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África em Análise I. De Portugal sobre a realidade africana: o ponto de vista de Fernando Nobre II. África no contexto da globalização actual II.1. O neoliberalismo ao assalto de África II.2. O Mali vítima da dívida II.3. Os acordos que Bruxelas impõe a África II.4. Compreender o problema da dívida II.5. A violência discreta e o poder do dinheiro II.6. A caravana da dignidade contra os arames farpados II.7. Uma anulação das dívidas à espera de melhores dias III. África, as três instituições irmãs e os seus mandamentos: estabilizar, privatizar e liberalizar III.1. O algodão africano minado em todas as frentes III.2. A África e as suas matérias-primas III.3. Fim de ciclo para a OMC III.4. A OMC: Fundamentalmente não democrática III.5. A OMC: Arbitrária e não democrática III.6. As estratégias de negociação da União Europeia IV. Questões de África, Questões do Mundo: dois filmes, imagens de África IV.1. Djourou: a corda ao teu pescoço IV.2. Bamako IV.2.1. “Bamako”, filme de acção e de justiça IV.2.2. O processo da dívida, o FMI e o Banco Mundial IV.2.3. Tribunal africano para o Banco Mundial

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I. De Portugal sobre a realidade africana: o ponto de vista de Fernando Nobre Bamako e Djourou Fernando de La Vieter Ribeiro Nobre Abril, 2007 Os dois filmes, Bamako e Djourou , põem em evidencia os mecanismos

perversos, conscientemente elaborados e implacavelmente impostos por certas instituições (FMI, Banco Mundial, Clube de Paris...) aos países mais débeis para melhor os subjugar: a dívida externa e os planos de (des)ajustamento estrutural, autênticos assassinos económicos a soldo, são os verdadeiros braços armados das economias dominantes.

O impacto dessas novas formas de colonialismo, para não dizer de escravatura, são aterradoras para as largas dezenas de milhões de pessoas que diariamente vêem a desesperança do seu amanhã e vivem a humilhação da sua exclusão e da fome, sobretudo na África sub-sariana. O exemplo do Mali (que conheço!) é extensível a quase toda a África, assim como a muitos países da América Latina e da Ásia Meridional.

Os dramas pessoais que estas duas armas de destruição maciça (a dívida e os planos de desajustamento estrutural impostos pelo FMI e orquestrados com os seus irmãos siameses, o Banco Mundial e o Clube de Paris) provocam estão bem patentes nestes dois filmes que alertam para a realidade medonha, sendo ao mesmo tempo portadores de esperança para África. A sociedade civil africana em plena expansão e

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afirmação, sabe hoje quem são os principais responsáveis pela miséria do seu presente e pela armadilha que hipoteca o seu futuro: uma governação local corrupta e sem a mínima noção do bem público, submetida ou conivente com os planos irresponsáveis do FMI, do BM e do Clube de Paris). Está, por isso, dado o primeiro passo no sentido de exigir uma solução viável ao seu desespero actual. Tal facto está patente no filme Bamako.

Também no filme Djourou é posta a nu a perversidade do incitamento às monoculturas de exportação (em análise o paradigmático exemplo de algodão no Mali) como mecanismo de derrocada e de endividamento letal dos países que se submetem aos “conselhos” e “imperativos” dados pelas instituições já referidas.

Com estes dois filmes, estou certo de que está aberto o debate que permitirá, a termo, encontrar soluções que evitem tragédias até hoje nunca vistas: a Sul como a Norte.

Espero que a Inteligência e o Humanismo se sobreponham a tempo à Ganância e à Irresponsabilidade!

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II. África no contexto da globalização actual II.1. O neol iberal ismo ao assal to de Áfr ica Mali e Níger: a mundialização neoliberal contra os mais pobres Jean Nanga, CADTM Dezembro, 2005 Uma das características do ano que termina é que foi rico em promessas

relativas ao futuro de África.” As grandes instituições das metrópoles capitalistas quase rivalizaram em intenções generosas a seu respeito, da Comissão para a África de Tony Blair à Conta de Desafio do Milénio de G. W. Bush, do Banco Mundial sob a direcção de Paul Wolfovitz ao G8 reunido à Gleneagles, dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio da ONU ao compromisso japonês aquando da Cimeira sobre Ásia África (Abril de 2005, Djakarta). A manifestação mediatizada desta generosidade foi o anúncio da anulação de 40 mil milhões de dólares de dívida multilateral, de 18 países entre os mais pobres, quase todos eles africanos.

Toda esta generosidade parece, contudo, não ter nenhum efeito sobre a realidade. A África subsahariana permanece submetida aos mecanismos arrasadores da mundialização neoliberal, que exporemos a partir dos casos do Níger e do Mali, dois dos

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países mais pobres do planeta, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, mas dois povos que não demonstram qualquer sinal de resignação.

Níger, o país mais pobre Durante o primeiro semestre de 2005, três milhões de pessoas de todas as

idades foram expostas à fome e abandonados ao seu destino no Níger. Centenas de vítimas – sobretudo as crianças que morreriam ao ritmo de uma dezena por dia – são o resultado da seca e da invasão de gafanhotos que têm destruído os campos. Situação esta a que o governo deste país do sahel não foi capaz de se opor com qualquer dispositivo preventivo, hesitando mesmo em aceitar a realidade. Quanto à “comunidade internacional”, esperou meses e mortes, antes de se mobilizar, apesar do alarme lançado por associações locais e por muitos observadores1.

A invasão dos gafanhotos e o ano muito seco só vieram agravar uma situação já deplorável devida às políticas económicas e sociais executadas pelos diferentes regimes neocoloniais que se sucederam desde a independência. A passagem do neocolonialismo clássico das três primeiras décadas à neoliberalização apresentada como solução de modo algum produziu o efeito prometido2. Bem pelo contrário, apesar de ter sido posto sob tutela das instituições de Bretton Woods, sob a forma de Programa de Ajustamento Estrutural, desde 1981, o Níger é assim, hoje em dia, o país mais pobre do planeta, de acordo com os Indicadores do Desenvolvimento Humano (IDH) do PNUD: 63% da população vive debaixo do limiar de pobreza, cerca de 83% são analfabetos, a mortalidade infantil atingiu 121,69 ‰... O peso da dívida pública externa, cujo montante em 2005 ascende a 832,1 mil milhões de francos CFA (1,27 mil milhões de euros), isto é, 66,3% do PIB nominal, é uma das razões da incapacidade do Estado nigeriano em evitar ou fazer face a esta catástrofe social. Sendo objectivamente impossível agir sobre a pluviometria, pelo menos a luta contra a invasão dos gafanhotos teria sido efectuada com alguma eficácia, se o Estado nigeriano não tivesse como prioridade o respeito do registo do calendário do pagamento da dívida pública externa, que representava 22,4% das receitas orçamentais em 2004. Embarcado na Países Pobres Altamente Endividados (PPAE), segundo o qual era suposto reduzir o peso da dívida, o Estado nigeriano não atrasou, em nenhum destes últimos anos (com excepção do ano 2001), o pagamento do serviço da dívida. Isto em detrimento dos sectores sociais, como a saúde e a educação nos quais a

1 Conforme Jean Nanga, “Famine et marchandisation de la charité au Niger”, SolidaritéS, 69, Junho, 2005 e disponível em http://www.solidarites.ch; Claude Quémar, “Níger: vraie crise, fausses réponses”, outubro, 2005 e disponível em http://www.cadtm.org/. 2 Conforme “Niger, La mondialisation capitaliste impose un nouvel internationalisme”, entrevista com Mamane Sani Adamou, Inprecor, n° 497, Setembro, 2004.

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economia de custos, por exemplo, conduziu ao recrutamento maciço dos “voluntários” sem formação e muito mal remunerados, em substituição de uma grande parte do pessoal formado, qualificado3. Mesmo para responder à urgência social de evitar ou reduzir o impacto da crise alimentar, não podia haver derrogação da exigência do “reforço da gestão pública para ajudar efectivamente a orientar e hierarquizar as despesas”4 do programa de Facilidade para a Redução da Pobreza e o Crescimento (FRPC), de que o Estado nigeriano é “beneficiário”.

Humanismo neoliberal As vítimas desta situação de fome generalizada não correspondiam, sem dúvida,

ao perfil do pobre desenhado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Assim, foi necessário esperar pela mediatização desta realidade, deste drama, para que fosse, em parte, ouvida a reivindicação da distribuição gratuita dos alimentos para os esfomeados. Uma reivindicação de bom senso que parecia uma enormidade para o governo e para os seus parceiros da “comunidade internacional” (Estados Unidos União Europeia...), porque as suas opções eram a venda de alimentos a preços “moderados” aos esfomeados ou a troca de alimentos contra trabalho.

As famílias que ainda tinham algumas cabeças de gado, descarnadas, vendiam-nas a preços que já não podiam ser mais irrisórios do que o que eram. Outros chegavam a endividar-se, pela impossibilidade de trabalhar. “Trade, not aid”5, tal é o princípio da política de “cooperação” do governo dos Estados Unidos pelo qual zela a USAID, apoiada pela União Europeia e pelo Programa Alimentar Mundial. Este drama foi assim a ocasião para se consolidar quer as relações mercantis na sociedade quer o individualismo que a acompanha, amplificados pela época neoliberal.

É evidente que este humanismo neoliberal e espectacular apenas poderia reduzir a amplitude do desastre, não seria incapaz de lhe trazer uma solução radical. O projecto da “comunidade internacional” tantas vezes repetido é a “redução da pobreza” a longo prazo, não a sua erradicação, no entanto, objectivamente possível. Assim a crise alimentar perdura: “Os preços continuam muito elevados no mercado, o que impede numerosas famílias de comprarem os alimentos, devido à descapitalização sofrida durante a crise:” Para reembolsarem as dívidas contraídas, as famílias hipotecaram as receitas esperadas da colheita de Outubro, enquanto apenas 2/3 da terra puderam ser cultivadas

3 Ibidem. 4 http://www.imf.org/external/np/exr/facts/fre/prgff.htm. 5 “Comércio e não assistência”.

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por falta de sementes e mão-de-obra, o que aumenta a sua vulnerabilidade e o risco de desnutrição. Os efeitos da crise vão prolongar-se durante o ano 20066”. Em certas regiões, a situação das crianças agravou-se mesmo. À “comunidade internacional” falta vontade para reunir os 80 milhões de dólares que exige a situação: apenas 16 milhões de dólares foram reunidos no primeiro semestre de 2005, enquanto “as guerras do Iraque e do Afeganistão custam hoje 5,6 milhões de dólares por mês, ou seja, em termos aproximados, é o equivalente ao produto interno bruto do Níger... dum ano. E um aumento de 202 mil milhões (para os próximos seis anos) acaba de ser atribuído ao Departamento da Segurança Interna, encarregado de proteger o território e os interesses americanos7.”É-se tentado a falar de “fome neoliberal” como Mike Davis fala de “fomes coloniais”8. Porque, uma situação de fome declarada é para os generosos “doadores” um mercado possível no futuro. De forma clássica, tratava-se de alterar os hábitos alimentares dos sinistrados. Por exemplo, a uma população tradicionalmente consumidora de painço, os “doadores” ofereciam sobretudo milho ou arroz que se iria tornar, assim, um produto de consumo corrente e que era necessário importar.

Mas, hoje em dia, trata-se mais de uma oportunidade a agarrar para fazer aceitar os produtos geneticamente alterados. Assim, a posição do governo nigeriano na matéria conheceu uma evolução bastante rápida desde o reconhecimento oficial da crise alimentar. Enquanto o quadro nacional de bio segurança, elaborado em 2005, exprime uma certa prudência, em Novembro de 2005, Niamey, a capital do Níger, foi o lugar escolhido para organizar um seminário regional sobre “A cobertura mediática da biotecnologia agrícola - Constrangimentos e oportunidades para a imprensa na África do Oeste”. Um seminário organizado pelo Instituto Internacional de Investigação Agrária de Zonas Semi-áridas (ICRISAT), Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações da Biotecnologia (ISAAA) e a UNESCO. O ISAAA é um organismo que tem por vocação a luta contra a fome e a pobreza nos países ditos em desenvolvimento, sobretudo pela promoção das culturas transgénicas. Os seus principais financiadores são Cargill, Dow AgroSciences, Monsanto, Pionneer, Hi-Bred, Syngenta e estas são também as principais multinacionais dos OGM. Na altura desta operação de consolidação do “ensinamento” dos jornalistas9·, foi tornado visível a experimentação dos cereais geneticamente modificados na estação de investigação do ICRISAT, a alguns quilómetros de Niamey,

6 Amador Gomez (director técnico de Acção Contra a Fome, Espanha), “Pas de répit pour le Niger: la malnutrition infantile continue d’augmenter”, Comunicado de imprensa, 14 de Novembro, 2005. 7 Claude Angeli, “La genante franchise des géneraux de Bush”, Le canard enchaîné, 20 de Julho, 2005. 8 M. Davis, Genocides tropicaux:catástrofes naturelles et famines coloniales (1870-1900), Aux origines du sous-developpement, Paris, ed. Decouverte, 2003. O que se pode também aplicar à situação no Sudão e ao Darfur. 9 Em Junho de 2005 foi criada a Rede de Comunicações Oeste-Africanas em Biotenologia Agrícola (RECOAB).

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visitada pelos participantes no seminário. Qualquer desgraça é boa para os mercadores de produtos OGM. Assim, esta crise alimentar vai legitimar um processo de dependência agrícola acentuada, em matéria de sementes, dos camponeses do Niger, ou mesmo o desaparecimento dos mais pobres, como pequenos agricultores e pequenas agricultoras independentes que irão engrossar as filas do lumpen-proletariado.

Tendo em conta que se tratava de uma antiga colónia francesa10, situada no interior da zona de influência francesa, havia nisto tudo uma generosidade muito interesseira. A da Companhia Geral das Matérias Nucleares (Cogema, do grupo Areva)11. Esta é em grande parte dependente do urânio nigeriano, obtido de maneira fortemente monopolística desde há muito tempo. Mas os preços fixos de Cogema-Areva passaram agora a serem conhecidos publicamente, graças à relativa “abertura democrática” local e ao desenvolvimento da consciência anti-nuclear, desencadeada pela ONG local Agherin'man (escudo da alma), pela Comissão de Investigação e Informação Independente sobre Radioactividade (CRIIRAD, França) e pela Associação Sherpa (de juristas contra a impunidade de que gozam as multinacionais em matéria de violação dos direitos dos trabalhadores e, em especial, dos direitos humanos e da ecologia em geral)12. Este pôr a nu das condições de trabalho nas minas (fraca remuneração, exposição dos trabalhadores à radioactividade sem verdadeiro sistema de protecção e de controlo médico...), da poluição do meio ambiente às consequências nefastas sobre as populações vizinhas e sobre o meio ambiente corre o risco de conduzir a uma redução dos lucros no caso de se obrigar a ficar em conformidade com as normas internacionais.

A neoliberalização desenrolou-se, em grande parte, no quadro das relações franco-africanas. É, por exemplo, o caso de Vivendi que assumiu o controlo da distribuição de água13. Contudo, a privatização das telecomunicações do Níger beneficiou sobretudo a firma chinesa ZTE em progressão no mercado africano. E isto apesar do Níger pertencer à zona monetária do franco CFA. Esta concorrência, por vezes desfavorável, corre o risco de se reproduzir no que se refere à exploração futura do ouro, dos fosfatos e do petróleo. É, sem dúvida, para manter as relações privilegiadas, agora um pouco corroídas, que o Estado francês parece atribuir uma grande importância à boa organização dos 5ºs Jogos Francófonos (7-17 de Dezembro, Niamey), mas entretanto 2

10 Conforme Inprecor, nº 497. 11 “Le Niger ou le devoir de négligence”, Le Canard Enchaîné, 3 de Agosto, 2005. 12 Se bem que a accionista principal no urânio do Níger, a Cogema, é acompanhada pelas empresas espanhola ENUSA, japonesa OURD e o Estado da Nigéria. 13 Sobre as consequências desta apropriação privada da distribuição de água, leia-se o relatório de la Mission Internationale de Enquete, “Droit a l’eau potable”, Outubro, 2002.

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milhões de nigerianos correm o risco de não ter “pão” durante o desenrolar dos jogos14. A Francofonia, excepto para os muito ingénuos é com efeito a vitrine cultural de um negócio sobretudo político-económico para o capitalismo francês. Mas, antes destes jogos e durante o calvário das crianças e dos adultos mal nutridos, os projectores da actualidade franco-africana vão ser dirigidos sobre o país vizinho, que o é tanto geograficamente como na classificação em matéria de indicadores sociais ou de indiferença por parte de uma grande parte da humanidade, como o afirma um animador de Acção contra a fome: “O Mali e o Níger são países esquecidos pela Comunidade internacional, que reage às crises de maneira pontual e não no longo prazo.”15

Privatizações no Mali Em 2005, o Mali foi o país relativamente menos afectado pela invasão dos

gafanhotos e pela fraca pluviometria na região. No entanto, quase compartilha com o Níger os mesmos indicadores do desenvolvimento humano, que fazem dele o 174º país de entre 177 países.16 O que se explica também pelo estatuto comum de país pobre altamente endividado17 que respeita muito escrupulosamente os seus prazos de pagamento, por outras palavras, que não tem pagamentos em atraso. Assim, os seus maus indicadores sociais são também a consequência da política do Estado do Mali durante a fase neo-colonial precedente, colocando-o sob a pressão do FMI e do Banco Mundial. Uma década de “democracia” de modo algum melhorou a situação social herdada do período dito não democrático. Bem pelo contrário. A sucessão dos governos eleitos é também a continuidade do Estado em matéria de ajustamento estrutural neoliberal, apesar da diferença dos ritmos no que refere tanto à privatização como à liberalização dos mercados e de outros preceitos neoliberais do Banco Mundial e do FMI. A actual equipa governante, dirigida pelo general Amadou Toumani Touré, parece mais determinada que a precedente em satisfazer as instituições gestores da neoliberalização, apesar das dramáticas consequências sociais. E tudo isto em proveito dos investidores ditos estratégicos que tomam o controlo dos sectores mais rentáveis da economia dita do Mali.

14 O anúncio persistente, nestas últimas semanas, de uma nova crise alimentar desde o mês de Dezembro, pelas ONGs e pelos organismos da ONU é preocupante para o governo nigeriano que está a oferecer um espectáculo no mundo francófono, através destes jogos. Segundo alguns observadores, é, entre outras razões, para impedir que lhe seja retirada a organização destes jogos que ele não quer reconhecer oficialmente a situação de fome no início de 2005. Enquanto as crianças morriam de fome, eram construídas as vivendas para albergar os desportistas. Assim, pelo menos 15 milhões de euros foram gastos em infra-estruturas. 15 Acção Contra a Fome, “Mali/Niger: un silencieux scandale”, Dossier de Presse. 16 População abaixo do mínimo de pobreza: 63,8%; esperança de vida à nascença: 448,6%; mortalidade infantil: 116,9º/oo; taxa de analfabetismo: 53,6%. Fonte: CIA, The World Factbook. 17 Dívida pública externa em relação ao PIB nominal: 81,1%, 69,9%, 70%, e 65,9% respectivamente em 2002, 2003, 2004, 2005. Serviço da dívida: 12% das receias orçamentais em 2005 contra 12,4% em 2004.

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É com efeito no quadro desta neoliberalização que teve lugar a privatização da Empresa Pública dos Caminhos-de-ferro do Mali (RCFM). O accionista maioritário da nova empresa Transrail SA é, à partida, um consórcio canadiano-francês Canac-Getma18. Uma privatização que é bastante característica das relações de dominação capitalista: a RCFM avaliada em 105 mil milhões de francos CFA (160 milhões de euros) foi concedida por 5 mil milhões (7,622 milhões de euros). A nova empresa tomou como sua principal prioridade obter a maior taxa de lucro possível, optou pela prioridade no transporte de mercadorias contra o de passageiros19. A concretização desta opção provocou a supressão de dois terços das estações de caminho de ferro (26 em 36), enquanto durante um século a vida se tinha organizado em redor destas 36 estações (que são também aldeias). Os habitantes ficaram pois relativamente desamparados: os passageiros e as famílias dos empregados do caminho de ferros constituíam a clientela para os seus produtos. Transrail contribuiu assim para o desenvolvimento da pobreza no meio rural. Além disso, 612 ferroviários foram despedidos e certas conquistas sociais como, por exemplo, as pensões de reforma pagas às viúvas ou foram reduzidas ou foram mesmo suprimidas. O que suscitou a indignação e uma resistência popular pelo retorno à empresa pública Caminhos-de-ferro do Mali. Um movimento colectivo de cidadãos para a restituição e para o desenvolvimento integrado dos caminhos-de-ferro do Mali (Cocidirail) foi assim criado. Mas a repressão não demorou a abater-se sobre ele. O seu principal animador, um engenheiro, antigo director associado da Escola Superior Africana dos Caminhos-de-ferro, Tiécoura Traoré, pura e simplesmente foi despedido, em violação flagrante da legislação do trabalho. O Cocidirail não se deixou contudo desmobilizar.

Contra-reforma agrária Outros sectores importantes da economia do Mali são vítimas desta

reestruturação neoliberal, com graves consequências para a vida das populações de camponeses. É o caso de Office du Níger20, produtora de arroz desde o período colonial, nacionalizada após “a independência”, e sujeita a uma privatização rápida desde 1984, sob a égide do Banco Mundial, como a chave da liberalização da comercialização a partir de 1985, e com uma compressão dos seus efectivos de 70 %.

18 O consórcio CANAC-GETMA vendeu as suas acções ao grupo Lefevre e ao americano Savage Companies. 19 Os lucros mensais do transporte de mercadorias foram de 1,524 milhões de euros. 20 Situado no centro do Mali, l’Office du Níger (ON) é um projecto de reordenamento hidro-agrícola. Criado em 1932, previa inicialmente a reordenação de um milhão de hectares em cinquenta anos. Os seus principais objectivos eram: “satisfazer ao máximo a necessidade em algodão da indústria têxtil francesa e assegurar a segurança alimentar em arroz para as regiões do Sahel do império francês da África Ocidental.”

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Desde há algum tempo que se procurava levar avante a reforma fundiária que ameaça os camponeses quer porque têm o usufruto das terras do Office du Níger (ON) quer também pela forte concorrência aos grandes investidores. É contra isto que eles se opõem: “afirma-se que estamos num Estado de Direito, mas nós, os agricultores, não o sabemos. Consideramo-nos como escravos. Na ON, só há corrupção, é a vigarice e a injustiça que aí prevalecem. Pagamos as taxas legalmente no prazo fixado pelo Presidente da República. E eis que nos retiram os nossos campos de arroz para os darem aos novos beneficiários que vão colher os nossos produtos. Nós preferimos antes morrer do que perder os nossos campos. Se as autoridades não assumem as suas responsabilidades, aconteça então o que tiver que acontecer”21, Estes camponeses que trabalharam e habitaram legalmente estas terras durante décadas recusam esta perda de direitos de exploração das terras e a sua substituição por grandes investidores, sob o pretexto de não terem pago a tempo o imposto sobre a água. Aliás são confrontados com o aumento de mais de 200% do custo dos factores de produção agrícolas. Só os mais fortes financeiramente sobreviverão na selva neo-liberal. Esta reforma fundiária realiza-se no momento em que se desenvolve a mobilização das mulheres camponesas para o acesso à exploração da terra. O que torna mais difícil esta luta; é que os homens tendem a considerá-la como secundária, em vez de se apoiarem nelas para melhor fazer avançar a causa comum. Mas, não é suficiente ser vítima de uma injustiça para estar em condições de perder os seus próprios privilégios, mesmo simbólicos.

Conjuntamente com a empresa Office du Níger (ON), o outro alvo do neoliberalismo no sector agrícola é a Companhia do Mali de Desenvolvimento e dos Têxteis (CMDT), a ex-Companhia Francesa de Desenvolvimento e dos Têxteis (CFDT). É a companhia do algodão, de que o Mali é o principal produtor da sub-região. A sua privatização é um pomo de discórdia entre as instituições de Bretton Woods e o governo do Mali que teme as consequências sociais e eleitorais, tendo em conta o papel do algodão na vida rural e não só. A este respeito vale a pena citar a conversa entre Erik Orsenna e o Presidente da República do Mali.

21 Oumar Traoré, porta-voz dos camponeses do Niono, numa conferência de imprensa em 4 de Agosto de 2005, à Rádio Kavira.

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A angústia do Presidente 22 Erik Orsenna Fayard 2007 Ao nosso algodão, chamávamos-lhe o “ouro branco” e nele reconhecíamos o

ouro porque extraíamos mais de cem toneladas por ano. Durante muito tempo, o algodão foi o nosso aliado (…) Hoje, o ouro branco está em vias de se transformar na nossa maldição. O algodão é metade da nossa receita de exportações: o algodão faz viver, directamente, perto de um terço da nossa população: três milhões de homens e mulheres! E talvez perto de 15 milhões suplementares nos nossos países vizinhos. Como é que querem que renunciemos ao algodão? É verdade, aceitei garantir aos camponeses um preço superior ao do mercado mundial. Como é que poderia fazer de outro modo? Eles revoltar-se-iam! É isto, a vontade do Banco Mundial: uma outra zona de instabilidade no sul do nosso país, nas próprias fronteiras com a Costa do Marfim, de onde não deixam de chegar refugiados? Como é que quer que eu os alimente? E os meus três milhões e meio, se já não têm mais nada para comer virão para as cidades. Irão, em seguida, em direcção à França, por todos os meios: eles agarrar-se-ão mesmo até aos trens de aterragem dos aviões. É isso que querem?

Não nos largam com o nosso défice. Mas, ninguém procura saber quais as causas deste défice. Sem os subsídios que os agricultores americanos recebem do seu Estado estes produziriam um algodão mais caro que o nosso. Desde a independência, multiplicámos por vinte a nossa produção. Desde há quarenta anos, lutamos, dia após dia, por nos melhorarmos. Praticámos a fundo o jogo da concorrência. Sem a menor possibilidade de ganhar, uma vez que o jogador mais forte aldraba.

E contra a guerra das moedas entre a Europa e os Estados Unidos, que podemos nós fazer? Uma vez que pertencemos à zona Franco, nós estamos de pés e mãos atadas ao euro. Desde que este suba, o nosso algodão fica mais barato uma vez que os seus preços são fixados em dólares. Acham normal? Um país entre os mais pobres do mundo ligado à moeda mais forte? Mais, quanto mais esta sobe, mais nós descemos. E, ninguém protesta. E sobretudo, não o Banco Mundial.

A privatização em primeiro lugar. Parece que nós não temos escolha. Mas, não deixarei o Banco Mundial estoirar a nossa fileira do algodão por excesso de precipitação. É-nos necessário tempo. Há momentos em que eu me questiono se não é esse o seu

22 Este título é nosso. Este ponto e só este ponto foi retirado Erik Orsenna, Voyage aux pays du coton, petit précis de mondialisation, Paris, Fayard, 2007.

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objectivo: estoirar com a nossa produção. Esta destruição faria jeito aos nossos concorrentes e sabe-se de quem estamos a falar. Diga-lhes, já que vai a Washkington: não transigirei com a questão do tempo.”

A angústia é palpável neste militar que atravessou muitas crises e a quem nunca

faltou coragem. Que Deus, se Este existe, proteja os presidentes do Mali! A sua tarefa não é simples.

Ao sair do palácio penso, sobretudo, na confrontação brutal do tempo. A

mundialização não é somente uma questão de espaço. Ela abriu a guerra dos relógios e a mundialização torna-se assim também numa guerra de tempo, de relógios, de ritmos.

[Deslocando-se para Washington e em frente ao edifício do Banco Mundial,

acompanhemos Orsenna na sua viagem pelos países do algodão] Eu poderia levantar-me, colocar-me em frente à porta [do Banco Mundial] e colocar questões [aos homens do banco Mundial]: uma vez que vocês sabem tudo, poder-me-iam explicar os segredos do algodão?.

Mas, uma calma enorme reteve-me. Eu sabia o que todos esses peritos (do

Banco Mundial) me diriam: privatizem. Privatizações no Mali, privatizações no Egipto, privatizações no Uzebekistão, privatizações na Índia…

Como é que se pode acreditar que uma só palavra possa responder a todas as questões do mundo.

Há mais de um quarto da população do Mali, ou seja cerca de 3,5 milhões de pessoas, que directa e indirectamente vivem do algodão. Como diziam dois sexagenários aquando do Fórum dos Povos em Fana, no Mali, (escolhido como local devido ao seu estatuto de segunda região produtora de algodão), no âmbito da Conferência Popular de Camponeses (que também falou do acesso das mulheres rurais à terra) no decorrer do qual se trocaram pontos de vista com outros participantes, homens e mulheres, que vieram do Benim, Burkina Faso, etc.: “Se é necessário vender a nossa esperança privatizando a CMDT, verdadeiramente não estamos de acordo.”23 A vida diária dos pequenos camponeses e camponesas produtores de algodão conhecerá assim o destino dos seus compatriotas das estações dos caminhos-de-ferro e daqueles que se confrontaram com a ON. É em redor da CMDT que se organiza a vida social e as infra-estruturas. Mas, o

23 Awa e Kadia Coulibaly, Le Messager, de Fana, jurnal do Fórum, Junho, 2005.

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parceiro francês, Dagris, ex-CFDT (actualmente accionista com 60 %) está de fora, recusando contribuir para o financiamento do défice da CMDT, para melhor acelerar a completa privatização. Porque, se o preço do algodão aos produtores está em baixa nestes últimos anos, o algodão das regiões do franco CFA, de que o Mali foi o principal produtor até a 2004, é absorvido em 60% pelo mercado chinês. O que é em si uma vantagem para qualquer investidor que se desembaraçará de muitas despesas sociais, com a privatização completa, e isto é um compromisso assumido pelo Estado do Mali no âmbito da Iniciativa PPAE, de redução da dívida. O actual governo do Mali pôde obter do Banco Mundial e do FMI o seu adiamento em 2008 porque o ano de 2007 é um ano eleitoral no Mali!. A última missão do Banco Mundial no Mali estabeleceu as modalidades da sua privatização. Para satisfazer todos aqueles, capitais multinacionais e privados, que a desejam, que dela estão ansiosos para realizarem lucros, é a criação de filiais, certamente rentável de modo muito desigual, que foi retida como método de privatização.

Um outro aspecto desta reestruturação, liberalização do sector algodoeiro que é prejudicial aos pequenos camponeses, é a introdução de sementes geneticamente modificadas que os pequenos produtores que participam no Fórum dos Povos em Fana denunciaram vigorosamente. Com efeito, em colaboração com o Banco Mundial, a USAID, as multinacionais produtoras das sementes geneticamente alteradas, Dow AgroSciences, Monsanto, Syngenta (Novartis), iniciaram um Projecto COTI-2 de “Desenvolvimento da cultura do algodão geneticamente modificado no Mali”. Assim é programada a dependência do pequeno campesinato relativamente aos produtores de sementes. Sob o pretexto de pôr o progresso tecnológico ao serviço dos pobres é preparada, com efeito, a sua dependência assim como a marginalização dos mais desprovidos ou a sua transformação em simples proletariado agrícola, sobre-explorado.24

Legislação do trabalho em perigo Com efeito, como contrapartida da redução da dívida, compreendendo a

anulação sobre-mediatizada da dívida multilateral, o Mali deve, como o Níger, melhorar as condições de realização dos lucros. Como o disse o porta-voz do governo do Mali, Ousmane Thiam, aquando da sua visita a Paris, em Setembro de 2005, o Mali prepara “uma simplificação dos procedimentos e das formalidades ligadas à criação de empresas…. ‘a reelaboração’ do Código dos investimentos, que é não somente mais atractivo, mas que

24 Um argumento conciso contra os OGM em África: Zachary Majanya da Association Participatory Ecological Land Use Management (PELUM): “12 raisons pour l’Afrique rejeter les OGM”.

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coloca o empresário estrangeiro no mesmo pé de igualdade que o empresário do Mali25.” Trata-se não somente de confrontar o pequeno empresário do Mali com as multinacionais, mas também de reduzir ao mínimo a protecção social dos seus trabalhadores. E é isto que é sugerido explicitamente pelo governo dos Estados Unidos, dizendo que “as leis do trabalho são restritivas no Mali e a dificuldade da contratação e o despedimento são obstáculos suplementares”26. O objectivo é uma generalização do que se produziu na RCFM contra os trabalhadores organizados na defesa dos seus direitos. A criminalização da defesa dos direitos dos trabalhadores é um princípio do neoliberalismo já sentido também pelos sindicalistas da Sociedade Maliana de Exploração (Somadex). Nesta empresa de exploração do ouro em Morila, pertencendo à Bouygues, os trabalhadores reivindicam principalmente o pagamento do prémio de rendimento indexado à taxa de superação da produção27. Porque, por frenesim acumulador, a Somadex produziu, em três anos, 83 toneladas de ouro no lugar das 33 toneladas previstas pela convenção de exploração28. O que significa também uma exploração intensiva da força de trabalho. Os trabalhadores reivindicam o estabelecimento de verdadeiros contratos de trabalho, em vez dos falsos contratos de trabalho, feitos com a cumplicidade dos nacionais, o que causou o despedimento de três centenas de trabalhadores, sem o pagamento dos seus direitos e de indemnizações. Abusos que os trabalhadores não admitiram, até desencadearem em Julho de 2005 uma greve perante a recusa da direcção da empresa de aceitar o seu pedido de respeito pelos seus direitos29. A resposta da direcção, com a cumplicidade de certas autoridades locais, foi a repressão. Para a legitimarem face à opinião pública, diversos actos de violência cometidos na aldeia foram atribuídos aos trabalhadores em greve. Assim, cerca de trinta de trabalhadores foram encarcerados pela polícia. Depois, uns vinte trabalhadores foram libertados, no momento em que era preso (em Outubro de 2005), o secretário administrativo do Comité sindical, Karim Guindo. Para escapar a esta repressão, os outros líderes sindicais, entre os quais o secretário-geral, Amadou Nioutama, foram forçados à clandestinidade30. O seu principal delito é terem pretendido perturbar a acumulação dos sobre-lucros neocoloniais por esta empresa que se comporta como estando em território conquistado. O que podia, aliás, servir de mau exemplo aos trabalhadores das outras empresas que exploram o ouro no Mali e que

25 “Les investissements seront toujours bien reçus au Mali”, Marchés tropicaux, nº 3122. 26 AGOA, Competiviness Report, pag.23. 27 O ouro é o principal produto exportável (57% das exportações) do Mali, que é o terceiro produtor africano atrás do Gana e da África do Sul. 28 Conforme Marie-Eve Tejedor, “Mali: or, pillage et répression”, Novembro, 2005. 29 No princípio de Novembro foi a União Mineira dos Trabalhadores do Mali que organizou uma greve de aviso pela “aplicação de um plano social a favor de todos os trabalhadores despedidos das empresas e sociedades estatais, da reintegração dos sindicalistas penalizados e da diminuição do preço dos produtos de primeira necessidade.” 30 Segundo certas fontes, a guarda terá prendido a sua companheira e os seus filhos (…) o que faz lembrar as práticas coloniais.

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também não estão nada preocupadas com os direitos dos trabalhadores e com o respeito pelo meio ambiente31.

No entanto, esta arrogância terminou por cansar o governo do Mali cujo projecto de se manter no poder, na sequência das próximas eleições, podia ser contrariado pelo incumprimento, pela Bouygues, através da sua sucursal Saur Internacional, do contrato de parceria de Energia do Mali (EDM) estabelecido em 2000. Com efeito, a Saur Internacional revelou-se mais interessada pelos lucros a curto prazo (conseguidos com o aumento das tarifas de água e de electricidade) do que pelos investimentos que se tinha comprometido em realizar e que deviam favorecer a extensão das redes de distribuição de água e de electricidade. Assim, o Estado do Mali foi obrigado a retirar-lhe, em Outubro de 2005, o seu estatuto de accionista maioritário da EDM, violando assim o sacrossanto princípio neoliberal do emagrecimento do património económico dos Estados, enquanto a reunião dos ministros da Economia e das Finanças da Zona Franco (de 19 a 20 de Setembro de 2005, em Paris) acabava de recomendar, designadamente, que “prossiga a aplicação do programa económico e financeiro apoiado pelo FRPC, nomeadamente as reformas estruturais nos sectores algodoeiros e da electricidade”. Este acto, de motivação sobretudo eleitoralista, valeu-lhe uma missão especial do Banco Mundial e do FMI, cujo programa de luta contra a pobreza não inclui a diminuição das tarifas de água e de electricidade em defesa dos pobres, além disso aplicadas por uma empresa maioritariamente estatal.

(…) Resistências A reprodução da pobreza não é em-si uma fatalidade. O ano que termina foi

também um ano de resistência à ordem que é imposta aos povos pelos mestres da mundialização neoliberal e pelos seus elementos de ligação locais. Com a indiferença total da opinião pública internacional, certas organizações da sociedade civil do Níger aliaram-se para se mobilizar, apesar das intimidações e da repressão, contra a vida cara expressa pela aplicação do imposto do IVA a 19% sobre os géneros de primeira necessidade. Uma

31 Uma outra empresa importante de exploração do ouro no Mali é a SEMOS que pertence 38% à AngloGold (África do Sul), 38% à IamGold (“júnior” do Canadá e bem presente no mercado mundial), 18% ao Estado do Mali, 6% à Sociedade Financeira Internacional, membro do grupo do Banco Mundial, fundada em 1956 sob a inspiração dos Estados Unidos e que se apresenta como “a mais importante fonte de financiamento sob a forma de créditos e de tomada de participações para os projectos do sector privado nos países em desenvolvimento. Ela facilita um desenvolvimento durável do sector privado”. Sobre as consequências sociais e ecológicas da exploração do ouro em Sadiola, consulte-se o relatório da missão de inquérito da ONG, Amigos da Terra, em http://www.amisdelaterre.org/.

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medida anti-social inscrita no âmbito da integração regional da África do Oeste. Se o actual presidente em exercício da União Africana, o chefe do Estado da Nigéria, o General Olosegun Obasanjo, não tem a cínica franqueza do seu colega senegalês Abdoulaye Wade que exprime a sua adesão clara aos valores do capitalismo americano32, ele defende, é certo, o mesmo sistema de valores. Disso está continuamente a dar provas não só confiando o Ministério da Economia e das Finanças a um tecnocrata do Banco Mundial, mas também insistindo no projecto de aumento do preço da gasolina e do petróleo para as lamparinas. Isto, apesar do sucessivo sucesso das chamadas à mobilização geral, lançadas por certas centrais sindicais em articulação com o movimento democrático33, contra esta medida que resulta de uma alienação dos recursos petrolíferos em proveito das multinacionais e de alguns capitais privados nigerianos e que só faria agravar a pobreza da maioria da população nigeriana. Quanto a Thabo Mbeki, a sua reeleição 2004 não impediu a contestação popular da sua política social, incluindo a da central sindical Cosatu, aliada do ANC. Contra as reivindicações sociais nos bairros degradados pensou mesmo em enviar a polícia. O que não deixaria de recordar um passado recente. Assim, por detrás do seu discurso nacionalista sobre “o Renascimento Africano” revela-se antes um projecto de integração de uma parte da elite negra nos circuitos do capitalismo neo-liberal34.

As elites governamentais africanas aplicam os preceitos do neoliberalismo também para os seus interesses privados. Preparam a asfixia do pequeno campesinato, articulando reformas fundiárias neoliberais e introdução de sementes geneticamente modificadas. Foi isto que as associações de camponeses presentes no Fórum dos Povos em Fana, a cimeira alternativa ao G7 (Junho, Mali) denunciaram vigorosamente35. Infelizmente, a presença das associações de camponeses de outras regiões da África, para além da África do Oeste, foi fraca. O mesmo se pode dizer relativamente aos sindicatos africanos e de outras componentes do Fórum Social Africano, das quais é, no entanto membro, o Fórum dos Povos. E isto quando se tratava de uma ocasião muito particular: um fórum de vocação continental que se celebra sempre em zona rural, que permite aos camponeses e às camponesas locais estarem mais como presentes do que como representadas, de trocar pontos de vista com todos os restantes, de outros lados, de outros países. A vizinhança do Mali e o Níger deveria ter sido aproveitada para consolidar as solidariedades permanentes, embora ainda embrionárias, alargá-las na sub-região, para

32 Segundo o Cocidirail, Abdoulaye Wade seria um dos beneficiários da privatização de RCFM, através de um falso nome francês. 33 A última mobilização social organizada em meados de Setembro foi lançada pelas centrais sindicais agrupadas na frente sindical Lasco. (…) O prémio Nobel da literatura, Wole Soyinka apelou e participou nesta mobilização. 34 A obra de William Mervin Gurnede sobre Mbeki (Thabo Mbeki and the battle of the soul of the ANC, Cidade do Cabo, editions Zebra Press, 2005) é esclarecedora sobre este tema. 3535 Sekou Diarra, “Reinvindications citoyennes au Mali”, Manières de voir, Dezembro-Janeiro, 2005-2006.

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começar, aí onde reinam às vezes as mesmas multinacionais de distribuição de água, de electricidade, de exploração mineira, de venda de OGM. O mesmo, por exemplo, entre os ferroviários do Mali e do Senegal contra os seus Estados e contra os compradores privados dos caminhos-de-ferro nacionais: a exemplo dos sindicatos africanos dos estivadores, da África do Sul até à Nigéria, que coordenam as suas lutas contra as bandeiras de conveniência.

A organização no Mali duma cimeira alternativa à 23ª cimeira França-África é uma iniciativa que deveria ser continuada. Não somente contra a França-Africa, mas também contra as outras missas de organização do empobrecimento dos povos. Contra a opinião favorável que parece ter a AGOA36 em certos meios, que parece ilustrar o diálogo da confederação das ONG do Senegal (Congad) com o AGOA, é necessário também recordar a natureza do capital americano, que não é nem menos imperialista nem menos criminoso socialmente que o capital francês. Recordemos que a recente intervenção dos Estados Unidos na Libéria, contra o regime oligárquico do senhor de guerra Charles Taylor – que beneficiava do apoio do capitalismo francês – favoreceu a exploração pela Firestone, com toda a impunidade, “de maneira quase esclavagista da mão-de-obra empregue na sua plantação de héveas na Libéria”, na qual se incluem dez mil crianças37.

É pois contra as diferentes facetas desta ordem que se é necessário organizar. Para um outro mundo possível desembaraçado da exploração de seres humanos por outros, de todas as opressões, é necessário construir solidariedades permanentes, sobretudo com os mais pobres, para uma alternativa radical. Uma radicalidade altermundista africana em solidariedade com as radicalidades extra-africanas, sem as hierarquias herdadas dos passados esclavagista e colonial. Mas também sem “negrismo”, porque a alternativa ao racismo não pode ser um “racialismo”. (…) A organização do Fórum Social Mundial policêntrico em Bamako, pela proximidade geográfica, é uma oportunidade que se não deve perder para organizar a discussão colectiva e democrática sobre a solidariedade permanente, para uma alternativa africana radicalmente altermondialista.

Tradução livre de excertos de: (i) Jean Nganga, “Mali & Niger: la mondialisation néolibérale contre les plus pauvres”, CADTM, 19 de Dezembro, 2005, artigo disponível em http://www.cadtm.org/imprimer.php3?id_article=1712; e (ii) Erik Orsenna, Voyage aux pays du coton, petit précis de mondialisation, Fayard, Paris, 2007

36 A Lei de Crescimento e Oportunidades para África (AGOA) é um acordo comercial, até 2015, entre quarenta países da África Subsariana e os Estados Unidos da América. 37 “Labour Group sues Bridgestone on Libéria Rubber plantations”, Reuteurs, 18 de Novembro, 2005. Ver http://www.za.today.reuters.com. A Firestone está na Libéria desde 1926. A guerra que conduziu Taylor ao poder, travou relativamente a actividade do fabricante de pneus. (“Labour group sues Bridgestone on Liberia rubber plantation”, Reuters, 18 novembre 2005. www.za.today.reuters.com. Firestone sévit au Liberia depuis 1926. La guerre ayant conduit Taylor au pouvoir, avait relativement entravé l’activité du fabricant de pneus.)

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II.2. O Mali vítima da dívida A propósito do filme Bamako: O Mali vítima da dívida Jean Tosti, ATTAC Novembro, 2006 Os números são implacáveis: o Relatório sobre o Desenvolvimento

Humano, publicado anualmente pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), mostra que em 2005 o Mali figura entre os quatro países deserdados do mundo. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) situa-o com efeito em 174ª posição entre os 177 Estados para os quais a O.N.U dispõe de dados. Só o Brurkina Faso, a Serra Leoa e o Níger são ainda mais pobres que ele. No entanto, o país dispõe de importantes riquezas, por exemplo, o ouro (e brevemente o petróleo), ou ainda uma abundante produção de algodão, de arrozes e de painço, sem estar a contar com uma criação de bovinos, caprinos e ovinos, dos quais é tradicionalmente exportador. Certamente, existem os anos de seca ligados ao clima da região do Sahel, mas não são suficientes certamente para explicar a extrema miséria de um país que não conheceu nenhuma verdadeira guerra desde a sua independência, a não ser uma curta confrontação com o Brurkina Faso em 1985 e alguns conflitos com os Touareg.

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Um pouco de geografia e história A maior parte de nós mal conhece a geografia de África. Para situar

facilmente o Mali sobre um mapa, é suficiente recordarmo-nos da fronteira meridional da Argélia, uma forma de grande triângulo com aspecto de um V traçado em pleno Sahara. Da ponta deste triângulo, parte uma vertical que separa dois Estados: a oeste o Mali, a leste o Níger. Para tanto basta dizer que uma vasta parte do território maliano, muito pouco povoada se situa numa zona desértica, enquanto o essencial da população vive a Sul, em especial sobre as margens do rio Níger, onde se encontra a capital, Bamako, com o seu milhão de habitantes. As outras cidades importantes, situadas na parte sudoeste na sua maioria, são Kayes, Ségou, Mopti e Sikasso. No total, o território do Mali ocupa 1.241.238 km2, para uma população de mais de 13 milhões de habitantes. Considera-se que cerca de 90% dos habitantes do Mali são muçulmanos.

Uma das fraquezas do país, é a sua falta de acesso ao mar. Nem sempre foi assim na história, na época em que o Mali estava no centro de um vasto império, e onde, durante séculos, as caravana montavam e desciam sem repouso o rio Níger, fazendo etapa nas cidades míticas de Gao e Tombouctou. A colonização francesa começa no fim século X, efectuado pelo general Gallieni. Anexado à África Ocidental Francesa (AOF), este país chama-se primeiramente Alto-Senegal-Niger, seguidamente Sudão Francês (1920). Qualquer actividade política é proibida até ao fim da segunda guerra mundial, e é necessário esperar por 1946 para se criar o partido do Rassemblement Africain Democratique (RDA). Em 1956, o Sudão Francês torna-se uma república autónoma da Comunidade Francesa. Funda, em 1959, com o Senegal, a Federação do Mali, que proclama a sua independência a 20 de Junho de 1960.Três meses mais tarde, a federação desagrega-se, e o Sudão ex-francês torna-se a República do Mali a 22 de Setembro de 1960.

O seu primeiro presidente é Modibo Keïta. Sem se estar realmente a procurar aproximar do bloco soviético, conduz uma política orientada para o socialismo, cujos sucessos são anulados por problemas monetários: o franco maliano, criado em 1962, é desvalorizado em 1963 e seguidamente em 1967, após alguns anos de inflação galopante dos quais a população suporta os custos. Aproveitando a insatisfação geral, o militar Moussa Traoré organiza um golpe de Estado em 1968 e torna-se por sua vez presidente da República. Cria e dirige, durante mais de vinte anos, uma ditadura sangrenta, com a bênção da França e das IFI (Instituições financeiras internacionais), até à sua inversão de sentido de marcha em 1991 por um outro militar, o general Amadou Toumani Touré.

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Condenado à morte pelos seus crimes políticos e pelos importantes desvios de fundos, Moussa Traoré está hoje em liberdade, após um perdão presidencial dado em 2002.

Os números da pobreza O índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um indicador compósito que

mede três dimensões do bem-estar humano: rendimento, saúde e educação. Os dados não são por conseguinte exaustivos, mas permitem uma avaliação bastante fiável do desenvolvimento comparado dos diferentes países. Os dados abaixo, relativos ao Mali, são os do IDH de 2005:

1. PIB per capita: 371 dólares 2. Pessoas que vivem com menos de um dólar/dia: 72,3% 3. Pessoas que vivem com menos de dois dólares/dia: 90,6% 4. Taxa de analfabetismo dos adultos (15 anos e mais): 81% 5. Taxa de escolarização no primário: 45% (raparigas: 39 %) 6. População privada de acessos a um ponto de água arranjado: 52% 7. Consumo anual de electricidade per capita: 33 kW/h 8. Parte do PIB consagrada à saúde pública: 2,3% 9. Número de médicos: 4 para 100.000 habitantes 10. Pessoas que sofrem de desnutrição: 29% 11. Esperança de vida em anos: 47,9 12. Taxas de mortalidade infantil: 122‰ 13. Taxa de mortalidade (crianças com menos de 5 anos): 220‰. Desde 1991, o Mali segue a via da "boa governança" preconizada pelos Estados

do Norte, pelo Banco Mundial e pelo FMI (Fundo Monetário Internacional): o seu presidente, Alfa Oumar Konaré (1991-2002), instaurou o multipartidarismo e comprometeu-se, mais ainda que o seu antecessor, na liberalização da economia, aplicando à letra os preceitos do "consenso de Washington": redução das barreiras aduaneiras, liberalização dos mercados financeiros, privatizações. Um todo com resultados particularmente amargos para a população do Mali, cuja situação não cessou de se deteriorar, sobretudo, após a desvalorização do franco CFA em 1994. Presidente da República desde 2002, Amadou Toumani Touré (este mesmo que derrubou anteriormente Traoré onze anos antes) não parece disposto a inverter a tendência, apesar de algumas veleidades honrosas.

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A engrenagem da dívida Esquecemo-lo frequentemente, a maior parte das antigas colónias francesas

encontrou-se endividada desde o princípio da sua independência: São elas que tiveram que pagar o saldo dos empréstimos contraídos pela França alguns anos antes. Por injusto que isto fosse, esta dívida era contudo suportável. Assim, apesar das infelicidades monetárias de Modibo Keïta, a dívida externa maliana não excedia 55 mil milhões de francos CFA em 1968, enquanto hoje ela ascende (final de 2004) a 1.705 mil milhões, sempre em francos CFA. Mesmo tendo em conta a desvalorização de 1994, a ascensão é vertiginosa. O essencial desta dívida foi contraído durante a ditadura de Moussa Traoré, com a benção da França, do FMI e do Banco Mundial. Os números abaixo, desta vez em dólares, são particularmente impressionantes:

1970: 249 milhões de dívida externa pública 1980: 727 milhões 1990: 2467 milhões 1999: 3183 milhões A isto é necessário acrescentar o serviço da dívida, que passou de 16 milhões

de dólares em 1980 a 106 milhões em 1999 (ou seja, 57 mil milhões de francos CFA). E como o Mali é um devedor particularmente escrupuloso, o Mali reembolsa, mas para assim ser tem que recorrer a novos empréstimos das instituições financeiras, que estas se apressam a atribuir, desde que o país aplique planos de ajustamento estruturais que permitem, segundo a fórmula consagrada, "sanear o sector público": diminuição drástica do número de funcionários e do seu salário, flexibilidade da legislação do trabalho, liberalização do sector bancário, liberalização de preços e do comércio, supressão das taxas à importação, e tudo isto acompanhado de uma cascata de privatizações.

É certo, o Mali beneficia da iniciativa PPAE (Países Pobres Altamente Endividados) desde o ano 2000 o que provocou uma diminuição do serviço da dívida. Além disso, em 2005, o G8 comprometeu-se a que as instituições financeiras anulem o montante da dívida multilateral do Mali, ou seja, 1060 mil milhões de francos CFA. Bela promessa, mas que até agora não foi acompanhada de efeitos! É tempos de passar das promessas aos actos, e de anular sem contrapartida a totalidade da dívida do Mali e do conjunto dos países pobres. Pensemos que, se o Mali quisesse reembolsar só o conjunto da sua dívida, demoraria 106 anos, ou seja o sacrifício de quatro gerações.

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A engrenagem das privatizações Sem estar a citar aqui todas as privatizações já realizadas ou programadas,

insistir-se-á nalguns exemplos particularmente desastrosos. Em primeiro lugar o da Empresa Pública dos Caminhos-de-ferro do Mali (RCFM), saldada ao desbarato em 2003 para um consórcio franco-canadiano pela soma de 5 mil milhões de francos CFA, enquanto a empresa era avaliada por 150 mil milhões. Este serviço público assegurava o transporte dos passageiros na parte maliana da linha Dacar-Koulikoro. Mas, os novos proprietários, em função de critérios de rentabilidade, julgaram melhor privilegiarem o frete em relação aos passageiros. Resultado: 612 ferroviários despedidos e 26 estações fechadas em 36. Terminadas as relações inter-vilas assim como a venda de géneros ao parar dos comboios.

Outro exemplo catastrófico é o da sociedade Energia do Mali (EdM), responsável pela produção e a distribuição de electricidade e de água potável. Por iniciativa do Banco Mundial, a gestão desta sociedade é confiada em 2000 à Saur Internacional, sucursal do grupo Bouygues, que se compromete a reduzir os preços ao consumo e a desenvolver as infra-estruturas, nomeadamente electrificando 97 localidades e construindo uma nova estação de bombagem em Kabala. Nenhum destes compromissos é realizado. Bem pelo contrário, os preços da água e da electricidade explodem, e Saur não hesita em perseguir os maus pagadores. Em 2003, o presidente Touré exige e obtém uma baixa das tarifas de 10%, mas, dois anos mais tarde, constatando que os investimentos prometidos não tinham sido realizados, ele rompe o contrato que o vinculava à Saur, para grande pena do Banco Mundial.

Que dívida? Que credores? Quando se evoca a dívida dos PED (países em desenvolvimento), trata-se

essencialmente de dívida externa pública (contraída pelos Estados junto dos credores externos ao país). Pode-se distinguir três tipos de dívida pública, de acordo com a natureza dos credores:

1. Dívida multilateral: O credor é uma instituição financeira multilateral (FMI por exemplo).

2. Dívida bilateral: O credor é outro Estado (para assegurar a cobrança dos seus créditos, a maior parte dos Estados credores constituíram o Clube de Paris).

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3. Dívida privada: O credor é um organismo privado, geralmente um banco (estes credores são agrupados no Clube de Londres).

Tratando-se do Mali, a dívida privada é nula (demasiado arriscado para os bancos!). A dívida multilateral constitui 57% da dívida global (da qual 34% à Associação Internacional de Desenvolvimento, AID, organismo do Banco Mundial, 13% ao Banco Africano de Desenvolvimento e 6% ao FMI). A dívida bilateral (43 %) reparte-se em 30% ao Clube de Paris e 13% à China, à Arábia Saudita e ao Kuwait.

Precisão: Não se confundirá a dívida global com o serviço da dívida, ou seja com o que o devedor deve reembolsar anualmente (anuidades da dívida, às quais se acrescentam os juros).

Mas o grupo Bouygues continua bem presente no Mali. Através da Sociedade maliana de exploração (Somadex), gere uma das principais minas de ouro do país, a de Morila, explorando ao mesmo tempo o ouro e os trabalhadores, que trabalham em condições terríveis (utilização de cianureto sem nenhuma protecção), enquanto os sindicalistas e os grevistas são despedidos e perseguidos. Decididamente, a colonização tem a vida dura, e a Francefrique aí continua bem!

Igualmente tão grave, são as ameaças que pesam sobre o pequeno campesinato (ou seja mais de 70% da população activa do Mali) com, nomeadamente, a privatização rápida do Office do Níger (ON), que gere a produção de arroz na região de Ségou, em 82.000 ha de superfícies irrigadas. Para além da compressão previsível dos efectivos, tenta-se instaurar uma reforma fundiária que, a prazo, porá termo ao usufruto de que gozam os camponeses sobre as terras do ON, com benefício para os grandes investidores. Mas isto não é tudo...

O algodão: da esperança à apreensão Uma outra privatização está com efeito prevista para 2008, a da Companhia

Maliana de Desenvolvimento e os Têxteis (CMDT), herdeira da ex-Companhia Francesa de Desenvolvimento e dos Têxteis (CFDT), que organiza a produção, a transformação e a comercialização do algodão. Também aqui, é o Banco Mundial que está na origem desta privatização e que segundo esta instituição permitirá tornar o algodão maliano mais competitivo.

É necessário saber que hoje o algodão faz viver, directa ou indirectamente, 3,5 milhões de pessoas, ou seja mais do quarto da população do Mali. Representa, por si só, cerca de 50% das exportações do país, mas a sua cultura não apresenta quase nenhum dos

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inconvenientes constatados noutros continentes: é praticada sobre pequenas parcelas, em rotação com as culturas alimentares (estas últimas ocupam mais de 70% das terras cultivadas em zona algodoeira); não exige nenhuma irrigação, a não ser a das chuvas; o uso de adubos e de pesticidas é necessariamente limitado, até por falta de meios financeiros.

Por outras palavras, o Mali, como os outros países produtores da África Ocidental e Central (AOC), nomeadamente o Brurkina Faso, o Benim e a Costa de Marfim, fornecem um algodão limpo, de excelente qualidade e muito barato. Graças a este algodão, o nível de vida dos populações gradualmente tem melhorado, pelo menos até aos anos 1990 mas, devido à sobreprodução à escala mundial, a cotação do algodão afundou-se em poucos anos: de 271,7 cêntimos/quilo, passou para 181,9 cêntimos em 1990, e seguidamente desceu em 2001 para 110,3 cêntimos. O problema, é que esta baixa dos preços não é vivida da mesma maneira pelos produtores do Norte e pelos dos do Sul. Os Estados Unidos, que são o mais forte exportador mundial de algodão, subvencionam maciçamente os seus agricultores, como o faz aliás, noutro lugar, a União Europeia aos seus produtores da Espanha e da Grécia. Mas estas subvenções, que são em grande parte a causa da sobreprodução à escala mundial são, por isso mesmo, responsáveis pela diminuição das cotações, são, em princípio, incompatíveis com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas, alto aí, as regras não são aplicáveis da mesma maneira, são-no consoante se é pobre ou se é rico. E, quando em 2003 quatro Estados da AOC levantaram o problema na conferência da OMC de Cancun, todos os participantes ou quase todos lhes deram razão, com um tom frequentemente amigável, mas nenhuma decisão foi tomada.

Mas, voltemos à próxima privatização do CMDT pois esta suscita largas apreensões. Até agora, o Mali soube conservar um sábio equilíbrio entre o algodão e as culturas alimentares. Mas, este equilíbrio é frágil, e pode-se temer tudo dado o apetite de grupos privados que favoreceriam o reagrupamento das terras e a monocultura. E isto, tanto mais quanto outra ameaça paira sobre o algodão do Mali: a dos aprendizes de feiticeiro fabricantes de OGM, em especial a Monsanto e a Syngenta, já instaladas no país graças ao Banco Mundial, e que desenvolveram com ele um "Projecto de desenvolvimento da cultura de algodão geneticamente modificado no Mali".

Banco Mundial e FMI O Banco Mundial e o Fundo monetário internacional (FMI) são as mais

conhecidas das Instituições Financeiras Internacionais (IFI). Ambas foram criadas no fim

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da segunda guerra mundial pelos acordos de Bretton Woods (Julho de 1944). A primeira chamava-se então BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento), e tinha por objectivo favorecer a reconstrução da Europa e dos outros países destruídos através de empréstimos a longo prazo. Alargou depois o seu campo de acção ao conjunto do planeta e das actividades económicas. No que respeita a África, e mais geralmente aos países mais pobres, criou em 1960 a AID (Associação Internacional de Desenvolvimento), que é hoje o principal credor do Mali.

Quanto ao FMI, a sua tarefa era a de zelar pela estabilidade do sistema financeiro internacional, emprestando a curto prazo a países com problemas temporários de balança dos pagamentos. Seguidamente, as duas instituições, com matizes diferentes mas dificilmente perceptíveis, fizeram-se os apóstolos da mundialização neoliberal, nomeadamente a partir dos anos 1980, condicionando os seus empréstimos à aceitação de planos de ajustamento estrutural. No FMI assim como o Banco Mundial, os Estados são representados pelo princípio "um dólar = uma voz". Por outras palavras, os Estados mais ricos, a começar pelos Estados Unidos, dispõem de um poder exorbitante que lhes permite ditar a sua lei ao resto do mundo.

A maior parte das iniciativas do Banco Mundial e do FMI saldaram-se por malogros frequentemente retumbantes, quer seja na Argentina para o FMI ou em África subsahariana para o Banco Mundial. Daí a ideia central do filme Bamako: Porque não processar estas duas instituições dado o conjunto dos estragos que provocaram através do mundo?

Qual futuro para o Mali? Ter-se-á compreendido à luz do que acaba de se escreveu, que o futuro do Mali

não passa certamente pelos remédios do FMI e do Banco Mundial, cujos Planos de Ajustamento Estrutural contribuíram largamente para o empobrecimento do país. Também não passa sem dúvida pela cópia de modelos ocidentais, sobretudo quando estes já bem mostraram os seus limites e os seus perigos nos países do Norte. É o caso da descentralização, que se tem tornado hoje o cavalo de batalha do governo do Mali, e de que a França descobre desde há alguns anos os efeitos perversos.

É já tempo de se afirmar que o futuro do Mali passa pelos próprios malianos, e que não temos nem lições nem "conselhos iluminados" a dar-lhes. É suficiente de resto constatar a situação actual das pretensas democracias ocidentais para nos convencermos. Quanto à corrupção, que seria, ao que parece, uma gangrena própria de África, mesmo

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aqui também estamos mal colocados para dar lições aos outros. E é tanto mais assim quanto um ou outro político corrupto é julgado e condenado em África, o que só muito raramente acontece na França e nos outros países do Norte.

É necessário acabar com a infantilização dos povos africanos de ares colonialistas. O povo maliano luta desde há vários anos contra as privatizações que se sucedem. Está, sem dúvida, mais consciente que nós dos perigos da mundialização liberal, porque a sofre em cheio e dela nada aproveitam. O facto do último Fórum Social Mundial se ter celebrado em parte em Bamako (Janeiro de 2006) mostra até que ponto os Malianos se sentem atingidos pelos problemas da globalização.

São pois eles que devem tomar em mãos o seu destino, o que não significa que não os possamos ajudar: A França é um dos principais credores do Mali, quer pessoalmente, quer como membro do Banco Mundial ou do FMI. Devemos fazer pressão sobre os nossos eleitos e o nosso governo de modo que a dívida insuportável do Mali seja anulada sem contrapartida, da mesma maneira que a dos outros países mais pobres do mundo.

Tradução livre de: Jean Tosti, “A propósito do filme Bamako: O Mali vítima da dívida”, Attac, 66, Novembro, 2006. Artigo disponível em http://www.local.attac.org/pau/epona/spip.php?article335.

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II.3. Os acordos que Bruxelas impõe a África Raoul-Marc Jennar, Oxfam Fevereiro, 2005 A 23 de Junho de 2000, a União Europeia (UE) e 77 países da África, Caraíbas

e do Pacífico (ACP) assinam a Convenção de Cotonou (Benim). Um texto típico das iniciativas da União desde há uma quinzena de anos. Por detrás dum discurso humanista, solidário e generoso, perfila-se uma Europa a ser lança de ferro da mundialização neoliberal, que impõe os seus pontos de vista àqueles a quem presta a sua ajuda38.

Nem sempre foi assim. Em 1963, a assinatura da Convenção de Yaoundé (Camarões) estabelece o primeiro acordo entre a Comunidade Económica Europeia (CEE) e 18 Estados africanos e malgaches associados. Este incide sobre o comércio, com preferências pautais não recíprocas a favor dos produtos destes países, sobre a cooperação financeira e técnica e incide principalmente sobre projectos de infra-estruturas económicas e sociais. Em 1975, sob o impulso do Comissário Europeu Claude Cheysson, é assinada a primeira Convenção de Lomé (Togo) com um grupo de antigas colónias agrupadas sob o acrónimo ACP.

Na sua criação está bem assente a ideia de parceria e de solidariedade, e esta convenção refere-se a 46 países, dispondo de um secretariado em Bruxelas. Lomé I prevê preferências pautais não recíprocas para as exportações da zona ACP para a CEE, e instaura um mecanismo de "estabilização das exportações", dito Stabex, que visa

38 A ajuda ascende a 13,5 mil milhões de euros para o período 2000-2007.

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compensar o défice das receitas de exportação provocado pela flutuação dos preços nos mercados mundiais. O acordo inclui protocolos favoráveis às exportações da zona ACP em sectores como o açúcar, a carne de bovino e a banana. Financia infra-estruturas e programas agrícolas. Em 1979, 58 países assinam Lomé II em que, relativamente a Laomé I, se acrescenta o Sysmin, que é a versão do Stabex adaptada aos produtos mineiros.

De 1984 a 1995 sucedem-se as convenções Lomé III, IV e IV revista, que se referem agora a 70 países. Gradualmente, os acordos impregnam-se das teses neoliberais emergentes. O cumprimento dos planos de ajustamento estrutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o apoio ao desenvolvimento do sector privado tornam-se condições impostas aos países ACP. Para dar boa imagem, a União inclui o respeito dos direitos humanos.

Um sentido notável da solidariedade Após a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, a

necessidade "de se inserir na economia mundial" torna-se a prioridade. Em 1996, a Comissão Europeia quer ter em conta o fim da guerra-fria, a criação da OMC, o impacto dos conflitos e as catástrofes naturais e o contexto institucional interno dos países ACP. Propõe a negociação de uma nova convenção, que será assinada quatro anos mais tarde em Cotonou.

A União escolheu impor as regras da OMC aos países ACP em vez de se associar a eles para as tornar mais equitativas. Escolheu fazer com que os países menos avançados (PMA) da zona ACP (40 em 77) perdessem as derrogações que lhes atribuem as regras da OMC quando estes não assinam acordos de comércio livre39. As preferências pautais não recíprocas devem desaparecer. Não são com efeito compatíveis com as regras da OMC que impõem a reciprocidade: os países ACP devem abrir-se aos produtos europeus da mesma maneira que o mercado comunitário se abre aos produtos ACP. O Stabex e o Sysmin são assim eliminados.

Para atingir os seus fins, a União Europeia impôs a divisão dos países ACP – demasiado propensos a constituírem um bloco nas negociações internacionais – em zonas com as quais negociará separadamente um acordo de comércio livre baptizado "Acordo de Parceria Económica Regional" (APER) compatível com os acordos da OMC. A União financiará programas em três sectores: o apoio aos planos de ajustamento estrutural, o

39 Erik Rydberg em colaboração com Anne Graindorge et de Stéphanie Devlésaver, “EPA ou PAS? Introduction critique aux Accords de partenariat économique”, Cahiers des Alternatives, Groupe de recherche pour une stratégie économique alternative (GRESEA), GRESEA, n°6, Novembro, Bruxelas, 2004.

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apoio ao diálogo social e à integração regional nas zonas criadas para os acordos de parceria.

Cotonou traduz uma evolução radical: passa-se do respeito da soberania ao dogma que um mercado "liberto" dos obstáculos à concorrência favorecerá obrigatoriamente o crescimento. A primazia das regras internacionais do comércio e da finança internacional é confirmada. Assim, o artigo 36 impõe a compatibilidade de todo e qualquer acordo com as desregulações pretendidas pela OMC; o artigo 41 impõe a regra da liberalização dos serviços no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (AGCS); o artigo 46, o da aplicação das disposições sobre as patentes contidas no Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (ADPIC) da OMC; o artigo 67, que diz respeito aos planos de ajustamento estrutural do FMI.

A União forçou com toda a sua força a obtenção de um acordo que lhe conviesse. Como o constata Séverine Rugumamu, professora na Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia), "pelo facto de que possui recursos institucionais e económicos intrinsecamente superiores, a União Europeia está em condições de impor a ordem de trabalhos da negociação e definir os critérios de cooperação no sentido que entender40". Naturalmente, a Convenção de Cotonou não põe em causa as cláusulas de salvaguarda e os mecanismos proteccionistas que os Europeus concederam a si mesmos, em especial no dossier agrícola. É isto que lamenta um relatório da O.N.U: "Os países desenvolvidos consideraram que valia a pena proteger cerca de 3% a 4% da população activa dos prejuízos da instabilidade e da baixa tendencial dos produtos básicos, opondo-se totalmente à utilização de instrumentos análogos para proteger 70% à 80% da população dos países em desenvolvimento muito mais pobres, e para quem o único meio de subsistência é a agricultura41."

As negociações sobre os APER começaram em Setembro de 2003. A partir da sua abertura, a Comissão, negociador único em nome dos Estados-Membros da União, impôs a língua de trabalho, o conteúdo e o ritmo, apesar dos protestos dos governos ACP. Os documentos são redigidos em inglês, e as discussões têm lugar nesta mesma língua. Ora os países referidos da África, que representam 94% da população ACP, têm, e numa grande proporção, o francês como língua veicular. É pois frequente, de acordo com diplomatas africanos, que os negociadores europeus forcem decisões, enquanto os seus

40 Séverine Rugumamu, "Le nouvel accord de partenariat entre les ACP e l’Union Européenne ne résout pas tout ", Coopération Sud, n° 2, PNUD, Nova Iorque, 2000. 41 CNUCED, "Le développement économique en Afrique." résultats commerciaux et dépendance à l’égard des produits de base”, Relatório da CNUCED, Nações Unidas, Genebra, 2003.

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interlocutores ACP de língua francesa mal acabam de receber dos seus colaboradores a tradução dos documentos sobre os quais se devem se pronunciar. A União – mas, o que é que pesa a Francofonia quando são os lucros das firmas francesas que estão em causa? – tem por quantidade negligenciável 20 dos 48 Estados africanos cujo francês é a língua oficial.

Com um sentido notável da solidariedade, os governos ACP pediam um acordo quadro válido para todos, como condição prévia para a abertura de negociações separadas sobre os APER. Em vão. Hoje, a Comissão trata o secretariado ACP como uma "estrutura ligeira para a troca de informações de modo a assegurar a coerência ao nível da Europa-Grupo ACP42". Dividiu este grupo em seis regiões: África Ocidental, África Central, África do Leste e Corno de África, África Austral, Caraíbas e região Pacífico. Esta separação arbitrária não corresponde às organizações regionais existentes, e não foi proposta pelos principais interessados, finalmente obrigados a aceitarem os diktats europeus. Desde Setembro de 2003 que a União Europeia negocia separadamente com cada uma das seis regiões.

Para a Comissão, não é uma questão de tratar os países ACP como parceiros, mas, sobretudo, de os colocar em concorrência, uns com os outros, isto é, de acordo com a fórmula doravante consagrada, "integrá-los no comércio mundial". As negociações visam substituir os mecanismos de solidariedade das convenções de Lomé pelos da concorrência económica e comercial organizada pela OMC. A Convenção de Cotonou força assim as economias fracamente desenvolvidas a enfrentarem, em pé de igualdade, as empresas dos países mais ricos43. A visão do mundo que propaga agora a UE, tal como os Estados Unidos, é organizada em torno da ideia dominante de competição.

Os países ACP repetem que "as regras existentes da OMC não são de molde a favorecer a aplicação de estratégias de desenvolvimento coerentes nos países ACP, e devem ser adaptadas de forma a terem em conta as suas situações e os seus interesses específicos44". A Comissão a isto é indiferente. Esta exige nomeadamente a rigorosa aplicação dos AGCS, em especial no que se chama, na gíria, o "modo 3", ou seja, a supressão das restrições aos investimentos no domínio dos serviços, enquanto o volume dos investimentos com destino aos países ACP representava, em 2000, apenas 1,5% do total mundial. Trata-se, com efeito, de impedir que estes países escolham eles mesmos

42 Comunicado da Comissão Europeia de 21 de Outubro de 2004. 43 Ler Raphaël Ntambue Tshimbulu, "l’Union Européenne face au feu de la critique", Manières de voir, n° 79, "Résistences africaines ", Janeiro-Fevereiro de 2005. 44 Secretariado ACP, "Négociations ACP-UE des AP." Points de convergence et de divergence", ACP/61/113/03 Rév. 1, Bruxelas, 28 de Setembro de 2003.

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os investidores estrangeiros e que possam definir que tipo de sociedade se propõem construir.

Além disso, a União esforça-se por impor, aquando destas negociações, aquilo que nestes domínios, não pôde obter no âmbito da OMC: a concorrência, de que é necessário assegurar, de acordo com uma expressão digna do tratado constitucional europeu, o carácter "livre e não falseado"; os mercados públicos, onde a União entende que as empresas estrangeiras e empresas nacionais devem ser tratadas em pé de estrita igualdade; e por último o investimento, onde reclama uma desregulação dos regimes em vigor na maior parte dos países ACP.

Operar com toda a liberdade Para justificar as suas exigências, a União assume o discurso dos grupos de

pressão patronais segundo o qual as desregulações favoreceriam os investimentos. Este discurso já não é credível: multiplicam-se os estudos sobre a centena de acordos bilaterais que comportam as cláusulas reclamadas pela União, e todos eles relativizam o impacto destas desregulações nos fluxos de investimentos45. Mesmo o Banco Mundial é obrigado a reconhecer que "a análise dos fluxos de investimento directos estrangeiros nos últimos vinte anos provenientes dos países da OCDE para os países em desenvolvimento não demonstra que os acordos bilaterais sobre o investimento suscitaram investimentos suplementares46".

Mas pouco importa. As firmas europeias propõem-se trabalhar com toda a liberdade onde investem, e aproveitar o máximo da ausência de exigências salariais, de legislações sociais e de restrições ambientais. O seu braço direito, a Comissão, por conseguinte é solicitada insistir, e tanto mais quanto, sobre estas perguntas, ela se limpou de um forte malogro aquando da última conferência ministerial da OMC tida em Cancun em 2003. Apesar da recusa repetida dos países africanos em verem estes temas sobre a mesa47, e usando, nas negociações APER, de uma relação de forças que lhes é aqui mais favorável que na OMC, a Comissão esforça-se por o impor aos países ACP, depois de os ter dividido.

45 African Development Bank, International Investment in Africa: Trends and Opportunities, Abidjan, 2001; UNCTAD, A Positive Agenda for Developing Countries: Issues for Future Trade Negotiations, UNCTAD, Genebra, 2000; Banco Mondial, Global Economic Prospects and the Developing Countries 2003: Investing to Unlock Global Opportunities? Banco Mundial, Washington DC, 2003. 46 Mary Hallward-Driemeier, Do Bilateral Investment Treaties Attract FDI?, Banco Mundial, Washington DC, 2003. 47Nomeadamente pela declaração de Dacar dos ministros do comércio dos países menos avançados (5 de Maio de 2004); pela declaração de Kigali de ministros do comércio da União Africana (28 de Maio de 2004) e pela declaração de Grand Baie dos ministros do comércio dos países da zona ACP (11 de Julho de 2004).

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A 21 de Junho de 2004, em Maputo (Moçambique), as centenas de associações africanas, reunidas por um convite de Third World Network-Africa, uma das redes altermundistas mais activas, adoptam a declaração de Maputo48. Esta é um verdadeiro documento fundador da resistência africana à recolonização pelo comércio livre, denuncia os APER como um instrumento da dominação europeia nos mercados emergentes; como uma agressão contra os direitos à autodeterminação e à soberania sobre os recursos e as capacidades dos Estados; como uma vontade de exacerbar as tensões entre subgrupos africanos e como uma negação das preocupações legítimas dos países africanos que pedem uma mudança das regras da OMC. Retomada pelo Fórum Social Africano (Lusaka, Zâmbia, Dezembro de 2004), apela-se à transformação radical das relações entre a Europa e os países ACP, fundada sobre um princípio: a emancipação dos povos africanos deve ser a sua própria obra.

Tradução livre de: Raoul-Marc Jennar, “Ces Accords que Bruxelles impose à l’Afrique”, Le Monde Diplomatique, Fevereiro, 2005. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2005/02/JENNAR/11912.

48 http://www.acpsec.org/summits/maputo/maputo_declaration_en.html.

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II.4. Compreender o problema da dívida Dette & Développement A dívida continua ser uma verdadeira calamidade para as populações dos países

do Sul. Resultados de uma política de dívida irresponsável tanto por parte dos governos dos países credores como por parte dos países devedores, só as populações dos países devedores assumem o seu custo, desde há mais de vinte anos, ao preço de milhões de vidas humanas: o reembolso da dívida priva com efeito os Estados de recursos necessários para o financiamento dos sectores sociais essenciais. Hoje ainda, numerosos países pobres consagram mais ao reembolso da sua dívida do que às despesas de saúde. Milhões de crianças são privadas do acesso à educação básica. Através do mundo, 30.000 crianças morrem, cada dia, vítimas da extrema pobreza. Esta constatação não é aceitável.

Os países ricos, que concentram a grande maioria das riquezas do mundo, têm uma pesada responsabilidade na acumulação desta dívida insuportável. Pretendem ser considerados solidários, mas a ajuda pública ao desenvolvimento que concedem, é certo, aos países do Sul não excede os 50 mil milhões de dólares por ano, enquanto no mesmo tempo, estes pagam cada ano mais de 350 mil milhões de dólares para o reembolso da sua dívida. Esta situação é agravada pelos condicionalismos económicos, políticos e financeiros drásticos (privatizações, liberalizações, redução das despesas públicas...) impostos pelos países credores e pelas Instituições financeiras internacionais aos seus devedores. Na ausência de qualquer critério transparente para a anulação da dívida, o destino destes países fica dependente do querer e das condições arbitrárias dos seus credores.

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A anulação da dívida é por conseguinte uma primeira etapa essencial à satisfação dos direitos humanos fundamentais.

É por isso que a plataforma Dette & Développement defende a anulação da dívida dos países do Sul. Prossegue três objectivos essenciais:

1. Que se considere mais importante a vida que a dívida, ou seja anular a dívida sempre que o seu reembolso impeça um país de efectuar políticas sociais vitais para as populações.

2. Esclarecer a utilização dada aos créditos passados, frequentemente em proveito de elites corrompidas e dos interesses políticos e económicos dos países ricos, para que se anulem as dívidas ilegítimas, para que os verdadeiros responsáveis do sobreendividamento a paguem e para terminar com as práticas culpadas do passado.

3. Perante as actuais soluções arbitrárias, ao sabor dos interesses dos credores, defendemos a criação de um direito internacional da dívida, elaborado pelo conjunto dos actores em causa e não somente pelos credores.

Tradução livre de: Dette & Développement, “Comprendre le problème de la dette”. Artigo disponível em http://www.dette2000.org/comprendre_le_probleme_dette.php

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II.5. A violência discreta e o poder do dinheiro: a força da humilhação Cinquentenário do Clube de Paris Credores discretos, unidos e todos poderosos Damien Millet, Presidente da CADTM-França Eric Toussaint, CADTM-Bélgica Le Monde Diplomatique Junho, 2006 Uma dívida de cerca de 2.500 mil milhões de dólares tornou-se, para os países

do Sul, uma carga insuportável. Seria necessário ainda mais para comover o Clube de Paris, cartel opaco dos países credores do Norte, encarregado de renegociar a dívida pública bilateral dos países devedores que têm dificuldades de pagamento. A sua lógica friamente financeira acrescenta-se à do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que, de facto, controlam numerosas economias em desenvolvimento.

Estamos em 1955. O presidente argentino Juan Domingo Perón acaba de ser

derrubado por um golpe de Estado militar. Preocupado em ser aceite no plano internacional, o novo regime procura muito rapidamente aderir ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial. Tem necessidade de regularizar o problema da sua dívida e de se encontrar com os principais países credores. A 16 de Maio de 1956, na reunião teve lugar em Paris, sob proposta do ministro francês da economia, nasceu o

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Clube de Paris. Cinquenta anos mais tarde, tornou-se, ao lado do FMI e do Banco Mundial, um instrumento central na estratégia dos países credores para conservarem uma influência total sobre a economia mundial. O seu objectivo é o de renegociar a dívida pública bilateral dos países do Sul que têm dificuldades de pagamento. Inicialmente composto de onze países, compreende agora dezanove49.

Entre 1956 e os finais de 1980, apenas trinta acordos são assinados pelo Clube. Antes de 1976, incomodava-se mesmo em reunir-se para países cuja dívida era julgada demasiado pequena: só a Argentina, o Brasil, o Chile, a Indonésia, o Peru, o Camboja, o Paquistão e o Zaire foram então recebidos. Após a crise da dívida50, produz-se uma grande aceleração. Entre o início 1981 e Maio de 2006, trezentos e setenta acordos são concluídos, com representantes de oitenta e um países devedores. O triste recorde é detido pelo Senegal (recebido catorze vezes desde 1981), à frente de Madagáscar (doze vezes), do Níger e da República Democrática do Congo (onze vezes). O montante total das dívidas tratadas (reescalonadas ou anuladas) excede os 500 mil milhões de dólares.

O desenrolar das reuniões plenárias, em geral mensais, atinge o nível de ritual51. As delegações do país sobreendividado e os seus credores sentam-se em redor da grande mesa de conferência. As Instituições multilaterais – FMI, Banco Mundial, Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), bancos regionais de desenvolvimento, etc. – estão igualmente presentes. O presidente do Clube – frequentemente o director do Tesouro de França – ou um seu colaborador abre a sessão. O chefe da delegação do país sobreendividado expõe de maneira formal as razões da sua presença. Desde há vários meses que as autoridades do seu país já tomaram contacto com o Clube e tiveram de sujeitar-se a duas condições muito restritas: apresentar um pedido de renegociação que se baseia na impossibilidade de prosseguir os reembolsos tal como estão estabelecidos e concluir um acordo com o FMI que assegura que tudo será feito para evitar que a situação se repita… Aquando da sua audição, o país sobreendividado, por conseguinte, já teve que se submeter às exigências dos seus credores, o que reduz a nada a sua margem de manobra para essa reunião.

Seguidamente, o representante do FMI expõe detalhadamente as reformas encaradas pelo Fundo para tirar o país desta má situação, antes que os peritos do Banco Mundial e da UNCTAD completem o quadro. A sessão das questões-respostas pode então começar. No final, a delegação do país endividado é convidada a retirar-se de modo que os

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Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Japão, Noruega, Países Baixos, Reino Unido, Rússia, Suécia, Suíça. Outros países credores podem–se ocasionalmente juntar-se-lhes. 50

Em Agosto de 1982, o México decreta uma moratória sobre o pagamento dos juros da sua dívida; outros países da América Latina fazem o mesmo, mas no fim de alguns meses, todos entram na ordem. 51

Conforme David Lawson, Le Club de Paris. Sortir de l’engrenage de la dette, L’Harmattan, Paris, 2004.

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membros do Clube "negociem" entre si. Uma vez encontrado um acordo, o presidente informa a delegação do país do Sul, que teve que aguardar distanciado enquanto o seu destino estava a ser selado. Se não fica satisfeito, as discussões podem-se retomar mas, o seu poder de persuasão é mínimo. Após a assinatura da acta, só tem que se congratular na frente dos meios de comunicação social do acordo obtido e agradecer aos países credores.

As condições de vida das populações pobres não entram em consideração para esta agência de cobrança de fundos: "Os credores do Clube de Paris desejam recuperar ao máximo os seus créditos." Assim, pedem o pagamento imediato de um montante tão elevado quanto possível. Os montantes que não podem ser pagos são reescalonados em condições que equilibrem os pagamentos futuros e com o objectivo de minimizar a possibilidade que o devedor venha, no futuro, apresentar aos credores do Clube de Paris um pedido adicional52.

Será então por acaso que as ligações estreitas entre o Clube e os grandes bancos sejam frequentemente utilizadas? Jean-Pierre Jouyet deixou a presidência em Julho de 2005 para assumir o posto de presidente não executivo da sucursal francesa do banco Barclays. O anterior secretário-geral do Clube, o Sr. Emmanuel Moulin, assumiu em Janeiro de 2006 as suas novas funções no Citibank, primeiro grupo bancário mundial...

O Clube de Paris apresenta-se ele próprio como um grupo informal, "uma não instituição". Não tem nem existência legal nem estatutos. Em teoria, as conclusões das suas discussões consistem em simples recomendações. Ficam efectivas apenas quando os Estados credores, independentemente, decidem aplicá-las via acordos bilaterais. Só estes têm um valor jurídico. No entanto, os Estados-Membros do Clube seguem sistematicamente as suas recomendações pelos compromissos resultantes do princípio de solidariedade que os une. Uma maneira hábil de diluir as responsabilidades: o Clube de Paris não é em nada responsável dado que ele não força sequer os Estados; mas, paralelamente, estes Estados nada mais fazem do que aplicar as recomendações que ele decidiu. Além disso, desempenha um papel fundamental dado que permite apresentar uma frente unida para a cobrança dos créditos bilaterais. Pelo contrário, cada Estado do Sul está isolado. A sua situação é estudada numa base casuística em função de dados fornecidos pelo FMI, e que de resto são frequentemente ilustrados por previsões exageradamente optimistas53.

52 http://www.clubdeparis.org/ 53 Por exemplo, em Agosto de 1997, um relatório do FMI e do Banco Mundial sobre o Burkina Faso toma como base, para o período 2000-2019,

um crescimento do montante total das exportações de 8% por ano. Após a queda de 35% do preço do algodão em 2001, o montante das exportações com efeito reduziu-se 14% entre 1998 e 2002. Conforme L’Afrique sans dette, CADTM-Syllepse, Paris, 2005, p. 175.

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Rápido a preconizar a "boa governança" aos outros, o Clube não se sente obrigado a aplicá-la a si mesmo. A agenda das sessões nunca é tornada pública antecipadamente; o teor das discussões internas e o posicionamento dos diferentes membros nunca é conhecido; as reuniões desenrolam-se à porta fechada, sem um único observador. Apreciando a confidencialidade, o Clube não aparece na cena mediática a não ser que seja para se defender. No entanto, nestes últimos anos, e por três vezes, esteve muito na actualidade.

Anulações de geometria variável Em Novembro de 2004, a dívida do Iraque foi objecto de negociações

excepcionalmente longas. Os Estados Unidos e os seus aliados na invasão militar de Março de 2003 reclamavam a anulação de 95% dos créditos dos países do Clube para com o Iraque. A França, a Rússia e a Alemanha não queriam exceder 50 %. O acordo fez-se sobre 80% em três vezes, ou seja 31 mil milhões de dólares sobre os 39 mil milhões devidos aos países do Clube54. Anular uma dívida é por conseguinte possível quando fortes interesses geo-estratégicos estão em causa. Foi já o caso, em Abril de 1991, do Egipto, quando apoiou Washington na primeira guerra do Golfo; em Maio de 1991, da Polónia que deixa o pacto de Varsóvia; em Dezembro de 2001, do Paquistão, quando aceitou ajudar os Estados Unidos na sua intervenção no Afeganistão. Em Janeiro de 2005, após o tsunami, ao largo da Indonésia – mais de duzentos e vinte mil mortes – , numerosas associações mobilizaram-se para exigir a anulação da dívida dos países atingidos. Na frente do barulho mediático trazido por esta reivindicação, o Clube de Paris decidiu aplicar uma moratória de um ano sobre a Indonésia e sobre o Sri Lanca. Estes dois países deverão pagar entre 2007 e 2010 o que deviam reembolsar em 2005. Não somente nenhuma anulação foi estabelecida, como também, e dado que não reembolsam na data prevista, se podem aplicar juros suplementares, ser aplicados pelos países credores quando há moratória.

Em Outubro de 2005, o Clube de Paris aceitou anular os dois terços da dívida da Nigéria, primeiro produtor africano de petróleo, (ou seja 18 mil milhões dos 30 mil milhões de dólares). Isto é mesmo o tipo de falsa boa notícia: a Nigéria deve reembolsar os seus atrasados para com os países do Clube nos seis meses seguinte de modo a que um terço do total seja anulado. Para obter o outro terço, deve esperar que o FMI lhe dirija um relatório em que se assume como satisfeito e proceder a outros reembolsos. A Nigéria vai,

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Apreciemos a habilidade dos credores nesta ocasião. Aproximadamente metade dos 39 mil milhões de dólares devidos provinham de pagamentos atrasados que datam da primeira guerra do Golfo, enquanto um embargo financeiro impedia Saddam Hussein de os reembolsar.

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por conseguinte, sujeitar-se ainda mais às exigências do FMI e pagar 12,4 mil milhões de dólares em alguns meses, quando os atrasados datam da ditadura militar dos anos 90 e constituem uma "dívida odiosa" (ou seja contratada por regimes não democráticos55. De acordo com o presidente da Comissão das Finanças da Câmara dos Representantes da Nigéria, Farouk Lawan, é "inconcebível que a Nigéria pague 5,14 mil milhões de euros para o serviço da sua dívida durante os dois últimos anos, mas, que ao mesmo tempo o peso desta dívida tenha aumentado de 5,73 mil milhões de dólares na ausência de novo empréstimo." Esta situação não se pode mais manter. Devemos rejeitar esta dívida"56."

Recentemente, os pedidos de reembolso antecipado ao Clube de Paris multiplicam-se. No verão de 2005, a Rússia reembolsou 15 mil milhões de dólares e, em Maio de 2006, enquanto acolhe nesse ano a cimeira do G8, o clube aceitou o princípio do reembolso antecipado da sua dívida restante, ou seja 22 mil milhões de dólares. Em Dezembro de 2005, o Brasil anunciava um pagamento antecipado da totalidade que devia (2,6 mil milhões de dólares). Em Maio de 2006, a proposta da Argélia de reembolsar 8 mil milhões de dólares era aceite igualmente. O Brasil e a Argentina recentemente têm feito do mesmo modo para com o FMI, reembolsando de uma só vez respectivamente 15,5 e 9,8 mil milhões de dólares.

A sua dependência global em relação à dívida permanece, dado só que puderam realizar esta operação (caso da Argentina) apenas, à custa de novas dívidas para com outros credores. Mas, permite-lhes libertarem-se da sua subjugação ao FMI e ao Clube, e escapar aos seus diktats sobre a sua política económica (e por conseguinte social). A conjuntura é favorável. Com efeito, a combinação de taxas de juro bastante baixas, prémios de risco em baixa e preços das matérias-primas em alta geraram um muito forte aumento das reservas cambiais nos países em desenvolvimento: quase 1.600 mil milhões de dólares no fim de 200457, tanto quanto a sua dívida externa pública.

O argumento segundo o qual estes países devem endividar-se para financiar o seu desenvolvimento não é sustentável. O recurso ao empréstimo serve essencialmente para assegurar a continuação dos reembolsos. Perante este impasse emergiu a ideia que os países em desenvolvimento põem conjuntamente uma parte das suas reservas de parte a fim de constituir o seu próprio banco de desenvolvimento e o seu próprio fundo monetário. Em Março de 2006, em Caracas, a criação de um Banco do Sul esteve na ordem de trabalhos de uma reunião dos presidentes dos bancos centrais da Venezuela, do

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Nota de tradução: para estudar o conceito de dívida odiosa consulte-se o caderno de textos de apoio ao filme Mobutu, Rei do Zaire, disponível no sítio “África começou mal, África está mal”, em http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int. 56

Courrier international, Paris, 27 Abril 2005. 57 Banco Mundial, Global Development Finance 2005, Washington, Abril 2005, p. 165. A China, a Malásia, a Tailândia, a Índia e a Coreia do Sul

têm reservas cambiais superiores à sua dívida externa pública, acontecendo o mesmo com os países da África do Norte e o Médio Oriente.

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Brasil e da Argentina, sob olhar atento de outros países da América do Sul. Além disso, a Venezuela comprou 1,6 mil milhões de dólares de títulos da dívida argentina. Se este país for em breve objecto de uma sessão do Clube de Paris, a Venezuela deverá ser convidada a estar ao lado dos países credores... Se certos países endividados se organizassem para se concederem mutuamente assistência, então toda a lógica defendida pelo Clube de Paris seria completamente abalada.

Tradução livre de: Damien Millet e Eric Toussaint, “Cinquantenaire du Club de Paris Des créanciers discrets, unis et tout-puissants”, Le Monde Diplomatique, Junho, 2006. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/imprimer/13533/3bad84bc32.

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II.6. A caravana da dignidade contra os arames farpados A caravana da dignidade contra os arames farpados da injustiça e da indiferença Fórum para Outro Mali, Grupo de Artistas e de Intelectuais Africanos para a Ética e a Estética http://www.autremali.org/ Outubro, 2005 Depois dos acontecimentos dramáticos de Melila e de Ceuta, o Fórum para

Outro Mali e o Grupo de Artistas e de Intelectuais Africanos para a Ética e a Estética lança uma “Caravana da dignidade contra os arames farpados da injustiça e a indiferença”.

Mártires da guerra económica Algures, em lugar cada vez mais incerto, hostil e mortífero, é o horizonte que

vislumbram milhões de homens e mulheres da África frequentemente forçados ao exílio. São perseguidos, maltratados e expulsos porque tentam escapar ao desemprego que se tem tornado crónico, assim como à humilhação diária, que é o seu corolário.

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Se esta realidade não é específica à África subsahariana, atinge actualmente uma dimensão das mais trágicas, face aos assaltos repetidos dos cidadãos dos nossos países aos arames farpados de protecção de Ceuta e de Melila.

As estatísticas dão conta de perto de doze mil tentativas de passagens clandestinas do Magrebe para a Europa de que terão resultado mais de quatro mil mortes desde 2000. Trata-se de inocentes que pagam com as suas vidas, as escolhas e decisões macroeconómicas das quais não são nem responsáveis nem mesmo estão informados.

Pudica e hipócrita é a denominação “vítimas da emigração clandestina” que é como são chamados. Os cidadãos da África subsahariana que morrem aos milhares sobre os caminhos do exílio são mártires da guerra económica e comercial que arrasa os seus países de origem. No seu conjunto, são jovens.

Antes do abandono das suas terras e das suas famílias, não têm, na sua maior parte, nenhuma ideia do deserto e do mar, nem mesmo dos riscos que têm de enfrentar para terem direito a um trabalho decente, lá longe, na Europa. São uns a seguir aos outros, vão-se embora, enfrentam o mar de areia do Sahara e, depois, o mar Mediterrâneo. Devem sobretudo fazer frente aos muros da incompreensão e da injustiça que simbolizam os arames farpados de Ceuta, de Melila e outros obstáculos materiais e imateriais.

No Mali, na Nigéria, nos Camarões, no Gana, na Costa do Marfim donde são originários, a vida deixou de ter sentido e o futuro deixou de ter nome, devido à destruição da agricultura do pequeno camponês e da função pública que evolui em paralelo com as privatizações das empresas bem como dos serviços públicos em nome de uma suposta eficácia económica.

A Europa liberal, que organiza, financia e organiza esta caça ao homem sabe, perfeitamente que esta faz parte deste processo de desmantelamento das economias africanas, com a tentativa de as reestruturar em conformidade com os seus próprios valores, as suas normas e os seus interesses. Sabe igualmente ou terá aprendido, no âmbito do referendo sobre a sua constituição, os riscos de descontentamento e de desestabilização ligados às escolhas e às decisões não concertadas e não conformes com a vontade social. Tem, em suma, dificuldade em provar, no seu próprio seio, a validade do modelo neoliberal que nos impõe. A Europa liberal quereria que a África, que ela explora, tenha êxito onde ela começa a falhar, negando ao mesmo tempo a sua parte de responsabilidade no empobrecimento do continente e na mendicidade da maior parte dos seus habitantes

A esta hipocrisia das nações ricas e industrializadas acrescenta-se a demissão e a indiferença dos líderes africanos que permanecem surdos e mudos perante a tragédia dos

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seus cidadãos que pagam pelas escolhas e pelas decisões macroeconómicas ditadas pelo FMI e pelo Banco Mundial.

É verdade que entre aqueles que passam através das malhas da rede dos caçadores de emigrados ditos clandestinos, não injectam dinheiro nas nossas economias moribundas não atenuando assim o sofrimento de muitas famílias e o mal-estar social. Esta vantagem justifica a indiferença e o silêncio dos nossos Estados e das nossas instituições perante os riscos em que encorrem os nossos cidadãos?

A Espanha, a Itália, o Marrocos, a Líbia e a Tunísia são os países cujos nomes aparecem, incessantemente, na gestão dos fluxos migratórios provenientes da África subsahariana.

Confiando ao Magrebe, a tarefa ingrata de conter estes fluxos, a União Europeia semeia o grão da discórdia entre países que, realmente, sofrem dos mesmos males.

Perante esta evolução dramática da questão da emigração, a União Africana não tem nem mais voz nem mais presença do que os Estados que a compõem. Tudo se passa como se, a nível nacional e regional, os líderes africanos tivessem feito a escolha de não verem para terem de reagir, e indispor a Europa, o seu principal financiador. Porque as verdadeiras causas da emigração maciça confundem-se com as da destruição do tecido económico e social devido às reformas estruturais que nos são impostas pelas Instituições de Bretton Woods, o G8 e a União Europeia.

A mundialização neoliberal que muitos parece uma abertura arrancada a ferros é, com efeito, uma guerra contra as populações africanas sem defesa, abandonadas ao seu destino de não solventes tanto no seu interior das suas fronteiras nacionais como no seu exterior.

Estamos portanto na presença de um mártir que deveria questionar tanto as potências ocidentais como os próprios Estados africanos

O paradoxo do Mali O Mali que é considerado um bom aluno da comunidade internacional e que,

a esse respeito, está entre os 18 países mais pobres que acabam de beneficiar da “anulação total da sua dívida” para com as instituições de Bretton Woods é a ilustração perfeita da ignomínia da ordem económica dominante. Os seus cidadãos contam-se por centenas entre os refugiados económicos que estão nas margens do Mar Mediterrâneo antes de ser rejeitados, frequentemente sem água nem alimentos para os confins do Sahara.

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Primeiro produtor africano de algodão, o Mali não deixa de ser um dos países

mais pobres entre os mais pobre da Terra. Os seus camponeses são condenados a aceitar para a campanha deste ano, de 2005, o preço irrisório de 160 francos CFA o quilo de algodão contra 210 francos CFA em 2004 ao mesmo tempo que os Estados Unidos da América e a União Europeia concedem subsídios aos seus próprios produtores de algodão e que em Liverpool, os algodoeiros, como todos os ano, brindam à glória do liberalismo.

Raros são os analistas, observadores e meios de comunicação social que reconhecem explicitamente a relação de causa e efeito entre a sabotagem das economias e das democracias africanas e o exílio das populações, principalmente jovens. Deixam de insistir na relação entre esta situação e a violência armada incluindo as guerras civis. A União Europeia está, visivelmente, mais preocupada com a “transparência” das eleições e a boa governação que consiste em olhar pelos interesses das multinacionais, em vez promover uma cidadania que permita às populações africanas defender os seus direitos económicos e políticos.

Fazer oposição às políticas neoliberais impostas a África é, portanto, a única e exclusiva saída, para a fuga dos braços e dos cérebros, que se efectua em condições cada vez mais humilhantes e desumanas.

A sociedade civil africana deve assumir todas as responsabilidades fazendo deste tema um terreno privilegiado de demonstração do cinismo da ordem dos ricos e de reivindicação dos direitos dos povos a uma vida melhor tanto nos seus países como no exterior.

A dor das mulheres O papel das mulheres africanas é central nesta última luta pela libertação do seu

continente. A deterioração do papel do Estado, a venda ao desbarato das empresas do continente e a privatização dos serviços públicos condenam a grande maioria delas a redobrarem os seus esforços para alimentar as famílias e criar as suas crianças. Mas, com falta de emprego e sem perspectiva de futuro, estas podem-se fazer matar ao tornarem-se crianças soldado em guerras de adultos ávidos de poder ou ao tomarem os caminhos do exílio.

Cinco a vinte pessoas caíram em Ceuta, mortas, na noite de 28 para 29 de Setembro de 2005, por balas, ao tentarem passar o muro de arame farpado que os impede

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de alcançar o seu objectivo: o trabalho na Europa. Medina registou, há algumas semanas, a mesma tentativa de passagem forçada que se multiplica.

Como dormir e viver em paz no Mali, no Níger, no Gana, nos Camarões... enquanto se organiza na Europa, a nível mais elevado e com os meios mais sofisticados, a caça às nossas crianças das quais o único erro é procurar escapar ao desemprego?

Somos um grupo de mulheres do Fórum para Outro Mali (FORAM) e da Rede de Artistas e de Intelectuais Africanos para a Ética e a Estética que, em nome de todas as das mães de África decidiram vir a Ceuta, a Medina... e à Europa para lembrar que querendo organizar o nosso continente, de acordo com as suas normas e os seus interesses, as potências ocidentais destroem partes inteiras das nossas sociedades. As falsas anulações de dívidas e aumento da Ajuda Pública ao Desenvolvimento não têm qualquer significado face à gravidade dos prejuízos gerados.

A marcha da dignidade Como o seu naufrágio, aquando da travessia de Mar Mediterrâneo, os assaltos

repetidos das vítimas africanas da mundialização neoliberal, contra os muros de arames farpados de Ceuta e de Melila, farão brevemente parte da rúbrica das farsas (fait-divers). Recusamo-nos a acomodarmo-nos a esta terrível perspectiva de banalização da morte das nossas crianças.

Permanecemos fiéis ao pensamento segundo o qual a única riqueza que existe é constituída pelos seres humanos. Na sequência dos caçadores do Manden, pensamos que “qualquer país, qualquer terra que veria estes homens desaparecer da sua superfície ficaria imediatamente nostálgica”. Ora, tudo prova que o capital mundial, na sua expansão, tem necessidade da África e das suas riquezas, mas sem os Africanos.

Assim, retomamos, por nossa conta, esta declaração das mulheres malianas, aquando do levantamento popular de Março de 1991: “morreremos onde perecem as nossas crianças”.

A marcha que empreendemos de 15 a 30 de Outubro de 2005 pretende ser uma etapa na chamada de atenção das consciências que se impõe. Com ela pretende-se:

1) Impulsionar o debate nacional e regional sobre as migrações internacionais

para levantar o véu sobre as suas causas profundas e estruturais da emigração maciça; 2) Esclarecer ainda mais a relação entre este fenómeno e o carácter desleal do

comércio mundial no qual se inclui as políticas de preços das matérias-primas, a

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desindustrialização do continente, o seu sobre-endividamento, a miséria e a desordem das populações;

3) Convidar e incentivar estas populações, neste caso as mulheres e os jovens, a defender melhor localmente os seus direitos económicos, políticos e sociais no âmbito das eleições que, de momento, são apenas uma fachada;

4) Desafiar o G8, o FMI o Banco Mundial e mais particularmente a União Europeia quanto à sua vontade de libertar a África do peso da dívida externa e das condicionalidades que são incompatíveis com a soberania, a democracia e a dignidade humana;

5) Agrupar e consolidar mais ainda os movimentos sociais africanos, europeus e mundiais na sua luta para a justiça económica, a igualdade e a liberdade para todos os homens e todas as mulheres de circular livremente.

Marcha por iniciat iva de: Aminata D. Traoré, escritora; Assetou Founè Samake, professora de Universidade; Awa Cissé, artesã; Coumba Touré, poeta; Doussou Bagayoko, cantora; Nahawa Doumbia, cantora; Diarra Fatoumata Traoré, economista; Bernadette Yadi Sukho, economista; Diakite Fanta Diarra, camponesa; Awa Sylla, jornalista; Rabia Abdelkrim, socióloga.

Tradução livre de: Forum pour un autre Mali; Réseau des artistes et intellectuels africains pour l’éthique et l’esthétique, “La caravane de la dignité contre les barbelés de l’injustice et de l’indifférence”, Libération Afrique, Solidarité internationale et luttes sociales en Afrique subsaharienne, 17 de Outubro, 2005. Artigo disponível em: http://www.liberationafrique.org/spip.php?article904

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II.7. Uma anulação das dívidas à espera de melhores dias Christian Chavagneux Alternatives Economiques 2005 A anulação da dívida não será suficiente para regular as dificuldades dos países mais pobres. É necessário redefinir as políticas de ajuda pública ao desenvolvimento. Tony Blair e o seu ministro das Finanças Gordon Brown obtiveram em

Londres, em meados de Junho, o acordo dos outros grandes países industrializados do G7 e da Rússia para anular 40 mil milhões de dólares da dívida externa dos países pobres muito endividados. "É um passo em frente na longa batalha para libertar os países da crise da dívida", comentou imediatamente o representante de Eurodad, uma grupo de organizações não governamentais (ONG) mobilizadas em torno da questão da dívida. Mas, o problema da dívida dos países pobres está ainda longe de estar regulado. E o futuro dos fluxos de ajuda pública internacional continua a ser incerto apesar da multiplicação actual das promessas e dos projectos.

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Um presente bonito e pouco dispendioso Primeira vitória: dezoito países58 vão beneficiar duma anulação total da sua

dívida junto do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Banco Africano para o Desenvolvimento. A factura vai ascender a cerca de 1,5 mil milhões de dólares por ano para o conjunto dos países ricos. Certamente, estamos longe da anulação da dívida dos países pobres muito endividados (180 mil milhões de dólares), mas os 40 mil milhões anunciados representam cerca de metade da dívida externa total dos países em causa e a quase totalidade da sua dívida multilateral. Uma dezena de outros países poderão a prazo aproveitar da medida, levando as anulações a atingirem os 55 mil milhões de dólares no total.

Segunda vitória: para os países pobres cuja situação se degrada devido à conjuntura internacional (aumento brutal dos preços do petróleo, forte baixa do preço das matérias primas exportadas…), o G8 propõe a constituição de um novo fundo destinado a apoiar estes países através de uma ajuda suplementar.

Terceira vitória: estas anulações deveriam ser financiadas por orçamentos de ajuda adicionais, sem os estar a extrair dos actuais recursos das instituições, excepto para o caso do FMI59. Os Estados Unidos, reticentes em comprometerem-se com ajudas, aceitaram este princípio. É verdade que esta deveria representar apenas algumas centenas de milhões de dólares de ajuda suplementar por ano, uma bagatela. O que explica em parte o resultado final: o presente é bonito e não é muito caro.

Os países ricos permanecem bem na lógica dos pequenos passos que sempre mantiveram: reembolso da dívida distanciados no tempo (reescalonamento), seguidamente anulação de um terço da dívida bilateral60 em 1998, da metade em 1991, de dois terços em 1994 e seguidamente anulação de 80% da dívida multilateral61 em 1996, 90% em 1999 e desta vez 100% de uma grande parte dos valores da dívida multilateral (…) A este ritmo, "está-se ainda distante do objectivo final ", afirma Jean Merkaert, do CCFD, animador da campanha "2005 sem mais desculpas". "Gostaríamos mais de regras do jogo claras e não de anulações decididas em função dos jogos políticos do momento entre países ricos", acrescenta.

58 Benim, Bolívia, Burkina Faso, Etiópia, Gana, Guiana, Honduras, Madagáscar, Mali, Mauritânia, Moçambique, Nicarágua, Níger, Ruanda, Senegal, Tanzânia, Uganda e Zâmbia. 59 Os Estados Unidos opuseram-se a que pudesse ser vendido uma parte do seu stock de ouro para esse efeito. O FMI utilizará por conseguinte o remanescente dos fundos obtidos aquando das últimas vendas de ouro realizadas em 1999. 60 Dívida bilateral: dívida devida aos outros países. 61 Dívida multilateral: dívida devida às instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial...

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De facto, não é toda a dívida internacional dos países pobres que se anula, nem todos os países pobres endividados irão beneficiar e os compromissos de financiamento destas anulações só estão garantidos para os primeiros anos. Depois, tudo dependerá da boa vontade política e orçamental dos países ricos para a ajuda internacional. O facto de as promessas de 1996 e 1999 de anulação da quase totalidade da dívida não terem sido tidas em conta não é bom augúrio...

Empréstimo ou taxa mundial Numerosos países anunciaram um futuro crescimento da sua ajuda: a

França e o Reino Unido prometeram consagrar 0,7% do seu produto interno bruto (PIB) respectivamente daqui até 2012 e 2013, e a União Europeia, a Alemanha e a Itália prometeram o mesmo daqui até 2015. Mas, sabe-se que, neste domínio, as promessas só envolvem aqueles que as que recebem. Daí a vontade britânica de fazer avançar os países ricos em defesa de mecanismos que permitam assegurar um financiamento perene da ajuda público internacional. Nada obtiveram em Junho, mas a discussão vai prosseguir aquando do encontro dos chefes de Estado do G8 em Gleneagles na Escócia, de 6 ao 8 de Julho, e aquando do grande debate sobre o financiamento dos Objectivos do Milénio que se realizará na ONU em Setembro.

Gordon Brown, ministro das Finanças britânico, defendeu desde 2003 o projecto de uma Internacional Financial Facility (IFF), um empréstimo de aproximadamente 50 mil milhões de dólares por ano sobre uma dezena de anos, cujo dinheiro seria imediatamente utilizado para financiar projectos no Sul. A França, o Brasil e o Chile, apoiados por mais de 100 países, defendem antes a necessidade de criar taxas mundiais. O G8 de Junho decidiu manter os dois ferros ao fogo: o IFF, com o estudo de um projecto-piloto consagrado à imunização contra a SIDA, e as taxas mundiais, com o estudo, apoiado pela Alemanha e pela França, de uma taxa sobre os bilhetes de avião cujo princípio foi publicado sobre uma base voluntária na União Europeia.

É necessário privilegiar uma das duas pistas? É necessário primeiramente sublinhar que tanto uma como outra podem ser postas em prática sem o acordo dos Estados Unidos. O empréstimo que os países ricos poderiam conceder ou as receitas das taxa a instaurar seriam superiores com a participação americana, mas nada impede o resto mundo de avançar sem eles. O dinheiro assim obtido seria já significativo. Para além de que o projecto de IFF apresenta várias e muitas grandes desvantagens.

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Alvo falhado Contrariamente ao que os Britânicos querem fazer entender, o IFF não traz

recursos suplementares para a ajuda ao desenvolvimento. O empréstimo permite sim distribuir mais ajuda hoje utilizando a capacidade dos países ricos em contraírem empréstimos nos mercados financeiros internacionais para financiar projectos de desenvolvimento. Uma fonte de financiamento à qual os países pobres não têm acesso. Mas, o empréstimo tem como consequência a diminuição da ajuda de amanhã, dado que os futuros orçamentos servirão essencialmente para efectuarem o respectivo reembolso. O balanço final, ao contrário, parece mesmo ter todas as possibilidades de ser negativo dado que além do empréstimo, será necessário também pagar juros. E como os países contrairiam empréstimos para financiar não as suas despesas mas os projectos do Sul, que são de rentabilidade incerta, a taxa de juro exigida pelos mercados financeiros seria certamente mais elevada que a exigida para os empréstimos de Estado habituais.

De acordo com os cálculos de Todd Moss, do Center for Global Development, um empréstimo de 500 mil milhões de dólares durante dez anos, reembolsável durante trinta anos, como sugere o IFF, custaria 220 mil milhões de dólares de juros às taxas actuais mais, no mínimo, 25 mil milhões de dólares de custo suplementares. O projecto de taxas mundiais evita todos os inconvenientes e representa uma mobilização de verdadeiros recursos novos que, além do mais, são adquiridos a baixo custo, o necessário para a recolha e a distribuição das receitas.

Por último, o projecto de IFF é centrado unicamente sobre a ideia de um crescimento da ajuda ao desenvolvimento. Assenta sobre a ideia que mais ajuda se transforma necessariamente em mais crescimento e, por conseguinte, em mais projectos sociais no Sul. Isto não é infelizmente tão simples: a ajuda pode ser mal utilizada ou a sua utilização tornada impossível devido às fracas capacidades de gestão administrativa dos países recebedores62. O importante não é tanto aumentar os fluxos de ajuda, mas sim assegurar fluxos regulares a longo prazo capazes de apoiar o desenvolvimento dos países ao longo do tempo. O projecto de taxa mundial é deste ponto de vista mais adequado. Tem igualmente a vantagem de ser mais flexível: se os países capazes efectivamente de utilizar a ajuda não podem depois geri-la, as suas receitas poderiam ser utilizadas para financiar projectos de melhoria do ambiente, para criar um fundo de ajuda aos países vítimas da especulação financeira, etc. Em suma, o leque dos bens públicos mundiais financiáveis é bem mais largo.

62 Para uma análise mais completa, ver Alternatives Economiques, n° 237, Junho de 2005.

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As políticas de ajuda pública ao desenvolvimento estão hoje numa viragem decisiva. Todos os peritos reconhecem que as receitas aplicadas ao longo dos últimos vinte e cinco anos falharam largamente. Mesmo o Banco Mundial teve a coragem de publicar um relatório de críticas a fazer corar de ingenuidade as análises das ONG contestatárias63. Este mea-culpa dos países ricos e das instituições internacionais contribui inegavelmente para querer eliminar os erros do passado e permitir acordos como o que acaba de ser obtido sobre a dívida. Não vai até ao ponto de deixar de defender uma larga abertura dos mercados, que contribuiu frequentemente para arruinar os produtores do Sul. Consequentemente, permanece por agora o mais difícil: reconstruir os princípios da ajuda, sem estar a repetir os mesmos erros.

Tradução livre de: Christian Chavagneux, “Une annulation de dettes en attendant mieux”, Alternatives Economiques, 2005. Artigo disponível em http://www.alternatives-economiques.fr/site/238_005_dette_sud.html

63 The Growth Experience. Lessons from the 1990s, Abril, 2005, accessível em http://www.worldbank.org/

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III. África, as três instituições irmãs e os seus mandamentos: estabilizar, privatizar e liberalizar III.1. O algodão africano minado em todas as frentes Gilles Labarthe Le Courrier Novembro, 2003 Não são apenas as subvenções dos países ocidentais ou a baixa dos preços no

mercado mundial que corroem o algodão africano. Como outros países da África do Oeste, o Mali assiste impotente ao desmantelamento completo da sua fileira do algodão. Está em marcha uma privatização gigante ditada pelos financiadores internacionais que suscita muitas apreensões nos produtores. Os agricultores deverão também aprender a oporem-se a outra ofensiva: a do algodão transgénico. A promoção dos OGM (Organismos Geneticamente Modificados) é efectuada discretamente no país pela firma anglo-suíça Syngenta, à força de um grande lobbying, com experimentações no terreno e com colóquios anuais. O próximo encontro internacional terá lugar a 1 Dezembro em Bamako.

Bamako, bairro do sul. Sentado à frente de um posto de televisão, instalado mesmo no passeio, Oumar coça a cabeça: após a visita do presidente Jacques Chirac ao Mali, as actualidades nacionais acabam de anunciar um aumento substancial da

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cooperação francesa. “Não compreendo! O nosso país produz tanta riqueza, mas continuamos dependentes da ajuda estrangeira. Este ano, a colheita de algodão é, no entanto, excepcional”, interroga-se um jovem banqueiro de etnia peul. Primeira fonte de divisas ao lado do ouro, o algodão representa um orgulho nacional. E apresenta um muito bom resultado: mais de 600.000 toneladas de algodão-grão contra 430.000 em 2002. Um recorde! Os números levam a que se possam congratular. Estes valores sublinham então este paradoxo: o Mali obtém o lugar de “primeiro produtor de ouro branco” de toda a África subsahariana, à frente do Benim, do Chade ou do Burkina Faso, mas o seu futuro parece sempre cada vez mais comprometido.

Desordem e impotência Para explicar esta ausência de ganhos, evoca-se é certo, as subvenções aos

milhares de milhões de dólares que os países ocidentais, os Estados Unidos e União Europeia à cabeça, atribuem à sua própria produção, rebentando com os preços do algodão no mercado mundial. Desde há vinte anos, o preço do algodão não cessou do cair. A cotação estava fixa a quase 3 dólares o quilo em 1980. Desceu para menos de 2 dólares em 1990, seguidamente para 80 cêntimos em 2001, enquanto o governo de Bamako, correspondendo aos desejos do Banco Mundial, apostava todo o desenvolvimento nacional do Mali neste mesmo sector. “Este ano, o quilo de algodão será comprado aos camponeses do Mali a 200 francos CFA. O que é melhor que o ano passado, e melhor também que o preço pago aos seus vizinhos do Burkina Faso onde o quilo se compra a 185 francos CFA”, relativiza o jornal da Costa do Marfim, o Le Patriote.

Como sair desta via tão estreita? Diversificar as culturas, vender as infra-estruturas do Mali, optar pelo algodão transgénico? Os especialistas internacionais avançam cada um a sua solução, enquanto a desordem e a impotência atinge os produtores malianos: eles contam sempre com a melhoria da situação económica do seu país, depois de ser ter instaurado um regime democrático em 1992 e realizado uma abertura à economia de mercado sem precedentes. Os líderes do país efectivamente decidiram uma vaga de privatizações das empresas públicas, para as tornarem “mais competitivas” e respeitarem as condições de ajustamento estrutural ditadas pelos financiadores de fundos internacionais. Mas, não há maneira de chegarem os belos dias, enquanto se sucedem os cortejos de despedimentos.

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Privatização em curso Exploração das minas, da energia, dos transportes, dos caminho-de-ferro, das

telecomunicações, do tabaco... são tantos os sectores caídos nas mãos de operadores estrangeiros, ou que estão em vias de o ser. A privatização da fileira do algodão, no ar desde há alguns tempos, provoca muitas angústias: ela poderia efectuar o desfiamento completo de um órgão vital para toda a economia do Mali. “Se a CMDT é objecto de uma privatização selvagem, é a morte da fileira algodoeira”, avisa desde este verão Abdoulaye Abba Sylla, um dos responsáveis sindicais.

Durante trinta anos, a Companhia Maliana do Desenvolvimento dos Têxteis (CMDT) exercia com efeito o quase-monopólio sobre a produção. Detida, à altura, em 60% pelo Estado do Mali e 40% pelo grupo francês Dagris, assegurava sozinha todo o conjunto das operações, da produção à comercialização, passando pelo transporte e pelo descaroçamento. Permitia transferir uma parte considerável dos benefícios para o governo, assegurando cerca de 15% do PIB e o bom funcionamento da economia nacional.

Uma cadeia de trabalho completa, que implicava fortemente os pequenos agricultores, reconhece-se hoje. No Conselho de Ministros em Bamako, teme-se actualmente a desintegração pura e simples de uma fileira que tem feito as suas provas. Jóia nacional, que fazia viver directamente 3,5 milhões de indivíduos, ou seja 32% da população total do país.

Desintegração de uma fileira Apesar da sua dimensão administrativa e de alguns dos seus defeitos, a CMDT

é também a história de um sucesso de integração social: “Este sucesso foi possível graças à fileira integrada que permitia à companhia assegurar o conjunto das funções de produção, transporte, descaroçamento e comercialização do algodão, mas também as missões de serviço público como a abertura dos caminhos rurais, a alfabetização, a hidráulica ao nível das aldeias. Este modelo integrado é, a partir de agora, posto em causa”, lamenta-se um responsável em Bamako, sublinhando que os serviços de desenvolvimento rural do CMDT já foram suprimidos.

Segundo as últimas notícias, a Missão de Reestruturação do Sector Algodão (MRSC) prepara um novo processo para a privatização do CMDT. Este plano de privatização exige uma redução do peso do Estado (que não deterá mais do que 20% da

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nova companhia) e o fraccionamento do gigante do têxtil do Mali em três ou quatro sociedades autónomas, sujeitas a concurso.

Esta perspectiva faz suores frios aos profissionais africanos do algodão: a última proposta de venda das fábricas nacionais de descaroçamento em Bamako, em Kita e Ouélessebougou saldou-se por um fiasco total. O governo apontava em Setembro de 2002 para uma receita de 15 mil milhões de francos CFA. Mas, os principais compradores estrangeiros (o grupo suíço Paul Reinhart, associado com a IPS, a sociedade francesa Louis Dreyfuss Cotton Internacional e o gigante americano do algodão Dunavant SA) propuseram-se desistir uns após outros, fazendo cair o seu valor para 6 mil de milhões. Saldou-se o património do Mali, efectuado segundo as regras da arte.

Epígrafe Crónica duma sabotagem organizada “É uma sabotagem da fileira algodoeira do Mali, e o sector privado regala-se!”

Damien Millet, secretário-geral do ramo francês do Comité para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM-França), faz uma análise do marasmo no qual se encontra mergulhada a economia do Mali, com as privatizações em curso. As que incidem hoje sobre a indústria nacional do algodão na África do Oeste são particularmente perigosas para o futuro do Mali. “O papel da fileira algodoeira do Mali sempre ultrapassou, e em muito, a produção de algodão, analisa Damien Millet. Ela prestava um apoio importante às organizações de aldeões, quer seja na compra de material agrícola quer seja na construção de escolas e centros de saúde.”

A Companhia Maliana do Desenvolvimento dos Têxteis (CMDT), é uma companhia decalcada sobre o modelo do Estado providência? Talvez. Jóia da coroa da indústria do Mali, a CMDT tinha resultados positivos: duplicou mesmo a sua produção durante esta última década. Também conheceu alguns reveses, e mesmo alguns escândalos financeiros ou desvios de fundos organizados por alguns dos seus responsáveis. Conjugada com a baixa das cotações do algodão, esta situação provocou a cólera dos camponeses, sempre cada vez mais pobres apesar de uma nítida melhoria das colheitas. As suas reivindicações provocaram greves em 1999 e 2000, forçando à criação dos Estados gerais da fileira algodoeira em 2001.

A sociedade de auditoria Ernst & Young entrou, então, em cena para entregar o seu relatório: uma gestão desastrosa na CMDT. Uma estrutura demasiado pesada que é necessário privatizar, preconiza imediatamente o Banco Mundial. Numa primeira fase, os

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serviços de transportes da companhia são assegurados por privados, assim como a gestão dos factores de produção agrícolas (adubos e pesticidas). As medidas de reestruturação do CMDT empreendidas desde então teriam feito perder perto de 40% dos rendimentos dos produtores de algodão nesse mesmo ano. Do mesmo modo, em 2003 a colheita acabou por ficar seriamente comprometida na sequência de problemas de transporte e de abastecimento.

Forçar o governo de Bamako a desmontar a sua fileira do algodão e privatizá-la por “questões económicas”: a pressão que as instituições financeiras internacionais exercem é verdadeiramente odiosa, quando se sabe que o FMI obriga ao mesmo tempo este país africano, um dos mais pobres do mundo, a sacrificar cerca de 15% das suas receitas provenientes das exportações para reembolsar o serviço da dívida. O Comité para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo recorda que a dívida externa do Mali foi criada durante trinta anos por investimentos desmesurados, consentidos pelo Banco Mundial desde o começo dos anos setenta e sob a ditadura militar de Moussa Traoré.

Outra causa da incompreensão assinalada por Damien Millet, é a dos objectivos reais da nova equipa administrativa “ultraliberal” da CMDT. Por si só, os sete administradores que a compõem gastam 1 milhão de francos nos seus salários anuais. Entre eles figura um certo Jean-François Martin, o “Director Geral associado e anteriormente responsável pela privatização da Companhia da Costa do Marfim dos têxteis, que se revela ser um falhanço”.

Tradução livre de: Gilles Labarthe, “Le coton africain rongé sur tous les fronts”, Le courrier, Novembro, 2003. Artigo disponível em http://www.lecourrier.ch/index.php?name=NewsPaper&file=article&sid=3014&layout=article,latruite.

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III.2. A África e as suas matérias-primas Uma diversificação que não reduz a dependência André Linard Le Monde Diplomatique Julho, 2006 A África é riquíssima em matérias-primas (petróleo, bauxite, madeiras, etc.).

Mas, esta riqueza é também uma fragilidade porque as economias nacionais assentam frequentemente sobre um só destes recursos. Além disso, a fraqueza das indústrias locais de transformação bem como as regras do comércio mundial tornam os Estados dependentes do Norte. A situação difere, certamente, de acordo com as matérias-primas: desenvolvimento na produção de petróleo, fragilidade na produção de algodão, por exemplo. E é necessário, a partir de agora, contar com as empresas asiáticas e com as reivindicações ecologistas e sociais.

O Sul deixou de ser homogéneo: a concorrência económica e a diversificação

existem também entre estes países. A propósito da África, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE) evoca mesmo um “continente a duas velocidades64”. O estratégico mercado das matérias-primas fornece a ilustração desta posição. Assim, a taxa de crescimento de numerosos Estados do continente africano subiu

64 OCDE, “Perspectives économiques en Afrique, 2006. Un continent à deux vitesses ?”, Paris, mai 2006.

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devido aos rendimentos petrolíferos e à exportação de metais (ouro, alumínio, cobre, ferro, platina...). Em contrapartida, e salvo excepções, “os exportadores africanos de produtos agrícolas estiveram menos em festa.” Viram nomeadamente os preços dos seus produtos exportáveis deteriorarem-se nos últimos anos”, precisa a OCDE.” Além disso, o aumento do petróleo prejudica alguns deles.

Mais do que nunca, com efeito, é necessário distinguir, por um lado, os países produtores de petróleo e os que dispõem de produtos minerais daqueles que estão dependentes da venda de matérias-primas agrícolas, por outro lado. Para estes, a tendência desde há várias décadas não variou apesar duma melhoria recente: a dependência em relação a alguns produtos permanece a regra, e o saldo é desfavorável. “Embora possa ser difícil confirmar e quantificar uma tendência mundial a longo prazo através de dados estatísticos, não há nenhuma dúvida de que os termos da troca das exportações agrícolas de numerosos países em desenvolvimento se degradaram claramente”, sublinha a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)65. “A África subsahariana é a região que mais tem sofrido com a degradação.” Com base no índice 100 em 1990, os termos da troca dos produtos agrícolas africanos passaram assim de 185 em 1960 para 85 em 200066. Não é, por conseguinte, boa coisa estar dependente das suas exportações agrícolas.

Além disso, acrescenta a FAO, se os países em vias de desenvolvimento reduziram a sua dependência no que diz respeito às exportações de bebidas tropicais (café, cacau, chá) e de matérias-primas, os países menos avançados (PMA)67 – de que muitos são africanos – têm-na, em contrapartida, aumentado: passou de 59% para 72% entre 1960 e 2001. A desproporção é forte entre a parte que assumem, no conjunto do comércio mundial, as matérias-primas agrícolas (8,8 %) e as extractivas (14,4 %). Para os países dominantemente agrícolas, portanto, a factura é pesada. Entre 1960 e 2002, a parte das exportações provenientes da África no comércio mundial (excluída a África do Sul) caiu de 0,9% para 0,3 %.

Contudo, se esta tendência geral, desfavorável aos produtores agrícolas africanos, continua a estar de acordo com as análises que tinham já sido feitas nos anos 1960, novos factores apareceram, como testemunham as tensões recentes nos mercados do açúcar e da banana. Com efeito, em 1975, a convenção de Lomé, assinada entre os países da Comunidade Económica Europeia (CEE) e os da África, das Caraíbas e do Pacífico (ACP), tinha criado mecanismos correctores do mercado.

65 FAO, Situation mondiale de l’alimentation et de l’agriculture 2005, Rome, 2006. 66 Conférence des Nations unies sur le commerce et le développement (Cnuced), “Developing countries in international trade”, Genève, 2005. 67 Para a lista dos países menos avançados, ver o sítio da Cnuced.

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Tratava-se de limitar a dependência dos Estados referidos relativamente às flutuações do mercado. Em particular, o sistema de estabilização das exportações (Stabex), que funcionou, valendo o que valeu, até 2000, e uma regulamentação específica de certos mercados (açúcar, banana) garantia mercados a países que nem sempre eram os mais competitivos.

Ora, depois de uma dezena de anos, estes mecanismos foram postos em questão. Em 2000, a Convenção de Cotonou (no Benim), que substituiu a Convenção de Lomé, suprimiu o Stabex68. Além disso, as compras preferenciais de banana e de açúcar são contestadas à Organização Mundial do Comércio (OMC) por outros países do Sul (nomeadamente o Brasil e a Tailândia)69.

Seria errado limitar a análise às exportações dos países produtores para as regiões industrializadas do mundo. Se fosse o caso, seria necessário congratular-mo-nos pelas evoluções recentes, como o aumento anunciado da procura cerealífera que, de acordo com a FAO, “excederá a oferta em 2006-2007, provocando uma baixa dos stocks e uma tendência à subida das cotações70”.

Porque se muitos países africanos permanecem exportadores de produtos alimentares, é certo que eles também se tornaram importadores. Assim, o Senegal e Madagáscar importam agora o seu arroz, que é, contudo, a base tradicional da sua alimentação, da mesma maneira que o México importa o milho. A situação tornou-se, de resto, paradoxal. Em Madagáscar, por exemplo, lançou-se em 2003 uma nova política orientada para a exportação dos produtos agrícolas e a introdução progressiva da agro-indústria.

Para aumentar a produção, o ministério da agricultura propõe-se doravante promover as grandes explorações, oferecendo aos investidores estrangeiros reservas fundiárias. Um dos objectivos consiste em exportar arroz do topo de gama para a Europa e para os Estados Unidos, enquanto os malgaches devem passar a comprar o seu arroz de baixa qualidade à Ásia. Desde então, quando o preço dos cereais aumenta os países pobres são atingidos. São-no ainda mais quando os preços dos produtos que exportam evoluem em baixa. É o caso do café (sobretudo desde a aparecimento do Vietname como um importante produtor), do cacau (nomeadamente desde a norma europeia que diminui o teor mínimo de cacau no chocolate)71, da banana, do açúcar...

68 Ler Raoul Marc Jennar, “Ces accords que Bruxelles impose à l’Afrique“, Le Monde diplomatique, Fevereiro, 2005. 69 Ler Hugo Ruiz-Dias, “Une tribune pour les pays du Sud“, Le Monde diplomatique, Setembro, 2005. 70 FAO, “Perspectives de l’alimentation“, Junho, 2006. 71 Conforme Conseil national de l’alimentation, “Le chocolat, vers une redéfinition européenne“.

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No entanto, a recente evolução da procura chinesa e indiana em matérias-primas parece alterar esta realidade. De acordo com a OCDE, “os produtores de matérias-primas da África subsahariana beneficiaram de uma procura mundial em expansão para as suas exportações e de uma melhoria dos seus termos da troca72”. Mas, para além do perigo de querer corrigir tendências estruturais por evoluções conjunturais, esta procura incide sobre produtos bem precisos: petróleos, minérios, madeiras, algodão...

Os países produtores de petróleo e minérios conhecem um destino diferente daqueles que são dependentes das exportações de matérias-primas alimentares. Os interesses continuam a serem enormes, e os seus circuitos, nem sempre legais. Uma zona específica da África está na linha de mira: a região dos Grandes Lagos, e nela a parte oriental da República democrática do Congo (RDC). O acesso aos minérios alimentou, nomeadamente, as guerras que arrasaram a RDC. Alguns destes minérios são tradicionais (diamante, ouro, cobre...), e outros novos: coltan (necessário aos telefones portáteis), turmalina (uma pedra de joalharia), monazite, o nióbio... “ Nunca ninguém saberá as quantidades reais de minérios saídos do país desde Agosto de 1998 [ano do início da última guerra]. As verdadeiras exportações não têm nada a ver com as estatísticas incluídas nos documentos oficiais”, explica-nos assim um agente da divisão provincial das minas e geologia.” No Nord-Kivu, vinte e cinco toneladas de coltan e cinquenta toneladas de cassiterite são extraídas mensalmente só no território do Masisi, de acordo com fontes do governo. Outro território, o de Walikale, produziria mensalmente mil toneladas de coltan.

Para além do próprio caso específico dos países em guerra, como a RDC esteve até 2003, o conjunto das matérias-primas raramente beneficia as populações locais. A situação dos novos países petrolíferos ilustra-o bem.Com efeito, entre erros administrativos e mecanismos da economia mundial, a distribuição deste maná permanece uma questão decisiva.

Tradução livre de: André Linard, “Une diversification qui ne réduit pas la dépendance”, Le Monde Diplomatique, Julho, 2006. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2006/07/LINARD/13654.

72 OCDE, “The rise of China and India. What’s in it for Africa“, Maio, 2006.

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III.3. Fim de ciclo para a OMC Batalha para a sobrevivência do algodão africano Tom Amadou Seck Le Monde Diplomatique Dezembro, 2005 Na África do Oeste, 15 a 20 milhões de pessoas dependem directa ou

indirectamente do algodão73. Devido à sua boa qualidade, constitui um dos raros sectores onde o continente negro permanece competitivo. A partir de 2001, quatro países do Sahel, entre mais pobres do planeta (Chade, Burkina Faso, Mali, Benim), pediram pois à Organização Mundial do Comércio (OMC) a supressão das subvenções maciças que os Estados Unidos e a União Europeia atribuem aos seus produtores74. Recordam que os financiadores internacionais lhes impõem a mais rigorosa ortodoxia económica (privatização das companhias algodoeiras, abertura dos mercados)75, e pedem, por outro lado, o fim das práticas desleais dos países industrializados. Fruto de três anos de trabalho entre produtores, industriais e organizações não governamentais (ONG)76, esta iniciativa

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Os principais países são Mali, Burquiina-Faso, o Chade, os Camarões, o Níger, o Togo, o Senegal, a República Centro-Africana, a Guiné-Bissau, a Costa do marfim e Madagáscar. 74

Ler Denis Pesche et Kako Nubukpo, “L’Áfrique du coton à Cancun: les acteurs d’une négociation” Politique africaine, nº 158, Outubro, 2004. 75 Leia-se André Linard, “Le coton africain sinistré, Le Monde Diplomatique, Setembro, 2003. 76 OXFAM, “L’or blanc devient poussière”. Quelle voie pour le cotton d’Afrique de l’Ouest ? Document de sinthese, nº 58, ENDA, Dakar, Abril, 2004.

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foi uma das causas do malogro da conferência ministerial da OMC de Cancun (México) em Setembro de 200377.

Primeira anomalia, que afecta o mercado do algodão, como de resto o conjunto dos produtos de base: não são os maiores produtores, mas os primeiros exportadores que determinam os custos mundiais. A China, o maior produtor de algodão é também o primeiro consumidor: importa mais de 60% da produção da zona franca africana. Segundo produtor, à frente da Índia e do Paquistão, os Estados Unidos são, e de longe, os primeiros exportadores, com 37% do mercado. Os produtores africanos representam 3,6% da produção, mas 17% das exportações mundiais. Contudo, são as exportações americanas que definem os preços mundiais, e não as dos principais produtores.

Segunda anomalia: a produção americana encontra-se artificialmente dopada pela intervenção do governo federal, sob a forma de ajudas directas aos produtores (3,5 mil milhões de dólares) e subvenções às exportações (1,5 mil milhões de dólares), que representam quase 50% das subvenções mundiais ao algodão. As ajudas dos Estados Unidos e, em menor escala, as da União Europeia aos produtores espanhóis e gregos alimentam um excesso de produção mundial provocando uma queda das cotações. Em 2005, o preço mundial caiu abaixo dos 55 cêntimos (40 cêntimos de euros) a libra. A 65 cêntimos a libra, os produtores africanos deixam já de ter lucros. Abaixo deste valor produzem então com prejuízo e deverão reduzir as superfícies cultivadas no ano 2005-2006.

Para o continente negro, os estragos ultrapassam o sector algodoeiro. Durante os bons anos, com efeito, as associações de produtores reinvestem os rendimentos do “ ouro branco”: reparação dos caminhos, construção de escolas ou de dispensários. A fibra constitui assim a primeira exportação do Burkina Faso e do Mali.

As subvenções americanas representam três vezes o total da ajuda pública ao desenvolvimento dos Estados Unidos ao continente negro. Em 2004, o Mali perdeu 43 milhões de dólares em receitas de exportação, enquanto o apoio financeiro que Washington lhe prestou ascendeu à 38 milhões de dólares. À baixa das cotações do algodão acrescenta-se o aumento dos preços de combustível, que encarece os custos de produção, nomeadamente nos países sem acessos marítimos como o Burkina Faso, o Mali e o Chade.

Ao longo dos anos 1990, os produtores de algodão africanos efectuaram consideráveis esforços para se adaptarem às exigências do mercado mundial. Sob a pressão dos financiadores externos, e em primeiro lugar, do Banco Mundial, tiveram que

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Em 2003, o Benin e o Burkina Faso defenderam a queixa posta pelo Brasil quarto exportador mundial contra as subvenções americanas à agricultura, na OMC, o que levou à condenação dos Estados Unidos.

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desencadear a privatização das sociedades de recolha, como a Companhia Maliana de Desenvolvimento dos Têxteis (CMDT), que lhes assegurava preços de garantia, o fornecimento de factores de produção e a compra de material78. Este processo desorganizou profundamente as fileiras e fragilizou os camponeses. Os produtores tiveram que se reagrupar: no Burkina Faso, obtiveram o direito à presença no conselho de administração da Sofitex, a empresa pública comprada pelo grupo francês Dagris. A União Nacional dos Produtores de Algodão do Burkina Faso (UNPCB) e o seu responsável, François Traoré, mobilizaram outras organizações de produtores – no Benim, no Mali, no Senegal, nos Camarões, em Madagáscar – e deram origem a uma organização continental: a Associação dos Produtores de Algodão Africano (Aproca).

A Aproca conseguiu atrair as boas graças da Associação Algodoeira Africana (ACA), que agrupa as principais sociedades algodoeiras da sub-região. Melhor, ela pôs em prática um “cyber-petição” contra as subvenções agrícolas do Norte, que recolheu 250.000 assinaturas. Mas numerosos líderes políticos africanos temem represálias de Washington no âmbito do African Growth and Opportunity Act (AGOA)79.

Os países africanos desejam dissociar o dossier algodão do da agricultura em geral, tendo em conta o papel vital da fibra nas suas economias. Reclamam medidas compensatórias, em especial, a instauração, nomeadamente, de um fundo de emergência de apoio à produção algodoeira. Esperam também progressos da investigação agronómica para lutar contra a estagnação dos rendimentos, e querem poder discutir a introdução dos organismos geneticamente modificados (OGM), que os Estados Unidos tentam impor nos seus relatórios bilaterais com os países do continente.

A aliança Sul-Sul aparecida em Cancun com a criação do G2180 não está isenta de contradições. Sobre a questão agrícola, com efeito, uma vitória do Brasil poderia revelar-se ser a vitória do agrobusiness, em detrimento da agricultura familiar dos camponeses africanos. De acordo com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA) das Nações Unidas, a agricultura familiar permanece o motor do crescimento e da produtividade para a produção alimentar. É ela que contribui para a segurança alimentar e na luta contra a fome e a pobreza, particularmente na África subsahariana.

Tradução livre de: Tom Amadou Seck, Bataille pour la survie du coton africain, Le Monde Diplomatique, Dezembro, 2005. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2005/12/AMADOU_SECK/13029

78 Veja-se “Le cotton, atout de l’Afrique rural”, Le Monde Diplomatique, Maio, 1999. 79 Lei votada em 2000 pelo Congresso Americano e que estabelece um regulamento relativo às relações económicas e comerciais entre os USA e os 48

países africanos com excepção do Magreb. 80 Leia-se Hugo Ruíz Diaz, “Une tribune pour les pays du Sud”, Le Monde Diplomatique, Setembro, 2005.

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III.4. A OMC: Fundamentalmente não democrática Oxfam Dezembro, 2005 Entrevista a Teetteh Hormeku* A Organização Mundial do Comércio já não é um fórum de concertação sobre

o comércio internacional. Esta tornou-se um instrumento de poder das grandes potências económicas que impõem a sua vontade ao mundo inteiro. Teetteh Hormeku da Third World Network explica-o.

P. A OMC tem 10 anos. Há alguma razão para se congratular? Tet teh Hormeku: A minha análise de dez anos de OMC é, no mínimo,

ambígua. O problema chave é o desequilíbrio do poder e a falta de democracia na OMC. A organização manipula sempre os dois pesos, as duas medidas. Assim, pretende querer ajudar os agricultores dos países em vias de desenvolvimento mas, ao mesmo tempo, autoriza as práticas de dumping, por causa das quais os nossos mercados são invadidos de produtos baratos a que os nossos agricultores não podem fazer concorrência. Os países desenvolvidos prometeram muito aos países em vias de desenvolvimento, mas realizaram muito poucas coisas. As decisões tomadas na OMC tiveram consequências essencialmente negativas para nós. É o que faz com que devamos

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enfrentar as consequências da liberalização das nossas economias. Antes de querer levar para a frente a liberalização devem ser primeiramente examinados os seus efeitos negativos!

P. Como vêem o futuro da OMC? Tetteh Hormeku: Se não reagimos agora, a situação vai agravar-se. A tensão

entre as promessas e as realizações é muito grande. Em 2001, na agenda de Doha para o desenvolvimento, dois domínios de acção foram apresentados para apoiar os países em vias de desenvolvimento: primeiramente, o tratamento especial e diferenciado e, em segundo lugar, as modalidades de execução, uma centena de propostas para compensar os problemas aquando da execução dos acordos. Mas estes pontos não foram, de forma alguma, tomados em consideração, desapareceram mesmo da agenda.

P. O Ciclo de Doha gerou mais desenvolvimento? Tetteh Hormeku: A agenda de Doha para o desenvolvimento levará ao anti-

desenvolvimento! As exigências dos países desenvolvidos levarão à destruição do desenvolvimento dos países do Sul. Por exemplo, para os produtos industriais, os países desenvolvidos pedem uma diminuição muito forte das tarifas à importação. Mas, devido a isto, vamos perder os rendimentos aduaneiros que nos são indispensáveis, e os mercados locais vão encontrar problemas devido à importação dos produtos baratos.

P. Então, é necessário terminar com a OMC? Tetteh Hormeku: Não queremos suprimir a OMC. Queremos que os interesses

dos países em vias de desenvolvimento sejam apoiados e protegidos. Olhem para as discussões actuais a respeito do sector dos serviços. No acordo actual encontra-se uma regra que permite em teoria aos países liberalizar de acordo com as suas necessidades. E podem limitar este processo para se proteger. A Europa quer suprimir esta regra. Aquilo não pode, por conseguinte, acontecer! Os problemas dos países em vias de desenvolvimento devem ser tratados como prioritários, tratados sim e antes de mais nada.

P. As pessoas do Sul acompanham o que a OMC faz?

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Tetteh Hormeku: Nestes dois últimos anos, as pessoas seguiram activamente os trabalhos da OMC. Sentimos o impacto da OMC na nossa vida diária mais que no Norte. Graças a enormes subsídios, os Estados Unidos despejam o seu algodão barato no mercado mundial. Os agricultores do Mali ou do Benin não podem produzir a preços semelhantes...No Gana, as aves de capoeira constituem um sector de exportação importante, mas é destruído pela importação dos frangos europeus. Apesar dos custos de transporte, estes são mais baratos que as aves de capoeira do Gana. Para os criadores do Gana é impossível fazer concorrência aos frangos europeus.

P. E como é que isso se passa ao Norte? Tetteh Hormeku: No Norte, a sociedade civil trabalha imensamente para

dar a conhecer os problemas ligados à OMC. As pessoas ouvirão se compreenderem que a OMC tem também um impacto na sua vida. A OMC não é meramente um problema do Sul! A desregulação dos serviços, por exemplo, pode ter também uma influência sobre o acesso à água, sobre a qualidade do ensino, sobre o sector cultural...

P. Será que a OMC não está muito afastada das nossas realidades? Tetteh Hormeku: As resoluções da OMC são tomadas por representantes

dos Estados. Os representantes dos nossos países encontram-se na base da política da OMC. Os cidadãos devem, por conseguinte, exigir que justifiquem a sua política. Porque em nome de quem falam realmente? O ministro britânico do Comércio e da Indústria, Alan Johnson, tem dito ultimamente que impor a liberalização não é vantajoso aos países em vias de desenvolvimento. No dia seguinte, o Comissário europeu para o Comércio, Peter Mandelson, um Britânico, apresentou um documento à OMC que insiste numa liberalização drástica dos países em vias de desenvolvimento! A pergunta é então: a quem deve Mandelson apresentar contas para a sua política? Ele exprime então a opinião de quem? Certamente que não a do ministro britânico!

P. A OMC não é ela demasiado complexa para se acompanhar? Tetteh Hormeku: A inverosímil complexidade das regras da OMC,

produzidas por tecnocratas, faz, de facto, com que seja quase impossível seguir o que se passa nesta organização. Igualmente para os nossos representantes políticos. Mas, não creio

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que isso justifica que não assumam as suas responsabilidades. Estes textos são finalmente uma tradução técnica de uma política. E estas escolhas políticas são feitas pelos políticos. É isto.

Queremos verdadeiramente uma política que conduza ao dumping maciço nos países em vias de desenvolvimento? Se não é este o caso, então é necessário mudar de política...

P. Pode-se ainda fazer marcha-atrás? Tet teh Hormeku: Os Parlamentos assinam os acordos da OMC sem terem

efectivamente percebido o seu conteúdo. E uma vez assinados, estão assinados! Os cidadãos devem, por isso mesmo, acompanhar rigorosamente o processo. Enquanto agora, deixamos agir os nossos representantes, pensando que a liberalização é sempre positiva. Mas, nunca é demasiado tarde para reagir. Ao nível do Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (AGCS) está previsto que mais nenhuma liberalização possa ter lugar enquanto nenhum estudo for efectuado sobre o impacto da liberalização dos serviços e sobre a maneira como esta promove o desenvolvimento. Nenhuma. Esta investigação foi realizada e, no entanto, avança-se no AGCS. O que é contrário ao que o acordo prevê. Por conseguinte, é ilegal, é contrário ao que os Acordo prevêem. Mas isso, isso não incomoda. É outra vez um exemplo do desequilíbrio na OMC. Certas regras da OMC contam, enquanto outras não... Por esta razão, devemos incitar as nossas autoridades a desempenhar o papel que devem fazer: acompanhar o que se passa.

P. Como é que os países em desenvolvimento se podem defender? Tetteh Hormeku: devem formular os seus próprios pareceres e aliarem-se

para ganharem força, o que acontece muito frequentemente. Mas, os nossos pareceres são ignorados! Tudo isto se torna possível porque o processo de decisão é fundamentalmente antidemocrático. Acontece por vezes que a maioria dos países vota "A", mas, o presidente regista claramente "B", que é a resposta dos fortes países ricos, ainda que estes sejam minoritários. Além disso, há permanentemente reuniões, pequenas e fechadas, onde unicamente são convidados um pequeno número de países. As suas conclusões são apresentadas, mais tarde, como decisões comuns... Não dispomos de espaço para negociar igualmente. O respeito dos princípios democráticos é uma primeira exigência para o sucesso da OMC. É inimaginável esta maneira que têm as grandes potências de trabalhar.

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Os Estados Unidos foram condenados pela OMC por causa dos seus subsídios ilegais ao algodão que arrasam os mercados locais, no Sul. Mas, entretanto, terminam com as subvenções? Não, tentam alterar as leis da OMC, de modo que os seus subsídios se tornem legais...

P. Hong-Kong anuncia uma viragem? Tetteh Hormeku: É já claro que os países desenvolvidos não cooperam de

maneira construtiva e continuam obstinadamente a impor a sua visão. No princípio de Novembro, a Europa apresentou uma proposta a respeito da agricultura, mas esta oferta não tinha qualquer valor. Em troca, exigiu aos países em desenvolvimento que façam concessões nos sectores dos serviços e nos produtos industriais. Se a Europa e os Estados Unidos continuam a defender os pontos de vista extremos, não nos deixam, portanto, outra escolha que não seja a de resistir e de fazer falhar a cimeira. Devemos defender os nossos interesses e proteger a nossa economia e a nossa população.

P. A luta não está ela para além da OMC? Tetteh Hormeku: As negociações bilaterais e multilaterais não podem ser

vistas independentemente umas das outras. São duas tácticas que convergem. O que os países ricos não podem obter nos recintos multilaterais, como na OMC, fazem-no passar na esfera bilateral. Aí, estão em posição de força porque os países pobres não podem, nesta situação, formar qualquer aliança ou coligação. Mas devemos, portanto, ceder nas reuniões multilaterais para evitar a passagem às reuniões bilaterais?

P. O dogma da OMC "mais liberalização igual a mais desenvolvimento" foi ele

desmentido? Tetteh Hormeku: Apesar das aparências, isso não constitui, de forma

alguma, o programa básico da OMC. No acordo de fundação da OMC, é notado que a liberalização não é em si suficiente, que ela deve ir a par com o desenvolvimento. E não que a primeira induz a segunda. A organização não afirma ela própria que a liberalização não é, em si, positiva para todos os países ou em todas as fases de desenvolvimento de um país... Mas as grandes potências continuam a insistir na liberalização, que se tornou um objectivo em si mesmo.

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P. A OMC afasta-se das suas missões principais? Tetteh Hormeku: A organização deixou de ser um fórum sobre o comércio.

A OMC alarga cada vez mais as suas competências com temas que não fazem parte do seu campo de acção. O Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual (ADPIC), por exemplo, tem pouca coisa a ver com o comércio, mas sim com o proteccionismo. Os serviços têm a ver, sobretudo, com os investimentos, onde o poder dos Estados é restringido drasticamente. A OMC aventura-se em domínios para onde não deveria ir, enquanto a organização negligencia os seus temas chave como o controlo dos preços das matérias-primas. E, como por azar, este último tema é sobretudo importante para os países em vias de desenvolvimento.

Entrevista conduzida por Lieve Reynebeau * Tetteh Hormeku estudou a legislação económica internacional, com uma especialização em comércio internacional e em investimento estrangeiro. É o principal investigador da ONG Third World Network-África nos domínios do comércio e dos investimentos. No início da sexta conferência ministerial da OMC, em Hong-Kong, deixou o seu escritório no Gana para ir para Genebra a fim de seguir de muito perto as reuniões preparatórias. A Third World Network (TWN) é uma organização mundial cuja sede está situada na Malásia. A TWN trabalha sobre as problemáticas Norte-Sul e faz investigação, trabalho de sensibilização de pressão política. Em África, mais de cem organizações são membros desta organização. Tradução livre da entrevista a Teetteh Hormeku, conduzida por Lieve Reynebeau, publicada em Globo, n. 12, Dezembro, OXFAM, 2005. Esta revista está disponível em http://www.local.attac.org/attac35/IMG/pdf/Globo_-_Oxfam_-_13-12-2005.pdf

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III.5. A OMC: Arbitrária e não democrática A OMC é ela uma organização democrática? Defende ela o interesse geral? Os Estados estão aí representados de forma igual? Demonstração Raoul Marc Jennar, Oxfam Dezembro, 2005 Há já alguns anos, por preocupação com a saúde, os Estados-Membros da

União Europeia proibiram o uso das hormonas de crescimento na criação dos bois e, por conseguinte, a importação de bois assim tratados. Os Estados Unidos da América (EUA) apresentaram queixa à Organização Mundial do Comércio (OMC). O tribunal da OMC, chamado Órgão de Regulamento dos Diferendos (ORD), não reconhece o princípio de precaução. Condena, por conseguinte, os países da Europa que recusam importar boi tratado. A Europa paga cada ano uma multa, e além disso, os EUA receberam a luz verde para praticar o "direito de retorsão", ou seja, neste caso, o direito de taxar a 100% 60 produtos provenientes da Europa inscritos numa lista que os EUA podem alterar regularmente.

O acordo sobre a agricultura da OMC proíbe subvencionar as exportações de algodão, o que os EUA no entanto, continuaram a fazer maciçamente. Após ter tentado em vão, pela negociação, para que este acordo seja respeitado, o Brasil, com o apoio dos países africanos produtores de algodão, apresentou uma queixa no ORD. Ficaram

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satisfeitos com os resultados? Mas os EUA fazem ouvidos surdos. Alguns milhares de agricultores americanos contam mais que vários milhões de agricultores africanos.

Uma justiça independente? Tal é a justiça à maneira da OMC. Mas será que se pode falar de justiça? 1. Uma das garantias para impedir o arbitrário, é a separação dos poderes. Ora, a

OMC concentra no seu seio poderes legislativos, executivos e judiciais. É juiz e é parte. 2. Os Estados são assim transformados em advogados dos actores económicos

privados. Porque eles são os únicos a poderem introduzir uma queixa. O exemplo mais espectacular foi fornecido pelo Canadá. No seguimento da recusa da Europa em importar amianto por razões de saúde pública, o Canadá defendeu os interesses dos produtores de amianto e ganhou a causa no ORD.

3. O ORD é um mecanismo que de facto é reservado largamente aos países industrializados. Vê-se com efeito poucos países em desenvolvimento, dependentes politica, financeira e economicamente das suas antigas metrópoles, introduzir acções contra estas. As medidas de retorsão previstas como sanções estão fora do alcance dos países em desenvolvimento. Em contrapartida, podem ser gravemente prejudiciais se forem utilizadas contra estes países pelos países industrializados.

4. Os peritos chamados a julgar em primeira instância não são magistrados. São designados numa base casuística, o que é contrário ao princípio da inamovibilidade das pessoas chamadas a julgar.

5. Os debates no ORD desenrolam-se à porta-fechada, o que é contrário ao princípio universal segundo o qual a justiça deve ser do conhecimento público. Peritos sem legitimidade democrática podem colocar em causa a soberania de um Estado e exigir a arrogação de normas nacionais ou mesmo locais no domínio, por exemplo, dos direitos humanos, da saúde, do ambiente, dos serviços, com o motivo que constituem "obstáculos ao comércio".

Decisões não democráticas Como a justiça, os procedimentos aplicados para tomar decisões na OMC

estão longe de ser democráticos. As decisões tomam-se por consenso, ou seja com o acordo de todos. Mas é o consenso dos presentes. Os países não representados aquando de uma

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decisão são considerados como que tendo dado o seu acordo. Ora, há cada dia uma dezena de reuniões em Genebra. Uma vintena de países não tem mesmo representação diplomática. Quase oitenta outras delegações não dispõem de um pessoal qualificado em número suficiente para assegurar a sua presença em todas as nas reuniões.

Além disso, os Estados Unidos e a União Europeia fazem sistematicamente uso da prática de reuniões informais: trata-se de reuniões onde se reencontram os países ricos que imprimem a sua orientação à organização, às quais se associam parceiros de circunstâncias (principalmente a Índia e o Brasil). Se tomam decisões estas são apresentadas seguidamente como sendo de pegar ou largar. Países-membros da OMC viram-se pois proibidos de nelas participar.

Quinze países do Sul fizeram propostas para tornar a OMC mais transparente e permitir a participação de todos os membros. Pediram que as decisões adoptadas aquando das reuniões informais não fossem, em caso algum, consideradas como fazendo parte do processo formal de decisão. Propuseram uma série de reformas técnicas para associar todos os Estados-Membros a todas as negociações. Todas as propostas foram rejeitadas pela União Europeia e pelos Estados Unidos.

Tradução livre de: Raoul Marc Jennar, “A qui profite le commerce mondiale”, Globo, n. 12, Dezembro, OXFAM, 2005. Esta revista está disponível em http://www.local.attac.org/attac35/IMG/pdf/Globo_-_Oxfam_-_13-12-2005.pdf.

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III.6. As estratégias de negociação da União Europeia Acordos Internacionais Quando não se ganha com acordos multilaterais, passa-se aos bilaterais Raoul Marc Jennar, Oxfam 2005 Uma negociação é multilateral quando compromete todos os países-membros

da organização internacional na qual esta negociação tem lugar. Se a negociação tiver êxito, fala-se de acordo multilateral. É também assim com os acordos da OMC. Em contrapartida, uma negociação é bilateral quando compromete apenas dois países ou dois grupos de países. Se a negociação tiver êxito, diz-se que o acordo é bilateral. Assim é, por exemplo, com um acordo entre a Bélgica e o Marrocos ou entre a União Europeia e o grupo dos países de África, das Caraíbas e do Pacífico, ditos países ACP.

À primeira vista, só o número de parceiros em causa o diferencia. É verdadeiro que um acordo multilateral, sobretudo se for tomado no âmbito de uma instituição vinculativa como a OMC, tem um impacto muito maior dado que se refere a quase todo o planeta. Mas tem talvez algo ainda mais importante: as condições da negociação.

Quando esta implica um elevado número de países no âmbito multilateral, os mais fracos podem coligar-se para fazer contrapeso aos mais fortes. É de resto o que se começou a passar na OMC. A última Conferência ministerial de Cancun de 2003 não se concluiu sobre nenhum acordo porque os países do Sul se organizaram em grupos para

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exprimir a sua oposição às propostas americano-europeias. Em contrapartida, quando esta negociação põe frente a frente dois países ou dois grupos de países, um forte e o outro fraco, a negociação é desequilibrada. De um lado, a muito melhor capacidade de avaliação, a influência, os meios de pressão, enquanto do outro somente a invocação da equidade ou da solidariedade.

A força do ferro contra a força da terra É a razão pela qual os países do Sul, desde a sua independência, sempre

privilegiaram os recintos internacionais. Mas, estes países guardaram quase sempre relações importantes com a sua

antiga metrópole. Certamente, os países do terceiro mundo puderam aproveitar-se, durante a guerra fria, das rivalidades que opuseram os Ocidentais ao bloco comunista. Alguns conseguiram mesmo uma maior autonomia em relação ao antigo colonizador.

Desde a queda do Muro de Berlim (1989), esta margem de operação desapareceu. Cinco anos mais tarde, em Marraquexe, os acordos da OMC foram assinados. Em detrimento dos países do Sul que se reencontraram desamparados num recinto multilateral onde só tinham em frente deles um só bloco: o dos países mais ricos do planeta. Desde aí, os países do Sul aprenderam a organizar-se para resistir. Com sucesso, como se observou na OMC.

É a razão pela qual, a União Europeia e os EUA impõem cada vez mais negociações aos países da sua esfera de influência (às vezes, as suas antigas colónias) utilizando inclusive os programas de ajuda e assistência técnica que lhes atribuem e o peso que exercem em instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Acordos de parceria? Os EUA literalmente impuseram um acordo com o Canadá e com o México: o

NAFTA, o Acordo de Comércio Livre da América do Norte. Uma consequência entre outras: o México que assegurava a sua auto-suficiência alimentar tornou-se importador líquido de produtos agrícolas e centena de milhares de pessoas perderam os seus meios de subsistência que tinham na agricultura. Do seu lado, a União Europeia (UE) voltou-se naturalmente para as suas antigas colónias assinando acordos com os países mediterrânicos, a África do Sul, o México e o Chile. Estes acordos contêm disposições que impõem a estes países desregulamentações de que estão isentos temporariamente na

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OMC, na sua qualidade de países pobres. A UE negocia ainda acordos com os países do Mercosul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai), assim como com os países ACP (África, Caraíbas, Pacífico). Estes foram divididos de modo autoritário pelos Europeus em seis zonas com as quais a UE negocia separadamente um "Acordo de parceria económico" (APE). Isto é, exactamente um acordo de Livre Troca.

A característica destas negociações bilaterais, é que a Comissão Europeia introduz nestas negociações o que não obtêm na OMC (liberalização dos investimentos, liberalização muito importante dos serviços, restrições acrescidas em matéria de patentes, abertura dos mercados aos produtos agrícolas e não agrícolas), recusando ao mesmo tempo o que recusa na OMC (abrir os seus próprios mercados, pôr termo às subvenções à exportação dos seus produtos agrícolas e de ajudas que provocam dumping).

Perante estes acordos muito agressivos, representantes de organizações africanas parceiros de organizações belgas vieram trabalhar sobre um ponto de vista comum aquando de uma semana de estudos consagrada a estes APE em Bruxelas, em Outubro passado.

Tradução livre de: Raoul Marc Jennar, “A qui profite le commerce mondiale”, Globo, n. 12, Dezembro, OXFAM, 2005. Esta revista está disponível em http://www.local.attac.org/attac35/IMG/pdf/Globo_-_Oxfam_-_13-12-2005.pdf.

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IV. Questões de África, Questões do Mundo: dois filmes, imagens de África IV.1. Djourou: a corda ao teu pescoço Djourou, uma corda ao teu pescoço Realização: Olivier Zuchuat Imagem: Corinne Maury e Olivier Zuchuat Som: Makanfing Konate, Gautier Stoll, Frédéric Choffat Montagem: Olivier Zuchuat Produtor: Serge Lalou, Virginie Vallat Produção: Les Filmes d’ici, Les Filmes du Mélanger, TV10 Angers, com a

participação de TV5 Monde, Televisão Suíça (língua francesa), Sveriges Television CENTRA, CIDADÃO do CINEMATOGRAPHIE e o apoio de PROCIREP/ANGOA-AGICOA, CNCD-Operação 11.11.11 (Bélgica), CADTM, Comunidade Europeia, Fundação Montorge

Festivais: Fipa-tel 2005 (Biarritz); Festival Visions du Réel 2005 (Nyon); Festival de Montreal, Vues d’Áfrique 2005; Festival Résistences 2005 (Foix); One World Filme Festival 2006 (Praha-Praga); Tri Continental Filme festival 2006 (Joanesburgo); Fespaco – Burkina Faso 2007

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Melhor documentário, Menção especial Festival Vues d’Áfrique, Montreal, 2005.

Sinopse "Quem paga as suas dívidas enriquece", diz o provérbio. Às vezes, os provérbios

enganam-se: nos anos 70, os países da África subsahariana contraíram empréstimos no valor de milhões de dólares ao abrigo da ajuda ao desenvolvimento. Mas alguns deles, como o Mali, já pagaram aos países ricos mais de sete vezes o montante dos empréstimos contraídos, enquanto a dívida que ainda está por pagar foi multiplicada por quatro; a matemática financeira é, às vezes, bem curiosa.

Este filme – escrito na primeira pessoa à maneira de um ensaio económico –

interroga-se: Quem ajuda quem? Na língua "bambara", djourou significa dívida mas também corda ao pescoço. Na crise da dívida externa que estrangula o Mali, quem segura a corda e por que é que a não solta?

Um filme que convoca, como uma torrente de palavras, diversas palavras

frequentemente irreconciliáveis: um ministro das Finanças do Mali, um especialista em economia do desenvolvimento, os advogados suíços encarregados de reencontrar o dinheiro da ditadura nas cofres dos bancos suíços, os camponeses produtores de algodão, um representante do Fundo Monetário Internacional e o espectro de um ditador já em decomposição...

Curriculum de Olivier Zuchuat Nasceu em Genebra, em 1969. Após estudar física teórica na Suíça e na

Irlanda, torna-se Assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lausanne, onde obtém uma licenciatura em Filosofia e Literatura francesa.

Em seguida, consagra-se ao teatro como encenador (Ciment, de Heiner Müller,

1998) ou como dramaturgo (Adaptação do Círculo de Giz Caucasiano, de B. Brecht, em 1997, Brigands, de Schiller, As Três Irmãs, de Tchekhov, em 2003).

Em 1999-2000, trabalha com o encenador alemão Matthias Langhoff (O

Revisor, de Gogol, Teatro de Nanterre - Paris).

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A partir de 2001, consagra-se essencialmente ao cinema documental.

Trabalhou nomeadamente em montagem com Frédéric Compain, Domínique Gros ou Nicolas Philibert.

Ensina Estética da Montagem Cinematográfica na Universidade de Paris XII-

Marne-sur Vallée. Cinema, documentário, realização 2001: Mah Damba, une griotte en exil. Documentário de 57 min de Corinne

Maury e de Olivier Zuchuat. Produção: Canal+ Horizontes, Artline Filmes, Les Filmes du Mélangeur. Divulgação: TV5, Canal+ Horizontes.

Seleccionado para o Fipa-tel Biarritz 2002, o Festival Internacional de Filme

Amiens 2002 e o Fespaco 2003 (Ouagadougou, Burkina Faso). 2000: Dollar, Tobin, FMI, Nasdag e les autres. Documentário de 40 min.

Produção: Les Filmes du Mélangeur, ATTAC, Chiméroscope. Festival Résistêncess 2001, Festival des Films Nort-Sud Rouen 2003, Sélection

Images en Bibliotheque & Le Mois du Film documentaire 2002. Distribuído na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália. Traduzido em japonês.

Entrevista com Olivier Zuchuat P.: Tendo uma formação em Física, como é que se interessou pela realização de

filmes documentais? R.: Estudei física matemática na Suíça e na Irlanda, onde fiz um pouco de

investigação em teoria das colisões. Na sequência desses estudos, continuei a sentir-me um tanto insatisfeito, pois achava todos aqueles temas muito, muito "frios". Retomei os estudos em Letras, em Filosofia e em Literatura francesa. Um pouco ao sabor dos acasos que a vida, às vezes, nos oferece, interessei-me pelo teatro. Comecei a trabalhar, como dramaturgo ou encenador, os textos de Bertolt Brecht e de Heiner Müller principalmente.

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Depois, trabalhei com o encenador alemão Mathias Langhoff com quem montei uma das suas peças, O Revisor, de Gogol. Como dramaturgo, consagrava muita energia a trabalhar os textos, a re-escrevê-los, de modo a que a peça teatral seja tomada como a grande "caldeira" que é o nosso mundo contemporâneo. Um dia, fui ver Sem Sol, de Chris Marker. O seu filme marcou-me profundamente e eu próprio pensei: "aqui está, é isto que deveria tentar fazer."

P.: O vosso primeiro filme já era consagrado à economia? R.: Para qualquer um que tem um passado de matemático, as engrenagens da

macroeconomia são algo de fascinante. É fascinante tentar compreender os mecanismos dos grandes fluxos financeiros que circulam à volta do nosso planeta e as suas influências na vida de uns e de outros. No meu primeiro filme interessei-me pela especulação nos mercados cambiais. Aí se vê como os traders nos bancos lançam ataques especulativos que destabilizam as moedas e fizeram com que, de um só golpe, os pequenos camponeses tailandeses vissem o preço de certos géneros básicos duplicar em apenas alguns dias...

P.: Como chegou à escrita do filme e à realização de Djourou? R.: Parti para o Mali com a minha companheira que realizava um filme sobre a

cantora do Mali, Mah Damba. Durante a rodagem deste filme, dei-me conta da extensão da crise da dívida que reina em África. Além disso, como suíço, sempre fui sensível ao impacto da actividade "opaca" da praça bancária suíça. A crise da dívida em África é um bom exemplo. Até certo ponto, a crise da dívida em África é um pouco "a face escondida" do sigilo bancário... Foi assim que nasceu a ideia deste filme.

P.: Em Djourou volta muito rapidamente à história pós-colonial do Mali, ao

papel de Modibo Keita após a independência e ao de Moussa Traoré, o seu sucessor, que marca o regresso da influência da antiga potência colonial. E não hesita em fazer uma comparação entre o Mali e a Coreia, dois países que se tornaram independentes na mesma época.

R.: O Mali, como muitos outros países africanos, obteve a sua independência

no início dos anos 60; mais ou menos em simultaneidade com a Coreia. Nessa época, os dois países tinham situações económicas e geopolíticas semelhantes. Hoje, por um lado,

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temos uma potência económica que é a Coreia do Sul e, por outro, um desperdício absolutamente aterrador. É um dos grandes enigmas. Tentei dissecar a história do Mali. Os países colonizadores retiraram-se enquanto se estava a meio da guerra-fria. A partir deste momento, todos os países do Sul se tornaram, de novo, territórios a serem política e ideologicamente objectos de conquista. Isto foi uma batalha onde a ajuda ao desenvolvimento foi o instrumento. O Mali assumiu uma imagem socialista, os russos chegaram por exemplo com uma fábrica de cimento completa, de chave na mão, totalmente sobredimensionada e que na verdade nunca funcionou. Emprestou-se-lhe muito dinheiro, mas será que o Mali estava realmente pronto para saltar, em dez anos, de uma espécie de pré-história colonial à era industrial? Havia apenas um só liceu para todo o Mali quando os Franceses lá estavam. E muito de repente, com a independência, o país reencontra-se perante um afluxo maciço de novas tecnologias que chegam, mas sem haver trabalhadores suficientemente qualificados para as utilizar e assim todos os empréstimos contraídos para as financiar não foram "rentáveis". Os tigres da Ásia fizeram bem melhor, mas a que preço...

P.: O sistema da dívida entrou nos hábitos dos sistemas financeiros dopados

pela mundialização. Um pouco à maneira dos créditos "revolving" propostos aos pequenos devedores dos nossos países. O que é que pensa disto?

R.: Há uma espiral infernal que se instalou e acaba-se por contrair empréstimos

para reembolsar a dívida, fazendo assim outras dívidas. Em matéria de microeconomia, a finança internacional é colocada sob a gestão do Fundo Monetário Internacional que tem um princípio: não se anula nenhuma dívida multilateral. Podem adiar-se prazos mas não se anula. Anula-se, e apenas muito raramente, entre os países. Muito recentemente anulou-se, por exemplo, uma grande parte da dívida do Iraque. A dívida iraquiana, só por si, é claramente muito mais volumosa do que a dos países da África subsahriana reunidos. Mas, para que o Iraque possa desenvolver a sua indústria petrolífera o mais rapidamente possível, anulou-se esta dívida para acelerar a reconstrução e assim facilitar o acesso das multinacionais, nomeadamente americanas, a um país com infra-estruturas em estado de funcionamento. No Mali, não há petróleo...

P.: O vosso filme constrói-se entre planos fixos e um comentário bastante

literário. Por que é que escolheu este dispositivo?

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R.: Que estética dar a um filme que trata de economia, de uma ideia tão complexa e inextricável como a dívida internacional? Este filme é construído como uma meditação, a de alguém que examina o país, observando-o pacientemente, ligeiramente distanciado. Em África, observar em plano fixo uma rua, cheiíssima destas pessoas que tentam desenvencilhar-se fazendo o "pequeno comércio" como aí se diz é algo vertiginoso. É aí que se desenrola uma grande parte do drama actual da África contemporânea. Não se tratava assim de ilustrar as reflexões propostas "em voz alta", mas de propor, perante as minhas interrogações, imagens para que tudo isto ganhasse "sentido no ecrã..." Dissociação das imagens e do som.

P.: Há no seu documentário um ponto de vista filosófico expresso através de

referências nomeadamente à teoria do dom de Jacques Derrida. A ajuda ao desenvolvimento, será ela do domínio do dom?

R.: Vários filósofos, entre os quais Jacques Derrida e Jean-Luc Marion,

interessaram-se sobre a questão do dom. A conclusão essencial é que o dom absoluto é quase impossível. Para cada "operação de dom", é necessário uma trilogia: há a instância que dá, há a instância que recebe e há o que é dado. Estes filósofos mostraram que se uma das componentes da trilogia falta, então é possível fazer um dom absoluto. Se não, o dom tem sempre como corolário uma contrapartida, mesmo que seja unicamente moral... Por exemplo, se anda na rua, se coloca uma nota de 100 euros no chão e parte imediatamente a correr, então fez um dom absoluto. O destinatário, esse não o conhece...

Em nome da ajuda ao desenvolvimento, emprestou-se dinheiro aos países do Sul a taxas de juro muito baixas. O dom era principalmente isto, as taxas de juro variáveis mas inicialmente muito favoráveis. Mas a trilogia de que falam os filósofos estava presente e há então uma dívida, ou dívidas... O filme interessou-se, pois, nestas contrapartidas...

P.: Não escolheu criar e seguir uma personagem que vivesse, sofresse, esta

dívida. Porquê? R.: O Mali faz parte dos dez países mais pobres do mundo. Filmei e encontrei

numerosas pessoas que sofriam brutalmente as consequências indirectas da dívida. Mas a justaposição no filme destes dramas individuais e a reflexão sobre as causas do drama à escala macroeconómica não funcionava. Seria necessário fazer outro filme...

Fonte: Entrevista realizada em Paris por Jean Rabinovici, em Abril de 2005, disponível em www.djourou.org.

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A África e a sua dívida vistas a partir da Suíça CINEMA. Documentário de criação, Djourou, uma corda ao teu pescoço, de

Olivier Zuchuat, demonstra a iniquidade dos mecanismos financeiros internacionais sem viver de ideias preconceituosas. Uma acusação implacável que questiona.

Um filme que emerge de parte nenhuma, o seu tom pessoal e a sua temática

muito actual acerta em cheio na questão, e descobre-se que se trata da obra dum suíço expatriado: sagrada surpresa este Djourou, uma corda ao teu pescoço, visível desde quarta-feira nos nossos ecrãs! Algures, entre O Pesadelo de Darwin, do austríaco Hubert Sauper, Rio Congo, do belga Thierry Michel e Bamako, do maliano Abderrahmane Sissako, eis talvez a exposição mais convincente dos males da África de hoje.

O seu autor, Olivier Zuchuat, nascido em 1969 em Genebra, apresenta um

percurso curioso, para não dizer engraçado: estudou física teórica em Lausanne e Dublin, seguidamente um desvio para Letras (Literatura francesa e Filosofia), uma paixão brusca pelo teatro (encenações e adaptações) que o conduzem até Paris em 1999 como assistente de Matthias Langhoff e, para terminar, o cinema documental no seguimento da projecção de Sem Sol, de Chris Marker. Depois dum primeiro ensaio consagrado à especulação sobre os mercados cambiais (Dollar, Tobin, FMI, Nasdaq e les autres, 2000) e alguns trabalhos de montagem para o Canal Arte, eis o nosso homem enfim pronto para outra coisa. A ocasião apresenta-se após uma estada no Mali, onde colabora num filme da sua companheira, Corinne Maury (Mah Damba, griotte en exíle, 2002).

P.: Saído em Junho de 2005 em Paris, o vosso filme teve estreia em Nyon, no

festival Visions du Réel no mesmo ano, para só ser projectado hoje. Será que isto representa o percurso de um combatente?

R.: Como não se trata de um documentário de televisão formatado, mas antes

de um ensaio em forma livre, não tenho que me queixar. Já a montante, tudo demorou para ser posto em prática. Vagueei muito na altura da sua montagem, a ponto de o resultado final deixar de ter semelhanças com o projecto de partida. E isto não agradou mesmo nada às televisões co-produtoras. Felizmente, o filme teve boas críticas aquando da sua saída em sala, nomeadamente no Le Monde e no Liberation. Desde então, circulou nos festivais do mundo inteiro.

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P.: O tema “a ajuda ao desenvolvimento e a dívida” não são dos mais visuais. Como encarou este problema?

R.: Este era o desafio, chegar mesmo assim a construir um objecto

cinematográfico. Comecei por juntar um máximo de imagens, seguidamente dei-me conta que aquilo não funcionava. Havia um conflito entre os testemunhos demasiado pessoais, demasiado concretos, e o meu projecto de expor um quadro mais amplo, a nível macroeconómico. Foi assim que cheguei à ideia de um documento com duas partes, uma de investigação no terreno e uma outra, mais reflexiva, com uma narração muito literária, ligada ao meu ponto de vista de Europeu. Espero ter evitado assim ao mesmo tempo a armadilha de um cinema demasiado didáctico e a de um cinema militante.

P.: Que diria aos que julgam estas questões demasiado complexas, fora do

nosso alcance? R.: Que isso não é verdade e que há, de facto, um problema muito sério a

resolver em África. É certo que a dívida externa dos países em vias de desenvolvimento tornou-se um instrumento de pressão do Norte sobre o Sul, com consequências humanamente intoleráveis. Mas não penso que se trata apenas de um neo-colonialismo maquiavélico. As responsabilidades são compartilhadas, e o comportamento das "elites" locais não foi menos escandaloso. Esta é a razão pela qual se torna necessário penetrar na história para compreender as coisas e decidir como agir com conhecimento de causa. Dito isto, um filme deveria, na minha opinião, limitar-se a expor a complexidade das coisas e a colocar bem as questões pertinentes.

P.: Uma dívida como a do Mali não é em nada comparável à dos nossos países

ricos. Então porquê todo este barulho? R.: Qualquer dívida deveria corresponder a um investimento. Ora, o Mali

endividou-se para nada. Os erros e a corrupção tudo engoliram. E quando o serviço da dívida acaba por ultrapassar os orçamentos da Saúde e da Educação, que continuam a ser miseráveis, deixa de se poder realmente falar em ajuda ao desenvolvimento. Todos os esforços passam pela cultura do algodão, cujas exportações são utilizadas para pagar os juros da dívida, de facto, já várias vezes reembolsada. O escândalo é que o Mali poderia ser

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um país rico, com ouro, com terras agrícolas muito fertéis, etc., mas, em vez disso, vegeta hoje entre os mais pobres do mundo.

P.: Não teme refutações, ataques comparáveis aos que sofreu O Pesadelo de

Darwin? R.: Não, porque o meu trajecto é muito diferente. Primeiro, documentei-me

com cuidado para avançar todos os números. E, instintivamente, evitei que as imagens se tornassem demasiado fortes. Com imagens de choque, há sempre o risco que pareçam manipuladoras. Ora, aqui, tratava-se sobretudo de pôr a nu uma certa matemática perversa. Tudo isto dá um filme talvez ligeiramente austero mas, no meu ponto de vista, é a condição para que o pensamento se desenvolva.

P.: Falhou as antestreias anunciadas em Lausanne e Genebra... R.: Lamento, mas regressei doente do Chade, onde preparava um novo filme

sobre os refugiados do Darfour. Mas tenho esperança de terminá-lo ainda no ano próximo. Fonte: Entrevista a Olivier Zuchuat de Norbert Creutz, Le Temps, 8 de

Dezembro de 2006. Djourou, uma corda ao teu pescoço de Olivier Zuchuat "Nasci num país que acolhe com mais boa vontade o dinheiro dos estrangeiros

que os próprios estrangeiros". O tom deste filme será resolutamente pessoal. E as imagens, com movimentos bruscos de cisnes sobre o Lago Leman, anunciam elas também um tom distanciado sempre que o comentário se debruça sobre a questão da dívida. A Suíça não será o lugar do filme, ainda que aí se volte para seguir os vestígios das contas onde vem repousar o dinheiro desviado. Porque efectivamente o centro é a África, e mais especialmente o Mali.

O que nos conta Olivier Zuchuat com ternura do desespero é tão edificante como O Pesadelo de Darwin, mas nunca recorrendo ao sensacionalismo miserabilista: aquele filme não terá o mesmo sucesso em público mas sem dúvida servirá melhor para compreender o tema. A seriedade adoptada na abordagem fá-lo passar da reportagem

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fundamentada aos arquivos históricos para definir bem, partindo do exemplo do algodão maliano, os diferentes estádios do ciclo infernal da dívida. O director assume as suas escolhas, não somente pelo seu comentário empenhado que anuncia claramente a cor, mas também e sobretudo pela forma como dá a palavra aos interessados. É impressionante ver até que ponto o grau de consciência e mesmo de retórica do camponês maliano é tão elevado como aquele que testemunha um seu ministro. Só podemos extrair uma terrível constatação: estamos perante uma engrenagem sem fim. Todos estão endividados, do camponês ao Estado, e cada um endivida-se para pagar a dívida. O filme deixou de ser, por conseguinte, a história da dívida para ser a dívida da história. E eis-nos idos na viagem das actualidades da época que nos refrescam a memória sobre a História do Mali: sob Modibo Keïta, acredita-se que o progresso socialista reembolsará a dívida, mas isto é também o que diz o partido dos financiadores. Sob Moussa Traoré, a ajuda ao desenvolvimento será a arma da França para comprar a ditadura. Nenhuma preocupação: a ajuda está ligada, uma vez que os empréstimos franceses concedidos ao Mali financiam empresas francesas. Como diz Georges Bataille, "a despesa não foi produtiva" e a perfusão tornou-se punção. Os dez anos de Alfa Oumar Konaré não inverteram o sentido dos compromissos e da corrupção, de modo que os "rapeurs" podem cantar: "as manobras desonestas no nosso país, vamos contar-vos tudo".

Quem se endivida perde a sua liberdade: o FMI e o Banco Mundial fazem as políticas e apertam o cinto, enquanto o montante do reembolso da dívida é mais elevado do que os orçamentos da Educação e da Saúde reunidos. Na sua ironia amarga, o filme procura metáforas e coloca-as em imagens: raparigas que se esforçam para extrair a água enquanto o comentário nos fala duma África que procura pôr a cabeça fora de água.

É apenas a este nível de ilustrações de piscares de olhos que o filme se liberta de

uma demonstração escolar: a poesia está ausente, dê-se lugar ao tema. Os especialistas são convocados desde que uma explicação seja necessária. O espectro liberal do Nepad é chamado por um mágico um "monstro invisível": "está de novo a cair na ratoeira". Injustiça: os Estados Unidos e a Europa subvencionam o seu algodão sete vezes mais do que aquilo que ajudam ao desenvolvimento. E o Mali não produz só uma T-Shirt.

A recolonização: para anular a dívida, convertem-na em ajuda ao

desenvolvimento... das empresas francesas. A publicidade de Western União diz muito bem: "envio muito mais do que dinheiro". "Eu dou-te, tu deves-me": quem estaria interessado em anular tão bonito instrumento? Sem ter o poder cinematográfico de um

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grito de alarme, o filme-constatação de Olivier Zuchuat apela à vigilância, levantando o véu dos belos discursos de generosidade, agora mesmo que eles estão a ser as grandes notícias dos jornais, o que não deixa de ser útil.

Fonte: Olivier Barlet, "Djourou, une corde à ton cou", Le Nouvel Observateur, 8 de Junho de 2005.

Djourou expõe o caso do Mali estrangulado pela sua dívida Com meios muito modestos e o Mali como exemplo, Djourou diz-nos muito

sobre o nosso mundo A dívida do Sul, sabe-se sem se estar a saber. Compreender donde vem, como é

imposta e para onde ela corre o risco de nos levar é já outra coisa. Com o seu filme, Olivier Zuchuat tem já o imenso mérito de não se ter deixado impressionar pela complexidade da questão. Pelo contrário, procura entendê-la, multiplicando as pistas para melhor demonstrar uma injustiça que dificilmente se tem tornado tolerável, a não ser que se assuma um inconfessável racismo.

Primeiro produtor de algodão da África Ocidental, tendo começado

aparentemente bem aquando da sua independência em 1959, o Mali conta-se hoje entre os dez países mais pobres do mundo. Como é que se chegou aqui? É o que demonstra Djourou (palavra "bambara" que significaria por sua vez "dívida" e "corda ao pescoço"), através de actualidades desenterradas dos precários arquivos do Mali e apoiando-se nalgumas entrevistas (a camponeses como ao ministro das Finanças, passando pelo responsável local do FMI).

Aí se descobre como um ditador militar, Moussa Traoré, foi preferido pelo

Ocidente contra um primeiro presidente, Modibo Keita, "não-alinhado" com o bloco do Leste. Duas décadas de corrupção e de incompetência vieram a dar mais tarde um país exangue que reencontra a democracia em 1991. Muito tarde? Entretanto, o país perdeu o comboio da industrialização e meteu-se na espiral do sobre-endividamento. Demasiado pobre, sob tutela do FMI que lhe dita agora a sua política económica e as suas prioridades orçamentais, não faz mais nada a não ser correr para pagar os juros de uma dívida que explodiu.

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O simples contraste de imagens aqui e ali ilustra efectivamente o abismo. Mas como as imagens não são sempre suficientes, o autor dissocia frequentemente a imagem e o som. Com a sua má consciência de europeu ("nasci num país que acolhe com mais boa vontade o dinheiro dos estrangeiros que os próprios estrangeiros"), propõe as suas próprias meditações (como é possível que um país tão pobre exporte dinheiro?) a partir dos números que matam (o país já teria reembolsado sete vezes os montantes que lhe foram emprestados enquanto a sua dívida se multiplicou por quatro).

O todo gera um dos filmes mais impressionantes. Escandalizado ou

desmoralizado, sai-se da sala de cinema claramente mais consciente, com um outro olhar sobre a África e sobre os benefícios da mundialização. E é já isto.

Fonte: Norbert Creutz, "‘Djourou’ expose le cas du Mali, étranglé par sa dette", Le Temps, 8 de Dezembro de 2006.

Eu dou-te, tu deves-me..., Djourou, uma corda ao teu pescoço realizado por Olivier Zuchuat Este segundo filme do realizador suíço (anteriormente matemático e

dramaturgo) é uma verdadeira lição de economia filmada, apoiada em reflexões pessoais, conseguindo nunca cair no maniqueísmo.

Na altura em que Tony Blair vai a Washington para tentar convencer George

Bush a aderir ao seu "plano Marshall" para a África (anulação de 100% da dívida bilateral e multilateral) antes da cimeira do G8 na Escócia, a 6 de Julho, eis que aparece nos ecrãs franceses Djourou, uma corda ao teu pescoço. Em "bambara", "djourou" significa ao mesmo tempo "dívida" e "corda ao pescoço". Um documentário militante mais em prol da anulação da dívida? Talvez, mas um documentário muito bem fundamentado, evitando assim qualquer maniqueísmo.

Para isso, o realizador convoca primeiro a história, utilizando arquivos de

actualidades filmadas, coloca o indispensável preliminar para compreender como é que o Mali chegou a esta situação. Algumas lembranças: em 1961, o socialista Modibo Keita é levado ao poder num Mali independente. Enquanto os colonos partiram e a Inglaterra festejava o bicentenário da sua revolução industrial, o Mali enterra-se na idade do ferro. Em 1968, o ditador militar Moussa Traoré toma o poder com o apoio de um golpe militar. Deverá este homem ser considerado como o único responsável? Nos anos 70, o

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Mali contrai imensos empréstimos junto dos bancos e instituições financeiras do Norte que procuram uma aplicação para os seus "petrodólares", começando-se então uma espiral sem fim. Corrupção, má gestão e desvios pesam ainda sobre o Mali de hoje. Desde 1991, o país reencontrou um governo democrático, tendo Amadou Toumani Touré como presidente da República desde 2002, mas nunca recuperou o dinheiro desviado por Moussa Traoré. A dívida? "Quem quereria anular um tão belo instrumento?", questiona o realizador em voz-off: "Eu dou-te, tu deves-me" é um provérbio que assume todo o seu sentido na boca de James Wolfensohn, ex-presidente do Banco Mundial, que declara, aquando de uma conferência de imprensa em Manilha, em Março de 2000: "Se tivermos uma sociedade baseada na anulação da dívida, quem investirá na dívida? Anulá-la seria prejudicar o mercado". Constatação brutal evidenciada, como outras, no decorrer do documentário. Embora o Mali tenha pago sete vezes os empréstimos contraídos, a sua dívida está hoje calculada em 2,7 mil milhões de dólares.

Filmar a dívida, explicar a engrenagem macroeconómica não é, a priori, muito

apelativo em cinema. Mas Zuchuat faz do seu documentário um verdadeiro ensaio filmado na primeira pessoa, tomando às vezes aspectos de meditação. O realizador lembra assim Michaux ou ainda Derrida (estudou Letras e Filosofia após a sua formação em Física), trazendo o lado humano necessário a esta lição de economia. Do mesmo modo, escolhendo dissociar as imagens e o som, oferece ao espectador uma estética do dia a dia no Mali, explicando ao mesmo tempo a engrenagem desta dívida que o estrangula. Zuchuat passeia assim a sua câmara em numerosos planos fixos nas ruas de Bamako, onde pululam os pequenos comerciantes, ou nos extensos campos do Mali: um país que continua a viver apesar desta corda ao seu pescoço. Djourou é um documentário apaixonante que possui o grande mérito de nos fazer compreender um mecanismo complicado.

Fonte: Sarah Elkaïm, "Je te donne, tu me dois", Critikat, Junho de 2005.

A esmagadora lógica das matemáticas Documentário. Apoiando-se sobre o eloquente exemplo do Mali, Olivier

Zuchuat assina aqui uma acusação notável sobre a dívida da África subsahariana. Como é que a ajuda ao desenvolvimento se tornou nesta armadilha que

estrangula cada dia mais as populações que dela deveriam ter tirado "proveito"? Um

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instrumento da continuada predação das economias do Sul feita pelos países do Norte com a utilização de outros meios, para parafrasear Clausewitz? Para responder, Olivier Zuchuat esforça-se num "ensaio económico" escrito na primeira pessoa e centrado no exemplo do Mali. Aquele que assina com Djourou, uma corda ao teu pescoço o seu terceiro filme documental estudou Física e fez investigação em teoria das colisões, antes de tentar levar à cena textos de Bertolt Brecht e de Heiner Müller.

É no entanto o seu encontro com Sem Sol, de Chris Marker, que determina o seu percurso no cinema. Reencontra-se um pouco desta trilogia original na construção de Djourou...: um comentário claramente literário, ou mesmo teatral, duplicado por uma maneira de organizar colisões entre os discursos dos protagonistas de uma tragédia moderna, sobre os quais nos interrogamos se vivem ou não neste mesmo planeta. O que é que há de comum, com efeito, entre um funcionário do Fundo Monetário Internacional que, de fato impecável, diz siglas de cariz tecnocrático, outros "pontos de colisão" que apoiam o mesmo credo que provoca muitos estragos, e estes são bem reais, e os aldeões do Mali que assumem a câmara de filmar como um meio para testemunhar a sua impotência? Zuchuat acrescenta um terceiro ingrediente a este diálogo de surdos, os arquivos das actualidades cinematográficas do Mali, para mostrar como esta "história da dívida é também uma dívida da história": a de um país que conheceu a dominação de um ditador feroz, Moussa Traoré, que chegou ao poder com um golpe de Estado apoiado pela França, em 1968. Durante o seu reinado, o Mali recebeu milhões de dólares a taxas de juro muito baixas que serviram para financiar a construção de estradas, fábricas, uma barragem, mas que sobretudo foram desviados para guarnecerem contas bancárias na Suíça. Desta pilhagem, o Mali ainda não se conseguiu levantar, afundado pela baixa contínua das cotações do algodão (o seu principal recurso em divisas), encurralado pelos ajustamentos estruturais sucessivos, asfixiado pela lógica do "mercado da dívida" e por esta curiosa matemática financeira que fez com que o país já tenha reembolsado aos países ricos sete vezes o montante emprestado, enquanto a sua dívida foi multiplicada por quatro!

"O progresso reembolsará", dizia o partido [o Partido único de Moussa

Traoré]. "O progresso reembolsará", diziam os financiadores. "O progresso reembolsará", constata o documentário, ao passar de um arquivo a preto e branco, mostrando uma sala de máquinas "futurista" dos anos 50, para as cores actuais de uma forja de uma outra idade." O Mali continua a viver na idade do ferro. Então "quem ajuda quem?". No fim de esta curta viagem à modernidade obstinadamente insuportável, o espectador terá já construído certamente uma opinião. O que nos fica é a ideia de que os recursos do cinema

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mobilizados por Olivier Zuchuat têm dificuldade em ultrapassar a fase de uma acusação bem feita e distanciada. Nem mais nem menos meritória que outros filmes que utilizaram uma via similar.

Fonte: Emmanuel Chicon, L’Humanité, Paris, 8 de Junho de 2005.

Esta dívida que estrangula o Mali "Quem paga as suas dívidas enriquece", diz o provérbio. No entanto, a

realidade do Mali contraria visivelmente esta afirmação. O filme documentário Djourou, uma corda ao teu pescoço, do cineasta suíço Olivier Zuchuat, faz um balanço catastrófico da situação económica, social e política do Mali. A principal causa considerada como responsável dos males do país: a sua dívida externa. Os seus carrascos: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Os empréstimos contraídos já sete vezes pagos O documentário destaca um paradoxo que é conhecido pela maior parte dos

países africanos. Embora tenha pago sete vezes os empréstimos contraídos, o país enterra-se numa dívida sem fim, hoje considerada em 2,7 mil milhões de dólares. "Pôs-se em marcha e instalou-se uma espiral infernal; acaba-se por contrair empréstimos para reembolsar a dívida fazendo assim outras dívidas", explica o realizador.

O filme apoia-se no ponto de vista de diversos actores económicos no Mali: um ministro das Finanças, um especialista em economia do desenvolvimento, os advogados suíços encarregados de encontrarem o dinheiro da ditadura nos cofres dos bancos suíços, os camponeses produtores de algodão e um representante do Fundo Monetário Internacional.

"Quem ajuda quem?" O documentário tem efectivamente em conta o carácter multidimensional da

dívida externa do Mali. Assim, o espectador que conheça mais ou menos o país tem a possibilidade de descobrir a sua história pós-colonial. O autor não nos impõe em nenhum caso nenhuma visão maniqueísta do mundo. Bem pelo contrário, expõe sem tomar partido, os erros compartilhados entre o Norte e o Sul. Certamente, o governo do Mali, minado pela corrupção, geriu muito mal as somas que lhe foram emprestadas. Mas os

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países do Norte, e a França em especial, não têm interesse em suprimir a dívida. É por isso que o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, declarava aquando de uma conferência de imprensa, "se tivermos uma sociedade baseada na anulação da dívida, quem investirá na dívida? Anulá-la seria prejudicar o mercado". A obra demonstra claramente como "os países do Norte dão com uma mão o que retomam com a outra". O narrador faz, por conseguinte, uma pergunta crucial: "quem ajuda quem"? As aparências seriam afinal enganosas?

Fonte: Nadégue Ouinson, Cette dette qui étrangle le Mali, Afrik.com, Maio de 2005.

Uma história de dívidas... uma dívida da história Uma pequena cronologia Nascida da descolonização, a República do Sudão (actuais Mali e Senegal) terá

vivido apenas dez meses. Em 1961, a jovem república voa em estilhaços e da cisão nasce a República do Mali. O antigo professor Modibo Keita é levado ao poder do novo Estado e estabeleceu-se uma economia planificada decalcada do modelo da Europa do Leste. A descolonização é dolorosa: marasmo económico, ausência de desenvolvimento industrial, queda do franco do Mali, tiranização da população pelas milícias populares.

No entanto, numerosas empresas estatais são criadas, sendo a maior parte agora

privatizada. A corrupção instala-se no Mali e a França desliga-se pouco a pouco a favor da URSS. A 19 de Novembro de 1968, Modibo Keita é derrubado pelo tenente-coronel paraquedista Moussa Traoré, apoiado pela França de Pompidou. Seguem-se anos de ditadura. Os paraquedistas instalam um poder despótico e corrompido. Transformada em república das bananas, o Mali afunda-se.

A partir de 1970, os bancos e as instituições financeiras do Norte estão com

excesso de liquidez. Procuram aplicar os seus "petrodólares" e encontram então mercados ideais: emprestam-nos aos países do Sul a taxas de juro favoráveis, logo seguidas pelos bancos centrais de países industrializados (a URSS, o Japão, a França, no caso do Mali). Milhões de dólares são, pois, emprestados a taxas de juro muito baixas ao governo de Moussa Traoré. Estradas, uma barragem e fábricas são construídas. Mas devido às "más gestões", uma grande parte deste dinheiro é utilizado de maneira fraudulenta.

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Em poucos anos, o Mali sobre-endivida-se: em 1980, o Mali tem uma dívida externa de cerca de 700 milhões de dólares, equivalendo a metade do Produto Interno Bruto. Todos estão a par dos desvios efectuados, mas os países do Norte fecham os olhos, felizes pela estabilidade relativa que reina no Mali e na África do Oeste.

A crise dos anos 80 No início dos anos 80, é a crise financeira nos Estados Unidos que conduz a

uma política anti-inflacionista e esta tem, como sua consequência, um aumento das taxas de juro. Para os países africanos, é a catástrofe. As taxas de juro da dívida passam de 7% para 12%. Simultaneamente, as cotações das matérias-primas que constituem o essencial das suas exportações caiem a pique. Não têm mais divisas e, portanto, deixam de poder reembolsar a dívida.

Em 1985, a dívida do Mali duplicou: 1,5 mil milhões de dólares. A

comunidade internacional começa a ter medo e os empréstimos diminuem para metade. O franco CFA desmorona-se e as exportações do Norte tornam-se mais caras. Condenados a exportar as matérias-primas a preços reduzidos (algodão, ouro) e a importar a preços crescentes, o Mali e os seus vizinhos entram num círculo vicioso.

Banco Mundial, FMI e Clube de Paris Criados à saída da segunda Guerra Mundial para reconstruir a Europa, o FMI

e o Banco Mundial viram as suas funções mudarem radicalmente desde o começo dos anos 80. A partir de então, passaram a estar inteiramente vocacionados para os países em vias de desenvolvimento, pondo em prática planos drásticos destinados a reestruturar as economias africanas e a torná-las solventes para atraírem os investidores e reembolsarem a dívida.

A lógica destes "planos de ajustamentos estruturais" promulgados pelo FMI é simples: para reembolsar a dívida, é necessário aumentar as exportações. Para atrair os investidores estrangeiros, são necessárias taxas de rentabilidade locais elevadas e despesas públicas menores. Geralmente, a Educação e a Saúde são as primeiras a serem atingidas por estas medidas de redução da despesa.

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Graças aos capitais estrangeiros e ao rendimento das exportações, esperava-se que a África se desendividasse e pudesse importar equipamentos tecnológicos do Norte... Foi esta política que foi posta em prática no Mali. Plantou-se algodão destinado à exportação e reduziu-se drasticamente o orçamento da Saúde e da Educação...

As empresas estatais foram vendidas para alimentarem os cofres do Estado e o

Mali tornou-se o segundo produtor de algodão de África. 1990-2000: a espiral A cotação do algodão caiu a pique nos mercados internacionais. O Mali viu a

sua dívida quadruplicar, para atingir 3,2 mil milhões de dólares. Reunindo as condições de "boa governança" estabelecidas pelo FMI, o Mali

beneficia de duas reduções sucessivas da sua dívida. São os programas PPTE, instaurados pelo FMI e pelo Banco Mundial no fim do ano 1996, que consistem em reduzir a dívida a países muito pobres e muito endividados e que têm provado a sua vontade em aplicar rapidamente as políticas neoliberais. O Mali beneficiou assim de uma redução da sua dívida de 870 milhões de dólares, mas outras dívidas vieram-se-lhe juntar. O problema permanece intacto: o Estado do Mali, em 2002, reembolsou 275 milhões de dólares de juros da dívida, o que representa mais que os orçamentos da Educação e da Saúde reunidos para este ano (125 milhões de dólares para a Saúde, 140 milhões de dólares para a Educação).

Em Setembro de 2002, Jacques Chirac anunciou ao novo presidente Amadou

Toumani Touré, conhecido por ATT, que a dívida bilateral do Mali para com a França seria reduzida em cerca de 40%, o que correspondeu a 80 milhões de euros...

Permanecem sempre 2,7 mil milhões de dólares por reembolsar, e o preço do

algodão nos mercados mundiais não deixa de estar a cair.

Fonte: www.djourou.org.

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IV.2.1. “Bamako”, filme de acção e de justiça Damien Millet, Olivier Lorilu, CADTM Setembro, 2006 Este filme, Bamako, já deu que falar no Festival de Cannes, em 2006 e é um

grande acontecimento cinematográfico e por várias razões. Em primeiro lugar, as opções artísticas do seu realizador, o maliano

Abderrahmane Sissako fazem deste filme um verdadeiro filme de autor. Uma a uma, estas escolhas surpreendem, comovem, divertem, agitam, isto é, nunca nos deixam indiferentes. Insistamos aqui, em primeiro lugar, na primeira destas escolhas, a ideia base do argumento que dá ao filme a sua coluna vertebral: pôr em cena o julgamento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial a propósito das suas responsabilidades na situação económica africana, no tribunal de uma casa de gente do Mali onde se continua a viver a vida de todos os dias. O Tribunal, os advogados, o público, os testemunhos aí estão, sobre a terra batida do Mali. Longe de serem bodes expiatórios, as duas instituições postas em causa devem certamente apresentar contas pelo seu papel central no impasse actual do continente negro. Que se julgue, então.

Estas duas instituições criadas em Bretton Woods (nos Estados Unidos) em Julho de 1944, são as herdeiras da relação de forças resultante da segunda guerra mundial. Instaladas em Washington, perto da Casa Branca, constituem um dispositivo chave para os Estados Unidos e para as potências aliadas no seu controlo sobre a economia mundial.

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Após a chegada ao poder, em 1968, de Robert McNamara, antigo secretário de Estado da Defesa dos Estados Unidos (então atolados militarmente no Vietname), o Banco Mundial utilizou a dívida como um objectivo geopolítico: desestabilização de governos progressistas e democráticos suprimindo-lhes qualquer tipo de ajuda (Sukarno na Indonésia, Kubitschek e seguidamente João Goulart no Brasil, Allende no Chile...) para contrariarem as veleidades de emancipação; apoio aos aliados estratégicos do bloco ocidental, nomeadamente aos regimes ditatoriais responsáveis comprovados de crimes contra a humanidade (ditaduras brasileiras e argentinas, Pinochet no Chile, Mobutu no Zaire, regime de Apartheid em África do Sul, Suharto na Indonésia, regimes ditatoriais na Coreia do Sul e na Tailândia, regimes dissidentes do antigo bloco soviético como Ceaucescu na Roménia e tantos outros).

Uma grande parte dos empréstimos concedidos pelo Banco Mundial serviu para se realizarem políticas que prejudicaram centenas de milhões de cidadãos. Privilegiou sistematicamente os empréstimos para projectos nefastos para as populações em causa e para o seu meio ambiente: grandes barragens frequentemente ineficazes (mais de 10 milhões de pessoas devem ter sido deslocadas por causa de tais projectos apoiados pelo Banco Mundial e frequentemente privados de suficientes indemnizações), indústrias extractivas (minas à céu aberto, oleodutos), políticas agrícolas que favorecem o "tudo para a exportação" com o custo do abandono da soberania alimentar, centrais térmicas (grandes consumidoras de florestas tropicais), etc.

Em violação aos princípios do Tratado de Versalhes de 1919, os empréstimos atribuídos pelo Banco Mundial às metrópoles coloniais para a exploração dos recursos naturais das suas colónias foram transferidos, como encargos, para os novos Estados aquando da sua independência. Foi assim com países como a Mauritânia, o Gabão, a Argélia, o República Democrática do Congo, a Zâmbia, o Quénia, a Nigéria e outros herdaram, todos eles, uma verdadeira dívida da independência com o aval do Banco Mundial.

Após a crise da dívida no início dos anos 1980, o FMI interveio a pedido dos credores para organizar e garantir o reembolso da dívida. Condicionou os seus empréstimos aos países sobreendividados à assinatura de programas de ajustamento estrutural que correspondem sempre ao mesmo esquema: produção agrícola orientada para a exportação; austeridade orçamental e redução drástica dos orçamentos sociais (saúde, educação, infra-estruturas...); supressão dos subsídios aos produtos básicos; despedimentos nos serviços públicos e congelamento dos salários; fiscalidade frequentemente reduzida a um IVA que incide, sobretudo, sobre os mais pobres;

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privatizações; liberalização da economia, abertura total aos capitais estrangeiros e aposta na concorrência desleal das transnacionais com os produtores locais. O FMI completou pois a acção do Banco Mundial no sentido de uma colonização económica. Com efeito, tanto o FMI como o Banco Mundial defendem uma política de captação das riquezas dos países do Sul em proveito de um pequeno conjunto de empresas multinacionais, de alguns indivíduos milionários e dos detentores do poder, assim como dos que lhes estão mais próximos, cujas escolhas se impõem brutalmente à maioria dos habitantes do planeta.

O carácter nocivo destes pretensos remédios foi demonstrado múltiplas vezes nas crises que se sucederam a partir de meados dos anos 1990, do México à Ásia do sudeste, da Rússia ao Brasil, da Turquia à Argentina... O resultado destas políticas foi uma profunda degradação das condições de vida das populações do Sul, particularmente na África: o número de africanos que têm que sobreviver com menos de 1$ por dia duplicou entre 1981 e 2001, mais de 200 milhões de pessoas sofrem de fome e a esperança de vida desceu (em 20 países da África, desceu para menos de 45 anos).

Desde há alguns anos, estas duas instituições internacionais fazem grande barulho à volta da anulação de uma parte da dívida dos países mais pobres. Mas, esquecem-se de precisar que isto se aplica a poucos países e que esta redução se efectua em contrapartida de longos anos de reformas económicas draconianas, na sequência directa do ajustamento estrutural. Em termos de redução da dívida, da luta contra a pobreza, do respeito pelos direitos humanos, o FMI e o Banco Mundial inegavelmente falharam e os estragos que provocaram são consideráveis.

Nenhuma instituição beneficia de imunidade se estiver implicada em crimes contra a humanidade, e para os quais não existe nenhuma prescrição. Devido à existência de crimes contra a humanidade, o FMI e o Banco Mundial devem ser levados à justiça. "Bamako", filme de acção e de justiça, filme de acção em justiça apoiado pelo CADTM, é o que vem fazer e é o que trás para a luz do dia.

Tradução livre de: Damien Millet, Olivier Lorilu, “Bamako” film d’action et de justice, CADTM, Setembro, 2006. Artigo disponível em http://www.cadtm.org/article.php3?id_article=2092.

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IV.2.2. O processo da dívida, o FMI e o Banco Mundial Bamako: Um filme de Abderrahmane Sissako Dette & Développement 2006 Desde há mais de vinte anos que os países africanos vêem desaparecer a sua

soberania e o seu direito ao desenvolvimento. Entre os principais responsáveis estão as instituições financeiras internacionais. A arma do seu crime: a dívida. Actores e mecanismos que parecem gozar de uma imunidade perpétua. Uma impunidade de que Bamako mostra o absurdo.

Bamako, é a representação, numa casa da capital do Mali, do processo da dívida dos países africanos, bem como do Banco Mundial e do FMI. O tribunal vê desfilar os testemunhos de africanos, frequentemente desconhecidos, por vezes muito conhecidos Antigo ministro da cultura no Mali e uma das vozes reconhecidas do movimento altermundista em África, Aminata Traoré também aparece no filme. Enquanto as testemunhas testemunham, a vida em redor da casa continua, os desempregados procuram trabalho, os apaixonados casam-se, os cantores cantam, os cow-boys divertem-se.

Evitando o julgamento à porta fechada, o filme respira. Uma necessidade, de tal modo é intensa e dura é a realidade que se exprime na barra do tribunal.

A espontaneidade dos testemunhos, que visivelmente não foram objecto de múltiplos ensaios, como a dos argumentadores/advogados (nomeadamente William

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William Bourdon, presidente da associação Sherpa, próxima da Plate-forme Dette & Développement), vai direita ao centro da questão: é nisso que está a força do filme. Um filme que não mente; um filme rico de sentido, frequentemente poético, sempre muito humano. Não será esta, talvez, a sua fraqueza? Os textos nem sempre foram previamente escritos e nem sempre superam a convicção. Daí, o interesse em comentar este filme, por toda a parte onde é possível.

Bamako não é um filme confidencial, dado que 70 cópias foram tiradas. Oferece uma oportunidade única para sensibilizar um largo público sobre a problemática da dívida, para reconstituir o seu historial, explicar as responsabilidades dos credores desde a origem, etc. mas também deve dar meios de acção aos cidadãos franceses, nomeadamente para interpelar os candidatos às eleições de 2007 sobre a política da França ao seio do FMI e do Banco Mundial.

Tradução livre de: Dette & Développement, “Le procès de la dette, du FMI et de la Banque mondiale”, 2006. Artigo disponível em http://www.dette2000.org/bamako.

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IV.2.3. Tribunal africano para o Banco Mundial Marianne Khalili-Roméo Le Monde Diplomatique Outubro, 2006 Com Bamako, o cineasta Abderrahmane Sissako só pôde obter uma projecção

no último Festival de Cannes. A escolha dos organizadores de apresentarem esta longa-metragem fora de competição levanta ainda mais perguntas, uma vez que nenhuma outra obra africana concorria na selecção oficial. No entanto, Bamako era uma das raras produções a terem êxito em combinar a pertinência do objectivo, a investigação formal e a audácia narrativa.

Sissako aí interpela frontalmente, pelos meios do cinema, as forças iníquas que exploram os povos da África. Com este tribunal oscilando entre a ficção e realidade, situado no Mali de hoje, o cineasta intenta um processo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, de quem as políticas, verdadeiros medicamentos que matam, colocam profundamente o continente negro na miséria. Na barra do tribunal sucedem-se assim advogados de defesa e de acusação africanos e europeus, magnificamente interpretados por profissionais da justiça – entre os quais William Bourdon, da Liga dos Direitos do Homem –, e sucedem-se também os verdadeiros testemunhos dos que sofreram a experiência destes abusos, camponeses ou personalidades da resistência africana.

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Se o cineasta utiliza a parábola para tornar o "impossível verosímil" – de acordo com a sua expressão –, deixa também exprimir-se, por um dispositivo documental, toda a força do real de modo que a cólera da sociedade se faça ouvir.

Com efeito, em redor do tribunal instalado no tribunal de uma casa do bairro popular de Hamdallaye, Sissako articula várias histórias que, em contraponto, alimentam, ilustram e alargam o seu objectivo. Descobre-se assim os habitantes do bairro na sua vida diária (pequeno vendedor das ruas, polícias, cantora, doente com SIDA...). Esta linha narrativa é ao mesmo tempo realista e poética. Ilustra a precariedade devida às políticas que estão a ser julgadas.

Mais inesperada, a televisão, instalada ela também no tribunal, difunde um (falso) western, com um duelo de vaqueiros. Esta imagem na imagem, assumidamente cómica, torna-se de repente a metáfora: "Uma missão dos Bancos Mundiais chega a uma aldeia e elimina as pessoas que estão a mais." Aqui participa o actor americano Danny Glover, co-produtor do filme.

O olhar de um homem munido de uma câmara silenciosa constitui uma espécie de filme no filme. Estas imagens mudas inseridas na história exprimem a importância (embora frágil) para a África de dar uma imagem de si própria, e evidentemente o silêncio expressa o mutismo às quais os seus povos estão condenados.

Habituado aos prémios, Sissako empenhou-se na produção independente, o que lhe permitiu efectuar uma carreira itinerante (Mauritânia, Mali), e de prosseguir, filme após filme, a sua reflexão sobre a África contemporânea. Encontrou o seu estilo desenvolvendo ideias de fundo em cenas simples; ele mostra até que ponto a humanidade, mesmo sujeita ao silêncio, dispõe de recursos miraculosos de humor, de actividade, de imaginação.

Em Heremakono: À espera da felicidade, o seu filme anterior, tecia histórias paralelas – característica do seu cinema – de acordo com personagens cuja existência, de forma não explícita, dependia de políticas europeias cada vez mais empenhadas contra a imigração, servidas pela inércia dos Estados africanos. É contra estes efeitos que Bamako se bate para contribuir para que os Africanos construam o seu próprio futuro. Raro no cinema, Sissako tem a sua modernidade nesta interacção entre o real e o imaginário. Tudo é documentário, tudo é ficção. Filme em que se acredita, porque Sissako tem a experiência que ele filma, Bamako deixa um impressão do nunca visto.

Tradução livre de: Marianne Khalili-Roméo, “Tribunal africain pour la Banque mondiale”, Le Monde Diplomatique, Outubro, 2006. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2006/10/KHALILI_ROMEO/14020.

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