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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
FRONTEIRAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: O QUE É ISSO
COMPANHEIRO?, ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Rogério Silva Pereira (Doutor – UFGD/MS)
RESUMO: O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, é uma narrativa inaugural do Brasil contemporâneo. Escreve-se na tensão entre a vida pública e a vida privada. Seu narrador critica as práticas políticas da esquerda armada do período do regime militar e insere-se no âmbito das práticas políticas definidas pela vida pública. A narrativa constituída aí pode ser analisada à luz dos conceitos de metáfora (H. White e P. Ricoeur), de confissão (Foucault), de romance (Bakhtin) e de tradução (Benjamin). PALAVRAS-CHAVE: Público-privado; Fernando Gabeira; metáfora.
1.
O que é isso companheiro? (OQIC, 1981) é um dos inauguradores do Brasil
contemporâneo pós-regime militar. Nele vemos uma ampla crítica às práticas da esquerda
clandestina do período anterior, o pós-64. Ao mesmo tempo, o livro institui, por si, uma nova
forma de prática política. Vemos em sua narrativa uma cerrada oposição entre velhas práticas
clandestinas e novas práticas públicas. Há claramente uma oposição. De um lado, as práticas da
esquerda clandestina que devem ser reputadas como práticas políticas privadas, por serem
conduzidas a partir da clandestinidade dos aparelhos e das decisões fechadas dos grupos de
guerrilha. Em contraste com essas práticas, de outro lado, as novas práticas políticas que
emanam do texto de OQIC, que devem ser reputadas como práticas essencialmente públicas,
cujas características veremos a seguir. OQIC surge nesse quadro, portanto, como um dos textos
fundadores da vida pública pós-regime militar, tanto quanto deve ser visto como crítica à política
clandestina daquele período – fosse ela de esquerda ou de direita.
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Trata-se, como veremos, de um livro que se escreve numa fronteira precisa, a saber,
aquela que divide as formas privadas das formas públicas de política. Está assim situado
precisamente entre o fim do regime militar e o início da redemocratização; entre aquela esquerda
(a da guerrilha e da clandestinidade) que ganhou força durante o regime militar e um projeto de
“nova esquerda”, da qual o autor até hoje faz parte.
2.
Em OQIC vê-se um narrador romanesco – a despeito do livro dificilmente poder ser
definido como romance (Cf. PELEGRINI, 1996, p. 35). Esse narrador opera fazendo uma ponte
entre esfera privada e esfera pública. Traduz sua vivência privada de militante clandestino para a
incipiente esfera pública brasileira, no período de distensão do regime militar (1978 em diante).
Nesses termos, tal narrador pode ser descrito a partir das categorias propostas por Bakhtin
(2002) ao definir o romance como gênero. Para Bakhtin, o narrador do gênero romance é
tributário daquelas figuras da praça pública que produzem gêneros públicos a partir de temas e
assuntos tomados às esferas privadas. Tal narrador busca sua legitimidade para narrar
justamente por ter participado de uma certa esfera privada com a qual ele acaba rompendo.
Nesse sentido, ele só pode se constituir como narrador romanesco justamente por ter rompido
com os laços de conivência que o uniam àquela referida esfera privada. Nesse caso, o ato de
narrar implica em fundar uma esfera pública que confronta a esfera privada de onde esse
narrador é oriundo, revelando desta os seus segredos e intimidades. O narrador do gênero
romanesco tal como descrito por Bakhtin seria um indiscreto – e este é precisamente o caso do
narrador de OQIC. Gabeira, esse narrador, se dispõe a revela detalhes do mundo em que viveu:
a guerrilha clandestina, os porões da tortura, dentre outros. Assim, ressalvado o fato de OQIC
não ser um romance, podemos pensar seu narrador como um típico narrador romanesco, nesse
sentido estrito proposto acima.
Ao mesmo tempo, OQIC se inscreve deliberadamente dentro dos gêneros
confessionais. Tais gêneros têm um ponto em comum importante, a saber, trata-se de um
discurso feito para modificar aquele que o enuncia – como propõe Foucault (1988). Para este
autor, aquele que enuncia a confissão o faz numa situação de comunicação muito específica,
das quais podemos propor algumas linhas gerais: a) quem enuncia a confissão o faz a um
interlocutor que ocupa uma posição superior; b) o tema da confissão é sempre a própria vida
deste que enuncia a confissão, e, além disso, como dissemos, c) esse enunciador sai modificado
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do ato de confissão. Exemplarmente podemos citar a própria confissão judiciária. Nesta, o sujeito
que confessa o faz perante o Estado, que esse sujeito reconhece como instância superior a si;
ao se confessar, produz um texto cujo conteúdo é frequentemente algo sobre sua própria vida,
frequentemente algo considerado criminoso; e, além disso, depois de confessar, o enunciador se
modifica – sai dali preso, ou livre, ou absolvido ou punido, etc. Novamente: é o caso de Gabeira
e seu OQIC. O livro é a confissão voluntária de seu autor a uma esfera de poder superior, a vida
pública brasileira; confissão cujo conteúdo está permeado por uma profunda revisão de suas
práticas como político de esquerda clandestina e guerrilheira que foi; confissão, que enfim,
acaba por transformá-lo aos olhos daquele que recebe sua confissão: de guerrilheiro clandestino
de uma esquerda de matriz leninista, a um crítico de primeira ordem no Brasil desses tipo de
prática política – é claro, dentre tantas outras transformações.
O subtítulo ambíguo do livro – “depoimento” – dá a medida do quanto o autor tem
consciência de que faz uma confissão. Esse subtítulo se vale dos vários sentidos do termo. De
fato, o depoimento, dizem os dicionários, é o “ato de depor”. Refere-se ao ato de confessar algo
que o depoente fez ou que presenciou a uma autoridade qualquer juridicamente investida. Mas
refere-se também ao ato de confessar sob tortura – a que Gabeira foi extensivamente submetido
de modo clandestino pelo regime militar pós-64. Os dois sentidos, muito próximos um do outro,
colocam o conteúdo de OQIC sob a lógica dos referidos gêneros confessionais.
Nesses termos, esses dois aspectos – o romanesco e o confessional – nos permitem
pensar OQIC como texto essencialmente público. Texto voltado para o reconhecimento de uma
esfera pública de ação com a qual o narrador estaria dialogando. Texto que contribui para fundar
um espaço-tempo público, o pós-ditadura. Texto que rompe com uma forma não-pública de fazer
política – a guerrilha e a clandestinidade. Texto, enfim, que traduz uma vivência particular em
uma linguagem que ultrapassa sua esfera linguístico-cultural original, que era a esfera da política
clandestina. Nesse quadro, há uma marcada diferença entre o narrador (o sujeito da narrativa) e
o personagem (o sujeito da ação narrada). Há uma considerável diferença entre o tempo dos
fatos narrados (os fatos se passam entre 64 e 72) e o tempo em que aquilo é narrado (1978-79).
E, além disso, há um enorme esforço em traduzir as práticas políticas de uma esfera fechada
para uma linguagem universalizante, numa palavra: uma linguagem pública.
OQIC é tradução, como sugerimos acima. Traduz de uma esfera linguística (a
clandestinidade) para outra (a vida da política pública); traduz de um tempo (o regime militar)
para outro (o tempo da abertura política); de um espaço (o privado) para outro (o público). O
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sentido comum de tradução está aqui em jogo. Esquematicamente, poderíamos dizer que se
trata de tomar uma termo ou expressão desconhecidos e trocá-lo por um correspondente mais
conhecido. De certa forma, é isso que o narrador faz. Mas é preciso acrescentar que essa
tradução que OQIC promove é também uma “tradução histórica”.
Tal tradução, com efeito, se apropria dos fatos de vivência do narrador para lhes dar
uma configuração que é parcial e que é conveniente para o presente. Nesses termos, o conceito
de tradução, proposto por Plaza (2001), e escorado no W. Benjamin que escreve as “Teses
Sobre a História”, parece muito útil. Traduzir, nesse caso, significa “apropriação” do passado
pelo presente. Explicita-se, então, em OQIC um narrador que também é historiador. Gabeira
assim busca no passado (1964-1972) os fatos que lhe são convenientes no seu presente de
homem público (1978-79).
3.
O texto de OQIC é majoritariamente narrativo, sabemos. Isto é, sua forma de organizar
a realidade se dá através da representação da ação de personagens. Coloca esses personagens
em certos cenários e organiza a realidade representando suas ações. Em termos benjaminianos,
tal texto pode mesmo ser definido como a vivência de seu autor transformada em narração (Cf.
PELEGRINI, 1996, p. 40 e ss). Sabemos que Gabeira, tendo vivido diretamente o contexto da
clandestinidade política, narra esse contexto alguns anos após o acontecido. Isso, cremos, é
ponto pacífico.
Porém, há no texto significativos trechos em que o esforço de organizar a realidade
deixa de ser narrativo e passa a ser conceitual. Em outras palavras: ao invés de organizar ações
humanas no tempo, o texto passa a tentar definir esse ou aquele fato, esse ou aquele fenômeno.
E aqui a palavra “definir” deve ser pensada em seu sentido forte de conceituar.
Conceituar, sabemos, é classificar. Situar algo em um conjunto pré-ordenado em que
esse algo recebe uma essência. Assim, quando dizemos que “Sócrates é mortal”, estamos
situando Sócrates dentro da ordem de seres que incluem desde as árvores, os animais e
também o ser humano (e, diga-se, estamos excluindo-o da ordem de seres como os deuses que
são presumivelmente imortais). OQIC opera assim com muita frequência. Toma certos
fenômenos da vivência do autor e propõe uma classificação para eles que os retira de uma
organização específica e pouco conhecida e os insere numa classificação, presumivelmente,
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mais ampla e conhecida. Tomemos um exemplo: “O DOPS no centro do Rio de Janeiro parecia
um piquenique dominical comparado à PE (grifo nosso, p. 175)”.
O exemplo, dentre vários que se pode extrair do texto, ilustra a questão. Nele, o
narrador se põe a conceituar. Para definir o DOPS, uma divisão da polícia, diz que ele se parece
com um piquenique dominical. O verbo de ligação sublinhado, “parecia”, é a marca linguística
que situa a frase no campo dos enunciados cuja finalidade é a de conceituar determinada coisa.
A conceituação acaba por classificar o DOPS, inscrevendo-o dentre os fenômenos semelhantes
ao piquenique dominical. Nos deteremos em outros enunciados semelhantes, mais à frente.
Nesse ponto, o texto de OQIC parece se esforçar para responder à pergunta original
feita no título do livro: “O que é isso, companheiro?”. O título pergunta “O que é isso?” E o texto,
cremos, responde: “Isso é X”. Esquematicamente podemos dizer que uma pergunta conceitual é
respondida com resposta conceitual. E o verbo de ligação “é” será o instrumento usado. Nesses
termos, a pergunta do título, com efeito, parece exigir menos uma narrativa do que uma
conceituação. O verbo de ligação (“é”) presente na pergunta dá a medida da resposta que exige:
ele parece querer uma resposta conceitual. Sabemos que o produto expresso no texto é uma
resposta narrativa. De fato, o texto de OQIC é predominantemente narrativo, ele conta a história
do personagem narrador dentre outras, etc. Com efeito, um texto que conta história deveria estar
respondendo a uma pergunta do tipo “O que aconteceu, companheiro?”. Que exigiria uma
resposta a qual organizaria os fatos relativos à vida do narrador segundo a representação de
ações humanas. Não é o que acontece como se vê.
Cremos que ao escolher seu título Gabeira parece abordar sua vivência sem querer
classificá-la de antemão. Prefere chamá-la de “isso”. Poderia, por exemplo, dar-lhe o nome de
“clandestinidade” – perguntando-se, por exemplo: “O que foi a clandestinidade?”. Essas escolhas
apontam para um texto, OQIC, que quer se situar dentro do conceitual – ao menos em parte.
Um outro aspecto que chama a nossa atenção: esse “companheiro” a quem o narrador
dirige essa pergunta conceitual. Essa palavra, esse vocativo, “companheiro”, evoca todo um
contexto; uma verdadeira esfera com seu jargão e sua linguagem – trata-se da esfera mesma da
militância clandestina de esquerda, com seus partidos, seus códigos de comportamento e suas
linguagens. Termo-chave dessa esfera, o vocativo “companheiro” parece ser o iniciador de um
diálogo entre militantes clandestinos de esquerda. Parece mesmo que ao leitor de OQIC verá
exibido algo que se dá corriqueiramente naquela esfera fechada de comunicação, comum aos
“aparelhos” clandestinos, às reuniões partidárias, etc. O livro aqui se equilibra entre aquilo que é
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fechado, privado e restrito e aquilo que é exibido, público e não-exclusivo. O título assim é
francamente irônico. Propõe em seu título um interlocutor de uma esfera fechada, o velho
“companheiro”, mas estrutura-se como discurso público, feito para uma esfera notoriamente
aberta, para um companheiro público, o leitor de literatura – como veremos.
Na verdade a pergunta “O que é isso, companheiro?” que é o ponto de partida para
entender uma vivência pessoal é falsamente endereçada a uma esfera privada. É uma pergunta
falsamente endereçada ao interior da vida clandestina – ao contrário, ela é uma pergunta
endereçada ao próprio mundo público que naquele momento estava se reordenando. Aqui temos
que falar em ironia. Esse vocativo, “companheiro”, invoca não só o velho companheiro de vida
clandestina. Ao enunciá-la no título, Gabeira também está invocando a presença de um outro
“companheiro”, que é o seu leitor de classe média que vai comprar seu livro, a quem Gabeira se
propõe a revelar o que se passava no mundo da clandestinidade.
A ironia aqui é muito significativa. O livro poderia ser um análogo daquelas reuniões de
avaliação de qualquer daquelas “organizações” do tempo da luta clandestina contra o regime.
Momentos em que se planejavam ações, em que se criticava e se fazia a auto-crítica, em que se
cimentava a lealdade interna do grupo e a adesão dos militantes, em que o modo de vida
“pequeno-burguês” era criticado no intento de se construir um modo de vida revolucionário (Cf.
ALMEIDA E WEIS, 1998, p. 384-385). De fato, como já se assinalou, em OQIC Gabeira faz,
dentre outras coisa, um balanço dos erros e acertos das lutas de esquerda daquele período.
Porém, esse balanço não se dá no interior do aparelho, nem sequer no momento da auto-crítica
interna. Ao contrário, o balanço é público, feito para o público consumidor de literatura. O livro é
francamente indiscreto – feito por alguém que esteve dentro da luta clandestina. Assim,
ironicamente, o autor parece endereçar a mensagem a dois interlocutores. Um deles um
companheiro militante – como se tivesse conversando com ele no interior do aparelho e no
contexto da clandestinidade. E o outro: aquele leitor de classe média que irá comprar seu livro –
de quem Gabeira não isenta de chamar também de “companheiro”.
Exemplar dessa irônica ambiguidade é a conversa que trava com um certo Antônio
Duarte que estava encarregado de trazer umas armas com que Gabeira e outros iriam combater
o golpe de 64. Escreve ele na Parte II do livro, capítulo cujo interlocutor explícito é esse
companheiro, Antônio Duarte: “Você soube do golpe, Antônio, e partiu para o Correio e
telégrafos, junto com o Capitani”; ou: “Mas o que te grilava, Antônio, talvez nem fosse isso” (p.
17).
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As perguntas, feitas a Antônio são só parcialmente endereçadas a ele. Feitas a ele
dentro da narrativa, elas parecem reverberar para além de uma conversa entre militantes – elas
alcançam a esfera pública que vai além do aparelho e do mundo da luta clandestina. Como se a
reunião de avaliação e o balanço de auto-crítica não fossem mais travados no interior do
aparelho clandestino, e à meia voz – é como se ela estivesse sendo conduzida em praça pública
e em voz alta.
4.
A noção de vida pública oposta à de vida privada permeia toda a obra. Podemos
descrevê-la com alguma precisão ao examinarmos uma das funções do texto de Gabeira já
proposta por nós. A noção de que o narrador desse texto cumpre a função de um narrador
romanesco, como descrito por Bakhtin – isto é, aquele que traduz vivências privadas para uma
esfera pública. Identificar esse narrador como sendo romanesco é, nesses termos, identificar o
seu interlocutor, seu leitor, também como sendo um interlocutor tipicamente romanesco.
De fato, Gabeira, em OQIC, conversa com um leitor de classe média, que compra
livros e que lutou, muitas vezes, contra o regime militar em maior ou menor grau. Algumas vezes
como militante, clandestinamente – mas, na maioria das vezes, como cidadão comum insatisfeito
com aquele regime. Esse leitor está com frequência presente no texto de OQIC, de fato, ele é
seu leitor-modelo (Cf. ECO, 1986). Está presente, sobretudo, nos esforços de conceituação
empreendidos pelo narrador ao longo do livro.
Por hora, vamos suspender temporariamente a investigação que busca esse leitor-
modelo e investigar algumas metáforas usadas em OQIC cuja função é tradutória. A partir deles,
poderemos retornar melhor à busca do leitor-modelo de OQIC.
Mais acima citamos os esforços de tradução promovidos pelo narrador, naquela
comparação do DOPS a um piquenique. Abaixo citamos mais alguns:
Mesmo o inspetor Mário Borges, que tanto temíamos durante as manifestações de 68 não era mais perigoso naquele momento do que a diretora do Grupo Escolar Duarte de Abreu em Juiz de Fora (p. 175).
A vida na geladeira [a clandestinidade mais radical] me lembrava a infância quando nos prendiam no quarto com uma daquelas doenças inevitáveis: sarampo, caxumba, catapora (p.139).
Sair do movimento de massas para um grupo armado era como sair da província para a metrópole, ascender de um time da terceira divisão para o Campeonato Nacional (p. 86).
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Luta interna, quando feita longe do movimento social, acaba sempre dando em cisão. E as cisões, vistas de fora, parecem muito com as brigas de casal: aquele constrangimento em discutir a divisão dos bens, aquele não conseguir sentar-se na mesma mesa durante os primeiros meses de separação, aquela expectativa de que os amigos se definam por um ou pelo outro (p. 29).
Os verbos de ligação nos trechos grifados são eloquentes. Note-se ali o esforço
conceitual de que falamos. O narrador se esforça em traduzir aspectos específicos da vida de
oposição ao regime (guerrilha, clandestinidade, a repressão) em estruturas mais amplas e
conhecidas. Uma operação conceitual simples: toma-se um termo específico e insere-se esse
termo num universo mais amplo. Que pode ser traduzido no seguinte esquema: X + VL + Y.
Onde “VL” é um verbo de ligação; “X” é um fenômeno da esfera de oposição ao regime militar e
“Y” é a tradução desse fenômeno para uma outra esfera. Assim, “X” diz respeito ao mundo
privado do narrador e “Y” diz respeito a um presumível mundo público com quem o narrador quer
se comunicar. E, entre “X” e “Y”, o verbo de ligação (“VL”) com funções de conceituação.
Porém não se trata de uma conceituação regida pelas leis da lógica formal, como se
vê. O que ocorre, contrasta vivamente com esses procedimentos. Como se pode ver, a operação
é menos conceitual do que metafórica. E aqui, o conceito de metáfora de Ricoeur e H. White
podem nos auxiliar.
Esses dois autores pensam a metáfora (os tropos em geral) como estando em diálogo
com a conceituação. Ou na fórmula de Ricoeur que usa, por sua vez, Heidegger: “O metafórico
só existe no interior da metafísica” (RICOEUR, 1983, p. 387). A metáfora, nesses termos, deve
ser pensada como estando em diálogo com aqueles procedimentos lógicos tais como o
silogismo e a conceituação, cuja matriz remonta a Aristóteles. Hayden White usa o termo
“metalógica” (WHITE, 1994, p. 23) para pensar a metáfora e os tropos afins. Anteriores ou
posteriores à lógica formal: essa seria a condição desses tropos, a se pensar com White.
A metáfora operando como um meta-conceito seria, pois, a operação por excelência da
tradução em OQIC. Tomando um existente qualquer, ela o inseriria em universos previamente
categorizados. O que temos em OQIC é exatamente isso: uma realidade, a luta clandestina, que
precisa ser descrita em outros termos, para a esfera pública brasileira pós-regime. Ao comparar
um conhecido agente repressor a uma diretora de escola da infância; ao comparar a guerrilha
urbana a um campeonato de futebol; ao comparar as cisões nos movimentos de esquerda a
brigas nos casamentos; ao comparar a geladeira, a clandestinidade, a uma típica doença infantil,
etc., o narrador está propondo metáforas. E está propondo traduções.
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E aqui retornamos à busca do leitor-modelo de OQIC. Entre quais interlocutores se dá
essa tradução? Basicamente, entre um enunciador oriundo da esfera privada da luta clandestina
e dos porões da tortura (o narrador) e um leitor de classe média que lê e compra livros. Daí o
esforço de traduzir toda a vida clandestina num universo francamente reconhecível que é o
universo da vida de classe média brasileira. O interlocutor desse narrador, seu leitor-modelo, é
um homem de classe média com sua vida de brigas no casamento, geladeira, diretora autoritária
da escola infantil, futebol aos domingos, da doença infantil, etc.
Daí que é preciso dizer: não estamos falando de metáforas isentas. E, ao mesmo
tempo, não se trata da história simplesmente, mas de uma tradução da história. Nessas
metáforas, podemos ver a concepção de vida pública proposta pelo narrador. Se a esfera aqui
descrita é o da vida clandestina, a esfera a que se destina essa descrição é a vida de classe
média urbana brasileira dos idos dos anos 70. O campeonato de futebol, o casamento em crise,
etc., são fatos simples da vida de classe média. Eis a operação tradutória: trocar a vida da
militância clandestina em categorias do cotidiano de classe média urbana brasileira. E o uso da
palavra “geladeira” para designar a vida de semi-prisão que é a clandestinidade dá a medida da
operação. O que temos aqui é um importante item de consumo de classe média, que como o
automóvel ou a televisão, estava nas fantasias de consumo de qualquer família daquele período.
5.
Não estamos falando aqui de metáforas (ou conceitos) encontrados aqui e ali dentro de
OQIC. Estamos falando da própria estrutura do livro. Nesses termos, o que ressalta aqui é uma
concepção de vida pública brasileira como sendo permeada por aqueles valores tipicamente de
classe média a que os militantes de esquerda criticavam e aspiravam apagar. Vida pública, para
esse narrador, é a vida do mundo de classe média. Nesse ponto, Fernando Gabeira vai contra o
ódio à classe média que vemos em livros como Feliz ano novo (de Rubem Fonseca) e Não verás
país nenhum (de Ignácio Loyola Brandão). Em ambos há textos profundamente críticos à
ideologia e ao estilo de vida da classe média do regime militar. Gabeira parece acatar
positivamente a ideologia de classe média e seu correspondente estilo ao eleger suas metáforas.
E o faz num contexto de declínio da ideologia de classe média como ideologia dominante.
Porém, faz mais que isso. Esse processo de conceituação metafórica a que aludimos
acaba por retirar a luta das esquerdas do registro heroico e colocá-la dentro de um registro
cotidiano. A metáfora nesse sentido critica o caráter épico que os jornais davam aos guerrilheiros
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urbanos, figurando-os em imagens tais como “jovens com nervos de aço”, ou “louras que tiravam
suas metralhadoras de suas capas coloridas”, ou ainda: “Há dez anos atrás, fazendo assalto [...]
dormindo com a loura que interceptou o carro da rádio patrulha com uma rajada de
metralhadora” (OQIC, p. 86-87). É contra esse registro que o texto de Gabeira se escreve. Daí
possivelmente a impressão deixada pelo texto de que ele seja um relato objetivo – com algum
grau de frieza, até. Além disso, ao situar a vida da luta clandestina de esquerda entre as práticas
da vida de classe média, o narrador usa com recorrência metáforas que infantilizam aquela luta.
Por exemplo:
E as armas, Antônio? As armas que você traria pra nós, Antônio Duarte, da Associação dos Marinheiros? Quantas vezes não perguntei isto durante as partidas de xadrez do exílio. E quantas vezes você não me repetiu essa história, sempre com sabor daquele conto da infância. Alguém foi à festa, vinha trazendo um docinho para nós, vinha passando por uma ponte e pluft, caiu o docinho no rio. Pena (p.13).
Nesse trecho, as armas que serviriam para a rebelião contra o golpe de 64 são
francamente tratadas como docinhos que iriam ser levados pra crianças. Sem fugir ao campo da
vida de classe média, privada, do lar, e das preocupações da vida familiar, o narrador acaba
fazendo um julgamento da luta. As tentativas de luta armada foram, assim, algo semelhante a
uma reivindicação infantil.
Aqui Gabeira formaliza na própria retórica de seu texto o julgamento que faz durante
todo o livro enfatizando o despreparo daqueles que empreendiam a luta contra o regime. Se
inscreve dentro de uma longa tradição que acusa de infantil o chamado “esquerdismo” (Cf.
LENIN,1981, e o seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo). É um discurso antigo:
desqualificar os atos das crianças e dos adolescentes como gestos infantis em si. Um discurso
que, ao infantilizar as formas de radicalismo armado, acaba se impondo como forma madura e
verdadeiramente legítima de ação. A recorrente metáfora evolucionista que traduz história
coletiva e vida individual está aqui presente (Cf. WHITE, 1994, 13 e ss). Trata-se de pensar a
história como um processo evolutivo que se assemelha à vida do indivíduo. O método de
Gabeira está aqui expresso.
Como confissão seu texto age em duas frentes. 1) Critica e rejeita as práticas políticas
privadas da esquerda clandestina e 2) elege para si a nova esfera pública brasileira do pós-
regime militar como espaço político por excelência.
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Como texto que se vale do gênero romanesco, OQIC age na fronteira entre esfera
pública e esfera privada. Ao mesmo tempo em que ajuda a fundar a primeira, renega a segunda.
E isso está expresso na escolha das metáforas em seu texto.
Como texto retórico, OQIC elege a vida comum da classe média brasileira como
espaço e valores em que se deve construir a esfera pública brasileira pós-regime. Ao descrever
a política clandestina como vida privada, OQIC vai além: acaba por traduzir essa vida em
categorias do mundo de classe média brasileira. E o faz por vários motivos, dentre eles, por visar
um interlocutor comprador e leitor de livros que é o seu público restrito. Ao operar essa tradução,
OQIC acaba por evidenciar sua concepção de vida pública que seria uma vida cujos valores são
em grande parte buscados nos valores da referida classe média.
Referências bibliográficas
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