and accompaniment of maps and territories: of trails, of fishing, of religiosity, sustainability and non-sustainability, spaces and common uses and the territory for tourism. There was a record made of the construction of knowledge and territories of socioeducational sustainability at places of leisure, work and cultural socialization of the subjects. This is very much in line with ethnography. In analyzing data procedures of analysis of discourse and iconography were employed. The interviews were filmed and a bibliographical review was carried out for the length of the research. The socioenvironmental knowledge and educational practices were studied in non-school environments, which is consistent with the Research Line on Cultural Knowledge and Education in the Amazon for the UEPA Master’s program. It is noted herein that the daily lives of the riverbank dwellers and the relations they maintain with nature provide the foundations for understanding knowledge and educational processes that occur in a unique manner and that assure the staying power of habits and knowledge across generations.

Keywords: Education. Knowledge. Territory. Socioenvironmental sustainability.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto. 1 – Traços Ribeirinhos no Porto do Surdo ....................................... 46

Foto 2 – Porto do Surdo: fronteiras entre o rural e o urbano..................... 47

Foto 3 – Compra de Alimentos nas áreas Urbanas de Ananindeua......... 49

Foto 4 – Criação de território no interior da embarcação escolar............. 53

Foto 5 – Alunos, em Trapiches, Esperando a Embarcação Escolar ........ 54

Foto 6 – Paisagens Ribeirinhas................................................................. 54

Foto 7 – Embarcação escolar cruzando o Rio Maguari............................ 55

Foto 8 – Paisagens apresentando diferentes tonalidades de verde ........ 56

Foto. 9 – Imagem do “Barracão” ............................................................... 57

Foto 10 – Reunião no Barracão.................................................................. 58

Foto 11 – Carregamento de Madeira no Rio Maguari................................. 59

IMAGEM 1 – Mapa da Localização da Ilha João Pilatos – Ananindeua-Pa..... 62

IMAGEM 2 – Mapa de Localização da Comunidade Igarapé Grande.............. 62

Foto 12 – Percurso Familiar no Rio Maguari................................................ 86

Foto 13 – Marco da Trilha que liga as comunidades Igarapé Grande e

João Pilatos..................................................................................

93

Foto 14 – Ilhéus realizando Percurso na “Trilha João Pilatos”................... 93

Foto 15 – Alunos Realizando Percurso na “Trilha João Pilatos”................. 94

Foto 16 – Igreja Nossa Senhora das Graças.............................................. 112

Foto 17 – Barracas de Uso Coletivo............................................................ 114

Foto 18 – “Porto” ou Trapiche na Comunidade Igarapé Grande................ 115

Foto 19 – Escola Domiciano Ramos........................................................... 116

Foto 20 – Espaço Físico da Escola Domiciano Ramos.............................. 116

Foto 21 – Ribeirinhos retornando as localidades....................................... 117

Foto 22 – Alunos Entrando na Embarcação escolar.................................. 118

Foto 23 – Embarcações escolares.............................................................. 118

Figura 1 – Formas Espaciais Retângulares do Assentamento

Agroextreativista..........................................................................

125

Figura 2 – Mapa Georreferenciado da Comunidade Igarapé Grande.......... 126

Foto 24 – Casa do Agricultor dos Moradores de João Pilatos.................... 144

Foto 25 – Separação da “corticeira”............................................................. 147

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Foto 26 – Secagem da “corticeira”............................................................... 148

Foto 27 – Queima do Carvão....................................................................... 149

Foto 28 – Estocagem do Carvão.................................................................. 150

Foto 29 – Saberes da Pesca: Produção do “Espinhel”................................ 153

Foto 30 – Produção do “Espinhel”................................................................ 153

Foto 31 – Saberes da Pesca: “Talho” na Emcarcação................................ 156

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................. 13

OBJETO DE ESTUDO, QUESTÕES NORTEADORAS E OBJETIVOS ........ 16

Construção do objeto de estudo da pesquisa................................................. 16

Pesquisa de campo ....................................................................................... 26

CAPÍTULO 1 - O ESPAÇO URBANO DE ANANINDEUA E SUAS

RELAÇÕES COM O MEIO RURAL: TECENDO OS CAMINHOS DA

PESQUISA................................................................................................

35

1.1 - PROCESSO HISTÓRICO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

DE ANANINDEUA....................................................................................

35

1.2 - O PORTO DO SURDO: FRONTEIRA SOCIOLÓGICA E

GEOGRÁFICA ENTRE O RURAL E URBANO EM ANANINDEUA...............

38

1.3 - TRAVESSIAS ENTRE O RIO MAGUARI E IGARAPÉ GRANDE:

ENCURTANDO DISTÂNCIAS POR MEIO DE CONVIVÊNCIAS E DE

CONSTRUÇÃO DE OUTROS PROCESSOS SINGULARES........................

50

1.4 - A COMUNIDADE IGARAPÉ GRANDE: CONFIGURAÇÕES QUE

ORIENTARAM A REALIZAÇÃO DA PESQUISA............................................

61

CAPÍTULO 2 - CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DE PRÁTICAS

SOCIOEDUCATIVAS E SUAS RELAÇÕES COM A SUSTENTABILIDADE

LOCAL.............................................................................................................

65

2.1 ENTRE O SABER CIENTÍFICO E O SABER COTIDIANO

RIBEIRINHO.............................................................................................

65

2.2 PRINCÍPIOS RIZOMÁTICOS ORIENTADORES DE CONSTRUÇÃO DA

CARTOGRAFIA DOS SABERES LOCAIS......................................................

72

2.3 A CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS POLISSÊMICOS EM

COMUNIDADES RIBEIRINHAS......................................................................

80

2.3.1 A Formação de “Territórios Rizomáticos” em Igarapé Grande............... 80

2.3.2. “Territórios das Caminhadas” criados a partir da observação de

Indícios, Vestígios e Sinais do meio físico.....................................................

84

2.3.3 - Construção de “Territórios-lugares do cotidiano”................................. 98

2.3.4 - Os “Territórios das Linguagens Espaciais”........................................... 102

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2.3.5 - Os Territórios das Lendas.................................................................... 104

2.3.6 - Os Territórios das Rodas de Conversas............................................... 106

2.3.7 - Os Territórios de Saberes Ambientais.................................................. 106

2.3.8 - Os Territórios da Religiosidade............................................................. 109

2.3.9 - Os Territórios de Fazeres Individuais................................................... 112

2.3.10- Os Territórios de Uso Espaços Coletivos............................................ 114

2.3.11 - Os Territórios das Possibilidades do Turismo .................................. 119

CAPÍTULO 3 - CARTOGRAFIA DE SABERES SOCIOAMBIENTAIS E

PRÁTICAS DE SUSTENTABILIDADE LOCAL .............................................

122

3.1 - PROCESSOS EDUCATIVOS E SUAS RELAÇÕES COM LEITURAS

DE PAISAGENS.............................................................................................

122

3.2. - CONSTRUÇÃO DE MAPAS, ESCALAS, LEGENDAS E LIMITES

ESPACIAIS FEITOS A PARTIR DE SABERES E PRÁTICAS

SOCIOEDUCATIVAS AMBIENTAIS................................................................

124

3.3. - O SISTEMA “RIO MAGUARI-RIZOMA”.............................................. 135

3.4 - O SABER SOBRE O MEIO FÍSICO E A SUSTENTABILIDADE

SOCIOAMBIENTAL EM IGARAPÉ GRANDE................................................

138

3.4.1 – Significado e Uso da Natureza e suas relações com a

sustentabilidade e não sustentabilidade.......................................................

157

CONCLUSÕES............................................................................................. 162

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 166

APÊNDICES................................................................................................ 171

ANEXOS...................................................................................................... 177

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INTRODUÇÃO

A pesquisa que resulta na dissertação de Mestrado intitulada de

“Relações entre Práticas Educativas, Saber Ambiental-Territorial Ribeirinho e o

Desenvolvimento Local”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação de Mestrado em

Educação - PPGED da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Linha de Pesquisa

Saberes Culturais e Educação na Amazônia, foi realizada no período de agosto de

2010 a junho de 2012, na Comunidade Igarapé Grande, Ilha João Pilatos,

Ananindeua-PA.

O município de Ananindeua possui nove ilhas: Viçosa, Sassunema, Mutá,

Guajarina, São José da Sororoca, Sororoca, Arauari, Santa Rosa e João Pilatos. A

Ilha João Pilatos é formada pelas comunidades: Nova Esperança, João Pilatos e

Igarapé Grande. Igarapé Grande fica distante da área urbana do município cerca de

uma hora, se partirmos de barco do Porto do Surdo, bairro do Curuçambá, daquele

município. É sede dos principais acontecimentos socioculturais que ocorrem nas

ilhas do município, agrupa os descendentes dos primeiros moradores dessas áreas,

vivencia a exploração madeireira e especulação imobiliária. Fatos que se tornaram

relevantes como critérios para a escolha desse território como lócus da pesquisa.

O interesse pela temática ambiental originou-se durante o período de estudos

de Graduação em Geografia pela Universidade Federal do Pará - UFPA (1997-

2002). No ano de 1997 tive a oportunidade de participar como bolsista de Extensão

do Centro Agro-Ambiental do Tocantins Araguaia – CAT, integrante desta

universidade, onde desenvolvi pesquisas que envolviam a gestão territorial e

ambiental realizadas por agricultores do sul e sudeste do Pará; no período de 2000 a

2002, fui bolsista do CNPQ (Conselho Nacional de Pesquisas) no Projeto de Gestão

Urbana e Ambiental desenvolvido na Bacia do Tucunduba-Belém/PA, ligado ao

curso de Geografia da UFPA.

Depois de graduado e já no exercício da docência, passei a desenvolver

projetos de educação ambiental em escolas municipais e da esfera estadual, no

estado do Pará. Os projetos desenvolvidos nas escolas relacionavam-se ao

desenvolvimento de hortas, reciclagem de lixo e incentivo às discussões associadas

à preservação do meio ambiente.

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Os anos de 2005 a 2007 foram determinantes para a escolha da pesquisa de

mestrado, pois neste período trabalhei na Escola Municipal Laércio Wilson Barbalho,

localizada em Ananindeua, bairro do Curuçambá, onde realizei diversas visitas,

juntamente com alunos de turmas do ensino fundamental (5ª à 8ª séries), à

comunidade Nova Esperança (Ilha João Pilatos). As atividades envolviam o

conhecimento geográfico de partes das ilhas de Ananindeua, a compreensão de

práticas de educação ambiental desenvolvidas pelos ilhéus e formas de

sustentabilidade locais.

As experiências acumuladas com a realização das atividades educativas

direcionadas ao entendimento de parte do universo de educação ambiental

ribeirinha serviram de base para a realização do Curso de Especialização em

Geografia da Amazônia: gestão da sociedade e dos recursos naturais, onde

desenvolvi a pesquisa intitulada: “Território e Desenvolvimento Sustentável no

Assentamento Agroextrativista Nova Esperança – Ilha João Pilatos/Ananindeua-PA”

que tinha como objetivo identificar e analisar territórios da sustentabilidade que

foram planejados e executados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA) e os construídos historicamente pelos moradores que faziam parte

do projeto.

Os estudos realizados durante o curso de especialização possibilitaram-me

maior aproximação com os moradores das ilhas e o conhecimento de parte de suas

formas de vivência e desenvolvimento de ações de educação ambiental

comunitárias. Fato que motivou-me buscar dar continuidade aos estudos referentes

às práticas educativas e saberes ambientais que possivelmente eram desenvolvidos

por ribeirinhos na região1 das ilhas do município de Ananindeua.

Elegi a comunidade Igarapé Grande para investigar práticas educativas e

supostas relações com a questão da sustentabilidade na ilha João Pilatos. Houve

amadurecimento e convivência com populações ribeirinhas que relacionavam

processos educativos com estratégias de sobrevivência.

Parto da ideia de que discutir práticas educativas ribeirinhas e suas relações

com a sustentabilidade local, ultrapassa a mera realização de um trabalho

acadêmico. Permite compreender possíveis formas locais de sustentabilidade de

1 O termo região aqui refere-se a locais físicos com especificidades socioculturais e econômico-ambientais singulares, diferentes das que se localizam nas áreas urbanas do município de Ananindeua.

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“populações tradicionais”. A noção de “populações tradicionais” para Silva (2007),

envolve a compreensão de uma categoria relacional mediada pela relação de uso e

ocupação do território feito por populações amazônicas, devendo ser considerado

suas formas produtivas tradicionais e a poliprodução que desenvolvem.

Assim, o entendimento de “populações tradicionais” neste trabalho, tem a ver

com ribeirinhos e agrupamentos amazônicos: índios, caçadores, coletores,

extratores, remanescentes de quilombos, entre outros, que sobrevivem a partir do

contato direto com a natureza (rios, matas e águas), que se localizam distantes das

áreas urbanas e apresentam formas de sustentabilidade particulares e culturas

heterogêneas.

As “populações tradicionais” amazônicas desenvolvem formas singulares de

desenvolvimento local, que em princípio podem ser interpretadas como

possibilidades de contribuição para o desenvolvimento regional, contrapondo-se,

assim, às mazelas do processo de globalização e das receitas do desenvolvimento

sustentável concebidas internacionalmente e muitas delas impostas à região, além

de permitir reflexão sob os processos educativos no campo ambiental ribeirinho,

inscritos nas formas de socialização e interação com a natureza. As relações

estabelecidas com o meio físico regulam a vida, a formação da identidade e cultura

de populações amazônicas.

As populações denominadas ou que se auto-intitulam de “tradicionais” da

Amazônia, foram historicamente rotuladas de pacíficas, atrasadas, preguiçosas,

primitivas, de não saberem acumular riquezas e não usufruírem dos recursos

naturais de acordo com a lógica comercial e produtiva capitalista. Tal contexto é

passível de problematização, pois o uso de recursos naturais é um processo

inerente à reprodução material e simbólica de tais populações e sua dinâmica de

exploração orienta e modifica toda a estrutura socioeducacional e se orienta por

lógicas culturais locais.

Os ribeirinhos possuem forte identidade com a terra, com as águas e vivem

uma espécie de “fusão” entre os valores tradicionais e os impostos pela mídia

mundial. Parte desse processo foi identificada no decorrer da realização da pesquisa

na comunidade Igarapé Grande, onde alguns ilhéus reproduziam modos de vidas

urbanos como o uso de telefones celulares, computadores e outras tecnologias e,

por outro lado, ainda desenvolviam o hábito da realização das rodas de conversas,

das narrativas de lendas e estórias de assombrações.

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Nesta comunidade há indícios de resistência ao processo de exclusão social

e às formas impostas de um modelo de desenvolvimento que se denomina de

“sustentável” ao qual os ilhéus são submetidos. Os moradores desenvolvem ações

singulares de sustento local que não foram consideradas pelo INCRA no Projeto de

Assentamento Comunitário, criado em 2005, mas que ainda orientam a produção

cultural local, a exemplo da criação de galinhas, patos, a extração do açaí e

plantação de árvores frutíferas e o uso do rio e da mata para a realização de

processos educativos ambientais, além da construção de lendas e contos feitos a

partir da natureza.

Enfrentamos o desafio de construir e realizar uma proposta de investigação

social a partir da cartografia, enquanto metodologia de trabalho, que vem orientando

as pesquisas de parte considerável dos docentes e discentes vinculados ao PPGED,

da Universidade do Estado do Pará. Pretensamente tivemos a preocupação de

inovar, adentrar e percorrer novos caminhos para a construção dessa proposta de

estudo cartográfico, que não fosse repetitivo, mas que trouxesse outras

contribuições para as discussões sob investigar, fazer e sistematizar processos

educacionais singulares na Amazônia a partir de processos cartográficos.

Orientado por essa perspectiva, a seguir os indicativos da proposta de

investigação.

OBJETO DE ESTUDO, QUESTÕES NORTEADORAS E OBJETIVOS

A construção do objeto de estudo da Pesquisa

Afinal o que é um problema de pesquisa? A resposta desta pergunta

aparentemente é fácil de ser respondida. Contudo, ao contrário do que se imagina,

para mim foi objeto de profundas reflexões. Meu envolvimento em projetos de

educação ambiental decorrentes da formação acadêmica, prática docente e

participação no Mestrado da Universidade do Estado do Pará, auxiliaram-me na

construção do problema desta pesquisa.

É comum aos iniciantes de graduações dúvidas sob a formação de um projeto

de pesquisa. Gradativamente as dúvidas vão sendo sanadas com a construção de

trabalho de conclusão de curso (TCC), do envolvimento em grupos de pesquisa ou

da construção de artigos científicos.

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Recordo o aprendizado adquirido com as reflexões, observações e

discussões feitas nos momentos da revisão do texto de qualificação desta

dissertação com a Professora Orientadora Graça Silva, somado às contribuições das

disciplinas cursadas no Mestrado que me ajudaram na definição de perguntas e

respostas às questões que tanto me intrigavam: como construir um projeto de

pesquisa coerente e como “aperfeiçoar” ou revisar o que havia sido apresentado à

Banca de Seleção do Mestrado?

Considero importante resgatar alguns percalços, angústias e dificuldades

enfrentadas no processo de formulação da pergunta, fundante de minha pesquisa. A

seguir enumero as problematizações que se tornaram relevantes neste processo de

aprendizagem:

1) O problema de uma pesquisa não surge da realização de perguntas

simples ou complexas sobre aquilo que se quer pesquisar, foi o que fiz, algum tempo

atrás, tentando amadurecer a proposta de pesquisa sobre meio ambiente e

territorialização das populações ribeirinhas. Perguntas simples: que ações eram

desenvolvidas entre os ribeirinhos e que se constituíam em formas singulares de

educação ambiental? Esta pergunta era a todo tempo multiplicada desdobrando-se

em outras perguntas mais simples e outras complexas, sempre indo à busca daquilo

que não sabia.

Identifiquei que as práticas de educação ambiental desenvolvidas pelos

ribeirinhos de Ananindeua envolviam múltiplos fazeres do cotidiano. Preservar a

mata, caçar, limpar córregos e igarapés, plantar vegetais ameaçados de extinção,

coletar sementes, enfim, a educação ambiental era abrangente e quase não tinha

relação com o conceito de educação que estava acostumado a trabalhar, quase

sempre baseado em abstrações teóricas nas relações entre sociedade e natureza.

Era preciso definir que tipo de educação ambiental queria pesquisar e em

qual contexto ou lócus das ilhas deveria realizar a pesquisa. Tinha a pretensão, ao

entrar no Mestrado, de investigar as práticas de educação ambiental desenvolvidas

pelos ribeirinhos nas ilhas de Ananindeua.

O que foi significativo neste contexto de reflexão foi o entendimento de que o

que possibilita a construção do problema de pesquisa é a definição precisa daquilo

que se quer estudar, por meio do exercício de construção do objeto da pesquisa.

Caso contrário, gera contradição, erro e incerteza.

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2) O problema de uma pesquisa não surge a partir da busca incessante

daquilo que não se sabe, pois é consenso entre nós a afirmação de que em

determinados assuntos sabemos muito e de outros não sabemos nada. Concluí que

o não saber, não determinava um problema de pesquisa e que a tentativa de

compreender todo o contexto sociocultural e educacional dos ribeirinhos de

Ananindeua era incoerente, pois as realidades são diversas e não há

homogeneidade nos processos educacionais e culturais locais.

Acreditava que deveria saber sobre o funcionamento das práticas de

educação ambiental de forma abrangente e que minha pesquisa, apesar de basear-

se em critérios qualitativos, estava preocupada com a quantidade de informações.

Que pretensão! Queria ultrapassar o não saber e chegar ao saber, como se

estivesse saindo das trevas para a luz iluminista ou atravessando o caminho que se

inicia do senso comum à razão e racionalismo instrumentais da ciência moderna.

Fica novamente o registro dos “bastidores” da construção de uma pesquisa.

Torna-se um desafio apresentar as dificuldades de aprendizagens, de

amadurecimento acadêmico. Quase nunca apresentamos nossos desafios e

inquietações no fazer pesquisa, em geral, não consideramos as longas horas

dedicadas às leituras para amenizarmos nossa falta de conhecimento e

esclarecimentos de determinados assuntos; da escrita, avaliação de dados e das

dificuldades enfrentadas no processo de construção de trabalhos de conclusão de

cursos, dissertações e teses.

Pois bem, voltemos às dificuldades perpassadas na definição do problema

desta pesquisa:

3) O problema não é a expressão daquilo que é relevante, pois comer, beber

e dormir são coisas relevantes e podem ou não serem considerados como

problemas. Imaginava que o problema de qualquer pesquisa, pela própria

denominação da palavra “problema”, estaria relacionado às dificuldades que

surgiriam, às situações desconfortáveis que deveriam ser superadas, às dúvidas que

seriam apresentadas. Que desilusão! Dependendo da pesquisa, os problemas

podem ser fáceis de serem identificados ou se tornam muito difíceis de defini-los. Tal

exercício é parte integrante de qualquer proposta de investigação científica.

4) Que a pesquisa precisa ter relevância social. O maior título que o

pesquisador recebe é contribuir com a problematização da realidade social onde os

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sujeitos da pesquisa vivem e cujos resultados possam ser aproveitados pela

sociedade em geral.

5) Que os sujeitos investigados não se constituem “objeto” da pesquisa,

acabam participando e influenciando o pesquisador. Este fato ratifica a idéia de que

não existe neutralidade científica. Como ficar neutro convivendo cotidianamente com

pessoas, participando de eventos sociais coletivos, se alimentando em locais

momentaneamente especiais, vivendo situações singulares, aprendendo formas

específicas de organização social e relações com a natureza?

6) Que o pesquisador não deve partir de perguntas (simples ou complexas)

mas identificar o que é basilar ou fundamental para a realização da pesquisa, aquilo

que impulsiona a importância em conhecer a essência das coisas, em satisfazer as

suas curiosidades e interrogações enquanto pesquisador. Saviani (1982) afirma que

quando o homem sente a necessidade de indagar, questionar e descobrir algo, está

construindo seu problema de pesquisa e que problematizar seria necessidade de

responder e atender a questionamentos inerentes à existência humana. Apenas

acrescento às idéias de Saviani, que a necessidade envolve visões individuais e

coletivas, divergentes ou não, mas por outro lado é o que dá sentido ao conhecer

humano, é o que instiga a formulação do problema de pesquisa.

Portanto, o que me incentivou a formular o problema da pesquisa depois de

vários anos de contatos com populações ribeirinhas, foi compreender como as

populações ribeirinhas construíam e validavam saberes socioambientais que

asseguravam a própria sustentabilidade de seus modos de vida a partir das

interações com o meio físico em diferentes espaços na comunidade Igarapé Grande,

ilha João Pilatos, Ananindeua-PA. Percebi assim, a necessidade de entender como

a sustentabilidade socioeconômica e ambiental era espacializada e cujo processo

representava a formação de territórios da sustentabilidade e de saberes ambientais.

Problematizei o processo de construção de saberes ambientais que os

ilhéus constroem a partir da interação com o meio físico, cujo processo edifica a

cultura, o cotidiano e territórios da sustentabilidade socioambiental local. Foi a partir

dessas discussões que fui construindo teoricamente o objeto de estudo dessa

pesquisa, configurado por meio da seguinte questão problema: Que relação(ções)

pode(m) ser identificada(s) entre saberes, práticas socioambientais e o uso dos

recursos naturais na Comunidade Igarapé Grande?

E as questões norteadoras são as seguintes:

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Que saberes ambientais dinamizam as vivências territoriais dos ilhéus?

Que ações dos ilhéus podem ser configuradas como práticas socioeducativas

e/ou de educação ambiental?

Que contradições estão inscritas nas práticas de uso dos recursos naturais e

a perspectiva de promoção da sustentabilidade local?

Como objetivo geral da pesquisa buscou-se analisar as interfaces entre

saberes e práticas socioeducativas ambientais dos ilhéus e suas repercussões para

a sustentabilidade da Comunidade Igarapé Grande?

Os objetivos específicos são assim determinados:

1) Examinar processos educacionais ribeirinhos fundados nas relações

estabelecidas com a natureza;

Compreender processos de territorialização das práticas socioeducativas

ambientais e/ou de educação ambiental desenvolvidos pelos ilhéus;

Analisar de que forma as práticas educativas cotidianas interferem na

sustentabilidade local;

Analisar processos sociais que interferem negativamente para a

sustentabilidade local.

Visando o aprofundamento de conceitos, aprimoramento da metodologia de

trabalho e investigação da temática estudada, foram selecionadas as obras de:

Gilles Deleuze e Félix Guattari que tratam sob a “cartografia rizomática”. As obras

dos autores que dão sustentação para o estudo são os 5 volumes do Mil Platôs:

“DELEUZE, Guilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São

Paulo. Vol. 1, 2, 3, 4 e 5 ed. 34. 1995; Nestas obras os autores sistematizam as

noções de rizoma que orientam a cartografia e detalham a ocorrência de processos

de desterritorialização e reterritorialização entre outros.

Deleuze e Guattari (1995) relacionam processos cartográficos e

mapeamentos a agenciamentos responsáveis pela edificação de noções de

territórios, territorializações e desterritorializações. Essas construções sustentaram

minhas discussões sobre mapeamentos de saberes e práticas educativas e suas

relações com a criação de territórios da sustentabilidade ambiental locais.

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely (org.). Micropolítica: cartografias do desejo.

10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010. Os autores aprofundam as discussões

desenvolvidas em Mil Platôs. A obra surgiu de uma viagem que Guattari fez ao

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Brasil no decorrer do processo de abertura política do regime militar. As informações

sobre cartografia e territórios também me ajudaram na definição do método da

cartografia para servir de base metodológica nesta pesquisa.

PASSOS, Eduado. KASTRUP, Virgínia. ESCÓCIA, Liliane da. (Org.). Pistas

do Método da Cartografia: Pesquisa intervenção e produção da subjetividade – Porto

Alegre: Sulina, 2009. Nesta obra os autores sistematizam 8 pistas para o

desenvolvimento de cartografias.

Em relação às discussões sobre a formação de territórios, além de Deleuze e

Guattari (1995-97), foram selecionadas para base de estudo, as idéias de Rogério

Haesbaert contidas no livro O mito da desterritorialização. São Paulo: Contexto,

2006. Nesta obra, Haesbaert faz uma reflexão sobre o processo de formação de

territórios que varia da esfera política, natural, econômica e subjetiva. A formação de

territórios na comunidade Igarapé Grande tem a ver com as relações estabelecidas

com natureza, com a criação de práticas educativas cotidianas e sustentabilidade

local.

As discussões sob o saber ambiental estão referenciadas na obra de Enrique

Leff O Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 7ª Ed.

Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes: 2009. Leff destaca a importância de valorizar o

saber ambiental que pode ser problematizado com a integração das ciências, a

valorização da ética, o saber prático, a construção de alternativas frente à

incoerência e inconsistência do desenvolvimento do sistema capitalista dominante, a

revalorização do saber sociocultural e ambiental das populações, o repensar das

práticas pedagógicas e a promoção de formas inovadoras da gestão ambiental.

A obra de Antônio Chizzotti, intitulada: Pesquisa em Ciências Humanas e

Sociais. São Paulo: Cortez, 1991, auxiliou na definição do caráter qualitativo da

pesquisa, na medida em que considera a significância da fala e a necessidade de

vivência na cultura dos sujeitos da pesquisa:

Para o entendimento do problema e do processo de construção de uma pesquisa qualitativa é necessário à participação na cultura dos sujeitos, na vivência no espaço geográfico onde os sujeitos manifestam suas formas de pensar e entender o mundo circundante (CHIZZOTTI,1990, p. 82).

O caráter qualitativo tem a ver com a relevância das informações fornecidas

pelos sujeitos da pesquisa, sem a devida preocupação com a quantidade de

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informações coletadas e sem a ênfase da necessidade de abranger o maior número

possível dos sujeitos pesquisados. Considerei a significância das informações.

Para Passos (2009), o trabalho do cartógrafo perpassa pela pesquisa de

campo objetivando identificar e inserir-se em processos. Fato que interferiu na

escolha da pesquisa qualitativa, pois houve a necessidade de habitar os locais onde

os sujeitos moram, onde desenvolvem suas práticas educativas e criam símbolos e

subjetividades que orientam a vida no contexto social mediadas pela relação

comunicação-natureza.

Zaia Brandão (2002) critica o modismo verificado no uso acentuado de

pesquisas de caráter qualitativo nas áreas das ciências sociais e humanas

especialmente as relacionadas à educação. Dessa forma, haveria uma aversão

generalizada a alguns pressupostos da pesquisa quantitativa, similar ao que o

positivismo impôs aos procedimentos considerados subjetivos e qualitativos inscritos

nas formas de pesquisa das ciências sociais. Assim, “a questão está em ser capaz

de selecionar os instrumentos de pesquisa em consonância com os problemas que

se deseja investigar” (ZAIA, 2002, p. 27).

A escolha por técnicas emanadas da pesquisa qualitativa tem a ver com a

necessidade de considerar o cotidiano dos sujeitos, as formas singulares de

espacializarem processos de educação ambiental, construídos a partir de relações

mantidas com o meio físico.

Como instrumento de produção de dados foi utilizado em uma das técnicas, a

observação participante, por considerar que ela permite “experienciar e

compreender a dinâmica dos atos e eventos, e recolher as informações a partir da

compreensão e sentido que os atores atribuem a seus atos” (CHIZZOTTI, 1990,

p.90). Como técnica de análise de dados, foi utilizada a análise do discurso,

justificada pelo fato de boa parte do processo de construção e circulação de saberes

ambientais acontecerem a partir de relatos orais, o que permitiu entender como os

sujeitos percebiam suas ações e como externalizavam os processos educacionais

que desenvolviam.

Houve a necessidade de permanecer de forma sistemática nos locais onde os

sujeitos moram e desenvolvem suas práticas educativas, e criam símbolos e

subjetividades que orientam a vida no contexto social.

Outro procedimento relevante para o desenvolvimento da pesquisa foi a

utilização do recurso iconográfico para registro de dados, a fotografia. A técnica de

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registro fotográfico não foi utilizada para “congelar” momentos de convivência social

dos sujeitos pesquisados. Pelo contrário, teve a função de superar a mera ilustração,

de demonstrar detalhadamente determinados processos educativos, construção de

saberes, produção de territórios e cultura dos sujeitos, que se desenvolviam a partir

da interação com o meio físico. A fundamentação teórica utilizada para respaldar a

técnica de registro fotográfico foi referenciada nas análises de José de Souza

Martins em a Sociologia da Fotografia e da Imagem – São Paulo: Contexto, 2008.

Houve a realização de filmagens em todas as entrevistas com os ilhéus, fato

que permitiu analisar os detalhes das expressões faciais e gestuais dos sujeitos nos

momentos das narrativas, além de identificar e analisar minúcias dos locais que

foram habitados.

O registro filmado foi considerado uma prática basilar para o trabalho com a

cartografia, porém sem se constituir em detrimento do registro escrito. O registro

escrito no diário de campo permitiu que detalhes de gestos e falas fossem

observados e favoreceu análises dos escritos, sujeitos e situações que as filmagens

não demonstraram.

É importante ressaltar, que a adoção de um modelo de perguntas abertas e

filmagens não invalidou o improviso. Em algumas situações, onde os ilhéus não

entenderam ou não responderam às perguntas consideradas cruciais para a

pesquisa, tive que criar mecanismos para facilitar a compreensão e resposta, como

por exemplo, reformulação de perguntas. A realização de entrevistas filmadas

pressupõe a disposição em ouvir e dar o máximo de atenção ao entrevistado. Para

Fares (2010), é preciso:

Silêncio e atenção: para ouvir e poder refazer as questões ou acrescentar outras fora do roteiro: Daí que, antes da definição dessas questões específicas, é natural que as entrevistas pautem-se em um roteiro básico, que pode ser modificado diante dos narradores, pois são eles que constroem as teias para o diálogo avançar. Assim, quem conduz o trabalho deve conhecer a matéria e ser sensível ao tratamento da questão, para encontrar a questão necessária; reconduzir alguns temas; escolher a palavra compreensível naquele universo; conceber várias formas de expressar a pergunta; saber calar e ter disponibilidade de ouvir, de ouvir muito; não deixar a ansiedade saltar caminhos e chegar à pergunta final, sem ainda ter chegado ao fim da entrevista; deixar espaços abertos para uma próxima entrevista, ou um próximo pesquisador; para tantas outras aprendizagens e trocas (FARES, 2010, p. 24-25).

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Apesar da filmagem favorecer o registro de informações, houveram situações

em que as pessoas ficavam inibidas com a máquina, fato que demandou a

realização de uma espécie de “entrosamento” ou preliminares das entrevistas.

Afirmava ao entrevistado que estava fazendo um teste-filmado com a câmera e que

para tanto era preciso iniciar uma breve conversa. Tudo visava aproximar os

entrevistados ao objeto (máquina filmadora).

Portanto, realizar entrevista é um aprendizado significativo e é aprimorado a

partir da constância de sua efetivação, fato inerente à ação do pesquisador. O

registro escrito foi feito sem formalidades e regras pré-fixadas e, as observações,

diálogos, impressões, intuições foram constantemente registrados.

Foram utilizados alguns requisitos da pesquisa etnográfica, como a

observação participante e a vivência nos locais onde os sujeitos realizavam suas

atividades sociais cotidianamente: a realização de diálogos em suas moradias e

afazeres relacionados ao uso dos recursos naturais (caça, roça e coleta do açaí).

Contudo, a vivência junto aos moradores não teve período determinado, ocorreu

conforme necessidade de pesquisa:

O processo de configuração do campo de pesquisa impõe um tempo de experimentação, em que o pesquisador vai se familiarizando com as alternativas de tratamento do problema e as vantagens e desvantagens de diferentes ângulos de observação. Isso não se aprende senão pela prática pois, através dela enfrentam-se situações que peritem e, algumas vezes, obrigam a experimentar correções, ajustamentos e alternativas acompanhadas de reformulações conceituais, as quais gradativamente estruturam o modus operandi científico (ZAIA, 2002, p. 30).

Na realização das atividades de campo foi fundamental a participação do Sr.

Reginaldo, morador da Comunidade Igarapé Grande, que teve a disposição de me

orientar em alguns deslocamentos feitos no interior da comunidade, seja com o uso

de rabeta2 ou na realização de percursos realizados no interior da mata. Por meio

da sua participação, pude conhecer vários moradores da comunidade e após o

contato obtive a facilidade para a realização das entrevistas.

Os sujeitos da pesquisa foram os descendentes dos primeiros habitantes da

comunidade Igarapé Grande; num total de oito famílias, que correspondem a um

percentual de 25% das que habitam a comunidade, num total de 40 famílias. Nas

2 Pequena embarcação, estilo canoa, movida a motor e utilizada com bastante frequência por ribeirinhos nos furos dos rios da região amazônica.

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entrevistas filmadas foram destacados os “patriarcas” e as “matriarcas” de cada

família, sendo seis homens e duas mulheres. Os mais antigos possuíam idade em

70 e 102 anos e são aposentados. Os demais se dedicam às atividades de extração

e criação de animais. O perfil socioeconômico dos entrevistados surpreendeu por

realizarem vários afazeres, possuírem várias profissões, algumas não relacionadas

às atividades ribeirinhas. Os ribeirinhos selecionados realizavam atividades diversas:

- Serviço público (vigilante) na Escola Domiciano Ramos (1).

- Pedreiro/Padeiro (1)

- Aposentado (3)

- Comerciante (1)

- Produtor familiar (2).

A escolha desses sujeitos obedeceu a alguns critérios:

- Ancestralidade: para o entendimento do processo de construção e

circulação de saberes socioambientais havia selecionado, para a realização de

entrevistas na fase inicial de realização da pesquisa, os adolescentes. Contudo, a

prática de campo permitiu ampliar tal horizonte, identificou-se que a construção e

transmissão de saberes envolviam de modo significativo as pessoas mais velhas.

Foram selecionadas, ainda, pessoas identificadas pelos moradores como

sendo os descendentes mais antigos dos primeiros habitantes da Comunidade

Igarapé Grande, fato que possibilitou identificar formas de transmissão dos saberes

e práticas educativas ambientais transmitidas ao longo das gerações, que de modo

geral ocorriam por narrativas orais e realização de atividades que envolviam o

plantar, o colher, o preparar a terra, o saber pescar, entre outras.

- Gênero: homens e mulheres, que possuíam famílias e residentes na

Comunidade Igarapé Grande.

- Faixa Etária: adultos a partir de 35 anos e idosos com até 102 anos.

De modo geral, os mais velhos são aposentados e os mais novos dedicavam-

se à realização de diversas tarefas que variam entre vigilância noturna, pedreiro,

carpinteiro, padeiro, comerciante, criação de animais, plantação de árvores

frutíferas, extração do açaí e madeira no mangue para fabricação do carvão.

A elaboração de um roteiro de entrevistas semi-estruturadas (Apêndice 2)

para a identificação de saberes e práticas de educação ambiental desenvolvidas

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pelos ilhéus foi feita a partir dos primeiros levantamentos de campo, no 2º semestre

de 2010, quando foram realizadas 4 viagens para a localidade, foi concluída

associando-se as reflexões teóricas a partir de disciplinas cursadas no mestrado e

às constantes conversas com a Profª Orientadora Graça Silva, numa dinâmica de

revisão da pesquisa.

A realização das primeiras entrevistas ou “entrevistas-testes” semi-

estruturadas de perguntas abertas da pesquisa foram feitas no 1º semestre de 2011,

o que possibilitou a revisão de alguns pontos, especialmente os relacionados à

construção de práticas educativas desenvolvidas pelos entrevistados de Igarapé

Grande e suas relações com os espaços físicos. A importância de rever

procedimentos de pesquisa é destacada por Fares (2010, p. 25):

Assim, é indispensável depor “as armas” instituídas e abrir-se para a construção de novos roteiros e novas formas de caminhar. E, ao encontrar o inusitado, às vezes, precisa-se ter disponibilidade para mudar rumos e tempos programados.

Um momento importante do trabalho de campo foi a participação no Festival

do Açaí, que ocorreu em novembro de 2010. Naquela oportunidade pude conversar

com ilhéus assentados pelo Programa do INCRA e dialogar com moradores antigos

da ilha, fato que contribuiu para reformulação do roteiro de entrevistas.

A denominação “assentado” guarda relação com a participação no Projeto de

Assentamento Agroextrativista implantado pelo Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária - INCRA na Ilha João Pilatos comunidade Igarapé Grande.

O roteiro final das entrevistas abertas foi elaborado em parceria com a Profª

Orientadora Graça Silva, a partir de questionamentos e reformulações feitas no

decorrer das idas a campo e defesa da qualificação. Vale ressaltar que a cada

entrevista realizada seguia-se a análise de dados para que fossem avaliadas as

narrativas dos entrevistados e feitos ajustes considerados necessários.

A Pesquisa de Campo

Uma das características marcantes desta pesquisa foi a imersão em campo,

pois, para um maior entendimento da dinâmica do cotidiano das populações

ribeirinhas, identificação e análise de suas práticas educativas, dos saberes que

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eram postos em circulação com a convivência em grupo e nas relações que

desenvolviam com a natureza, era preciso estar presente constantemente com os

sujeitos da pesquisa nos locais onde vivem. De acordo com Passos (2009), o

trabalho do cartógrafo perpassa pela pesquisa de campo objetivando identificar e

inserir-se em processos.

Um dos procedimentos de campo foi a socialização do Projeto de Pesquisa

com os comunitários. A partir da apresentação, foi percebida certa desconfiança e

cobrança por parte dos moradores por resultados que atendessem aos seus

interesses econômicos e políticos.

Em decorrência da realização e participação dos ilhéus no Projeto de

Assentamento Agroextrativista do INCRA, ficou evidente no momento da

socialização da pesquisa que eles me viam como um técnico de uma agência

governamental que iria trazer certos benefícios à comunidade. Fato que causou

certo desinteresse quando perceberam que se tratava de uma pesquisa de cunho

acadêmico. Foram marcantes as falas que se reportavam às dificuldades

socioeconômicas vivenciadas pelos assentados que tinham a expectativa de receber

algum incentivo financeiro.

Não se pode denominar os entrevistados da ilha Igarapé Grande,

exclusivamente como ribeirinhos. Pensar em população ribeirinha significa

conjecturar imagens de comunidades que vivem toda dinâmica cultural, econômica e

social relacionada com o rio e com a mata.

Denominam-se, também, os moradores da Comunidade Igarapé Grande de

ilhéus, pois apesar de viverem à beira do rio Maguari e utilizarem do rio para a

realização de deslocamentos, pesca, banho e edificação da cultura, dois

entrevistados não se consideraram ribeirinhos e três afirmaram que aceitavam esta

denominação com ressalvas, pois diziam que não se identificavam com o rio.

Percebi que, para estes, a denominação ribeirinha proporcionava um sentimento de

inferioridade em relação aos moradores das cidades e que a moradia perto do rio

não significava o distanciamento econômico e cultural com as áreas urbanas.

A não imersão do trabalho de campo faz do cartógrafo apenas um técnico. O

trabalho de campo possibilita ao cartógrafo a observação dos sujeitos pesquisados.

Os sujeitos da pesquisa são respectivamente o pesquisador e o pesquisado.

Portanto, pude aprender com as experiências culturais dos sujeitos, registrando

formas educativas singulares de práticas simbólicas e reprodução material dos

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sujeitos observados. Consideraram-se as relações dos sujeitos com o mundo e a

historicidade dos seus processos sociais. Deu-se ênfase aos processos constituídos

por teias de relações construídas a partir de movimentos permanentemente

desenhados, pois, como seres sociais, desenvolvemos teias de relações.

O processo cartográfico não teve a preocupação com o simples registro de

informações no trabalho de campo. Fui ao encontro do outro, ficando aberto ao

diálogo, buscando a compreensão dos fatos a partir das constantes investidas a

campo, da avaliação constante de minhas práticas de pesquisa.

O registro cartográfico desenvolvido é entendido como a leitura momentânea

de fenômenos em constantes transformações. O registro cartográfico da

subjetividade é a leitura da história que é construída unindo os processos anteriores

e atuais (KASTRUP, 2009, p. 58). Aliás, o processo cartográfico não é um modelo a

ser seguido, não apresenta etapas rígidas a serem vencidas. Para Deleuze e

Guattari (1995), o mapa é um rizoma, passível de conexões, mutações, processos,

territorializações e desterritorializações.

O registro cartográfico desta pesquisa não foi mera anotação de fatos ou

eventos, não teve início com a coleta de dados, não seguiu com a análise e

discussão de dados; começou a ser feito nas investidas à Igarapé Grande no ano de

2010. As visitas ao local da pesquisa tiveram por objetivo maior aproximação com a

área e os sujeitos da pesquisa.

Foi utilizado o Sistema de Posicionamento Global (GPS) para demarcação

das áreas onde se encontravam as estruturas físicas (casas, “barracão”, escola,

campo de futebol), além da presença de elementos físicos (rios, matas, entre

outros). Os ilhéus também desenharam em folhas de papel a comunidade e seus

elementos. Tal atividade se constituiu na materialização de mapas mentais, mapas

de percursos e mapas culturais.

Relativizei minhas práticas de pesquisa, observei os fazeres dos sujeitos,

escutei, senti os cheiros, percebi as situações, busquei compreender os

movimentos, deslocamentos, construí novas relações de amizade. O registro escrito

foi considerado uma prática basilar do trabalho com a cartografia3 . O registro escrito

foi feito nas atividades de campo com o auxílio de um caderno de atividades. O

3 A habilidade da escrita cartográfica se aprende com a rotina da pesquisa, com a repetição e a

constância das práticas de registro. Os relatos não são expressões de uma ação forçosa, mas são experiências internalizadas de forma efervescentes cuja erupção de ideias traz a cena processos culturais (KASTRUP, 2009)

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diário de campo permitiu que dados fossem produzidos, reescritos sem formalidades

e regras pré-fixadas e as observações, diálogos, impressões e intuições fossem

também registrados.

A escrita foi sistemática, enfatizando a processualidade. Os registros escritos

deram suporte às demais atividades de campo, auxiliaram nas descrições

entendidas como “chaves” para a pesquisa. Os momentos considerados “chaves”

foram detalhadamente descritos, pois a cartografia prima por detalhes, por

evidências, por sintomas, por pistas. “Para o cartógrafo o importante é a localização

de pistas, de signos de processualidade” (KASTRUP, 2009, p. 25).

As anotações de campo foram revisadas, respeitando é claro a sequência, os

fatos e a fidelidade das situações ocorridas e resultou em elaborações textuais. As

elaborações textuais foram socializadas com os sujeitos da pesquisa sendo que foi

possível fazer correções, inserir informações consideradas pelos mesmos como

relevantes e não abordadas.

Os textos construídos com as etapas da pesquisa deram vozes aos sujeitos.

A pesquisa foi a oportunidade dos sujeitos socializarem suas produções culturais,

suas formas de vida, seus anseios e angústias. Na verdade, houve uma relação de

troca. Os sujeitos foram utilizados para desenvolver esta pesquisa e os mesmos se

aproveitam das falas para “aparecerem” e evidenciarem suas estórias e vivências.

Tive a certeza de que não existe neutralidade científica, pois apesar de ter

todo o cuidado com a objetividade da pesquisa nas entrelinhas, encontram-se

relatos que estão subtendidos e envolvidos numa série de sentimentos, visões de

mundo, formações culturais e história de vida dos sujeitos envolvidos. Neste sentido,

os relatos de campo demonstraram pensamentos pessoais, sensações e

experiências, mas sempre se destacam as falas dos sujeitos pesquisados.

Obtive o entendimento de que conhecer os sujeitos em estudo significa

engajar-se e comprometer-se com aquilo que se observa e cujos caminhos trilhados

no processo de conhecimento e compreensão da pesquisa cartográfica não se faz

de forma superficial, mas em parte se caracteriza em vivências em territórios que

expressem os sentidos da existência e socializações coletivas.

A cartografia tem por objetivo compartilhar experiências. Esta pesquisa não

teve a pretensão de tornar-se modelo de cartografia ribeirinha das ilhas de

Ananindeua, pelo contrário, não tem fins puramente científico-acadêmicos de uma

pós-graduação, de problematizar a relação educação, sociedade, saberes e

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sustentabilidade local. Foi além. Compreendeu processos que se desenvolviam num

constante porvir socialmente significante. A cientificidade foi apenas uma parte não

hierárquica da pesquisa, caso contrário, legitimaria as regras do método de ciência

dominante onde a cientificidade objetiva a neutralidade que, de regra geral, rege o

início, o meio e fim das ações.

A quantidade de idas a campo não foi determinada previamente, era

conduzida de acordo com as necessidades da pesquisa e a variável numérica foi

insignificante. Parte do tempo foi dedicada ao trabalho de campo à promoção de

diálogos para preparação das entrevistas realizadas.

Esta pesquisa não foi a imitação da pesquisa etnográfica formal, pois não se

pretendia imitar modelos. A cartografia é a arte do devir. Foram utilizados alguns

procedimentos da pesquisa etnográfica, como a permanência em campo por

períodos não determinados, acompanhando processos de formações de territórios

da educação ambiental ribeirinha sem datas definidas.

Foram produzidas cartografias de saberes ambientais e dos usos dos

recursos naturais. As falas/discursos entre os sujeitos pesquisados foram

acompanhadas para a feitura de registros (escritos, fotográficos, sons) objetivando

compreender as relações existentes entre o exercício de práticas educativas, os

saberes ambientais e a sustentabilidade local. Foram observadas as relações

interpessoais desenvolvidas nas/entre famílias, nos diálogos de pessoas mais

velhas com as mais novas, nas rodas de conversas e espaços construtores de

práticas de educação e saberes ambientais locais.

Detalhes de locais (características sócionaturais) e processos onde se

realizam práticas culturais relacionadas ao uso de recursos naturais e construção de

territórios da educação ambiental foram relatados. Com a descrição buscou-se

entender processos educativos que tinham em suas essências a construção de

saberes ambientais que se constituíam em mapas da educação ambiental.

Não é função da cartografia representar a realidade, mas acompanhar os

processos de construção da realidade. Da mesma forma, não foram representadas

práticas educativas desenvolvidas pelos ribeirinhos. Teve-se a preocupação de

acompanhar processos educativos em andamento e registrar as experiências

educativas formadas coletivamente, que orientavam o uso dos recursos para a

formação de territórios da sustentabilidade.

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Esta pesquisa se fundamentou nas propostas teóricas e metodológicas feitas

a partir do método indiciário definido por Carlo Ginzburg (1989) caracterizado pela

análise de fenômenos e processos sociais realizados a partir do acompanhamento

de pistas, faros, vestígios, indícios, sintomas e sinais, além da análise do rizoma

destacada por Deleuze e Guattari (1995-97), Kastrup (2009) com a noção de

acompanhamento de pistas.

A proposta metodológica que resultou nesta pesquisa foi intitulada de

“cartografia dos indícios socioambientais” e caracterizou-se pelo acompanhamento

de pistas no trabalho de campo que levaram à produção de dados de processos

socioeducacionais dos ilhéus.

O Programa de Pós-Graduação em Educação em Nível de Mestrado da

UEPA – PPGED vem ao longo dos anos desenvolvendo pesquisas que abordam a

temática da cartografia. Foi constatado, por meio das pesquisas de docentes, que o

referencial teórico e metodológico vem sendo fundamentado na “ecologia de

saberes” e pela “cartografia simbólica” desenvolvida por Boaventura (2010) e,

principalmente, pelas concepções de educação defendidas por Paulo Freire que, de

modo geral, tratam da construção de uma pedagogia da libertação e direcionadas a

todos os oprimidos do sistema capitalista.

As pesquisas de docentes do PPGED foram realizadas em diversos

municípios amazônicos e consideraram várias formas de saberes: poéticos,

religiosos, ambientais, artísticos, literários, lúdicos do brincar, das narrativas orais,

entre outros inscritos em práticas educativas e saberes populares. A cartografia de

saberes do PPGED é assim definida:

A cartografia de saberes é uma obordagem metodológica marcada pelo hibridismo cultural, que implica uma nova ética do fazer ciência convergente e consciente. Abordagem que se materializou entre fronteiras de saberes pluri-inter-transdisciplinares, e se revelou como uma práxis de pesquisa intercultural, um caminho investigativo para dar conta da inter-multiculturalidade rural-ribeirinha entre alfabetizandos amazonidas (RODRIGUES, ANO, p.3).

Esta pesquisa se junta aos esforços de renomados docentes da Universidade

Estadual do Pará (UEPA/Mestrado-PPGED) que dedicaram parte considerável de

suas vidas ao entendimento de processos educacionais e culturais amazônicos e

das produções dos discentes, especialmente no Programa de Pós-Graduação em

Mestrado.

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Ressalta-se que a escolha de autores como Deleuze e Guattari, Kastrup e

Carlo Ginzburg, nesta pesquisa, é considerada inovadora, pois indicam a

possibilidade para a construção de “novos” procedimentos cartográficos de

investigações científicas desenvolvidas pelo Programa de Mestrado da UEPA e que

contribuem nos esforços dedicados ao entendimento e estudos de práticas culturais,

ambientais e educacionais de populações amazônicas não urbanas.

A partir do entendimento de que as categorias de análise são as que

fundamentam a atividade de campo e as categorias empíricas são aquelas que

surgem das práticas de campo, do contato prolongado com o objeto investigado, foi

feita a seguinte distinção:

- Categorias empíricas que emergiram da pesquisa foram: uso da natureza,

sustento, saber o meio físico, apropriação do espaço, fundantes do processo de

criação de territórios e práticas educativas socioambientais decorrentes da interação

com a natureza.

- Categorias de análises que fundamentaram teoricamente o estudo:

Territórios – para Guattari e Rolnik (2010. p. 388):

O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

Assim, os territórios seriam formados com a construção de processos não

contraditórios e concomitantes de territorialização e desterritorialização. Os territórios

não configurariam conceitos modelos, seriam mapas integrantes de rizomas que

seriam formados a partir da edificação de processos sociais, econômicos, afetivos,

entre outros.

Cartografia – para Deleuze e Guattari (1995, p. 22/Vol. 1.):

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas direções, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,

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concebê-lo como obra de arte, construído como uma ação política ou como uma meditação.

Portanto, a construção de processos cartográficos não possui modelo

definido. Nesta perspectiva, a formação de um mapa implica acompanhamento de

processos sociais que não possuem nem meio nem fim, estariam num constante

porvir deleuze-guattariano.

Saber Ambiental – o para Leff (2009. p. 50):

O saber ambiental se constrói a partir de sua falta de conhecimento, integrando os princípios e valores que animam a ética ecologista, as sabedorias e práticas tradicionais de manejo dos recursos naturais e as ciências e técnicas que servem de suporte as estratégias do desenvolvimento sustentável.

Dessa forma, o saber ambiental não seria construído na academia, nem

representaria um processo único das populações tradicionais, mas precisaria ser

formado a partir da integração de saberes.

Assim, é discutido no primeiro capítulo deste trabalho o processo histórico de

produção do espaço urbano do município de Ananindeua, no decorrer do qual foi

analisado o Porto do Surdo enquanto ponto de fronteira sociológica e geográfica

entre o rural e urbano daquele município. Destaca-se parte das vivências no

processo de travessia para as ilhas, além da comunidade Igarapé Grande e as

configurações que orientaram a realização da pesquisa. Por fim, faz-se uma

caracterização sociogeográfica e cultural da Comunidade Igarapé Grande.

No segundo capítulo é discutida a relação entre o processo de construção de

sabres socioambientais e a territorialização de práticas educativas em Igarapé

Grande. Enfatiza-se a dicotomia entre saberes científicos e os criados e

reproduzidos pelos ribeirinhos cotidianamente nas relações que estabelecem com a

natureza. É abordada a formação de territórios rizomáticos no lócus da pesquisa,

dentre eles os seguintes territórios: “das caminhadas”, dos “lugares do cotidiano”,

das “linguagens espaciais”, “das lendas”, das “rodas de conversas”, dos “saberes

socioambientais”, das religiosidades, “dos fazeres individuais”, dos “fazeres

coletivos” e “das possibilidades do turismo”.

No terceiro capítulo analisa-se a construção da cartografia de saberes

socioambientais e práticas de sustentabilidade local, com destaque para os

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processos educativos e suas relações com leituras de paisagens, a construção de

mapas, escalas, legendas e limites espaciais feitos a partir de saberes e práticas

socioeducativas ambientais, o sistema “rio maguari-rizoma”, o saber sobre o meio

físico e a sustentabilidade socioambiental em Igarapé Grande e o significado e uso

da natureza e suas relações com a sustentabilidade e não sustentabilidade.

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CAPÍTULO 1 O ESPAÇO URBANO DE ANANINDEUA E SUAS RELAÇÕES COM

O MEIO RURAL: TECENDO OS CAMINHOS DA PESQUISA

1.1 PROCESSO HISTÓRICO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE

ANANINDEUA

O crescimento urbano do município de Ananindeua insere-se na dinâmica do

crescimento da cidade de Belém. Ananindeua é o segundo município mais populoso

do estado do Pará, com cerca de 471.744 mil habitantes, conforme o último censo

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

O nome Ananindeua é originário da língua tupi e tem a ver com a

denominação de uma árvore florida de grande porte, que no passado era muito

utilizada pelos índios e que na atualidade serve para a fabricação de cera para ser

usada na vedação de embarcações. As árvores de ananin cresciam às margens dos

incontáveis “braços” do rio Maguari-açú que margeavam parte considerável da atual

cidade de Ananindeua. Aliás, o nome Maguari-Açú teve relação com o pássaro

Maguari, caracterizado pelo longo pescoço, bico de cor amarela, pernas compridas e

que, com frequência, habitava as margens e áreas rasas desse rio.

Geograficamente, o município faz limite ao norte com Belém, ao sul é

margeado pelo rio Guamá, a leste é vizinho de Marituba, a oeste tem novamente

limites com Belém e ao nordeste sua área territorial vai até o município de

Benevides.

A área total do município é de 191,429 Km², cuja vegetação da área urbana é,

em sua maioria, secundária em função do desenvolvimento de um histórico

processo de desmatamento seguido do crescimento da cidade.

Os principais rios que cortam e influenciam a cidade são o Maguari-Açú, o

Guamá e o Benfica. Os inúmeros igarapés que faziam parte da paisagem da cidade,

a partir das três últimas décadas do século XX, foram intensivamente assoreados e

muitos acabaram completamente extintos ou parcialmente aterrados em decorrência

de grande pressão urbana, do processo de construção de moradias e especulação

imobiliária. No município, as chuvas são regulares com forte presença nos meses de

janeiro a junho.

A história da ocupação das terras que hoje constituem a parte central de

Ananindeua (área correspondente à sede da prefeitura, que concentra bancos, lojas,

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o Fórum, localizados as margens da BR 316), tem a ver com a estrada de ferro de

Bragança que se iniciava em São Braz, em Belém, e ía até a sede do município do

mesmo nome da estrada.

De acordo com registros na literatura, o fluxo na estação de trem de

Ananindeua era crescente devido a grande presença de imigrantes que se

deslocavam pela estrada de ferro, aliado às migrações de alguns ribeirinhos que

habitavam as ilhas do município e vinham até a cidade para a compra de

mercadorias originárias da zona bragantina4.

Os imigrantes que chegavam de várias partes do Pará à Ananindeua

contribuíram decisivamente para a construção de um quadro de pressão imobiliária

e ocupação de terrenos no centro da cidade, além dos localizados no antigo

povoado do Maguari, considerado uma área periférica distante da estação do trem.

A partir da estação, houve um incremento do processo de crescimento urbano

levando a formação de um povoado.

Belém, no século XIX, apresentou um crescimento urbano de característica

muito singular onde os governantes aterraram inúmeros igarapés que dificultavam a

ocupação de terras, especialmente as localizadas próximas ao Forte do Castelo5 e

nos atuais bairros do Reduto, Cidade Velha e Nazaré, e expulsaram as populações

de baixo poder aquisitivo para áreas distantes das áreas nobres. Tudo em nome da

“limpeza urbana” e embelezamento da cidade.

Gradativamente a cidade de Belém foi expandindo seu espaço urbano

chegando a delimitar o marco da 1ª Légua Patrimonial cujo limite se localizava no

atual Bosque Rodrigues Alves, situado à Avenida Almirante Barroso (Belém), cuja

função estratégica objetivava preservar áreas verdes, ‘racionalizar’ a ocupação e

uso do solo com a instalação de terrenos institucionais públicos, das forças armadas

e grupos particulares. Contudo, a pressão popular pela ocupação de terras era

grande e gradativamente foi ultrapassado o limite da 1ª Légua, onde posseiros foram

4 Zona Bragantina: é uma das microrregiões do estado do Pará pertencente à mesorregião Nordeste Paraense. Sua população foi estimada em 2008 pelo IBGE em 374.907 habitantes e está dividida em treze municípios (Augusto Corrêa, Bonito, Bragança, Capanema, Igarapé-Açu, Nova Timboteua, Peixe-Boi, Primavera, Quatipuru,Santa Maria do Pará, Santarém Novo, São Francisco do Pará e Tracuateua. Possui uma área total de 8.710,774 km². (pt.wikipedia.org/wiki/Microrregião-Bragantina. Em: 12/09/2011). 5 Casa Militar fundada pelos portugueses no século XVII, em 12 de janeiro de 1616 e objetivava:

combater as invasões estrangeiras, servir como ponto de referência para a expansão portuguesa na Amazônia e garantir a posse do “novo” território.

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se instalando ao longo do percurso da Estrada de Ferro de Bragança em direção a

Ananindeua.

A Estrada de Ferro de Bragança criou um novo eixo de colonização do

município. Vale lembrar que, o núcleo pioneiro da produção do espaço geográfico de

Ananindeua ocorreu às margens do rio Maguari-Açú com a colonização ribeirinha,

mas não teve o grande destaque do crescimento urbano da área central. O

povoamento das margens do rio Maguari começou no século XIX onde ribeirinhos

originários de municípios paraenses se instalavam nestas áreas para morar.

A ocupação das terras do rio Maguari teve uma mudança radical com a

chegada dos irmãos ingleses Davids e Saunders que incentivaram, por meio do

incentivo às atividades comerciais, o crescimento econômico da localidade do

Maguari.

Os irmãos Davids e Saunders foram responsáveis pela criação da vila

Maguari, na época caracterizada por ser um núcleo residencial operário, contando

com a presença de médicos, de áreas de lazer, mas que objetivava servir de abrigo

para a mão-de-obra empregada no extinto Curtume do Maguari.

Na época áurea da vila do Maguari ocorreu a construção da primeira Escola

Municipal Quinta Carmita, localizada às margens do rio Maguari-Açú e tinha como

destino final receber alunos cristãos de famílias abastadas de Belém. Na Quinta

Carmita, os alunos aprendiam idiomas, os fundamentos da fé cristã, o canto, a

pintura, as artes e a pirogravura.

Em 1921, a área pertencente à Escola Quinta Carmita foi cedida para a

produção leiteira, criação de galinhas e comercialização da água mineral

denominada Água Maguary.

As terras do Curtume Maguari compreendiam áreas dos atuais bairros da

Cidade Nova, Guajará, PAAR6 e do Maguari. Entre as estradas que foram

construídas e que tiveram importância no deslocamento para a integração do

Maguari com a área central de Ananindeua, trecho correspondente a Estrada de

Ferro, destacam-se: a Av. Claudio Saunders, a Estrada da Providência e a estrada

que corresponde hoje a Rodovia do 40 horas.

Terras que acompanhavam o percurso da estrada de ferro foram

progressivamente ocupadas e valorizadas. A localidade (povoado que deu origem a

6 Bairro residencial denominado Pará, Amapá, Acre e Roraima.

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atual Ananindeua) foi elevada à categoria de freguesia e em 1938, outorgado por

decreto do intendente Magalhães Barata, foi considerada sede distrital pertencente a

Belém. Através do Decreto Estadual nº 4.505, de 30 de dezembro de 1943,

Magalhães Barata cedeu autonomia ao Distrito com a criação do município de

Ananindeua em 03 de janeiro de 1944.

O crescimento urbano recente, pós-1960, da parte que corresponde

atualmente à área Central de Ananindeua, também tem relações com o crescimento

urbano de Belém, onde conjuntos habitacionais foram construídos em novas áreas

que receberam o nome de Cidades-Novas tidas como cidades dormitórios de

trabalhadores que exerciam atividades profissionais durante o dia em Belém.

Atualmente, Ananindeua apresenta problemas associados ao crescimento urbano

desordenado, especulação imobiliária nas áreas centrais da cidade e falta de

saneamento especialmente em bairros periféricos. Realidade marcante de boa parte

das cidades brasileiras.

1.2 O PORTO DO SURDO: FRONTEIRA SOCIOLÓGICA E GEOGRÁFICA ENTRE

O RURAL E URBANO EM ANANINDEUA.

De forma esquemática, em geral, uma população é denominada de urbana

quando vive na cidade e rural quando vive no campo. Ao pensar em campo vem

logo à mente a imagem de produtores rurais (pequenos, médios e grandes) que

desenvolvem atividades econômicas relacionadas à agropecuária e extrativismo

vegetal e animal. Quando pensamos em cidade, imediatamente reportamos à

imagens de prédios, ruas asfaltadas e automóveis. Esta simples divisão é confusa e

não explica diferentes contextos rurais e urbanos no Brasil, em especial,

amazônicos.

Para Veiga (2003), a idéia de urbano tem relação estreita com o conceito de

cidade imposto pelo Estado Novo, em 1938 onde o Decreto-Lei 311 outorgou como

sendo cidade toda sede de município. Contudo, esta divisão esquemática não dá

conta de explicar os processos socioculturais e a noção de fronteira “rural-urbana”

vivenciada por moradores de Ananindeua.

Milton Santos (2010) analisa o processo de integração entre o rural e o

urbano como tessituras que envolvem a dinâmica de territorialização e

desterritorialização. Segundo Santos (2010):

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Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização. Vir para a cidade grande é, certamente, deixar atrás da cultura herdada para se encontrar com uma outra. Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação (SANTOS, 2010, p. 597).

Este contexto pode ser associado às migrações pendulares ou diárias que

envolvem o deslocamento dos moradores das ilhas de Ananindeua até as áreas

urbanas das cidades. Há uma “perda” de identidade momentânea face aos objetos

espaciais e valores urbanos vivenciados por ribeirinhos quando percorrem o interior

desta cidade.

A oposição rural-urbano deve ser relativizada, especialmente na Amazônia

brasileira onde existem diversas localidades, vilas e sedes municipais que se

encontram localizadas em áreas denominadas de urbanas, mas que exercem

atividades econômicas e culturais baseadas em elementos rurais e vice versa. A

separação rural-urbano é explicada por Veiga (2003, p. 33):

Nada pode ser mais rural do que as escassas áreas de natureza intocada, e não existem ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por megalópoles. É por isso que se considera a “pressão antrópica” como melhor indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo grau de urbanização dos territórios.

A definição acima intensifica a confusão entre rural e urbano e é muito

problemática, pois reforça a idéia de que o rural se caracteriza pela natureza

intocada e o urbano pelo “celeiro” da modernidade e da transformação da natureza.

A concepção de natureza primitiva ou intocada sempre foi utilizada para estigmatizar

populações amazônicas que vivem distantes das cidades, como se elas não

usassem e degradassem a natureza e não vivenciassem valores urbanos.

O “Porto do Surdo” está localizado no bairro do Curuçambá e é um marco do

limite físico-geográfico entre a cidade de Ananindeua e as ilhas. O nome que deu

origem ao Porto tem relação com o marido de D. Raimunda, que era deficiente

auditivo, surdo.

No imaginário popular o bairro do Curuçambá é estigmatizado como sendo

uma das principais “áreas vermelhas” de Ananindeua. Estas áreas são, em geral,

caracterizadas pela precariedade dos sistemas de saneamento básico (serviços de

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água e esgoto), considerável ocorrência de tráfico de drogas, violência (assaltos e

mortes) e por residirem pessoas de baixo poder aquisitivo.

O bairro do Curuçambá apresenta ineficiência de políticas públicas municipais

e estaduais direcionadas ao saneamento básico, à geração de renda e emprego, ao

combate a criminalidade e à promoção da qualidade de vida. O bairro cresceu sem

planejamento e quase não existem áreas de lazer.

O Porto do Surdo se situa geograficamente numa espécie de “periferia do

bairro do Curuçambá”. Para quem deseja chegar ao Porto partindo da BR 316, em

Ananindeua, tem que percorrer boa parte das avenidas Maguari e Curuçambá até o

final da linha de ônibus do Curuçambá. O percurso continua até uma curva, uma

espécie de pequeno ramal com cerca de 300m totalmente esburacada até chegar

efetivamente ao Porto.

No Porto existe apenas uma pequena embarcação autorizada pela família de

D. Raimunda para realização da travessia para a comunidade Nova Esperança, Ilha

João Pilatos, distante cerca de 20 minutos do Porto. Os demais barcos que se

encontram no local realizam percursos diferenciados para ilhas e municípios

adjacentes. Contudo, para se chegar à comunidade Igarapé Grande é preciso alugar

um barco, pois a mesma fica distante cerca de uma hora do Porto e não existem

embarcações que fazem linha para o local.

É importante destacar que as visitas realizadas à comunidade Igarapé Grande

foram feitas, em sua maioria, no barco escolar que sai do Porto diariamente para

levar as crianças e jovens de localidades ribeirinhas para a escola Domiciano

Ramos localizada em Igarapé Grande.

A Compreensão da dinâmica de vida cotidiana que ocorre no Porto do Surdo

permite o entendimento de uma das fronteiras sociogeográficas entre o rural e o

urbano no município. Considera-se a leitura e entendimento dos processos

socioeconômicos no Porto do Surdo uma primeira pista para o entendimento de

processos socioculturais e econômicos vividos por moradores das ilhas de

Ananindeua.

A idéia de fronteira, comumente, na ciência geográfica é associada à

expansão de atividades econômicas em territórios. É evidente o movimento de

ocupação de novas áreas. No Porto do Surdo a fronteira foge a esta dicotomia, pois

apresenta um caráter geográfico e sociológico, sem espaço demarcado.

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Neste trabalho as fronteiras foram constantemente verificadas e

apresentaram perspectivas variadas. Quando se analisam as relações estabelecidas

entre a ciência hegemônica e as formas de conhecimentos marginalizados,

concepções de mundo e construção de saberes que se encontram num processo de

territorialização e desterritorialização, em decorrência das interseções entre ambos,

são verificadas fronteiras. As fronteiras são formadas a partir da incapacidade de

serem estabelecidos padrões rígidos de explicação da realidade para todas as

coisas, fenômenos e processos sociais.

Silva (2006) destaca a articulação e a existência de fronteiras nas formas

como os ribeirinhos se relacionam com a natureza, de modo especial, as que se

constroem a partir das relações rio-mata, cujos processos desfazem as caricaturas,

hegemonicamente forjadas, ao longo dos anos sob as populações amazônicas.

De forma similar, Deleuze e Guattari (1997) destacam a existência de um

processo constante de afirmação da “ciência régia” frente à “ciência nômade” ou

“subalterna” e a existência de uma fronteira que as unificam de forma heterogênea:

Estamos diante de duas concepções de ciência, formalmente diferentes; e, ontologicamente, diante de um só e mesmo campo de interação onde uma ciência régia não pára de apropriar-se dos conteúdos de uma ciência nômade que não pára de fazer fugir os conteúdos da ciência régia. No limite, só conta a fronteira constantemente móvel (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 34, vol. 5).

Os fundamentos deleuze-guattarianos indicam a existência de uma fronteira

aberta e em constante movimentação entre o modelo da ciência régia e a ciência

nômade. A ciência régia pode ser compreendida como o modelo atual de ciência

ocidental hegemônico e a ciência nômade pode ser relacionada às concepções

variadas de mundo, de natureza, de ciência, de produção de saberes e circulação de

conhecimentos que não se enquadram nos padrões rígidos da ciência oficial e a

fronteira é o espaço de transição entre uma e outra, mas não apresenta um caráter

dicotômico, de contradição.

Portanto, fica subentendido que a fronteira é parte de um processo que não

se esgota, mas que abre possibilidade à edificação de novos caminhos e

consideração de saberes e conhecimentos não hegemônicos e hegemônicos,

solapando o totalitarismo da ciência eurocêntrica que a todo momento tenta

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controlar e desconsiderar outras formas de expressão do conhecimento. Deleuze e

Guattari (1997, p. 27) concluem que:

Por isso, o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência do Estado, e onde, inversamente, a ciência de Estado se apropria e transforma os dados da ciência nômade. Isso é a verdade da arte dos campos e da castramentação, que sempre mobiliza as projeções e os planos inclinados: o Estado não se apropria dessa dimensão da máquina de guerra sem submetê-la a regras civis e métricas que vão limitá-las de modo estrito, controlar, localizar a ciência nômade, e proibi-la de desenvolver suas conseqüências através do campo social.

Boaventura Santos (2009) também reconhece a existência de fronteiras7 entre

as ciências hegemônicas e as formas de conhecimentos e saberes marginalizados:

Os fatos observados têm vindo a escapar ao regime de isolamento prisional a que a ciência os sujeita. Os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídos por anéis que se entrecuzam em teias complexas com os restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles (BOAVENTURA, 2009, p. 73).

Quando Boaventura Santos (2009) afirma que o conhecimento é parcelado

nas especializações da ciência, é possível identificar uma relação tipo o modelo

árvore-raiz definido por Deleuze e Guattari (2005). Assim, o modelo árvore-raiz

compreenderia a Ciência Moderna como uma grande árvore do conhecimento e

seus galhos seriam as especializações das ciências. Este modelo expressaria o 6º

princípio do rizoma, o decalque, caracterizado pela imagem estática de um modelo

hegemônico de Ciência que de seu tronco emanaria diversos ramos científicos. Por

outro lado, quando Boaventura Santos (2009) afirma que os objetos possuem

fronteiras definidas e que se intercruzam formando teias complexas, relacionamos

ao 4º princípio do rizoma deleuze-guattariano, à ruptura a-significante onde se

desenvolveriam os processos de territorialização e desterritorialização. Por fim, as

linhas de fuga comuns aos rizomas uniriam a outras raízes formando novas teias

complexas ou como diria Boaventura Santos, formando anéis complexos.

7 As fronteiras seriam as possibilidades e caminhos de superação dos limites do Modelo de Ciência

Oficial. A fronteira é perceptível na tentativa de supressão das oposições entre natureza e sociedade,

sujeito e objeto, abstração e matéria, natural e artificial, no que é dito como legal e ilegal, legitimo e ilegítimo.

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Há fronteiras em Igarapé Grande quando são observadas as falas dos

entrevistados. Na verdade, as narrativas revelaram fronteiras construídas nas

relações do percurso e imaginário do rio e cidade; do planejamento territorial

governamental e as territorialidades de deslocamentos dos ilhéus, de saberes e

práticas ambientais locais e o desenvolvimento sustentável imposto pelo INCRA, da

imposição de saberes técnico-científicos e dos saberes locais, do turismo precário

local e a percepção turística dos moradores, do uso dos recursos naturais e das

fórmulas forjadas de manejo. Enfim, as fronteiras identificadas encontram-se abertas

e pelo que foi percebido aprofundaram o fosso ou abismo que separa o

entendimento sócio-físico e econômico-cultural da realidade dos ilhéus e a cidade de

Ananindeua.

O sentido polissêmico de fronteira, ou seja, geográfica, sociológica,

antropológica e econômica, é identificada cotidianamente no Porto do Surdo quando

moradores que residem nas ilhas de Ananindeua e vão às áreas urbanas em busca

de serviços de saúde, compra de gêneros alimentícios nas feiras e mercados.

Existem os que moram na cidade de Belém e Ananindeua e se dirigem às ilhas para

a realização do lazer e do trabalho, a exemplo de banhistas que se dirigem aos

finais de semana e de professores e agentes comunitários de saúde. Há um fluxo de

ida e volta que representa parte da interface entre o rural e o urbano.

O vínculo com a cidade que as populações ribeirinhas constantemente

desenvolvem também foi constatado nos estudos que evidenciaram a relação rural-

urbano desenvolvida no Porto da Palha Belém-PA:

Por meio das entrevistas os ribeirinhos revelam que, mesmo estabelecendo relações cotidianas com a dinâmica da cidade, suas referências não são urbanas. Mesmo assim, indicam interesses por certas dinâmicas que se difundem na cidade, como, por exemplo, o crédito das lojas, outros meios de transportes, as políticas de saúde e educação, que são percebidas e avaliadas pelos sujeitos entrevistados como de melhor qualidade (SILVA, 2008, p.9).

As relações rural e urbano, descritas por Silva, ocorrem de forma similar no

“Porto do Surdo” em Ananindeua, mas apresenta singularidades próprias do lugar.

Esta relação construída no espaço de fronteira sociogeográfica é contraditória, pois

aproxima as pessoas que acabam construindo novos lugares no Porto, mas implica

na vivência de lugares vazios, especialmente no interior das cidades.

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A prática de adentrar as cidades de Belém e Ananindeua acaba por

constituir-se num processo denominado por Fani (1996) de não lugar caracterizado

pela falta de integração, afetividade, subjetividade e amorosidade com espaços

físicos onde as pessoas circulam. Fato que representa, de certa forma, uma prática

vazia de significado.

Ir à cidade, segundo os ilhéus, implica passar por espaços sem histórias

pessoais e quase sem relações com os cotidianos vivenciados nas ilhas. A cidade

acaba se tornando o lugar das ausências e das formas geométricas que seguem

uma ordem que edificam a desordem urbana.

As formas rugosas, frias e artificiais das cidades não configuram memórias.

Falta aos ilhéus aquilo que Fares (2003) discute como reminiscência ou

rememoramento do passado. Como lembrar o passado na cidade daquilo que não

ajudaram a construir? Por outro lado, restaria a internalização de poucos objetos

espaciais observados nos “trajetos frios”. Fato contrário acontece nas ilhas, onde as

paisagens constituem imagens que configuram memórias de espaços. O processo

que marca a memória das coisas e lugares é descrito por Fares (2003, p. 5):

Entre as principais funções da imaginação, para além das interpretações da sensação presente, estão a formação de imagens persistentes e a memória. Esta referência ao passado, o tempo – “faculdade primeira da percepção”, e o imaginário, não se pode conceber memória sem imagem. Apresentada como uma espécie de pintura ou impressão do objeto, a imagem preenche a função de nos tornar consciente do original, como representantes “de algo e de algo passado”.

Portanto, não há memória sem imagem. A imagem feita a partir da

observação dos objetos físicos se cristaliza em nossas memórias com a intensidade

de situações, gestos, sentidos e falas. As imagens construídas por ribeirinhos de

Ananindeua nos percursos urbanos que fazem, em geral, são vazias de significados,

não falam, não reportam a lembranças ou reminiscências. Para Santos (2010) uma

caminhada “vazia” centrada na grande fluidez nos espaços urbanos não introjetam

imagens:

Quem, na cidade, tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-la – acaba por ver pouco da cidade e do Mundo. Sua comunhão com as imagens, frequentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem exatamente do convívio dessas imagens. Os homens “lentos”, por seu turno, para quem essas imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo

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as fabulações. A lentidão dos corpos constataria então com a celeridade dos espíritos? (SANTOS, 1997, p. 85).

A cidade é a expressão da fluidez. Tudo é construído para permitir os

deslocamentos intensos. Ruas, calçadas, o sinal de trânsito, os viadutos, os túneis,

os cruzamentos e o automóvel reforçam a rapidez dos deslocamentos dos

transeuntes, dos meios de transportes e mercadorias. Por outro lado, o tempo dos

ilhéus nas cidades de Belém e Ananindeua não é o do relógio e dos fluxos, mas é o

“tempo sem memória”, de lembranças vazias, de locais que são percorridos sem

sentimentos, nem paixões duradouras com os espaços físicos.

Não é a toa que Santos (1997) afirma que a força dos fracos é seu tempo

lento, contrariando o tempo despótico das metrópoles e do capitalismo. As pessoas

que vivem em Igarapé Grande tem na natureza, nos indícios, sintomas e sinais de

mudanças do tempo, o seu tempo predileto, contrário ao do “tic tac” do “relógio

urbano-industrial”.

Dessa forma, ao adentrar a cidade o ilhéu vive outro território, diferente de

sua territorialização original. Realiza um processo contraditório de “vivência forçada”.

Percorrer a cidade torna-se uma obrigação pela busca aos serviços de saúde,

previdência, além da compra de produtos para complemento da alimentação,

higiene e medicamentos.

Os objetos espaciais fabricados nas cidades são artificiais, construídos pela

força do trabalho humano. Quanto maior a imponência, o aglomerado de concreto e

aço, maior é sua capacidade de ser admirado. Em João Pilatos, comunidade Igarapé

Grande, os objetos são em sua maioria naturais, esculpidos e polidos pela própria

natureza. A admiração centra-se nas siluetas das árvores, nas sinuosidades dos

rios, nas cores das paisagens vistas como fabulosas.

Os relatos dão conta de que a cidade é vista como um espaço de percurso

sem ser imaginado e vazio de significado. Segundo Paraco os moradores se dirigem

à cidade para:

A gente depende muito da cidade. Às vezes pra comprar umas peças do motor, comprar roupas, comprar vários alimentos que aqui a gente não tem. Saúde também (consulta). Eu vou por obrigação, eu não gosto muito não. Porque é meu costume né! É o costume, eu já estou acostumado aqui. Lá tem, o mercado. Comprar frutas que não tem aqui, comprar uma carne, uma roupa na feira de Ananindeua (Paraco. Em: 23/02/2012).

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Portanto, o Porto do Surdo, apresenta lugares fronteiriços de roda de

conversa e de espera de embarcações, situações comuns de ambientes ribeirinhos.

O porto é a fronteira aberta entre as ilhas e a fluidez das cidades. Palco de

emoções, lembranças e vivências significativas e frias.

Faces ribeirinhas estão inscritas nas paisagens no entorno do porto com o

aporte de barcos, pontes feito trapiches, pela presença do rio Maguari que margeia a

orla do porto, além da existência de pequenos “botecos”, num total de cinco, onde

são comuns o consumo de bebidas, realização de jogos de mesa de bilhar e a

existência de territórios de grupos de conversa que se formam até chegada das

embarcações.

As fotos 1 e 2 a seguir destacam traços da cultura ribeirinhos no “Porto do

Surdo”. A ponte feito trapiche é tida como ponto de encontro entre fronteiras físicas e

culturais entre as ilhas e as áreas urbanas do município de Ananindeua. Este tipo de

estrutura física é comum nas localidades amazônicas que se localizam à beira rio e

que são fartamente reproduzidas nos centros urbanos da região Amazônica.

Foto. 1 – Traços ribeirinhos que marcam a paisagens do “Porto do Surdo”. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Foto. 2 – “Chegada ao Porto do Surdo”. Ponto de encontro (fronteira) entre o rural e o urbano. Em: 11/04/2011. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Torna-se pertinente relatar uma passagem relevante para a elaboração desta

pesquisa. Lembro-me do dia 27/03/2012, no qual estava programada uma visita à

comunidade Igarapé Grande. Contudo, havia perdido o barco escolar. No porto, D.

Raimunda ficou comovida com a situação e me orientou a conversar com um

homem de epíteto “Paraco” que comercializava produtos, todos os dias pela manhã,

naquele porto.

Aquela situação instigou-me a algumas reflexões: queria saber a origem dos

produtos comercializados; se o “Paraco” tinha a função de atender certas

necessidades de consumo dos ilhéus ou se era uma espécie de representante do

comércio de mercadorias originadas das ilhas.

Após as orientações de D. Raimunda fui até o “Paraco” e identifiquei-me

como pesquisador mestrando da Universidade do Estado do Pará. Relatei o

ocorrido, da perda do barco escolar e tentei negociar a travessia para Igarapé

Grande, visto que o sujeito possuía uma rabeta. Para minha surpresa, o “Paraco”

disse que não seria preciso pagar valor algum. Sua resposta soou muito estranha já

que o via como um comerciante.

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Durante a travessia aproveitei a oportunidade para saber informações sob sua

vida, as atividades que desenvolvia e o cotidiano em Igarapé Grande. “Paraco”

informou-me que era o representante de todos os moradores das ilhas para venda

de frutas, animais e latas de açaí. Foi quando me dei conta da sua importância para

a geração de renda para os ribeirinhos. Fato comprovado posteriormente, pois os

ilhéus viam-no como um grande colaborador. Segundo relato do Sr. Reginaldo

Farias, o Paraco é importante para os moradores, pois representa a comunidade no

comércio do açaí:

Olha cada um de seu lote apanha o açaí e vende pro marreteiro, o marreteiro vai levar lá. É na safra do verão (1º semestre), geralmente duas vezes na semana. Agora tem o açaí do inverno também. O Paraco leva o nosso açaí. O Paraco é o marreteiro do açaí! Ele compra o açaí todinho da redondeza. Já tem um marreteiro dele lá, ele leva, é certo! Durante o ano inteiro ele trabalha. Porque muitas vezes as pessoas vai pro mangue e ele não tem tempo pra levar, aí tem o atravessador [Sic]. (Reginaldo. Em: 27/03/2012).

A atividade exercida por “Paraco” foi considerada a segunda pista para o

entendimento de parte das relações mantidas pelos moradores das ilhas com as

áreas urbanas. “Paraco”, frequentemente carrega botijões de gás, transporta

encomendas, comercializa excedentes de mercadorias originadas das ilhas e ainda

desloca moradores para afazeres nas cidades que retornam com quantidades

significativas de sacolas com produtos de compras realizadas nas feiras e

supermercados de Ananindeua e Belém.

A foto 3 demonstra um ilhéu carregando sacos de mercadorias compradas

nas áreas urbanas de Ananindeua. O complemento da alimentação é uma rotina

entre os moradores das ilhas que constantemente realizam a travessia em direção

aos centros urbanos para adquirirem produtos conforme suas necessidades.

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Foto 3. – Ilhéu chegando com alimentos na comunidade Nova Esperança. Compras realizadas nas feiras dos bairros de Ananindeua-Pa. Fonte. Arquivo do pesquisador.

A função exercida por Paraco assemelha-se a de atravessadores, figuras

folclóricas na Amazônia na época do desenvolvimento do regatão. A prática do

regatão ganhou destaque no período da borracha, séculos XIX e XX. Neste período,

alguns comerciantes se especializaram em atravessar rios em canoas cheias de

mercadorias para serem trocadas ou comercializadas em pontos na mata densa

onde predominavam a escassez de certos produtos e a extração do látex, em

lugarejos distantes das principais cidades da região. Esta prática foi difundida por

toda a Amazônia e adquiriu diversas especificidades.

Fica a ressalva de que apesar de Paraco contribuir com os ilhéus na travessia

de pessoas e na socialização da produção originárias das ilhas de Ananindeua, sua

função também dá sinais da falta de organização comunitária local (3ª pista) no

sentido de gerenciarem coletivamente a produção e comércio, cujo processo poderia

resultar em maiores lucros aos moradores. O simples repasse de produtos ao

“atravessador” coloca os ilhéus numa situação de “periféricos” ou no último ponto da

cadeia de nos negócios realizados entre as ilhas e as cidades.

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O assentamento agroextrativista não estaria sendo capaz de promover a

sustentabilidade planejada e as práticas tradicionais de uso de recursos naturais

vêm sendo modificadas com a dependência de consumo e comércio de produtos

nas áreas urbanas (4ª pista).

A 5a pista para entendimento da fronteira rural-urbano em Ananindeua é

representada pela compra de alimentos em feiras de Belém e Ananindeua,

representa o desenvolvimento de novos hábitos alimentares baseados no consumo

de produtos industrializados (conservas, óleos, condimentos, farinha, etc.), fato que

deu sinais da mudança dos modos de vida locais, especialmente os relacionados à

produção e alimentação.

1.3 TRAVESSIAS ENTRE O RIO MAGUARI E IGARAPÉ GRANDE: ENCURTANDO

DISTÂNCIAS POR MEIO DE CONVIVÊNCIAS E DE CONSTRUÇÃO DE OUTROS

PROCESSOS SINGULARES.

As travessias para a comunidade Igarapé Grande foram iniciadas desde

agosto de 2010, contudo, destaca-se a que fiz em novembro do mesmo ano, quando

acontecia o “Festival do Açaí”. Era o segundo dia do festival, destinado à

socialização dos que trabalharam na organização do evento. Como era iniciante na

comunidade detive-me na observação de movimentos, diálogos e gestos de

moradores. Não me identifiquei como estudante-pesquisador. Tentei não chamar a

atenção. Queria, apenas, maior familiarização e conhecimento da dinâmica

sociocultural do local onde seria realizada a pesquisa de campo.

Tentando ser discreto, acompanhava a movimentação que ocorria numa

grande casa de madeira, que depois fiquei sabendo que se chamava “barracão”.

Acompanhava uma senhora, que esqueci o nome, pois não fiz anotações escritas,

realizando alguns procedimentos para “bater” o açaí.

Imaginava que estava tendo uma visão privilegiada da festa e das paisagens

locais. Contudo, com bastante frequência era convidado por moradores para

participar das rodas de conversas, tomar algumas doses de “cachaça” e provar do

suco do açaí. Fiquei surpreso por tamanha familiarização e receptividade como era

tratado.

A vivência em grupo, a realização de rodas de conversas, os fazeres

relacionados ao cotidiano mostrados, mesmo que momentaneamente, no festival do

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açaí, revelavam a existência de uma dinâmica cultural e identidade local pautada na

organização e racionalidade social que só a observação detalhada permite ler e

cujos processos se desenvolvem em profundidade.

As “verdades” criadas e afirmadas nas rodas de conversas e durante os

afazeres no festival do açaí eram expressão da estrutura social e cultural. Os

fazeres locais e saberes socioambientais que circulavam no interior dos diálogos

representavam situações ocorridas constantemente na comunidade. Eram

problematizados, legitimados e continuados, na medida em que traziam benefícios

aos moradores e edificavam parte da dinâmica social local. O senso comum que

mediava práticas produtivas e sociais locais é explicado por Geertz (2008, p. 116)

como “bom senso”:

Se o bom senso é uma interpretação da realidade, uma espécie de polimento desta realidade, como o mito, a pintura, a epistemologia, ou outras coisas semelhantes, então, como essas outras áreas, será também construído historicamente, e, portanto, sujeito a padrões de juízo historicamente definidos. Pode ser questionado, discutido, afirmado, desenvolvido, formalizado, observado, até ensinado, e pode também variar dramaticamente de uma pessoa para outra. Em suma, é um sistema cultural, embora nem sempre muito integrado, que se baseia nos mesmos agrupamentos em que se baseiam outros sistemas culturais semelhantes: aqueles que os possuem têm total convicção de seu valor e de sua validade. Neste caso, como e tantos outros, as coisas têm o significado que lhes queremos dar.

O que mais importava para os moradores, no Festival do Açaí, não era a

simples degustação pelo visitante dos bombons e sucos de açaí ou, muito menos, a

venda de produtos artesanais locais. A satisfação maior era a socialização de

processos sociais e saberes inscritos na confecção dos produtos e da autoafirmação

da identidade e cultura locais. O saber fazer, em sentido amplo, para Certeau (2011,

p. 132-133) tem como pano de fundo a necessidade de constante afirmação de

saberes que evidenciam a cultura e memória:

Aqui ainda subsiste um “saber”, mas sem o seu aparelho técnico (transformado em máquinas) ou cujas maneiras de fazer não têm legitimidade aos olhos de uma racionalidade produtivista (artes do dia a dia na cozinha, artes de limpeza, da costura etc.) Ao contrário, esse resto, abandonado pela colonização tecnológica, adquiriu valor de atividade “privada”, carrega-se com investimentos simbólicos regem a vida cotidiana, funciona sob o signo das particularidades coletivas ou individuais, torna-se em suma a memória ao mesmo

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tempo legendária e ativa daquilo que se mantém à margem ou no interstício das ortopráxis científicas ou culturais.

Um dos primeiros territórios vivenciados com o processo de construção da

pesquisa de campo foi o contato com os professores que se deslocavam

diariamente do Porto do Surdo para exercerem atividades profissionais na escola

Domiciano Ramos em Igarapé Grande.

No Porto do Surdo os professores costumavam esperar a chegada da

embarcação escolar sentados numa pequena barraca feita de madeira, sem paredes

laterais e que tinha o telhado coberto com telhas de barro sustentadas por

pernamancas. A espera do barco representava um momento de socialização de

saberes educacionais decorrentes das práticas profissionais, de interação cultural,

de diversão e aproximação.

A chegada da embarcação ao Porto do Surdo representava o abandono dos

territórios das rodas de conversas, uma desterritorialização momentânea, e a

construção de uma nova reterritorialização, pois os professores novamente se

reagrupavam no interior do barco escolar, sempre do lado direito da embarcação,

sentido motor-proa.

A fotografia a seguir evidencia a formação de territórios passageiros no

interior da embarcação escolar. Do lado esquerdo ficavam os alunos e na parte final

do barco, ficava observando e anotando toda a dinâmica local e realizando a leitura

de paisagens caracterizadas por um conjunto de imagens de predominância natural

e com variadas tonalidades de verdes presentes nas matas e nas águas do rio

Maguari.

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Foto. 4 – Professores e alunos constroem lugares e territórios no interior do barco escolar. Os docentes sempre se localizam no lado direito da embarcação (sentido fundo-proa) e os discentes no lado oposto. Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

As poucas edificações humanas eram permeadas de cinza e marrom. Em

cada localidade podia ser observado, em geral, apenas um forno de carvão, fato que

poderia, aparentemente, representar o consumo familiar do carvão. Os alunos

esperavam a chegada da embarcação em trapiches feitos de madeira

As fotos 5 e 6 a seguir destacam as crianças adentrando a embarcação

escolar, paisagem observada cotidianamente, além da presença de habitações

ribeirinhas. Neste caso, as paisagens são “fixas” e revelam parte do contexto cultural

amazônico que envolve as interações entre o rio e a mata:

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Foto. 5 – Alunos entrando no barco escolar para irem às aulas na Escola Domiciano Ramos/Ilha João Pilatos, comunidade Igarapé Grande - Ananindeua-Pa. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Foto. 6 – Paisagens tipicamente ribeirinhas que marcam os trajetos do Porto do Surdo a comunidade Igarapé Grande. Em: 13/02/12. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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As embarcações cruzando o rio Maguari representam processos que se

edificam a partir dos deslocamentos de ribeirinhos em várias direções. O

deslocamento no rio significa uma fronteira constantemente móvel que articula o

rural e o urbano, a afirmação da identidade ribeirinha na Amazônia e a possibilidade

de admirar paisagens singulares, polidas pela natureza e transformadas por modos

de vida e trabalho inerentes à vivência destas localidades (foto 7 e 8).

Foto. 7 – Embarcação Escolar cruzando o Rio Maguari. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Foto. 8 – Embarcação Escolar cruzando o rio Maguari. Paisagens apresentando diferentes tonalidades de verde. Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Quando chegávamos à comunidade, os professores se dirigiam à escola e

rotineiramente, me direcionava até ao barracão, ponto de encontros e reuniões dos

moradores e que no começo das manhãs ficava sempre vazio. Aproveitava para

observar a dinâmica dos moradores e fazer registros escritos das paisagens, formas

das residências e caracterizações espaciais.

Apesar da socialização da pesquisa ter sido realizada com os ilhéus, nos

primeiros contatos com os moradores havia o receio de deslocar-me na

comunidade. Era comum a espera no barracão do líder comunitário ou do morador

conhecido como Reginaldo, que deu grande contribuição para o desenvolvimento

desta pesquisa por ter me apresentado aos demais moradores e dado orientação

em vários deslocamentos na ilha. Contudo, acabei por adotar o barracão como

ponto de refúgio, planejamento, descanso, escrita, reflexão e produção de

subjetividade, como um “território base” para a realização da pesquisa.

A foto 9 mostra o “barracão”. O ambiente vazio no interior da construção foi

identificado diversas vezes na pesquisa de campo e também se relaciona com a

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estratégia dos moradores de não divulgar conteúdos e dias de encontros nesta

habitação:

Foto. 9 – Barracão: espaço de reuniões comunitárias. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Considerado um espaço importante de reunião e encontro dos ilhéus o

“barracão” é utilizado tática e estrategicamente para organização político-cultural. A

foto10 revela uma reunião no “barracão”, um dos raros momentos onde foi feito o

registro de reuniões dos moradores.

Houve dificuldades da realização de registros de reuniões dos ilhéus no

barracão, pois estrategicamente não divulgavam dia e conteúdos que eram tratados

nos encontros.

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Foto. 10 – Imagens do “barracão”. Espaço físico que acabou se tornando território de planejamento de parte das atividades de campo desta pesquisa. Esta construção é ponto de reuniões dos ilhéus e planejamento de eventos culturais. Em: 23/02/12. Fonte. Arquivo do pesquisador.

A cada visita realizada na comunidade vivia processos, acompanhava

detalhes de falas e fazeres locais. O cotidiano apesar de parecer rotineiro era muito

diferente de um dia para o outro, dinâmicas diferenciadas eram registradas. O

plantar, o pescar, o cortar vegetais, não eram práticas repetitivas, fatos que

significam para Certeau (2011, p. 97-98) a forma inventiva do cotidiano:

Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, modalidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos.

Havia programado para fazer o deslocamento até a ilha no dia 13/02/2012

pela parte da tarde e cheguei ao Porto do Surdo quase ao meio dia, horário em que

sai o barco escolar em direção a Igarapé Grande. Ao adentrar a embarcação

procurei um local para sentar. Fui pedindo licença e como de costume sentei na

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parte final do barco, próximo ao motor. O barulho do motor era intenso e causava

muito incomodo fato que dificultava a realização de conversas com “vizinhos”.

Após agasalhar-me no assento do barco e adaptar-me ao barulho do motor

comecei a observar o que estava em minha volta. Parte dos alunos agrupava-se em

duplas ou trios para resolver jogos contidos em seus celulares e atividades

presentes em pequenos livretos de “passatempo”. Tamanha era a adaptação à

embarcação que ignoravam o barulho do motor e demonstravam uma habilidade

para o diálogo que surpreendia pela falta de esforço na fala e fluência na

comunicação.

Cerca de uns dez minutos depois de partirmos do porto, uma imensa balsa

carregada de toras de madeira cruzava o rio Maguari. Aquela balsa fazia aquele

trajeto diariamente. Poucas foram as vezes, ao me dirigir a ilha, que não avistei o

carregamento de madeira. Ficava intrigado com sua frequência, origem, destino e

possíveis danos que poderiam causar ao meio ambiente. A foto 11 abaixo revela o

transporte de madeira no rio Maguari:

Foto. 11 – Tirada de dentro do Barco Escolar: Em: 13/02/2012). Transporte de Madeira/Rio Maguari-Ananindeua-PA). Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Ficava surpreendido com a passagem da balsa e por perceber que estava

praticamente sozinho admirando o carregamento. Aquela situação parecia natural

para todos os que estavam presentes no barco. Fui comunicado pelo líder

comunitário que me informou, de forma irônica, que aquele carregamento de

madeira era legal e que possuía autorização dos órgãos oficiais para circulação.

O líder comunitário aproveitou para conversar sobre os problemas de

desmatamento que atormentavam a ilha João Pilatos. Disse-me das dificuldades

sociais e econômicas vivenciadas pelos moradores na comunidade Igarapé Grande.

Relatou seus sonhos de investir na produtividade rural, mais especificamente, na

criação de galinhas e cultivo de palmeiras de açaí.

Após uma hora de conversa, chegamos à comunidade Igarapé Grande,

começamos a conversar no trapiche e imediatamente observei a mudança brusca do

tempo. Nuvens escuras se aproximavam. Sentia o vento com mais facilidade e

alguns trovões anunciavam a chegada do que poderia ser uma chuva intensa.

Aproximadamente sete minutos depois de nossa chegada começaram a cair uns

leves chuviscos que evoluíram para uma chuva. Sem pensar muito, corri até ao

barracão, como de costume, onde não havia ninguém e fiquei esperando

sossegadamente o tempo melhorar.

Resisti ao sentimento de desânimo pela possível não realização de

entrevistas de campo. Contudo, tinha a convicção de que a realização de uma

pesquisa perpassa por situações inesperadas. As surpresas nos bastidores do

trabalho de campo fazem parte de qualquer pesquisa. Não há pesquisa de campo

que se desenvolva sem situações não previstas, especialmente as que envolvem o

contato com sujeitos, dificuldades de deslocamentos e dependência das

modificações da natureza. Faz parte da prática cartográfica, a vivência de situações

não planejadas.

Pois bem, precisava iniciar os trabalhos e dirigi-me até a pequena mercearia

do Sr. Bené, único comerciante da localidade. Sabia que lá teria abrigo e a

possibilidade de conversar com um descendente dos primeiros moradores da

comunidade, mas sabia da dificuldade, pois havia informações de que o Sr. Bené

era um homem desconfiado, falava pouco e baixo, muito observador e não interagia

com qualquer pessoa facilmente.

Naquela tarde o Sr. Bené estava diferente. Muito falante e sorridente,

recebeu-me com boas vindas, comentando da chuva que havia caído. Sem grandes

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esforços começou a contar a história de seus antepassados, as formas como se

relacionavam com a natureza e como haviam sido divididos os terrenos da

comunidade pelo “patriarca”, o Sr. Domiciano Farias, aos seus filhos e netos.

Passei o resto da tarde conversando na mercearia com o Sr. Bené e agradeci

pelas informações repassadas. Já era hora de encerrar a conversa, pois o barco

escolar já estava preparado para retornar. Passava do horário de saída, eram

17:00h.

Adentrando o barco sentei propositalmente no lado direito no sentido fundo-

frente onde os professores rotineiramente se concentravam. Fomos mais uma vez

surpreendidos pela chuva que se tornou novamente torrencial. Os professores se

dedicavam a leitura de materiais apostilados, livros e revistas. Novamente me

perguntei: como se concentrar e estudar num ambiente escuro, barulhento, chuvoso

e desconfortável? Refleti sobre a difícil rotina de alguns educadores deste país, em

destaque os que precisam realizar grandes deslocamentos e que exercem a

docência nas áreas rurais, no interior de matas, ilhas, entre outras.

Neste dia, os trabalhos foram finalizados com a certeza de que não estava

realizando apenas um procedimento formal de pesquisa de campo, mas que estava

tendo a oportunidade de inserir-me em processos em curso, de que não conseguiria

manter a neutralidade científica, pois aquela situação na embarcação me

incomodava, que estava vivendo situações singulares e vivenciava as dificuldades

dos que constroem a educação na Amazônia.

1.4 A COMUNIDADE IGARAPÉ GRANDE: CONFIGURAÇÕES QUE ORIENTARAM

A REALIZAÇÃO DA PESQUISA

Ananindeua possui nove ilhas: Viçosa, Sassunema, Mutá, Guajarina, São

José da Sororoca, Sororoca, Arauari e Santa Rosa e João Pilatos. Assim como

Belém, a cidade deu as costas para o rio no sentido do crescimento urbano ter

criado um bloqueio ou corredor de concreto que impede a visualização das ilhas e

da falta de visibilidades da dinâmica sociocultural dessas áreas.

Os mapas abaixo demonstram a localização das ilhas do município de

Ananindeua e da comunidade Igarapé Grande na ilha João Pilatos:

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IMAGEM 1 – Mapa de Localização da Ilha João Pilatos, Ananindeua-Pa.

Fonte. pt.wikipedia.org/wiki/Microrregião-Bragantina. Em: 12/09/2011.

IMAGEM 2 – Mapa das ilhas de Ananindeua e da localização da Comunidade Igarapé Grande. Foto. skyscrapercity.com org. Em:09/06/2012.

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Para chegar às ilhas de Ananindeua é preciso realizar diversos percursos

pelos bairros do Maguari, PAAR e Curuçambá. Esses bairros são periféricos em

relação à sede administrativa da cidade e possuem uma imagem ligada a violência

por muitos moradores do município, pela mídia e por órgãos da segurança pública.

As ilhas de Ananindeua são habitadas em sua maioria por famílias pioneiras

no processo de colonização dessas áreas. Com exceção da Comunidade Nova

Esperança (ilha João Pilatos), que foi formada a partir da ação de posseiros que se

deslocaram do Curuçambá e PAAR em direção aos terrenos que pertenciam à

antiga fábrica de produção de azulejos INCA (Indústria de Cerâmica da Amazônia) e

que decretou falência no início dos anos 90.

O “marco central” de Igarapé Grande é a localidade do “Paraíso”, onde se

situa a Escola Municipal Domiciano Ramos, a sede da Cooperativa de Pescadores

da ilha João Pilatos e cerca de quinze famílias assentadas na comunidade.

É na localidade Paraíso que se extrai a maior parte do açaí, polpas de frutas e

o pescado consumido e comercializado pelos ilhéus, além da produção do carvão e

criação de animais. Destaca-se, ainda, a presença do campo de futebol, do trapiche

e um braço do rio Maguari que é constantemente utilizado para banho.

Igarapé Grande, considerada por todos os ilhéus como o “berço das ilhas”,

apresenta cerca de 40 famílias. É ponto de encontro de reuniões dos ilhéus, com

representantes de órgãos públicos e concentra os principais eventos culturais destas

áreas, tais como o Círio Fluvial, o Festival do Camarão e Açaí que acontecem entre

meses de novembro e dezembro.

Os ilhéus possuem como fonte de geração de renda o comércio do fruto do

açaí, que teve redução da oferta devido a extração desordenada do palmito para a

produção industrial, a pesca, o emprego temporário na Escola Municipal Domiciano

Ramos localizada na comunidade, a criação de animais e de forma menos frequente

a realização de atividades de comércio das polpas de frutas e do carvão.

Segundo D. Ambrósia Farias, que possui atualmente 102 anos, o surgimento

da comunidade Igarapé Grande tem a ver com a chegada do Sr. Domiciano Farias,

seu avô, que veio do nordeste, do estado do Ceará, onde assolado por uma imensa

seca migrou para a Amazônia, e em Ananindeua estabeleceu-se na ilha João

Pilatos.

Para D. Ambrósia a formação da Comunidade Igarapé Grande, deve ser

contada a partir da união e casamento do Sr. Domiciano Ramos com a Sra. Cristina

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Farias. A união do casal resultou em 10 filhos que a partir de então foram se

multiplicando dando origem a uma geração denominada pelos moradores de família

domiciano:

No início dos anos de 1900, o músico Sr. Domiciano Farias foi tocar em uma festa na Ilha de São Pedro, lá ele conheceu a senhorita Crsitina dos Anjos Farias, filha de um dos funcionários da ilha. Após esse encontro os dois se casaram e compraram uma propriedade na ilha João Pilatos da Srª. Bibiana. Transformaram a área em sítio que ficou conhecido como “Sítio Paraíso” que no decorrer dos anos deu lugar a comunidade Igarapé Grande (FURTADO, 2011).

Segundo Antônio Dumont de Farias, que atualmente é o morador mais antigo

da localidade Paraíso, na Comunidade Igarapé Grande, neto do Domiciano Farias,

tudo começou com a chegada de Sr. Domiciano que doou terrenos aos seus filhos

que se chamavam: Marcelino dos anjos, Boaventura, Manoel Farias, Zé Farias,

Simão e cinco mulheres: Tomásia, Arcangia, Maria Cristina, Maria Farias e Ingraça.

O Sr. Antônio considera seu avô, Domiciano, a primeira “árvore da

comunidade”. Antônio afirmou que aprendeu a pescar, coletar semente, retirar o

látex da seringueira e o leite da vaca com seu avô. Disse, ainda, que não vendiam

madeira e nem cortavam carvão, mas que na atualidade essas práticas são comuns

em todas as ilhas.

Identifiquei em diálogos feitos com pessoas residentes nas ilhas de

Ananindeua que há descontentamento com as políticas públicas municipais,

especialmente as relacionadas à saúde, educação e saneamento.

É marcante em Igarapé Grande a exclusão social devido à precariedade dos

serviços de assistência social e geração de renda. Este contexto é expressão do

quadro social e econômico de nosso país caracterizado pela concentração de renda

e fragilidade das políticas públicas governamentais. Silva (2007) argumenta que a

exclusão social de boa parte da população das comunidades ribeirinhas na

Amazônia tem a ver com o processo histórico de urbanização das cidades e

concentração de renda.

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CAPÍTULO 2 CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DE PRÁTICAS

SOCIOEDUCATIVAS E SUAS RELAÇÕES COM A SUSTENTABILIDADE LOCAL.

2.1 ENTRE O SABER CIENTÍFICO E O SABER COTIDIANO RIBEIRINHO

É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da Botânica à Biologia, a Anatomia, mas também a Gnoseologia, a Teologia, a Ontologia, toda Filosofia...(DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 28-29/Mil Platôs/Vol.1).

Chamamos de Platô toda a multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. (DELEUZE e GUATTARI,1995, p. 33/Mil Platôs/Vol.1).

Ao contrário do modelo de ciência dominante8 ocidental, que tem suas bases

centradas no racionalismo aprimorado do século XVI, o conhecimento científico

nega outras formas de conhecimento, não considera a subjetividade, o senso

comum, a construção e socialização de conhecimentos e práticas educativas feitas a

partir de vivências individuais e coletivas, criadas e continuadas por populações que

vivem em constante interação com a natureza, a exemplo das populações

denominadas de tradicionais.

Nesta forma de pensar, da ciência dominante, a natureza é separada do

homem e vista como uma grande engrenagem regida por leis invariáveis que precisa

ser domesticada, dominada. Para Deleuze e Guattari (1997. Vol.5), a ciência

hegemônica é régia, constitui-se num decalque, um modelo árvore-raiz que

apresenta leis imutáveis e busca padronizar as realidades e fenômenos:

O ideal de reprodução, dedução ou indução faz parte da ciência régia em todas as épocas, em todos os lugares, e trata as diferenças de tempo e lugar como outras tantas variáveis das quais a lei extrai precisamente a forma constante: basta um espaço gravitacional e estriado para que os mesmos fenômenos se reproduzam, se as mesmas condições são dadas, ou se a mesma relação constante se estabelece entre as condições diversas e os fenômenos variáveis.

8 Estrutura de ciência “nascida” na Idade Média, aprimorada com o Positivismo no século XIX e que

rege o fazer científico em variados ramos de produção de conhecimento. Para Deleuze e Guattari (1995), um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Boaventura Santos (2010) argumenta que foi a mecânica newtoniana que deu as bases para a constituição da ciência moderna, sendo a mesma, uma máquina cartesiana de entender o mundo.

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Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao produzido: ver fluir, estando na margem. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 40).

A forma de produzir ciência segundo o modelo decalcado dominante

caracterizado por Deleuze e Guattari (1995. Vol. 1), prima pela observação e

descrição dos fenômenos. A partir desta premissa, os fenômenos são estudados a

partir da mensuração, do cálculo e da lógica matemática voltados para a

quantificação e modelização. Dessa forma, o objeto investigado deve ser

compartimentado, retalhado em diversas partes para que se encontrem a constância

de determinadas variáveis.

A percepção e avaliação de que a ciência hegemônica considera leis

matemáticas e modelos pré-estabelecidos, também é discutida por Boaventura

Santos9 que afirma o seguinte:

O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou (BOAVENTURA, 2009, p. 63).

Para Deleuze e Guattari (1997. Vol. 5), a ciência dominante está mais

preocupada em definir conceitos e categorias, desterritorializando outras

possibilidades do fazer científico:

O que é próprio da ciência régia, do seu poder teoremático ou axiomático, é subtrair todas as operações das condições da instituição para convertê-las em verdadeiros conceitos intrínsecos ou categorias. Por isso, nessa ciência, a desterritorialização implica uma reterritorialização no aparelho dos conceitos (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 42, vol. 5).

A observação constante dos fenômenos e leis da natureza, no modelo

hegemônico de ciência, inspira a formulação de leis universais que podem ser

reproduzidas e manipuladas em laboratórios. O objetivo da investigação científica é

9 Alterno a chamada deste autor de Boaventura Santos ou de Boaventura para diferenciá-lo de Milton

Santos ou Santos.

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entender o movimento de leis e fenômenos ignorando os sentidos, substâncias,

conteúdos, percepções, conjecturações que os sujeitos possuem das coisas, objetos

e fenômenos. Assim, as representações, subjetividades e percepções dos sujeitos

são ignoradas.

A análise dos fatos sociais no modelo hegemônico de ciência é conduzida a

partir das orientações advindas das ciências ditas como exatas e naturais. Impõe-se

que as Ciências Sociais por terem sido influenciadas primeiramente pelo

Positivismo10 devem, por obrigação, seguir os padrões de investigação das ciências

físicas e matemáticas. Faz-se a relação de que as leis que regem a natureza

precisam ser as mesmas que regem a sociedade. Por essa perspectiva, a sociedade

passa ser estudada de forma neutra, objetiva, sem juízos de valor, sem pré-noções

ou conceitos, sem paixões, ideologias ou crenças.

Essa forma de se conceber a ciência influenciou todos os ramos de saberes

acadêmicos. Nenhuma área de conhecimento se tornou imune às teorias positivistas

e relegou o senso comum, a filosofia, a arte, a religião e outras formas de

compreensão da realidade à condição de marginalidade:

Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor, não estão antes nem depois da explicação científica da natureza e da sociedade. São parte integrante dessa mesma exposição. A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade. Nada há de científico na razão que hoje nos leva a privilegiar uma forma de conhecimento baseada na previsão e controle das variáveis. (BOAVENTURA, 2009, p. 84).

A perspectiva da produção da ciência fundada em dados quantitativos,

voltados para atender o princípio da neutralidade científica e direcionados à

separação do sujeito que realiza a pesquisa e do objeto pesquisado ainda incorpora

parcela considerável das ciências sociais.

É importante ressaltar que apesar da predominância de pesquisas de base

positivista e quantitativa na forma de produzir ciência, novos caminhos têm sido

traçados tanto a nível teórico como metodológico para confrontação dessa forma

dominante de fazer pesquisa e conhecimento.

10

O positivismo regularia a pesquisa social de forma a repetir os procedimentos de investigação

científica dos cálculos matemáticos. A sociedade deveria ser concebida organizadamente de acordo com o ideário da Ordem e Progresso.

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Carlo Ginzburg (1989) tece crítica veemente ao não reconhecimento de

outras formas de produzir ciência e de entender o mundo. O autor defende a

investigação de fenômenos a partir do Método Indiciário nas análises sociais e

naturais considerando o que frequentemente é ignorado nos fenômenos: os

pormenores, vestígios, sintomas e sinais. O método indiciário é concebido como

alternativa à forma de produção e análise de dados da ciência dominante:

Mas pode o paradigma indiciário ser rigoroso? A orientação quantitativa e antropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância. (GINZBURG, 1989, p. 178).

Silva (2006, p. 75) destaca a importância de se reconhecer os saberes de

grupos sociais locais que a cultura científica dominante fez questão de excluir e cujo

processo de resistência seria mediado pela consideração de “valores, práticas,

ensinamentos e atitudes pelos diversos atores sociais, são fruto de uma memória

herdada, aquelas contadas ou repassadas por seus antepassados”.

Para Fares (2008, p. 2), “a memória alia-se a tradição no sentido de que

ambas são coletivas e, de certo modo, instalam modelos, padrões, guardam

experiências do grupo social”. Neste sentido, a memória representa resistência,

ancestralidade, identificação com o lugar e fronteira quando para o entendimento da

realidade amazônica, são considerados saberes e conhecimentos locais.

No entanto, para Boaventura Santos (2009), o novo paradigma só pode ser

entendido a partir da especulação dos sinais da crise do paradigma dominante. Este

paradigma é denominado como “paradigma prudente para uma vida descente” que

envolve ciência, o paradigma prudente e o social, o paradigma descente. Chama

atenção, nesta crise, o reconhecimento da participação, da solidariedade e do caos,

a revalorização do conhecimento emancipação; a reciprocidade entre sujeito e

objeto; a superação da dicotomia existente na separação entre as ciências naturais

e sociais.

Deleuze e Guattari (1997), consideram que por mais que o Estado imponha

sua territorialização, ele é influenciado pelos saberes, conhecimentos e culturas

nômades, apesar de todo processo proposital de não visualização da

territorialização nômade:

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Diríamos que toda uma ciência nômade se desenvolve excentricamente, sendo muito diferente das ciências régias ou imperiais. Bem mais, essa ciência nômade não para de ser bárbara inibida ou proibida pelas exigências e condições da ciência de Estado [...] é que as duas ciências diferem pelo modo reformalização, e a ciência de Estado não para de impor sua forma de soberania às invenções da ciência nômade; só retém da ciência nômade aquilo de que pode apropriar-se, e do resto faz um conjunto de receitas estritamente limitadas, sem estatuto verdadeiramente científico, ou simplesmente o reprime e o proíbe. (DELEUZE e GUATTARI, 1997. Vol. 5. p. 26-27).

A dinâmica de territorialização e desterritorialização, definida por Deleuze e

Guattari (1995-97. Vol.1-5), é marcada pela existência de uma espécie de máquina

de Guerra contra o Estado. Esta “guerra” travada contra o Estado pode ser

relacionada à organização e reivindicação política dos ribeirinhos da Ilha João

Pilatos, comunidade Igarapé Grande, Ananindeua-Pa, que se organizam em

cooperativas e desenvolvem formas específicas de sustentabilidade socioambiental

diferentes das propostas pelos órgãos governamentais.

Carlo Ginzburg (1989) analisa a fronteira, apropriação e dicotomia entre os

saberes médico e popular, suas contradições e conflitos intensificados a partir do

processo de expansão econômica da burguesia na Europa:

Talvez só no caso da medicina a codificação escrita de um saber indiciário tenha dado lugar a um verdadeiro enriquecimento (mas a história das relações entre a medicina culta e medicina popular ainda está por ser escrita). Ao longo do século XVII, a situação muda. Há uma verdadeira ofensiva cultural da burguesia, que se apropria da grande parte do saber, indiciário e não indiciário, de artesãos e camponeses, codificando e simultaneamente intensificando um gigantesco processo de aculturação (GINZBURG, 1989, p. 167).

A fronteira destacada nas argumentações ginzburguias pode ser identificada

numa outra perspectiva em Igarapé Grande, quando são analisadas as falas dos

entrevistados. Na verdade, as narrativas revelaram fronteiras construídas nas

relações do percurso e imaginário do rio e cidade, do planejamento territorial

governamental e as territorialidades de deslocamentos dos ilhéus, dos saberes e

práticas ambientais locais e o desenvolvimento sustentável imposto pelo INCRA, da

imposição de saberes técnico-científicos e dos saberes locais, do turismo precário

local e a percepção turística dos moradores, do uso dos recursos naturais e das

fórmulas forjadas de manejo.

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Para Boaventura Santos (2010), o pensamento moderno é pós-abissal e não

derivativo, envolve uma ruptura radical com as formas ocidentais modernas de

pensamento e ação.

Usando uma epistemologia que denomina como sendo do Sul, confronta a

monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes11. A ecologia de

saberes busca a diversidade epistemológica do mundo – o reconhecimento da

existência de uma pluralidade de formas de conhecimento, da impossibilidade de

uma epistemologia geral.

Acompanhando a crítica ao rigor do modelo de ciência dominante e a falta de

integração sobre as diversas expressões de conhecimentos, Morin (2010) aborda a

necessidade de valorizar a complexidade do conhecimento rumo à complexidade de

saberes.

Dessa forma, o pensamento complexo é a aproximação, relação, misturas e

integrações dos conhecimentos separados pelo próprio processo de

desenvolvimento das ciências.

O saber ambiental é um dos saberes que na perspectiva de Leff (2009) tenta

romper com a super especialização das ciências como um processo negativo que

conduziu a uma fragmentação do conhecimento e do saber, portanto, vê a

necessidade das ciências se autocriticarem para que a partir de suas

epistemologias, tendam a se auto-integrarem objetivando construir um processo de

conhecimento interdisciplinar.

Ao analisar a importância dos saberes práticos cotidianos e a imposição do

conhecimento científico dominantes, Silva (2006) destaca que as populações

amazônicas, por meio de suas especificidades e culturas locais, podem imprimir

resistência ao modelo de ciência dominante que desconsidera os saberes ditos

populares e impõe um padrão ocidental e consumista de sociedade. Avalia que:

Embora colocados às margens do saber sistematizado, os saberes locais por significarem e representarem a diversidade da organização social e dos lugares, têm dado contribuições relevantes para explicação de suas realidades, resoluções de problemas práticos. Por tratar-se de saberes cuja vitalidade cognitiva expressa a

11

A Ecologia de Saberes privilegia o diálogo entre saberes ocidentais e não ocidentais, confronta a oposição Norte e Sul entre os países. A ecologia de Saberes tenta ultrapassar as linhas abissais geográficas e metafóricas impostas pela Ciência Dominante (SANTOS, 2010).

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diversidade cultural, representam um trunfo na luta contra o monoculturalismo. (SILVA, 2006).

Em Igarapé Grande ficou evidente que os ribeirinhos explicam os fenômenos

naturais e desenvolvem seus afazeres cotidianos sem relacioná-los às teorizações

matemáticas ou da física moderna. As explicações que dão aos fazeres diários são

originadas da observação e uso da natureza e cujo resultado final é o entendimento

do mundo e circulação de saberes socioambientais na comunidade. Os moradores

sequer fazem referência, em seus relatos, sob o conhecimento científico dominante.

Para Leff (2009), o saber ambiental problematiza a

compartimentação/fragmentação do conhecimento em disciplinas e a administração

setorial do desenvolvimento, fomenta a construção de um campo de conhecimento

teórico-prático sobre as relações sociedade-natureza. Leff argumenta que a

sociedade produz saber (o ambiental), e vê a necessidade de construção de um

saber complexo que envolve academia, sociedade e populações tradicionais:

O saber ambiental resulta da integração das ciências, da valorização da ética, do saber prático, da construção de alternativas frente à incoerência e inconsistência do desenvolvimento do sistema capitalista dominante, na revalorização do saber sócio-cultural e ambiental das populações tradicionais então marginalizados pela racionalidade produtiva hegemônica, do repensar das práticas pedagógicas e na promoção de formas inovadoras da gestão ambiental (LEFF, 2009, p. 15).

Em comunidades ribeirinhas amazônicas há a predominância de um conjunto

de saberes ambientais que são formados a partir de práticas cotidianas que

envolvem o uso da natureza. Os saberes ambientais adquiridos pelo tato,

observação, cheiro e uso do meio físico são ressignificados a todo instante.

Silva (2007) chama a atenção para a necessidade de compreensão das

formas como as “sociedades tradicionais” organizam suas práticas sociais e se

relacionam com a natureza para que, quando problematizadas, promovam a

interface entre saberes políticos e saberes práticos e incentivem discussões e

conjecturações sob a construção de outras formas de sustentabilidade feita a partir

da cultura local, ou seja, a partir da relação sustentabilidade e saber local (SILVA,

2007, p. 2), tendo-se como:

[...] pressuposto que o saber cotidiano desses sujeitos além de orientar suas práticas socioambientais, permite resolver problemas

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práticos e imediatos, como manejar os recursos da floresta de forma sustentável, garantindo de maneira sistemática a sua reprodução social e cultural e de seu grupo familiar.

Dessa forma, a inscrição de saberes e práticas culturais locais como

fomentadores da sustentabilidade local em oposição às normas das ciências

dominantes, busca entender e incentivar o debate sobre as consequências da

imposição de uma “zona abissal” nas formas como as sociedades amazônicas foram

caracterizadas ao longo dos tempos e como o planejamento estatal as relegou a

uma situação de inferioridade. Numa outra perspectiva, busca orientar e promover a

construção de possibilidades do desenvolvimento local e regional a partir das

demandas culturais locais.

2.2 PRINCÍPIOS RIZOMÁTICOS ORIENTADORES DE CONSTRUÇÃO DA

CARTOGRAFIA DOS SABERES LOCAIS

Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1995) incorporam uma perspectiva

ontológica de rizoma diferentemente da definição advinda da botânica. O rizoma

seria a própria cartografia, em constante renovação.

Deduzimos que o rizoma está relacionado aos múltiplos mapas e saberes

socioambientais que se encontram articulados e fazem parte de realidades

amazônicas, dentro das “amazônias”: ribeirnhas, camponesas, extratoras,

marajoaras, entre outras.

O rizoma representaria um processo do porvir, em curso e inacabado. Esta

pesquisa é rizomática. Acompanhou processos, sistematizou saberes e fazeres

locais e considerou a possibilidade ou filamento de entendimento de uma rede

socioeducatica complexa, a rede de saberes locais amazônicos.

Para Deleuze e Guattari (1995), o rizoma seria assim entendido a partir de

suas interações, inconstâncias, continuidades, rupturas, significações e ausência de

definições:

Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo o regime de signos muitos diferentes, inclusive estados de não signos; o rizoma não se deixa reconduzir nem ao uno nem ao múltiplo. Ele não é o uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é múltiplo que deriva

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do uno [...]. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. (DELEUZE e GUATTARI, p. 32, vol. 1).

Por essa perspectiva, o rizoma não possui uma genealogia ou modelos pré-

definidos a serem imitados e seguidos. Segundo Deleuze e Guattari (1995. Vol. 1),

num rizoma são múltiplas as possibilidades de interações e conexões. Dessa forma,

não há limites entre as “raízes” ou linhas que se cruzariam. As variedades de linhas

tomariam direções incertas e poderiam se ligar a outros rizomas.

Deleuze e Guattari (1995) definiram seis princípios constituintes do rizoma: a

conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, mapa ou

cartografia e o decalque.

O primeiro princípio é o da conexão. Assim como as raízes das gramíneas,

que se conectam dando origem a novas ramificações de raízes, o rizoma se

apresentaria aberto ao devir e estaria dando sempre origem a uma nova linhagem.

No princípio da conexão, as hastes estariam sempre aptas a novas interseções:

Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro ponto e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem [...]. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda a natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15, vol. 1).

O segundo princípio do rizoma é o da heterogeneidade, caracterizada pela

não predominância da linguagem que busca ser linha principal geradora de outras

linhagens. A heterogeneidade do rizoma definiria outras cadeias de comunicação

não dicotomizadas. A linguagem, neste caso, seria apenas mais uma linha, assim

como a arte, a economia, a política, a cultura, entre outras. Os cruzamentos entre as

linhas ocorreriam sem hierarquias:

A árvore lingüística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia [...]. Na lingüística, mesmo quando pretende-se ater-se ao explicito e nada supor da língua, acaba-se permanecendo no interior das esferas de um discurso que implica ainda modos de agenciamento e tipos de poder sociais particulares. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 15, vol.1).

Os ilhéus de Igarapé Grande desenvolvem práticas culturais e educativas que

envolvem a natureza e que podem ser facilmente relacionadas aos dois primeiros

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princípios do rizoma. Há a predominância da conexão e heterogeneidade no uso da

natureza e construção de saberes ambientais.

De acordo com as falas dos entrevistados, em Igarapé Grande, foi identificado

que há o uso heterogêneo dos recursos naturais e os saberes ambientais estão

conectados. O uso dos recursos naturais pelos moradores não se limita à realização

das atividades econômicas como a caça, pesca e extração do açaí. O rio é utilizado

para banho, edificação de lendas, o lazer e o deslocamento. A mata também

apresenta função similar. A terra é considerada como espaço para moradia, plantio e

lazer e a observação da natureza tem a ver com a leitura da paisagem que favorece

a construção da cultura, o exercício da qualidade de vida. Assim, a vivência com a

natureza é múltipla, rizomática.

A multiplicidade é o terceiro princípio do rizoma, não se baseia em uma única

árvore matriz. Nessa perspectiva, a dicotomia sujeito e objeto seria superada. As

idéias que procuram estabelecer simples jogo de oposição seriam abortadas. A

multiplicidade não teria raiz definida, solaparia sua própria origem, cresceria,

multiplicaria e mudaria sua natureza.

A multiplicidade romperia a linha fixa da árvore-raiz e deixaria a possibilidade

do acontecer de novos agenciamentos. Ao crescerem e se multiplicarem as linhas

apresentariam fugas rumo a novos caminhos:

Mas acontece, justamente, que um rizoma, ou multiplicidade, não se deixa sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensão suplementar ao número de linhas, quer dizer, à multiplicidade de números ligados a estas linhas. Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se bem que este “plano” seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões que se estabelece nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 17, vol. 1).

Assim, a multiplicidade do rizoma refere-se à uma natureza diversa e

processual e que não para de crescer e transformar-se. A transformação do rizoma

não negaria os caracteres ou gênese de sua origem, mas apresentaria novas

formatações.

Quando as variadas práticas socioeducativas ambientais e saberes

construídos a partir do contato com a natureza construídos por “populações

tradicionais” são evidenciadas, assemelham-se à definição deleuze-guattariana de

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multiplicidade do rizoma. Apesar de não fazer referência ao rizoma deleuze-

guattariano, as análises de Silva (2010) evidenciam a multiplicidade de saberes e

fazeres do cotidiano presentes em comunidades ribeirinhas amazônicas:

Nessas comunidades entrelaçam-se múltiplos saberes que orientam suas práticas sociais e seus processos de trabalho, demarcando a diversidade e a multiplicidade amazônica. Os espaços de trabalho estão vinculados à produção simbólica. A terra é compreendida não só como espaço de trabalho, mas de moradia, sobrevivência, de convivência comunitária e de educação. (SILVA, 2010, p.10).

Em Igarapé Grande a multiplicidade do rizoma pode ser relacionada à

variedade de saberes ambientais: o saber plantar, o saber colher, o saber pescar, o

saber extrair o açaí, o saber andar no mangue, saber retirar a madeira apropriada a

fabricação do carvão, saber observar as mudanças de tempo para realização de

percursos na terra firme e no rio. Estes saberes se integram aos novos saberes, aos

saberes técnicos repassados pelos agentes governamentais e “metamorfoseados”

pelo hibridismo cultural ao longo das gerações.

A multiplicidade é também de origem produtiva, marcada pela realização

difusa de atividades que envolvem a mata, o rio e a terra. Todas as famílias usam a

mata para a extração de frutos, especialmente do açaí, além da retirada de óleos,

raízes e sementes para a fabricação de remédios caseiros. Este processo acontece

conforme necessidade, independente de estação chuvosa. Contudo, apenas três

das oito famílias entrevistadas usam a madeira para fabricação de carvão para uso

comercial. Todas extraem o açaí e a atividade de pesca torna-se secundária, pois

não é realizada com frequência, apesar da proximidade com o rio.

As diferenças no uso da mata acentuam-se quando é analisada a prática de

coleta de frutas para a conservação de polpas, especialmente as de cupuaçu e

bacuri. Apenas duas famílias dedicam-se a esse processo. Este fato justifica-se pelo

objetivo final dessa prática que é a comercialização.

Há alternância nos períodos da extração do açaí, da produção do carvão e do

desenvolvimento da agricultura. Estas atividades são realizadas com bastante

frequência no segundo semestre devido à redução das chuvas. No primeiro

semestre diminui significativamente a extração do açaí, a produção do carvão é

quase interrompida em decorrência das constantes cheias dos mangues e o manejo

agrícola é quase suspenso. Neste período de intensas chuvas é comum o

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recolhimento de frutas para consumo, conforme se percebe no depoimento de um

dos sujeitos narradores:

O inverno modifica tudo né! O açaí no verão? O que é que a gente tem? O açaí. Já vem outra marca do camarão. Já vem outra marca de peixe. E no inverno, quando chega o inverno já muda. Já o açaí não tem mais. Às vezes as frutas já acabaram. Já vêm outras safras de frutas. Só de setembro em diante que começa a safra do açaí. Aí o peixe já muda também. Tem o peixe do inverno e tem o peixe do verão. Ainda tem tudo isso [Sic]. (ADF- Igarapé Grande).

Dessa forma, é possível perceber que multiplicidade do rizoma deleuze-

guattariano formaria linhas que gerariam outras conexões ligando e promovendo

territorializações. Processo que formaria o 4º princípio do rizoma: o da ruptura a-

significante se constitui nos recortes feitos aos rizomas. Porém, supervalorizar o

corte num rizoma seria decalcar um acontecimento evidenciando a imagem do corte,

imagem da árvore-raiz.

O que menos importaria num rizoma, seria o corte devido à capacidade que o

mesmo teria de reconstruir-se novamente. As linhas cortadas se conectariam a

outras linhas e erigiriam novas linhas. Assim, o rizoma poderia ser separado em

qualquer lugar sem que sua expansão e multiplicação fossem comprometidas. Com

o corte haveria possibilidade de nova reconstrução:

Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões com direções rompidas. Conjugar os fluxos desterritorializados. Seguir as plantas: começando por fixar os limites de uma primeira linha segundo círculos de convergência ao redor de singularidades sucessivas; depois, observando-se, no interior desta linha, novos círculos de convergência se estabelecem com novos pontos situados fora dos limites e outras dimensões. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 20, vol. 1).

Na prática, é possível inferir que a formação de um rizoma daria origem a

territórios que, em decorrência de sua processualidade, impulsionaria novas

territorializações. Uma não negaria a outra, mas manteria relações de dependência

e de fuga ou ruptura sem dependência. Dessa forma, um novo território12, imporia a

desterritorialização da territorialização anterior. Porém, esse processo não resultaria

numa síntese da desterritorialização anterior.

12

Deleuze e Guattari (1995-97) Mil Platôs entendem a noção de território, territorialidades e

desterritorialidades feitas a partir de subjetividade.

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Como é possível que os modelos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque da vespa; mas a vespa se reterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transpondo o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 18, vol. 1).

Em Igarapé Grande, ilha João Pilatos, Ananindeua-Pa, as reterritorializações

das práticas sociais e educativas dos ilhéus frente à territorialização imposta pelo

estado estão presentes quando cinco ilhéus entrevistados consideram um equívoco,

por parte do INCRA, o incentivo à plantação de mudas de açaí nos lotes dos

assentados. Apesar das mudas de açaí terem sido plantadas há apenas cinco anos,

e encontrarem-se em fase de crescimento, elas apresentam problemas de

adaptação em decorrência de terem sido cultivadas em terrenos secos e argilosos e

é natural dessa espécie maior desenvolvimento em áreas de várzeas. Há conflitos

existentes entre os saberes dos ilhéus e os saberes técnicos que são verificados na

fala do Sr. Antônio Farias:

Eu vou dizer uma coisa: tem muito técnico que vem pra cá e só sabe no papel, entra num mato desse aí e pergunta pra ele o que é uma árvore de pau de colher? O que isso aqui? Um pau de colher! O que você quer saber? O que significa pau de colher? Pau de colher é uma frutinha que tem, é bom pro peito, a gente come aquela frutinha toma aquele leite, pra emplastar o peito, pra quem tá com peito aberto. Sim, outra coisa: o que é essa árvore aqui? Amapá! O que é que vocês pensam o que é Amapá? Amapá é um remédio, mas ninguém conhece. Agora que cipó é esse aqui? Isso aqui se chama muru-tê-tê. É um cipó dessa grossura assim, muru-tê-tê, têm três marcas, mas é só uma dela que a gente tira a água pra fazer o remédio pra palpitação, pra canseira. Então meu filho, tem muita natureza aqui [Sic]. (ADF. EM: 23/02/2012).

Apesar das divergências de saberes ou territorializações que envolvem

ribeirinhos e Estado, Reginaldo Farias reconhece a contribuição dos saberes

técnicos no incentivo ao desenvolvimento da agricultura:

É as pessoas de fora que vem ensinar a gente. Eles venham trazer vários técnicos pra dar cursos, pra ensinar como se deve plantar, pra colher, ouvir as doenças que têm nas árvores, os frutos. Tem muitas vezes que a gente não sabia que tinha doença, aí eles venham fazer isso com a gente [Sic]. (RDF, 17/02/2012)

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A integração dos saberes configura alguns dos princípios do rizoma, entre

eles a relação de não contradição e multiplicidade e o corte dado pelo estado-Incra

na interrupção momentânea de saberes ancestrais para implantação de saberes

técnicos. Contudo, foi verificada a continuidade de práticas ambientais tradicionais

no assentamento.

O 5º e 6º princípios do rizoma são a cartografia e a decalcomania. Um rizoma

não apresentaria modelo a ser seguido. Não haveria árvore genealógica que

orientasse a formação do rizoma. Contudo, o decalque e o mapa não seriam

excludentes como numa relação de oposição ou de binaridade. A partir de um

rizoma, uma árvore genealógica poderia ser formada e a partir da árvore haveria

possibilidade de formação do rizoma.

Toda a composição de uma árvore implicaria na formação de um decalque. “A

árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore”

(Deleuze; Guattari, 1995, p. 21, vol.1). A estrutura basilar do mapa seria o constante

porvir. Assim, o mapa não se basearia em modelos, a exemplo do decalque. Neste

sentido, entendemos que quando cartografamos um rizoma estamos acompanhando

parte de um processo de formação de um ou vários mapas.

Conjecturamos que cartografar implica invenção, acompanhamento de

processos que se retraem e se expandem sem direções definidas. O registro

cartográfico de um rizoma não implica no fim do rizoma. Cartografar é estar ciente

de um registro contínuo de um processo que nunca se esgota.

O decalque poderia ser produzido a partir da hierarquização, valorização de

determinados processos. O decalque enrijeceria o processo, desconsiderando o

mapa. O decalque seria a expressão do modelo árvore-raíz:

Ele é antes como uma foto, um rádio que começaria por eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou outros procedimentos de coação. É sempre o imitador que cria seu modelo e o atrai. O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. (DELEUZE e GUATTARI. 1995 , p. 23, vol. 1).

O decalque supervalorizaria o rizoma, ao contrário do mapa que seria sempre

modificado. Dessa forma, entendemos que quando utilizamos a cartografia temos

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que ter o cuidado para não decalcarmos o mapa. O mapa não pode ser fixo, rígido,

congelado. São as linhas de fugas do mapa e as territorialidades e

desterritorialidades, conforme os pressupostos deleuze-guattarianos, que marcariam

o porvir do mapa. “O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido,

construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas

entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (Ibid., pp. 32 - 33, vol. 1).

A formação de saberes ambientais e a realização de práticas educativas que

envolvem o uso e cuidado do meio ambiente na comunidade Igarapé Grande

representam mapas edificados de forma diversa, não hierárquica e integrada. Os

saberes da mata e das águas se articulam numa espécie de rizoma. O Sr. Antônio

Farias expressa em sua narrativa uma teia de saberes do meio físico inerentes à

vivência cotidiana e cujos conhecimentos são produzidos e experenciados por

gerações:

Ah, meu amigo eu criei meus filhos aqui dentro desse mato, eu fazia roça, eu plantava macaxeira, eu plantava girimum, eu plantava tudo, açaí, no meu sítio eu tinha cupuaçu. Então, eu sempre fui uma pessoa que criei meus filhos numa fartura. Eu não estudei, não tenho profissão nenhuma. A minha profissão sabe qual é: é que eu sei plantar uma mandioca que eu aprendi mesmo. Sei pegar uma mandioca e preparar e fazer uma farinha, sou profissional pra fazer uma farinha, queimar carvão, fazer carvão eu sei queimar, sei pescar, matupiri, lambarisco. Eu sei pescar tudo [Sic]. (Antônio Farias, Comunidade Igarapé Grande-Ilha João Pilatos, 01/02/2012).

Faço alusões às concepções deleuze-guattarianas que denotam o decalque

para explicar a imposição de modelos de vida definidos pelo estado para os

moradores contemplados pelo Projeto de Assentamento na Ilha João Pilatos,

Igarapé Grande. O INCRA padronizou as dimensões das habitações, geometrizou

os limites dos terrenos, tornando-os produtivos comercialmente. Tentou a todo o

custo impedir os fluxos de deslocamentos rizomáticos destinados as áreas urbanas

e desconsiderou um conjunto de saberes ambientais praticados entre os ribeirinhos

em nome da tecnificação produtiva.

A rigidez técnica que mediou as ações governamentais no assentamento

demonstrou ser falha, pois consideramos que nenhuma ação de planejamento

territorial sustentável terá os resultados planejados se não forem considerados os

saberes e práticas educativas ambientais locais. Esta afirmativa foi constatada no

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assentamento de Igarapé Grande quando a produção local-ancestral rege a geração

de renda e cultura na comunidade.

2.3 A CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIOS POLISSÊMICOS EM COMUNIDADES RIBEIRINHAS

2.3.1 A Formação de “Territórios Rizomáticos” em Igarapé Grande.

Em comunidades amazônicas existem redes territoriais complexas que em

nada tem a ver com as influências tecnológicas, cibernéticas e produtivas do modo

de produção capitalista. As redes formadas funcionam feito rizomas, raízes e veias

originadas a partir da observação, investigação e vivência do contato direto com a

natureza. Redes de saberes ambientais formam territórios religiosos, mitológicos,

poéticos, da saúde, entre outros e se fundem e se entrelaçam no cotidiano, na

cultura, sem hierarquias e dependências dos efeitos da urbanização.

Os saberes e práticas educativas dinamizam um conjunto variado de

territórios que variam de uma escala duradoura às territorialidades efêmeras. Em

Igarapé Grande, ilha João Pilatos, foi verificada a existência de uma territorialidade

ancestral baseada no uso de recursos naturais regidos por saberes ambientais e

territorialidades passageiras, como a realização da pesca e mutirões.

Os territórios passageiros e duradouros narrados pelos entrevistados, em

nada têm a ver com as tradicionais definições conceituais de territórios. Os territórios

se formam a partir do dia a dia, da interação com a natureza, das relações

interpessoais, de subjetividades e fazeres locais.

O conceito de território predominante na ciência geográfica é analisado a

partir de contextos urbanos e redes científico-tecnológicas do modo de produção

capitalista.

Para Haesbaert (2011), o território é a expressão da cultura, política,

economia e natureza concebida de forma integrada, fato que configura a existência

de redes multiterritoriais. Assim, o que fundamentaria a existência de redes seriam

as ações e consequências do atual período técnico-científico-informacional cujo

conceito advém de Santos (1997) quando analisa a materialização da globalização

no espaço terrestre caracterizada e edificada em redes artificiais de “objetos-

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próteses” artificiais voltadas ao incremento dos fluxos de comércio, informações e

comunicações.

Para Haesbaert (2011), a existência de redes fragmentadas e descontínuas

determina a territorialização ou multiterritorialização suprimindo a ideia de

desterritorialização impregnada nos discursos geográficos. A multiterritorialização

para Haesbaert, assim se configuraria:

Enfatizamos o aspecto temporal, dinâmico e em rede que o território também assume, tal como enfatizado por autores como Deleuze e Guattari, e onde a “integração” de suas múltiplas dimensões é vista através de relações de dominação e apropriação, ou seja, de relações de poder em sentido amplo. (HAESBAERT, 2011, p. 340).

Fica evidente nessas análises a crítica ao conceito de desterritorialização

quando associado à perda de espaço por entender que os territórios não podem ser

desfeitos em sentido literal, enquanto unidade física, mas considera que a cada

movimento de territorialização ocorre uma reterritorialização que se desenvolve de

forma diversa, em redes não hierárquicas. Portanto, a esta territorialização complexa

em rede e com fortes conotações rizomáticas, ou seja, não-hierárquicas é que

damos o nome de multiterritorialização:

Não haveria desterritorialização apenas pelo fato de que ela é o “outro lado” da territorialização, seu “outro” dialeticamente conjugado. Sob condições de “pós-modernidade”, o que surge não é o domínio de um segundo elemento a desterritorialização sobre a territorialização, mas a afirmação de um terceiro (que na verdade não exclui de forma alguma os outros dois), a que estamos chamando de multiterritorialidade ou, para manter a coerência e enfatizar a idéia de processo, de permanente movimento de devir, “multiterritorialização”. (HAESBAERT, 2011, pp. 365-366).

As ideias de Haesbaert (2011) e de Deleuze e Guattari (1995, p. 97) estão

articuladas, integradas e conectadas quando consideram que a formação de novos

territórios trazem os caracteres de territórios anteriores e quando consideram

articulações nas formas de entender territórios. Esta relação foi identificada na fala

de um ilhéu entrevistado de Igarapé Grande quando dá continuidade às

territorialidades antigas na realização da pesca que era feita pelos primeiros

moradores da ilha e quando continua este processo com outras características.

Segundo o Sr. Manoel, seu avô lhe ensinou a pescar com o uso de canoa e bambus

enfileirados fixados nos córregos para impedir a passagem de peixes e ainda

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atualmente quando pesca, utiliza pequenas redes amarradas a bambus nos mesmos

locais de pesca de seus avós.

Souza (2001) reconhece os esforços que algumas ciências vêm realizando

na discussão e ampliação do conceito de território, a exemplo do que tem feito a

antropologia, que vem demarcando consideráveis estudos de grupos ou tribos

urbanas que envolveria a formação de territórios “subalternos”. Contudo, critica o

esvaziamento do discurso político, das contradições socioeconômicas e espaciais

dos estudos antropológicos. Guattari também foi objeto de críticas desferidas por

Souza (2001) em decorrência de sua falta de continuidade de estudos sobre o

conceito de território.

A discussão sobre o conceito de território na ciência geográfica é carregada

de análises que envolvem o espaço urbano. Os seguintes autores: Milton Santos

(1997), Marcelo Lopes de Souza (2001), David Sack (2003), Claude Raffestin

(1993), Haesbaert (2011) e Deleuze e Guattari (1995-97), discutem o conceito de

território a partir de temas que envolvem o poder formado hegemonicamente pela

territorialidade do estado, apesar de relativizarem o conceito de poder, sempre

fazem alusão ao poder estatal, à ação dos agentes hegemônicos da globalização e

quando analisam as territorialidades de grupos excluídos associam a perversão de

redes regidas pelo meio científico e tecnológico do sistema capitalista.

Para Haesbaert (2011), as metrópoles são os lócus privilegiados para as

“multiterritorialidades rizomáticas” pelo fato de comportarem múltiplos territórios que

favorecem a acessibilidade devido à fluidez do espaço. Considera que a situação

socioeconômica dos indivíduos e coletividades mantém relação estreita com os

deslocamentos, pois quanto maior o poder aquisitivo, maior é a movimentação no

interior do espaço urbano. Restaria à maior parte da população a dificuldade em

vivenciar o “primeiro território”, o do cotidiano. Haveria distinção de duas formas de

desterritorialização: a primeira referiria-se à expansão tecnológica do capitalismo

nos meios de transportes que impulsionaria e intensificaria os deslocamentos em

escala global e a segunda diria respeito às comunicações que viabilizariam o

encurtamento das distâncias. Assim, estes processos dariam origem a territórios-

rede flexíveis:

As velocidades e os ritmos da mudança são sempre múltiplos e, com eles, podem ser múltiplas também as possibilidades (“linhas de fuga”, diriam Deleuze e Guattari) que o espaço social proporciona para a

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construção de nossos referentes territoriais, materiais e imateriais, funcionais e simbólicos. (HAESBAERT, 2011, p. 371).

Nesta perspectiva, os sujeitos vivenciariam multiterritorialidades a partir da

apropriação das tecnologias e redes de informação. Fato que ratificaria um conjunto

de definições de território e territorialidade que reforçariam valores urbanos.

Para Souza (2011), o território e territorialização também teriam na cidade o

lócus privilegiado de reprodução. O autor quase não faz referência às

territorialidades que ocorrem no meio rural, a exemplo dos construídos e

reconstruídos cotidianamente por populações camponesas, extratoras, ribeirinhas,

entre outras, que através de saberes socioculturais realizam uma série de ações e

criam redes territoriais.

Portanto, assim como há a colonização da ciência frente a outras formas de

conhecimento, há também, a colonização da produção científica urbana frente à

desenvolvida e relacionada ao meio rural, fato que reforça a separação geográfica e

abissal entre o urbano e o rural, no entendimento de redes e territórios-redes.

Os autores anteriormente listados consideram as grandes metrópoles do

“Primeiro” como do “Terceiro Mundo”, e toda a complexidade quem as margeiam, os

palcos dos fenômenos sociais mais interessantes para análise. É a visão do

“território-cidade” que se cristaliza ou emprestando o sexto princípio do rizoma

deleuze-guattariano, se decalca.

Na ilha João Pilatos, comunidade Igarapé Grande, uma rede de saberes

rizomáticos sobre o meio ambiente dinamizam territórios e orientam as práticas

sociais. Os ilhéus entrevistados usam a natureza de forma diversa, garantem o

sustento familiar por meio da exploração animal e vegetal, buscam entender a

dinâmica do meio físico para construírem saberes ambientais, forjarem ações

políticas e apropriarem-se de espaços, edificarem e desenvolverem laços afetivos,

educacionais e culturais numa relação de pertencimento.

A complexa rede de saberes e fazeres que se forma solapa a ideia de que as

sociedades amazônicas, que interagem com a natureza cotidianamente, vivem de

forma simples, tradicional e rudimentar.

Consideramos que apesar das cidades serem consideradas como espaços

complexos para a formação de redes de territórios diversos, é relevante destacar a

existência de complexas redes territoriais que não têm origem em formações

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tecnológicas e que são desenvolvidas em áreas rurais, nas ilhas, campos e matas,

cujas formações não se originam de tecnologias e variam de escalas e culturas.

As poucas referências dadas às territorialidades do meio rural também estão

impregnadas pelas discussões que envolvem os avanços técnico-científicos e

estatais. Fica presente a preocupação de autores em discutir redes a partir da

vertente tecnológica. Há sempre o cuidado de atualizar e “modernizar” o discurso de

formação de territórios-redes a partir de referências de inovações tecnológicas.

O debate sobre território e territorialidade reforça o pensamento abissal

quando sempre relaciona as construções teóricas às referências estado-poder e

capital-tecnologia. É possível flexibilizar e relativizar as noções de redes a partir da

configuração de redes de saberes amazônicos e redes de práticas educativas que

são expressões singulares do interagir com o espaço físico feito por “populações

tradicionais”.

Esta flexibilização na definição de território é apontada por Silva (2007),

quando analisa como os saberes culturais orientam a reprodução material e práticas

sociais de populações ribeirinhas que vivem à beira do rio Capim-Pa. Dessa forma,

“no processo de constituição de seus territórios, o tempo da vida está expresso em

um tempo e um espaço que refletem as formas de apropriação e uso dos recursos e

produtos do rio e da floresta” (SILVA, 2007 p. 48).

Portanto, nas investigações de processos culturais, socioeducativos e

ambientais de “populações tradicionais” amazônicas, torna-se necessária a

relativização da definição de território, pois sua explicação e conceituação precisa

partir da realidade física dos sujeitos, que apesar de manterem vínculo com áreas

urbanas, reproduzem seus modos de vida em áreas no interior de florestas, em

espaços que sofrem a influência de rios e culturas locais.

2.3.2 “Territórios das Caminhadas” criados a partir da observação de indícios,

vestígios e sinais do meio físico

A caminhada é uma prática comum entre as “populações tradicionais”

(camponeses, extratores, índios, ribeirinhos, dentre outros). Essas populações

constroem um conjunto de processos socioeducativos e culturais edificados a partir

da realização de deslocamentos feitos por terras, por mata e/ou por águas.

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Mapas cotidianos são construídos a partir de falas e caminhadas que as

populações amazônicas realizam em seus contextos locais. Em Igarapé Grande,

constatei que as caminhadas são práticas sociais diárias e estão associadas ao

desenvolvimento de atividades da caça, da pesca, do fazer carvão vegetal e do

extrativismo no interior da mata.

A história das grandes caminhadas realizadas pelas populações amazônicas

desde a pré-história aos dias atuais foi ignorada. É predominante na historiografia

que versa sobre a produção do espaço geográfico amazônico, a idéia de que os

índios foram descobertos e de que a civilização indígena passou a ser visibilizada a

partir do processo de colonização e exploração de mão de obra, desde a chegada

dos portugueses no século XVII.

As vivências e percursos dos índios no interior das matas sempre foram

relegados como uma prática não existente. Da mesma forma, acontece com as

populações amazônicas atuais que realizam grandes percursos nos locais onde

vivem e cujos processos são ignorados pela história e mídias local, nacional e

mundial.

Na comunidade Igarapé Grande os ilhéus relataram que se deslocam por

grandes caminhos de terras de chão batido construídos por eles mesmos no seu

fazer cotidiano, configurando-se como verdadeiras trilhas “escondidas” no interior

das matas e/ou das águas. Estas “rotas cotidianas” dão sentido à criação e recriação

de mapas do lugar e mapas de processos educativos ambientais, pois para e no

percurso dessas, é desenvolvida toda uma “pedagogia dos deslocamentos” fundada

na circulação de “saberes de deslocamentos”.

A “pedagogia dos deslocamentos” tem relação com a construção de práticas

educativas desenvolvidas entre os ilhéus quando realizam percursos nas matas e

águas. Os mais jovens aprendem com os mais velhos, pelos relatos orais, a

desenvolver percursos seguros, marcar pontos nas plantas, identificar prováveis

ameaças. Neste processo educativo os mais jovens ficam em silêncio e atentos

observando falas e gestos.

A “pedagogia dos deslocamentos” nasce e é desenvolvida por meios de

saberes sob o meio físico. Os saberes relatados pelos ilhéus quando realizam

deslocamentos tem a ver com a observação de plantas, animais e pedras que

acabam por se constituir em elementos de orientação espacial. Os “saberes de

deslocamentos” pressupõe a identificação, leitura e interpretação daquilo que a

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visão pode observar e o tato pode identificar nos espaços físicos, nas paisagens

assimiladas, vividas e significadas.

Foi relatado pelos moradores que, no seio familiar, as crianças desde muito

cedo acompanham os pais nos percursos feitos de canoa, rabeta e a pé. A figura a

seguir evidencia um momento de preparação de um grupo familiar para a realização

de um dos seus deslocamentos pelo rio Maguari. Navegar pelo rio é uma prática

cotidiana e cujo destino final, quase sempre, são as áreas urbanas das cidades e a

visita aos parentes em outras localidades das ilhas. É comum as crianças

acompanharem os pais nos seus trajetos e dessa forma aprendem, desde cedo, a

fazer a realização dos percursos.

A foto 12 (a seguir) evidencia uma família se preparando para realizar

conjuntamente o percurso no rio Maguari, oportunidade em que é desenvolvida uma

pedagogia dos deslocamentos. Este processo educativo é caracterizado pela

transmissão de conhecimentos e saberes referentes à movimentação das águas, as

rotas que se deve seguir e a leitura de paisagens que permitem o entendimento de

parte da dinâmica sociocultural no decorrer dos percursos.

Foto. 12 – Família se preparando para a realização de percurso no Rio Maguari.

Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Fica o registro de que os percursos feitos entre rios, furos e igarapés da

Amazônia, especialmente de Ananindeua, vão além de um trajeto obrigatório, pois

mediam processos educativos, saberes culturais, identidades e modos de vida

singulares de populações que interagem cotidianamente com o rio e matas.

No dia 12/03/2012, havia sido combinado com o ilhéu de Igarapé Grande, o

Sr. Reginaldo Farias, a realização de uma entrevista com D. Ambrosina, de 102

anos, uma das primeiras moradoras da comunidade e que atualmente vive em uma

localidade chamada Bela Vida, cerca de 10 minutos distante do lugar denominado

“Paraíso”, onde foi realizada a maior parte desta pesquisa. O deslocamento seria

feito com o uso de uma rabeta que partiria do trapiche de Igarapé Grande.

No entanto, o Sr. Reginaldo informou que não seria possível realizar o

percurso naquele dia porque precisava preparar a embarcação, realizar o depósito

de combustível no motor, mas principalmente devido à maré que estava muito baixa,

tornando-se necessário transferir a atividade para o dia seguinte, o que evidencia

que o modo de vida dos ribeirinhos está intimamente associado à dinâmica da

natureza.

No dia 13/02/2012, como combinado, estávamos nos preparando para

realizar a visita a Sra. Ambrosina e realizávamos um breve conversa de bastidores,

onde perguntava sobre a idosa e o local físico onde morava. A realização do contato

com a senhora era a oportunidade que tinha para conhecer uma pessoa que

representava uma “história viva” dos moradores da ilha e que poderia ser muito útil

no relato de informações sob o surgimento da comunidade.

Antes de partirmos, Reginaldo iniciou uma série de procedimentos de

preparação da embarcação. Verificou, novamente, o estado do motor, a quantidade

de óleo, observou se haveria a ocorrência de chuvas e se o remo estava disponível

na rabeta. Ficou agitado quando identificou que o remo não estava presente na

embarcação. Afirmou que só iríamos partir se conseguíssemos o remo. Informou

que se por algum motivo o barco sofresse uma pane ficaríamos à deriva no rio

Maguari. Situação que já acontecera anteriormente com ele e mais dois amigos.

Após meia hora caminhando na comunidade e conversando com proprietários

de embarcações, conseguiu-se o empréstimo do remo junto a outro morador. Ao

partirmos, o Sr. Reginaldo demonstrou considerável habilidade no controle do barco

e perspicácia nos deslocamentos realizados nos furos do rio Maguari.

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Enquanto realizávamos o trajeto em direção à localidade Bela Vida, Reginaldo

ia relatando a mim e a seu filho que nos acompanhava, a dinâmica das águas, os

horários exatos das cheias e vazantes das marés, descrevia com detalhes os tipos

de plantas que se localizavam às margens do rio e contava com minúcias a história

dos moradores e das paisagens visíveis durante o trajeto.

As explicações dadas pelo ilhéu sob as formas das paisagens e a

demonstração da habilidade na realização do deslocamento no rio só era possível

pela assimilação de um conjunto de saberes e processos socioeducativos

ambientais que havia aprendido com seus pais e que fazia questão de nos relatar.

Ao chegarmos à localidade de Bela Vida, perguntamos por D. Ambrósia e

fomos informados pela sua filha de nome Márcia Pinheiro que ela estava na mata

coletando sementes e fazendo a limpeza de determinadas trilhas. Apesar da idade,

D. Ambrósia ainda mantinha uma estreita relação com a natureza, pois era comum

sua presença no interior da mata.

A sua filha, que não parava de nos observar, foi avisar sua mãe que

estávamos esperando para realização de uma conversa. Após quinze minutos de

espera, D. Ambrósia veio se aproximando vagarosamente, com passadas curtas e

lentas e ficou surpresa com nossa presença.

Após as apresentações iniciamos a conversa. D. Ambrósia falava baixo, tinha

dificuldade de expressar-se e com bastante frequência recebia o apoio de sua filha,

que estava ao seu lado, para lembrar-lhe de situações passadas. D. Ambrósia é

considerada por todos em Igarapé Grande como uma pessoa de grande respeito e

de reconhecida valia por saber informações da mata, das águas e dos primeiros

moradores da Comunidade. A Sra. relatou a história dos moradores, dos lugares e

dos hábitos locais.

Segundo D. Ambrósia e Márcia Pinheiro, no dia anterior à nossa presença

àquela localidade, o curupira havia prendido um homem no meio da mata:

Ele saiu pro mato aí, sumiu no mato, aí nós procuramos ele, diz que chamavam ele, aí foram procurar e encontraram ele debaixo de um pau lá. Sempre a gente tem medo, a gente vive aqui, mas tá bom nossa vivência, Graças a Deus [Sic]. (Márcia e D. Ambrósia).

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O relato do curupira reforça a idéia de que a realização de caminhadas

depende de prévios conhecimentos do mato e do respeito aos entes e mistérios da

natureza.

O conhecimento da natureza representa apenas um de vários requisitos para

realização de caminhadas no interior de matas, pois segundo Márcia Pinheiro

“devem ser considerados os mistérios, mitos e lendas construídos das áreas

naturais”. (Localidade Bela Vida. Em:13/02/2012).

Após a conversa, que durou aproximadamente 55 minutos, nos despedimos e

agradecemos as informações repassadas. Em seguida, retornamos á localidade de

partida e novamente o Sr. Reginaldo aproveitou para fazer uma série de relatos que

envolvia a movimentação das águas, a existência de caminhos e furos nas ilhas

para se chegar mais rápido a lugares como Mosqueiro e Caratateua (Outeiro).

Antes de realizar quaisquer deslocamentos, segundo o Sr. Reginaldo, “os

moradores aprendem com os antigos a observar a natureza, suas manifestações,

cores, tudo e funcionamento [Sic]”. (Localidade Bela Vida. Em:13/02/2012). O

deslocamento é uma prática cultural, social e econômica que envolve saberes sobre

as águas, sobre a mata e também a percepção, leitura e entendimento das

paisagens.

Em Igarapé Grande, identificou-se que quem se desloca com facilidade em

percursos nos rios e terras edifica a imagem de uma pessoa que adquiriu certa

maturidade, sabedoria e desenvoltura na aprendizagem da leitura-percurso do meio

físico e que tem preferência nos relatos de trajetos em rodas de conversas.

Em Igarapé Grande há o costume das caminhadas feitas a pé, sem o uso de

sandálias. Essa prática permite o contato maior com a terra e plantas. Chama

atenção o modo como os moradores possuem a habilidade de realizar desvios de

pedras, espinhos e poças d’águas. Os ilhéus caminham agilmente, sem voltar a

atenção para o chão. Há ainda, o hábito de nunca adentrarem as matas sem o uso

de sandálias, facões e terçados que acabam servindo como instrumento de defesa

às adversidades da floresta e praticidade na demarcação de trilhas.

Os destinos dos deslocamentos feitos pelos moradores de Igarapé Grande

para fora da ilha são variados: Murini, Mosqueiro, Belém, Benfica e Benevides,

sendo aqueles que apresentam maior frequência os direcionados ao Porto do Surdo,

espacialidade que media os deslocamentos dos ilhéus às áreas urbanas de

Ananindeua e adjacências. Todos são feitos com o uso de rabetas, canoas e da

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embarcação escolar. Há os deslocamentos que ocorrem no interior da ilha João

Pilatos, cuja trilha liga a comunidade Igarapé Grande à comunidade João Pilatos, e

aqueles realizados no seu próprio interior, feito nas matas, roças e no entorno da

localidade Paraíso.

Os deslocamentos feitos pelo rio e pela terra não ganham importância pela

metragem espacial e tempos percorridos. O que menos importa é a distância. Vale

mais a subjetividade, a carga sentimental e de significância que se constituem e/ou

são apropriadas no percurso. Para D. Maria Luíza o deslocamento implica no

“exercício da liberdade, satisfação na observância da paisagem e fortalecimento dos

laços afetivos em relação à natureza” (Depoimento Em: 13/02/2012).

Os moradores, em seus relatos, manifestaram que o deslocamento feito

pelos rios, especialmente pelo Maguari, lhes proporciona sentimento de liberdade de

locomoção, possibilita contemplação de paisagens, de árvores, de águas, de

pássaros, além do prazer em realizar a pesca e cruzar o rio nas embarcações. Os

ilhéus relataram que sentem satisfação, alegria e admiração por tudo aquilo que

veem e sentem quando praticam o deslocamento.

Uma rede de saberes ambientais e processos educativos são postos em

circulação pelos ilhéus de Igarapé Grande quando desenvolvem os deslocamentos.

Edificam teias complexas de sentido difuso construídas nos percursos. As redes não

possuem origem e nem fim. A fluidez das direções é a sua essência. Quando

analisamos a variável deslocamento desenvolvida pelos entrevistados,

conjecturamos a existência de um “espaço mole”, “volátil”, “meândrico” e

“rizomático”, cuja cartografia representa um feixe sem direções métricas.

A volatilidade do espaço é expressa nos percursos variados no interior da

mata. A mata nunca deixa de ser investigada, guarda segredos inexplorados. A mata

fundamenta e renova a cartografia dos indícios socioambientais. Caminhar na mata

implica pôr em prática saberes e fazeres, apreender a natureza e educar-se para a

realização de um percurso seguro, promover a erupção de lembranças e edificar

novos trajetos, ratificar os existentes. A mata é um grande enigma a ser mapeado,

percorrido e apropriado.

O “espaço mole” aqui é entendido como os percursos feitos e apropriados nos

espaços físicos das terras e das matas, representa também a oposição dos

“percursos duros” das cidades, ou seja, os que são feitos nas áreas urbanas de

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forma “forçada”, sem carga de significância e que seguem direções determinadas

pelas ruas e prédios.

O “espaço mole” dos ribeirinhos está em constante trabalho de erosão de

barreiras e fomenta o depósito ou assoreamento de imagens na memória dos

sujeitos que percorrem áreas singulares nas matas e rios. Deslocar-se no rio

representa deixar-se levar pela embarcação e pelas “mãos das águas” que guiam

levemente a destinos certos de direções e “faixas” não certas. Para D. Maria Luiza,

além de permitir o deslocamento não rígido, o contato com o rio implica na

sustentação de um modo de vida ligado às águas:

Pra gente andar de um lado e outro. Quando a gente precisa ir para Mosqueiro a gente vai. Quando a gente precisa ir para Icoaraci a gente vai, precisa ir pra Maguari a gente vai, pra Curuçambá e sim pra todos os tipos de viagens. O deslocamento pra mim é uma maravilha. A gente vai admirando a natureza. Bacana mesmo! Muito bom, eu gosto! Até porque eu tenho casa na cidade, mas não fico lá não. O meu é aqui. Eu quero é aqui. O meu é a natureza! Até porque eu ainda nado, pulo na maré de cabeça. Pulo das alturas aí e gosto muito de água [Sic]. (D. Luíza. Em: 13/02/2012. Igarapé Grande).

Para os moradores de Igarapé Grande, a terra representa apenas um palco

para a realização de caminhadas, apropriação de espaços, formações de

identidades e produção de saberes ambientais. As caminhadas expressam

apropriação de linguagens e imagens que, segundo Certeau (2011, p. 184):

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram.

A construção de espaço, a partir de sua apropriação e de realização de

caminhadas, é também apontada por SILVA (2006, p. 07) como “formas de

expressão carregadas de significações que fogem à lógica linear, em que é possível

visualizar e apreender modos de viver, de trabalhar e fazer”. Portanto, caminhar de

forma difusa e rizomática, tem uma lógica e racionalidade que se constituem num

importante vetor para entendimento de produção de cultura e vivência de

populações amazônicas.

Segundo Deleuze e Guattari (1995), os espaços podem ser de dois tipos: o

“espaço liso das ciências” (de todos os tipos de conhecimentos) e “deslocamentos

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do go" (nômade) caracterizado pelos deslocamentos constantes sem direções

definidas e o espaço estriado formado pelas codificações das ciências e limitações

impostas pelo estado ao deslocamento das pessoas:

Mas é sob uma forma muito diferente, já que o estado precisa subordinar a força hidráulica a condutos, canos, diques que impeçam a turbulência, que imponha o movimento de ir de um ponto a outro, que imponha que o próprio espaço seja estriado e mensurado, que o fluído dependa do sólido, e que o fluxo proceda por fatias laminares paralelas. Em contrapartida, o modelo hidráulico da ciência nômade e da máquina de guerra consiste em se expandir por turbulência num espaço liso, em produzir um movimento que tome um espaço e afecte simultaneamente todos os seus pontos, ao invés de ser tornado por ele como no movimento local, que vai de tal ponto a tal outro. (DELEUZE e GUATTARI. vol. 5, 1997, pp. 27-28).

A partir desta perspectiva, do “espaço do go" deleuze-guattariano, podemos

relacionar a variável deslocamento à fluidez. Este processo resultaria no espaço

das redes criadas pelos constantes deslocamentos de sentidos variados que os

ilhéus ribeirinhos de Igarapé Grande realizam em seus cotidianos nas águas, no

interior das matas ou onde se socializam cotidianamente.

Conjecturamos que o “espaço do go”, é construído pelos ilhéus entrevistados,

quando realizam o percurso da trilha que liga a comunidade Igarapé Grande à

comunidade João Pilatos, na ilha João Pilatos, Ananindeua-Pa. Para quem realiza o

trajeto a pé, o percurso dura aproximadamente 40 minutos. Nas épocas chuvosas as

dificuldades de circulação aumentam em decorrência do aparecimento de animais

peçonhentos e córregos. O que importa neste trajeto, segundo os moradores, são os

prazeres, amores, subjetividades e afetividades que ocorrem durante os

deslocamentos.

As fotos a seguir revelam o início da trilha que liga as comunidades João

Pilatos e Igarapé Grande, além de ribeirinhos realizando o percurso. Os processos

educacionais que se desenvolvem nesta dinâmica se relacionam à leitura de

paisagem, à prática da realização de percursos seguros e ao acompanhamento da

degradação ambiental, na medida em que, é observado as transformações

antrópicas na natureza:

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Foto 13. Marco do início Trilha que parte de Igarapé Grande até a comunidade João Pilatos. Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Foto. 14 – A Foto ilustra o percurso de moradores pela trilha que liga as comunidades João Pilatos e Igarapé Grande. O complemento da compra de alimentação é feito entre as duas comunidades. Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Foto 15. Alunos que moram na comunidade João Pilatos realizando o percurso de volta para as suas casas. A paisagem demonstra, ainda, moradores e alunos de João Pilatos chegando até a escola Domiciano Ramos (Localidade Igarapé Grande). Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

O trajeto é ponto de integração sociocultural entre as duas comunidades. O

percurso da trilha é feito diariamente por professores, moradores e alunos que se

dirigem do Igarapé Grande à João Pilatos e vice-versa. O percurso também é feito

durante a realização do Círio das Ilhas, em dezembro, cujo trajeto vai do Igarapé

Grande à localidade de João Pilatos.

Apesar da trilha representar a junção de um ponto a outro, de duas

comunidades, a linha traçada não representa a distância métrica e rígida de dois

marcos espaciais, mas constitui-se num “trajeto fluído”. O trajeto carrega grande

carga de subjetividade que incorpora relatos de assombrações, ataques de animais,

estórias que envolvem entes da natureza, magias, mistérios e aventuras. Quem

chega pela primeira vez à ilha ou é “iniciante” na comunidade, recebe a

recomendação de nunca realizar o trajeto sozinho.

As caminhadas feitas pelos moradores constituem “espaços frouxos”. Certeau

(2011) fala de uma “retórica ambulante” contrária a espacialização rígida e

construtora de uma linguagem espacial dos percursos:

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Vou acrescentar que o espaço geométrico dos urbanistas e dos arquitetos parece valer como o “sentido próprio” construídos pelos gramáticos e pelos linguistas visando dispor de um nível normal e normativo ao qual se podem referir os desvios e variações do “figurado”. (CERTEAU, p.167).

Podemos relacionar o espaço da caminhada, de móveis, da ambulância de

Certeau, ao espaço liso definido por Deleuze e Guattari (1995) com os “espaços

moles” desenvolvidos pelos ilhéus da ilha João Pilatos. A perspectiva é de que o

espaço precisa ser praticado, vivido, conduzido de acordo com as existências e

subjetividades dos que nele circulam.

O espaço do concreto, das massas de tijolos e ferro seria apenas o meio

físico do real espaço vivenciado pelo “artista do percurso” (CERTEAU, 2011).

De acordo com Silva (2006), as “populações tradicionais” constroem um

conjunto de saberes sob o espaço a partir do meio que vivem. Os relatos ancestrais

postos em circulação entre os sujeitos orientam os deslocamentos:

As narrativas das práticas sociais que eles trazem da floresta estão incorporadas na cartografia de seus lugares. Elas conservam fortes marcas dos caminhos trilhados por seus antepassados nas suas vivências com as matas e com os rios. Esses caminhos foram traçados em terras firmes e de várzeas, igapós ou capoeiras por ribeirinhos, caboclos, descendente do enfrentamento cultural de índios, habitantes primitivos da região com africanos escravizados e os colonizadores brancos. (SILVA, 2006, p. 74).

As explicações acima conduzem ao entendimento da possibilidade de

formação de uma “cartografia de saberes dos deslocamentos”, a partir da

observação do meio natural e socialização de conhecimentos ancestrais feitos em

percursos.

Os ribeirinhos entrevistados afirmaram que realizam caminhadas observando

o conteúdo e o significado das paisagens espaciais e ficam atentos à percepção de

sons e ruídos. Circulam nas matas, sem grandes aflições, nem urgências. E ao

caminharem edificam relações homem-natureza.

Os ilhéus narram estórias a partir de deslocamentos. Quanto mais caminham,

mais entendem o espaço que percorrem. O entendimento espacial depende da

atenção dedicada à aprendizagem da leitura da paisagem.

As linhas imaginárias e tracejadas criadas com os percursos dos ribeirinhos

implicam na construção de mapas. Os deslocamentos se fixam em referências

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espaciais, nos elementos da natureza. Os ilhéus identificaram como elementos que

orientam as caminhadas: o rio, os córregos, as árvores, a cor da terra, a quantidade

de humos depositado nos solos, a declividade e a aclividade dos terrenos.

Ressalta-se que é inerente do deslocamento humano o ato de criar mapas

mentais. Despejamos boa parte de nossa carga sentimental na assimilação de

paisagens espaciais que ficam armazenadas na memória funcionando como mapas

ou “chips mentais”. Nossas ações políticas, econômicas e culturais têm sempre

relação com o meio físico, que constantemente são resgatadas pelas lembranças e

reminiscências.

Deleuze e Guattari (1997) afirmam que o conceito de espaço não tem valia,

apenas abre a possibilidade de discutir relações subjetivas no deslocamento do

nômade, do migrante e do sedentário e que o percurso de espaço pode ser liso ou

estriado:

O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas ou percebidas. É um espaço de afetos, mas que de propriedades. É uma percepção hepática, mas do que óptica. Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhe servem de sintomas. É um espaço intensivo, mas do que extensivo, de distâncias e não de medidas. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, vol. 5, p. 185).

Chama a atenção na análise espacial deleuze-guattariana, a despreocupação

com a rigidez do percurso e a busca pelo “percurso-singular” sem ênfase aos limites,

sendo o que guia os deslocamentos são os sintomas. Portanto, no espaço liso:

[...] a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades táteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol. 5, p.188).

Estas relações espaciais se configuram numa cartografia dos deslocamentos

e da percepção espacial fundadas no acompanhamento de indícios emanados e

observados do meio físico. Esta “cartografia das pistas espaciais” tem íntima relação

com o método indiciário de Carlo Ginzburg (1989) e dos relatos de espaço de

Certeau (2011), onde as subjetividades e significâncias dos deslocamentos fundam

a existência de espaços e lugares.

Para Deleuze e Guattari (1997), o nômade se diferencia do migrante por

movimentar-se no espaço sem sentidos certos, num deslocamento flexível. O

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espaço liso do nômade é “[...] objeto por excelência de uma visão aproximada e o

elemento de um espaço hepático: que pode ser visual, auditivo, tanto quanto tátil”

(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.203). Por outro lado, o migrante se desloca no

espaço indo de um ponto a outro com trajeto previamente definido. Para os autores

há diferenças nos deslocamentos feitos entre o nômade e o sedentário. O sedentário

frequenta espaços fechados, enquanto que o nômade segue pistas, segue no

espaço não conhecido. O sedentário prima pelos limites territoriais. O nômade não

tem limites espaciais (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 53).

É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora ele os tenha. Se o nômade pode ser chamado de o desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está midiatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de estado [...]. Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território.

Assim ficaria evidente que o “deslocamento descompromissado”, “liso e

fluído”, ocorre de forma contrária ao “deslocamento rígido”. Em Igarapé Grande, o

estado, através do assentamento agroextrativista, tentou impedir os “fluxos frouxos”

dos ilhéus, o estriamento do espaço deu-se pela tentativa de potencializar a

sustentabilidade local, impedir o fluxo constante dos deslocamentos e a não fixação

dos ribeirinhos nas áreas urbanas na cidade de Ananindeua, na medida em que

tentou criar produções e fixações dos moradores em terrenos métricos.

Certeau (2011) entende o processo de caminhada como a possibilidade de

flexibilizar os deslocamentos duros, rígidos, métricos e geométricos que os recortes

espaciais feitos nas cidades nos permitem ir.

O ato de caminhar dos ilhéus implica a realização de rotas que se

sistematizadas expressam um conjunto de figuras geométricas, mas cujo sentido

maior é a despreocupação com as linhas, o que vale é a construção de sentidos

elaborados e a edificação de relação de pertencimento e cultura criados nestes

processos.

Caminhar, para os entrevistados, também se constitui numa prática de

territorialização da educação ambiental, porque são observadas as transformações

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humanas e naturais das paisagens e instiga a reflexão da degradação ambiental e

leitura de paisagens.

2.3.3 Construção de “Territórios-lugares do cotidiano”.

De que forma o lugar se diferencia de território? O lugar é ponto de

construção de subjetividade. O território é a subjetividade associada à posse,

domínio, controle. O lugar é criado a partir de laços afetivos e amorosos com os

espaços físicos. No território o amor justifica apropriação. O lugar decorre de

relações sociais e sentimentais fundadas com os ambientes. É a fração do espaço

de construção de identidade, de paixões, desilusões e singularidades.

Quando os ribeirinhos se relacionam com os pequenos locais físicos onde

moram e estabelecem memórias e prazeres, criam lugares. Por outro lado, quando

os prazeres permeiam ações e conjecturações visando pertencimento, forjam-se

territórios.

Para Fani (2002), o lugar deve ser entendido a partir da fragmentação do

espaço da modernidade do mundo que é negado no particular, no local, produto de

subjetividades e do tecnicismo das sociedades urbanas.

Assim como o conceito de território é margeado pela carga ideológica de

valores urbanos e tecnológicos, o conceito de lugar apresenta vícios similares a esta

tendência, da premissa de que as cidades e o capitalismo produzem todas as

formas de subjetividade. Fani (Idem) valoriza demasiadamente a urbanidade e

modernidade para o entendimento do lugar, que seria “palco” das tendências

produtivas mundiais e das tendências do cotidiano:

Só é possível o entendimento do mundo moderno a partir do lugar, na medida em que este for analisado num processo mais amplo – aquele que pensa a sociedade urbana. Mas é no lugar que se manifestam os desequilíbrios, as situações de conflito e as tendências da sociedade urbana. (FANI, 2002, p. 303).

Nas ciências sociais e humanas, particularmente na geografia, o discurso sob

o lugar, em geral, é permeado pelo viés tecnológico, o que garantiria uma

legitimidade aparente. Lugar e discurso cibernético, da Teoria dos sistemas advinda

da física e das redes de computadores se mesclam. O “modismo” evidencia que a

globalização e o capitalismo contemporanizam o entendimento de lugares. Apesar

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da supervalorização do viés tecnológico há uma importante contribuição da

subjetividade humana para a compreensão da formação do lugar. Fato destacado

por Fani (2002, p. 304):

[...] o que nos remete ao nível do vivido com uma dimensão importante de análise, pois é penetrado pelo imaginário e pelo simbolismo “ele tem por origem a história de um povo e aquela de cada indivíduo pertencente a este povo [...] se vive e se fala, ele tem um nó ou centro afetivo, o ego, a cama, o quarto, o alojamento ou a casa, a praça, a igreja, o cemitério. Ele contém os lugares da paixão ou da ação, aquele das situações vividas.

Esta segunda “dimensão” do lugar, o cotidiano, ganha grande importância

quando são analisados contextos de práticas educativas de “populações

tradicionais” em ambientes não escolares. O cotidiano, só acontece em função da

existência de saberes e fazeres sob o meio físico e a cultura. Nesta perspectiva, o

cotidiano é entendido como uma territorialização que orienta o controle de “lugares-

territórios”. Os lugares e territórios se conectam de forma heterogênea, integrada e

não hierárquica.

Foi constatado que as populações ribeirinhas de Igarapé Grande

desenvolvem relações afetivas com árvores, animais que frequentam as matas e a

comunidade, com rios e igarapés, com as plantas cultivadas nos terrenos e com a

percepção da paisagem.

Amar, preservar, cuidar e tomar conta são palavras predominantes nas falas

dos ribeirinhos quando são avaliadas as relações que estabelecem na produção de

lugares na ilha João Pilatos. Nessa perspectiva, nos discursos dos entrevistados

ficou subtendido que a criação de “lugares ambientais” seria fugidos para os mais

jovens. Os amores não estariam “amarrados” à natureza. Está relação amor-

natureza ficaria subscrita aos mais velhos.

Falar em produção de lugar em comunidades ribeirinhas amazônicas significa

considerar a forma não hierárquica de produzir conhecimento científico, ou seja,

partir de relações cotidianamente construídas para então recorrer às teorias e

conceitos decalcados. Para Silva (2006, p. 74) os lugares são:

Porções de ambientes naturais transformados pela ocupação, pelo uso, dotado de significado social na medida em que representam lugar de moradia e de sustento do grupo familiar. Os caboclos ribeirinhos, em geral, têm sabido articular as suas necessidades de sobrevivência às vantagens de apropriação e uso dos produtos e recursos do rio e da floresta.

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Dessa forma, pensar em lugar em comunidades ribeirinhas pressupõe

considerar as relações sociais cotidianas, afetivas, subjetivas e físicas locais que

nenhuma teoria é capaz de padronizar e explicar pela lógica mundial da economia.

O viés tecnológico e globalizante do capitalismo deve ser relativizado e não

considerado como uma lei física e natural que regeria as relações sociais.

Assim, o conceito de lugar pode ser apreendido a partir da dinâmica da vida

dos sujeitos, da cultura, onde cada indivíduo e grupo de pessoas produzem

subjetividade e afetividades.

Em comunidades tradicionais amazônicas os elementos tecnológicos não

determinam o acontecer do cotidiano, apenas fundem-se às territorialidades locais,

sem definirem hierarquias na construção de práticas sociais, articulam-se nas formas

de produzir cultura, educação e saberes ambientais.

Para Milton Santos (1997), o lugar é mediatizado pela perversão da ciência,

da técnica e da informação. Esses vetores acabam imprimindo nos espaços físicos

dos lugares um conjunto de próteses que atendem aos interesses do mercado e da

informação. Contudo, reconhece a importância do lugar como substrato da liberdade

e da libertação. O lugar é o local que permite a união. “Define-se o lugar como a

extensão do acontecer homogêneo e do acontecer solidário” (SANTOS, p. 47).

Milton Santos avança na noção de que o lugar apresenta um substrato

relacionado à cidade, à urbanização e a produção capitalista. Assim, “o tempo do

cotidiano compartilhado é um tempo plural, o tempo dentro do tempo. Hoje isso não

é apenas o fato da cidade, mas também o do campo” (SANTOS, p. 38). Portanto,

são os lugares de áreas urbanas ou rurais que vivemos, passamos, moramos,

estudamos e brincamos que dão sentido às nossas relações espaciais.

As memórias dos lugares podem ser ratificadas ou efêmeras. As viagens que

um dia fizemos reportam lembranças. As lembranças dos lugares podem ser boas

ou ruins, mas sempre temos uma referência espacial. Todo relato tem uma narrativa

espacial.

Os lugares em Igarapé Grande se ratificam quando são socializadas estórias

e saberes sob os espaços físicos. Os ribeirinhos sentem a necessidade de reafirmar

a memória individual de espaços físicos pelas descrições orais. Um dos espaços

especiais para socialização de saberes e fortalecimento de laços familiares, de

vizinhança e amizade são os lugares de rodas de conversa, da pesca, da realização

da agricultura e reuniões comunitárias. Assim, relatar implica reafirmar algo

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importante de um passado, de imagens que insistem em ser relembradas, de

lugares e espaços que não se apagam, de sentir a necessidade de revalorar a

memória.

A memória coletiva realimenta a história de vida das pessoas ligadas a

espaços físicos. Os ilhéus relataram que quanto mais conversam em grupo, mais

detalhes e lembranças de lugares, de ações são recuperadas e renovadas.

As reuniões e rodas de conversa permitem juntar os fragmentos espalhados

na mente de cada pessoa. A reunião de pessoas é tida como uma necessidade de

auto-ajuda. Para Halbwachs (2004), a memória coletiva reforça e sistematiza um

conjunto de lembranças, numa espécie de dependência:

Da mesma maneira que é preciso introduzir um germe num meio saturado para que ele cristalize, da mesma forma, dentro desse conjunto de depoimentos exteriores a nós, é preciso trazer como que uma semente de rememoração, para que ele se transforme em uma massa consistente de lembranças. (HALBWACHS, 2004, p. 32).

O lugar se afirma com a percepção dos objetos que formam as paisagens.

Quando memorizamos lugares, marcamos em nossa mente a existência de pontos

de referência, a exemplo de pontes, morros, cacimbas, igarapés, rios, matas,

caminhos, lugarejos, igrejas, casas, árvores isoladas, shoppings, lojas, prédios,

trilhas, animais, cores, sons, cercas, muros, ruas, portos etc. A todo o momento

estamos “amarrando” nossa memória em algo material e espacial.

Segundo Silva (2006), os tempos que fundam os modos de vida ribeirinhos

são revelados em oralidades e fragmentos visuais que são fontes de informações

importantíssimas para o entendimento dos costumes criados nas relações cultura e

natureza. Neste caso fica evidenciado a conjunção tempo-memória para

entendimento dos lugares e modos de vidas locais na Amazônia.

Fares (2006) sistematizou uma “cartografia da memória da Belém de

antigamente”, do período da Belle Époque, a partir de relatos de idosos do Abrigo de

Santo Antônio, Belém-Pa. Chama a atenção neste estudo, o relato dos objetos

espaciais, territórios culturais e paisagens assimiladas por pessoas que viveram

aquela época. Este trabalho reforça o argumento de que a linguagem e memória

produzem estórias, saudades e fortalecem os vínculos com os espaços físicos.

Processo reconhecido, de forma similar, nos relatos dos ilhéus entrevistados de

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Igarapé Grande que narraram, demonstrando bastante saudades, os elementos

naturais e modos de vidas dos primeiros moradores da comunidade.

Os pontos que “amarram” as memórias ribeirinhas quando produzem lugares

ou estabelecem relações de amores, sentimentos, paixões, tristezas, educação e

saberes com os espaços físicos sempre se reportam a elementos da natureza: o rio,

a terra, a mata, a cacimba, o igarapé, o mangue, a trilha e os animais. Portanto, em

Igarapé Grande os lugares representam memórias, narrativas de espaços,

reminiscências e prazeres.

2.3.4 Os “Territórios das Linguagens Espaciais”.

Os moradores da comunidade Igarapé Grande, aprendem quando crianças,

um conjunto de linguagens espaciais coletivamente socializadas. Nos relatos há

sempre referência a pontos espaciais que expressam processos inerentes a

construções de linguagens, da semântica do meio físico, fato que marca o cotidiano

das populações amazônicas.

A semântica do discurso espacial é a linguagem construída a partir do meio

físico. Não há vivência no meio físico sem que se desenvolva a linguagem espacial.

Quando os moradores das ilhas de Ananindeua contam estórias e descrevem

relatos de práticas sociais que envolvem o meio físico, realizam uma narrativa

espacial. Lembranças, contos, deslocamentos, fazeres e falas sempre possuem

como base o espaço físico.

O discurso espacial está presente em várias expressões dos moradores

entrevistados de Igarapé Grande. Rotineiramente reportam-se às palavras cujas

semânticas emanam referências à lugares. As que foram mais citadas nos relatos

foram: ribanceira13, ir à direita, à esquerda, em frente, dobrar a esquina, seguir em

frente, descansar, andar na mata, ir ao trabalho, voltar para casa, ir ao mangue e

igarapé, andar atrás de animais e caçar. Por outro lado, ações como cozinhar,

morar, ler, falar, pescar, caçar, também pressupõe a identificação e apropriação de

locais-linguagens repetidamente pronunciadas.

Advérbios e expressões adverbiais da “gramática oficial” são ressignificados

entre os moradores da localidade Paraíso, ilha João Pilatos, comunidade Igarapé

13 Ribanceira para os moradores de Igarapé Grande possui o significado de área distante, longínqua e afastada da localidade Paraíso considerada pelos ilhéus o “centro” da ilha.

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Grande, sofrem metamorfoses, permeiam uma educação espacial, fundem-se em

neologismos: “longe pra caramba”, “ali”, “lá”, “cá”, “qui”, “adiante”, “mais devagar”, “ói

lá”, “acolá”, “na ribanceira”, “pernada derradeira”. Estas expressões representam um

tipo de linguagem espacial fartamente desenvolvida na ilha.

Para Certeau (2001), as figuras de linguagens representam a variabilidade

das metamorfoses estilísticas do espaço. Foi verificado que metáforas e

prosopopéias entram em “ebulição” e circulam constantemente nas falas dos ilhéus

da comunidade Igarapé Grande. O Sr. Lucivaldo (Igarapé Grande. Em: 23/02/2012)

afirmou “que quando o céu muda de cor, o tempo “fecha”, as árvores ficam agitadas

sacudindo as folhas produzindo sons, é sinal de grande ventania e da possibilidade

de chuva [Sic]”. Esta observância da natureza também é fundamental no processo

de extração do açaí conforme aponta o ilhéu O.T.I:

Na época do açaí que chove, o açaí cai todinho do cacho. Cai do cacho, porque eu não sei o que tem que cai, ele seca rápido e cai. Prejudica porque tem muita pessoa que perde o açaí. A coleta do açaí tem que ser antes da chuva, na época do verão. Em novembro é muito bom pra trabalhar com o açaí porque não chove muito. O segundo semestre é bom pro açaí. No primeiro trabalhamos com o peixe e frutas [Sic]. (O.T.I. Em: 23/02/2012).

Portanto, os ribeirinhos se especializaram na identificação das

transformações das marés, dos ventos, da movimentação de animais e observam

sinais apresentados em vegetais, tais como floradas, trocas de cor nos troncos e

folhas de árvores, surgimento de frutos. Esses vestígios, sinais e indícios

apreendidos pela observação são socializados a todo instante.

Outras práticas socialmente relevantes verificadas nos espaços, onde os

ribeirinhos sujeitos desta pesquisa residem, são a distribuição espacial de lendas e

dos objetos naturais. Há relatos populares que evocam seres inanimados, contos,

estórias, mitos, causos, que são espacializados. Foram apontados locais de suas

ocorrências: a “mãe d’água” e “cobra grande” habitariam todos os igarapés do rio

Maguari. Existiriam cobras que fariam “mundiações” no “igarapé do paraíso”, que

margeia a localidade Paraíso. A “matinta perera” e o lobisomem habitariam as matas

da localidade. Muitas trilhas e cruzamentos seriam marcados por encantos e feitiços

que limitariam os deslocamentos.

Destacamos, ainda, a presença de pedras, montes, grutas, árvores, córregos

e outros objetos espaciais que, segundo os moradores, somem e desaparecem

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facilmente na comunidade. Todos se localizariam próximos da trilha que liga as

comunidades João Pilatos e Igarapé Grande.

2.3.5 Os Territórios das Lendas

Josebel Akel Fares (2008) realizou uma pesquisa no município de São

Domingos do Capim enfatizando os elementos mito-poéticos das tradições orais

inscritos nas narrativas populares, cujas manifestações expressavam lendas, contos,

anedotas, fábulas e outras formas de expressão de prosas e constatou que:

As narrativas amazônicas são comumente reconhecidas com o nome de marmota, encantado, anedota, remorso e implicam nas histórias de vidas dos narradores, sendo assim não se pode atribuir o caráter ficcional a estas, mas compreendê-la como uma construção em que os saberes simbólicos e imaginários misturam-se e sobrepõe-se. (FARES, 2008, p.102).

Hiran de Moura Possas (2010), investigando as poéticas orais e suas

relações com as manifestações culturais contemporâneas interpretadas pelos

moradores da ilha João Pilatos em Ananindeua identificou que:

Existe um manancial de narrativas presentes no jogo social dos moradores da região das ilhas de Ananindeua. Algumas se assemelham às existentes no universo imaginário amazônico, porém prevalecem as que reatualizam histórias envolvendo criaturas, como a “matinta perera”, curupira e a iara. (POSSAS, 2010, p. 140).

Portanto, predomina no imaginário e linguagem de populações amazônicas

que residem em áreas próximas a rios e matas, um conjunto de estórias, mitos,

assombrações, relatos de seres inanimados que de acordo com os costumes locais,

interferem e se relacionam com a cultura e com o cotidiano das pessoas. Em

Igarapé Grande são comuns os relatos que envolvem: a iara, a “cobra-grande”, o

boto, a “matinta perera” e o curupira:

Estória da Cobra 1 Essa mulher teve um filho, ela era mãe de meu sogro. Ele teve aí no butiquim. Ele era irmão de cobra, meu avô. Aí ela nasceu. Foi o Page que se incorporou para trazer a cobra aí na beira, veio chorando no corpo dele, aí ele se incorporou e veio botar ela aí na beira. A cobra nasceu com o rosto de Page. O nome da cobra era curumicaia. Ela

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desceu pro rio aí, ela desapareceu. Ele apareceu muitas vezes pra mãe dele, mas a mãe dele tinha medo, chamava por ela. Chamava minha mãe, mãe, aí ela ficou assustada e aí ele sumiu chorando, que a mãe dele não queria saber dele, com medo. Ficou com medo, mas sempre a cobra aparecia aí na beira, no meio do igarapé. Todo mundo que passava lá, ela estava esticadona aí no meio do rio. Todo mundo que passava ficava olhando e ela só fazia baixar a cabeça e não fazia mais nada. Nós que vimos! Quando eu cheguei ali no igarapé nós vimos aquela cobra enorme atravessado ali no igarapé do Butiquim a cabeça tava pro lado de lá e o rabo esticado, aí eu corri e fui dizer. Aí eu peguei a canoa eu mais o meu filho. Ela agarrou, aí quando ele ia chegando bem perto assim, ela sentou e quase afundava eu. Aí pronto, eu quase não vi mais [Sic]. (Maria Luíza. Em:13/02/2012).

Estória da Cobra 2 Eu sei que uma vez deu uma lezera em mim, eu não sei o que foi. Tinha uns 22 anos e aí eu fui atravessar esse rio, tem mais de 100 metros. Aí quando eu cheguei lá na ponta do fim, o pessoal conta que eu não me lembrava de nada, aí diz que o botinho ía acompanhando comigo pro outro lado. Foi ele, me ajudou a chegar

do outro lado, o botinho! Aí, é só isso que eu sei o que aconteceu

comigo aqui. Agora tem ali a cobra que já me mundiou, sucurijú! Quando eu tinha meus dezesseis anos a cobra me mundiou na beira, eu tava sozinha, aí eu tive a sorte de chamar meu irmão em terra pra ele vir matar uma paca, porque naquela época a gente gostava muito de uma paca. E aí eu vi aquilo que vinha parece uma paca que vinha pra mim e eu queria pular em cima, já tinha tirado minha blusa, eu tinha 16 anos, eu ia pular em cima da paca, aí meu irmão veio de lá e quando ele chegou na beira ele disse: minha irmã uma cobra! Aí eu já ía pular lá e meu irmão segurou em mim e quando ele engatilhou o rifle a cobra sentou. Era uma cobra que me mundiou! Então quando chega a época de lua, quando é muito forte eu fico meia lezinha. Eu tava pescando siri na ponta do miriti quando eu olhei pra lá eu já tava mundiada eu só via uma paca e não era uma paca era uma cobra. Só quem viu foi meu irmão, eu não vi a cobra, eu vi uma paca. Aí me levaram pra casa e começaram a fazer remédios, negócio aquele do interior: passar alho, passar pimenta malageta, essas coisas assim tudinho passaram em mim, aí eu tornei! Eu só queria comer a paca e era a sucurijú! Não! Foi verdade isso!, Foi verdade! (ênfase). Foi verdade verdadeira mesmo! Eu tô falando, afirmando! Eu tenho 65 anos, foi verdade! Eu tava com meus 16 anos! Eu não vi a cobra que era uma sucurijú [Sic]! (Maria Luiza. Em:13/02/2012).

Segundo os entrevistados, os moradores de Igarapé Grande possuem

respeito, desconfiança e incertezas em relação à natureza. Paraco afirma que já

teve contato com entes sobrenaturais:

A matinta perera pegou não, mas já ouvimos ela apitar, já! Aqui mesmo no local. Aqui em frente de casa. Era uma hora da madrugada quando eu fui ver o barco na beira, quando eu cheguei

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lá, quando eu tava entrando no barco pra ajeitar o barco, aí ela chegou lá e apitou! Aí meu pai falava: é apito de matinta pereira! Fiquei assim, aí ela apitou de Novo! Quando ela apitou eu senti tipo um arrepio! Aí, égua! É matinta pereira! Aí eu corri pra casa. Antes de eu chegar em casa, aqui na frente de casa ela apitou de novo! Aí eu entrei dentro de casa. O pátio tava bem perto, parece que me levantaram pra cima. No pé do ouvido. Aí essa lenda eu vi, vi não, escutei né! Cobra grande só no tempo dos meus pais, dos meus avós tinha. Eles contavam as estórias que tinha cobra grande ali. Tem uma tia minha que conta que a cobra tinha a cabeça de um lado do rio e o rabo do outro lado, aí ela conta pra gente! Eu não vi, mas ela conta que viu [Sic]! (Paraco. Em: 23/02/2012).

2.3.6 Os Territórios das Rodas de Conversas.

Parte considerável dos moradores da comunidade Igarapé Grande possui o

hábito de formar grupos de conversas em frente às suas residências para o relato de

diversas estórias. As rodas de conversas ocorrem diariamente e se formam sem

formalidades, basta o morador sentar-se no banco de madeira construído em frente

à sua residência para mostrar-se disposto a prosa. Percebi que está prática era a

primeira pista ou sinal-convite a ser observado para a realização de um bom “bate

papo”.

Os locais preferidos para a construção das rodas de conversas, que

acontecem no começo das manhãs, são aqueles que apresentam bancos de

madeiras, árvores com folhas grandes para a proteção contra os raios solares e

chuvas, áreas com gramas ou capins para servirem como uma espécie de almofada

para sentarem-se no chão.

Os moradores se põem a descrever estórias surpreendentes que

aconteceram no interior da mata e águas. Os relatos perpassam pelo contato com

assombrações, “mundiações”, caçadas ou enfrentamentos de animais peçonhentos.

As conversas criam e estreitam relações familiares e de amizade, promovem a

convivência e socialização da fala em grupo e afirmação da identidade territorial

ribeirinha.

2.3.7 Os Territórios de Saberes Ambientais

As populações amazônicas e ribeirinhas que estão em contato cotidiano com

a natureza criam e recriam uma série de saberes ambientais. Os saberes estão

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associados à observação dos movimentos das águas, das mudanças de tempo, da

escolha exata na terra para plantio, entre outros.

Para Leff (2009), o saber ambiental adquire uma perspectiva ontológica e

epistemológica, na medida em que não é expresso pela simples soma de

conhecimentos, mas permite reflexões e escolhas de vida. Em comunidades

ribeirinhas o saber ambiental também é visto numa perspectiva ontológica, contudo,

sem grandes abstrações. O saber ambiental é inerente ao desenvolvimento de

práticas educativas, socioeconômicas cotidianas.

Vale ressaltar que o saber ambiental ribeirinho não é a mera realização de

atividades cotidianas, pelo contrário, é discutido e validado socialmente.

Analisando as práticas culturais e territorialidades da pesca artesanal na

“região das ilhas” de Cametá desenvolvida por pequenos pescadores, Silva (2008)

identificou que esses grupos de “populações tradicionais” edificam um conjunto de

sabres socioambientais:

Diferente do saber técnico científico, as relações que os pescadores estabelecem com os rios e matas são conformadas por saberes que estes sujeitos têm construído por meio de suas narrativas e oralidades, por relações que estabelecem um com os outros e com diferentes ecossistemas, ou seja, são saberes que são produzidos na vida cotidiana. Para além do empirismo ingênuo, estes saberes por serem construídos cotidianamente no exercício de suas práticas socioculturais, orientam e informam suas relações e conformam suas atividades produtivas. (SILVA, p. 13).

Portanto, o saber ambiental construído por grupos que estabelecem relações

por meio de contatos direto com a natureza determina a produção de cultura, de

atividades pautadas na sustentabilidade socioeconômica no fazer cotidiano.

Em Igarapé Grande, os ilhéus relataram que os saberes que possuem da

natureza promove o sustento, as festas, a vida das pessoas que vivem na

comunidade e rege os fazeres da pesca, caça, extração e plantio.

O saber ambiental de populações “tradicionais amazônicas” é considerada

como possibilidade de inserção e/ou negação do processo de globalização. O saber

ambiental em poder das minorias, se aplicado para atender aos anseios,

necessidades e interesses da coletividade onde vivem, pode servir como afirmação

da territorialidade ribeirinha frente à globalização.

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O reforço da globalização ocorre quando o saber ambiental das populações

tradicionais é expropriado e usado, unicamente, em favor dos agentes hegemônicos

do capitalismo e negado quando não atende aos interesses dos agentes

hegemonizados da globalização.

No intuito de incrementar a expansão da globalização, o capitalismo propõe o

desenvolvimento sustentável baseado na tríade: economia, sociedade e meio

ambiente. Setores produtivos incorporam saberes ambientais de populações

tradicionais e redefinem novas engenharias em suas formas de atuação visando

ganhar competitividade no mercado.

A sustentabilidade, a continuidade de práticas educativas edificantes da

educação ambiental, o uso e preservação de recursos naturais constituem-se em

grandes dilemas para as populações amazônicas devido à possibilidade e incerteza

quanto a adoção de práticas capitalistas nos afazeres e sociabilidade locais. Este

processo, se ocorrer de forma perversa, pode desarticular e desterritorializar formas

singulares de desenvolvimento local e organização social.

Em Igarapé Grande há certo conflito entre as formas de sustentabilidade

oficialmente propostas pelo INCRA e as desenvolvidas ancestralmente pelos

moradores. A prática de fazer carvão ainda resiste à proibição imposta pelo IBAMA.

Há dicotomia entre a pressão de empresas madeireiras na exploração da floresta

para uso comercial e a continuidade da exploração da mata feita pelos ilhéus que se

configura em prática socioambiental, baseada nas necessidades do sustento local.

Portanto, apesar da proibição da queima do carvão, o produto garante o cozimento

de alimentos e sua queima é uma prática local ancestral que envolve a construção

de saberes ambientais.

Os entrevistados apontaram como sendo “territórios da sustentabilidade”: a

várzea, onde são retirados os frutos de açaí e os vegetais para a queima e

fabricação do carvão; a mata, pois é nela que realizam a coleta de frutos, extração

de cascas de árvores e raízes para produção de remédios, caça e cultivo de

pequenos lotes de terras para o manejo da alface, macaxeira, “cheiro-verde”, limão,

entre outros; e o rio, onde realizam a pesca.

Nos “territórios da sustentabilidade” há a prática de repasse de

conhecimentos ambientais entre os sujeitos para orientar a realização de cultivos

agrícolas, a observação da natureza e uso dos recursos naturais. Contudo, os ilhéus

apontaram a falta de interesse dos mais novos em aprender algumas técnicas

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denominadas por eles de “sobrevivência” que se constituem em ações de

exploração da natureza voltadas para a alimentação.

Através das falas dos ilhéus, foi verificado que os saberes sobre o meio

ambiente estão direcionados ao desenvolvimento de processos educativos

ambientais e afirmação de laços afetivos e culturais que estreitam relações com o

meio físico onde vivem. Brandão (2002) considera a produção da educação como

um movimento constante de ações que orientam a criação e recriação da realidade:

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si mesmo. E realiza isto através de incorporar em diferentes instâncias de seus domínios pessoais de interações (muito mais do que estocagem) de e entre afetos,sensações, sentidos e saberes, algo mais e mais desafiadoramente denso e profundo destes mesmos atributos. (BRANDÃO, 2002, p. 26).

A reinvenção de ações feitas pelos sujeitos amazônicos, dão base à

construção de saberes ambientais voltados a sustentabilidade e do sentido do

próprio existir, a construção de práticas culturais que orientem o cuidado com o

grupo, as relações sociais, interpessoais e com a natureza. Ocorre, assim, uma

reinvenção da natureza, no sentido de ser pensada e usada pelos ilhéus como a

base da existência.

2.3.8 Os Territórios da Religiosidade

Todos os entrevistados desta pesquisa se intitularam católicos. Fato que

contraria a constante expansão de igrejas evangélicas no interior das ilhas de

Ananindeua-PA. A presença de igrejas protestantes ao longo do trajeto sentido

“Porto do Surdo” comunidade Igarapé Grande é marcante. Fato que configura uma

territorialidade de igrejas evangélicas, pois são edificados pequenos templos de

orações às margens do rio do Maguari, onde há presença de pequenas vilas e

povoados, com predominância de famílias de baixa renda. As igrejas evangélicas

acabam por servir como um instrumento de crença em uma vida espiritual e

financeira melhor por parte dos ribeirinhos.

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Em parte considerável dos relatos dos moradores, foi verificada a referência à

proteção de Deus nas situações que envolviam perigo na travessia do rio, no interior

da mata e contra possíveis malefícios que a natureza poderia apresentar. Apesar de

se intitularem católicos, os ilhéus acreditam na existência de seres inanimados:

“matinta perera” , curupira, “mãe d’água” , cobra grande e um conjunto de

“mundiações” que representam entes naturais e sobrenaturais que não seriam

considerados existentes pela religião católica.

Quando edificados em áreas que sofrem a degradação ambiental ou são

fronteiras de exploração de recursos naturais, os entes naturais, na mentalidade de

ribeirinhos, acabam por desempenhar um papel fundamental no controle do uso da

floresta.

Assim, “na representação do ribeirinho esses espaços protegidos por seres

da natureza impõem limites na apropriação e uso dos recursos” (SILVA, 2006, p.

73). Dessa forma, esses “territórios forjados” são configurados como espaços da

possibilidade de promoção da educação ambiental, onde os homens e seres

inanimados se unem no sustento ambiental.

Fares (2008) identificou práticas de proteção e sorte entre os pescadores,

extratores, criadores de animais de São Domingos do Capim-Pa, onde os ribeirinhos

externalizam uma série de saberes religiosos, míticos, culturais:

Muitas são as formas que o ser humano cria para proteger-se desses entes maléficos. Na Amazônia, é comum usar-se como amuleto de proteção e sorte objetos do mundo da cultura e do mundo da natureza: dentes de animais ou de alho, determinados tipos de plantas, partes do sexo da bota, água de jiboia, muiraquitãs, rezas,

benzições. (FARES, 2008, p. 109).

Em João Pilatos, Igarapé Grande, os “territórios religiosos” das crenças nos

entes naturais e sobrenaturais se espacializam por toda a comunidade. Se edificam

nas matas, em frente às residências, pois alguns moradores desenvolvem o hábito

de fixar “dentes de alhos”, ramos de palmeiras, cordões feito de sementes, imagens

de santos e outros objetos para impedir a presença de “mal olhados”, de

assombrações, de males.

A realização do Círio de Nossa Senhora das Graças, que acontece

frequentemente no mês de dezembro, é considerado pelos ilhéus como um

momento cultural de grande importância para os que moram na comunidade. Neste

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evento há o círio das águas que ocorre na ilha João Pilatos. A procissão fluvial parte

da comunidade Igarapé Grande e vai até a comunidade Nova Esperança.

Outro território construído efemeramente com a festa religiosa é o trajeto feito

a pé na trilha que liga as comunidades Igarapé Grande e João Pilatos. Destaca-se,

ainda, o lado profano caracterizado pela semana de festividade do Círio de Nossa

Senhora das Graças, um conjunto de três a cinco dias festivos, denominado pelos

ilhéus de “arraial”.

Os festejos acontecem sempre com a realização de missas na capela da

comunidade e seguem com músicas eletrônicas, consumo de bebidas alcoólicas e

de pratos típicos da região Amazônica, especialmente da maniçoba, do pato no

tucupi e da galinha caipira.

Esses territórios de festas religiosas, mesmo que passageiros, edificam parte

da cultura presente nas ilhas de Ananindeua, pois moradores de diversas

localidades vão às festas, vestem as melhores roupas e aproveitam para se divertir,

estreitar laços de amizade e divulgar parte do turismo ribeirinho local.

Outro “território religioso” que se edifica aos finais de semanas na

comunidade Igarapé Grande, é a realização da missa na capela de Nossa Senhora

das Graças. Em quase todos os domingos, às 18:00h há celebrações.

A participação na missa representa a oportunidade de socialização entre os

ilhéus e de demonstração da fé cristã. A foto 16 revela o espaço da construção de

parte do território da religião católica na comunidade Igarapé Grande:

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Foto. 16 “Território da fé religiosa católica”: Igreja Nossa Senhora das Graças local

para a realização de missas, orações, confissões e afirmação geral da fé cristã.

Fonte. Arquivo do pesquisador.

2.3.9 - Os Territórios de Fazeres Individuais.

A produção do espaço geográfico entre os ilhéus não é marcado pelas

convencionais relações sólidas, materialistas, materialistas dialéticas e

contraditórias, estabelecidas entre os homens e a natureza. Produzir espaço

significa apropriar-se dos fluídos dos rios, construir subjetividades a partir das

plantas, da terra, do ar, da existência de seres animados e inanimados, produzir

cultura.

Para Milton Santos (2008), a idéia de espaço pressupõe o reconhecimento da

ação humana, de ações construídas que são sempre modificadas, das formas

espaciais que são ressignificadas e adquirem constantemente novos sentidos.

Portanto, a apropriação do espaço pelos ilhéus é feita através da

internalização de imagens, socialização de relatos orais, gestos, mitos, lendas e

sentimentos.

O uso da mata não se limita à extração de frutas e animais. A mata, a água e

a terra são os pilares de sustentação de valores culturais cotidianos. Este processo

também se repete de forma variada e “rizomática” em todas as formas de

apropriação da natureza.

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Ao analisar o que os ilhéus concebiam como espaço local, foi constatada a

referência a leitura de paisagens, criação de estórias, internalização de vivências

fundadas a partir das relações culturais, criadas, repetidas e ressignificadas com a

partir da natureza.

O espaço para os ilhéus apresenta em sua essência, a existência de fluxos de

narrativas, deslocamentos e pensamentos integrados em rede de relações culturais,

econômicas, educacionais e ambientais.

Em Igarapé Grande, práticas de gestão coletiva de espaços são realizadas

quando ocorrem eventos culturais e o desenvolvimento de atividades cotidianas.

É importante destacar que nos períodos que antecedem a realização dos

festejos do círio e de eventos culturais, os moradores da comunidade João Pilatos e

Igarapé Grande realizam grandes mutirões de limpeza no percurso da trilha a ser

percorrida na procissão:

Tem o círio, o festival do açaí, o festival dos agricultores que ocorre no segundo domingo de novembro. O círio, também é no segundo domingo de dezembro e o festival do açaí tem vez que é aqui e tem vez que é em João Pilatos. Aí quando é aqui é no segundo domingo de novembro, a gente não faz a festa do agricultor, só faz uma festa é só [Sic]. (Francinaldo do Dumonte Farias – Paraco).

As barracas feitas de madeira e telhado coberto por palhas ou telhas de barro

ficam com suas estruturas montadas na comunidade ao longo do ano. Sempre que

existe necessidade de uso, seja pela escola Domiciano Ramos ou por festejos, as

“casas” de madeira são reutilizadas, bastando apenas a realização de decorações

de acordo com o acontecimento.

As barracas foram construídas entre o barracão e a escola numa distância de

10 metros entre ambos e favorece a identificação do lugar para quem chega na

comunidade quando as festas são realizadas.

A foto 17 demonstra a construções de parte da história cultural da

comunidade. Predomina um princípio pautado na sua preservação:

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Foto. 17 Barracas de uso coletivo. Comunidade Igarapé Grande/Ilha João Pilatos. Em: 23/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

2.3.10 Os “Territórios de Usos de Espaços Coletivos”.

Os espaços definidos pelos entrevistados como de uso coletivo são: o rio, a

igreja, o campo de futebol, o barracão, a mata, a escola.

Os ilhéus relataram que se reúnem em grandes agrupamentos somente em

ocasiões especiais, como a preparação de festejos, reuniões no barracão, atividades

de limpeza de terrenos e promoção de cultos religiosos.

Quando realizam a limpeza de terrenos, são desenvolvidas formas de

comunicações específicas através de convites feitos em “alta-voz”, na frente das

residências ou com a construção de diálogos em trapiches e rodas de conversa.

O barracão localiza-se ao lado da Escola Domiciano Ramos com

aproximadamente 40 metros de distância no sentido do lado esquerdo de quem

chega a Igarapé Grande pela via fluvial. O barracão acaba por constituir-se num

espaço democrático para a construção de diálogos. Ficou evidente que os

moradores se sentem à vontade para opinar, indagar e questionar assuntos de

interesse da coletividade.

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Outro espaço que se constitui em “território de uso coletivo”, para a

construção de conhecimento e socialização de saberes, é a escola Domiciano

Ramos de Farias. Neste local, ocorre a alfabetização e educação geral de crianças e

jovens. A escola apresenta ensino regular de 1ª a 4ª séries iniciais, no período da

manhã e 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, pela tarde.

A precariedade das condições da educação em Igarapé Grande é apontada

pelos moradores quando relatam a não possibilidade de continuarem seus estudos

em grau de nível médio. A educação de nível médio é desenvolvida de forma

intervalar, em períodos de férias escolares, nos meses de junho e janeiro de cada

ano e constantemente há falta de professores para ministrar as disciplinas

curriculares. O ilhéu “O.T.I” destaca que tem o sonho de dar continuidade em seus

estudos afirmando que “nós aqui da ilha sofremos muito com a educação, mas tenho

um sonho de melhorar de vida estudando [Sic]” (O.T.I. Em: 23/02/2012).

As fotos que se seguem apresentam a estrutura física da escola de Ensino

Fundamental Domiciano Ramos. Apesar de ser um espaço educativo confortável e

com boas condições de ensino, a escola não possibilita a continuidade de estudos

aos moradores de Igarapé Grande, especialmente os relacionados ao Ensino Médio.

Foto. 18 “Porto” ou Trapiche na Comunidade Igarapé Grande. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Foto. 19 Escola Domiciano Ramos: comunidade Igarapé Grande. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Foto. 20 Fotos da Escola Domiciano de Farias. Espaço de integração dos ilhéus e socialização de saberes, Comunidade Igarapé Grande. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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O ilhéu “O.T.I” inclui condições de precariedade do ensino na ilha, o uso das

embarcações escolares que, na sua avaliação são desconfortáveis e inseguras, pois

não há coletes salva-vidas para serem usados por todos os alunos em situações

emergenciais e que, apesar de haver uma lancha escolar, seu uso é limitado a

poucos dias da semana devido à constante falta de combustível para abastecê-la.

Identificou, ainda, o barulho do motor das embarcações como inconveniente e que

os alunos já teriam comprometimento da audição.

As fotos 22, 23 e 24 visualizam o retorno dos alunos aos seus lares, após o

término das aulas, o embarque dos alunos e a movimentação dos barcos no

processo de captura e desembarque dos alunos cotidianamente. Ressalta-se que

muitos alunos residem em áreas distantes da localidade Paraíso, onde se localiza a

Escola Domiciano Ramos, fato que agrava, ainda mais, as condições de saúde

auditiva, em decorrência do barulho do motor da embarcação escolar.

Foto. 21 A difícil rotina diária de alunos: retorno à comunidade Nova Esperança, após o término das aulas na escola Domiciano Ramos. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Foto. 22 Espera da embarcação escolar que diariamente “recolhe” para as aulas dezenas de alunos que vivem em diversas localidades das ilhas de Ananindeua. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Foto. 23 Meio de transporte escolar: embarcações partindo da Escola Domiciano Ramos para realizarem os retornos dos alunos as suas moradias. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Na ilha João Pilatos, comunidade Igarapé Grande, há o desenvolvimento de

uma prática social que se configura momentaneamente na edificação de “territórios

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de usos coletivos”, que é a realização da roça no interior da mata. Quando algum

morador sente a necessidade de aumentar sua área de produção, convoca outros

ilhéus para ajudarem na limpeza de terrenos e extração de plantas e frutos no

interior da mata. Foi perguntado ao “Paraco” se os mais jovens participavam desses

encontros destinados à limpeza de terrenos, ele respondeu:

Olha, tem vez que uns se interessam. Tem uns que não estão nem aí. Eles não sabem o que é natureza ainda. Porque pra eles, eles acham que não dependem da natureza. Quanto eu falo que eles estão errados, porque sem a natureza nós não vive [Sic]. (Paraco. I. G. EM 12/02/2012).

Esse depoimento de “Paraco” guarda relação com vários outros relatos

descritos pelos entrevistados, quando apontaram a falta de interesse dos mais

jovens em desenvolver práticas educativas relacionadas ao uso dos recursos

naturais e aos agrupamentos sociais coletivos que ocorrem na comunidade.

Segundo Paraco, “a prática da limpeza de terrenos tem ficado muito limitada aos

mais velhos que já possuem famílias”. Os moradores revelaram certa preocupação

pela não continuidade destas práticas pelos mais jovens e crianças.

2.3.11 Os “Territórios da Possibilidade do Turismo”

Há um imenso potencial turístico a ser desenvolvido nas ilhas de Ananindeua,

especialmente em Igarapé Grande, por concentrar atividades de cultura e lazer que

envolvem festejos religiosos e festivais, como o do pescador e do açaí. Esses

eventos poderiam se constituir em atividades turísticas na ilha e gerar renda,

socializar a cultura da ilha e divulgar as potencialidades naturais desta região.

Tavares (2004) argumenta que são três as tendências de estudos de

atividades turísticas desenvolvidas pela Geografia: a primeira é pautada na

produção do espaço pelos agentes hegemônicos da globalização, que por meio da

formação de redes científico-tecnológicas difundem conexões econômicas e

políticas ligadas ao mercado global; a segunda é marcada pelo “turismo perceptivo”

dos sujeitos em lugares e espaços onde o turismo acontece e a última é

caracterizada pelas representações espaciais do consumo e projeção de imagens

das áreas turísticas.

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A partir das tendências dos estudos turísticos, apontadas por Tavares (2004),

podemos fazer as seguintes relações: na primeira tendência pode ser construída

aproximações com a noção de decalque deleuze-guattariano (1995-97) e do

pensamento abissal de Boaventura (2009), pois, neste caso, a prática turística seria

regida por grandes redes globais expressariam símbolos de poder. Contudo,

Tavares (2004) utiliza-se dos argumentos de Santos (1999) para enfatizar a

resistência do lugar frente à tentativa de homogeneização do espaço turístico; a

segunda tendência apresentaria um caráter rizomático por misturar afetividades,

produção de lugar, vivências, ou seja, edificaria uma multiplicidade de sentimentos

heterogênios e conectados que se constituiriam em filamentos ou raízes

construtoras de percepções de turismo-sociedade-natureza e a última teria relação

com a cartografia das representações de Boaventura Santos (2009), já que diz

respeito às projeções simbólicas em espaços. Fica a ressalva que Tavares (2004)

não estabelece hierarquia entre as tendências de estudos turísticos.

De acordo com os relatos dos ilhéus de Igarapé Grande as práticas turísticas

desenvolvidas nas ilhas seriam precárias. Segundo o ilhéu L.I, é comum a chegada

de embarcações à comunidade Igarapé Grande, onde os visitantes primam pela

verificação da natureza e práticas sociais locais. O morador reclama que

constantemente é convidado a orientar os que chegam e repassar informações

sobre diferentes espécies de matos, caminhadas no interior da mata e espécies de

bichos. Considera-se explorado, pois não recebe nada em troca e afirma que

sobram apenas os lixos deixados pelos turistas.

O Sr. Nazareno Farias é reconhecido por todos como um grande orador e

conhecedor dos elementos naturais da mata. Afirma que frequentemente é

procurado por visitantes, pesquisadores e representantes de órgãos oficiais para

falar dos saberes da mata. O Sr. Nazareno, atualmente, exerce função técnica na

Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Tal situação, além de ser um

reconhecimento do notório saber do ilhéu é uma prática de cooptação da

administração municipal, muito comum na ilha.

A administração pública de Ananindeua não dá a devida importância para os

eventos culturais que se desenvolvem na ilha João Pilatos. Estes eventos poderiam

ser constituídos em espaços turísticos, possibilitando o desenvolvimento

socioambiental local e envolveria a geração de emprego e renda, além de meio de

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divulgação e aproveitamento-socialização das potencialidades naturais, religiosas e

culturais presentes na ilha.

Foram elencadas pelos entrevistados como possibilidades turísticas locais: a

realização de trilhas no interior das matas, o banho no igarapé “Grande”, chamado

assim em referência à ilha comunidade Igarapé Grande e a grandiosidade e

sinuosidade do rio Maguari, o campo de futebol para lazer, os festivais do açaí e dos

pequenos agricultores, o Círio de Nossa Senhora das Graças e seus festejos, o

artesanato local, a cultura e a alimentação locais.

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3 CAPÍTULO: CARTOGRAFIA DE SABERES SOCIOAMBIENTAIS E

PRÁTICA

S DE SUSTENTABILIDADE LOCAL

3.1 PROCESSOS EDUCATIVOS E SUAS RELAÇÕES COM LEITURAS DE

PAISAGENS.

Em comunidades ribeirinhas amazônicas é comum o desenvolvimento de

processos educativos feitos a partir da observação e leitura de elementos naturais.

As crianças desde cedo aprendem com os mais velhos a interpretar o significado

das mudanças de tempo, das cheias dos rios, das trocas de cores de vegetais, o

aparecimento de determinados animais. A transmissão de saberes sob o meio físico

se constituem em práticas educativas realizadas por relatos orais cotidianamente

desenvolvidas e que orientam a apropriação e significação da natureza. Ler

paisagens para os ribeirinhos representa significar a cultura, afirmar a identidade e

educar para a sustentabilidade.

O conceito de paisagem, assim como o de lugar, região, território e espaço, é

bastante diverso e está rotineiramente relacionado às formas e processos espaciais

(naturais e humanos) materializados e “congelados” no espaço.

Ler a paisagem significa fazer um “registro fotográfico", ou seja, captar num

certo período de tempo uma fragmentação do espaço onde a pessoa está situada.

Fato que implica descrever aquilo que os olhos podem observar.

Relatar certa paisagem significa “fotografar” aquilo que está à sua frente e

descrever os pormenores desta imagem especificando detalhadamente o que foi

observado. É a captura do espaço numa fração de tempo. Para Milton Santos (2008)

a paisagem não é a mesma coisa que o espaço:

Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas e mais a vida que as anima. (MILTON, 2008, p. 102).

A paisagem não se opõe ao espaço, ela faz parte do espaço, afinal, não

haveria paisagem se não houvesse as formas e processos espaciais. A paisagem

representa o relato de um fragmento do espaço e o espaço é o relato da vida, da

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dinâmica, da história de ontem, hoje e de tudo que imprime transformações nos

locais físicos onde vivemos.

Apesar de ser relacionada à descrição de impressões momentâneas de

determinados locais, a paisagem nunca seria a narração de fatos isolados, ela não

estaria estática, revelaria a ocorrência de processos que envolveriam as

modificações do tempo e espaço.

Os ribeirinhos amazônicos são hábeis leitores de paisagens. Segundo Silva

(2007, p. 53), “a relação que estabelecem com a paisagem, considerada [...] como

resultante dos processos interativos natural e cultural, e não na perspectiva estética,

é como suporte de reprodução material e simbólica”. Neste caso, o conceito de

paisagem foi significado a partir de práticas sociais e ambientais ribeirinhas.

Ler a paisagem, para os ilhéus entrevistados de Igarapé Grande, tem a ver

com a identificação de elementos naturais visíveis. Entre as paisagens que os

ribeirinhos mais destacaram nos relatos estão: a existência da imensa floresta

presente nas ilhas, o rio Maguari com toda a sua exuberância e extensão e os

caminhos de terra que margeiam a comunidade.

Os ilhéus de Igarapé Grande desenvolvem práticas de educação ambiental

que envolvem a leitura de paisagens. Ler paisagem pressupõe planejar os afazeres

cotidianos por meio da observação das vazões dos rios, coloração das folhas dos

vegetais, umidade dos solos, movimentação das folhas e galhos dos vegetais a

partir das ações dos ventos, dentre outras práticas.

Para o ilhéu “Paraco”, é preciso, antes de realizar a atividade da coleta do

açaí, perceber as mudanças do tempo, as cores das árvores e saber se o fruto do

açaí já está pronto para ser coletado:

Eu percebo quando o açaí tá bom é quando ele tá cinzento. O local de plantação de açaí tem que ser úmido, em várzea, porque ele depende da água. Para sobreviver nós usamos o açaí, a gente vai lá apanha, amassa pra tomar aquele açaí [Sic]. (Paraco. Em: 23/02/2012).

O reconhecimento do estado da natureza é uma das lições aprendidas desde

a infância, funcionando como uma pedagogia de leituras de paisagens.

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3.2 CONSTRUÇÃO DE MAPAS, ESCALAS, LEGENDAS E LIMITES ESPACIAIS

FEITOS A PARTIR DE SABERES E PRÁTICAS SOCIOEDUCATIVAS AMBIENTAIS

O mapa para a cartografia oficial é uma forma de representação de

fenômenos naturais e sociais da superfície terrestre. De acordo com esta tendência

o mapa tem a função de permitir apresentar num plano os objetos observados sobre

a superfície terrestres, ao mesmo tempo na sua posição absoluta e nas suas

relações em distâncias e em direções (JOLY 2007 p. 15).

Enquanto instrumento de representação de certos fenômenos, a construção

de mapas cartográficos está sujeita a distorções. Para Duarte (2006, p. 115), todo

mapa é uma representação esquemática e reduzida da superfície terrestre. Esta

redução se faz segundo determinada proporção entre o desenho e a superfície real.

Para Seemann (2001), os mapas são representações, mas não é a própria

realidade, pois nenhum lugar ou processo social pode ser reproduzido sem

distorções e ser a própria realidade.

A cartografia ampliou seu campo epistemológico e metodológico a partir da

consideração de relações tecidas entre os sujeitos e suas formas de representação

espacial. A cartografia oficial vem sendo questionada e abalada, por novos

processos de mapeamentos que evidenciam o uso de linguagens espaciais

cotidianas, de subjetividades e identidades territoriais, de saberes de populações

tradicionais e fenômenos sociais que se configuram em mapas. Assim, “quando as

comunidades tradicionais, camponesas ou quilombolas pensam em fazer sua

própria cartografia, elas não estão pretendendo simplesmente retratar o espaço

físico, mas afirmar seus modos de vida.” (ACSELRAD, 2010, p.5).

A figura a seguir foi construída com a ajuda dos sujeitos da pesquisa, usando

o Sistema de Posicionamento Global (GPS) e destaca-se a distribuição geométrica

das casas dos ilhéus:

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Figura. 1 – A figura da cartografia rígida evidencia a distribuição espacial das residências de moradores assentados pelo Projeto de Assentamento Agroextrativista, na localidade Igarapé Grande ilha João Pilatos. Em: 09/02/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

A próxima figura revela a cartografia da distribuição socioespacial e natural da

comunidade Paraíso, ilha João Pilatos. Fica o registro de que este mapa foi feito a

partir de uso de tecnologias modernas. A cartografia oficial cede lugar à cartografia

da memória. Um conjunto de lembranças, memórias e subjetividades foram

consideradas nesta mistura de mapa “cotidiano-tecnológicos”.

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Figura 2-A figura da Cartografia Relativizada: ilustra os recursos naturais disponíveis e as paisagens sociais que marcam os espaços físicos de Igarapé Grande. Os locais relevantes foram apontados pelos moradores. Em: 15/04/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador

O mapeamento de práticas culturais ou socioeducativas pode ser feita de

diversas maneiras. Em Cametá, no estado do Pará, foi realizada uma cartografia de

saberes da pesca que marca a territorialidades de pescadores nos locais onde

realizam a sustentabilidade de suas famílias. Os saberes foram sistematizados por

Silva ao evidenciar que:

Neste trabalho, a expressão cartografia assume o sentido de processos mentais que indicam não só o traçar dos espaços de vivências, mas, também, as práticas culturais e saberes que conformam modos de vida e mobilizam procedimentos cognitivos dos pescadores e suas famílias. (SILVA, 2008, p. 2).

Portanto, a “cartografia não formal” representa a possibilidade de

entendimento de saberes e práticas socioambientais e culturais que regem territórios

de narrativas orais, de mapas mentais, de pesca, de caça, de coleta e de variadas

formas de interação com a natureza, de grupos locais na Amazônia. A dinâmica de

vida de ribeirinhos configurada na construção de mapas a partir de relações

cotidianas é destacada por Corrêa (2008, p. 34):

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As comunidades rurais-ribeirinhas apresentam traços característicos afins heterogêneos, que desempenham suas paisagens identitárias sociais, culturais, políticas, econômicas e ambientais num mapa amplo e complexo, que caracterizam as sociedades rurais amazônicas pela diversidade e multiculturalidade.

Esta cartografia não rígida foi identificada nas percepções sob o meio físico

que os ilhéus de Igarapé Grande construíram. Andar, seguir, ir, dobrar, entrar, sair e

se deslocar constituíam processos cartográficos que representavam mapas. Havia

uma lógica espacial nos percursos feitos pelos ribeirinhos no interior e exterior da

comunidade.

Os mapas mentais reportam lembranças espaciais carregadas de

significados. Relacionam-se à conjecturações e símbolos “forjados” por grupos nas

formas como produzem e usam espaços e que, para Seemann (2001, p. 66), estão

associados aos percursos realizados:

O pensamento do e sobre o espaço, portanto, também pode-se manifestar em formas não-materiais, e muitas vezes simbólicas, como gestos, rituais, canções, poemas, danças. Em vez de escrever um percurso através de um desenho, outras culturas com uma noção diferente do binômio espaço-tempo recorre a uma “performance” do espaço.

A cartografia da “memória espacial” revelada por Seemann é descrita por

Silva (2007, p. 73) numa outra perspectiva, onde os costumes e tradições de

ribeirinhos “sustentam-se em memórias/discursos genealógicos (seus ancestrais) e

em uma memória social (orientações econômicas, sociais e simbólicas) que preside

o lugar”. Neste caso, há o vínculo, demarcação e fixação da identidade territorial.

Os mapas mentais narrados pelos ilhéus entrevistados em Igarapé Grande

expressam produções mentais que evocam acontecimentos em lugares, espaços

vividos, percorridos e apreendidos. O ilhéu Paraco narrou um saber cartográfico

socioambiental ligado à pesca quando socializava em rodas de conversa a

existência de um mapa mental com conotações espaciais. Descreveu

detalhadamente o melhor local para a captura de peixes no rio Maguari.

Na pesca tem que saber a profundidade, a hora da maré. O melhor horário da maré é na reponta. A reponta é quando a maré começa encher. Tem vários horários. Diariamente ela vai mudando. Na reponta a gente pesca. É o horário do peixe.

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O melhor local de pesca é no meio do rio. A gente já sabe o local certo. É na malhadeira que é um tipo de rede que é pra pegar peixe [Sic]. (Paraco. Em: 23/02/2012).

Os ilhéus desenvolvem a habilidade de reconhecer pontos e locais

específicos na natureza para realização de atividades diárias tais como a pesca e a

coleta de frutos. Estes locais são memorizados e formam uma cartografia mental de

saberes e ações socioambientais.

Outro elemento importante para a construção de mapas é a escala que, de

modo geral, tem a ver com a representação de distâncias de áreas de um mapa.

A cartografia oficial define escala como a representação precisa das

distâncias. A escala para Joly (2007, p. 20), “é a relação constante que existe entre

as distâncias lineares medidas sobre o mapa e as distâncias lineares

correspondentes, medidas sobre o terreno”. Castro (2001) critica o conceito de

escala associado à medição de distâncias pela sua imprecisão e reformulações

teóricas sobre o assunto especialmente na geografia:

Como resumo matemático fundamental da cartografia a escala é, e sempre foi, uma fração que indica a relação entre as medidas do real e aquelas da sua representação gráfica. Porém, a conceituação de escala, como esta relação apenas, é cada vez mais insatisfatória, tendo em vista as possibilidades de reflexão que o termo pode adquirir, desde que liberto de uma perspectiva puramente matemática. (CASTRO, 2001, p. 117).

Neste trabalho a escala é entendida como o ato de percorrer distâncias, sem

preocupações métricas, matemáticas e relaciona-se aos percursos feitos a partir de

significâncias, lembranças, memórias e prazeres junto ao meio físico, funcionando

feito uma “cartografia de escalas mentais”.

Na cartografia mental a distância torna-se imprecisa e relativiza o percurso

espacial. O percurso do ribeirinho no interior da mata ou ao longo de um rio não se

“amarra” a uma escala ou a uma distância métrica, depende muito da carga de

significado, ações, lembranças, fatos, acontecimentos nele vivido.

O Sr. E.S.A relatou uma prática de educação ambiental que desenvolve

quando realiza o percurso de canoa ou rabeta no rio Maguari, onde se põe a retirar

lixos produzidos nas áreas urbanas e despejados nos recursos hídricos. Esta

cartografia da escala está relacionada com as lembranças de trajetos onde se

desenvolvem o cuidado com a natureza:

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Aqui nós temos muito cuidado. Aqui nós não faz e não deixa jogar nada de lixo no rio. Essas garrafas, as nossas que nós consome nós toca fogo aqui mesmo na terra. Porque olha, muitas pessoas acha que a gente vai, de própria Ananindeua, no Curuçambá a gente vê tudo que eles a limpam jogam num braço do rio [Sic] (E.S.A. Em: 07/02/2012).

Neste caso o que menos importa é a definição de uma escala para especificar

a distância percorrida. Uma narrativa repleta de detalhes e minúcias de um espaço

físico pode ser permeada de acontecimentos significativos onde o mapa criado é rico

em fatos. Por outro lado, se grandes percursos forem feitos sem carga de

significância as distâncias narradas se tornarão estéreis.

Portanto, a escala está relacionada à arte de narrar e à possibilidade de viver

situações cotidianas subjetivas. Quanto maior apropriação da arte de narrar e da

internalização de fatos e sentimentos, maior será a carga de sentido e conteúdo

atribuído ao percurso, à escala.

A “escala simples” surge de percursos espaciais simples sem significâncias. A

escala complexa resulta da absorção de imagens, ações, estórias e narrativas que

servem para “medir” as singularidades das distâncias.

Assim como a escala, a legenda também é elemento essencial na construção

de um mapa, pois de modo geral sua função é facilitar a leitura e entendimento de

mapas.

Na cartografia normativa a legenda tem a função de permitir a leitura do

mapa. As legendas são formadas por ilustrações: desenhos variados, cores, figuras

geométricas (pontos, linhas, rotas tracejadas, triângulos, etc.), que localizam e

ilustram locais ou processos a serem evidenciados. Joly (2007, p. 17) entende a

simbologia cartográfica como “um conjunto de sinais e de cores que traduz a

mensagem expressa pelo autor”. Segundo Duarte (2006, p. 180), “juntamente com

os símbolos, traços e letras, as cores fazem parte dos mapas e devem ajudar para

uma composição harmoniosa de todos os seus elementos”. Portanto, a função da

legenda é promover a leitura e entendimento dos mapas.

Quando a legenda é flexibilizada e tratada numa perspectiva semântica, sua

essência muda. A “legenda relativizada” compreende a leitura subjetiva que se faz

do espaço e dos objetos espaciais.

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Quando os sujeitos, através da observação e do tato, identificam matas,

trilhas, rotas, lugarejos, locais, pontos, lugares, ruas, caminhos, entre outros,

constroem uma legenda de sentido diverso e prático, sem considerar a rigidez dos

símbolos. Nesta perspectiva, perguntamos: qual o significado de uma árvore para o

ribeirinho? Uma árvore pode representar o limite de um terreno, um ser vivo

“integrante” de uma família, fonte de sustento, recurso natural, possibilidade de

lucro. A polissemia de usos e sentidos dos elementos de uma “legenda relativizada”

é o que marca sua existência.

A “legenda flexível” depende de cada indivíduo e de grupos de pessoas que

estabelecem convenções cartográficas para realizarem a leitura espacial. Assim, “os

mapas resultantes, sejam concretos ou mentais, são paisagens seletivas conforme a

intenção dos seus autores” (SEEMANN, 2001, p.71).

As legendas possibilitam a leitura de espaços. Os ilhéus de Igarapé Grande

identificaram igarapés, córregos, pedras, terrenos argilosos, áreas de várzeas, tipos

de vegetação, áreas de igapó, margens dos rios e caminhos como elementos que

viabilizam a leitura espacial.

Outro elemento importantíssimo na elaboração de mapas é o limite que tem a

ver com a representação de áreas limítrofes de um mapa. Na cartografia oficial, em

geral, a função do limite é dizer onde começa e até onde vai o mapa.Todo mapa

apresenta um limite cujo objetivo é delimitar a localização e a extensão de áreas.

Oficialmente, os limites determinam a extensão das áreas e terras em que o mapa

foi formado. Para Joly (2007, p. 118):

Um mapa é preciso quando a posição dos objetos e dos lugares representados é rigorosamente semelhante àquela que esses objetos e esses lugares na realidade ocupam no terreno. Nessas condições e nos limites do sistema de projeção adotado, o mapa fornece ao leitor o máximo de garantias para que nele sejam praticados raciocínios e medições nas melhores condições.

Os limites rígidos de um mapa podem ser áreas de influência de empresas,

espaços de atuação de órgãos oficiais, áreas de ação de sindicatos ou de ONGs.

Nesta perspectiva, os “limites rígidos” de um mapa são criações fundadas em leis,

cercas, muros de propriedades e porções territoriais precisamente demarcadas. A

definição de “limite frouxo” ou flexível que neste caso é entendido como a oposição à

ideia de limite enquanto linha que demarca dimensões de terrenos ou áreas, criado

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com a consideração de elementos físicos naturais, feitos por populações que vivem

à beira rio na Amazônia, é discutida por SILVA (2007, p. 53) ao afirmar que:

Sob o olhar acadêmico, a paisagem construída representa o espaço de vivência cuja delimitação na representação local não é feita rigorosamente, uma árvore, um igarapé pode funcionar como a linha demarcatória dos lugares. O que significa que essas comunidades não se fecham em seus territórios.

Esta concepção de limite flexível, não rígido, baseado em elementos naturais

e entendidos como pontos que levam a “fronteiras rizomáticas” foi identificada nas

falas dos sujeitos entrevistados na comunidade Igarapé Grande. Nesta localidade

predomina uma convenção coletivamente construída sobre os limites de terrenos de

cada família. A convenção não se baseia em aspectos formais via leis, títulos de

posse de propriedades ou pela construção de cercas. Cada família sabe bem onde

começa e termina seu terreno.

O “limite rizomático” e flexível é formado entre os ilhéus de Igarapé Grande

quando adentram os terrenos um dos outros para retirarem frutas, tomarem banho

de igarapé e realizarem outros afazeres, que na maior parte dos casos, ocorrem

sem desentendimentos. Para cruzar o espaço do vizinho basta, emissão de sons

como assobios, palmas e divulgação de chamados, tais como: alô, olá, “dom de

casa” para mostrarem-se aos proprietários de terrenos e terem autorizações para

cruzá-los.

Os “limites flácidos” para os moradores de Igarapé Grande não apresentam

cercas, muros ou placas de sinalização. O que importa para os moradores é cruzar

espaços, erodir barreiras e ultrapassar pontos naturais que sejam “duros”. Para

Deleuze e Guattari (1997, p. 38), o deslocamento “descompromissado” constitui o

fluxo num “espaço liso”:

O espaço liso é um campo sem conduto nem canais. Um campo, um espaço liso heterogêneo, esposa um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem “medi-lo”, e que só se pode explorar “avançando progressivamente”.

No projeto de assentamento agroextrativista, o estado tentou estriar o espaço

local demarcando limites métricos entre os loteamentos. Os moradores não

consideraram estas relações matemáticas e continuam realizando fluxos variados de

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deslocamentos e produção. Este processo representa a dinâmica de territorialização

do espaço liso sobre a territorialização do espaço estriado ou métrico que para

Deleuze e Guattari (1997, p. 14):

Não é em absoluto o mesmo espaço: no caso do xadrez, trata-se de distribuir-se num espaço fechado, portanto, de ir de um ponto a outro, ocupar o máximo de casas com um mínimo de peças. No go, trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de seguir em qualquer ponto: o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. Espaço “liso” do go, contra espaço “estriado” do xadrez. Nomos do go contra estado do xadrez, “nomos” contra “polis”.

Os limites físicos na Comunidade Igarapé Grande são desfeitos pelos

“trajetos frouxos” e reterritorializados pelos discursos baseados em relatos e

estóriais de cunho espacial.

A convenção maior dos ilhéus na demarcação de limites, não se baseia em

papéis legitimadores de posses, o que vale é a descrição de espaços,

especialmente pelos que habitam há mais tempo na comunidade.

A narrativa coletiva de espaço feita pelos ilhéus é tida como uma “Suprema

Corte” que define limites e propriedades. Não é o melhor discurso que impõe limites,

mas os aceitos em convenções coletivas, onde a fala dos mais velhos ditam as

normas e outorgam decisões de limites físicos. Para o ilhéu I.D.F (2012) as estórias

contadas valem mais de qualquer papel:

Resta dizer, meu amigo, que o nome do terreno do meu avô, tá no documento, mesmo, “Paraíso”, esse terreno aqui. Por que ele colocou o nome desse terreno “Paraíso”? Porque quando ele casou, era só ele e a mulher, dele minha vó. Os pessoal chegavam lá, olha rapaz, mas tú moras aqui? Tu moras num paraíso! E com isso ele colocou o nome do terreno no documento, “Paraíso [Sic]” (I.D.F/2012).

Foi verificado que as famílias se debruçam no desenvolvimento de relatos

sobre a história dos lugares da comunidade. Os relatos acabam se constituindo num

processo de educação espacial.

As memórias dos antepassados são revificadas pelas narrativas que trazem

em sua essência as demarcações de lugares. Para Certeau (2011, p. 176), o lugar

envolve lembranças que são reificadas pelas caminhadas:

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Os lugares são histórias fragmentadas e isoladas, dos passados robustos à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim, simbolizações esquistadas na dor ou nos prazeres do corpo.

Ao chegar à comunidade Igarapé Grande para iniciar a pesquisa de campo,

em agosto de 2010, chamou-me a atenção à espacialização das residências.

Nenhuma moradia apresentava a construção típica de casa ribeirinha, ou seja, feita

de madeira, com pernamancas fincadas bem acima do nível da água prevenindo

contra prováveis enchentes e sem a edificação de pontes feito “trapiches”. O

entendimento dessa forma de espacialização das residências só foi possível pelo

relato do Sr. Antônio Farias, quando afirmou que seu avô Domiciano Farias, primeiro

proprietário das terras da Localidade Igarapé Grande, “vila Paraíso”, distribuiu lotes

para seus filhos, preservando a várzea:

Aí, os meus avôs, antes deles morrerem dividiu esses lotes de terras pra fazer sua casa, suas benfeitorias. Agora a várzea ele não dividiu. Era pra ser usada pelos mais espertos para poder trabalhar. Aí minhas tias foram casando tudo, os maridos delas tinham terrenos tudo, aí elas foram embora e me chamaram: - Meu filho, tu quer comprar este lote de terra aqui? Eu tinha um dinheiro que naquele tempo eu era trabalhador. Aí eu ia comprando. Faz de conta que eu era uma firma e ía, indenizei pra ela. Aí eu segurei isso aqui tudinho. Aí tinha dez filhos e fui dando um terreno pra cada um [Sic]. (Comunidade igarapé Grande-Ilha, João Pilatos, 01/02/2012).

Esta espécie de relato de lugar constitui uma fonte histórica de educação

espacial e ambiental relacionada ao uso da natureza que é reproduzida pelos mais

velhos e respeitada pelos mais novos, pois nenhum morador se atreve a ferir essa

regra social construída e seguida ao longo das gerações. Ninguém, até hoje,

construiu habitação e nem transformou a várzea de forma significativa.

A educação ambiental-espacial coletiva de preservação da várzea busca a

conservação de um conjunto de paisagens e formas espaciais que se reportam aos

antepassados. Preservar a várzea significa retificar a memória histórica do lugar. A

várzea é usada apenas para banho, pesca e atracação de barcos. Demarca um

limite, sem convenções formais e sem a afirmação da propriedade, pois o que vale

para os ilhéus são os valores culturais e a educação ambiental presentes a seus

moldes.

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Para Silva (2008, p. 7), há a criação de um vínculo forte que liga os

moradores que habitam áreas predominantemente naturais com espaços físicos:

Quais são os laços sociais que fundam esse sentimento de apego ao lugar? Como se constrói essa identificação social que toma como referência os nomes do lugar? Esses laços atravessam diferentes imagens e fronteiras sucessivas e constituem-se por meio de encontros em pequenos mundos relacionais que povoam aquele território e que, ao conferirem sentido, constroem uma identificação sociocultural.

A valorização da memória entre os moradores de Igarapé Grande constitui-se

em processo de afirmação de autoridade, respeito e legitimidade. A memória

reanimada, reafirmada e construída em grupo, corrobora para a edificação de

valores coletivamente aceitos e dizem respeito à afirmação da ancestralidade e

cultura local.

Para Fares (2008, p. 2), “a memória alia-se à tradição no sentido de que

ambas são coletivas e, de certo modo, instalam modelos, padrões, guardam

experiências do grupo social”. Neste sentido, a memória representa resistência,

ancestralidade, identificação com o lugar e fronteira quando para o entendimento da

realidade amazônica, são considerados saberes e conhecimentos locais.

Silva (2006, p.75) destaca a importância de se reconhecer os saberes

ribeirinhos que a cultura científica dominante fez questão de excluir e cujo processo

de resistência seria mediado pela consideração de “valores, práticas, ensinamentos

e atitudes pelos diversos atores sociais, são frutos de uma memória herdada,

aquelas contadas ou repassadas por seus antepassados”.

Para Brandão (2002), somos a extensão da natureza e imprimimos nossas

marcas através de nossas ações e concepções de mundo:

Não somos intrusos no Mundo ou uma fração da Natureza rebelde a ela. Somos a própria múltipla e infinita experiência do mundo natural realizada como uma forma especial de vida: a vida humana. Da mesma maneira como boa parte dos animais, somos corpos dotados da capacidade de reagirem ao ambiente em que vivem e onde reproduzem, enquanto isto é possível, a vida individual e coletiva de sua espécie. (BRANDÃO, 2002, p. 17).

Silva (2007) destaca a necessidade de compreensão das formas como as

“sociedades tradicionais” organizam suas práticas sociais e se relacionam com a

natureza para que, quando problematizadas, promovam a interface entre saberes

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políticos e saberes práticos e incentivem discussões e conjecturações sob a

construção de outras formas de sustentabilidade feita a partir da cultura local. A

relação sustentabilidade e saber local, segundo SILVA ( 2007, p. 2):

Tem como pressuposto que o saber cotidiano desses sujeitos além de orientar suas práticas socioambientais, permite resolver problemas práticos e imediatos, como manejar os recursos da floresta de forma sustentável, garantindo de maneira sistemática a sua reprodução social e cultural e de seu grupo familiar.

Portanto, a análise da espacialização ou territorialização de saberes

associados ao meio físico fundantes da demarcação de “limites frouxos”, em parte,

permitem entender como populações amazônicas se relacionam com a natureza,

constroem cotidianos e cultura.

3.3 O SISTEMA “RIO MAGUARI-RIZOMA”.

Como não relacionar o rio Maguari às discussões sobre rizoma, propostas por

Deleuze e Guattari (1995, p. 97). A comunidade Igarapé Grande não pode ser

entendida sem o rio Maguari. As relações servem de base para reflexões que

orientem problematizações referentes às mudanças, incertezas nas definições e

direções, diversidades, heterogeneidades, multiplicidades e discussões sob

cristalização-fluidez que envolvem rio-comunidade, ciência e sociedade, territórios e

subjetividades, cultura, identidade e saberes ambientais.

Importante elo fronteiriço entre a vida social dos ilhéus com os espaços

urbanos e ponto de encontro e de afirmação dos valores culturais das populações

das ilhas do município de Ananindeua, o rio Maguari é considerado um dos rizomas

mais importantes analisados nestes lugares, devido sua importância e influência,

especialmente para quem vive em contato permanente com este recurso natural.

O “rizoma-rio Maguari” configura-se como um sistema, pressupõe integração,

processualidade, mudanças. Determina e é determinado por relações e teias

formadas e ligadas nas formas de uso, saberes e práticas sociais dos ilhéus, no

movimento das águas, na dinâmica física das marés, de leis e processos naturais.

Neste caso, o sistema permite o entendimento dos fenômenos sociais de

forma holística, sem hierarquias nas ações e percepções do mundo, da cultura, da

natureza. Este sistema “rio-rizoma” permite a criação de saberes e é modificado

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como a transformação de saberes materializados por meio de práticas sociais, como

a pesca, a realização de percursos, de apropriação e uso de seus recursos, da

degradação, entre outras.

A água é um rizoma. É fluída e se adapta aos espaços. Suas formas imitam

raízes que crescem em inúmeras direções. “Braços”, córregos, olhos d’águas, poços

amazônicos, terrenos de igapó e de várzea são abastecidos pelas águas dos rios e

das chuvas. O rio está em constante renovação. Tudo que entra em contato com ele

é carregado, acompanha movimentos redesenhados constantemente.

As águas do “rio-rizoma Maguari”, esculpem as margens feito mãos de um

pintor guiando o pincel num quadro. Tudo carregam para uma direção que parece

incerta. Como não há barragens, o modelo de decalque entra em ebulição, não

encontra espaço no rio, é descaracterizado pela predominância de processos em

cursos. Processos erosivos, de depósito e retirada de sedimentos, da fluidez da

água e da cultura ribeirinha. Tudo sofre metamorfose e forma mapas.

A chuva é um rizoma que participa do sistema “rio-água-rizoma-Maguari. O rio

para o ilhéu não é somente rio-água. Só adquire sentido quando é apropriado,

usado, amado, admirado, odiado. O rio é respeitado. Todos sabem de seus perigos

e imponência.

O rio Maguari se constitui numa fronteira física e cultural. Marca os limites

físicos das ilhas e o percurso que pode ser feito para edificação de subjetividades

culturais dos “povos das águas”.

O Porto do Surdo, no bairro do Curuçambá, é apenas um ponto dentro do

sistema “água-rizoma”, pois nas margens do rio Maguari existem incontáveis

trapiches, escadinhas, árvores derrubadas e “tabuados” que servem de caminho

para as águas e que se configuram como redes complexas de comunicação, de

espaços para a comercialização, para a produção de subjetividade e de memórias

que são ratificadas pelos fluxos “raízes-águas”.

O rizoma “rio-água Maguari” e sua fluidez é identificado numa outra

perspectiva de acordo com a fala do Sr. E.S.A:

Esse rio nosso aqui, mestre, é muito importante para nós porque nesse rio nosso aqui aonde nós quisermos ir nós vamos. Esse rio aqui nós vamos para Ananindeua, Curuçambá, Icoaraci, Marituba e até Belém. Nós pega o barco aqui, isso é nosso transporte e isso é muito importante pra nós. Deus me defenda sem esse rio [Sic]. (E.S.A – I.G. Em: 07/02/2012).

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A heterogeneidade do uso do rio ou “rio-rizoma Maguari” pode ser

reconhecida por meio da prática de banho após o jogo de futebol e nos momentos

de lazer, na construção de estórias e contos, no aumento da fertilidade das terras

decorrentes dos períodos chuvosos.

A multiplicidade de uso e significado do “rio-rizoma Maguari”, também tem a

ver, com a expressão da fé em Deus nos trajetos e a satisfação de ter próximo a

exuberância de um recurso importante:

E essa água pra gente aqui é praticamente água mineral e a água daqui é gostosa e é muito importante pra nós, graças a Deus. Água aqui nunca faltou pra nós. Eu tenho boa fé em Deus que nunca vai faltar [Sic]. (E.S.A – Igarapé Grande. Em: 08/02/2012).

O “rizoma rio Maguari” foge da subjetividade e sofre com a vida real. Segundo

relatos dos moradores, o maior foco de poluição das águas advém da cidade de

Ananindeua. Os esgotos e lixos originados de parte da Região Metropolitana de

Belém são depositados diretamente no rio. Relatos dos entrevistados denunciaram a

poluição das águas, a redução da quantidade de peixes e camarões, a existência de

entulhos, sacos e garrafas nas águas interferindo na qualidade de vida dos

moradores. Segundo depoimento do Sr. E. .S. A práticas de educação ambiental e

preservação do rio são realizadas com frequência na comunidade:

Um galho de tucumanzeiro jogam na água e vai pro fundo, afunda ali fica enterrado e a gente vai tomar banho pisa ali em cima, né pai? Já vai furar o pé! Não pode fazer uma coisa dessa! A gente tem que limpar o igarapé. Um galho, se a gente vê um pau grande nós vamos lá e tira do igarapé. Se nós vê alguma coisa aqui no igarapé que vai fazer o mal não só pro igarapé, mas pra nós também. Nós vamos lá e tira mesmo [Sic]. (E.S.A – Igarapé Grande. Em: 08/02/2012).

O “rio-rizoma Maguari” dicotomiza realidade e subjetividade, margeia a vida,

cultura e práticas sociais dos sujeitos entrevistados. Lembranças e economia se

entrelaçam. Lazer e banho se interceptam. Degradação e preservação apontam

filamentos interligados. “O rio-rizoma Maguari” expressa fronteira, cultura e

identidade e diversidade dos povos ribeirinhos de Ananindeua.

3.4 O SABER SOBRE O MEIO FÍSICO E A SUSTENTABILIDADE

SOCIOAMBIENTAL EM IGARAPÉ GRANDE

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Eu tinha um irmão que morreu com guariba ali mesmo no rio Santa Rosa e a dor que apareceu na barriga dele era incrível, os médicos não deram conta prá lá e não acertaram o que era. Acredito que alguma coisa mundiou ele no rio. Ele sempre tomava banho seis horas da tarde, todos os dias, seis horas da tarde. Quando a maré enchia a barriga do menino enchia. A gente batia e ficava: pú, pú, aquele negócio né! Aí quando a maré vazava a barriga dele baixava. Até que veio um curandeiro e disse que era pra ele procurar uma pessoa experiente, que tinha alguma coisa a ver com o rio. Aí foram num senhor que conheciam, antigamente tinham muitos velhos que conheciam das coisas, aí foram lá. Quando meu pai ía chegando lá, soltando no porto do velho, ele disse assim: olha,eu sei porque você vem aqui. Você vem e não tem mais recursos. Volte que você já tem novidades. Se não tiver novidade você passa esse negoçozinho na pessoa lá que aí ele vai resistir. Quando ele chegou aqui, meu pai chegou no porto ali, o menino já tava morto, morreu lá em cima com meu irmão, Isaias,o nome dele. Quando dava assim, noite de luar,lá no porto a gente via. O velho disse que era o boto encantado que tinha levado a sombra dele. E isso naquela época. Aí quando dava noite de luar, quando eu fui criada aqui, saí daqui com 22 anos. Quando era noite de luar,o boto vinha com um filhinho e botava as canoas todas no fundo. Toda noite a gente via isso. O pessoal dizia que o boto era o espírito do meu irmão, encantado no meu tio [Sic]. (Maria Luíza – I. G. Em: 12/02/2012).

Quando D. Maria relata o hábito do seu irmão de tomar banho no rio Santa

Rosa, “braço” do rio Maguari, todos os dias às 18:00h, fica circunscrito a supressão

de um dos costumes dos povos amazônidas que vivem em contato direto com o rio,

que é de evitar adentrar rios e igarapés no horário das 12:00h e 18:00h. Como

possível represália da “mãe d’água” ou de uma suposta cobra, houve “mundiação” e

doença. E mais, os conselhos do “pajé” não foram suficientes para salvar o irmão de

D. Maria Luíza, penalizado com a vida. “Reencarnava” através de um boto que, nas

noites de luar, chamava a atenção de seus entes queridos.

O resgate de trechos e por menores da estória de D. Luzía se constitui numa

pista importante para compreendermos como os ribeirinhos produzem, territorializam

e colocam em circulação saberes ambientais. A partir de seus relatos podemos

entender a dimensão cultural do saber ambiental, quando é relacionado a lendas,

mitos, estórias, contos que envolvem a ação de seres naturais e imaginados.

O saber ambiental, numa perspectiva cultural, media a percepção do meio

enquanto espaço físico em sentido figurado e fomenta o surgimento de regras de

vivência e comportamentos com a natureza. Há o consenso entre os entrevistados

de que o banho nas águas apresenta perigo e requer cuidado. Conjecturamos que

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haveria uma territorialização de seres inanimados que determinariam a existência de

hábitos locais.

A dimensão cultural do saber ambiental foge às definições de saber enquanto

acúmulo de conhecimento científico. Para Leff (2009), o saber ambiental considera a

complexidade e racionalidade, não uniformiza as várias expressões dos saberes

singulares de cada cultura e locais:

O saber ambiental se constrói a partir de sua falta de conhecimento, integrando os princípios e valores que animam a ética ecologista, as sabedorias e práticas tradicionais de manejo dos recursos naturais e as ciências e técnicas que servem de suporte as estratégias do desenvolvimento sustentável. (LEFF, 2009, p. 50).

Em comunidades ribeirinhas amazônicas há a predominância de um conjunto

de saberes ambientais que são formados a partir de práticas cotidianas que

envolvem o uso da natureza. Os saberes ambientais adquiridos pelo tato,

observação, cheiro e uso do meio físico é ressignificado a todo instante.

Silva vem elaborando ao longo dos anos uma série de reflexões sob as

formas como as populações amazônicas, especialmente as “tradicionais”, interagem

com a natureza e criam saberes ambientais que territorializam espaços físicos

cotidianos.

As populações que vivem em completa integração com a natureza não

compartilham com o conceito de natureza e recursos naturais convencionalmente

impostos pela literatura que trata do assunto. A natureza para estas populações

representa o próprio fazer cotidiano (SILVA, 2008).

O saber ambiental numa perspectiva cultural, quando surge de lendas e

possíveis proteções, mundiações, relações com a natureza, pode ser denominado

de “território cultural”, na medida em que é espacializado e envolto em relações

culturais que determinam conflitos, poder e dominação de certas áreas.

Para Haesbaert (2011), o território idealizado14 pauta-se nas construções

semânticas, mitos, idéias que regem determinadas sociedades a exemplo das secas

que índios do Brasil central acreditavam que poderiam ocorrer. Seria produto das

relações sociedade-natureza. Assim, a sociedade idealizaria e construiria o

ambiente onde vive.

14 Para Haesbaert (2011) a hibridização cultural impediria o reconhecimento de identidades bem definidas sendo que o território simbólico promoveria um dos fundamentos para a construção de identidades mais “homogêneas”.

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A variabilidade e “rizomaticidade” do saber ambiental de populações

amazônicas que estão em intenso contato com a natureza, também podem ser

expressas em ações políticas, atividades econômicas ou práticas religiosas.

Tavares e Silva (2008) identificaram que as mulheres participantes do “Projeto

Quartas Saudáveis” da ilha de Caratateua-Pa, desenvolvem o saber cuidar da casa

e do ambiente, que se materializa numa prática de educação ambiental local.

Portanto, o saber ambiental, neste caso, não parte de conceituações complexas,

surge de uma necessidade e experiência cotidiana.

Há o saber cuidar da mata, que se constitui numa outra perspectiva do saber

ambiental em Igarapé Grande. Na mata, o cuidado tem a ver com a preservação do

meio ambiente, com o plantio de sementes e árvores, com o uso de madeira

somente quando necessário, de saber aproveitar os frutos e plantas das árvores

para garantir um prolongado sustento das famílias e com a preservação dos

animais.

Para E.S.A., a natureza é entendida como um meio de sustento e mantém

relação com a continuidade de hábitos construídos pelos seus pais e que garantem

a permanência da floresta:

Eu tenho um costume comigo, e isso eu herdei de meus pais. A fruta que eu como eu pego o caroço e planto. Inclusive se eu comer dez bacuris são dez caroços que eu planto. Planto mesmo! Aliás, até aqui no terreno que meu pai me deu eu trago pés de marupá lá de dentro da mata e planto, tem uns pés bonitos de marupá, aí eu trago e gosto muito de plantar [Sic]. (E.S.A. – 08/02/2012).

O saber cuidar do meio físico também é revelado em práticas que envolvem o

hábito de não jogar lixo em rios e igarapés e de manterem os locais onde residem e

circulam sempre limpos e, principalmente, o desenvolvimento do hábito do plantio de

sementes e mudas para que a natureza seja preservada.

O saber plantar árvores e mudas de plantas envolve uma série de práticas,

que inclui desde a escolha dos locais, por exemplo, os terrenos não argilosos são os

que apresentem uma “terra boa” para o cultivo e garantem a alimentação num curto

prazo e com a escolha de árvores que deem bons frutos. Com base nesse saber,

são feitos plantio de mudas de macaxeira, sementes de açaí, bacuris, entre outras.

Assim, o saber cuidar do meio físico ao incluir uma enorme abrangência, adquire

uma perspectiva da sustentabilidade socioambiental para os moradores.

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Sustentabilidade que guarda relação com a garantia da alimentação, com a

territorialização dos fazeres que evidenciam o cuidado da terra e de plantas e, em

geral, gera uma consciência crítica coletiva local de que a natureza é fonte de

sobrevivência.

Os saberes ambientais territorializados em Igarapé Grande, representam

racionalidades, cuidado com a natureza, consciência coletiva de preservação do

meio e sustentabilidade socioambiental, fogem as convencionais estratégias de

sustentabilidade ambiental e do desenvolvimento sustentável15 historicamente

construído. Para Souza (2011), o termo desenvolvimento sustentável foi forjado pelo

capitalismo:

Do mesmo modo como a idéia de território tem permanecido, no discurso científico, salvo algumas exceções, prisioneira de um certo “estado centrismo”, de uma fixação empobrecedora e direta ou indiretamente legitimatória da figura do estado, tem igualmente a idéia de desenvolvimento sido condenadas pelas mais diferentes escolas de pensamento e disciplinas (especialmente a economia e a sociologia do desenvolvimento) a endossar o modelo civilizatório ocidental, capitalístico, enquanto paradigma universal.

Entre as principais teorias do desenvolvimento sustentável estão aquelas que

enfatizam que nasceu sem uma teoria que o embasasse; é a-histórico, não possui

método claro, define que o Estado é o principal responsável em executá-lo

reeducando a sociedade. É genérico e contraditório, pois propõe um modelo de

sociedade inatingível pautado na harmonia da produção capitalista, respeito ao meio

ambiente e suavização dos problemas sociais, não considera as formas de produção

pré e não capitalistas:

Para começar, é altamente significativo - e lamentável - que uma noção tão fundamental quanto à de desenvolvimento tenha sido reduzida, ao ser transformada em conceito científico pelas diversas disciplinas marcadas pela epistemologia Positivista, esquartejadora

15

A história do desenvolvimento sustentável tem origem no mundo pós-Segunda Guerra Mundial. O

Clube de Roma é tido como o marco dos grandes debates das questões ambientais em escala global, pois a partir dele houve uma seqüência de rodadas para discutir estratégias de desenvolvimento levando em consideração uso dos recursos, a economia e sociedade. Foi neste contexto de instabilidade e transformações socioeconômicas, culturais e ambientais que as propostas de desenvolvimento ambiental foram sendo aprimoradas. Em 1991, a Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, solidificou aquilo que ficou conhecido como Desenvolvimento Sustentável, baseado na tríade sociedade-meio ambiente e economia. Atualmente, nenhuma política de desenvolvimento nacional é efetivada sem levar em consideração as diretrizes do desenvolvimento sustentável internacionalmente impostas e reguladas por órgãos como a ONU e o Banco Mundial (PERPETUO, 2012).

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da sociedade em partes pretensamente anônimas (economia, política, cultura, espaço, história), em uma idéia tão distante das necessidades mais elementares e do quotidiano dos homens e mulheres comuns. (SOUZA, 2011, p.101).

Fernandes (2006) argumenta que determinadas categorias são formuladas

para dar sentido às estruturas de poder de grupos políticos e econômicos que regem

a criação e implantação das políticas ambientais globais:

Poderíamos, realmente, esperar que as instituições que dão forma ao movimento ecológico internacional, como a ONU, o Banco Mundial, o G7, apresentassem uma nova proposta de organização social destinada a promover efetivamente a equidade social, a eficiência econômica e a preservação ambiental? Isso seria possível sem questionar, na sua base, o ordenamento sócio-político econômico? Para dar respostas afirmativas a essas questões, teríamos que imaginar que estas instituições estariam abandonando seus próprios papéis de mantenedoras da ordem econômica vigente. (FERNANDES, 2006. p. 131).

O modelo de desenvolvimento sustentável tem por fundamento as teorias de

prolongamento do tempo de existência da natureza, de acordo com as concepções

advindas das ciências biológicas. Nesse sentido, seu o objetivo maior seria estender

ao máximo o uso dos recursos naturais, não considerando os conflitos sociais e

contradições inerentes às relações homens-natureza do modo de produção

capitalista. Para Fernandes (2006) este processo revela que:

O modelo de desenvolvimento sustentável não é um outro estilo de desenvolvimento, mas um mecanismo proposto e adotado pelo centro de poder do referido sistema, para conduzir e legitimar as políticas ambientais globais com seu ritmo e lógica (FERNADES, 2006, p. 143).

As populações tradicionais vêm desenvolvendo, ao longo das gerações,

formas de sustentabilidade que não estão limitadas às relações homem-natureza.

Vários estudos têm sido realizados e que dão conta desta perspectiva. Silva (2008),

em seus estudos, tem identificado que meio ambiente para as comunidades

tradicionais tem a ver com:

Os modos de vida e as distintas práticas de trabalho desenvolvidas por essas comunidades, evidenciam que as formas de convivência e de apropriação dos recursos naturais, ou seja, as relações que estabelecem com o meio ambiente físico-biológico são resultados de saberes tradicionais e processos histórico-culturais, e incorporam múltiplas formas, objetivos e representações. (SILVA, 2008, p.56).

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Silva e Tavares (2008) em outro estudo identificaram e analisaram as

relações existentes entre o saber local e as territorializações de práticas e

ambientes. Uma pesquisa realizada em Caratateua-Pa, também revelou que existe

toda uma complexidade quando as práticas sociais locais são problematizadas. As

problematizações/discussões com as mulheres do Projeto “Quartas Saudáveis”

apresentaram a existência de diversas dimensões do saber, do fazer ambiental e

instigou certa consciência política e cidadania a partir da avaliação de antigos

hábitos cotidianos:

Neste sentido, a casa, o quintal são espaços onde o saber das mulheres sobre seus ambientes configura a sua objetivação prática, e os problemas que extrapolam o espaço familiar, mas que comportam temáticas ambientais, ao serem identificados pelo grupo que participa das “quartas saudáveis”, indica a existência de diferentes representações, percepções e práticas no campo ambiental. (SILVA e TAVARES, 2008, p. 109).

Ficou evidenciado pelas autoras, que o projeto “quartas saudáveis” repercutiu

na mudança de hábitos e garantiu o incentivo a algumas reflexões, especialmente as

relacionadas à percepção de como as participantes criavam e socializavam saberes,

como representavam o meio ambiente e como construíram uma consciência política

coletiva para o desenvolvimento de práticas de educação ambiental, através do

cuidado com a natureza e da casa.

A dimensão política do saber ambiental foi identificada entre os entrevistados

da comunidade Igarapé Grande-Pa, através da referência que fizeram a organização

da Casa do Agricultor que expressa uma Associação de Produtores que residem nas

localidades de Cajueiro, Igarapé Grande, João Pilatos e Nova Esperança. As

atividades gestadas pelos moradores têm a ver com a pesca, extração e comércio

do açaí. A foto 24 demonstra o símbolo da organização política e econômica dos

ribeirinhos no uso e gestão dos recursos naturais:

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Foto. 24 - Casa do Agricultor: representa convenções coletivas ou reuniões realizadas pelos moradores de Igarapé Grande. Esta organização expressa a territorialização política do saber ambiental a partir da percepção que os moradores tiverem da necessidade de gerirem os recursos naturais presentes nas ilhas de Ananindeua. Fonte. Arquivo do pesquisador.

O saber pescar e saber coletar o açaí impulsionou a consciência política e

organização comunitária, no sentido dos ribeirinhos estabelecerem estratégias de

gestão ambiental local. A Casa do Agricultor se tornou um meio de ação em busca

de recursos financeiros, defesa de territórios da extração local, proteção ambiental e

criação de relações de trabalho mais humanas que se contraponham ao avanço das

empresas produtoras de palmito, de polpas de açaí e empresas madeireiras que se

proliferam na ilha.

Para Leff (2009) a gestão ambiental parte do local, dos saberes locais das

comunidades onde se realizam a consciência do meio, da posse das propriedades e

manejo dos recursos, da expressão simbólica dos grupos sociais onde se realizam

diferentes saberes sobre o meio ambiente e expressa as multiformas de

experiências de manejo dos recursos naturais. Portanto, o que orienta a gestão dos

recursos naturais entre os entrevistados constituiu-se num saber ambiental “forjado”

em ação política e territorializado na “Casa do Agricultor”.

Em outra territorialização, aquela relacionada à produção do carvão, existe

um conjunto de saberes ambientais rizomáticos ou integrados. Os ilhéus

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descreveram uma série de procedimentos que utilizam no desenvolvimento na

prática de fazer carvão: relataram que, tudo começa com a identificação dos lugares

ideais para a retirada dos vegetais. Os vegetais que se encontram no interior da

mata não servem para queima, pois são frágeis e queimam rapidamente.

Segundo relatos do ilhéu E.S.A, as várzeas16 apresentam as melhores raízes

para a retirada da vegetação. Contudo, considerou que há necessidade de deixar o

mangue “repousar” para que dê tempo das raízes se renovarem. Dessa forma,

sempre realizam um rodízio, com escolha de novas áreas para fazerem o corte dos

vegetais. Esta prática expressa saberes ambientais relacionados ao saber usar e

cuidar do mangue.

A apropriação e uso dos recursos vegetais do mangue incorporam um saber,

no qual está presente a preocupação com a reprodução marinha. Os entrevistados

narraram que reconhecem que de alguma maneira o mangue é rico em animais,

plantas e caranguejos e que precisam ser preservados.

Ao adentrarem o mangue e selecionarem as melhores raízes, depositam os

vegetais cortados uns sob os outros e os deixam enfileirados sem que a distância

entre os cortes seja muito longa para posteriormente recolhê-los.

Outro saber que utilizam nessa prática é o saber observar a maré. Verificar se

a maré está “cheia” ou “seca” dá a possibilidade de retirar ou não a vegetação, pois

quando a maré está baixa permite a caminhada no mangue e o trabalho é

desenvolvido com facilidade. Os ilhéus ficam atentos às possíveis “cheias” para que

não percam o material a ser recolhido. A variável tempo da maré é significativa nesta

atividade. Identifica-se, dessa forma, as interseções entre o trabalho, cultura e tempo

existentes nas “comunidades tradicionais” que foi analisada por Silva (2006, p. 76)

que afirma:

Compreender o trabalho dos ribeirinhos, rico em detalhes revela uma marca singular no desenvolvimento desse tipo de atividade: o tempo diferenciado. Elege-se um novo conceito para a cultura local: o tempo da espera e o tempo do trabalho. Os variados tempos que move a vida das pessoas. O tempo não é único, homogêneo movido apenas pelo relógio, mas múltiplo, heterogêneo, criado em função das relações sociais que os homens e mulheres ribeirinhos empreendem ao lidar com a natureza por meio de suas culturas. A relação com o tempo da natureza é que permite que eles definam o seu próprio trabalho.

16

Neste caso, as várzeas representariam as áreas de mangues.

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As explicações de Silva sobre a flexibilização do tempo e do trabalho em

comunidades ribeirinhas dá fundamento ao que se define como cartografia dos

indícios socioambientais, também explicada pelo método indiciário ginzburguiano,

quando considera pistas, vestígios e sintomas nas análises dos fenômenos. As

populações amazônicas estabelecem relações culturais e socioambientais a partir

das influências das águas, das matas e terras, criam e reinventam saberes a partir

da observação dos astros, animais, nuvens, mudanças climáticas e chuva. Ou seja,

o saber e fazer cotidianos expressam a apreensão da leitura do “tempo-paisagem”

na perspectiva da dinâmica-movimento da natureza.

Outro procedimento importante a ser executado no processo de extração da

madeira no mangue é o saber cromático das raízes. Saber reconhecer as cores é

necessário para que seja dado o corte de aproximadamente um metro. Segundo

Paraco, as melhores raízes são aquelas que apresentam tonalidade de cor marrom

e um certo envelhecimento, pois já apresentariam alguma maturidade e dureza para

suportar a queima.

Destaca-se, ainda, o saber cortar ou talhar os vegetais para que não

danifiquem a planta no sentido de dizimá-las, mas que seu crescimento seja

novamente reconfigurado.

Antes da maré subir, as raízes que foram espalhadas pelo mangue são

recolhidas e depositadas na canoa ou rabeta para o transporte até a comunidade.

Na comunidade, próximo ao forno que fica à beira do rio Maguari, a corticeira é

depositada para secagem e fornada17. O saber secar a corticeira, se constitui num

saber que no passado, segundo Paraco, era repassado pelos mais velhos aos mais

novos, mas que na atualidade não há interesse dos mais jovens na aprendizagem

de tal técnica. Segundo o ilhéu, a secagem da corticeira é um saber fundamental,

pois implica na qualidade do carvão. Assim, seria necessário deixar os vegetais

expostos, de dois a três dias manuseando-os constantemente, ou seja, mudando de

posição os mais secos em relação aos mais úmidos.

A queima das raízes (madeira) para serem transformadas em carvão envolve

o saber prático de queimar, cuja fornada leva, em média, de 18 a 24 horas,

dependendo da quantidade de material a ser queimado. Neste período de tempo em

que está sendo realizada a “fornada”, o morador realiza suas atividades diárias

17

Segundo Paraco a fornada representa a queima da corticeira em grande quantidade para a fabricação do carvão. Em: 12/04/2012.

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normalmente. Em um dos depoimentos do ilhéu E. S. A, destacaram-se alguns

saberes e fazeres necessários para a fabricação do carvão:

Lá a gente já vai sabendo como é pra fazer aquele manejo [...].Tem a corticeira que é uma árvore, ela é rápida pra crescer. A gente vai corta a lenha com a maré seca e quando a maré encher pega o casco, vai lá enche no casco e traz pro forno, Aí enche o forno. Tá tudo cheio no forno, toca fogo no forno, aí tem aquele ponto, o forno tá pegado, fechou a boca, aí no outro dia vai, tá no ponto o forno, tapa o bulheiro e o suspiro do forno. Tem que tapar todos os buracos e dando banho no forno. Não, ele não é mais uma ameaça [Sic]. (E.S.A – 08/02/2012).

A fotografia a seguir revela o processo de seleção da “corticeira”, feita pelo

Paraco, processo que é fundamental na queima e qualidade do carvão:

Foto. 25 Saber escolher a corticeira e saber manuseá-la para secagem para ser usada na queima da fabricação do carvão. Igarapé Grande. Em: 09/03/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

A foto 26 revela um saber ambiental relacionado ao processo de fabricação

do carvão, o saber secar a “corticeira”:

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Foto. 26 Saber secar a corticeira: constitui-se num saber ambiental territorializado no processo de produção do carvão. Corticeira secando a beira do rio Maguari, Localidade Paraíso, Igarapé Grande, ilha João Pilatos. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Atualmente existem dois fornos de carvão na Comunidade Igarapé Grande,

localidade Paraíso que foram construídos nos terrenos de dois moradores

assentados, do Sr. “Paraco” e do Sr. Lucivaldo, respectivamente. Existem outros

fornos de carvão espalhados por Igarapé Grande, mas não foram reveladas suas

localizações.

A foto 27 expressa o processo de queima de carvão na localidade Paraíso.

Este processo tem relação com o saber queimar o carvão:

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Foto. 27 Saber queimar ou realizar a fornada do carvão. Territorialização socioambiental relevante no processo de preparação do carvão. Igarapé Grande. Em: 09/03/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Ainda como parte do processo de saber fazer carvão, inclui-se o saber esfriar

e o saber armazenar. Após a queima ou “fornada”, a preocupação volta-se para a

prática do esfriamento do carvão, que fica de um a dois dias dentro do forno, agora

sem fogo. Após a retirada do produto do forno, o carvão é ensacado e agasalhado.

A foto 28 abaixo revela as sacas são amontoadas de forma enfileirada, próxima às

margens do igarapé Maguari, protegidas da chuva por uma grande lona de plástico.

As sacas ficam armazenadas, esperando compradores. A venda do produto é feita

na comunidade e o excedente é comercializado no “Porto do Surdo” e demais

localidades das ilhas do município de Ananindeua. A fornada resulta em 5 a 10

sacas, que é vendida no valor de R$10,00 cada.

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Foto. 28 - Estocagem de sacas de carvão: Igarapé Grande. Em: 09/03/2012. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Outro saber ambiental cultivado entre os entrevistados tem a ver com a

movimentação das águas das chuvas e dos rios. O saber sobre as águas garante a

sustentabilidade, permite a circulação segura nos rios, favorece mudanças de

hábitos da pesca, extrativismo vegetal e agricultura. Para os ilhéus, a chuva

representa fartura, por não ser necessário regar as plantas.

O ribeirinho possui relação íntima com o rio e pelos costumes refina o seu

saber e torna-se especialista na compreensão de como conviver com as águas,

representação da dinâmica e relação entre natureza e cultura (Silva, 2006, p. 76).

O saber observar o tempo das chuvas informa e orienta o saber pescar. Os

entrevistados relataram que a maior ocorrência das chuvas representa o aumento da

atividade da pesca rudimentar feita com o uso de linhas e anzóis de “espinhel” e

redes de “malhadeiras”. O período chuvoso “traz camarão, peixe. Quando não chove

tanto, dá peixe, mas diminui mais. Aqui na terra a gente não precisa molhar nada, a

chuva já se encarrega de molhar [Sic]” (P.A.N. Em: 09/03/2012).

Para os ilhéus, as cheias do rio Maguari, representam satisfações, porque

possibilitam momentos de lazer, banho e aumento da quantidade de águas nos

poços escavados nos quintais:

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O rio é importante pra comunidade. Se nós quer conseguir alguma coisa nós pega aqui. O rio é muito importante pra nós. Nós pega o barco vai no Curuçambá, aí vamos no rio e joga a malhadeira e pega o peixe, nós praticamente tira nosso sustento daqui, se nós quer o peixe vamos lá pega o peixe, nosso camarão, é importante mesmo [...]. Antigamente ninguém coava a água néra pai? Hoje em dia chega uma pessoa aqui e condena nossa água, mas nunca fez mal para nós. Olha mestre, esse rio e igarapé é importante para nós, porque muita gente que mora na cidade, eles pra irem tomar um banho no igarapé tem que se localizar num lugar longe, porque não tem mesmo, não tem um igarapé pra ele tomar banho, não tem uma praia, tá certo que nós não temos uma praia, mas o igarapé pra mim é importante. A gente quer tomar um banho no igarapé, só é correr daqui, muda o short e pêia no igarapé! É muito fácil pra nós. A gente quer jogar uma bola e depois, toma no igarapé! É muito importante esse igarapé pra nós [Sic]. (E.S. A. - Igarapé Grande. Em: 09/03/2012).

O saber sobre as águas significa uma necessidade de sobrevivência e

socialização comunitária. Os povos ribeirinhos veem nos recursos hídricos um dos

meios de construção da cultura e sustento das famílias. Os saberes sob as águas

fazem parte de um conjunto de saberes ambientais que os ilhéus cultivam e que

legitimam:

De pescaria ninguém me conta. Sei pescar de malhadeira, sei pescar de matapi, sei pescar tudo, porque às vezes tem gente que diz: “- Ah não, eu sei pescar, eu sei pescar”!, sabe nada, tu sabe é botar o matapi na beira, mas não sabe pescar. O camarão, tudo é ciência rapaz. Olha, se o cara botar o matapi muito fora ele não pega o camarão, se ele botar muito na beira ele não pega o camarão. Meu amigo, a gente tem que ter um nível pra fazer tudo! Olha vou te dizer uma coisa: hoje não tem ninguém pobre, não tem ninguém burro, tudo mundo é sabido. Às vezes o cara diz assim: “-Ah, por que tu é burro!” Não tem ninguém burro não! Se vocês me levarem pra dentro de Belém eu vou me perder em Belém, porque eu não sei andar em Belém, mas também se eu levar vocês pra dentro de uma mata dessa, deixar vocês no pé da mata, vocês não sabe sair de lá, duvido que sabe!. Eu vou num rio, numa canoa, sei fazer tudo, sei nadar, vai um comigo não sabe nadar, se a canoa virar ele vai morrer, porque se eu não acudir, ele vai morrer porque não sabe nadar. Então não existe mestre, ninguém burro, ninguém pobre, todo mundo é rico, então eu digo essa história, então eu tenho muito coisa pra falar, pra falar pros netos [Sic]. (I.D.F. Em:01/02/2012).

Outro saber ambiental relevante que os ribeirinhos desenvolvem tem relação

com a pesca, o saber pescar. Contudo, fica o registro que apesar de viverem às

margens do rio Maguari, os ilhéus de Igarapé Grande realizam a pesca sem

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regularidade, de forma tradicional com o uso de anzóis e redes denominadas

“malhadeiras”18.

Segundo relatos dos entrevistados, os melhores locais para o

desenvolvimento da pesca são nos “braços”19 e na extensão central ou leito do rio

Maguari. Nestes locais a “malhadeira” fica estendida e segura por varas de bambus

para captura de peixes e camarões.

As “malhadeiras” são estendidas nos períodos que ocorrem as cheias do rio e

retiradas, de modo geral, no dia seguinte quando há a vazante da maré e é

verificado o tipo e quantidade de peixes que ficaram presos.

As espécies de peixes mais capturadas são: a pescada, o bagre, a

piramutaba e a dourada. Quem realiza a pesca não se considera pescador, pois se

identifica como praticante de uma atividade que envolve a necessidade de consumo

e que não é realizada com frequência. Não há família no local que viva

exclusivamente da pesca.

Quando a pesca é realizada com certo sucesso, excedendo o suficiente para

consumo, o morador circula na comunidade Igarapé Grande anunciando o comércio

do pescado. Quando ocorrem sobras, o destino final é a comercialização em outras

ilhas do município de Ananindeua.

Há um respeito pelas redes estendidas nos córregos e braços do rio.

Ninguém se apropria do material que pertence a outro pescador, muito menos

adentram áreas já “demarcadas”. Contudo, alguns moradores se queixam da

invasão de determinadas áreas ou territórios da pesca, feita por outros moradores

que não moram na ilha.

Além do saber pescar, do saber identificar os melhores locais para a captura

de peixes há também outro saber relevante, relacionado à pesca, o saber

confeccionar redes e anzóis. A confecção de anzóis e redes é realizada nas

imediações das residências do Sr. Lucivaldo Dumont Farias e do “Paraco”. Estes

ilhéus tornaram seus terrenos espaços de preparação para a pesca, pois são os

únicos moradores que se dedicam à preparação de redes de “malhadeiras” e de

anzóis intitulados de “espinhel” conforme pode-se observar nas fotos a seguir onde o

Sr. Lucivaldo estava realizando tal tarefa:

18

Segundo o ilhéu Reginaldo Dumont Farias as redes de malhadeiras são feitas de forma artesanal e

com uso de fios de nylon. 19 Os braços de rio neste trabalho representam os rios de dimensões e extensões menores, furos, córregos, entre outros, que fazem parte da bacia do rio Maguari.

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Foto. 29 Produção do Espinhel (anzól de pesca). Fonte. Arquivo do pesquisador.

Foto. 30 Saberes da pesca: Sr. Lucivaldo Farias preparando o espinhel para a realização de preparativos para a pesca. Fonte. Arquivo do pesquisador.

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Enquanto se dedicam à preparação dos “espinhéis” e redes de “malhadeiras”,

rodas de conversas são formadas. Nestes espaços há a realização de conversas

informais e socialização de diálogos entre homens que planejam seus afazeres e

aproveitam para relatar situações que ocorrem em seus cotidianos.

No dia 09/03/2012, havia feito a travessia na embarcação escolar do Porto do

Surdo à comunidade, no começo da manhã. Eram aproximadamente 08:15h quando

desembarcamos no trapiche e os alunos, quase que automaticamente, se dirigiram à

escola Domiciano Ramos e como de costume, fui ao “barracão” organizar o início do

trabalho de campo na ilha.

Neste dia não havia combinado nenhuma entrevista com os ilhéus. A visita à

comunidade foi apenas para fazer levantamentos e tentar cartografar possíveis

processos sociais relevantes que dessem indícios de práticas e saberes ambientais.

Segundo Kastrup (2009), um dos fundamentos do processo cartográfico se

fundamenta na observância de situações inesperadas no trabalho de campo e no

acompanhamento de processos. “Para o cartógrafo o importante é a localização de

pistas, de signos de processualidade” (Ibid., p. 25). Para Ginzburg (1989) esta

dinâmica envolve a observação de pistas e indícios.

No barracão, preparava a máquina filmadora caso precisasse e o caderno de

campo. Percebia que enquanto manuseava os materiais a serem usados, era

observado por diversos moradores.

Durante a caminhada na comunidade, discretamente, identifiquei em poucos

instantes a existência de uma roda de conversa que se desenvolvia nas

proximidades da residência do Sr. “Paraco” (que naquele dia revelou que seu nome

era Francinaldo Farias) e do Sr. Lucivaldo. Aquele entorno é considerado por todos

como a área mais produtiva da localidade Paraíso, comunidade Igarapé Grande,

pois é comum a prática de congelamento de polpas para comercialização,

fabricação e comércio de carvão, criação porcos e galinhas e estocagem do açaí

para ser transportado e vendido localmente e no “Porto do Surdo”.

Ao chegar à roda de conversa fui recebido cordialmente por todos, que se

demonstraram surpresos com a minha presença na comunidade logo no começo da

manhã. Gentilmente fui convidado para fazer parte da “rodada de diálogo” e fui

surpreendido com uma série de questionamentos como: O que estava fazendo? O

que percebia da comunidade? Quais eram as minhas impressões? Enfim, dei conta

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que estava sendo entrevistado informalmente por todos, apesar de já terem me

conhecido e observado o que fazia sempre que chegava à localidade.

Após a breve entrevista pela qual estava passando, fui me familiarizando

ainda mais com os moradores que estavam reunidos. Identifiquei que o ilhéu

“Paraco” sempre se levantava para observar o forno de carvão. Estava realizando

uma “fornada”. Outra situação que observei foi a confecção do espinhel pelo Sr.

Lucivaldo e o “talho” numa embarcação realizada por outro morador.

Nenhum jovem participava da roda de conversa. Enquanto conversavam os

moradores desenvolviam variadas tarefas e socializavam prosas associadas ao

cotidiano. A não participação de jovens no local chamava atenção.

Naquele dia vivenciei parte da construção de saberes da pesca e acompanhei

processos de territorialização de variados saberes ambientais que resultaram em

práticas sociais na comunidade.

Identifiquei que o saber sobre a pesca não acontecia unicamente no momento

da captura do peixe no rio e que a roda de conversa se constituía numa ação base

para este processo.

O saber “talhar” o barco, também é um saber da pesca relevante, pois

permite, segundo os ilhéus, “aplumar”20 a embarcação. Este saber está restrito a um

número reduzido de pessoas, pois nem todos os moradores se dedicam ao “talho”

nos barcos. O processo educativo que resulta deste saber é identificado num

conjunto de relatos orais transmitidos pelos mais antigos aos mais velhos.

A prática educativa inscrita no “talho” do barco tem a ver com a educação

para a sustentabilidade, além de favorecer a continuidade da pesca na comunidade.

Contudo, fica a ressalva da falta de continuidade no repasse de saberes e narrativas

educativas para a sustentabilidade, expressas no uso, preservação do rio e

aproveitamento do peixe, que garantam a continuidade desta prática social aos mais

novos em Igarapé Grande:

20

Neste caso a expressão “aplumar” para os moradores de igarapé Grande tem a ver com uma prática de carpintaria que busca, com o instrumento de formão e um pequeno martelo, tirar os excessos de madeiras no interior da embarcação e deixar, na parte externa do barco, pesos laterais semelhantes.

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Foto. 31 Saber talhar o barco: prática social realizada à beira do rio Maguari, localidade Paraíso, comunidade Igarapé Grande. Um ilhéu dando o “talho” no barco. Prática social apreendida com seus pais. Fonte. Arquivo do pesquisador.

Na agricultura o saber sobre a terra torna-se importante na hora de escolher a

terra para plantar, pois existem lugares em que o solo é muito argiloso e impróprio

para o desenvolvimento da agricultura. O saber plantar também é caracterizado pela

seleção de “espécies fêmeas”, ou seja, que deem bons frutos e se desenvolvam

com facilidades, além do saber cuidar das plantas.

Reginaldo Farias destaca as práticas de aprendizagens ambientais feitas a

partir da observação, manuseio e internalização de saberes socializados na

comunidade relacionados ao desenvolvimento da agricultura familiar:

Vamo lá na roça, vai tira ali uma parte do terreno, nós vai, roça tudinho bacana, aí quando secar tudinho o mato, então tem fazer no verão, no inverno não presta, tem que ser no verão mesmo forte, aí toca fogo. Depois que tocar fogo bunitinho, os que queimou e os que não queimou nos vai coivará, coivará é juntar todos os paus que ficar no terreno e depois que tiver tudo coivarado a gente toca fogo nos galhos tudo e aí vamos pegar a maniva e cortar todinho em pedacinho a maniva e cavar, em cada buraco nós coloca dois pedaços de maniva, aí vai tapa aquele buraco, aí com um mês, dois meses, tá nascendo. Aí, quando tiver grande nós arrebenta o talo, tiver grandinho assim, mais ou menos uns 60 cm de altura, vai lá e capina todinho , não é só plantar e largar não. Isso daí nós já sabe

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mesmo, não é só plantar e largar. Aí plantou, e depois que tu plantar tem que trazer todo aquele lixo pro tronco dela e aí com seis meses, tu toma na capina, a mesma coisa [Sic]. (RDF – 08/02/2012).

O saber pescar, plantar, caçar, coletar, coivará, produzir carvão, entre outros,

não podem ser entendidos de forma separada, pois o que marca este processo é a

integração de saberes, feito rizomas.

3.4.1 Significado e Uso da Natureza e suas relações com a sustentabilidade e

não sustentabilidade

Os saberes ambientais dos ribeirinhos de Igarapé Grande, além de

territorializarem práticas sociais estão relacionados ao desenvolvimento de

processos educativos cotidianos. Para Brandão (2002), a produção da educação

como um movimento constante de ações que orientam a criação e recriação da

realidade:

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si mesmo. E realiza isto através de incorporar em diferentes instâncias de seus domínios pessoais de interações (muito mais do que estocagem) de e entre afetos, sensações, sentidos e saberes, algo mais e mais desafiadoramente denso e profundo destes mesmos atributos. (BRANDÃO, 2002, p. 26).

Portanto, em contextos amazônicos não podemos dissociar processos

educativos de contextos socioculturais, na medida em que a natureza é apropriada e

reinventada. Constantemente, os sujeitos relacionam, em suas narrativas, saberes,

cotidianos e processos educativos à natureza.

Perguntados sob quais significados atribuíam a natureza, os entrevistados

relacionaram-na: aos elementos naturais, aos rios, à terra e às plantas. O ilhéu M.L

concebe a natureza da seguinte maneira:

A natureza pra mim significa muita coisa. Não derrubar uma árvore que eu fico com pena quando derruba uma árvore, até porque quando eu vou juntar uma fruta debaixo da árvore, toda vez que eu junto os frutos eu agradeço a mãe natureza por isso né! Então pra mim aqui a natureza é tudo, rio, até eu sou acostumada com tudo aqui no rio. Tudo aqui é natureza pra mim [Sic]. (M.L. 13/02/2012).

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A natureza também é vista como a realização do sossego, descanso,

tranquilidade, a possibilidade de contemplação de áreas verdes, da paz construída a

partir de um ambiente harmonioso, sem ruídos, barulhos e agitações comuns dos

espaços urbanos e como oferta de espaços para banho, lazer e circulação sem

preocupação com a violência. A natureza é o ponto de encontro com Deus, uma

dádiva divina:

A natureza significa pra mim uma coisa muito importante pra minha vida, pro meu viver. Sem Deus e a natureza é difícil eu viver. Ela é importante pra mim porque ela me dá tudo. Tudo que eu tenho e procuro têm na natureza. Os alimentos, o lazer, o ar puro, pra mim isso é um ponto importante [Sic]. (O.T.I. Em: 23/02/2012).

Predomina na comunidade Igarapé Grande certa convenção ou regra geral,

baseada no consenso, de que não se devem jogar objetos que se configurem lixo no

chão, na mata, nos rios ou espaço de uso coletivo. Chama à atenção a limpeza dos

locais públicos. No interior da comunidade existem caminhos que sãos conservados

limpos e é inexistente o acúmulo do lixo no local. Os lixos são queimados pelas

famílias nos quintais. Existem pequenos buracos que são de uso exclusivo para esta

prática:

Aqui nós temos uma lei, tudo o que nós comer que vem dentro de plástico não pode jogar lá. Aqui graças a Deus nós temos cuidado Se houver um evento, se eu for dono de uma festa eu tenho obrigação de deixar limpo, do jeito que eu encontrei. É limpar tudo o saco plástico, o copo, tudo, etc., que fica jogado ali, é consenso da comunidade isso. Até dentro do mato se a gente encontrar um saco nós tira, chama a atenção da pessoa, com certeza mesmo não é só pra nós, mas dos que vem aí de fora. Olha aqui na Ilha Igarapé Grande sempre nos fala pro povo e pros meninos: isso nós tamos conservando não é só pra nós, mas pros outros de fora também e também nós se preocupa muito com os jovens da comunidade. Hoje os jovens não querem saber, muitas vezes nós limpam porque os jovens não limpam. Eu vou te falar uma coisa com sinceridade: os jovens mesmos de hoje, até eu na minha criação de hoje, eu ainda tenho o cuidado com a natureza, esses jovens de hoje não tem, o que eles comem eles vão jogando e nós vamos lá e junta. É difícil isso, é difícil [Sic]. (I.D.F. Em: 07/02/2012).

A prática do cuidado com a natureza, também representa o hábito do

replantio de mudas e sementes. Fatos que garantiam o equilíbrio da mata:

Cuidar da natureza, a gente pensa assim, cuidar da natureza tem que ter cuidado. É assim, se a gente vê uma árvore morrendo a gente já tem que pensar em plantar outra no local, a gente cuida assim desse jeito. A gente não quer vê aquela árvore se acabar e

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não ter outra naquele lugar. Eu olho assim o cuidado né [Sic]! (Paraco).

No que se refere à sustentabilidade, os ilhéus associaram-na à extração de

frutas e peixes para alimentação. Quando ocorre o período de entressafra do açaí,

no primeiro semestre de cada ano, alguns moradores costumam realizar o comércio

de frutas: uxi, cupuaçu, bacuri e, esporadicamente, mangas. Também acontece a

venda de galinhas, patos e em algumas ocasiões o comércio de “cambadas” de

peixes. Uma “cambada” possui entre oito a dez peixes que variam de 10 cm a 20 cm

aproximadamente. Segundo “Paraco”:

Açaí, fruta e peixe. Eles são usados pro consumo e pra venda. Peixe é pescada, piramutaba, bagre, camarão comum mesmo, de água doce. Criação. De vez em quando a gente cria uma galinha e vende também. Essa venda é feita lá no porto mesmo. Chego lá, aí já tem comprador certo pra compra de todo o nosso produto [Sic]. (Paraco, em: 23/02/2012).

Os sujeitos não falam de racionalidade, nem de educação ambiental. Narram

acontecimentos que tem a ver com o cotidiano, a alimentação, ao cuidado com os

animais e plantas, ao bem estar e a história de seus antepassados. Segundo o

relato do ilhéu E. S. A., é consenso entre os moradores de que a natureza deve

promover o sustento familiar:

Hoje como nós estamos sendo acompanhados pelos técnicos, nos vamos lá, nós já sabe, o açaizeiro, o pau, o palmito, a gente já sabe a árvore que a gente vai poder cortar e nessa cortação a gente vai cortar a açaizeira que já não tá mais utilizando pra nós. Isso já vem um técnico, a gente vai lá corta todo com ordem, aquele palmito, a gente não vai também estragar, a gente corta e vai vender, vai vender e compra outra coisa, compra a farinha [Sic] (E. S. A – 08/02/2012).

Fica subtendido nas falas dos moradores que mesmo realizando atividades

econômicas que se baseiam no uso da natureza eles contribuem para o

desenvolvimento da preservação da mesma:

É cuidar. A pesca. Quando pesca a gente tá cuidando da natureza. Eu caço. Essas caças é o que tem aqui na mata: paca, tatu. Todas essas caças a gente faz. Não tem atividade nossa que destrói a natureza. Nem o carvão. Porque a gente só tira a madeira que não serve pra nada. Aquela madeira que já tá quase morta já. A gente vai lá e tira aquela que vira [Sic]. (O.T.I. Em: 23/02/2012).

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Foi perguntado aos moradores se as atividades que realizavam utilizando os

recursos naturais favoreciam a destruição ou preservação da natureza. Todos foram

inânimes em afirmar que suas atividades não destruíam, mas que os detentores de

poder econômico eram os principais responsáveis pelo desmatamento e exploração

de toras de árvores identificados como os maiores problemas ambientais da ilha:

A gente tá preocupado é com os grandões. Porque na realidade nós pobres não destruímos, mas os grandões mesmos destroem. Eles destroem, os grandões, porque olha: aqui na nossa região a gente não vai tirar toras grandes, mas os grandões lá fora podem tirar uma tora, uma árvore dessa grande quando a gente vai derrubar e não é só uma que cai não, são várias. Quando eles vão tirar uma árvore grande, de um, dois, três metros de furas ela deu uns dez ou vinte árvores do lado dela, ela deu uma roça grande, aí destruiu uma natureza ali, é destruída mesma. Agora imagina assim, esses barões chegarem e fazerem uma serraria perto de nós, eles vão tapar nossos rios tudo, nós corre o risco, nós corre o risco mesmo, não é verdade? É porque balsas e balsas cheias de toras serradas dá muito lixo e acaba com a nossa natureza e isso é motivo pra gente se preocupar e a gente se preocupa com isso [Sic]. (O.T.I. Em: 08/02/2012).

De imediato, quando cheguei à Igarapé Grande, não visualizei grandes

transformações na natureza. Ao observar os arredores das residências, visualizei

um “braço” do imenso rio Maguari e as Matas densas. Contudo, depois de alguns

dias de convivência com os ilhéus, identifiquei indícios, sinais, pormenores e pistas

da degradação ambiental na comunidade que era invisibilizada, propositalmente,

nas narrativas dos sujeitos.

Foi preciso traçar um mapa mental das territorializações de saberes

ambientais e práticas sociais para poder constatar que a degradação existe. A

observação de detalhes e vestígios da retirada da corticeira no mangue, da queima

do carvão, do comércio de frutos do açaí no Porto do Surdo e da constante

dependência da compra de mercadorias nas áreas urbanas, apontam sintomas da

existência de um “decalque” da não sustentabilidade socioambiental dos moradores

da ilha.

As “fornadas” não cessam. Sabia da existência de fornos não divulgados. A

constante venda do açaí para as cidades representam a intensificação desta

atividade para padrões capitalistas, com o lucro mínimo para os moradores.

A insustentabilidade acontece quando o “mercado” exige maior demanda dos

produtos da ilha. Ressalta-se o fraco desempenho produtivo do assentamento e o

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descrédito dos mais jovens na aprendizagem e continuidade no repasse de saberes

ambientais e a busca incessante de consumo de produtos e valores urbanos.

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CONCLUSÕES

Questões ambientais na atualidade são discutidas na academia, instituições

que fomentam a promoção social, no interior de grupos econômicos nacionais e

estrangeiros, nos movimentos sociais em geral. Muito se discute sobre o efeito

estufa e o aquecimento da Terra, o derretimento das calotas polares, a destruição da

camada de ozônio, entre outras. Na Amazônia, destacam-se as discussões que

envolvem as ações dos grandes projetos e as consequências socioambientais nos

locais onde são instalados os megaempreendimentos econômicos, além das causas

e consequências do desmatamento.

O desenvolvimento sustentável também é considerado como a mais moderna

vertente que rege o desenvolvimento econômico. Fato que incorre num conjunto de

erros, distorções, inconsistências, incertezas e discursos evasivos devido às

polissemias inscritas nas concepções do desenvolvimento sustentável. A

sustentabilidade territorial local pode ser vista como paradigma do

“desenvolvimento”, por considerar saberes e práticas educativas locais de

populações amazônicas como base das relações que envolvem a reprodução de

vida e o uso do meio físico.

O desenvolvimento sustentável é pensado numa escala macro e a partir da

idéia de eixos de crescimento, produtividade e preservação ambiental. Já a

sustentabilidade local pensada neste trabalho, envolve relações homem natureza

que são inerentes à reprodução cultural, identidade territorial, reprodução de modos

de vida, saberes e processos educativos e que atendem aos anseios e interesses

mais imediatos de populações “tradicionais” especialmente as ribeirinhas que

mantém contato direto com a natureza.

No interior da região Amazônica existem diversas realidades sociogeográficas

que não permitem homogeneizar a realidade local e regional. Nesse sentido,

qualquer proposta de desenvolvimento deve levar em consideração as

especificidades das inúmeras “Amazônias” que se encontram “fragmentadas”, mas

articuladas. Fatos que permitem entendê-la a partir de variadas vertentes. Entre as

articulações que dão singularidade à Amazônia, destacamos a rede de saberes e

práticas educativas amazônicas que são inerentes às realidades socioambientais e

culturais de populações da região.

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A sustentabilidade deve ser pensada considerando as redes de saberes que

orientam a construção de práticas educativas cotidianas de grupos amazônicos.

Caso contrário, será inerte e ineficiente. Não atingirá os resultados planejados.

Nas ilhas do município de Ananindeua há um conjunto de assentamentos

agroextrativistas que buscam dinamizar a sustentabilidade, mas por não terem

enfatizado os saberes e práticas educativas ambientais que os ribeirinhos

territorializam em suas relações sociais, culturais e ambientais, não conseguiram os

resultados propostos pelo INCRA. A sustentabilidade nas ilhas de Ananindeua deve

ser pensada a partir de processos educativos que ocorrem no interior de grupos

ribeirinhos que habitam as ilhas do município.

A educação cotidiana não escolar ribeirinha, nas ilhas de Ananindeua,

expressa uma das bases da cultura, das relações criadas com o meio físico, das

relações interpessoais e é um dos condutos, fios ou caminhos, para entendimento

da dinâmica sociocultural dos moradores destas áreas. A não observância, em

qualquer análise social, de processos educativos singulares mediados a partir de

relações tecidas com a natureza que os ribeirinhos desenvolvem, amputa um dos

tentáculos formadores da sociedade ribeirinha. Nesse sentido, esta pesquisa tornou-

se ousada e inovadora por enfatizar processos socioeducativos que ocorrem no

interior das matas e rios e que regem o cotidiano desta parte singular da Amazônia,

ou seja, a educação foi concebida para uma função cotidiana, para a

sustentabilidade.

Contudo, a pesquisa revelou que há um conflito entre sustentabilidade

tradicional ribeirinha e a não sustentabilidade, em parte, provocada por esta

população ribeirinha. Processos educativos cotidianos que envolvem o cuidar da

mata e dos animais, a preservação das águas e a observância da natureza como

fundantes dos afazeres diários, também implicam em ações não sustentáveis, na

medida em que ocorre a queima do carvão, a derrubada de árvores e a produção

familiar para o comércio sem o desenvolvimento da gestão coletiva dos recursos

naturais.

Outro fator que agrava a insustentabilidade em Igarapé Grande é a

dependência dos produtos originados das feiras e supermercados de Belém e

Ananindeua, fato que marca a dependência dos ilhéus ao comércio com as áreas

urbanas e aponta para a ineficácia produtiva no assentamento, entre as famílias e

nas ilhas do município.

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Em todas as entrevistas os sujeitos demonstraram preocupações com a falta

de participação dos mais jovens pela continuidade de práticas locais na agricultura,

pesca e extrativismo. Os adultos e idosos demonstraram ser impotentes neste

contexto. Fica a pergunta: se a chegada da energia elétrica (2010) reforçou a

imposição do hibridismo cultural e se a integração constante com o urbano são

consideradas como negativas no desenvolvimento de processos educacionais e

culturais dos mais jovens? Essa é uma questão que precisa ser investigada.

Há vetores da insustentabilidade quando os saberes ambientais, os

processos educacionais cotidianos, a disponibilidade e uso de recursos naturais não

são direcionados à promoção de práticas turísticas locais. O turismo que se

desenvolve é precário, não atende às necessidades dos moradores.

Existem consideráveis saberes ambientais e processos educativos que são

postos em circulação e que poderiam garantir a gestão territorial, a partir da

organização de sujeitos em associações e cooperativas nas demais ilhas do

município.

Há conflitos entre a sustentabilidade pensada pelos órgãos governamentais e

as formas como os moradores buscam garantir a sustentabilidade socioambiental,

fato que revela uma parte da dinâmica local dos ribeirinhos. Os saberes e práticas

educativas socioambientais que circulam no interior de Igarapé Grande poderiam ser

tidos como “fios” que apontam para a prática do sustento local.

Os processos educativos cotidianos quando discutidos, podem ter função

social basilar, garantir a continuidade de práticas socioambientais ancestrais,

promover a sustentabilidade a partir da própria comunidade e “metamorfosear-se”

com os saberes técnicos.

Os saberes do meio físico determinam a construção dos territórios das

lendas, das rodas de conversas, dos saberes ambientais, dos espaços de usos

coletivos, entre outros e afirmam a construção de uma rede múltipla, não hierárquica

e rizomática de práticas educativas desenvolvidas pelos moradores em Igarapé

Grande.

Os saberes ambientais que os ribeirinhos de Igarapé Grande desenvolvem

estão integrados, fazem parte do cotidiano, expressam práticas de afirmação cultural

e de identidade territorial.

Os objetivos foram alcançados, com exceção da última relação, a de práticas

sociais que interferem na insustentabilidade que foi propositalmente “escondida”

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pelos sujeitos da pesquisa, devido as possíveis pressões de órgãos públicos

fiscalizadores e de administradores municipais locais. Contudo, sua análise só foi

possível a partir do faro aguçado de pesquisa, cujo processo foi sistematizado e

descrito ao longo do trabalho, especialmente no projeto de assentamento, produção

do carvão e na forma do comércio de produtos no Porto do Surdo.

Lacunas podem ser exploradas, continuadas. Fica a dica, ou pista, de

realização de estudos que enfatizem de que forma os grandes agentes comerciais

como a exploração madeireira e a cadeia empresarial de exploração do fruto do

açaí, interferem na desestabilização de processos educativos e saberes ambientais

locais.

Assim, apesar do quadro de abandono ao qual os moradores de Igarapé

Grande estão submetidos pelos poderes públicos, o cotidiano, a realidade das ilhas,

a sustentabilidade local pode ser pensada a partir de processos educativos

ribeirinhos, pois a educação, em todas as instâncias, só adquire sentido significativo

quando é analisada, pensada e problematizada para ter valor prático, diário,

cotidiano, caso contrário resultará em abstrações dissociadas da realidade dos

sujeitos.

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APÊNDICES

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I. TERMO DE CESSÃO GRATUITA DE DIREITOS SOBRE GRAVAÇÕES DE VOZ

E DE IMAGEM

CEDENTE____________________________________________________,

Nacionalidade:_____________________, Estado civil: _____________________,

Profissão:________________________, Carteira de Identidade nº:

_____________, Residente e domiciliado na______________________________

CESSIONÁRIO: Universidade do Estado do Pará / Centro de Ciências Sociais

e Educação/ Mestrado em Educação/Pesquisa referente a Dissertação de Mestrado

sob as Relações entre Saberes Ambientais e Formações de Territórios na

Comunidade Igarapé Grande/Ilha João Pilatos-Ananindeua-Pa, realizada por

Francisco Perpetuo Santos Diniz.

Do Uso: Declaro ceder ao Projeto de Pesquisa referente à Dissertação de

Mestrado sob as Relações entre Saberes Ambientais e Formações de Territórios na

Comunidade Igarapé Grande/Ilha João Pilatos-Ananindeua-Pa, realizada por

Francisco Perpetuo Santos Diniz sem quaisquer restrições quanto aos efeitos

patrimoniais e financeiros as gravações de voz e de imagem, de caráter histórico e

documental, realizado no mês de fevereiro de 2012, na cidade de Ananindeua-

Pará/Comunidade Igarapé Grande-Ilha João Pilatos.

Francisco Perpetuo Santos Diniz fica autorizado a utilizar o material gravado,

divulgar e publicar, para fins da pesquisa, como relatório de pesquisa, edição de

documentário, em vídeo, cd room, fotos, ou livro, no todo ou em parte, editado ou

não, com a ressalva de sua integridade e indicação de fonte e autor.

Belém, 23.02.2012

Assinatura do cedente

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II. ROTEIRO DE ENTREVISTAS

ENTREVISTA Nº:____

Dados de identificação do narrador

Nome:

Idade:

Local de Nascimento:

Profissão:

Estado civil?

Há quanto tempo mora na comunidade:

Nome do Pai?

Nome da Mãe?

Em que eles trabalhavam?

Tem filhos? Quantos estudam e trabalham? Se trabalham que atividades

realizam?

CONSTRUÇÃO E TRANSMISSÃO DE SABERES AMBIENTAIS A PARTIR DE

RELAÇÕES COM O MEIO FÍSICO

1- Natureza: significado

O que é a natureza para Você?

Que(ais) elemento(os) (rio; mata; cacimba; estrada; igarapé; olho d’água; gruta;

encruzilhada; etc.) da natureza as pessoas reconhecem como importante para a

história da Comunidade? Por que?

Como você descreve (onde se situam? como são? que características físicas

apresentam?) os elementos naturais importantes para a comunidade?

Que espaços físicos a comunidade elegeu como importantes para realização de

reuniões; de agrupamentos em geral; de festas entre outros. Você pode descrevê-

los?

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2-Natureza: uso e manejo

Você desenvolve alguma atividade econômica que necessita utilizar os recursos

diretamente da natureza(pescado; camarão; extração do açaí; caça; agricultura;

entre outras) para a sua sobrevivência? Quais?

Descreva os espaços físicos ou áreas que utiliza nas suas atividades de trabalho, de

lazer e que tipo de recursos são usados?

Os recursos são utilizados para consumo próprio ou para venda? Que produtos são

utilizados para consumo próprio? Que produtos são utilizados para venda? Como

acontece a venda?

Você consegue identificar alguma(as) atividade(s) que envolve(m) o uso dos

recursos naturais que contribui(em) para a preservação ou destruição da natureza?

Por que preservam ou destroem?

3- As Águas

Os períodos chuvosos são importantes para a comunidade? Por que?

Em sua comunidade tem rios e igarapés? Quais são mais utilizados? Por que?

Você desenvolve atividades que envolvem o uso de rios ou igarapés?

Existe outra importância dos rios e igarapés para você? Qual?

Você desenvolve algum tipo de atividade utilizando as águas dos rios ou dos

igarapés?

Em caso positivo, quais são as atividades?

Que cuidados existem em relação ao uso de rios e igarapés?

4- Os Deslocamentos

Quais deslocamentos (rotas de percursos por terra e água) são utilizados com mais

freqüência por você e pela comunidade?

Qual a finalidade desses deslocamentos?

Que tipo de transporte utiliza nos seus deslocamentos?

Você consegue descrever as características físicas desses deslocamentos?

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5- A Transmissão dos Saberes Ambientais

Que práticas sociais (roça, mutirão, festas, arraiais) são desenvolvidas pelas

comunidades? Como e quais períodos acontecem?

Existem locais (espaços físicos) preferidos para essas práticas? Quais são?

Quem participa destes eventos coletivos? Como ocorrem a transmissão de saberes

ambientais?

Os mais jovens participam? Eles demonstram interesse pelos conhecimentos sobre

a natureza que são repassados pelos mais velhos? Por quê?

6- Os Espaços de ensino e aprendizagem

Quais espaços são utilizados para a realização de práticas educativas (reuniões)?

Existem reuniões/grupos/encontros que tratem especificamente do desenvolvimento

de práticas educativas? Quais são seus os objetivos? Onde acontecem? Como

esses encontros contribuem para a organização da comunidade?

7- Diversidade de Fazeres Educativos e o Uso dos Recursos Naturais

Você consegue identificar outros fazeres educativos que se constituem em práticas

de educação ambiental? Quais são? Onde e como acontecem?

Que tipos de recursos naturais são utilizados para o desenvolvimento dessas

práticas educativas? Como os recursos são utilizados?

Essas práticas educativas contribuem para a preservação ou destruição da

natureza? Como são preservados ou destruídos?

8- O Uso dos Recursos Naturais

Como os recursos naturais são usados para a realização da pesca, do lazer, dos

deslocamentos, dos banhos?

Como é feita a gestão dos recursos naturais e dos territórios (da pesca, da

plantação, extrativismo) de forma coletiva ou individual.

O uso (gestão) dos recursos naturais implicam na preservação ou degradação

ambiental? Por quê?

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Em que territórios podem ser observadas iniciativas de práticas sustentáveis dos

recursos naturais? Como essas práticas contribuem para o desenvolvimento local?

9- O Diálogo entre saberes

O uso dos recursos naturais e do desenvolvimento local tem sido promovido? Caso

positivo, de que forma? Como acontecem?

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ANEXOS

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Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Rua Djalma Dutra, s/n – Telégrafo 66113-200 – Belém – PA – Brasil

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