Freud - Sobre a Brincadeira Das Crianças

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OBRAS COMPLETAS DE SIGMUND FREUD – EDIÇÃO STANDARD IMAGO Vol. XVIII – Além do princípio do prazer Parte II – Trecho sobre a brincadeira das crianças, o “Fort-Da” Nesse ponto, proponho abandonarmos o obscuro e melancólico tema da neurose traumática, e passar a examinar o método de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras atividades normais; quero referir-me à brincadeira das crianças. As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças foram ainda recentemente resumidas e discutidas do ponto de vista psicanalítico por Pfeifer (1919), a cujo artigo remeto meus leitores. Essas teorias esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia. A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um ‘bom menino’. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e

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Trabalho que fala da vinculação mãe bebê

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OBRAS COMPLETAS DE SIGMUND FREUD EDIO STANDARD IMAGOVol. XVIII Alm do princpio do prazer Parte II Trecho sobre a brincadeira das crianas, o Fort-Da

Nesse ponto, proponho abandonarmos o obscuro e melanclico tema da neurose traumtica, e passar a examinar o mtodo de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras atividades normais; quero referir-me brincadeira das crianas.As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianas foram ainda recentemente resumidas e discutidas do ponto de vista psicanaltico por Pfeifer (1919), a cujo artigo remeto meus leitores. Essas teorias esforam-se por descobrir os motivos que levam as crianas a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econmico, a considerao da produo de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenmenos, pude, atravs de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lanar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele prprio. Foi mais do que uma simples observao passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criana e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmtica atividade que ele constantemente repetia.A criana de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensveis e utilizava tambm uma srie de sons que expressavam um significado inteligvel para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua nica empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um bom menino. No incomodava os pais noite, obedecia conscientemente s ordens de no tocar em certas coisas, ou de no entrar em determinados cmodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua me o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado me, que tinha no apenas de aliment-lo, como tambm cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hbito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atir-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanh-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado o-o-o-, acompanhado por expresso de interesse e satisfao. Sua me e o autor do presente relato concordaram em achar que isso no constitua uma simples interjeio, mas representava a palavra alem fort. Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o nico uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de ir embora com eles. Certo dia, fiz uma observao que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedao de cordo amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera pux-lo pelo cho atrs de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordo e com muita percia arremess-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo o-o-. Puxava ento o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordo, e saudava o seu reaparecimento com um alegre da (ali). Essa, ento, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora no haja dvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.A interpretao do jogo tornou-se ento bvia. Ele se relacionava grande realizao cultural da criana, a renncia instintual (isto , a renncia satisfao instintual) que efetuara ao deixar a me ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele prprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance. naturalmente indiferente, do ponto de vista de ajuizar a natureza efetiva do jogo, saber se a prpria criana o inventara ou o tirara de alguma sugesto externa. Nosso interesse se dirige para outro ponto. A criana no pode ter sentido a partida da me como algo agradvel ou mesmo indiferente. Como, ento, a repetio dessa experincia aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princpio de prazer? Talvez se possa responder que a partida dela tinha de ser encenada como preliminar necessria a seu alegre retorno, e que neste ltimo residia o verdadeiro propsito do jogo. Mas contra isso deve-se levar em conta o fato observado de o primeiro ato, o da partida, ser encenado como um jogo em si mesmo, e com muito mais freqncia do que o episdio na ntegra, com seu final agradvel.Nenhuma deciso certa pode ser alcanada pela anlise de um caso isolado como esse. De um ponto de vista no preconcebido, fica-se com a impresso de que a criana transformou sua experincia em jogo devido a outro motivo. No incio, achava-se numa situao passiva, era dominada pela experincia; repetindo-a, porm, por mais desagradvel que fosse, como jogo, assumia papel ativo. Esses esforos podem ser atribudos a um instinto de dominao que atuava independentemente de a lembrana em si mesma ser agradvel ou no. Mas uma outra interpretao ainda pode ser tentada. Jogar longe o objeto, de maneira a que fosse embora, poderia satisfazer um impulso da criana, suprimido na vida real, de vingar-se da me por afastar-se dela. Nesse caso, possuiria significado desafiador: Pois bem, ento: v embora! No preciso de voc. Sou eu que estou mandando voc embora. Um ano mais tarde, o mesmo menino que eu observara em seu primeiro jogo, costumava agarrar um brinquedo, se estava zangado com este, e jog-lo ao cho, exclamando: V para a frente! Escutara nessa poca que o pai ausente se encontrava na frente (de batalha), e o menino estava longe de lamentar sua ausncia, pelo contrrio, deixava bastante claro que no tinha desejo de ser perturbado em sua posse exclusiva da me. Conhecemos outras crianas que gostavam de expressar impulsos hostis semelhantes lanando longe de si objetos, em vez de pessoas. Assim, ficamos em dvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma experincia de dominao, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar expresso como um evento primrio e independentemente do princpio de prazer. Isso porque, no caso que acabamos de estudar, a criana, afinal de contas, s foi capaz de repetir sua experincia desagradvel na brincadeira porque a repetio trazia consigo uma produo de prazer de outro tipo, uma produo mais direta.No seremos auxiliados em nossa hesitao entre esses dois pontos de vista por outras consideraes sobre brincadeiras infantis. claro que em suas brincadeiras as crianas repetem tudo que lhes causou uma grande impresso na vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impresso, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situao. Por outro lado, porm, bvio que todas as suas brincadeiras so influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem. Pode-se tambm observar que a natureza desagradvel de uma experincia nem sempre a torna inapropriada para a brincadeira. Se o mdico examina a garganta de uma criana ou faz nela alguma pequena interveno, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experincias sero tema da prxima brincadeira; contudo, no devemos, quanto a isso, desprezar o fato de existir uma produo de prazer provinda de outra fonte. Quando a criana passa da passividade da experincia para a atividade do jogo, transfere a experincia desagradvel para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto.Todavia, decorre desse exame que no h necessidade de supor a existncia de um instinto imitativo especial para fornecer um motivo para a brincadeira. Finalmente, em acrscimo, pode-se lembrar que a representao e a imitao artsticas efetuadas por adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianas, se dirigem a uma audincia, no poupam aos espectadores (como na tragdia, por exemplo) as mais penosas experincias, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominncia do princpio de prazer, h maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo desagradvel num tema a ser rememorado e elaborado na mente. A considerao desses casos e situaes, que tm a produo de prazer como seu resultado final, deve ser empreendida por algum sistema de esttica com uma abordagem econmica a seu tema geral. Eles no tm utilidade para nossos fins, pois pressupem a existncia e a dominncia do princpio de prazer; no fornecem provas do funcionamento de tendncias alm do princpio de prazer, ou seja, de tendncias mais primitivas do que ele e dele independentes.