Fronteiras Em Movimento Prof.geder

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FRONTEIRAS EM MOVIMENTO Fábio Régio Bento (org.)

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  • FRONTEIRAS EMMOVIMENTO

    Fbio Rgio Bento (org.)

  • 2011 Fbio Rgio BentoDireitos desta edio adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra

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    B4465 Bento, Fbio Rgio Fronteiras em Movimento/Fbio Rgio Bento. Jundia, Paco Editorial: 2011.

    204 p. Inclui bibliografia. Inclui tabelas. Vrios Autores.

    ISBN: 978-85-8148-020-6

    1. 2. 3. 4. 5. I. Bento, Fbio Rgio.

    CDD:

    IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

    Foi feito Depsito Legal

    ndices para catlogo sistemtico:

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    Rua 23 de Maio, 550Vianelo - Jundia-SP - 13207-070

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  • Sumrio

    Introduo.....................................................................................................9

    Captulo I: Fronteiras, significado e valor A partir do estudo da experincia das cidades-gmeas de Rivera e Santana do Livramento Fbio Rgio Bento...............................131.Fronteiras Significado e valor..................................................................131.1 Um mundo sem fronteiras?.................................................................151.2 Fronteira filtro.........................................................................................172. Caractersticas da experincia da integrao de fato entre as cidades-gmeas de Rivera e Santana do Livramento........................202.1 Uma fronteira peculiar Rivera e Santana do Livramento......................202.2 Integrao com diferenciao.................................................................23Referncias....................................................................................................26

    Captulo II: Era uma vez na fronteira: o mito da zona fora da lei? Renatho Costa..............................................311. Bem vindo fronteira................................................................................322. O que devo fazer, Xerife?..........................................................................363. Um convidado incmodo..........................................................................384. Vamos ao duelo.........................................................................................41Referncias...................................................................................................42

    Captulo III: Cidadania fronteiria: das concepes modernas cidadania constituda na fronteira entre Brasile Uruguai Daniela Vanila Nakalski Benetti e Ncia Pereira de Araujo.........451. Introduo................................................................................................452.Concepes da cidadania moderna............................................................463.As diferentes cidadanias no Mercosul.........................................................484. Peculiaridades da cidadania na fronteira entre Brasil e Uruguai................525. Consideraes finais..................................................................................56Referncias...................................................................................................57

    Captulo IV: Polticas pblicas de sade na fronteira Brasil-Uruguai Gleicy Denise Vasques Moreira Santos e Rodrigo Alexandre Benetti............591.Introduo................................................................................................59

  • 2.O contexto histrico das polticas pblicas em matria de sade na Amrica do Sul.......................................................603. A geografia poltico-econmica do territrio de fronteira entre o Brasil e o Uruguai..........................................................624. A problemtica das polticas pblicas em matria de sade no territrio de fronteira....................................................664.1 O Sistema Integrado de Sade das fronteiras (SIS-Fronteiras) e um diagnstico no mbito da fronteira Brasil-Uruguai...............................675. A prestao de servios de sade no mbito do acordo para permisso de residncia, estudo e trabalho a nacionais fronteirios, brasileiros e uruguaios...............................726.Consideraes finais..................................................................................75Referncias...................................................................................................76

    Captulo V: Identidade e integrao na fronteira: um estudo sobre a comunidade rabe-palestina dos municpios de Santana do Livramento e Rivera Anna Carletti e Ricardo Lopes Kotz.......................791. Introduo................................................................................................792. Breve anlise histrica da imigrao rabe no Brasil..................................803. Fatores de integrao das comunidades rabes..........................................824. A comunidade rabe em Santana do Livramento e Rivera: consideraes sobre integrao e identidade.....................................845. Consideraes finais..................................................................................87Referncias...................................................................................................88

    Captulo VI: Jornais de fronteira e suas retricas bilngues no Rio Grande do Sul: mdia impressa a servio do leitor Geder Parzianello.........911. Introduo................................................................................................912. A Pesquisa.................................................................................................933. Os jornais de fronteira...............................................................................964. Novos desdobramentos tericos..............................................................100Referncias.................................................................................................101

    Captulo VII: A nao nas fronteiras longnquas: o sentimento nacional dos pampas ao lavrado Victor Hugo Veppo Burgardt...................1031. Introduo..............................................................................................1032. Nao: um conceito complexo................................................................1043. Imagens e smbolos: as falas da nao.....................................................1134.Consideraes finais................................................................................118

  • Referncias.................................................................................................120

    Captulo VIII: Territrio de fronteira, desenvolvimento e ambiente: o projeto URB-AL Pampa Ana Monteiro Costa e Guilherme FW Radomsky.....1231. Introduo..............................................................................................1232. Desenvolvimento sustentvel: a questo ambiental entre o global e o territorial.........................................................1243. A fronteira e a questo territorial..............................................................1284. O projeto URB-AL Pampa.......................................................................1305. Consideraes finais................................................................................134Referncias.................................................................................................134

    Captulo IX: Limites e fronteiras na frica: identidades, histrias e poltica internacional Kamilla Raquel Rizzi e Rafael Balardin................1371.Introduo..............................................................................................1372.Fronteiras em perspectiva........................................................................1403.Das fronteiras da frica pr-colonial aos limites impostos pelo Imperialismo.......................................................1434.Estado-Nao na frica: identidade e instabilidade em questo (1950-1980).....................................................1465.Consideraes finais: uma nova frica no sculo XXI?............................152Referncias.................................................................................................156

    Captulo X: Fronteiras do heartland clssico e percepes de segurana: governana interestatal cooperativa na sia Central Flvio Augusto Lira Nascimento...................1591.Introduo..............................................................................................1592.Fronteiras geopolticas: da formao europeia cooptao centro-asitica...........................................................1603.Conquista e legitimidade na formao da governana local no sculo XX..............................................................1644. Organizaes regionais de defesa e comunho de interesses: a proteo transfronteiria contra elementos internos e externos................1685.Consideraes finais................................................................................171Referncias.................................................................................................172

    Captulo XI: Fronteiras entre as religies Relaes internacionais e religies, e o caso especfico do Movimento dos Focolares como movimento de fronteiras Anna Carletti e Fbio Rgio Bento.....................175

  • 1.Fronteiras entre as religies......................................................................1751.1 Localismo e internacionalismo..............................................................1751.2 Religies e Relaes Internacionais.......................................................1782.Um movimento de fronteiras os Focolares como sujeito internacional.....1802.1 Introduo............................................................................................1802.2 Reciprocidade agpica como paradigma do MF....................................1832.3 Estatstica geral do MF.........................................................................1852.4 Cidadelas do amor mundi.....................................................................1882.5 Reconhecimentos pblicos....................................................................1912.6 Hipteses sobre os motivos da difuso do MF.......................................194Referncias.................................................................................................197

  • Lista de Figuras

    TELA AMAzNIA ....................................................................................114

    FRONTEIRA BRASIL-URUGUAI.............................................................115

    FRONTEIRA BRASIL-VENEzUELA .......................................................116

    REA ESSENCIAL E CRESCENTES DE MACKiNDeR..........................163

  • 9INTRODUO

    Fronteiras em Movimento a primeira publicao coletiva do grupo de pes-quisa (CNPq) Integrao e Conflitos em Regies de Fronteira, formado h pouco mais de um ano por professores doutores, doutorandos e mestres da Universidade Federal do Pampa, que lecionam, sobretudo, no curso de Rela-es Internacionais, situado no campus de Santana do Livramento, fronteira urbana, binacional do Brasil com o Uruguai, ponto de observao e cognio privilegiado para o estudo comparado de questes fronteirias.

    No livro Fronteiras em Movimento, o leitor encontrar captulos sobre fron-teiras locais, nacionais e internacionais, com abordagens diferentes sobre o fato social fronteiras, prximas e distantes, fsicas e culturais, analisadas do ponto de vista histrico, poltico, econmico, sociolgico e jurdico.

    No captulo primeiro, Fbio Rgio Bento, doutor em cincias sociais pela Pontifcia Universidade San Tommaso, de Roma, identifica algumas possibili-dades de conceituao da experincia de fronteira pela anlise da bibliografia sobre o tema e, sobretudo, pelo estudo da experincia da integrao de fato entre as cidades-gmeas binacionais de Rivera e Santana do Livramento.

    Em Era uma vez na fronteira: o mito da zona fora da lei?, o pesquisador Renatho Costa, graduado em Relaes Internacionais pela FASM-SP, mestre e doutorando em Histria Social pela FFLCH-USP, percorre o significado da palavra fronteira pela anlise da influncia conceitual que herdamos tambm do cinema estadunidense.

    No captulo terceiro, as pesquisadoras Daniela Vanila Nakalski Benetti, ps--doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Ncia Pereira de Araujo, economista pela Universidade Federal de Uberlndia, mestre em Desenvolvi-mento Econmico pela Universidade Federal do Paran, analisam a concepo tpica de cidadania que emerge no mbito da fronteira entre Brasil e Uruguai, como desfecho da anlise das concepes modernas de cidadania e da concep-o de cidadania no mbito da experincia do Mercosul.

    A anlise histrico-jurdica das polticas pblicas de sade na fronteira Bra-sil-Uruguai foi objeto de investigao dos pesquisadores Gleicy Denise Vasques Moreira Santos, graduada em Direito pela Universidade Catlica Dom Bosco, em Economia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, mestre em Agronegcios pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e Rodrigo

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    Alexandre Benetti, graduado em Direito pela UNIJU, mestre em Integrao Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria.

    No quinto captulo, a pesquisadora italiana radicada no Brasil, Anna Car-letti, ps-doutora em Cincia Poltica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Histria pela mesma universidade, professora colaboradora junto ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Estratgicos Internacionais da UFRGS, e o acadmico de Relaes Internacionais da Unipampa, Ricardo Lopes Kotz, estudam a comunidade rabe-palestina dos municpios de Santana do Livramento e Rivera, do ponto de vista de sua identidade e integrao nesta fronteira. Tal artigo foi elaborado no mbito das atividades do programa de ex-tenso e pesquisa do campus de Santana do Livramento da Unipampa intitulado Semana da Cultura rabe, cuja primeira edio ocorreu em outubro de 2010.

    No captulo sexto, contamos com a colaborao de um professor de outro campus de nossa universidade, na cidade de So Borja. Nele, Geder Parzianello, mestre em Comunicao e Informao pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul, doutor em Comunicao Social pelo Programa de Ps-graduao em Comunicao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, analisa jornais de fronteira e suas retricas bilngues no Rio Grande do Sul.

    A nao nas fronteiras longnquas: o sentimento nacional dos pampas ao la-vrado, captulo stimo, foi o objeto de investigao do historiador Victor Hugo Veppo Burgardt, doutor em Histria pela Universidade de Braslia, pesquisador que lanou recentemente com a Editora Paco o livro embates polticos na fron-teira setentrional do Brasil (2011).

    No captulo oitavo, Ana Monteiro Costa, doutora em Economia do De-senvolvimento pela UFRGS, e Guilherme Radomsky, doutor em Antropologia Social pela UFRGS analisam as relaes entre territrio de fronteira, desen-volvimento e ambiente, com referncia especfica ao projeto URB-AL Pampa.

    Limites e fronteiras na frica: identidades, histria e poltica internacional foi o tema analisado pelos pesquisadores Kamilla Rizzi, doutoranda em Cincia Poltica pela UFRGS, mestre em Relaes Internacionais e licenciada em Histria pela mes-ma universidade, pesquisadora associada do Ncleo de Estratgia e Relaes Inter-nacionais (NERINT), da UFRGS, e Rafael Balardin, mestre em Relaes Interna-cionais pela UFRGS, licenciado e bacharel em Histria pela mesma universidade.

    Fronteiras do heartland clssico e percepes de segurana: governana interestatal cooperativa na sia Central o tema do dcimo captulo, do pesqui-sador Flvio Augusto Lira Nascimento, doutorando em Relaes Internacio-nais pela Universidade de So Paulo, mestre em Relaes Internacionais pelo Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP/Unesp/Unicamp), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segu-rana Internacional (GEDES).

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    No captulo final deste livro, os pesquisadores Anna Carletti e Fbio Rgio Bento analisam o tema das fronteiras entre as religies, a partir da experincia especfica do movimento dos Focolares, interpretado pelos autores como um movimento internacional de fronteiras culturais.

    Santana do Livramento, 31 de agosto de 2011.

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    Captulo I

    Fronteiras, significado e valor - A partir do estudo da experincia das cidades-gmeas de Rivera e Santana do Livramento.

    Fbio Rgio Bento1

    Iniciaremos esta obra revolvendo o nosso universo conceitual e axiolgico sobre o fato fronteira, a partir do estudo da experincia peculiar da fronteira f-sica, conurbada, binacional entre as cidades-gmeas de Santana do Livramento e Rivera. Quando pensamos em fronteiras, provavelmente recordamos experi-ncias de conflitos. Neste captulo, estudaremos uma experincia diferente de fronteira fsica, caracterizada pela integrao como exerccio de diferenciao.

    1.Fronteiras Significado e valor

    As palavras no so neutras, mas carregadas de valor. E no me refiro so-mente aos adjetivos, mas, tambm, a alguns substantivos. H substantivos que se tornam adjetivos. Burgus, por exemplo, no somente o profissional do burgo, o comerciante, mas, segundo determinados juzos de valor, o explorador da classe operria, ou o esnobe. Preguia, outro exemplo, pode ser o bicho, ou o vcio, pecado capital. Alis, h mudanas de valor na palavra preguia. Hoje, ao recomendar a seus pacientes que trabalhem menos, um cardiologista recomen-da como remdio (valor) certa dose de preguia curativa. As palavras mudam de significado e valor ao longo dos anos (tempo), e em determinados lugares (espao). A partir de certas interpretaes axiolgicas sobre o pensamento de Maquiavel, sobrenome de Nicolau, pensador italiano, passa-se a usar maquia-velismo como sinnimo de malvadez. Depois, ao ser estudado pelo que foi, um

    1Fbio Rgio Bento professor adjunto de Sociologia na Unipampa, Universidade Fe-deral do Pampa. Reside em Santana do Livramento (Brasil, RS), cidade-gmea com Rivera (Uruguai), onde leciona Sociologia das Relaes Fronteirias do Brasil no curso de Relaes Internacionais da Unipampa. Membro do grupo de pesquisa sobre Inte-grao e Conflitos em Regies de Fronteira. Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia Universidade San Tommaso (Roma, 1996).

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    pensador do mal, e no pelo que no foi, um professor do mal (MARQUES, 2006, p. 41), passa-se a usar a expresso pensamento maquiaveliano, para di-ferenciar Maquiavel de maquiavlico. O mesmo ocorre com a palavra fronteira.

    Para o exilado poltico, passar a fronteira significa libertao. Para o contra-bandista, fronteira significa aflio. A palavra fronteira no uma palavra neu-tra. Ela suscita sentimentos e valores diferentes. Mas ela , tambm, uma palavra descritiva, designa o lugar do incio ou do fim: incio de um Estado, ou fim de outro Estado. Numa linha visvel ou imaginria de fronteira, um Estado termina e outro comea. Fronteira o fim do mundo para quem deixa o seu Estado de pertena; ou o incio do mundo, para quem volta ao seu Estado de pertena.

    Fronteira fato social, no sentido empregado por Durkheim em As Regras do Mtodo Sociolgico (1895). Fronteira uma coisa criada (feita) pelos seres humanos. Coisa social, exterior, que se impe (coercitiva) a dada coletividade. Mesmo sendo reais, nem sempre as fronteiras so visveis. Alm de fronteiras fsicas, sedentrias, como as fronteiras geogrficas entre os Estados, fronteira stricto sensu, podemos pensar, tambm, em fronteiras lato sensu, fronteiras n-mades, espaos de encontro entre sujeitos diferentes no miolo dos Estados, e no somente nas suas bordas fsicas. Fronteiras culturais, tambm reais. Quan-do dois grupos culturais diferentes se encontram no miolo do Estado, tal en-contro h um qu de encontro de fronteira (cultural), mesmo no ocorrendo nas bordas fsicas do Estado.

    Fronteiras fsicas e culturais so fronteiras em movimento, podem ser mo-dificadas, possuem um prazo maior ou menor de validade.

    As fronteiras fsicas so orientadas pela lei, e controladas pela polcia de fronteira (para pessoas) e funcionrios da aduana (para as mercadorias trans-portadas pelas pessoas). Mas h situaes peculiares, como a fronteira conur-bada binacional entre as cidades-gmeas de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai), onde existe polcia e aduana, mas onde o controle das rela-es de fronteira , sobretudo, controle social, exercitado pela populao inte-grada dos dois pases, das duas cidades-gmeas que formam, geograficamente, uma nica cidade, mesmo se administrativamente distintas.

    Fronteiras fsicas ou culturais. Fronteiras em movimento, espaos de en-contro entre sujeitos diferentes nas bordas ou no miolo dos Estados. Quando dois jovens muulmanos estudam numa mesma escola com dois jovens catli-cos, mais dois jovens agnsticos, h encontros entre eles que so encontros de fronteira, cultural. Tal escola pode estar na Argentina, no Brasil, na Frana, nos EUA. A experincia de tais jovens, mesmo se sua escola est no miolo do Esta-do, uma experincia de fronteira, cultural, protegida pela legislao do pas.

    Fronteiras (fsicas e culturais) no so obras da natureza, so criaes huma-nas. Ter fronteiras talvez seja algo natural, mas a feio especfica de cada fron-

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    teira sempre uma questo de cultura, criao humana, particular, mutvel. As-sim, tambm as fronteiras fsicas se movimentam, mudam de lugar ou de feio.

    No mundo animal, as fronteiras territoriais so demarcadas por urinadas e rugidos. No mundo humano, as fronteiras territoriais so demarcadas por legislaes que, quando descumpridas, geram, por sua vez, coisas semelhantes a rugidos. H fronteiras no mundo dos animais e dos humanos. Isso, repetindo, talvez seja da natureza das coisas. Porm, as feies especficas das fronteiras humanas so criaes humanas, culturais e mutveis. As fronteiras so modifi-cadas com o encolhimento ou alargamento das linhas tradicionais, anteriores s novas linhas. Fronteiras fsicas teriam prazo de validade? Algumas linhas-limites parecem ter adquirido estabilidade. Outras, apenas criadas, por meio de confli-tos armados e/ou solues negociadas, parecem estar ainda em fase de teste. As linhas-limites so mutveis, podem durar dcadas, anos, meses ou sculos. Alm disso, nas linhas-limites, o relacionamento entre as pessoas que chegam, saem ou ali vivem so, tambm, relacionamentos mutveis, experincias de conflito e/ou integrao que podem ser conservadas, reformadas ou abolidas.

    1.1 Um mundo sem fronteiras?H quem diga, com encanto que, do alto de um avio a 10 km do solo, o

    planeta terra seria um planeta sem fronteiras. Visto da lua, ainda menos frontei-ras. Qual viso-valor de fronteira est contida em afirmaes de tal tipo? Talvez a de fronteira como defeito moral da humanidade. Assim como a propriedade privada, as fronteiras tambm so objeto da condenao de posies polticas utopistas. E assim como a propriedade privada, o problema no a fronteira em si, mas a forma como ela funciona, expresso do tipo de relaes que h entre os vizinhos fronteirios.

    No faltam afirmaes romnticas, poticas e utopistas condenando o fato--fronteira. O adorvel mundo novo, segundo tais utopistas, seria um mundo sem fronteiras, como se isso fosse possvel, e como se um mundo sem fronteiras devesse ser necessariamente melhor que o nosso mundo com fronteiras. Fron-teira defeito ou fronteira virtude? Fronteira sim ou no?

    No final de 2010, Rgis Debray, pensador francs conhecido aqui na Am-rica do Sul, publicou um livro (manifesto) elogiando as fronteiras e criticando o que ele chamou de sans-frontirisme. Em loge Des Frontires, Debray con-testa a avaliao dos que afirmam que fronteiras seriam defeitos polticos da humanidade (DEBRAY, 2010). De fato, h vrios movimentos e atividades inti-tulados sem fronteiras na sociedade civil. Mdicos sem fronteiras; jornalistas sem fronteiras; programas televisivos e revistas sem fronteiras. Teriam tais movi-mentos e atividades um enfoque negativo em relao s fronteiras? Seriam eles

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    grupos romnticos que, dos avies a 10 km do solo sonhariam com a abolio das fronteiras, por consider-las instrumentos de escravido dos povos? Ou ser que tais movimentos simplesmente tentam ir alm das fronteiras, propondo a su-perao de localismos, ou de chauvinismos, mas no a abolio das fronteiras? Sem fronteirismo de esquerda e de direita. Haveria na ideologia da globalizao uma espcie de tendncia a se sacrificar as fronteiras como condio para a construo do novo mundo da globalizao? Barreiras-defeito a serem derru-badas. Mdicos e jornalistas sem fronteiras podem ser profissionais que tentam ir alm de suas terras de pertena, profissionais da solidariedade internacional. Mas o sem-fronteirismo pode, tambm, esconder uma espcie de neocolonia-lismo da boa vontade, criador de novas formas de dependncia cultural.

    A quem interessaria a abolio dos limites de fronteira? Quem gostaria de viver num mundo sem aduanas e polcia de fronteira? Contrabandistas em pri-meiro lugar. Traficantes. Bandidos no gostam de fronteiras. A quem interes-saria um mundo sem barreiras de controle econmico? A quem interessaria o novo mundo da globalizao econmica sem barreiras, sem limites? A es-peculao financeira no gosta de tais barreiras. Fronteiras so instrumentos institucionais de segurana pblica. Se for excessivo, o controle de fronteiras pode sufocar a circulao de pessoas e mercadorias, mas a ausncia de controle eficaz de fronteiras deixa povos desprotegidos, deixa o territrio de fronteiras aberto criminalidade organizada.

    O mundo ficaria realmente melhor sem fronteiras? Ou ficaria melhor com fronteiras e aduanas mais bem organizadas? Traar linhas demarcadoras de dife-renas entre sujeitos coletivos tpico da nossa forma de viver em sociedade. As fronteiras so expresso disso. Como traar linhas? Quem tem o poder de traar linhas? Qual o prazo de validade das linhas traadas? Como proteger, nas linhas, os espaos dentro das linhas? De quem proteger o espao dentro das linhas tra-adas? Quais seriam as ameaas internas e externas? So questes que sugerem a melhor organizao das fronteiras e no sua abolio, nem sua desvalorizao.

    Fronteira, para uns, como mal necessrio; para outros, mal a ser abolido; para outros, ainda, bem social a ser protegido e, tambm, reformulado, quando necessrio. E quem tem o poder de traar fronteiras?

    As fronteiras africanas, por exemplo, no foram traadas por africanos, mas por colonizadores. Alguns conflitos tnicos que se travam no continente afri-cano no so contra as fronteiras, mas contra seu traado exgeno, a favor de sua reorganizao endgena. Conflitos contra as linhas traadas por sujeitos exgenos e a favor de novas linhas que vo sendo traadas por sujeitos coletivos endgenos, pela fora das armas, ou pela fora da diplomacia.

    Linhas tradicionais so contestadas e substitudas por outras. O que signi-fica demonstrao de apreo pela lgica das linhas-limites, apreo pela diver-

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    sidade preservada, protegida por linhas-limites. Valorizao das linhas-limites porque elas protegem as diferenas entre os sujeitos coletivos.

    Quando as linhas administrativas (efetivas) entre Estados, endgenas ou exgenas, no correspondem s linhas afetivas entre as naes, so criadas novas linhas, para novos Estados, adequando linhas administrativas e linhas de pertena afetiva, de forma pacfica (luta diplomtica), ou pela luta armada, reorganizando novos ou antigos interesses coletivos.

    Mudam-se linhas tradicionais pela luta diplomtica ou pela luta armada, mas viver entre linhas-limites parece caracterizar o nosso estilo coletivo de vida. Po-de-se passar de um lado ao outro das linhas-limites. Pode ser mais ou menos f-cil sair e/ou voltar para o territrio da linha-limite de pertena, mas viver dentro de linhas, mesmo se com feies diferentes, caracterstico dos animais sociais.

    1.2 Fronteira filtroFronteiras so constitutivas da vida social. Fronteiras entre tradio e mo-

    dernidade; fronteiras entre grupos sociais de interesse variado. Fronteiras no significam necessariamente diviso, mas distino. A ltima experincia huma-na ser, certamente, uma experincia de fronteira, entre a vida e a morte.

    No Rio Grande do Sul, no mbito da poesia regional, fronteira indica ge-nuinidade. O gacho mais gacho seria de ubicao fronteiria. Fronteira ide-alizada, amada e no temida.

    A fronteira entre as cidades-gmeas de Santana do Livramento (Brasil) e Ri-vera (Uruguai) foi rota de fuga para a liberdade de cidados que fizeram oposio ditadura militar instaurada na dcada de 1960, no Brasil. Para eles, tal fronteira foi o lugar da conquista da liberdade perdida no miolo do Estado (ASEFF, 2009).

    A fronteira do oeste americano foi interpretada como fronteira entre a ci-vilizao e a barbrie, fronteira selvagem, linha-limite entre o que j fora con-quistado (colonizado) e o espao inexplorado, mas que j era habitado pelos indgenas, ou selvagens, segundo o ponto de vista dos colonizadores.

    Ao contrrio do sem-fronteirismo de direita, de certa interpretao da glo-balizao, a lgica das fronteiras no lgica de padronizao, nem de diviso, mas de distino e proteo das diferenas, para que as experincias de troca entre sujeitos diferentes sejam caracterizadas pela equidade e defesa da diversi-dade e no pela uniformidade. At porque a uniformidade faz cessar as razes da troca. Roupas diferentes, gastronomia diferente, religies diferentes, msi-cas e danas diferentes, idiomas diferentes. Eliminadas as diferenas, eliminam--se as razes que promovem a troca cultural entre sujeitos diferentes.

    A fronteira ordenada, segura, uma experincia de Estado forte, eficaz, mecanismo oficial de proteo social nas bordas do territrio, em benefcio

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    de tais bordas e do miolo do Estado. Em suma, uma questo de defesa da soberania nacional.

    Quem no deve no teme, reza o ditado. Se estiver com o passaporte em dia e tiver cumprido outras eventuais exigncias do pas ao qual se dirige, o vi-sitante estar preparado para atravessar a fronteira fsica de um Estado nas suas linhas-limites geogrficas ou nas linhas-limites criadas dentro dos aeroportos. Tambm para sair de um espao de pertena h regras. Se levar o filho menor, o cnjuge precisa da autorizao formal do outro cnjuge. Regras de fronteira que servem para proteger quem sai e quem entra, para proteger os que vivem em espaos que sero frequentados por sujeitos de outros espaos. Regras de fronteira so regras de segurana. Regras para o comrcio, para importao e exportao, contra a anarquia econmica, contra a criminalidade organizada. Fronteiras filtram o que sai e o que entra. Como filtram? Por meio de normas jurdicas, democrticas ou, tambm, por meio do pagamento de propinas, pas-saporte da corrupo. Como ocorre em partidos e igrejas, as fronteiras tam-bm podem ser vitimadas pela corrupo. Imigrantes clandestinos se disfaram de estudantes. E estudantes so confundidos, dolosa ou culposamente, com imigrantes clandestinos. Crimes de fronteira. Contrabando disfarado de livre mercado. O que no significa que a fronteira seja em si uma experincia cri-minosa. A funo da fronteira evitar os crimes, filtrar o que sai e o que entra. Obrigar ao cumprimento das regras do lugar de sada e de chegada. E ela o faz mesmo se falhas possam ocorrer (dolosas ou culposas). Por isso, propor o enfraquecimento dos controles de fronteira no promove o fortalecimento da segurana, nem dos povos que vivem nas bordas e miolo do Estado. O que pode ser feito um controle mais gil e de gesto compartilhada da segurana em regies de fronteira por Estados vizinhos.

    A fronteira filtra com o objetivo de proteger. Filtro moral fundado em leis, regras preestabelecidas. A funo filtro faz com que as fronteiras sejam tenden-cialmente lugares de tenso. Psicologia de fronteira. Quem no cumpre as regras, teme ser descoberto; quem cumpre as regras, teme ser vitimado por aes dolo-sas ou culposas de controladores eventualmente criminosos de fronteira. No caso da fronteira urbana binacional e integrada, entre as cidades-gmeas de Santana do Livramento e Rivera, a fronteira no lugar de tenso, mas de distenso. To-davia, h postos de controle a poucos quilmetros das duas cidades, na estrada em direo a Porto Alegre e na estrada em direo a Montevidu. A tenso des-locada para as estradas de ingresso nas duas cidades-gmeas fronteirias.

    paradoxal que os que sonham com um mundo mais pacificado e livre adotem ideologias sem-fronteiristas, j que na funo filtro est contida a funo pacificadora das fronteiras, pela identificao e captura de sujeitos coletivos no comprometidos com a legalidade. A paz e justia mundiais no necessitam da

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    abolio das fronteiras, mas de sua qualificao. Ou seja, humanizar as fronteiras, mas sem enfraquecer o poder de controle do Estado em suas bordas territoriais.

    O que alguns crticos chamam pejorativamente de burocracia de fronteira significa, na verdade, mecanismo institucional de proteo dos povos que vivem nas fronteiras e no miolo do Estado.

    A fronteira filtro fronteira aberta e fechada. Ao contrrio dos muros, que esto sempre fechados. Novas fronteiras foram traadas nas ltimas dcadas; novos muros tambm foram construdos. Muros ou fronteiras? Fronteiras qua-lificadas, certamente, geis, com pessoal bem preparado, funcionrios de fron-teira, para a fronteira e para o miolo do Estado.

    Fronteiras em movimento, fronteiras mutveis. Movimentos de abertura e fechamento. Fronteiras hostilizadas por certo sem-fronteirismo porque elas im-pem regras para a passagem dos que saem e dos que entram. Do que sai e do que entra. Fronteiras cujo funcionamento pode ser modificado, mas para cumprirem melhor sua funo filtro racional.

    Em suma, fronteira como valor, no como defeito. Crianas so conside-radas educadas quando respeitam limites. Crianas sem limites no so consi-deradas crianas revolucionrias, progressistas, de vanguarda. Crianas sem fronteiras so consideradas mal-educadas, crianas-problema, dado que res-peitar limites ainda considerado virtude e no defeito.

    H limites entre dia e noite; terra e gua; vida e morte; sagrado e profano; dinheiro pblico e dinheiro privado; limites de poderes e competncias; limites entre Estados; limites entre comrcio legal e ilegal. Limites controlados por razes de segurana pblica. Corrupo significa abolio dos limites ticos e jurdicos impostos pela legalidade democrtica. Polticos e cidados corruptos so, neste sentido, sem-fronteiristas. Capitalistas especuladores, tambm.

    Fronteiras antigas, como as fixadas por clrigos e reis no Tratado de Torde-silhas, podem ser posteriormente modificadas por outros sujeitos com outros tratados de vizinhana. Modificadas, mas no abolidas. Sujeitos polticos auto-ritrios criam fronteiras por meio da fora do medo. Sujeitos polticos demo-crticos criam fronteiras democrticas por meio da fora das negociaes. Uma vez criadas, elas so controladas. As fronteiras cumprem uma funo social re-guladora, de proteo. Aproximam e/ou separam vizinhos. Protegem diversida-des, salvam singularidades. Fronteiras protegem pertenas coletivas diferentes. Identidades coletivas diferentes. Diversidade e integrao.

    Em tal sentido, a expresso cidado do mundo, geralmente associada ao sem-fronteirismo , em si, um exagero. Entrar num pas via internet bem dife-rente de entrar nele fisicamente. E entrar em pases (via internet ou fisicamente) bem diferente de ser cidado dos pases onde se entra. Impossvel que algum seja cidado de 200 Estados. Impossvel pagar imposto de renda em 200 Esta-

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    dos. Impossvel prestar servio militar em 200 Estados. Cidado do mundo uma expresso vazia do ponto de vista das responsabilidades prticas (deveres jurdicos, polticos) contidas na palavra cidadania. Pode-se ter, no mximo, duas ou trs nacionalidades, dois ou trs passaportes, pela filiao, territrio de nascimento. Mesmo aquele que aprende a amar outras naes alm da sua, amar duas ou trs a mais, alm da prpria, supondo-se que ele assuma res-ponsabilidades pelo prprio territrio nacional de pertena, em vez de ser um sem-ptria por opo, como faziam alguns intelectuais brasileiros do passado que tinham os ps no Brasil e o corao (e mente) nos cafs de Paris. Todavia, cidado do mundo pode significar, tambm, esforo de alargamento de respon-sabilidades para alm das linhas do prprio Estado de pertena.

    Em suma, feias ou bonitas, com ou sem lanchonetes e lojinhas de artesana-to, as fronteiras so instrumentos necessrios de segurana para cidados do mundo ou cidados de um, dois ou trs Estados. Somente num mundo sem pe-cado original (ou use a expresso que preferir para designar o mal moral, real, social) no haveria necessidade de fronteiras e de profissionais da segurana pblica (civis e militares) em regies de fronteira.

    2. Caractersticas da experincia da integrao de fato entre as cidades-gmeas de Rivera e Santana do Livramento

    2.1 Uma fronteira peculiar Rivera e Santana do Livramento

    Fronteiras so lugares de passagem, mas h excees, como a experincia entre as cidades-gmeas de Santana do Livramento e Rivera, onde se vive per-manentemente a fronteira, espao conurbado binacional de vida cotidiana.

    De Porto Alegre capital do estado do Rio Grande do Sul, extremo sul do Brasil at Santana do Livramento, cidade de fronteira entre o sul do Brasil e o norte do Uruguai, so 500 quilmetros. De Montevidu capital do Uruguai at Rivera, cidade ao norte do Uruguai, fronteira com o sul do Brasil, a distncia a mesma. Mas entre Rivera e Santana do Livramento a distncia de menos de um passo. Pode-se colocar um p no lado brasileiro da cidade e outro no lado uruguaio. So duas cidades irms, ou melhor, gmeas, distintas por uma linha imaginria que atravessa ruas e bairros. Duas cidades de dois Estados que for-mam uma nica cidade, conurbada, de um povo binacional, fronteirio.

    O municpio de Santana do Livramento, atualmente com quase 90 mil ha-bitantes, foi criado em 1857, data de sua emancipao de Alegrete. A cidade de

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    Rivera, atualmente com quase 70 mil habitantes, foi fundada em 1862, com o ob-jetivo de frear a expanso brasileira no norte do Uruguai (ASEFF, 2009). De fato, a cidade realizou tal objetivo. O norte do Uruguai norte do Uruguai, no um prolongamento do sul do Brasil. Mas este objetivo foi realizado de uma forma tal-vez imprevista. Em tal regio bimunicipal de fronteira predomina a integrao bi-nacional, bimunicipal, sem que tenha sido eliminada a diversidade Brasil-Uruguai.

    Entre as cidades-gmeas de Rivera e Livramento h livre circulao de pes-soas, no existem rios, muros, nem cercas de arame farpado. No centro das duas cidades h um grande parque bimunicipal, aberto, smbolo arquitetnico da experincia cotidiana de integrao internacional. Para ir de Rivera a Livra-mento e vice-versa no necessrio apresentar passaporte, at porque isso seria praticamente impossvel numa cidade binacional, conurbada, onde quem vive no lado brasileiro matricula os filhos em escolas do lado uruguaio da cidade, e vice-versa; quem vive no lado uruguaio, faz compras dirias de supermercado no lado brasileiro, e vive-versa. Em tal fronteira, 160 mil habitantes circulam livremente, cotidianamente, mais os turistas.

    Do alto, o que se v uma nica cidade, binacional. A linha divisria ima-ginria, diariamente ultrapassada pelos povos destas duas cidades integradas em uma s, onde no reina o caos, mas a autoridade do controle social, diplomacia popular, que no nega, mas sustenta a diplomacia oficial e o controle policial.

    A fronteira entre Rivera e Santana do Livramento no uma linha-limite de passagem, mas um espao urbano binacional permanente de vida coletiva, caracterizada pela integrao.

    Para a sociologia, integrao significa estado de integrao, fato social, es-tado de vida coletiva onde a maioria (no se exige unanimidade) da populao ordena de forma regular, ordinria, eficaz, reciprocamente, as suas aes so-ciais cotidianas (GALLINO, 2006). O estado de integrao social caracteriza--se por baixo nvel de conflito, ou seja, maior ndice de consenso social, tambm pela gesto eficaz dos conflitos, que evita rupturas e fortalece a integrao, mantendo a diversidade.

    O tipo de integrao que existe entre Santana do Livramento e Rivera integrao utilitria, caracterizada pela negociao cotidiana de interesses que ocorre em tal rea urbana fronteiria de integrao cotidiana permanente. A in-tegrao percebida majoritariamente como vantajosa. H negociao cotidia-na de interesses em tal espao urbano peculiar, binacional. Associado a isso, h tambm a experincia dos casamentos binacionais, o que ocorre constantemen-te e h dcadas, com a criao de famlias diferentes das que vivem nos miolos dos Estados, famlias fronteirias, binacionais, que fortalecem a integrao de fato, onde a diferenciao, repetindo, no um paradoxo de tal integrao, mas uma sua caracterstica constitutiva.

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    A fronteira entre o Brasil e o Uruguai estende-se por quase 1000 quilme-tros, e a separao territorial ocorre, sobretudo, por uma linha imaginria. Em tal fronteira, onde nenhuma grande cadeia de montanhas, nenhum intranspo-nvel curso dgua, nenhum deserto ou pantanal inabitvel separam o Uruguai do Brasil (FRANCO, 2001, p. 10), h 06 centros urbanos binacionais, nas cidades-gmeas de Bella Unin (Uy) e Barra do Quara (Br); Artigas (Uy) e Quara (Br); Rivera (Uy) e Santana do Livramento (Br); Acegu (Uy) e Acegu (Br); Rio Branco (Uy) e Jaguaro (Br); Chuy (Uy) e Chu (Br).

    A fronteira entre Brasil e Uruguai uma rea de interao intensa, onde a prpria literatura comea a reconhecer a presena de uma terra s, ex-pressivo ttulo do livro de contos do escritor jaguarense Aldyr Garcia Schlee (FRANCO, 2001, p. 10).

    A vida social em uma rea de interseco numa regio de fronteira entre Estados diferente da que se vive em reas situadas no miolo do Estado. Pode haver conflitos ou integrao. Neste caso, tal rea de integrao com diferen-ciao. Como resumiu o socilogo uruguaio Enrique Mazzei, a fronteira entre Rivera e Santana do Livramento um espao social com acentuada unidade na diversidade (2000, p. 29).

    O Estado importante na definio da identidade nacional, mas qual iden-tidade seria caracterstica de uma rea binacional integrada de fronteira? Seria uma identidade diferente, fronteiria? Brasileiros fronteirios sentem-se, tam-bm, um pouco uruguaios. Uruguaios fronteirios sentem-se, tambm, um pou-co brasileiros. Um dos fatores explicativos de tal fenmeno de pertena frontei-ria , certamente, a experincia que j citamos dos casamentos entre uruguaios (as) e brasileiras (os) que ocorre h vrias dcadas e continua se repetindo, ge-rando descendncia e parentesco (QUADRELLI, 2002; QUADRELLI, 2003).

    As cidades de Rivera e Santana do Livramento so utilizadas cotidiana-mente por brasileiros e uruguaios integrados, nas escolas, comrcio e reunies familiares. Existe intensa comunicao entre a populao de ambas as cida-des (QUADRELLI, 2002, p. 157). Brasileiros e uruguaios tm negcios dos dois lados da fronteira, o que cria, tambm, uma situao de interdependn-cia econmica entre as duas cidades fronteirias. Tambm os clubes sociais e para a prtica de esportes so utilizados pela populao das duas cidades, com suas famlias binacionais constitudas por geraes de brasileiros e uruguaios (CHASTEEN, 2003). Um brasileiro fronteirio no fala mal de um uruguaio (enquanto tal) tambm porque tem o av, o filho ou a esposa uruguaia. E uma uruguaia fronteiria no fala mal de um brasileiro pelo mesmo motivo. Tal re-gio urbana compartilhada tem caractersticas diferentes das cidades situadas no miolo dos Estados do Brasil e do Uruguai. Com certa dose de exagero, para fins didticos, podemos afirmar que Santana do Livramento e Rivera consti-

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    tuem uma espcie de terceiro Estado, muito mais de fato do que de direito. Os cidados que nascem e vivem neste caldo cultural binacional, em vez de um ethos nacional tpico do miolo dos Estados, manifestam um ethos diferente, binacional, ethos fronteirio de fronteira integrada. Um quase Estado, peculiar, de dois Estados distintos, entre dois Estados distintos, integrados aos seus dois Estados de partida, Brasil e Uruguai, e com uma populao maior que a popu-lao do menor Estado do mundo, o Estado do Vaticano.

    A identidade fronteiria contm, no mesmo ser, dois seres. Os fronteirios gerados ao longo de dcadas nesta comunidade binacional vivem desde o nas-cimento entre duas culturas que so constitutivas da sua cultura, fronteiria. Nasce-se numa casa-famlia com janelas abertas para o Brasil e para o Uruguai.

    Os Estados do Brasil e do Uruguai reconhecem tal peculiaridade e tentam amenizar os problemas jurdicos vividos pela populao fronteiria por meio de regramentos jurdicos especficos, fronteirios, voltados para o reconhecimento do que de fato j existe do ponto de vista da integrao social cotidiana nas 12 cidades-gmeas da fronteira Brasil-Uruguai (PUCCI, 2010).

    2.2 Integrao com diferenciaoNa experincia entre Rivera e Santana do Livramento, a integrao de fato

    no exige que sejam anuladas as diferenas nacionais, que no so compreendi-das como obstculos tal integrao, mas como elementos constitutivos de tal estado social peculiar de vida integrada fronteiria, binacional.

    A fronteira entre Rivera e Santana do Livramento no lugar de perda da identidade brasileira ou uruguaia, mas lugar de construo de uma identidade tpica, fronteiria, binacional, entre brasileiros e uruguaios que interagem coti-dianamente e continuam sendo brasileiros e uruguaios.

    Tal fronteira subverte a compreenso usual tradicional segundo a qual fron-teira seria lugar limtrofe semi-habitado e caracterizado por tenses. Entre Ri-vera e Santana do Livramento, fronteira significa espao (lugar) permanente de encontro entre sujeitos diferentes, onde as diferenas so compreendidas como possibilidades de reciprocidade vantajosa. Em tal caso, fronteira no apenas linha-limite de passagem, com encontros rpidos, voltados, sobretudo, para verificao de passaportes, sob a administrao da polcia de Estado.

    Na fronteira peculiar entre Rivera e Santana do Livramento, vive-se sob o re-gime do pluralismo com integrao (QUADRELLI, 2002). Em tal fronteira pre-domina o paradigma da integrao, e no o do choque, que se manifesta apenas excepcionalmente, por ocasio de alguns embates futebolsticos entre as selees nacionais do Brasil e do Uruguai (QUADRELLI, 2002), que servem para mani-festar as pertenas nacionais, diversidade nacional que caracteriza tal integrao.

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    As diferenas nacionais existem, permanecem, e so usadas como possibi-lidades (integrao com diferenciao). Integrao caracterizada pela funcio-nalidade e utilidade, onde os interesses (tambm comerciais) das populaes fronteirias podem ser realizados num lado ou no outro da fronteira, de acordo com o momento poltico ou econmico vivido pelo Brasil ou pelo Uruguai.

    A fronteira entre Brasil e Uruguai foi usada como local de fuga de exilados dos dois lados, de acordo com o momento poltico vivido pelo Uruguai ou pelo Brasil. Aps o golpe militar de abril de 1964, muitos brasileiros exilaram-se em Rivera. Tal experincia foi descrita pelo pesquisador Marlon Aseff, no livro Re-tratos do Exlio Solidariedade e Resistncia na Fronteira (2009). Muito antes de 1964, a famlia Saraiva, fronteiria, dos irmos Gumercindo e Aparcio utili-zaram a fronteira em suas estratgias de ataque e de fuga, no Uruguai e no Bra-sil, experincia descrita no livro Fronteira Rebelde A vida e a poca dos ltimos caudilhos gachos, do pesquisador norte-americano John Chasteen (2003).

    As vantagens de tal proximidade geogrfica, binacional, bimunicipal, ma-nifestam-se tambm no exerccio de atividades de lazer que, na fronteira entre Rivera e Santana do Livramento, tambm so compartilhadas, como a pesqui-sadora Liane Aseff descreveu em sua pesquisa intitulada Memrias Bomias Histrias de uma cidade de fronteira (2008).

    2.3 Nveis qualitativos de integraoPara o socilogo russo-americano Pitirim Sorokin (1889-1968), a histria

    da humanidade no somente histria de luta de classes. Segundo Sorokin, a cooperao entre as classes sociais um fenmeno ainda mais universal do que o antagonismo entre elas (1974, p. 526).

    Seria tal mtua colaborao constatada por Sorokin algo prximo tole-rncia? Quais seriam as relaes de significado entre tolerncia, intolerncia, integrao e cooperao? Segundo Maria Rosalba Demartis, o futuro da hu-manidade, o tipo de mundo e de civilizao que construiremos depende do estilo e da qualidade das relaes (2005/6, p. 805).

    Intolerncia e tolerncia so modalidades sociais qualitativas diferentes de relacionalidade. Na interpretao de Franoise Hritier, para obter xito a l-gica da intolerncia precisa negar o Outro como verdadeiro humano para poder exclu-lo, causar-lhe mal, destru-lo (...). A inteno primeira no hu-milhar, mas negar, pura e simplesmente, o status de ser humano ao Outro (1998, p. 25). talo Mereu explicou que a intolerncia funda-se na certeza de se possuir a verdade absoluta e no dever de imp-la a todos, pela fora. Seja por determinao divina ou por vontade popular (1998, p. 42). Ao contrrio, tolerar significa reconhecer o outro como igualmente humano, o que permite, segundo Franoise Barret-Ducrocq, o esforo para compreender as convic-es contrrias (1998, p. 268).

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    Intolerncia significaria no reconhecer o outro como sujeito humano, mas como sub-humano. Quanto tolerncia, podemos pensar em duas modalida-des. Pela tolerncia negativa, o outro passaria a ser reconhecido e suportado, no destrudo fsica ou moralmente. A tolerncia negativa seria o primeiro pas-so aps a intolerncia. Pela tolerncia positiva, a diversidade cultural do outro, em vez de suportada, seria apreciada como caracterstica positiva do outro, sujeito pessoal e coletivo. A diversidade cultural entre os sujeitos permaneceria nas duas modalidades de tolerncia. Caso houvesse adeso s escolhas do su-jeito interlocutor diferente, no haveria mais tolerncia, mas assimilao, perda da diferena pela adeso aos valores do outro.

    A tolerncia (negativa e positiva) realiza-se no contexto do pluralismo, da di-versidade cultural entre sujeitos. Segundo a sociloga Vera Arajo, a distino sublinha, preserva e tutela a identidade de cada um, impedindo a sua absoro, dependncia ou submisso, mas ao mesmo tempo, mantendo-a na unidade (2005/6, p. 860). E ainda: Somente graas distino cada um se torna ator e toma iniciativas para alimentar e enriquecer a unidade (2005/6, p. 861).

    Na integrao caracterizada pela tolerncia negativa ou positiva, a diver-sidade cultural entre sujeitos diferentes permanece como pano de fundo ne-cessrio da relacionalidade caracterizada pelo agir de quem suporta o outro coletivo (tolerncia negativa) ou de quem aprecia, reconhece valor nas escolhas do outro coletivo (tolerncia positiva).

    Em 1961, o papa Joo XXIII, na sua encclica social Mater et Magistra, recomendou aos interessados em mudanas sociais: No nos percamos em discusses interminveis; e, sob o pretexto de conseguirmos o timo, no dei-xemos de realizar o bom que possvel e, portanto, obrigatrio (1980, n. 234). Emerge a recomendao do que poderamos chamar de tica do melhor possvel, melhorismo, que poderia valer tambm para a interpretao dos nveis qualitativos possveis de integrao social (integrao realista).

    A partir de uma considerao mais realista sobre conflitos e integrao, vejamos alguns possveis nveis qualitativos de integrao social:

    Nvel 1 - integrao menor: nvel da tolerncia negativa, onde o outro e sua tradio cultural, diferentes, so apenas suportados;

    Nvel 2 - integrao maior: nvel da tolerncia positiva, onde o outro reco-nhecido e valorizado como sujeito coletivo, e suas tradies culturais so aprecia-das. Experincia de integrao que no definitiva, mas varivel, podendo ser mais ou menos duradoura, por meio de ajustes reformadores no tempo e no espao;

    Nvel 3 - integrao perfeita e definitiva: nvel escatolgico, metafsico, ou seja, somente no cu, para os que creem que exista um cu.

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    Entre Rivera e Santana do Livramento no h integrao perfeita e nem desintegrao. H mais que tolerncia negativa. Trata-se da experincia pecu-liar de integrao de fato entre dois povos diferentes que negociam interesses cotidianamente, geralmente de forma eficaz.

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    Captulo II

    Era uma vez na fronteira: o mito da zona fora da lei?

    Renatho Costa1

    Um homem entra no saloon, olha ao seu redor e percebe a presena de pes-soas estranhas, mas mesmo assim, sente-se seguro porque logo sua esquerda h um senhor grisalho sentado mesa e portando uma reluzente estrela no peito. A autoridade faz-se presente no local! Assim que o homem vira-se para o balco do bar e pede uma bebida, ouve-se o estampido de dois tiros. Antes de sua mo chegar ao copo, seu corpo projeta-se sobre o balco e, na sequncia, desliza lentamente at o cho. Poucos segundos depois, a cmera mostra o xerife guardando suas armas e caminhando, sem pressa, em direo porta do saloon. Joguem esse corpo para fora dos limites da cidade, ordena o xerife a duas das pessoas estranhas, antes de sair. Os problemas apenas comeavam!

    John Ford e Sergio Leone exploraram ao mximo o gnero cinematogrfico do western, (re)criaram mitos e popularizaram figuras. Fizeram com que toda uma tipologia fosse difundida pelo mundo atravs de seus filmes. De certo modo, a realidade da regio oeste estadunidense acabou se fundindo aos ele-mentos criados por esses cineastas. Essa parte dos Estados Unidos, que no possua o mesmo glamour do leste, tampouco seu nvel de desenvolvimento uma regio que no se envolveu completamente na Guerra Civil America-na2 (1861-1865), mas estava relacionada a ela , tornou-se a maior expresso do cinema estadunidense que, conforme Andr Bazin (1976, p. 114) salienta, trata-se de um gnero americano por excelncia.

    Assim, o western, que no Brasil tambm ficou conhecido por faroeste, par-te da realidade estadunidense do sculo XIX para abordar temas universais, tais como, honra, vingana, lealdade, amor, piedade, crena, etc, ancorados

    1Renatho Costa, professor assistente da Unipampa (Universidade Federal do Pampa - campus Santana do Livramento), graduado em Relaes Internacionais (FASM-SP), mestre e doutoran-do em Histria Social (FFLCH-USP).2Tambm conhecida como Guerra da Secesso, as partes norte e sul dos Estados Unidos entra-ram em guerra, muito mais do que para discutir seus modelos de produo, estavam preocupadas como deveria ser sua assimilao pelo Oeste do pas. Da a importncia dessa regio no conflito.

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    na demanda especfica daquele momento histrico do pas. Desse modo, como estava em curso a expanso territorial dos Estados Unidos em direo ao oeste, a questo da ocupao da terra surge com muita frequncia dentre as tem-ticas, assim como a luta dos colonizadores contra a populao indgena e o consequente preconceito racial. Ainda, o dilema dos grandes proprietrios de gado confrontando-se e/ou alinhando-se modernidade dos propagadores das estradas de ferro acaba sendo outro tema de debate em muitos filmes. Tambm no possvel deixar de mencionar a corrida do ouro, que tornou-se um sm-bolo para entender o que ocorria nos Estados Unidos naquela momento.

    Enfim, uma mitologia foi desenvolvida em torno desses temas e encontrou repercusso no mundo todo. Por essa razo, ao mesmo tempo em que a figura de um xerife, quando presente no saloon, pode trazer a sensao de segurana para uma pessoa, os cineastas mostraram que essa segurana pode ser ilusria, uma vez que o comprometimento dessas autoridades com a Lei nas regies em que o alcance do Estado ainda precrio questionvel.

    O problema que se apresenta nesse caso, e que muito comumente extrapola a realidade das telas, diz respeito dificuldade de o Estado impor-se em localida-des extremas ou que apresentem fatores adversos. Por mais que a perspectiva contratualista reafirme que a obrigao do Estado prover a segurana de seus nacionais, caso contrrio sua base constitutiva estaria sendo violada (Burdeau, 2005), na prtica, a repercusso dessa obrigatoriedade acaba sendo relativizada.

    Muito comumente as populaes que vivem nas regies de fronteira sofrem com o problema da sub-representatividade do Estado. No entanto, diferente-mente do que a cena do western sugere, o problema maior relacionado se-gurana no advm de a autoridade instituda formalmente pelo Estado adotar preceitos prprios e se tornar uma justiceira, mas sim, pela ausncia de condi-es que garantam as disposies legais devido presso dos fatores adversos.

    1. Bem vindo fronteira

    A zona de fronteira, per si, j traz um fator intrnseco que poderia apontar para o conflito, qual seja, a diferena. O fato de, lado a lado, estabelecerem-se culturas diferentes, com trajetrias distintas e perspectivas muitas vezes anta-gnicas, j um elemento que proporcionaria a instabilidade poltica da regio fronteiria. Ainda que a perspectiva globalizante tenda a afirmar que a maior integrao poltica-econmica-social far com que os nacionalismos sejam re-duzidos, no possvel afirmar com segurana que essa transformao ser suficiente para suprimir a tenso das zonas de fronteira.

    Parte dessa dvida acerca da possvel no reduo do tensionamento entre os Estados fronteirios, mesmo inseridos no processo da globalizao, advm da

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    prevalescncia da perspectiva Realista nas Relaes Internacionais. Nesse sen-tido, a questo da Segurana seria um impeditivo para alcanar a cooperao, haja vista a busca pela maximizao dos resultados gerar dvida com relao ao comportamento dos Estados. (WALTz, 1979). Ou seja, se a cooperao vista como uma ao de risco, coopera-se apenas at determinado limite, e, justa-mente nesse ponto que a fragilidade das relaes entre os Estados pois tm receio de fragilizar sua soberania frente aos demais proporciona um campo aberto para organizaes criminosas atuarem.

    Por outro lado, se a perspectiva globalizante apresenta grande otimismo e sugere uma leitura contrria do Dilema de Segurana, acaba no sendo compartilhada por todos. Em alguns aspectos, a globalizao soaria como o idealismo wilsoniano, o que se afastaria ainda mais da realidade das zonas de fronteira, principalmente quelas existentes em Estados no desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento. Assim, quando Robinson refere-se Ciudad Del Este como

    uma cidade de duzentos mil punguistas, prostitutas, arruaceiros, revolu-cionrios, rufies, traficantes e viciados em drogas, assassinos, chantagis-tas, piratas, quadrilheiros, extorsionrios, contrabandistas, matadores de aluguel, proxenetas e ativistas, [que] foi criada pelo ex-ditador do Para-guai, Alfredo Stroessner. (2001, p. 12)

    Mais parece estar descrevendo uma das longnquas cidades que pontuam os cenrios foras da lei dos westerns de Leone ou Ford.

    Guardadas as devidas propores, alm de um possvel exagero dos nme-ros presentes na exposio de Robinson, em verdade no se pode negar que a Trplice Fronteira que abrange as cidades de Foz do Iguau (Brasil), Puerto Iguaz (Argentina) e Ciudad Del Este (Paraguai) seja uma localidade que inspira cuidados por comportar trs povos distintos, com governos e nveis socioeconmicos desiguais, ou seja, propensa tenso.

    E se essas diferenas apresentam-se como um elemento desestabilizador do Estado, de modo diametralmente oposto, abre-se o caminho para que organiza-es criminosas se estruturem e encontrem espao de atuao criando um Es-tado paralelo. Onde a Lei pode ser flexibilizada, os agentes do crime atuam com mais tranquilidade porque a punio deixa de ser um fato real. Ainda mais quando considerada a rentabilidade que essas atividades criminosas podem oferecer. Se as diligncias dos westerns eram o objeto principal dos criminosos, hoje a sofisticao do crime organizado no precisa mais correr, a cavalo, atrs de seus alvos porque a tecnologia tambm contribuiu para esse fim.

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    A ascenso do crime organizado hoje um fato aceito, ainda que lamen-tvel, nos negcios realizados em todo o mundo. As enormes massas de dinheiro geradas por essas atividades precisam ser legitimadas pela lavagem e incorporao nos sistemas bancrios e empresariais internacionais. Para-lelamente, ocorrem a globalizao e a internacionalizao dos mercados, a sofisticao da tecnologia de informaes e o aparecimento de ambientes polticos e econmicos inseguros [...]. Os criminosos esto explorando todas essas tendncias e operando na vanguarda, para garantir que sejam lavados os recursos ilegalmente gerados. Avaliou-se, por exemplo, que a indstria a de drogas ilegais movimenta 400 bilhes de dlares por ano (e esse nmero mais modesto do que os estudos da ONU) o que a torna mais rica do que a indstria do petrleo e do gs natural. As drogas tm 400 milhes de clientes regulares. Duzentos milhes de dlares so lavados com sucesso a cada ano, no mundo todo. (LILLEY apud AMORIM, 2008, p. 23-24)

    Diante desse panorama, a fronteira, para uma organizao criminosa, no

    considerada como o delimitador de suas atividades, mas sim, o entremeio para alcanar seus objetivos. Tomando novamente como exemplo a Trplice Frontei-ra, por ser uma regio em que, inicialmente, a prpria diferena de cmbio pro-porciona vantagens para quem traz mercadoria do Paraguai, a oportunidade faz surgir gerenciadores dos negcios.

    Desde o crime mais simples4 que os muambeiros cometem ao traslada-rem com produtos para o lado brasileiro ou argentino, at a entrada de grande nmero de armas sofisticadas para suprirem arsenais de organizaes como o Comando Vermelho (Rio de Janeiro), ou Primeiro Comando da Capital (So Paulo), sempre h alguma estrutura gerenciando as atividades.

    Esse gerenciador acaba se transformando na autoridade legitimada da fron-teira, pois ele um facilitador das atividades ilcitas que atende aos criminosos, mas tambm aos honestos. A mesma flexibilidade da regio de fronteira que proporciona as facilidades para que o pequeno crime seja praticado, faz-se presente nas grandes aes. E, a partir de uma perspectiva sintomtica, aquele que comete o crime mais simples e no tem interesse que o sistema mude, tambm contribui para que os altos negcios da fronteira ampliem sua atua-o, haja vista estarem implicados num mesmo sistema.

    Se, por um lado, nesse cenrio de conivncia o Estado acaba tendo sua fora de atuao reduzida, por outro lado, as organizaes que surgem para tomarem conta do processo de comercializao dos produtos ilegais ganham mais poder porque no precisam atuar a partir dos mesmos princpios que regem o Estado,

    O crime organizado pode usar a fora (coativa) como presso para dominar determinadas reas e atingir certos objetivos, especialmente na ausncia

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    ou na m qualidade de prestao de um servio pblico, como a seguran-a. Pode, ainda, aproveitar-se das carncias sociais para conseguir adeptos (mo de obra), exercendo um verdadeiro fascnio pela ideia de posse e de poder articulado numa vasta rede de aes. (SCHELAVIN, 2011, p. 135)

    Assim, ressurge o paradigma da zona fora da lei, do western. Numa regio em que impera o poder da fora, os mecanismos estatais para a conteno da violncia, muitas vezes acabam sendo insuficientes ou irrelevantes. Isso porque, se o Estado pauta sua atuao legal a partir de princpios assimilados pela so-ciedade e defendidos como justos andando dentro da lei , o Crime Orga-nizado no os respeita, ou os subverte no intuito de estabelecer um novo padro de justia que choca com os tradicionalmente reconhecidos pela sociedade.

    Ainda, apesar de a sociedade no reconhecer o modelo de justia imple-mentado pela Organizao Criminosa como justo3, as condies impostas populao que habita a fronteira acabam levando-a a assimil-lo, pois perdura o medo de a no aceitao implicar na supresso da vida. Evidentemente que a incorporao gradual do novo cdigo de conduta de Organizaes Crimi-nosas faz com que a exceo se torne regra e a populao, em xeque, opte por violar a Lei Nacional, mas no a Lei do Crime.

    Desse modo, ao focarmos a regio da Trplice Fronteira podemos perceber os dois grandes desvios que contribuem para a atuao do Crime Organizado, quais sejam, primeiramente a fraqueza do Estado que faz com que as pessoas burlem a legislao para cometerem ilcitos, e, em segundo lugar, ao controla-rem as aes criminosas, as Organizaes estabelecem suas prprias leis e se tornam soberanas na regio.

    Diante desse cenrio complexo, conforme Dreyfus nos traz,

    O crime organizado, a violncia armada, o trfico de drogas, o aumento da delinquncia e a proliferao de armas de pequeno porte so proble-mas que hoje existem na Amrica Latina e tm uma clara dimenso in-termstica ou transnacional. So problemas que do origem a conflitos nos quais esto evolvidos atores que, aproveitando a vulnerabilidade dos Estados da regio, interagirem atravs das fronteiras. Por exemplo, carros de luxo roubados mo armada, em Santa Cruz de la Sierra, So Paulo e Buenos Aires so contrabandeadas para o Paraguai e trocados por drogas ilcitas e armas de fogo. A cocana produzida na Bolvia e na Colmbia vendida por grupos armados locais para consumo no Rio de Janeiro, dan-do origem a um negcio violento que provoca milhares de mortes a cada

    3A partir do conceito de Presuno de Inocncia, contemplado pela Constituio Federal em seu artigo 5., inciso LVII: ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria.

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    ano na cidade. Munies produzidas no Mxico so legalmente exporta-das para o Paraguai e trianguladas ilegalmente para o Brasil. O mesmo vale para armas de pequeno porte produzidas na Argentina e no Brasil, que tambm acabam sendo contrabandeadas para a Colmbia, onde so utilizadas por grupos paramilitares e de guerrilha. A globalizao um fenmeno que, certamente, tem seu lado escuro. (2005, p. 04)

    De acordo com o exposto por Dreyfus e agregando a anlise de ziegler (2003), o desenvolvimento de uma economia paralela potencializa de tal forma as Organizaes Criminosas que muitos pases acabam sendo refns delas. Isso porque o processo de lavagem de dinheiro e reinvestimento no pas torna-se significativo, inclusive para reverter nas aes de governo.

    Nesse sentido, faz-se necessrio voltarmos os olhares para a atuao do xerife de western. Faz-se necessrio, tambm, aprofundarmos na anlise acerca do processo que faz com que uma autoridade instituda pelo Estado o subverta e passe a atuar de acordo com o modelo paralelo de governo.

    2. O que devo fazer, Xerife?

    O processo de enfraquecimento do Estado guarda certa relao com a in-capacidade do governo. Seja por deficincias endgenas ou exgenas, o fato que a repercusso dessa fragilidade, muitas vezes detectada pelas Organi-zaes Criminosas que passam a atuar no sentido de se alojarem na estrutura poltico-administrativa do Estado.

    Assim, alm de atuarem a partir do uso da violncia, num nvel mais bem estruturado, a preservao da rede criminosa mantida com base na corrupo da fora policial e na cooptao de foras polticas. Da, quanto mais frgeis forem as instituies do Estado, maior a probabilidade de que haja essa cor-rupo ou cooptao.

    Nessa estrutura montada, o xerife institudo pelo Estado, mas a servio da Organizao Criminosa, alm de estabelecer um padro distinto no ordena-mento na regio, consegue incrementar servios que favorecem a ao crimi-nosa. Desse modo, a falsificao de documentos (dentre eles, passaporte, que tem grande importncia para a atuao dos agentes do crime no exterior), fal-sificao e lavagem de dinheiro, comrcio de armas, dentre outras atividades, proporcionam uma porta aberta para o crime atuar (ROBINSON, 2001).

    Ainda, sobre a fragilidade do Estado, Dreyfus (2005) entende que a questo econmica um elemento fundamental para entender as razes para a criao ou estabelecimento de uma Organizao Criminosa numa determinada regio.

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    Nesse sentido, como o Paraguai representa o integrante mais vulnervel da Trplice Fronteira, a estrutura de poder das Organizaes tende a expandir, inicialmente, para esse lado.

    Em termos socioeconmicos, o Paraguai um dos pases mais pobres do hemisfrio, altamente dependente do setor agrcola (39% de sua popula-o trabalha em atividades agrcolas) e dos royalties pagos pelos gover-nos do Brasil e Argentina pela gerao de energia hidreltrica; o PIB do pas foi, em 2002, de apenas 8.518.400.000 bilhes de dlares e o PIB per capita de apenas 992 dlares (2002); os 10% mais pobres recebem 1,7 da renda nacional e os 10% mais ricos concentram 33,1 dessa ren-da; 52% dos domiclios esto abaixo na linha de pobreza. O tamanho da economia subterrnea, por outro lado, descomunal, 68% da economia informal; segundo a polcia paraguaia, 70% dos carros que circulam no pas foram roubados em pases vizinhos; e estima-se que em Ciudad Del Este a lavagem de dinheiro gera um volume anual de 3 bilhes de dlares. (DREYFUS, 2005, p. 14-15)

    Apesar de a fragilidade do Paraguai ser um elemento que, em tese, faria com que as Organizaes Criminosas permanecessem distantes do Brasil e/ou Argentina por serem pases que possuem maior estabilidade poltica e econ-mica e utilizasse essas regies apenas de modo estratgico para incorporar suas aes, o efeito fronteira muda completamente a lgica dos fatos.

    Isso porque, se para os Estados h certa dificuldade em conciliar polticas distintas no intuito de criar mecanismos que preservem a segurana coletiva ainda que alguns sejam criados, o passo seguinte, implement-los, muitas vezes acaba sendo de difcil operacionalizao , para uma Organizao Criminosa a fronteira surte o efeito diverso, pois ela pode atuar sem barreiras uma vez que a diferena conta a seu favor. A Organizao ainda se reserva o direito de, es-trategicamente, estabelecer-se na regio que lhe proporciona mais segurana e desestabilizar as demais com suas aes.

    Com o domnio estabelecido sob a localidade, segundo ziegler (2003), a es-trutura de uma Organizao Criminosa pode ser comparada a de uma empresa. E, no caso da atuao na Trplice Fronteira, essas empresas ganhariam um status diferenciado, pois conseguem atender demanda mundial por drogas, armas, prostitutas, pirataria, etc., a partir de uma estrutura de rede que asseme-lha-se de grandes empresas transnacionais. (ROBINSON, 2001; DREYFUS, 2005) E, fazem tudo isso sem abrir o capital para investidores externos.

    A manuteno de capital fechado est relacionada hierarquia dentro das organizaes criminosas. Tradicionalmente h a centralizao do poder e a designao clara das atividades de cada integrante do grupo. Tambm, devido

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    ao cdigo de conduta ser extremamente rgido, no h espao para falhas. Se o xerife manda fazer, deve ser executado, pois a recusa ou inabilidade na atuao pode significar o fim.

    O exerccio da violncia consubstancial a todos os cartis da crimina-lidade organizada. Ela exercida por unidades independentes, especial-mente equipadas e treinadas com essa finalidade. Tais unidades respon-dem diretamente aos dirigentes supremos da organizao.

    So variadas as suas tarefas. Elas garantem a segurana fsica dos dife-rentes operadores da organizao. Em segundo lugar, asseguram a disci-plina interna, executando sem piedade os traidores e os simples suspeitos. [...] Uma das principais razes dos lucros raro astronmicos acumulados pelos cartis reside no fato de que eles desfrutam de uma posio mono-polstica no setor em que operam. Monoplio obtido pela violncia fre-quentemente a mais brutal. (zIEGLER, 2003, p. 68)

    Assim, adaptando o jargo, que tanta fama alcanou no cinema4, para as condies de uma Organizao Criminosa que no pode contar com falhas, podemos concluir que ordem dada ordem cumprida!, seno o crime orga-nizado se desorganiza.

    3. Um convidado incmodo

    Correlacionado zona de fronteira, alm dos incmodos agentes do crime organizado, as mesmas caractersticas elencadas dessa regio tambm atrairiam organizaes terroristas. Novamente, a Trplice Fronteira se configuraria num espao propenso atuao de quem precisa do cenrio da ilegalidade e da fra-gilidade do Estado para acobertar-se.

    Contudo, faz-se dizer que Organizaes Criminosas e Organizaes Terro-ristas so agentes distintos, mas que podem atuar numa mesma localidade (sem atritos) devido compatibilidade de interesses. Normalmente distingue-se uma da outra pelos seus objetivos e no pelo modus operandi, uma vez que podem utilizar tticas semelhantes.

    Uma Organizao Criminosa comete aes ilcitas no intuito de alcanar seus interesses financeiros (GODOY, 2010), por sua vez, a Organizao Ter-rorista fundamenta sua atuao em interesses polticos. (WHITTAKER, 2005; DINIz, 2002) No entanto, ambas se confraternizam diante do cenrio de ins-tabilidade como o presente na fronteira, haja vista poderem utilizar a mesma es-trutura construda base de corrupo e violncia para obterem seus fins ilcitos.

    4A expresso utilizada originalmente pelo personagem Capito Nascimento, no filme Tropa de Elite (2007), direo de Jos Padilha, misso dada misso cumprida!.

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    Muitos estudos indicam que a regio da Trplice Fronteira seja extremamen-te favorvel instalao de Organizaes Terroristas, inclusive, os atentados Embaixada israelense (1992) e AMIA5 (1994) na cidade de Buenos Aires somente teriam sido viabilizados porque contaram com uma base (ou clula, como mais comumente utilizado) na Trplice Fronteira6 (AMARAL, 2010).

    A partir desses atentados, a regio passou a atrair mais ateno da comu-nidade internacional, principalmente depois que a inteligncia estadunidense detectou a presena de clulas terroristas vinculadas a grupos fundamentalistas islmicos. Em que pese o uso do conceito fundamentalismo7, muitas vezes de modo equivocado, o fato que a prpria atuao das organizaes neoterro-ristas8 busca na implantao de clulas em outros pases uma de suas melhores estratgias. E, desse modo, as facilidades presentes na Trplice Fronteira influi-riam fortemente nessa escolha por Al-Qaeda e/ou Hezbollah estarem instalados na regio. Francis X. Taylor ento Coordenador de Contraterrorismo do De-partamento de Estado dos Estados Unidos a partir de sua percepo de risco para a regio da Trplice Fronteira, entende que

    No mnimo h evidncias que elementos da populao da Trplice Frontei-ra esto se engajando em variados tipos de prticas criminosas organiza-das. Ns sabemos, a partir da cooperao prxima [que mantemos] com

    5Asociacin Mutual Israelita Argentina.6Apesar de o Hezbollah no reconhecer esses atentados como obra de seus agentes, o inqurito que foi instaurado na Argentina apurou a participao de algumas pessoas ligadas organizao libanesa, outras ao governo argentino e, por ltimo, diplomatas iranianos que estavam em misso na capital argentina. Segundo Jaber (apud COSTA, 2006), o Hezbollah teria planejado os atenta-dos em represlia morte de seu Secretrio-Geral, Abbas al-Musawi, por helicpteros israelense em fevereiro de 1992. 7[o termo fundamentalismo] designa algumas igrejas e organizaes protestantes, principal-mente aquelas que mantm a origem literal e infalvel da bblia. Neste ponto, opem-se atitude de telogos liberais e modernistas, que tendem para uma viso mais crtica e histrica das Es-crituras. Entre os telogos muulmanos, no existe ainda uma abordagem liberal ou modernista do Alcoro, e todos os muulmanos, na sua atitude perante o texto do Alcoro so, em princpio pelo menos, fundamentalistas. Os chamados fundamentalistas muulmanos diferem dos outros muulmanos e ainda mais dos fundamentalistas cristos no seu escolasticismo e no seu legalismo. Eles baseiam-se no s no Alcoro mas tambm nas Tradies do Profeta, e no corpus do saber teolgico e legal. O seu objectivo consiste em nada mais do que na revogao de todos os cdi-gos legais e normas sociais importadas e modernizadas, de modo a instalar e a reforar toda a panplia da sharia (a Lei revelada) as suas regras e penalizaes, a sua jurisdio e suas formas prescritas de governo. (LEWIS, 2001, p. 14)8Segundo Witker, o neoterrorismo consistiria num fenmeno composto por cinco elementos, quais sejam, um crescente carter transnacional, uma poderosa fundamentao religiosa e na-cionalista, elevada frequncia do uso de suicidas, alta letalidade dos ataques e marcada orientao antiocidental, especialmente nos grupos fundamentalistas islmicos. (2005, p. 228).

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    autoridades de segurana [Law enforcement officials], que membros do Hizballah na TF tm se engaja em falsificao de documentos, lavagem de dinheiro, [e] contrabando transfronteirio [contraband smuggling]. Ns entendemos que pode haver razes para nos preocuparmos com o envol-vimento [do grupo libans] no trfico de armas e drogas. Ns tememos que o dinheiro gerado por essas atividades ilegais esteja sendo usado para apoiar atos de terrorismo [realizados] por elementos radicais e subgrupos terroristas destas organizaes maiores. (TAYLOR apud AMARAL, 2010, p. 179) Grifo do autor.

    Retomando ao contexto dos westerns, a associao entre Organizaes Cri-minosas e Terroristas d-se por mero pragmatismo. Do mesmo modo que pis-toleiros rivais se juntam para lutar contra um mal maior, essas organizaes acabam utilizando estruturas criminosas semelhantes para alcanarem seus objetivos e o mal maior, nesse caso, seria o fortalecimento institucional do Estado. Assim, a afinidade est na maximizao de vantagens e isso se expressa quando ambas utilizam a estrutura de falsificao de documentos, lavagem de dinheiro, contrabando de armas e explosivos, dentre outras.

    Contudo, apesar dessa associao gerar benefcios mtuos, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, a situao tornou-se um tanto incmoda. Com a implementao da Doutrina Bush e o Terrorismo ganhando o status de inimigo nmero um do mundo, a regio da Trplice Fronteira passou a atrair muita ateno internacional. E, nesse sentido, o parceiro no crime tornou-se um convidado incmodo.

    Essa situao torna-se ainda mais preocupante para as Organizaes Crimi-nosas porque, como foi exposto anteriormente, o enfraquecimento institucional do Estado conta muito a favor no estabelecimento do crime organizado, contu-do, essa mesma fraqueza faz com que as lideranas corruptas do pas tambm se sujeitem a polticas preventivas contra o trfico de drogas, ou mesmo aes contraterroristas impostas por agentes externos. Do mesmo modo que os Esta-dos Unidos conseguiram fomentar uma poltica especfica para a Colmbia no intuito de conter o trfico de drogas, a Trplice Fronteira tornou-se um objeto de conquista dos estadunidenses que precisam tolher a ao dos terroristas.

    A estratgia de atores externos tentando caracterizar a Trplice Fronteira como uma regio de risco iminente, por isso, suscetvel a aes internacionais, no encontra eco nos pases da regio. Pelo contrrio, Brasil e Argentina cons-tantemente recorrem ao direito soberania para evitar que qualquer proposta intervencionista seja implementada, no entanto, no deixam de assumir a res-ponsabilidade por manter a vigilncia sob o local (AMARAL, 2010).

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    4. Vamos ao duelo

    Do mesmo modo que os pistoleiros de westerns se encontravam nas ruas desertas para travarem um duelo de vida ou morte, o Estado encontra-se no estgio de amplo enfrentamento das Organizaes Criminosas e Terroristas. Esse processo perpassa pela construo legal de um regramento que consiga inviabilizar a atuao dessas organizaes, e, nesse sentido, Brasil, Argentina e Paraguai tentam romper com seus interesses particulares para formularem acordos mais amplos9.

    Desse modo, o momento para o embate apresenta-se como irreversvel, porque a dimenso de atuao das Organizaes tende a se alastrar, uma vez que [...] no se trata de mais uma questo ligada somente represso policial, mas sim a um grande problema sociopoltico, que atinge no s a segurana da populao brasileira, como a estabilidade econmica e o prprio Estado de Direito (GODOY, 2011, p. 97).

    Nesse sentido, temos de retomar fragilidade da zona de fronteira para entendermos que as medidas que forem tomadas no sentido de extinguirem a zona sem lei s surtiro efeito se forem projetadas a partir de um conceito mais amplo e que abranja toda a regio e no apenas um dos Estados. Isso por-que, como vimos anteriormente, a agilidade das Organizaes Criminosas em se adaptar s mudanas muito maior do que a do Estado.

    preciso ressaltar, tambm, que o embate para o fim do status criminoso do local tem de passar pelo endosso da populao, seno, o risco incorrer numa luta legal, mas no legitimizada. Porque o crime organizado financia a economia local e se no houver um processo de compensao, retornamos ao paradigma inicial abordado em que a populao prefere se sujeitar lei do crime paralelo porque o atuante e, nesse caso, o grande responsvel pela economia local.

    Atualmente, Ciudad del Este no apenas o mercado negro mais impor-tante do continente, mas tambm a cidade com o terceiro maior volume de transaes em dinheiro vivo, somente atrs de Hong Kong e Miami. (ROBINSON, 2001, p. 14)

    Imbuda de todas essas caractersticas, a fronteira apresenta-se, de fato,

    como uma regio propensa tenso, ainda mais quando se toma como exem-plo a Trplice Fronteira. Nesse caso, a situao agravada e a possibilidade de

    9Existe uma gama de Tratados e Acordos que foram assinados entre Brasil, Argentina e Paraguai no sentido reduzir a atuao das Organizaes Criminosas e Terroristas, alm de Convenes interna-cionais que versam sobre temas afins, tais como lavagem de dinheiro, terrorismo, trfico humano, etc.

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    consider-la uma zona fora da lei se materializa a partir da constatao de que as Organizaes Criminosas criam um estado parte sob s