Franz Neumann e o Nazismo Como a Destruição Do Estado - Ufsc

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5/24/2018 FranzNeumanneoNazismoComoaDestruioDoEstado-Ufsc-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/franz-neumann-e-o-nazismo-como-a-destruicao-do-estado DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1677-2954.2012v11n3p299 ethic@ - Florianópolis v.11, n.3, p. 299 – 327, Dez. 2012. FRANZ NEUMANN E O NAZISMO COMO A DESTRUIÇÃO DO ESTADO  FRANZ NEUMANN AND NAZISM AS THE DESTRUCTION OF STATE DIOGO RAMOS (UFSC / Brasil) RESUMO Apresentamos no presente artigo a tese de Franz Neumann segundo a qual não teria havido propriamente um Estado na Alemanha nacional socialista. Apesar de hoje relativamente pouco conhecido, Neumann foi um importante teórico do direito da chamada Escola de Frankfurt e membro ativo da promotoria dos  julgamentos de Nuremberg; sua principal obra, Behemoth: estrutura e prática do nacional socialismo,  publicada já em 1942, é o primeiro tratado sistemático sobre o tema, muito influente sobre diversos estudos  posteriores, e de uma riqueza de intuições ainda hoje relevante. Neumann desenvolve sua tese sobre a inexistência de um Estado nacional socialista a partir de seus estudos sobre o desenvolvimento do império da lei e da soberania na modernidade, características fundamentais do chamado  Rechtsstaat , e que lhe  permite concluir ser o regime nazi algo muito mais próximo do Beemote hobbesiano do que de seu Leviatã. Por isso, apresentamos na primeira parte deste trabalho sua discussão sobre o Estado e o direito modernos,  para só na segunda parte discutir propriamente sua compreensão do nazismo. Palavras-chave:  Franz L. Neumann; Estado; Nazismo; Direito. ABSTRACT We introduce in this paper Franz Neumann's thesis according to which there wasn't a real state in Nazi Germany. Despite today being relatively little known, Neumann was an important thinker of law from the Frankfurt School and an active member of Nuremberg trials' prosecution; his main book, Behemoth:  structure and practice of National Socialism, first published in 1942, is the first systematic treatise on the subject, very influential on various posterior studies, and rich of intuitions still relevant today. The author sustains his thesis of the absence of a National Socialist state based on his studies on the development of the rule of law and of sovereignty in modernity, two fundamental characteristics of the so called Rechtsstaat , which permits him to conclude that the Nazi regime is something much closer to Hobbes' Behemoth than to his Leviathan. Because of this, we present in the first part of this paper his discussion of the modern state and right, to only in the second part discuss properly his interpretation of Nazism. Keywords:  Franz L. Neumann; State; Nazism; Right. Quando Hitler invadiu a União Soviética em maio de 1941 o manuscrito  Behemoth: estrutura e prática do nacional-socialismo já estava pronto, e, alguns meses depois, quando o ditador alemão se viu forçado a declarar guerra aos Estados Unidos, sua editoração estava em  pleno curso; com isto é possível ver a precocidade desta obra monumental de Franz Neumann, 1

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  • DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1677-2954.2012v11n3p299

    ethic@ - Florianpolis v.11, n.3, p. 299 327, Dez. 2012.

    FRANZ NEUMANN E O NAZISMO COMO A DESTRUIO DO ESTADO

    FRANZ NEUMANN AND NAZISM AS THE DESTRUCTION OF STATE

    DIOGO RAMOS (UFSC / Brasil)

    RESUMO

    Apresentamos no presente artigo a tese de Franz Neumann segundo a qual no teria havido propriamente um Estado na Alemanha nacional socialista. Apesar de hoje relativamente pouco conhecido, Neumann foi um importante terico do direito da chamada Escola de Frankfurt e membro ativo da promotoria dos julgamentos de Nuremberg; sua principal obra, Behemoth: estrutura e prtica do nacional socialismo,publicada j em 1942, o primeiro tratado sistemtico sobre o tema, muito influente sobre diversos estudos posteriores, e de uma riqueza de intuies ainda hoje relevante. Neumann desenvolve sua tese sobre a inexistncia de um Estado nacional socialista a partir de seus estudos sobre o desenvolvimento do imprio da lei e da soberania na modernidade, caractersticas fundamentais do chamado Rechtsstaat, e que lhe permite concluir ser o regime nazi algo muito mais prximo do Beemote hobbesiano do que de seu Leviat. Por isso, apresentamos na primeira parte deste trabalho sua discusso sobre o Estado e o direito modernos, para s na segunda parte discutir propriamente sua compreenso do nazismo.

    Palavras-chave: Franz L. Neumann; Estado; Nazismo; Direito.

    ABSTRACT

    We introduce in this paper Franz Neumann's thesis according to which there wasn't a real state in Nazi Germany. Despite today being relatively little known, Neumann was an important thinker of law from the Frankfurt School and an active member of Nuremberg trials' prosecution; his main book, Behemoth: structure and practice of National Socialism, first published in 1942, is the first systematic treatise on the subject, very influential on various posterior studies, and rich of intuitions still relevant today. The author sustains his thesis of the absence of a National Socialist state based on his studies on the development of the rule of law and of sovereignty in modernity, two fundamental characteristics of the so called Rechtsstaat,which permits him to conclude that the Nazi regime is something much closer to Hobbes' Behemoth than to his Leviathan. Because of this, we present in the first part of this paper his discussion of the modern state and right, to only in the second part discuss properly his interpretation of Nazism.

    Keywords: Franz L. Neumann; State; Nazism; Right.

    Quando Hitler invadiu a Unio Sovitica em maio de 1941 o manuscrito Behemoth:

    estrutura e prtica do nacional-socialismo j estava pronto, e, alguns meses depois, quando o

    ditador alemo se viu forado a declarar guerra aos Estados Unidos, sua editorao estava em

    pleno curso; com isto possvel ver a precocidade desta obra monumental de Franz Neumann,1

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    que, nada obstante, viria a se tornar um dos principais tratados sobre o nazismo, influenciando

    vasto nmero de posteriores estudos sobre o assunto. Publicado j em 1942, Behemoth uma

    obra ao mesmo tempo precoce e fecunda, pois, se Neumann ainda no tinha visto at onde a

    insnia nazi conseguiria chegar, por outro lado, em sua discusso a memria de Weimar est

    fresca como em nenhuma das investigaes posteriores. visvel a influncia de Weber, Kelsen e

    Schmitt, do marxismo revolucionrio e da social-democracia, entre o grande nmero de autores e

    temas aos quais se refere neste e noutros textos seus. Por isso seu livro no se limita a um simples

    tratado sobre o regime nazista, mas carrega toda uma teoria filosfica sobre a natureza do Estado

    e do direito em suas mltiplas relaes com a sociedade moderna. Neumann consegue ser ao

    mesmo tempo contemporneo e especulativo.

    Dado este carter seu, antes de nos entretermos com sua descrio do regime nazi,

    esboaremos sua compreenso mais geral a respeito do Estado e do direito modernos, que lhe

    permite defender a polmica tese da inexistncia de um governo legal, e destarte do direito e do

    Estado propriamente ditos, na Alemanha nacional socialista. Por isso, na primeira parte de nosso

    trabalho esquematizamos a discusso de Neumann a respeito do Estado moderno por meio de

    quatro temas frequentes em seus escritos: na primeira seo, tematizamos a questo do conflito

    entre soberania e segurana, tendo como figura central Hobbes; na segunda seo, tomamos

    Hegel para debater mais propriamente a questo da liberdade, em seus mltiplos aspectos; na

    terceira seo, retomamos o antagonismo entre direito e soberania, agora sob o mote do

    Rechtsstaat e sua intrnseca relao com a legalidade; por fim, na quarta seo, trazemos tona o

    modo como Neumann pensa a relao do direito com o capitalismo, realando seu debate com

    Pollock e os demais frankfurtianos nos idos anos 1940, perodo fertilssimo daquele grupo. Na

    segunda parte de nosso trabalho, apresentamos os traos gerais da sua descrio do regime

    nacional socialista, e os motivos pelos quais julga ser apropriado descrev-lo como uma espcie

    de neobarbarismo ascendente, que contraria boa parte dos ideais polticos modernos: na primeira

    seo desta parte, tematizamos o modo como a ideologia nazi se relaciona com o imperialismo;

    na segunda, mostramos a transformao nacional socialista do pensamento em propaganda, em

    sua conjuno com o terror como bases sobre as quais o regime se sustenta; finalmente, na

    terceira seo, apresentamos sua tese sobre a inexistncia de um Estado, ou mesmo do direito,

    naquele regime.

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    Mesmo que o leitor no se convena desta associao do nazismo ao Beemote hobbesiano

    e barbrie moda clssica, consideramos que, mesmo assim, Neumann merece um maior

    reconhecimento do que sua atual obscuridade lhe oferece, por poucos terem sido os autores que

    conseguiram fazer uma teoria crtica do direito, mesclando erudio terica com sensibilidade e

    atividade poltica, num momento to expressivo da histria mundial. O fato de ter conseguido

    reunir cincia poltica, teoria do direito e marxismo, numa forma perspicaz e articulada, deveria

    abrir-lhe um maior espao entre os referenciais tericos do debate contemporneo. Tambm por

    isso, no pretendemos abordar exaustivamente quaisquer dos muitos tpicos aqui mencionados,

    mas apenas apresentar um panorama geral de sua discusso a fim de divulgar seu pensamento. Se

    o leitor chegar ao final desta leitura curioso com algumas de suas teses, considerar-me-ei bem

    sucedido.

    O que isto, o Estado?

    Primeiramente, uma nota quanto diviso desta parte: a dita mescla de Hobbes, Hegel,

    Rechtsstaat e marxismo no est deste modo expressa nos textos de Neumann; sendo mais um

    esquema nosso, que julgamos adequado para apresentar sua complexidade. Em Hobbes vemos a

    tenso entre segurana e soberania; em Hegel, a relao ambivalente dos ideais iluministas com o

    estado de coisas presente; no Rechtsstaat alemo, a generalidade formal da legalidade e a

    dicotomia entre razo e vontade; e no marxismo, finalmente, o carter mercantil da mescla. O

    interessante que o prprio Neumann s vezes sugere algo como o rompimento de uma tradio

    ocidental pelo nazismo (por ex., NEUMANN, 2009, pp. 378, 198) por isso enfatizaremos

    este aspecto seu, mencionando a variegada gama de filsofos modernos, com sua diversidade de

    faces e gostos, e suas respectivas nfases diversas, como expresses dos mltiplos aspectos desta

    tradio. No hesitaremos em cham-los todos de liberais, lato sensu, tanto por causa do amplo

    uso nazi deste termo, importante para as reflexes de Neumann, quanto pela dificuldade de

    traduo da expresso alem Rechtsstaat, que ora Neumann traduz por Estado de direito, ora por

    Estado legal, ora por imprio da lei, ora por Estado liberal, ora simplesmente por liberalismo.

    Tambm por este motivo o autor no destaca Kant como o fundador deste ideal (ao contrrio de

    outros estudiosos do tema), preferindo ver j nos seus antecessores de lngua inglesa a sua

    presena. O Rechtsstaat a verso alem do Rule of Law da tradio constitucional americana e

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    da supremacia parlamentar inglesa baseada no governo do direito e das leis (NEUMANN, 1969,

    p. 53). Contudo, se falaremos nesta tradio filosfica perpassante, denominando-a de

    liberalismo, no para ignorar os diversos conflitos e modulaes que ela comporta, mas para

    realar a sua incompatibilidade com o nazismo, uma das principais teses de Neumann.

    Mas o que isto ento, o Estado? Para descrev-lo, olhemos a mescla que o compe.

    Hobbes: segurana e soberania

    Uma das caractersticas mais significativas do autor sua defesa da soberania. Ao

    contrrio de certa tendncia contempornea de recha-la completamente (j presente, por

    exemplo, em seu orientador e amigo, Harold Laski, que defendia um pluralismo democrtico

    contra a soberania), Neumann insiste na sua importncia como instrumento de combate a grupos

    poderosos, ciosos em perseguir interesses exclusivos. Na anlise que faz, no s a soberania teve

    um importantssimo papel na ruptura do feudalismo com seus privilgios, como tambm a

    Repblica de Weimar viu seus mecanismos democrticos serem questionados pelos estratos mais

    privilegiados da populao. Como veremos adiante, Neumann v no regime nazi uma dissoluo

    quase que completa da soberania. Por isso, h certa defesa de Hobbes em seus textos, que, com

    sua guerra de todos contra todos, de relativa relevncia para o seu debate em torno do nazismo.

    De qualquer forma, uma tenso intrnseca ao liberalismo tematizada no conflito entre

    segurana e soberania:

    [] qualquer teoria poltica na qual o Estado seja central e dominante e encarregado com a guarda dos interesses universais est de acordo com a tradio da civilizao ocidental, no importa quo liberal esta tradio possa ser. A tradio ocidental no v o Estado como uma maquinaria opressiva oposta aos direitos do homem, mas como uma entidade vigiando pelos interesses do todo e guardando estes interesses contra infraes por grupos particulares. A soberania do Estado expressa a necessidade de segurana, ordem, lei e igualdade diante da lei [] (NEUMANN, 2009, p. 50).

    A soberania estatal, isto , a primazia e unidade do Estado diante de toda e qualquer outra

    organizao humana, a condio necessria para a paz e segurana social. Sem um Estado forte,

    capaz de barrar grupos que pretendam se sobrepor ao conjunto da sociedade, impondo a ela seu

    interesse exclusivo, as pessoas no tm como ter qualquer garantia do respeito aos seus direitos.

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    Igualmente, pelo outro lado, se tal poder soberano deve existir, deve s-lo exatamente para

    garantir uma tal defesa da sociedade.

    Por mais que Hobbes enfatizasse o carter absolutista e a necessidade de um poder

    irrestrito do soberano, sua justificao ainda assim era inequvoca, pois estava invariavelmente

    ligada defesa da liberdade de comprar e vender e de outro modo contratar uns com os outros;

    de escolher sua prpria casa, sua prpria dieta, sua prpria profisso e de instruir seus prprios

    filhos como melhor parecer (HOBBES, 2008, cap. 21; NEUMANN, 2009, pp. 45960). s

    vezes se pretende contrapor ao poder absoluto do Estado hobbesiano o Estado mnimo (se

    assim podemos chamar) de Locke, sem perceber que tambm o Estado hobbesiano um Estado

    mnimo, pois ele no tem quaisquer deveres de promover a sade ou a educao, por exemplo,

    de seus sditos; seu dever nada mais que dar segurana s pessoas para que elas possam fazer o

    que elas fazem: isto , contratar. Talvez a alfabetizao para isso seja necessria, mas nada alm

    disso, nada que se compare a um programa de formao plena ou que se justifique em termos

    mais positivos alm da defesa da liberdade negativa. No se deve confundir o minimalismo

    do Estado liberal com fraqueza:

    O Estado liberal tem sempre sido to forte como exigia a situao poltica e social e os interesses da sociedade. Tem participado de guerras e tem esmagado greves. Com a ajuda de fortes armadas tem protegido seus investimentos, e com a de poderosos exrcitos tem defendido e aumentado suas fronteiras, como tambm tem restaurado paz e ordem com a ajuda de sua polcia. Tem sido um Estado forte precisamente nas reas em que tinha que ser forte e que desejava s-lo. (NEUMANN, 1969, p. 31).

    Por seu lado, Locke sabe muito bem que o prprio homem a causa do mal e pode

    corromper-se, de modo a ser necessrio o uso da fora para corrigir sua perverso e faz-lo

    retornar sua bondade natural. Apesar do termo soberania no aparecer em seus escritos, ainda

    assim esta ideia permanece presente sob o nome de prerrogativa, isto , o poder de agir

    discricionariamente em vista do bem pblico na ausncia de um dispositivo legal, e s vezes

    mesmo contra ele (LOCKE, 1994, 160), que, de acordo com Neumann, se torna ainda mais

    importante no poder federativo para a conduo dos assuntos externos, incapazes de serem

    estabelecidos simplesmente em normas gerais abstratas (NEUMANN, 1969, p. 33). Somente um

    poder soberano pode servir de juiz imparcial para as disputas entre os particulares e tornar o

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    direito efetivo, e somente ele pode ter a fora necessria para assegurar a defesa e promoo do

    bem comum.

    bem verdade que Hobbes, principalmente em alguns textos como o Leviat, carrega as

    tintas na belicosidade do estado natural do homem, mas o faz para alertar seus contemporneos

    contra a ameaa iminente da guerra civil, o grande mal por todos reconhecido. Neumann

    reconhece a importncia da variao entre a posio mais liberal (stricto sensu) e otimista da

    natureza humana, de Locke, e a posio mais absolutista e pessimista, de Hobbes, mas cr que

    uma teoria como a de Locke, na medida em que pretende restringir a soberania, compreensvel

    e s tem significao se o monoplio das foras coercitivas do Estado no for mais posto em

    dvida, de modo que restries sobre a soberania no mais levem sua desintegrao

    (NEUMANN, 1969, p. 202). Pelo mesmo motivo, Neumann tambm faz notar que foram

    justamente os intelectuais da classe mdia que fomentaram o conceito de soberania, pois,

    juntamente com a fundamentao da propriedade no trabalho, foi um timo instrumento para

    lutar contra a aristocracia feudal ento vigente na Europa; o autor chega inclusive a sugerir que

    possvel ler a Revoluo Francesa no tanto como uma revolta do povo contra o abuso do poder

    pela monarquia, mas como mais justamente uma reao sua frente incapacidade monrquica de

    se sobrepor aristocracia (NEUMANN, 1969, loc. cit.), em especial ao comrcio de cargos

    pblicos por ela praticada (NEUMANN, 1969, pp. 120 e ss.). Aquela monarquia temperada por

    venalidade era muito fraca para efetivamente combater a apropriao da coisa pblica por

    grupos particulares.

    De todo modo, muito facilmente na modernidade se identificou a soberania com o poder

    monrquico, esperando-se assim do monarca o cumprimento do papel de defesa do bem comum

    contra os interesses exclusivistas da sociedade. Por isso muitos liberais (como, por exemplo, os

    alemes) frequentes vezes abriram mo da democracia, ao encontrar nas monarquias j

    constitudas uma mnima proteo da liberdade. Que os reis devessem cumprir sua funo

    colocando os pingos nos is e salvaguardando a constitucionalidade das leis, era a condio para

    sua permanncia numa poca em que no mais eram aceitas justificaes teolgicas ou militares

    para o poder poltico.

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    Hegel: direito e liberdade

    Se por um lado Hobbes expressa bem o carter mais imediatamente policialesco e

    coercitivo do Estado, ao enfatizar a necessidade da soberania para a proteo da sociedade,

    podemos tomar Hegel como expressando mais bem seu carter mais propriamente normativo,

    promotor da liberdade; pois Neumann elabora em seu ensaio O Conceito de Liberdade Poltica

    (NEUMANN, 1969, pp. 178222) uma teoria tridica da liberdade algo anloga estrutura da

    Filosofia do Direito hegeliana, distinguindo trs elementos da liberdade (um jurdico, um

    cognitivo e um volitivo), para assim defender ao mesmo tempo o ideal da legalidade, o da

    conduta racional (no sentido humanista tradicional) e o da democracia. Parece-me haver uma

    associao do elemento jurdico com o direito abstrato hegeliano, do elemento cognitivo com a

    moralidade, e do volitivo com uma eticidade democrtica. De qualquer forma, como veremos

    mais frente, o regime nazi teria aniquilado completamente todos os trs elementos da

    liberdade.2

    Apresentaremos o elemento jurdico da liberdade na prxima seo, por ser-nos de

    maior interesse. O elemento cognitivo, apesar de mais saliente nos autores iluministas, de

    acordo com Neumann, tem uma longa trajetria na histria da filosofia: o primeiro a reconhecer e

    defend-lo expressamente teria sido Epicuro, quando em sua luta contra a superstio propunha o

    conhecimento da natureza, de seus mecanismos e leis, para combater o temor de deuses

    arbitrrios e vingativos; Espinosa teria trazido esta ideia para o interior da natureza humana, ao

    defender que o homem se torna livre quando conhece seus prprios mecanismos e leis afetivos; e

    por sua vez Freud seria um dos mais novos herdeiros desta tradio, ao defender em sua pesquisa,

    por exemplo, que o instinto de agressividade uma consequncia da ansiedade, que por sua vez

    produzida pela inocncia/ignorncia. Como Adorno chegou a defender, contra a personalidade

    autoritria e fascista o conhecimento o melhor remdio. Uma peculiaridade da discusso de

    Neumann sobre a relao do conhecimento com a liberdade, frente ao modo pelo qual a

    abordaram Horkheimer e Adorno na Dialtica do Esclarecimento, que Neumann no enfatiza

    tanto a oposio da liberdade com o domnio adquirido sobre a natureza (interna e externa) com a

    evoluo do conhecimento, pois, justamente por a natureza poder ser crescentemente manipulada,

    ns no mais estamos to submetidos sua merc; podemos corrigi-la na medida em que se

    demonstre destrutiva. Os progressos do conhecimento, da cincia e da tcnica efetivamente

    contm um potencial emancipador.

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    Ao discutir este elemento cognitivo da liberdade, Neumann o distingue de um

    elemento volitivo. (Creio poder dizer que Isaiah Berlin identifica ambos como liberdade

    positiva.) O elemento volitivo deve-se a que nem Deus nem a histria, mas somente os

    prprios esforos dos homens os podem libertar. De acordo com o autor, a democracia o

    sistema poltico onde este elemento encontra propriamente sua expresso, de modo que, se no o

    distinguirmos do elemento jurstico, no poderemos defender a democracia como um sistema

    poltico onde, supostamente, melhor se defende a liberdade poltica, e que a monarquia

    constitucional poderia ento ser uma instituio to boa se no melhor do que ela (NEUMANN,

    1969, p. 205). Por isso devemos distinguir os mltiplos aspectos presentes na liberdade, sem

    reduzi-la a um ou outro de seus elementos, como infelizmente frequentes vezes se faz. neste

    sentido que o autor interpreta a crtica hegeliana concepo liberal mais convencional de

    liberdade:

    A liberdade, no sentido legal, tem um significado exclusivamente negativo. apenas a ausncia de compulso externa (Hobbes). Essa liberdade negativa ou esta liberdade como concebida pela mente unilateral; mas tal condio sempre contm em si mesma uma determinao importante. Portanto, no deve ser desprezada. A inconvenincia da mente , no entanto, que ela promove uma determinao unilateral a uma que se torna exclusiva e dominante (Hegel, Filosofia do Direito, 5, supl.). (NEUMANN, 1969, p. 40).

    No se deve restringir-se a uma dicotomia irreconcilivel entre uma liberdade negativa e

    outra positiva, mas sim reconhecer a necessidade de seus mltiplos aspectos. Como quer que seja,

    o terceiro elemento da liberdade este seu carter jurstico ou legal, que essencialmente

    ausncia de restries, e se realiza mais adequadamente na generalidade da lei, pois, como

    veremos, a afirmao de Voltaire de que a liberdade significa dependncia em nada a no ser na

    lei s faz sentido se a lei tem um carter geral (NEUMANN, 2009, p. 444).

    Rechtsstaat: forma e legalidade

    No s a apropriao nazi-fascista de Hegel, como tambm o ataque nazi ideia da

    legalidade precisava ser combatido. Era parcialmente em Hegel que os idelogos nazistas

    buscavam a justificao terica da supresso da formalidade legal, pois, em substituio

    abstrao da pessoa jurdica, a personalidade concreta da filosofia hegeliana era por eles

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    utilizada para atacar o direito em seu carter negativo, formal. Em contraposio a esta atitude

    Neumann inequvoco:

    A igualdade diante da lei meramente formal ou negativa, verdade, mas ela contm uma garantia mnima de liberdade e no deve ser descartada. Ambas as funes da generalidade da lei, calculabilidade do sistema econmico e garantia de um mnimo de liberdade e igualdade, so igualmente importantes; no apenas a primeira, como as teorias do Estado totalitrio mantm. Se for aceita sua tese de que a generalidade da lei no nada mais do que um modo de satisfazer as necessidades da livre competio, ento inevitvel a concluso de que a substituio da livre competio pelo capitalismo de Estado organizado requer a substituio da generalidade da lei, do judicirio independente e da separao dos poderes pelo comando do Lder e por princpios genricos [Generalklauseln] (NEUMANN, 2009, loc. cit.).

    Se a legalidade tem algum carter emancipatrio justamente devido sua formalidade,

    pois ela no s restringe o poder decisrio do soberano ao exigir igual tratamento de todos, como

    tambm garante certa mobilidade social. A realizao duradoura do liberalismo foi ter libertado

    os juzos legais de avaliaes morais, pois uma identidade da lei e da moral s pode ser

    mantida em uma sociedade plenamente homognea, numa sociedade antagonstica, como a

    nossa, uma alegada identidade entre os dois sistemas normativos meramente um modo de

    aterrorizar a conscincia do homem. Ainda mais, justamente por sua generalidade no poder se

    restringir a casos particulares, mas ter de se referir sempre a um nmero indefinido deles, no s

    privilgios pessoais como tambm leis retroativas so de princpio obstadas. Como dizia

    Benjamin Constant, uma lei retroativa no uma lei, j que ela tanto anula a previsibilidade do

    sistema legal (e assim qualquer segurana que o direito possa assegurar sociedade), quanto tem

    como referncia um nmero definido de casos passados: nada mais , pois, que uma medida

    individual disfarada. Isto significa que no uma lei autntica qualquer ato soberano sob forma

    de generalidade, mas apenas aquele contendo um contedo ao mesmo tempo geral e definido,

    diferentemente das referncias boa moral ou aos salutares sentimentos populares tpicas

    dos princpios genricos frequentes nos decretos nazis. Como consequncia, a lei autntica

    contm em sua estrutura formal j certo contedo substantivo: alm da proibio da

    retroatividade, a lei geral que definida de tal maneira garante ao juiz um mnimo de

    independncia porque no o subordina s medidas individuais do soberano, impedindo-o de se

    tornar um mero agente de polcia e incentivando a separao de poderes (NEUMANN, 1969,

    pp. 389; NEUMANN, 2009, pp. 4412).

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 308

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    Esta nfase liberal na generalidade da lei, de acordo com o autor, est estreitamente

    vinculada doutrina da separao dos poderes, dada a clara necessidade de distino dos seus

    momentos de formulao e aplicao. Por isso tal doutrina foi muito frequentemente defendida;

    muitas vezes ao ponto mesmo de ser dita o baluarte fundamental da liberdade, tornando a

    constituio uma espcie de fetiche liberal (NEUMANN, 1969, p. 159). Contudo, no tanto

    simplesmente a separao de poderes a melhor proteo da liberdade, j que, como bem notou

    Bentham em sua crtica a Montesquieu, de nada adianta o poder estar divido entre algumas

    poucas pessoas se estas poucas pessoas fizerem parte de um pequeno e mesmo grupo social,

    podendo assim conspirar. Ao contrrio, a liberdade estar mais bem protegida se o poder for

    difundido por toda a sociedade: quer dizer, a democracia sua melhor proteo (NEUMANN,

    1969, p. 154).

    Que haja, porm, tal aposta na constituio e na simples separao dos poderes

    compreensvel, dada a contradio realmente existente entre a soberania e o direito. Segundo

    Neumann, na modernidade emergiu uma oposio dificilmente concilivel entre vontade e razo,

    que anteriormente (no tomismo, por exemplo) no era reconhecido. Tal dualismo se expressa de

    muitas formas no mbito jurdico (como conflito entre direito objetivo e subjetivo, positivo e

    racional, poltico e natural etc.) e de fato torna insegura e incerta sua racionalidade:

    A anttese de soberania e direito corresponde a dois diferentes conceitos de direito: um poltico e outro racional. Em um sentido poltico, cada medida do poder soberano, qualquer que seja o seu contedo material, constitui a lei []. A lei voluntas e nada mais. At onde uma teoria legal aceitar esse conceito poltico de lei, pode ser chamada de uma teoria decisionista. H, no entanto, tambm o conceito racional de direito que no tem base na fonte do direito, e sim no seu contedo material. O direito e a lei no so apenas representados pelas medidas do soberano e assim tambm no so somente elas que so leis. O direito aqui uma norma que inteligvel e que contm um postulado tico que frequentemente o da igualdade. O direito, ento, ratio e no necessariamente voluntas ao mesmo tempo (NEUMANN, 1969, p. 35).

    O apelo a um direito racional pode, por isso, servir de instrumento na luta contra o poder

    soberano constitudo, tido como irracional e violento, tal qual a vontade. Contudo, tal apelo pode

    tambm ter o sentido inverso, conservador. Neste ltimo sentido alguns autores chegaram a

    descartar completamente o carter decisionista do Estado para fundar uma teoria do

    Rechtsstaat meramente formal. Assim o fez J. Stahl, o fundador da teoria da monarquia

    prussiana, que dizia no importarem para a definio do Rechsstaat os objetivos do Estado,

  • 309 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    mas apenas seus mtodos para sua realizao. Em sua esteira seguiram os liberais alemes, que,

    ao contrrio da burguesia inglesa, abriram mo completamente da participao poltica e

    justificaram sua submisso quela monarquia, por meio do apelo pura formalidade legal, para

    poder assim partilhar dos benefcios da sua poltica imperialista (NEUMANN, 1969, p. 157).

    compreensvel que essa teoria tenha sido elaborada por uma monarquia conservadora, mas a sua

    adoo pelos liberais apenas expressa o colapso do liberalismo poltico alemo (NEUMANN,

    1969, p. 188). Nas mos de Kelsen, com sua cincia pura da lei, tal atitude viria a ter um efeito

    desastroso:

    A cincia pura da lei [] partilha dos defeitos do positivismo lgico e de toda outra cincia pura: virginal em sua inocncia. Ao descartar da discusso todos os problemas do poder poltico e social, ela abre o caminho para o decisionismo, para a aceitao de decises polticas no importa de onde originem ou quais seus contedos, desde que tenham poder suficiente atrs de si. A cincia pura da lei fez tanto quanto o decisionismo para solapar qualquer sistema valorativo universalmente aceitvel (NEUMANN, 2009, p. 47).

    Apesar da insistncia de Kelsen na validade nica do direito positivo ter um impacto

    crtico e uma fora desmascaradora, ao impedir o encobrimento de demandas polticas e sociais

    com o manto do direito, mesmo assim sua teoria relativista e mesmo niilista, o que

    preparou o terreno para a aceitao do decisionismo e o desmantelamento da democracia.

    compreensvel que Hitler tenha podido continuar na arena poltica (com a devida ajuda da direita

    conservadora prevalecente no judicirio de Weimar) simplesmente renegando seu putschismo e

    jurando no abolir a constituio o que cumpriu prontamente, pois ele podia ter qualquer

    coisa, menos uma inocncia virginal. A norma sem vontade de Kelsen irm gmea da

    vontade sem norma de Schmitt.

    Por seu turno, os comunistas alemes bem ajudaram a tese antidemocrtica ao

    persistirem denunciando a constituio como um vu para a explorao capitalista. Contudo, se

    no fossem to presos a frmulas dogmticas, teriam visto que, como uma questo de fato, a

    constituio de Weimar no escondia nada. Seu carter comprometido, a barganha de interesses,

    o status independente da burocracia do Reichswehr e o papel abertamente poltico do judicirio

    eram claramente discernveis. Que isto assim fosse, nada obstante, no invalida o ideal liberal

    (rechtsstaatlich, legal, constitucional), pois ele, mesmo assim, contm um universalismo cuja

    funo tica no deve ser desprezada.

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 310

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    Marxismo: direito e capitalismo

    Ao mesmo tempo em que Neumann reconhece a ascenso do Estado e do direito

    modernos como intimamente ligada ao desenvolvimento do capitalismo, persiste porm em

    defend-los contra os ataques antiliberais, j que, segundo alega, tm tambm o potencial real no

    s de proteo da liberdade como tambm de instrumento de justia social (NEUMANN, 1969,

    p. 159), de modo a ser mais proveitoso combater as foras que promovem seu uso contrrio. No

    necessrio o comprometimento entre direito e capitalismo, j que um pode se tornar

    independente do outro. Por um lado possvel uma abolio ou regulamentao da propriedade

    privada dos meios de produo (NEUMANN, 1969, pp. 2034); por outro, a ascenso do

    nazismo consolida uma nova forma do capitalismo, agora capaz de dispensar o Rechtsstaat.

    Contudo, de fato a formao do direito liberal est intimamente ligada ao surgimento do

    capitalismo, em sua forma clssica, ou seja, competitiva ou liberal (NEUMANN, 2009, p. 100).

    Prximo doutrina weberiana, Neumann defende ser a peculiaridade do capitalismo clssico, e

    pressuposio do direito liberal, a existncia de uma pluralidade de agentes independentes, mas

    em relativa situao de igualdade, de modo a ser necessria para suas coexistncias uma estrutura

    legal na qual possam se justificar as expectativas do cumprimento dos mtuos acordos. Como

    dizia Hegel, contrato o meio pelo qual eu possa ser proprietrio no somente por meio de algo

    e de minha vontade subjetiva, como tambm por meio do desejo de outrem, e portanto de comum

    acordo (HEGEL, 1996, 71), sendo destarte essencial para a existncia da propriedade

    (NEUMANN, 1969, pp. 401). Por sua vez, para o contrato existir necessrio todo um sistema

    jurdico que torne previsveis as aes dos participantes e assim lhes d segurana de seu

    cumprimento. Mas para que isto ocorra o Estado e o direito tm de ter um carter bem especfico:

    A tarefa primria do Estado criar um sistema legal que garanta a satisfao dos contratos. A expectativa de que os contratos sero satisfeitos deve ser calculvel. Quando h muitos competidores de fora aproximadamente igual, as leis gerais so necessrias para a previsibilidade. Estas leis devem ser suficientemente especficas nas suas abstraes para limitar o arbtrio do juiz tanto quanto possvel. O juiz no deve depender de princpios genricos. Quando o Estado interfere com a liberdade e propriedade, a interferncia deve ser calculvel. No pode ser retroativa, pois seno ela anularia expectativas j existentes. O Estado no deve interferir sem lei, seno a interferncia no seria previsvel. A interferncia por meio de medidas individuais intolervel por destruir a igualdade bsica dos competidores. Finalmente, o juiz deve ele mesmo ser independente, quer dizer, os vrios poderes no Estado devem ser completamente separados (NEUMANN, 2009, p. 443).

  • 311 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    Idealmente, tal Estado tem de ser aquilo que Lassalle certa vez chamou de um Estado

    guarda-noturno: ele deve funcionar de maneira imperceptvel e deve ser realmente negativo;

    ele no deve agir propriamente ou ter iniciativa, mas apenas aplicar as leis a fim de garantir o

    cumprimento dos contratos, que so as atividades e relaes sociais bsicas. Quem age e tem

    iniciativa so as pessoas, seja ao contratar entre si, seja ao participar na formulao das leis que

    regero seus contratos. A poltica destarte fundamentalmente a atividade legislativa (qui

    parlamentar), de formulao do arcabouo geral no qual ocorre a atividade social. Restrito a estes

    aspectos, o liberalismo assume uma feio fundamentalmente econmica, e no poltica.3

    De todo modo, com o desenvolvimento da economia o direito liberal comea a se

    flexibilizar. Enquanto as doutrinas liberais clssicas do direito (e.g., Selden, Blackstone, Kant)

    rejeitavam veementemente a equidade (no sentido aristotlico: como um corretivo para um

    direito geral rgio), com a crescente concentrao de poder resultante do fortalecimento

    corporativo ela paulatinamente se inseriu nos sistemas jurdicos liberais. O conceito de

    conspirao da jurisprudncia inglesa, o de razoabilidade da norte-americana e o de boa

    moral da alem mostram como o direito geral funciona melhor quando regula o comportamento

    de um grande nmero de competidores com foras aproximadamente iguais. Se tiver que tratar de

    concentraes de poder ser substitudo por medidas individuais clandestinas (NEUMANN,

    1969, pp. 1901). Neumann interpreta o princpio da igualdade formal do pensamento liberal

    clssico como o ideal de dar condies legais equilibradas para o sucesso aos agentes sociais j

    em relativa posio de igualdade social, de modo que, com o fim da economia de pequena escala

    e o surgimento de oligoplios, a insistncia no princpio de igualdade como meramente formal,

    recusando compensao s gigantes diferenas de poder emergidas, adquire um sentido inverso

    daquele originalmente pretendido pelo liberalismo clssico: a liberdade de contrato, o meio pelo

    qual a livre competio foi garantida, tornou-se o dispositivo pelo qual a livre competio foi

    destruda (NEUMANN, 2009, p. 258).

    Esta flexibilizao baseada na equidade, quando realmente visa compensar as

    concentraes de poder oriundas das desigualdades econmicas existentes, talvez o nico

    aspecto positivo deste processo de informalizao do direito. Ao contrrio de Weber, que

    identificava o processo de racionalizao com o desenvolvimento do capitalismo identificando

    como reacionrios todos os movimentos anticapitalistas , Neumann pretende mostrar como o

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 312

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    prprio desenvolvimento do capitalismo faz reverter seu sentido.4 Com a formao de

    monoplios o Estado se v crescentemente confrontado com casos nicos, diante dos quais leis

    gerais no tm sentido:

    Ambas as teorias e prticas legais passam por uma mudana significativa no perodo do capitalismo monopolista. O imprio da lei geral no mais possvel. Quando o Estado est confrontado com apenas um partido, um monoplio, no faz sentido estabelecer uma norma geral. A medida individual se torna a nica expresso apropriada para o soberano. Ela no destri o princpio de igualdade diante da lei, pois o legislador se encontra diante apenas de uma situao individual (NEUMANN, 2009, p. 445).

    Atos administrativos se tornam crescentemente necessrios devido prpria situao

    econmica. A falncia de uma nica grande empresa pode desestabilizar todo o mercado, de

    modo a ser necessria a interveno estatal para a prpria manuteno do sistema. Por outro lado,

    estas grandes corporaes assumem poder suficiente para influenciar a poltica em prol de seus

    interesses particulares, por exemplo, por meio de lobbies. Poltica e economia se mesclam

    crescentemente, contrariando ainda mais o ideal liberal. Ainda mais, os monoplios se tornam

    suficientemente fortes para dispensar o direito formal, procurando, em vez, promover sua

    informalizao e assim se livrar da necessidade de reciprocidade.

    A norma individual calculvel para o monopolista porque ele suficientemente forte para dispensar a racionalidade formal. No s a lei racional desnecessria para ele, ela muitas vezes um peso para o desenvolvimento pleno de sua fora produtiva, ou mais frequentemente, para as limitaes que ele pode desejar; a lei racional, afinal, serve tambm para proteger o fraco. O monopolista pode dispensar a ajuda das cortes j que seu poder de comando um substituto satisfatrio. Seu poder econmico lhe permite impor seus desejos aos consumidores e trabalhadores mesmo dentro da forma contratual. Os contratos monopolsticos tpicos transferem todos os riscos concebveis ao consumidor, que devem arcar com todas as obrigaes da lei (NEUMANN, 2009, pp. 4467).

    O capitalismo nesta forma monopolista se torna o coveiro do liberalismo.

    Data de 1941, ano anterior publicao de Behemoth, o famoso artigo de Friedrich

    Pollock, Capitalismo de Estado: suas possibilidades e limitaes, no qual seu autor defendia

    estar ocorrendo a substituio do capitalismo por uma forma econmica inteiramente nova, no

    mais regida pelo motivo do lucro, mas agora pelo motivo do poder. De acordo com Pollock,

    a nova administrao da economia provocaria a transio de uma era predominantemente

    econmica para uma predominantemente poltica, na qual a figura do capitalista daria lugar

  • 313 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    s do manager e do rentier. Ainda mais, o controle poltico da economia otimizaria a produo e

    o consumo, estabilizando a sociedade e restringindo o grau de insatisfao popular a nveis

    tratveis e politicamente teis (em particular, num Estado totalitrio, os governantes manteriam

    o padro de vida artificialmente baixo, projetando a insatisfao popular resultante para o

    exterior, de modo justificar e ampliar seu poder). Neumann recusa em certa medida o diagnstico

    de Pollock (cf. NEUMANN, 2009, pp. 2218), no s por ele postular uma espcie de abolio

    do capitalismo, como por tambm consistir numa formulao de um tipo ideal, de cunho

    pessimista, pouco coadunando com o mtodo crtico; alm de tambm fazer crer existir um centro

    poltico autnomo e soberano premeditando a estrutura econmica da sociedade, que, ao menos

    no caso nazi, principal preocupao de Neumann, de forma alguma representava o estado de

    coisas ento existente. O regime nacional socialista, longe de ter uma estabilidade slida e bem

    concebida, mais lhe parecia beirar o estado de guerra civil, tendo podido facilmente implodir-se

    caso o difcil acordo entre seus grupos dominantes se esfalecesse. Por isso, em alternativa ao

    capitalismo de Estado de Pollock, Neumann descrevia a situao alem como uma economia

    monopolista totalitria, fundamentalmente resultante da gradual concentrao de poder nas mos

    do grande capital e do consequente definhamento do Rechtsstaat.

    Relativamente aos tericos do chamado ncleo interior da Escola de Frankfurt, a posio

    de Neumann de um marxismo em certos aspectos bem mais convencional, j que enfatizava

    muito mais visivelmente os antagonismos econmicos e sociais, capazes de serem corrigidos pela

    efetiva atividade poltica popular e democrtica. Por isso, como veremos a seguir, ele liga a

    formao e sustento do nazismo ao contexto social mais recente da Alemanha em particular

    situao das suas elites que, para preservar seu poder e combater a perspectiva do socialismo,

    todo esforo fizeram para derrubar a democracia de Weimar. De todo modo, apesar de Neumann

    no ter uma anlise histrica geral vinculada ao conceito de dominao (tout court) como outros

    frankfurtianos, nem por isso este conceito deixa de ser central em sua anlise do nazismo, pois, o

    resultado do desenvolvimento da economia monopolista totalitria , de fato, uma sociedade

    totalmente dominada.

    O Beemote nacional socialista

    No modo como Neumann compreende, o mais forte elo do nazismo com a histria

    ocidental o capitalismo, em suas tendncias monopolistas e imperialistas, que efetivamente

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 314

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    aniquilaram o que havia de progressista na tradio liberal. Destarte, o imperialismo tomado

    pelo autor como a chave de explicao para a compreenso do regime:

    A dominao do mundo pode no ser o objetivo consciente do nacional socialismo, mas antagonismos econmicos e sociais o impulsionaro a estender seu reino muito alm da Europa []. Atrs de uma massa irrelevante de jarges, banalidades, distores e meias-verdades, podemos discernir o tema central, relevante e decisivo da ideologia: de que todas as doutrinas e valores tradicionais devem ser rejeitados, no importa se provenham do racionalismo francs ou do idealismo alemo, do empirismo ingls ou do pragmatismo americano, sejam liberais ou absolutistas, democrticos ou socialistas. Eles so todos hostis ao objetivo fundamental do nacional socialismo: a resoluo pela guerra imperialista da discrepncia entre as potencialidades do aparato industrial alemo e a efetividade que existia e continua a existir (NEUMANN, 2009, pp. 378).

    Por isso, apresentamos a seguir alguns traos do modo como Neumann compreende

    aquele regime: na prxima seo, fazemos um breve excurso por alguns de seus elementos

    ideolgicos, em seguida apresentamos suas tcnicas de dominao, para ento concluir com sua

    tese acerca da sua incompatibilidade com a soberania e a legalidade, caractersticas centrais do

    Estado moderno.

    Pretextos ideolgicos: racismo e antissemitismo

    De acordo com Neumann, a juno do racismo com o antissemitismo tem uma

    importncia fundamental na justificao da poltica imperialista nazi; contudo, ela se trata de uma

    estratgia relativamente convencional sua, dada a comum emergncia de ideias racistas em pases

    e perodos empenhados em aventuras coloniais e imperialistas.

    Quanto ao racismo, o caso da ideologia americana do fardo do homem branco tpico,

    j que, num pas forjado sob os auspcios do liberalismo, no momento em que se entretinha com

    guerras coloniais, surgiu exatamente para justificar a superioridade de seu povo frente s

    populaes conquistadas. manifesto, dizia ento Josiah Strong, que os anglo-saxes mantm

    em suas mos os destinos da humanidade, e evidente que os Estados Unidos devem se tornar o

    lar desta raa, o assento principal desta fora. O que manifesto ou evidente, entretanto, que

    tal apelo racista um substituto ideia liberal de nao, pois esta se assenta na igualdade

    fundamental de todos os homens, e deste modo no tem como justificar qualquer domnio sobre o

  • 315 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    estrangeiro. No modo como Neumann compreende, a ideia nacional acaba por ser um importante

    elemento do Estado moderno, por o contrato social baseado exclusivamente no interesse prprio,

    tal como formulado por Hobbes, no ser capaz de tornar concreta a vontade geral e manter

    unidas e distintas as sociedades entre si. O nacionalismo liberal por isso toma o Estado como o

    prprio elemento de fundao sobre o qual a nao se assenta. Em contraposio, sua verso

    tnica e racial, popular na Alemanha, possui um carter antiliberal:

    A ideia nacional usualmente anda de mos dadas com o princpio democrtico e com a soberania popular, e ambos eram extremamente desagradveis aos tericos e polticos alemes. A desunio alem e as rivalidades entre os vrios Estados e seus prncipes pode ter muito a ver com este desgosto. Em qualquer caso, sempre que os tericos e polticos alemes falaram da nao, eles a divorciaram de quaisquer implicaes jacobinas, democrticas ou polticas, isto , de qualquer doutrina de soberania popular []. A nfase na soberania da nao como tal equaliza todas as naes e constitui uma barreira contra a assero da superioridade nacional. Se a nao se funda na deciso livre de homens livres, nenhuma nao superior a qualquer outra. A soberania nacional restringe a expanso imperialista. De fato, sempre que Estados democrticos apelam a tal expanso, eles quase que invariavelmente abandonam o conceito nacional e glorificam atributos raciais e biolgicos que supostamente os tornam superiores aos conquistados (NEUMANN, 2009, p. 103).

    Por outro lado, o apelo racial tambm teve frequentemente a funo domstica de

    combate s ideias socialistas, que vinham se fortalecendo ao longo do sculo dezenove. Como

    exemplo, Neumann cita Friedrich List e Adolph Wagner, que tentaram se contrapor s teorias

    socialistas da luta de classes por meio do repdio do pensamento poltico liberal e da elaborao

    de um esquema de capitalismo de Estado que pudesse incorporar as classes trabalhadoras e

    embeber o povo inteiro com o esprito de sua superioridade racial. Wagner dizia explicitamente

    que o conceito de nao era perigoso por conferir s classes trabalhadoras igual direito,

    entregando-lhes o destino da nao e do Estado; enquanto List, o primeiro nacional socialista

    articulado, j defendia uma aliana com a Inglaterra para conduzir os negcios do mundo,

    civilizar os pases brbaros selvagens, popular os ainda desabitados, deste modo fortalecendo a

    Alemanha e combatendo a ameaa socialista. A proposta dos autores simples e clara: por o

    liberalismo ser incapaz de combater o socialismo,5 deve-se promover uma regimentao estatal

    de modo a fomentar a economia e assim enfraquecer o poder poltico do proletariado.

    O antissemitismo, por sua vez, tem uma longa histria dentro e fora da Alemanha, mas

    sua associao com as teorias raciais oitocentistas viria a se mostrar uma panaceia explosiva; ou

    melhor, uma panaceia fantica, e por isso implosiva. O tema recorrente nestes escritos a teoria

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 316

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    da conspirao mundial dos Sbios de Sio, segundo a qual alguns judeus teriam sido eleitos para

    conduzir o capitalismo mundial, enquanto outros para os movimentos socialistas, podendo assim

    maquinar conjuntamente para destruio do arianismo. A teoria to mirabolante e o fanatismo

    de seus defensores to extremo que poucos a levaram a srio, excetuando uma pequena parte da

    classe mdia, que lhe parecia ter especial predileo.

    Apesar do antissemitismo no ter sido em nenhum outro lugar to ativamente apregoado quanto na Alemanha, ele fracassou em se arraigar na populao; a agitao se tornou to vigorosamente fantica que ela derrotava a si mesma. O movimento dos trabalhadores permaneceu imune a ela, e Bebel, o lder pr-guerra do partido social democrata alemo, foi ovacionado quando denunciou o antissemitismo como o socialismo de tolos. Em 1885 os conservadores retiraram o antissemitismo da sua plataforma e cortaram suas conexes com o partido antissemita, causando sua derrota parlamentar (NEUMANN, 2009, p. 110).

    Algumas pginas adiante, aps constatar no existir qualquer notcia de ataques a judeus

    espontaneamente realizados pela populao alem no vinculada ao partido nazi, apesar de toda a

    propaganda a que estava submetida, Neumann conclui: A convico pessoal do autor, to

    paradoxal quanto possa parecer, que o povo alemo o menos antissemita de todos

    (NEUMANN, 2009, p. 121). No se trata de mera provocao uma tal afirmao, pois sua

    inteno bsica ntida e salutar: no aceitar ingenuamente a autodescrio do regime,

    procurando melhor compreend-la em seu sentido e consequncias, nos contextos nos quais

    formulada. Nem ignorar o discurso nazi, nem tom-lo em abstrato, como se, em abstrato, pudesse

    ser verdadeiro.

    As bases do regime: propaganda e terror

    Em grande medida esta atitude de Neumann de questionar a ideologia nacional socialista

    como tal, se devia situao na qual se encontrava: exilado nos Estados Unidos, em plena guerra,

    no tinha como aceitar seus pronunciamentos e decretos at face value, mas no tinha outros

    recursos, alm das notcias que lhe chegavam, para tentar alguma compreenso do regime; por

    isso uma leitura sintomtica destes pronunciamentos e decretos fez-se necessria. Esta tendncia,

    contudo, levou-o a simplificar (exageradamente, a meu ver) a questo problemtica da ideologia,

  • 317 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    chegando a descrev-la explicitamente como um mero arcanum dominationis, uma tcnica de

    manuteno do poder. No modo como Neumann compreende, a ideologia nazi basicamente

    propaganda, qualquer que tenha sido a crena dos seus lderes nela.

    A mixrdia de ideias heterogneas, a constante adaptao s situaes cambiantes, o apelo

    ao irracionalismo, os argumentos capciosos, o estilo abominvel e inconsistente dos seus

    idelogos, tudo indica a existncia de uma razo oculta do regime. Neumann chega a sugerir que

    o nacional socialismo como que retornou ao sculo quatorze, nos primrdios do Estado moderno,

    perodo da indulgncia estatal, quando a teoria no era nada mais do que um arcanum

    dominationis, uma tcnica fora do certo e do errado, uma mera soma de dispositivos para manter

    o poder. De arcanis rerum publicarum, publicado em 1605 por Arnold Clapmar, apresenta

    similaridades impressionantes com o nacional socialismo na transformao do pensamento em

    tcnicas de propaganda. Alis, Hitler tem um precursor bem expressivo em Cola di Rienzi, o

    demagogo romano do sculo quatorze (imortalizado pela pera homnima de Wagner, predileta

    de Hitler) fundador de um regime protofascista, quando Roma passava por uma aguda crise

    econmica oriunda da transferncia do poder papal para Avignon; regime este marcado pela

    mesma mistura de astcia e paixo que observamos na histria recente da Alemanha.

    [Nestas situaes] somos confrontados com massas cuja posio se tornou insuportvel. Estas massas mostram tendncias revolucionrias, seu ressentimento contra seus governantes aumenta na medida em que tomam conscincia da sua frustrao. O lder fascista moderno canaliza a inquietao de modo a deixar intocados os fundamentos materiais da sociedade. Em nosso tempo, isto s pode ser feito pela substituio do pensamento por celebraes mgicas, no s em cerimnias pblicas mas tambm na vida cotidiana. Para alcanar este objetivo, o isolamento do indivduo, caracterstica da sociedade moderna, intensificado ao mximo com a ajuda de uma imensa rede de organizaes burocrticas e uma ideologia oportunista, infinitamente elstica (NEUMANN, 2009, p. 467).

    Os nazistas s puderam chegar ao poder e l se manter com o apoio dos estratos mais

    reacionrios da sociedade alem; Neumann destaca bem ao longo de seu livro o fato do regime

    nazi no ser homogneo, mas caracterizado pelas disputas entre partido, exrcito, servio civil e

    grande indstria, todos com objetivos prprios mas mutuamente dependentes, de modo a

    necessitarem comprometer-se uns com os outros. A ascenso do partido nazi provocou relativas

    poucas mudanas no exrcito, na burocracia estatal e na indstria monopolista, muito os

    beneficiando e promovendo uma situao de maior segurana do que tinham no perodo de

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 318

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    Weimar. Frente situao anteriormente existente, visvel a sada a todos conveniente: a guerra

    imperialista.

    A propaganda um dos principais instrumentos do regime, pois quando no est no

    poder, o movimento nacional socialista aproveita-se dos pontos fracos [soft spots] no corpo

    social, utilizando qualquer teoria que se mostre til (seja capitalista ou anticapitalista, autoritria

    ou antiautoritria, em defesa das minorias ou contra, pela reforma agrria ou contra, pela

    propriedade privada ou contra, pelo idealismo ou contra); no poder a propaganda assume outra

    funo, vital para a sustentao do regime: manter as massas num constante estado de tenso,

    insistindo no ativismo sem pensamento, de modo a fazer a ao de um aparato autoritrio

    parecer a atividade espontnea das massas. Isto parte inerente da organizao social

    promovida pelo nazismo. Neumann destaca cinco princpios de organizao seus (cf.

    NEUMANN, 2009, pp. 4003): 1) Por temer que corpos sociais minimamente autnomos se

    tornem focos de descontentamento e resistncia, o nacional socialismo os incorpora e transforma

    em agncias administrativas. 2) Ele promove a atomizao do indivduo pela destruio de todas

    as formas de solidariedade e espontaneidade que podem emergir das organizaes sociais

    independentes. A estrutura natural da sociedade dissolvida e substituda pela comunidade

    popular abstrata, que esconde a completa despersonalizao das relaes humanas e o

    isolamento entre os homens, surgindo como resultado um indivduo de tipo sadomasoquista, que

    se regozija do poder e da glria do meio do qual se tornou parte. 3) Para que essa massa

    indiferenciada possa ser controlada criado artificialmente um novo tipo de diferenciao

    interna: as elites, que recebem toda sorte de privilgios e agem como ponta de lana dentro da

    massa amorfa. 4) Por sua vez, a propaganda previne as massas de pensar []. A ideologia um

    processo incessante de mudana e adaptao ao sentimento prevalecente das massas.

    5) Finalmente, o terror tem de estar constantemente presente, pois a propaganda se desgasta e

    precisa ser complementada com a violncia fsica. A propaganda, que nada mais do que

    violncia contra a alma, tem de ser compreendida juntamente com o terror como dois aspectos

    de um desenvolvimento nico: a transformao do homem na vtima passiva de uma fora omni-

    inclusiva que o bajula e o aterroriza, que o aviva e o envia a campos de concentrao

    (NEUMANN, 2009, p. 221).

    Ainda mais, segundo Neumann esta ideologia da comunidade popular tem de ser

    complementada com o racismo antissemita para justificar a causa imperialista. A teoria de

  • 319 RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    Schmitt sobre a necessidade de um inimigo para manter a unidade popular verdadeira se a

    sociedade agressiva. O novo inimigo o judeu. Ao jogar todo o dio, todo o ressentimento,

    toda a misria sobre um inimigo que pode ser facilmente exterminado, mas no pode resistir, a

    sociedade ariana pode ser integrada num todo (NEUMANN, 2009, p. 125). O inimigo tem de ter

    alguma presena poltica para poder ser visto pelo povo como a causa dos seus males, mas no

    deve ser capaz de reagir e se defender; esta uma das principais razes para a Igreja Catlica no

    ter sido eleita. Sob o ponto de vista da poltica exterior, o antissemitismo serve para justificar a

    invaso dos pases imediatamente a leste, com populao de cultura alem e minorias judias. Para

    alm destes pases, o apelo a outras armas ideolgicas fez-se necessrio: a ideia tradicional e

    romntica do grossdeutsche Reich (donde provm a ideia do Terceiro Reich que, contudo, na

    concepo de Stephan George, seu criador, tinha um sentido estritamente cultural, de acordo com

    a tradio humanista mais antiga da qual se origina) e a escola geopoltica com seu conceito de

    espao vital. O modo como os nazistas as usam mostra-nos como

    distorceram e alteraram doutrinas j existentes para encaix-las em seu prprio esquema de ideias e aes. Eles no inventaram mais a geopoltica do que inventaram a ideia de um grossdeutsche Reich. O que fizeram foi explor-las muito melhor que os imperialistas alemes anteriores (NEUMANN, 2009, pp. 1378).

    Esta nfase na funo propagandstica da ideologia, mesclada ao terror como instrumentos

    de dominao, est intimamente ligada ao modo como Neumann compreende a organizao da

    cpula do regime, pois, longe de aceitar a autoproclamao do regime como objetivamente

    fundado sobre o poder carismtico todo-poderoso de Hitler, o autor tende a v-lo mais como um

    agente de compromisso entre os vrios grupos dominantes, com a difcil tarefa de mant-los

    suficientemente coesos e assim impedir sua derrocada. Que os plutocratas prefiram os autocratas

    inegvel, mas que a razo de ser do regime nacional socialista fosse a promoo dos interesses

    plutocrticos, eis uma tese mais polmica de Neumann.

    O Estado degenerado nacional socialista

    De acordo com Neumann, ao contrrio do ideal tradicional do Rechtsstaat, no regime nazi

    a mediao no se dava mais pela via legal e constitucional, vinculada racionalidade formal do

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 320

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    direito liberal, porm por um personalismo justificado num obtuso carisma, que acabou por

    aniquilar no s a segurana da sociedade como tambm a prpria soberania estatal. O regime

    nazi no um governo legal, mas se assemelha muito mais a uma clique, a um gangsterismo,

    composto de grupos ligados por nada mais que violncia e interesses exclusivos. A seguir,

    finalmente, apresentaremos os motivos pelos quais ele pensa no ser adequado descrever o

    regime nacional socialista como um Estado.

    Em contraste com o fascismo italiano, que manteve at o fim do seu regime muito

    fortemente a ideologia do Estado totalitrio, o regime nacional socialista apenas apelou a tal

    doutrina durante os primeiros anos do governo de Hitler, devido, segundo Neumann, a trs

    motivos principais (cf. NEUMANN, 2009, pp. 4951): 1) at a tomada de poder, o movimento

    nazi no tinha se distinguido adequadamente do fascismo italiano, destarte ainda tomava muito

    como referncia seu jargo e objetivos,6 de modo que a expectativa dos estratos mais reacionrios

    da populao (professores universitrios, burocratas, oficiais do exrcito e grande industriais),

    apoiadores do regime, era a de que Hitler restaurasse a dignidade perdida do velho Estado. 2) Ela

    tambm servia s necessidades do momento, pois muitos membros do movimento procuraram

    agarrar todos os esplios e ofcios que conseguiam, sendo necessrio refre-los para poder

    manter o apoio do exrcito, da burocracia e da grande indstria. 3) Um terceiro motivo est no

    fato da teoria do Estado totalitrio ter servido de instrumento para coordenar todas as atividades

    pblicas. O controle absoluto de cima a famosa Gelichschaltung (sincronizao) das

    atividades federais, estaduais, provinciais e municipais foi justificado com a doutrina do

    direito e poder total do Estado. Foi com este processo de sincronizao que Hitler conseguiu

    justificar o desmantelamento dos mecanismos legais que regulavam seu poder (com a aprovao

    da lei habilitante Ermchtigungsgesetz de 1933), assegurando seu completo domnio

    sobre a Alemanha.

    Porm, quase no mesmo momento a ideia do Estado totalitrio comeou a ser atacada. J

    em janeiro de 1934, Alfred Rosenberg denunciou que o Estado totalitrio, ou abstrato,

    pertencia ao perodo do liberalismo, durante o qual ele estava acima da nao e seus

    representantes alegavam preeminncia sobre os cidados. Mas no mais, pois agora o Estado

    seria uma ferramenta da filosofia nacional socialista, sob conduo do partido.

    Rosenberg indicou claramente as razes pelas quais ele denunciou a supremacia do Estado. A idealizao do Estado, disse ele, implica a glorificao dos seus oficiais

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    custa do movimento. Ele recomendou descontinuar o discurso sobre o Estado totalitrio e enfatizar a totalidade da viso de vida nacional socialista (NEUMANN, 2009, p. 63).

    Tal atitude est de pleno acordo no s com seu livro, O Mito do Sculo Vinte, no qual

    denunciou o Estado, recusando-se a ajoelhar no p diante dele, e atacou Hegel, como tambm

    com Mein Kampf, no qual Hitler expressa semelhante desprezo e alega que o Estado no um

    conceito moral ou a realizao de uma ideia absoluta, mas o servo do povo racial (motivo pelo

    qual chega a defender o direito de resistncia). O mito do sculo vinte referido por Rosenberg em

    seu livro no o Estado, mas a raa.7 Tambm expressivo o texto de Schmitt,

    Estado, Movimento, Povo, onde defende uma equivalente inverso entre movimento (i.e.,

    partido) e Estado apesar de, para sua infelicidade, ter mantido o povo numa posio

    subalterna, o que provocou muitos protestos apaixonados. Esta revolta do partido obrigou

    Hitler a abandonar a arma ideolgica da doutrina totalitria.

    De um modo geral, a situao resultante foi a formao de quatro grupos slidos e

    centralizados, cada um operando sob o princpio de liderana, cada com um poder legislativo,

    administrativo e jurdico prprio (NEUMANN, 2009, p. 468), pois, apesar da reivindicao de

    monoplio ideolgico, o partido no conseguiu penetrar nas burocracias ministeriais, industriais e

    militares, tendo grande parte seus antigos integrantes permanecido em seus postos. O partido

    soberano no que concerne a polcia e a juventude, e seus membros no devem obedincia aos

    oficiais ou tribunais civis, de modo que ele no mais pode ser tido como uma corporao

    pblica. Houve uma verdadeira autonomizao dos vrios aparelhos burocrticos, j que o

    Estado, seu antigo lao de unio, foi abolido ideologicamente e em certa medida mesmo na

    realidade. O substituto oferecido, a adorao carismtica do Lder, no adequado, pois vai se

    esvaziar completamente assim que ele no prove seu valor, isto , no seja bem sucedido.

    Nada resta seno lucro, poder, prestgio e, acima de tudo, medo. Desprovidos de qualquer lealdade comum e preocupados somente com a preservao de seus prprios interesses, os grupos dominantes rompero to logo o Lder milagreiro encontre um oponente de valor. No presente, cada seo precisa das outras. O exrcito precisa do partido porque a guerra totalitria. O exrcito no pode organizar a sociedade totalmente; isto tarefa do partido. O partido, por outro lado, precisa do exrcito para vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo ampliar seu prprio poder. Ambos precisam da indstria monopolista para garantir a expanso contnua. E todos os trs precisam da burocracia para alcanar a racionalidade tcnica sem a qual o sistema no consegue operar. Cada grupo soberano e autoritrio; cada equipado com poderes legislativos, administrativos e jurdicos prprios; cada um assim capaz de conduzir hbil e

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 322

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    inescrupulosamente os compromissos necessrios aos quatro (NEUMANN, 2009, pp. 3978).

    Dado que a lei geral no necessria para sua integrao, suas decises no precisam ser

    formalizadas (tal como os acordos de cavalheiros entre as indstrias monopolistas), nem sua

    constituio ter qualquer estrutura formal. Em contraste com a situao italiana, na qual o

    Grande Conselho do Fascismo e a Monarquia eram instituies bem separadas e distintas em

    relao ao Duce, [] impossvel apontar o dedo para qualquer instituio nazi e design-la

    como a agncia na qual as decises polticas so tomadas (NEUMANN, 2009, p. 522), o que

    permite a Hitler evitar qualquer tomada de poder simplesmente pela ocupao de alguma

    instituio em particular; somente em coordenao tm poder. Mas sua coordenao no

    formalizada ou legalizada, apenas personalizada na figura do Lder, como reconhecem Reinhard

    Hhn e Gottfried Neesse, os mais respeitados e articulados juristas nazis, que inclusive rejeitam o

    prprio conceito de Estado para no lugar defender que o Lder age no s para o povo e no seu

    lugar, mas como o povo. O Lder no um rgo do Estado mas a comunidade, utilizando

    como seus instrumentos o partido, o exrcito e a burocracia civil s porque ele no pode fazer

    tudo pessoalmente (NEUMANN, 2009, p. 469). O que o sofisma desta nova teoria da

    transubstanciao tenta fazer justificar o fato bvio de que no h mais direito ou lei na

    Alemanha, mas apenas uma pura e direta dominao, frente qual o ideal do Rechtsstaat ou do

    imprio da lei no tem lugar.

    Muitas medidas individuais com carter de privilgios so promulgadas. A retroatividade no mais proibida. Mesmo o princpio da igualdade diante da lei, o princpio fundamental do Rechtsstaat, rejeitado []. J que a lei idntica vontade do Lder, j que o Lder pode mandar oponentes polticos para a morte sem qualquer procedimento jurdico, e j que um tal ato glorificado como a realizao mais alta da justia, no podemos mais falar de um carter especfico da lei. A lei agora nada mais do que um meio tcnico de realizao de objetivos polticos especficos. Ela meramente o comando do soberano. Nesta medida, a teoria jurdica do Estado fascista o decisionismo. A lei meramente um arcanum dominationis, um meio para a estabilizao do poder. (NEUMANN, 2009, pp. 4478).

    Tal situao representa qualquer coisa menos um Rechtsstaat.

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    Consideraes finais

    Dado o ano de publicao de Behemoth (1942), creio ser compreensvel que Neumann

    tenha podido descrever a ideologia nazi meramente como um arcanum dominationis; at porque

    aps a guerra viria a publicar uma resenha do livro Ditadura e Polcia Poltica, de Ernst Kohn-

    Bramstedt (ver NEUMANN, 1946), enfatizando a extrema irracionalidade do seu terror em

    contraposio s formas instrumentais de represso das polcias secretas tradicionais. A

    exuberncia do terror nazi obriga-nos hoje a levar a ideologia mais a srio do que Behemoth

    tendia a fazer. Pelo mesmo motivo, no me parece muito elucidativo descrever aquele regime

    como o Beemote, em particular por a guerra civil hobbesiana aniquilar toda organizao social,

    tendncia oposta poltica imperialista e correspondente intensa regimentao social promovida

    pelo nazismo. Neumann s pde utilizar uma tal metfora por separar drasticamente a classe

    governante da governada, em alguma medida imunizando a primeira dos processos exercidos

    sobre a segunda.

    De qualquer forma, se o regime nazi no o Beemote, ele seguramente tambm no o

    Leviat; o domnio da teoria e histria do direito moderno lhe permitiu compreender claramente,

    j em 1942, o que muita gente ainda hoje tem dificuldade em perceber. Ainda mais, suas

    discusses mais gerais sobre a sociedade moderna apresentam uma rara capacidade de elaborao

    de um teoria genuinamente crtica do direito, sem projetar sobre ele as aspiraes emancipatrias

    que o movimento socialista outrora carregava. Por mais positivamente que Neumann o tivesse em

    conta, ainda assim o direito no lhe era uma espcie de Ersatz-Utopie, como nalgumas vertentes

    ps-crticas, hoje to populares.

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 324

    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez. 2012.

    Notas

    1Uma breve biografia: nascido de uma famlia judia em 1900, prximo cidade de Cracvia, Neumann participou da Revoluo Alem de 1918 e se tornou membro ativo do Partido Social-Democrata Alemo. Formado em direito (e tendo aulas com Carl Schmitt, sem, porm, ter sido propriamente um discpulo seu), atuava como advogado de vrios sindicatos e era conselheiro legal daquele partido quando Hitler subiu ao poder, motivo pelo qual foi imediatamente preso. Solto aps um ms, emigrou para a Inglaterra, onde estudou cincia poltica e defendeu sua segunda tese de doutorado, sobre o conceito de imprio da lei. Em 1936 tornou-se membro do Instituto de Pesquisa Social, vindo a participar ativamente dos seus debates internos nos anos seguintes, quando se mudou para os Estado Unidos. Com a publicao de Behemoth em 1942 ganhou notoriedade e no ano seguinte assumiu um posto no Escritrio de Servios Estratgicos (OSS) do governo americano, onde participava da concepo da poltica de reconstruo da Alemanha ps-nazi (juntamente com Herbert Marcuse e Otto Kirchheimer, amigos prximos seus). Aps a guerra, auxiliou na promotoria dos julgamentos de Nuremberg, tornou-se professor respeitado na Universidade de Columbia, incentivando a promoo da cincia poltica nos Estados Unidos, e ajudou a fundar a Universidade Livre de Berlim. Morreu em 1954 num acidente automobilstico, deixando incompletos alguns estudos sobre psicologia poltica e teoria da ditadura. Boa parte de seus escritos de teoria poltica foi reunida e publicada postumamente por Marcuse sob o nome de Estado Democrtico e Estado Autoritrio.

    2Trata-se de uma atitude compartilhada com Marcuse, que tambm tinha o objetivo claro de combater tanto a apropriao nazi-fascista de Hegel, quanto os ataques anti-hegelianos (marxistas ou antimarxistas). Marcuse, no ano anterior publicao de Behemoth, publicou Razo e Revoluo: Hegel e o advento da teoria social, onde contrape Hegel ao positivismo, caracterizado pelo autor como a aceitao acrtica dos fatos (da existncia, da positividade etc.) e que teria se desenvolvido na Alemanha justamente em oposio filosofia hegeliana, tida ento como negativa e racionalista, exigente da justificao de tudo perante a razo, e por isso perigosa para o poder constitudo. O cerne da filosofia hegeliana seria a afirmao de que o pensamento deve governar o mundo e que a Revoluo Francesa teria conseguido vencer a injustia ao estabelecer um Estado racional (o que, obviamente, para Marcuse era no mximo uma meia-verdade). De todo modo, Neumann e Marcuse recomendam-se mutuamente para o aprofundamento dos respectivos tpicos (ver NEUMANN, 2009, pp. 462, 483; MARCUSE, 1978, p. 388).

    3Os liberalismos econmico e poltico no so gmeos. Hobbes era economicamente liberal e politicamente absolutista, e Locke era economicamente mercantilista e politicamente liberal. O liberalismo econmico pode-se casar com qualquer teoria poltica [que respeite o mercado]. A teoria econmica de Pareto certamente liberal, mas sua poltica no somente absolutista, mas tambm autoritria (NEUMANN, 1969, p. 286).

    4Ou talvez seja mais adequado dizer que Neumann rejeita completamente a tese weberiana: no era o capitalismo o que realmente fomentava a racionalizao do direito, mas a relativa igualdade e independncia econmica burguesa (a democracia social, como s vezes nosso autor chama; social democracia seria um nome mais sugestivo). Com isto tambm pde resolver a questo do direito ingls: como explicar sua pouca formalizao no pas mais avanado economicamente? Alm da sugesto de que o domnio do parlamento ingls pela burguesia a permitia ter um controle gentico do direito, no precisando apelar tanto quanto a alem formalidade da lei para sua segurana, Neumann tambm sugere que este domnio a permitiu bloquear sua racionalizao na medida em que isto fosse beneficiar alm do necessrio as classes mais pobres (NEUMANN, 1969, p. 56).

    5O que tambm me parece significar: o liberalismo incapaz de combater o socialismo porque no h realmente qualquer incompatibilidade fundamental entre os dois.

    6O fascismo exaltou o Estado porque ao longo da histria italiana o Estado sempre foi fraco. A unificao da Itlia, que ocorreu mais ou menos no mesmo tempo da unificao da Alemanha, no levou criao de um poder estatal forte. A Itlia permaneceu um pas dividido por agudos antagonismos geogrficos, econmicos e sociais []. Uma Itlia democrtica teria a mesma necessidade, apesar de que teria empregado diferentes mtodos e agido por motivos diferentes. Tudo isto, porm, explica porque os apologistas do Estado so to centrais na ideologia fascista (NEUMANN, 2009, pp. 767). 7Neumann tem uma interessante resenha do livro de Ernst Cassirer, O Mito do Estado, onde questiona a ideia de que o movimento nazi vivia sob um tal mito, chamando ateno para o fato de que duas das trs fontes ideolgicas destacadas por Cassirer (Carlyle e Gobineau) nem sequer terem formulado uma teoria do Estado. Carlyle tinha uma

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    ethic@ - Florianpolis v. 11, n. 3, p. 299 327, Dez.2012.

    espcie de adorao do herosmo poltico, enquanto Gobineau defendia um racismo basicamente reacionrio, voltado para a poltica interna, com objetivo de restaurar os privilgios perdidos da aristocracia. A filosofia racionalista de Hegel, a suposta terceira fonte ideolgica, de forma alguma pode ser dita formular um mito, alm de ser impalatvel para o dinamismo nacional socialista, como o prprio Cassirer reconhece. Alis, como fica explcito nesta resenha, para Neumann no s o liberalismo tem uma viso instrumental do Estado, como tambm o nazismo: Para o liberalismo, o Estado um meio de promoo dos direitos dos indivduos; para a democracia, o agente que guarda os interesses da nao; para o bolchevismo, o aparato para realizar a ditadura do proletariado sob a conduo de sua vanguarda; para o nazismo, um entre os vrios instrumentos para o bem-estar do povo racial sob a liderana do partido (NEUMANN, 1947, p. 435).

  • RAMOS, D. Franz Neumann e o nazismo como a destruio do estado 326

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