FUBINI, Enrico. Estética da Música

91
() ~t . ) ~ J J J J 'J J .J .J .J .J .J .J ? (~ --.J --.J J -..J -..J .J -..J --.J I IJ -..J. ,.J ,~ .~ J rJ f.J LJ J CONVITE À MÚSICA L Guia dos Estilos Musicais, Douglas Moore 2, Diálogo com Stockhausen, Karlheinz Stockhausen e Mya Tannenbaum 3, Estética Musical, Carl Dahlhaus 4, Breve Dicionário da Música, Ricardo Allorto 5, Pequena História da Música, Norbert Dufourq 6, Os Caminhos do Jazi, Guido Boffi 7, História da Música Clássica, Guido Boffi 8, Do Belo Musical, Eduard Hanslick 9, As Formas da Música, André Hodeir 10, A Linguagem Musical, André Boucourechliev 1L Guia da Ópera, Rupert Christiansen 12, Mozart. Vida, Temas e Obras, Nicholas Kenyon 13, Estética da Música, Enrico Fubini Estética da Música

Transcript of FUBINI, Enrico. Estética da Música

Page 1: FUBINI, Enrico. Estética da Música

() ~t .

)~

JJJJ'JJ.J.J.J.J.J.J

?

(~

--.J--.J

J-..J-..J.J-..J--.J IIJ-..J.,.J,~

.~

JrJf.J

LJJ

CONVITE À MÚSICA

L Guia dos Estilos Musicais, Douglas Moore2, Diálogo com Stockhausen, Karlheinz Stockhausen e Mya Tannenbaum3, Estética Musical, Carl Dahlhaus4, Breve Dicionário da Música, Ricardo Allorto5, Pequena História da Música, Norbert Dufourq6, Os Caminhos do Jazi, Guido Boffi7, História da Música Clássica, Guido Boffi8, Do Belo Musical, Eduard Hanslick9, As Formas da Música, André Hodeir

10, A Linguagem Musical, André Boucourechliev1L Guia da Ópera, Rupert Christiansen12, Mozart. Vida, Temas e Obras, Nicholas Kenyon13, Estética da Música, Enrico Fubini Estética

daMúsica

Page 2: FUBINI, Enrico. Estética da Música

Título original:Estática delta Musica

© 1993 by Societã editrice li Mulina, Bologna, Nuova edizione 2003

"!,radução: S.md:a Escobar

Capa de FBA

Depósito Legal n' 2iu521108

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na PUbÍicação

FUBINI,'Enrico

Estética da música. ...:(Convite à música; 13)ISBN 978-972-44-1403-4

CDU 78.01

Paginação. impressão e acabamento:GRÁRCA DE COIMBRA

paraEDiÇÕES 70, LDA.

Setembro de 2008

ISBN: 978-972-44-1403-4

Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesapor Edições 70

EDIÇÕES 70, Lda,

Rua Luciano Cordeiro, 123 _1.0 Esq." - 1069-157 Lisboa I PortugalTelefs.: 213190240 - Fax: 213190249

e-mail: [email protected]

www.edicoes70.pt

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,

no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,incluindo fotocópia e xerocõpia, sem prévia autorização do Editor.

Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passívelde procedimento judicial.

ENRICO FUBINI

Estéticada

Música

k.

Page 3: FUBINI, Enrico. Estética da Música

),..

)

JJ).JJJJJ

.~

J)

1

.J,J

.~

J

~J

~ ...J.,0

:'~00-.J.J'-.J))

. "

..~,I'.l .

Introdução

II.

Este pequeno ensaio pretende lançar um br~ve e sintético olharsobre problemas estéticos e históricos damú.ska, problemas com-._-.- ..~,'.~-"" ...' ". -. . .,,",

plexos e com imensas implicações não só nº.4º-!JlÍni~~ ..lli~como também no <,ta.J!istóris,_da sociedade,. do público, dos jntér-

.p'~ete.s, etc. . .... ~ .. _.-_.- --.

O volume está dividido em duas partes complementares entresi. NaJ~_rimeira quisemos abordar oSQr!:ncipªisprº.]:)!~.ll1~S estéticos

)J.a.músj,Ça, .vistos sobretudo"cleuma perspectiva teóri<;..ae dOP9.~t~Ae:~~t~da contemporaneidade. Procurámos, por isso, identificar

. algunspõn'tos~h~~~ q;e~os ;~uxiliassem a orientar no intricadomundo da música e dos seus problemas, mas numa óptica que pode-

',ríamos· classifiç~~ de género !!lJ~!Qi.§~jpJ!uw,~o~ân~o, portanto,'

por es~!~~~~f qu~~.;~~:t~~~~ POLCS!é.tif...a ~u~Sª.J,t&~s.Q~JiP.QS~de prob~~~ ..~L~1.aél,tinentes>)"""/ '. '. .·-A-S,egg.I].da2aJ1.ê:":aeC'Odi"directámente do esboço dos proble-mas sublinhados ~ primeira: ~ brevellist6ríã-a~~estéÚca ~~'sié~i

-iiiçaaãrieslas"pagiiii:is~-de'fà:cto, baseia-se numa sua acepção ampla'~e interdisciplinar, Tentámos reconstruir as· grandes directrizes dopensamento musical ao longo dos séculos, desde a Grécia An"tigãaté aos nossos dias, 'colocando em evidência, p;~-'yezês:ãs- fo~tes

. niáisrelêvãntésriesse âmbito. Comefeito, não existe a priorÍ um:-0ect~;~~p~~iÚ~~-~~cié;;e'encontrem os textos-chave do pensamento:L mu~ical: cada época privilegiou este ou aquele aspecto da música,

--_ ••.-1-'"

7

Page 4: FUBINI, Enrico. Estética da Música

i! '

ESTÉTICA DA MÚSICA

de modo que pode ser bastante difícil encontrar, principalmente noque respeita ao passado, as f~~siilill{ca.~iYi!.~par~~çonsti-rniL~~ ljp.l:la_s_d.~_1Jrp_p~nsaJTI~J.!.tomusical que mantenha uma. certacoerência histórica. de _d{~senv~Ivi~~Jiio.-· ------.-- ------ ." ... '-

Este ensaio não se dirige aos especialistas, mas sim aos quedesejam ter uma primeira informação num campo de estudos extre-mamente vasto e, sobretudo, uma perspectiva ..de leitura para seorientarem nos problemas que surgem, e surgiram no passado, noâmbito de uma arte complexa e multiforme como a música, bemcomo nos seus aspectos estéticos, filosóficos e, em lato sensu,

.culturais.

.•.

./

Primeira Parte'

Os Problemas Estéticos e Históricos..- .~-_.---------------

da Música

8

~.

Page 5: FUBINI, Enrico. Estética da Música

j)

)))

)

)

)

)

)

JJ)

)

)

JJ)

.J.J

J)

JJ

Jj

:' )J))

J'J)

)

;,' '.>:'~'<:(.',,LOiL<t:~:V""'~:"'_'.i'P"'.7:'~~"''',.~':'l<:%ii-~~.·-:'!'""-r~",,,~,'.''''''1''''\",;:",-., •.••".,_,,""' "'"'l''"''t .,

. Eç-t é~'c~ yY"lu't: IlAL . ( XII)':>

/.."

Capítulo 1

As Características da Disciplina

Quais os limites da estética musical?

o que é a estética musical? Pode parecer uma pergunta ociosae poderíamos responder que obviamente todos os livros que expõemteorias estéticas sobre música fazem parte desta disciplina, isto é,da estética' musical, Mas a resposta é claramente insuficientepois remete-nos para outra interrogação: quais são os livros quetratam da estética musical? No que respeita a tempos recentes nãohá grandes dificuldades: há uni número significativo de livros,ensaios e artigos em revistas especializadas cujos títulos aludem a"

..problemas de natureza estética atinentes à músic'!J) seu conteúdo~ ....._._._--_._-. - _.- .

é claramente indicado pela própria página de rosto, que não deixa'qualquer margem ide dúvidas: Estética da Música, Música eSignificado, Filosofia da Música, O Belo Musical, A Expressão y

Musical, etc., são igualmente hipotéticos títulos de livros que per-". .

tencern a esta categoria de ensaios directamente ligados aos proble-mas estéticos da música. No entanto, se recuarmos no tempo asdificuldades aumentam na medida em que, como se sabe, a própriaestética nasce como.~is~iJ2!iE~.!ilo_~<5fi~ªautônoma somente no fi~?ldç. sécui~}<YiU~e"~~estética ..~,~.música desenvol veu.-s~ ~.Om9.pos_te-rioresp.e~ifLc!ls:ão da estética não ant~ de meados do século XIX--~~.-._--~,:;..~-. - .. - •.._-' .' -- ----._ .._" .. _-- ".-.. . --~._-~

11

Page 6: FUBINI, Enrico. Estética da Música

L.--

com o famoso ensaio deE"JI?n~!ic~,_ 9_B..l!lqj1}fJ.~ç:.qL(]~~~):Estaríamos tentados a concluir, como fez em tempos Benedetto-, .Croce, que a estética, enquanto reflexão autónoma sobre/arte, é umadisc~plina recenf~ tal corno, - àind~ com n~ai~r raz.a6: a esté:icamusical na qualidade de subsector da Estétlca.VMms de vinteséculos de reflexão sobre música seriam assim apagados com basenuma doutrina que estabelece de forma rígida, a priori, o que seinclui ou não em tal disciplina, depois de ter traçado autoritaria-me~t~ os seu-limites segundo a orientação de uma filosofia bemdefinida. V ?- ' ", , '

Talvez Um critério mais empírico fosse de maior ajuda: criaruma IgreTI1àmais larga, mais abrangente, que não conduza à con-~....... ) .

clusão àbsurda de que a reflexão sobre a música se iniciou há doisséculos apenas~a estétif~.E1_u§,~calfor definida segundo critérios

'mais empíricos e se, portanto, indicar ..9.ual ug,JiPo ç1~x~tl~~ª-o\ ~obre...músifa, sobre a sua_natureza, os seus fins e o, seus.limites

corno fazendo parte da disCipÚn-a: então o século 'xvIrr~f;gur~~s~--nc;;á como uma\v;';agemna reflexão sobre a arte e sobre a música;'uma das muitas ~írágens que houve ao longo do pensamentohumano desde a Grécia até aos nossos dias, uma viragem não maisimportante, nem mais aparatosâdo que muitas outras. Claro que,assim, a estética musical aparecerá como uma disciplina com limi-tes muito mais amplos, ainda que ,eâ.hatidôs; e, em determinados,aspectos, incertos. Contudo, o ,~~~~:'..~-~·_~~t.:zas nã_?..R..~~__f~~er ,P{J

. . ~om3~'.E".J.ç.'!!!'-"·_Q··".tj~O_""!1'>lidarle.e. da=is.!~~.>a:!llstÓri' a.V : I

'-f I

'~

~i

ESTÉTICA DA MÚSICA

I :'L

A música e as outras artes

Os limites da reflexão sobre a música talvez não sejam tãoesbatidos quanto amplos, bastante mais amplos do que as reflexõesparalelas sobre as outras artes. Mas, a partir do momento em que seestabelece um determinado tipo de separação ou diferença entre amúsica e as outras artes, toca-se num tema bastante complexo e

12

I

i

AS CAR/\CTERÍST1CAS DA DlSCIPLINA )

)

,)

I)

)

)

)

'.J.J

)

)

'.J

)

I)

J.JI)

I)

I)

I)

)

!)

I.J

. (

I)

)

I)

I)

( )

I ).d:

delicado que afecta a relação entre as várias expressões artísticas.Sustentar ue a música é uma art~ articular, com característic~spróprias que a tornam diferente das outras artes, significa algo de- -- - -muito comprometedor e, de qualquer das formas, representa u~a

'\ !omada de posição que rara um crociano, por exemplo, pareceriaabsurda, Mas o que nos interessa aqui são as implicações de talafirmação no plano de uma investigação histórJ.f9-,com o intuit(ui~"identificar as fo~têsdó p'~;;sam~;t;Sob~~~rtúsica: :':" ,

. . '" ~~.. ""-,_ ....•-_... . --.~"-.- - ---~--"""'~.~"

- Quando S~mann, no início do século XIX, formulava pelaboca de,J:.1?_r:~.~\aDi,uma das personagens imaginárias que aparecemnos seus escritos e que representam um dos aspectos da sua perso-nalidade, o famoso aforismo: «A estética de uma arte é igual à das,Q]lJr.as;~SJigif~Le_11:1 I~.?:!~~\a»,d~-día"iml- moctode'considerar amúsica e, em geral, aaú§, en uanto fruto de uma.mes.m.ª~actividadeSriad~ra~~~~~-do_ h_o,gJ~,gJ.Q~_pod~ellcaJJJ.ii.LirNli~;~~'mente numa matéria em~~de Qu.!ra....E.o detrá~ de Schumann~avi'li~-pôitaritO;' úiria CUltura' qu~d~rante séculos considerara amúsica como uma forma de expressão à parte e, de qualquer forma,infériorerrrrelação às outras artes, considerando-a muitas vezesprincipalment~ SR>m~fuester; com muito pouco em comum corri omundo da arte\lPode~;s-a;sim compreender a tomada de posição'de Schumann e de muitos outros românticos no sentido de recupe-

rar a música no reino da arte, de forma a colocá-Ia numa posiçãoprivilegiada. Todavia, não nos podemos esquecer de que, no fim doséculo XVIII, a grande maioria dos pensadores considerava a música~e m<:nor, com u~ valor de forma alguma comparável àsartes maiores, como a poesia, o teatro, a arquite~tura, a escultura e~pi.9.tura. r;

,~r~,,~~:'ç?"

A história da música: uma história à parte

A história da música até ao século X1X foi, de facto e de direito,uma história independente da das outras artestÁo longo de uma

13

Page 7: FUBINI, Enrico. Estética da Música

))

)

)

)

)

)

)

)

)

j

j

))

~)

J

)

)

.J

~

J)

j

J)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

~tradição antiquíss~~que r~monta aos t.çmlR<lL<i<LGréciaAnti~,~_,. \)músi~'1.[O~.ê~~~~~ C~~~?~.!"~~pgu;iiYerso§ ..J.llotivo~,..Jl.rnª-~~ \ '@dotada.d~Jedu~ldo ?U ~ulo poder ed~~ati~o em~la ão à oesi,!?_o t::'que veio reforçar a ideia de que a musica e um tipo de arte à parte, . s.-p<?muma história própria, com problemas específicos, uma arte que 'põe-emjõgõ·activiâadês~e...reci!12Üyidades diferentes da das artes da ~palavra, bem como d~;artes da -pi;~ra-~·-'d~-;quitectura. Uma ;;..

\ 'investigação sobre o lugar da música e do músico face às artes e aos ~( outros artistas ao longo dos séculos, na civilização ocidental, seria -6 .

. ( de grande ajuda à compreensão do fenómeno musical na sua 6 i

\\~l.~b~o~a::~ motivo, então,:~ÚSiCa_gOZou de tão pouca consi-Ai

deração por parte dos filósofos, dos literatos e do próPTI.·o.P.ÚbIiCO? ~!Na verdade, a música, mesmo numa análise superficial, sUrge por ~

\::::. mais de um rriõtívocomo uma arte com problemas absoí~t~ente cd>""b específicos, não comparáveis aos_çte~~llhU-ri;.a'O?tra,.~e.., pelo que 6---.J não nos surpreende que efectivamente tenha ficado confinada, de ~x certa fo:ma, ~ uml1ilJ.b~!d~rante tantos séculos. Mas, perguntama"~·· 'I . '. O

~ {-nos hOJe, @.:~~ê,P'~s~~~-ªa.Çle..§ .sI.l! ~~~i~~s;1icientes Rara justifi- •. r(Y'. .tI- ~~are~ta ~ep~~ç~o? E ainda: porquê uma artenão só separada, ma_s__~ , 'E..tambem desconceituada? " C::!--r - --~o século xvm, as_~~s foram d~vididas em artes do temp~e '1 ~::::.1 artes o espaço, e amú.~j~.!l, a aceitar-se esta claSS.ificação, I?erten~e I

.:$ sem sombra de dúvidas às, artes do tempo, isto é, às formas de !~ l-expressão 9~e têÍn-~omo ~~teiià·ti~S;:....Mas ~ntre -as'artês-'d~ i

O- iem:pó-,'âmúsica ocupa um l~garà pái!e'-Com efeito, as artes da i.

ç J)~lªYIª,tamº,~J!.l:élas iÍ.rtes-dpte.inP9;:~!l1 muito poucas ãfinidade~·1~ cClI?_a.!p~s~ca.; Antes dern:ai~..? _c~~positor de~~Rossui~ um~i~a~i

. ~de competência e, portanto, uma especialização bastante. mais.ele-y-ada-.e..mrelação _p.Qr.~xem.e!.o, a umJiter-ª~;_-ª.léIl!j.o l!lais; a,música, para se c!ualiza~~~pós ~ sua criação, necessita sempre do_~é!F:~te, figura aliás presente em outras artes, como o teatrL Masevid~temente que o intérprete musical tem características que o,distinguem de qualquer outro tipo de intérprete,_dada a dificuldade

-t,....,

'-ÇL~

~ s

14

r, AS CARACTERÍSTICAS DA DISCIPLINA

\.,I

.I ga sua tarefa, o al19~nJvel de ~Reci~za"ção exigido.,..-ª,delicadeza e,a Ies.p.9I1~abjli~.e~.J!~ ue é investido a artir do momento que lhe- - ----~------- ..,

é confiada a missão de fazer viver a pró ria obra musical e de atransmiti;-~~ pÓblico, pois sem ele a obra musical ~ ~da_e de fastomexistente, Por fim, no que diz -;espeito ao ouvinte, a música,

'- ---- ---'" .•._--~---embora seja d~P!2~ida de elementos figurativos, não reproduzindonada de determinadü;'Sêíidõ- 4~~t).tuJÇ[~·"dé qualquer virtude

~~a,ti~ê:? POJi$._ll.Lp-ºré!p.-~_~!~L~~~?"-,e~?t~~~·=-me.sinõpã1róouvinte mais desprevenido e sem competênciasmusicaisespecí-.fi.~~s -:, desconhecido em qualquer outra arte. E~sas'~afacttirístiêâS··

.... ". _.----_.- .•..-._-_ .•., ., ..,.-. ,--,.- ..... '.- .. -".- --- .

são apenas algumas das mais flagrantes que diferenciam ainda hojea música das outras expressões artísticas, mas que são suficientespara fazer compreender como é que a música se desenvolveu aolongo da história seguindo trilhos autónomos.V

~ Portanto, o elemento que mais contribuiu para man~<?!-~..~~~a~~3!ad~ do percurso dás outras arteséoaltograu deespe~!?li.?;a.çãoté~!1Jç.~~ê ela ~erige quer ão-rriÚsicô ê;;-mpõ~it~~: quer ao-~dsic~

'inté!1?I,~t~.,J}mpoeta pode ter'fr~q~~~tqd~-~-;;~~~;-es~ola qu~qual--- ,/quer outro cidadão e tomar-se um grande poeta, ao passo que um'.'músico, ai~da que medíocre, teve, e:n ~odo o caso, de ~requentar/durante muitos anos escolas daesveclalldade que lhe ensinaram os'rudimentos do ofício, ou seja, a, linguagem específica da música. ..Foi precisamente esta especificidade do ofício de músico que gerou J

uma realidade de facto separada das outras, quer na profissão dequem. a pratica, quer na consideração dos filósofos, quer no juízodo .J?~~I~~gjPraticarnenteaté aO·fim do século XVIII, nunca ninguéifi\~ . . -IIcontestou essa. ,d[~ce~f9._~~,~~~ic~; aliás, todos os teóricos e .'filósofos da música nunca puseram em dúvida, nas suas reflexões, !~

que operavam no interior de uma lógica que dizia respeito, apenase exclusivamente, à arte dos sons. A idéia de Schumann, segundo aqual a estética da música é igual àd<iS:outras artes.é..r.e.yolucioná:r}g,,.--subverte juizos arraigàdós na séculos, influenciando profundamenteo pensamento romântico, no entanto, não foi recebida pacifica-mente pela globalidade do pensamento estético sucessivo~ por

15

Page 8: FUBINI, Enrico. Estética da Música

16 17

)

)

),)

. ))

j

I)

)

)

'Jj

I)

,)

J~

J

J'J.)

JI)

j

r)

~. I)"

J)

)

j

)(j

I)

,)

)

A interrogação «o que é a estética da música?» poderia, então,transmutar-se , numa interrogação bem mais complicada queremonta à origem «o que é a música?», ou, ainda mais concreta-mente, «como se encarou a música na civilização ocidental aolongo dos séculos?» Evidentemente, a reflexão, a qualquer nível,

. sobre a música detém-se em aspectos que são considerados como os.mais -~elevantes e-pertin~;tes de uma dete~n_a~-~p'oca. Nã~e

trat.a apenas de um problema de destaque, na medida em qUrPri '1-legiar um aspecto da música em vez de outro significa já co ro-meter-se com uma concepção bem determinada de música.

Portanto, cada época histórica tem feito corresponder à palavramúsica realidades b·astãn·te·d:i~'~r~as. Uma primeira a~uaç~

ESTÉTICA DA MÚSICA------------------------------------------------~.~ ,,.~

um lado, o pensamento mo~erno_~onhe~u,_ sobret~-2 nas su~ :::(.:..;...r' ainda que sumária, do que se entendeu ~3ilQªi..PQC(l, na nossa~c~mponentes idealistas, que a músic~ enquant?_~~eJaz paI!e d~ u:n ~ 'S civilização, pelo termo «música» pode rep~~s.~n.~L!!rpª-P!~~~ra e~rande universo que é o_da expressão artística; por outro, n~o ~ei: Gf5 ~ esclarecedora ~proximai~_à disciplina mais específica e delirnitad~"._xou de levar em conta as peculiaridades da linguagem musical e do ~ -ó que é a ~.§_téti~~__!!l.ll?igl. Com efeito, ª estétis~!21l]sical, como

i status particular da .=núsica, quer do ~o.nto de vist; da sua produçã~, ~ ~. J' VimO..S.., .n~~.0..é.1l.!:~1~d~sciPlina-~efin!~~ ..~I?:.~e.:rr:,~~.~ig?r~~.~s.!ll..a.:-:~;s.~m-I g.uerda sua execuçao e ~aAsua fruição. Por vezes, pare~eu ser m~s ~. ~/ ~~zª.~emº.-_g-~1..~f1~.}.~~~.J.I.1..t.~r5iI.?.3J2.l!12aL~..ê-.,E2J9-,}-~~~~ __

oportuno colocar em eVIdenc.la os el~~entos cO~1Unsda e:pressao x: ~I~~s.ofico eap~p.a§ uma_.~~J2..2~~s :-S..11~~semp're_.ª __!1!~l~.musical, outras vez~s os mais espec~flcos relativamente ~s. outras ~ l~~~rt.ª!l..~~..:.. Sendo, Y0rtanto,,um ?"aço h.rstonco do mo~o como se \:artes, o que dependia, em larga medida, do contexto histórico, da . configurou a reflexao, ou melhor, o cOI1JuntQ de reflexoes, sobre a .matriz filosófica, ideológica ou estética dé partida. Portanto, 'ã' 'música ao longo dos séculos, entrelaça·-s~·i·~~~Ú~~~I~~~rte, por um

\ e_~ecil~lizaç.~o l! que foi i condenada _a ~xjJressã2. mu~iç_al f.o{ lado, com a própria história da música em sentido lato e, por outro,i frequentemente também a causa, em particular no J2assado,. da sua com todas as disciplinas que de alguma forma fizeram .damúsica !

i~esp:?m.?~ã~a (~es!Ú:\á l2ãrt;- do m_omel~t;-~~.qu~-n~ mú~i~aj -a .u~de..certo~ip1eresse: a mat.emátiç..a,-ª-12sic910gi~:_ª_Ji~i,ç;~:\ actividade prática parece prevalecer sobre a ideativa e artística, não : acústica, a~pecul~ção_NQI2.ljamente filosófica e estética a ,s..Qciojo-.! é de surpreender que, desde a Antiguidade g!:~ga e ainda a2..IS111~o ]gia da música, a linguística, etc. De modo que é fácil perdermo:.no§.\ de muitos sécu~os na_Id~e Mjdi~ até ao Renascimento, fazer iii_~?~e}_~~[~ni?j.e.r~.t1e)(ê).~s.Contudo, não" há dúvida- de- que sé~\música tenha sido considerada uma actividade servil e indigna de .mú'sica suscitou interesse e 'atraiu a atençãode categorias tão dife-ium homem livre e culto. - - . . .rentes de pensadores, significaque éIap~6pri~-é-~;;~;~;Üdâdê~.p~QÜ-

~.. . / :0~:-:;:~I~~r~~~5~:~:~:!!;~1~~:.~:::~~a!~í!~:~:~a:p:~.

A música, prisma das mil faces histÓ~)cipiivi1egl~ um aspecto musicalem vez de outro: áprócurã'de um'fiõ"côridutõ'f-unitáÍiõ-~~~t~complicada ~~~'lltürado pensa-mento pode partir, precisamente, da constatação de que a atençãoem relação à arte dos sons sempre recaiu sobre aspectos maisconsonantes com os interesses predominantes em cada época. Se amúsica se apresenta um pouco como um l.2E~~!?~_E:.~.!!~_~~.~,e.ta.do,aig.e.!!~!fiç,ª,ç~.9..4o~?'p'~c~o~Il1__que se. COI.~~e.Ilt!()Uem cada períodoconstitui, já por si, um traço histórico de fundamental importânciapara reconstruir o pensamento e a ref!e2C.ã..9sobreã'músicaao longodos séculos.

Sob esta perspectiva, se a música atrai o olhar, concentrando-onum aspecto em vez de outro consoante as épocas históricas, ocontexto em que está inserida, a função social que cumpre, o tipo derelação que estabelece com as outras artes e, em particular, com a

AS CARACTERÍSTICAS DA DISCIPLINA

Page 9: FUBINI, Enrico. Estética da Música

))

)

)

)

"

ESTÉTICA DA MÚSICA

poesia e a literatura, é óbvio que consequentemente encontraremosartigos que têm a ver directamente com a música entre' as maisvariadas categorias profissionais: do filósofo puro ao pedagogo e aomoralista, do matemático ao físico acústico, do crítico literário aopolítico, do simples amador de arte ao crítico especialista e aomusicólogo, do médico em sentido lato ao sociólogo. Os maisrecentes desenvolvimentos da música, em particular nas últimasdécadas, podem sem dúvida despertar novos interesses e novasatenções pelos seus aspectos inovadores em imprevisíveis catego-rias de estudiosos, como no caso da música electrónica e, maisrecentemente, da computer music.

Se tivermos presente a natureza complexa do fenómeno musi-cal e, por consequência, a pluralidade de competências e de inte-resses que'suscitóu, não é de surpreender que uma reconstrução dopensarnentounusical através dos séculos se revele altamenteproblemática. '

A estética musical em sentido estrito, isto é, o estudo predo-mimmtemente estétic;da mú~ica,- é, portant\?, extremam~nte_ redu-

-tor e geralmente pode, quando muito, dizer respeito a um período ~muito limitado do pensamento musical, na prática estes dois últi-mos séculos: a época em que, com o aparecimento e o desenvolvi-mento do pensamento idealista, ° valor estético se tomou um valorautónomo, digno de uma consideração à parte. Por isso, em vez defalarmos de pensamento musical seráIl'lais adeql:la~o fal~d~1íI.stó-ria do pens~m:eii!º}n_~.s_t~~-êõn~eit~}I).ais va~o ~~ que ~~~gyi~aabrange uma realidade histórica muito mais complexa e articulada.

-: • -.:. - •• 0 ::- •• _ •• ~ .-_.---~ ••• _ •• _- •••• _----:

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

j,)

j

) I'a,

.J

)

.)

)

)

)

)

) l)

)

Quais as fontes para uma história da estética musical? .

,Mas para abordar problemas mais práticos, para reconstruirum percurso histórico do pensamento musical, onde deveremosprocurar os textos, os testemunhos, os tratados mais pertinentes semcorrer o risco de excluir fragmentos ou partes importantes da sua

18

IAS CARACTEIÚSTICAS DA DISCIPLINA

história? Com base no que foi dito anteriormente, não há umaresposta unívoca/a este problema. Cada época tem os seus ~~~!?~em->:que o pensam~nto sobre a mÓsica \electivamePtese ~x ress'oU: /

.;..:,..;.;.". ,..."..~ ••••. ". ,_ A __ ~._ •••••• ,. •• _, •••• -.". ~.--... ce- ~~"....::;;;.,..•. .--.:;---_ '

textos esses que não- tratllJn,necessAri,a .~."d.i:[eÚmI~~i~i;.,E!úsic~:Para dar ap~~as alguns exemplos, n!!-Qr~ç.iaA.t:.t!ga dá époêa-áiiréá,as observacões mais interessams:,s.-S"obLe....!!lúsica~llç9I1tram-se nos

~~!,;~~!~~;d~j~~J~}:,~;:~p;;~~~~~~~!~~~~:~o~~por acaso que, num mundo em q~~~iilõsofia da sociedade e osinteresses éticos estão no centro da atenção e da especulação filosó-ficas a música também é do interesse do filósofo, na medida em

ue ~1~~~irtêllae·qúê~-essa'eiê1ey.ântê:'do~po~t;d~- v-ist.aeducati 'L;....para o hOp1e~ e para a sociedade. Não nos surpreende, portanto, que;;-fál;de mÓ;ic~ ~~R_~pdP:@.a.A~.P.l~t~()en~ p'ol~tjc.?de Aristóteles,abras centradas no valor da política, entendida coma projecto deõrganiz-a-çãoetiêã-dá~õcíê'd~de humana.Do mesmo m_odo, n~époc_a"alexandrina, quando o interesse do fil~ofo s~.i~~()~~_20S grandes

-têillás -et100=Sc;{ais p-i;a -üs'-p«;bl'"emas do indivíduo _e da sqa'psicoloa!a indi~idual, a ~úsiêa tõrna:sê'Óbject;-d~- ~~ novo tipode

o ...0 __ •• _ ••• _ •••• ~ _ • _... _ • __ ~ ~

. a~ençã.(t o das suas possibilidades c0Il:s~~a.9.~ para a a~a hyman~ .-

~: por outro lado, o da sua .nat~~eza. d~ealid_~~:p~L~_-_~~~~tic_a, ".objecto portanto de estudo científico+NaIdade Medra, a situação-- ,\

muda radicalmente. Com efeito, a partir do momento em que amúsica adquire uma relevância quase exclusivamente religiosa.jgs,observacões mais in ressantes encontrar-se-ão nos textos de_.3 __ \. _

devocão reliziosa em como nos textos de natureza pedagógica,. _.3 _ b_ ~ _ _ _ _

pois um dos problemas mais prementes era o ensino prático dai)música e do canto .aos fiéis, E, enfim, uma vez que a música seconfigurava essencialmente como música vocal, isto é, como entoa-ção de uma passagem litúrgica, os textos de gramática, de retórica,de métrica constituíram muitas vezes fontes de primária importân-cia para reconstruir ° pensamento medieval sobre a música.

Ainda um último problema relativamente às fontes de umahipotética histórica do pensamento musical: as próprias obras musi-

19

Page 10: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA \ ))

)

I)

)

)

I)

)

')

j,)

~)')

)

'j

'J)

:.J)

)

'.)

.)

,)

I)

J')

)

)

j

(j'j

AS CARACTERÍSTICAS DA DISCIPLINA

cais podem ser relevantes sob esse ponto de vista? Uma resposta aeste quesito ambíguo não pode ser senão proçlémática e, portanto,não se pode reduzir a um sim ou a um não~eita a devida ressalva_~~if~r~!lça e da distância entre obra de art~ autêntica e qna!qJJ..ertipQ de reflexão sobruJa, não podemos deixar de sublinhar asimplicações recíprocas, a trama subtil que se constitui em torno daobra de arte: esta não é senão um centro do qual irradia, como uma

d mancha de azeite, toda uma série de reflexões, estímulos, solicita-ções .para ulteriores aprofundamentos e inclusiveimitaçôes. Se aobrli-RJusiç<il, assim como todas <:lSobr~SÔé!Nte, é como um~

":ce~trado de "ensamento de émõ'ç6es, dehist6dà vividâ-g~~"s·é~ir.e-,-~agi.Jla .;um~ fO!!]1a arÚstí~~: ta}vez'jiãô'·s;.'a aITisc~do'pensar que a pró rÍ<LQJ?r~t~mpémR.9de2-ugerir· a guem a sabe._0- _.

.obseLY~ ad~.t!ª-<iamente,_ reflexões _sobre-º..-wgjs.<.çjQ. que suben-tende, sobre o significado que o.artisra a!libui à_o12[a...-e,_el1L~r:al,_~gl:Jreo prÓPI!º sentido Q.a.'!f1:("p()routro lado, há também que fazera devida ressalva da distância' e da diferença entre obra de artee .a

\. ,ref.l~xão sobre ela realizada pelo seu próprio a1!,!Qr~M~;:a;-;.ne~o",,,tempo, como podemos não ver as implicações subtis, as evocações: e o jogo de espelhos entre a obra e o pensamento do artista! Por isso: podemos afirmar, com todas as devidas cautelas que o caso exige,'"que não só as reflexões do artista sobre a sua obra, mas também as• próprias obras se podem tornar documentos de uma história do, pensamento musicaL'-".--"-E, por fim, poderão fazer parte desta história outros documen-

'.'tos, talvez ainda mais indirectos, mas nem por isso menos impor-tantes: o gosto do público de uma determinada época, o estilopredominante nessa época e ainda mais a modalidade de execução

; e de fruição da música. Todos estes elementos serão indícios impor-•tantíssimos para reconstruir a complexa trama histórica em torno da, 9..11alse tece o pensamento musical ao longo dos séculos,,-

Talvez nas observações acima expostas tenhamos alargado emdemasia o âmbito do pensamento sobre a música; talvez o tenhamostornado demasiado fluido e indetenninado; talvez se tenham deli-

neado limites incertos para uma disciplina que, ao invés, parecia serextremamente especializada e determinada nos seus objectivos.t;I'Todavia, se nos déssemos ao trabalho de tentar traçar um quadrohistórico do desenvolvimento do pensamento ocidental. sobre amúsica, aperceber-nos-íamos bem cedo de que os limites dadisci- .plina,' tal como foram traçados, não são demasiado amplos. Comefeito, mais do que de uma disciplina trata-se, como já dissemos, deum cruzamento de disciplinas, de um lugardeeonvergência demúltiplos interesses, de um terreno móvel, cujos limites devem serfixados e delimitados periodicamente, sabendo bem que devemosestar dispostos a revê-I os e a mudá-los sempre que necessário.A expressão «estética musical», embora habitualmente seja usadapara designar as reflexões sobre música, é, como vimos, desviante,na medida em que, à letra, parece restringir o campodas reflexõesà sua dimensão estética. Todavia, é evidente que há muitos outros".domínios pertinentes para a arte dos sons e que o e~té~~~..~r~p~;~~',-------.----, ..'_ .._.- .._ .... ,. . ..._-- ,,.,

um dos aspecto? da músicariem sempre o mais importante: centrara-~t~~-çã~exclusi~ame'nte-~ele faz pàrú~-âé~um~'id~ologi~-~ de umafilosofia que se vangloria de uma antiguidade de pouco mais de doisséculos,

)

)

20 21

Page 11: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-'y)

)

)

)

)

)

)

)

j

--->

j

)

)

j .,.)

~.J

)

)

.J

JJ.J-.J

-.J

J".J

--->

j

)

)

)

)

\/

JJI1II

Capítulo 2

o Ocidente Cristão e a ldeia de Música

A dimensão estética da música

Já referimos anteriormente que este breve estudo, simultanea-mente teórico e histórico, diz respeito ao pe~~~~~g~9~da músic}..ouà estética musical se quisermos, e, por isso, à própria música apenasno que toca ao Ocidente, Mas é bom que se repita, .:\_~_çj~~,1!Ç~S~e~~~Gl.~~l,lrope~ª?,tão ricas quanto a nossa em música e em sons, têm,no entanto, um conceito completamente diferente de música que: -ao-

o • __ ~_ ' , .,...... __ ""_

longo dos séculos e nos vários países, desempenhou funções muitodiversas e se estruturou o segundo linguagens bastante distantes do"nosso sistema diatónico, exigindo assim modalidades de execução~sistemas de escrita e de transmissão absolutamente diferentes dos

o utilizados no Ocidente: Nas Civilizações do Extremo Oriente ou nascivilizações africanas ou, para ficarmos em áreas geográficas próxi- ~mas de nós, no próprio mundo islâmicoe na cultura hebraica - que! o

também se desenvolveu, em grande medida, à margem da nossa civi-lização ocidental-, '!.ê_nossascategorias de pensamento sobre músicanão sã~ válidas. -A_c;,o.DÇDJ,~-pro.gr.~ssiva,por parte da m.lÍ.~ica,de um

status preç!Q@D}lgç~II1en~ee~t~!iGQ_~um facto característico do~õQ-dente e do cristianismo, no qual as outras culturas não sé reconhe-cem porque nelas -ã.-~úsica desempenha uillã"f;;~ção totalmente

23

Page 12: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA---~I

~ diferente. De igual modo, também a transmissão e execucão daç música _sêrealizam segundo modalidades e-significados ~ão~ssimi-

C láveis aos datradição cristã-ocidental, e convém recordá-lo antes de~ nos aprestarmos a reconstruir os marcos de urY\pensamento musical

ç:- que di.zrespeito precisamente à história de uma determinada cultura.s:.- , Não se trata, ortanto, de uma reflexão sobre, a inúsica

~l enq~~n!o_ art-:e.d=~~~~_~~~,~<~:~~Y_l!..iyers3.i~:,~ãOexiste u~~ ~úsicé!Jn .:"' i "abstracto, mas muitas músicas.na história e, sobretudo muitas ideias .

: - - - . -, ~, ~ música nas várias civilizações. Aqui trataremos da 'idéiade

música e das reflexões ~bbrea música da nossa ciVílizaçãt; ~~id~ntaie cristã. Importa sublinhar não só ocidental, mas também cristã, nafUedida em que o cristianismo, como veremos, desempenhou umpapel de primária importância no delineamento' da civilizaçãomusical do nosso mundo e do seumodo de conceber e fazer música.

Música e poesia

Na civilização of;idental, a musica desenvolveu-se duranteséculos em ~treita:::s:W1biS:S?com a poesia. Não é mais do que umabanal constatação que, no entanto, exige algumas explicações.

Pratica~e~te. ~ ~~ ,sé~~~, ~~~si~a instrum~veuma existência aõsóIUtamente margjnal, semqmrlquer autonomia:

. ,.~ ..•..._---_.. '". ....•.••. "_." ..~. . . ..... .-._.,.,.~•.•..•.~-.-..~muitas vezes a sua existência precana tinha a sua ongem simples-mente na ausência de vozes ou do hábito de reagrupar nos instru-mentos o que originariamente era destinado às vozes.

~ª-o obstarIte a predominância da música vocal, isto é, deuma música acompanhada de um t;xto poético, todos os estudiosos

_mo5iemõs:e nãos6l,. de estética musi;;} sempre se empenharam pro-fundamente em procurar ~ficar as grandes diferenças entre lin-guagem ve'ib~linguagem musicãI, admitind;;-q~e ~ta se inclci"~a.categoria de-Ünguagem.- Se as diferenças entre poesia e música sãó··,macroscópicas (diferentes instrumentos_de c,º--municação, diferente ; :-'f,'

articulação sintáctico-gramatical, diferente forma de de~gn;;-os ' '...•.--

24

,._0 ••••

o OCIDENTE CRISTÃO E A IDEIA DE MÚSICA

_seus próprios objectos, mesmo que se admita que a música tem umpoder reduzido de denotação, etc.), é no mínimo curioso que os seusdestinos tenham sido tão interdependentes e que as duas artes sem-pre tenham caminhado tão estreitamente em conjunto a ponto de se

. ter, elaborado uma teoria que teve grande sucesso na história do pen-samento musical, segundo a qual as duas artes teriam uma origem,comumtJfntre' música e poesia existe,' portanto, uma tensão geradatalvez precisamente por esta afinidade/diversidade dificilmentedefrnível e apreensível: MÚsic'~~~~Ül, além de ~ere~ ambas, ~ê(.

). dei temno e não does a o, sãoarte~uese fundam na arti<::,Ulação-do__..~.,,~~ __ ~ ..._~~ ..-;.........._.~~_~-:r-_ ~,~<>~,numa escolha de sS~,t~Â~ de uma c"ôiiseueüteexê1ú~

\ são de-sOli~ n~o pê'rtii'iéÍ1~s, pelo menos no interior de uma determi-nada língua, de um determinado estilo e de uma determinada civili-zaç~6.Tõdavia, cada uma delas tende depois a conquistar um espaço

.c ~_ : -dê'-'~utonomia e a fazer prevalecer o seu horizonte' significativo" t~:p_~_cífico.lTâ vez o fascínio do canto e da música vocal' em geral

,consista precisamente no facto de o ouvinte ser levado a participar,ao mesmo tempo, nas duaslinguagens, mas tender 'inevitavelmentea seguir e a deixar arrastar-se, segundo o estilo musical e os textospoéticos, por uma ou por outra, sem porém poder abdicar completa-

r mente da outra linguagem, a que se queria pôr entre parêntesis.Poderíamos dizer que na música vocal, a música gostaria de :podef\

~ \ .;s~~ _as_ca~acterí~:as _~gnif~~tiva~- da 'pal~~~ _a_I:r~~isãi;~ I(~~ .denotar os o~ectos e sobretudo os sentimentos; e, em contrap~i~da, \~/I ~E.alavra gostaria de poder assumir a liberdade alusi'ya da música.,o .

lseu lirismo e o seu livre desdobramento na intensidade expressiva da! ..linha melódica. Como escreveu Adorno, «a música tende para umalinguagem sem intenções [...] A música sem pensamento, o merocontexto fenoménico dos sons, seria o equivalente acústico do calei- ~?'doscópio. E, ao invés, essa, enquanto pensamento absoluto, deixariade ser música e converter-se-ia impropriamente em linguagem» cr). ""

(I) Th, W. Adorno, Über das gegenwãrtige Verhdltnis VOIl Philosophie undMusik, in «Archivio di Filosofia», 1953,'pp. 5-30.

25

")

}

)

)

)

j

j.j

,)

j

'.J

~)

,)

'.)

I..)

I)

')

),)

'), )

".,!

Page 13: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

j

)

)

)

)

J)

)

.J)

JJJj

JJ,')

.:)

)

)'

)

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA~-----------------------------------------------------\, t L~'~(,,_.~__~' j"./, ) Música e poesia viveram, or isso, na nossa civiliza ão musi-

'" ~al; uma situ~ç-ª~_de tensão ~t 20 ~IlJ lado ali leV91,lª- p'ennanec~-,I iem intimamente unidas no seu estino e, por outro, a sep'arar~m-se

eQJll;~~"ca;;inh'os opostos.'- -_.~- ._-,_.--,.-- - -- - ~

-,-' Toda ~histÓria da música ocidental poderia ser igualmente lidanesta perspectiva, como uma longa corrida à procura de uma auto-nomia própria; autonomia conquistada arduamente, em temposmuito recentes, com o triunfo da música instrumental pura na épocabarroca. Triunfo talvez efémero, na medida em que não assinalouéfectivamente o fim da música vocal: esta última continuou a flo-

rescer paralelamente à música instrumental e, sobretudo, a desen-volver-se extremamente entrelaçada com esta num intercâmbiocontínuo de formas e de modalidades expressivas, como se reivin-

'!' dicasse um primado histórico que não pode ser esquecido ou apa-gado pelo recente desenvolvimento impetuoso da música instru-mental. /",.-.-,,;7 -?

O encontro e, à!~vezes, o coníronto e a competição, entre amúsica e a poesia verificou-se a diversos níveis e sempre foi consi-derado, quer por pkte dos poetas, quer por parte dos músicos, umdos lugares detf'fifçye de conflito aberto ou subterrâneo. A dis-"-- 'cussão entre ~s razões da música e as da poesia é um pouco comoum fio condutor que perpassa toda a história da música desde ostempos da Grécia Antiga até p.raticamen\e ~7nossos dias, conflitoque nunca viu vencidos nemvencedoresjjêom efeito, esse conflitonão diz respeito aos respectivos ~~!!~®mas radica na próprianatureza das coisas: éa linguagem ,do poeta que está em forte ten-

. são eiiUJjuvr~1êornpe~çãó~àdí a linguagem do músico.Este leimotiv, que percorreasjseculares-vicissitúdes da música

. ..! "'",-,~_0.- _ •••• _, ." _ ••••• ~ ••• I

ocidental, aparece como um. dos itemas mais' importantes da sua, história, a ponto de se constituir um pouco como ofundo em que searticula toda a problemática d9 pensamento m~sical, tema desuporte e não seguramente de secundária importânc\a.

. \-, \,..... .\

"-~.."...... ,'" .

26

•I1

1Jí

o OCIDENTE CRISTÃO E A IDEIA DE MÚSICA

Música e matemática

Podemos identificar muitos outros problemas recorrentes nahistória do pensamento musical e na própria história da músicaocidental. Todavia, trata-se muitas vezes de temas e problemas que,se virmos bem, embora pareçam distantes do acima exposto, têmmais ou menos urnaestreita relação com ele e podem considerar-se,em· certa medida, variantes desse.

li ,"~~=:;Desd~ os tempos de Pitágoras que a música sempre atraiu

l'-'a~atenção dos matemáticos e deu origem a teorias matemáticas.As es ecula ões científicas e ma~máticas sobre música fundam-se

1 ~p'rincí12io de ue o som é um fenómeno físico mensurável com.i! exactidão, na medida em que um corpo vibrante emite, consoante o

I ndm~ de- vib;açõ;s por ;~;~do: um s;m de urna determinada, ..t ,ªltura,,.:'Nesta observação está implícito o privilégio, típico da civili- L~,'.h :. ,Li"\~Ção-ocidental, do parâmetro altura. A escala diatónica, em uso. n~ ",~'. ~'~"v.,' ' .\ música oCidental,. está cirde~~d~ s~gündd:~t~g;quéesfaoilgadol ~,:..,._,,~ /'~tre si porrelações numéricas simples.~~ta constatação brota- .. '>

! ram, ao longo do tempo, especulações bastante complexas sobre a, ..\ C·"''·) natureza dos sons, sobre a natureza da escala, sobre as suas relações . ,!.,;~,-! .. --I com outros fenómenos físicos ou cósmicos de que os sons poderiam ',-'\'\ ser reflexo ou símbolo. Esta persf'ectiva sobre música, ue re re- >

'sentã-üifiàcolistâ~te do pensamento musical ao longo dos séculos,foi desenvolvida em particular pelos músicos ou pelos ensadores

- - -- --- ~- __ o ~- - - _., •

: que consideram a música uma linguagem d~~à de absoluta al!t<?- '. '. J~oniia;com ouco ou nenhnni parentesco com a linguagem verbal.

1·--' ,~- ---.-- .-! Quem' indagà)a natureza matemática da música terá, sem dúvida ,P; t~dênda-'ã-sublinhar os valores.intelectuais e metafísicos associa-i dos àarte dos sons em vez dos valores emocionais. Obviament~,-- - - - '-' - ~,... -- ~-

quem considera .C!!l~a mlisicª se funda llIpp.a complexa e rígidaordem mate~áticaqui o músico descobre, evidencia e reproduz nassuas composições e que a sua estrutura, essencialmente racional,corresponde a urna estrutura igualmente racional de todo o uni-verso,' reivindica a in<!.ep~E.<iê!!~iada mús;c~m relação à poesia.e

27

Page 14: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

--1

a qualquer outra linguagem artística~ efeito, a linguagem dapoesia é completamente heterogénea nos seus valores emotivos,sentimentais, no seu poder denofãtí~) das realidades singularesrelativamente à arte dos sons que, ao invés, encarna ou espelba umabem mais elevada ordem racional do uni~erso, O proble~a das

- rêlãções e do encontro eritremúsica e poesia não faz arte dos, ~nteresses do matemático que especula sobre a natureza do~ons;

~' aliãs, na sua esp:c~lação está ~elripr~ .implicitarnente ~resente a,r, !dela de que a musica deve desvincular-se da sujeiçao a poesia e,\ tender a tomar-se uma linguagem autónomaem virtude da sua natu-

r \~Le.zJ' Q~uer combinação com outra arte só poderá comprometeri '_ e corrompera sua natureza racional e matemática.

'o , __ .I~-Ãs teorias matemáticas sobre a música e as teorias que afir-t. ..

, mam uma ongem corrium da música e da poesia excluem-se mutua-'J '

-nmente, no sentido em que se opõem como duas modalidadesradi-f calmente diferentes de conceber a música e a sua função.

.~

Música e significado

Um outro tema recorrente na história do pensamento musicalé a reflexão sobre o próprio significado da música, Problema desdesempre debatido e', obviamente, sem soluções definitivas. 9 debatesecular sobre o significado da música ou, em termos mais moder-:lOs, sobre a'Semanticidadeda músicaassenta, muitas vez~s, ~opressuposto de que o modelo da função denotativa é o da linguagemverbal, Assim sendo, trata-se de estabelecer em que medida amúsica se aproxima da linguagem verbal ou se afasta no que con-cerne às suas possibilidades de significar, de denotar acontecimen-tos do mundo exterior, ou emoções do homem.

Evidentemente, o problema do significado da música assumiuas mais díspares formas ao longo dos séculos e, ainda que na subs-tância se reduza sempre ao mesmo âmago, tenta-se reconhecê-Iofrequentemente por detrás das máscaras usadas consoante o con-

28

o OCIDENTE CRISTÃO E A IDEIA DE MÚSICA

fr'PoLotexto histórico, ideológico e filosófico em que se insere. D~as tesesopostas se enfrentam e confrontam diversamente na história do

!p~lsament;~usical: por um lado, ~ dos @i§~~u~a ~coI).--cepção, ética em tatu sensu, segundo a qual a música incide no

, nosso comportamento, influencia os nossos sentirnento~ou,~àm~, se dirá em tempos mais modernos, exprime os nossos sentimentos;p-or outro, a dos apologistas de uma concepção maishedonística da~a, segundo a qual a at1e dossónstendéria.iantes de mais, aproduzir um prazer sensível cujo fim se esgota em si me~h1o, nãotendo como finalidade, portanto, produzir conhecimento, translllÍ~irnenhuma informa ão, nem exprim~~o quer q~ s~~. Identificam-seimensos matizes nestas duas teses, bem como muitas posições quepoderíamos definir intermédias ou de compromisso. Todavia, esteesquema pode ser útil para identificar no debate histórico as posi-ções extremas, mais facilmente reconhecíveis dado o maior relevofilosófico que apresentam.

Todas as teorias que, no mundo antigo, tendiam a admitir ou aexcluir a música de uma sociedade ideal, convergiam obviamentena primeira tese: com efeito, se a presença da música na sociedadeestá ligada, em todo o caso, ao seu poder educativo, à sua capa-cidade de transmitir valores ou desvalores que tomam desejável oucondenável a sua presença, significa que se con~id9a a música eti-camente significativa e relevante para o homem~cQE.trapartida,todas as teorias, no mundo antigo e medieval, mas sobretudo nomundo moderno, que trazem à luz as .E:lações ~a mús~ca -com ,onosso sistema nervoso, com as nossas reacções de prazer e despra-zer, de satisfação face à sua perfeição formal, à suaconstruçãoarquitectónica, aos seus valores compositivos concebidos como fins'em si mesmos, pertencem obviamente à segunda categoriar'As teo-rias sobre o significado da música, que esquematicaniente se redu-zem às duas posições acima expostas, mas que na realidade sãobastante mais numerosas e indefinidas, além de exprimirem umamplo r~io de opiniões diferentes, estão também indubitavelment~ligadas ao problema mais vasto da relação música-poesia.leô""m

29

)

)

)

)

).)

)

)

)

)

)

)

)

)

'.)

~..J

:~

)

)

.J

~)

)

)

)

')

)

)

)

)

)

Page 15: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-;)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

30

ESTÉTICA DA MÚSICA

efeito, os teóricos do formalismo Ruro g~ralmente refutam a uniãoda música com a .gesia,_.1la_m~did.~ em ue conside~~ gue ~~~ão ~.u.!!!ªJi!lguaggm· absolutamente des rovida de oder~~~ficati vo e.~xe!.ess~, .~2.e.~~d~ I,!!9~g!lm. aRroxiIl!~~~ou fundir-se com a literatura, que, ao invés, é indiscutivelmente~a linguag~m. Quem, 'pelo c~ntrárici, acha que a música é dotadade poder expressivo e denotativo defende que, por isso, esta podeencontrar a sua realização mais adequada precisamente numa sim-biose com a linguagem da poesia: dessa forma JYs respectivos.poderes semânticos são sem dúvida potenciadosjz"

Obviamente, só uma investigação histórica circunstanciadapode determinar concretamente as ligações entre as várias posiçõesfilosóficas e ideológicas, acima expostas de forma esquemática,sobre a música. Neste ensaio quisemos simplesmente fornecer uminventário de alguns problemas que nos parecem fundamentais erecorrentes na história do pensamento musical da Grécia Antiga atéaos nossos dias. Embora os problemas sejam na verdade maisnumerosos e, sobretudo, muito mais complexos e indefinidos, seprescindirmos por agora da sua apresentação concreta na história,esta simples e esquemática enumeração pode dar-nos um fio con-dutor, »snleumotiv que nos ajude a orientarmo-nos na selva deteorias ede ideias. Ideias que, vendo bem, se podem resumir apoucas matrizes comuns, independentemente das diferenças de lin-guagem; de terminologia, de perspectiva comque foram expostas edebatidas ao longo dos séculos e que podem fazer com que pareçamainda mais caóticas e dispersivas do que na realidade são.

)

)

Música e afectos

J)

)

)

.A existência de uml!._c~rta relação entre a música e ~ mundodosafectos, das emoções, dos sentimentos é algo que se repete devários modos desde a mais remota Antiguidade. Mas é completa-mente diferente definir em termos mais precisos em que consiste tal

)-'

'~·I'· :

"i,

,

II,!

f '

II

riiIi

o OCIDENTE CRISTÃO E A IDEIA DE MÚSICA

relação e o modo como se configuram as suas motivações profun-das. Na história do pensamento musical, a relação música-senti-mento está associada a muitos outros problemas, encabeçados pelaquestão da natureza linguística da. música e, por conseguint~,definitivamente ligados ao velho problema da semanticidade damúsica. Estamos em presença, portanto, de um emaranhado de pro-blemas que vem atormentando filósofos, críticos e pensadores hávários séculos sem nunca se ter encontrado uma solução satisfa-tória. Obviamente, não há uma solução, mas sim várias orientaçõese vários olhares sobre o problema; cada um deles traz uma luzprópria à questão, representa uma interpretação que desvela umaspecto, uma parte da verdade. V-

Quando se fala de relação entre a música e o mundo dos afec-tos predomina, em geral, uma série de mal-entendidos e de confu-sões. O que significa sublinhar essa relação: que o compositore~jJrimellã múSica por ele criada o seu mundo afectivo? Qúe_ amúsica incorpora os significados inerentes ao mundo dos ~fe~tos _ed_as emoções? Que quem escuta a músic~_ encontra uma corres-pondência com o seu mu~do_afecti':9 e_que, portan_to, se~te emo-ções? Ou, ainda; que a música denota, ou conota, ou tab:'.~imite os ..afectos'i Ou ~alvez tudo isso] Naorigem destas interrogações estáum problemamªLs....Y.~to gue surgiu, talvez não por acaso, ainda no.\século XVIII:~música é.uma linauaaem? . ue relações tem com alinguagem verbal? Que traços específicos revela face a esta? E se éuma linguagem, embora sui generis, quais são os objectos para que'remete? A partir de séculoxvnr afirmou-se, g~~PEa~ente gue amúsica é~o-ou expressão dos sentimentos e das emoções e, fi.com isso, quis-se afirmar quea música tem uma relaçãoprivile- "'giad~ com o nosso mundo emocional e não tanto com a razão oucom os conceitos: esta im ortante afirmª-ção cqmlituiu umª- base Ifundamentar para a organização da estética musical futura .--- O que <fistií1guerealmente -a músicã 'da linguagem verbal é

talv~' sua relação particular com o mundo dos afect';;'- Com aling~;gem - verbal-~dem indicar-se todos os afectos possíveis,

31

Page 16: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA /""'I"i

CP 1\vJ)/\ cA;6 &--i vY[j v~ \ _ .O OCIDENTE CRISTAO E A IDEIA DE MUSICA

'))

I )

)( )( )I

J, )( ),~

I

"JI.J

(~

(/

J.,.J

, j(...J

(JJ

/,.J

)

r .J'...J I

'~

(.J

Ir ()'\.:,;) ( _J

(~

:)

.J

')

')

()i )I \

)

f'

limediante palavras que nada têm a ver com os afectos conotados;trãt'ã-'se, portanto, de uma relação absolutamente convencio~. Namúsica, ao invés, a frase musical assemelha-se, tem uma relação.intrínseca com o afecto que denota ou que exprime, ou a que alude,ou ainda que suscita, no ouvinte/Poderíam(~~~va!:9_~ a hipótes~_~c:.que existe uma espécie de isomorfismo entre a expressão musical e

~f~. Nã linguagem verbal este isom~rfismo ve~ à ;upe~fícieir quando a expressão verbal é exclamada, entoada, gritada, ou seja,

quando nela se insinua o elemento musical que apura expressãoverbal não prevê ou que' prevê somente como elemento acessório enão essencial.' Neste caso, o elemento musical pode não só aumen- .~.- .-.------ ---'-~ Itar consideravelmente a eficácia do discurso verbal; como' pode i~ein:o, àsvezes, contra~izê-lo ouf:r::ustr~l~aqui se pode gedúzir_. \que há uma espécie de autonomia semântica da expressão musical í

'q;;Pode assumir-a sua coloração emotiva e afectiva quer quando é.combinada com a linguagem verbal, quer quando é isolada como .um elemento autónomo e independente. Evidentemente diferente éo significado ou o sentido da música quando se encontra só, sem osuporte de palavras. Seja como for, mesmo quando isolada eautónoma em relação à linguagem verbal, a música mantém sempreaquela proximidade ambígua e contraditória' com a linguagem ritalvez seja precisamente essa proximidade que faz com q~epossafalar de música, isto é, fazer um discurso sobre música: vem Ià luz uma espécie de traduribilidade metafórica, emborlLll.J!nl)umdiscurso sobre rryfsic';:-possa esgotar os seus significados, ou aliás,o seu sentido.véom efeito, todo o discurso sobre música é uma--- ~- ~interpretação da própria música, uma tentativa de revelar o seusignificado e as interpretâçq,es. são i~nit.§is, no sentido de nunca~sgõtareÍn ~ q!:!~_a11lúsic~.nos P2.de_sugerir. Nessa perspectiva foiafirmado, e com razão, que «todo o discurso sobre música é meta-fórico [...1e que a forma musical continua a ser uma linguagempuramente virtual em que se elabora uma intenção de sentidoinexprimível a nível de palavras e de frases da linguagem verbal.Donde resulta a multiplicidade quase infinita de interpretações

IL.

I

possíveis, a sua pertinência e, ao mesmo tempo, a sua parcial arbi-trariedade» (2).. Há um inegável, ainda que problemático, parentesco .entr~_a

J músi~~e~lingu~gem verb~l, q~ há ?écu~os, os filósofos .2IQc~ra..~nesclarecer. Talvez Rossamos avan~ar ahlpotese de qu~ a música

\

traz à luz, põe em evidê!}c@,._s,\!..lilinhae' faz.;..emergl!_ og~ é sufo-~~_pe~m.;nece e:rp_e~~do_ l~tent~21a li~g~élgen:!.:_Mas podeoperar nesse sentido precisamente porqueexiste esseparentescooriginário entre o som da mlÍsi~a eo som da palavra. Na objecti-vid~de da palavra e no seu impessoal poder denotativo, a músicacarrega consigo o elemento pessoal, afectivo, emotivo que a pala-vra, votada ao significado, perdeu ainda que não completamente.Qualquer discurso verbal traz ainda consigo um elemento musicalque contribui para precisar e definir, em sentido estrito, o seusignificado. Assim como a linguagem verbal normalmente tende aprescindir do elemento musical a ponto de abdicar completamentedele, também a música pode chegar a tornar-se uma linguagemautónoma, prescindindo .do elemento discursivo. Assim como alinguagem verbal conserva, no entanto, algo da musicalidadeconexa à entoação da palavra e tal musicalidade se incorpora decerto modo no poder denotativo da palavra, também a linguagemdos sons quando se torna autónoma conserva ainda a recordação deuma evocação, pelo menos, do mundo dos afectos e das emoções.Embora seja polissémica, como se disse, incerta e às vezes ambí-gua, é ainda assim perceptível. Uma espécie de linguagem quevem antes da linguagem, linguagem que vem antes do poder'denotativo da palavra mas que mesmo assim é rica em evocações eressonâncias, talvez devido - como dissemos - também a um certoisomorfismo da linguagem dos sons com a dos sentimentos e dosafectos.

32

(2) M. Imberty, Suoni, Emozioni, Significati, Clueb, 1986, pp. 56 SS.

33

Page 17: FUBINI, Enrico. Estética da Música

() .~~~

) e

)

j

))

(

)

'j

)

)

~.J).J

:;').J

)

:."

j

)

J

)

)

J)

)

j

Capítulo 3

A Música e o Sentido da sua Historicidade

História da música. e metaftsica da música

Nas páginas precedentes aflorámos o problema daespecifici-dade do pensamento musical. Além da observação banal de que osmeios técnicos, ou seja, o material de que se serve o músico, sãoradicalmente diferentes dos meios de que se servem o poeta, opintor ou o arquitecto -:-observação que levaria a afirmações simé-tricas quando se tratasse de qualquer outra arte -, há uma ulte-rior especificidade que tem a .sua origem no destino da própria

, ' Imúsica.Uma dascaraCte~sticas ~a n~ssa civilizaç]p. ocjdental é a

)

elabora ão de uma consciência histórica bem definida baseada na'• '.recordação ~o_seu passad~ na ~levação d~ mome~tos p-articulares

~a sua histQriª-amodelo e; obviamente, na cuidadosa conservaçã~ fide todos os documentos da suahistória secular e milenar, A história' ,'l nasce precisamente da recordação e da reflexão sobre o passado eda consciência de que o presente, de certa forma, se associa a uminterior em que se reconhece e em que radica.

~ Nada disso ocorreu com a música, ue cresceu seguruio...moda-lidades diferentes das das outras artes, sem elaborar uma história aque se pudes;~te;~longo do seu tr!je~to.vC~;-efeito, a

3S

Page 18: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

música teve uma história à parte da das outras artes, ou melhor, não/teve até muito recentemente consciência da sua historicidade e, porisso, nem sequer conheceu a sua cl~§sicidad~ que é, sem dúvid~,um dos elementos mais relevantes da sua especificidade.- Os motivos desta situação, anómala' não só em relação ao

r mundo das artes, mas ta~bém ~mrelação ao mundo d~ cultura em: geral, são complexos e impossiveis de reduzir a uma UDIca causa.

dl Algumas explicações são quase óbvias: a música, arte do tempo,extingue-se, apaga-se sem deixar rasto com o acto da sua execução;t·

./

as notações antigas, em comparação com às modernas, são dema-siado imperfeitas para' oderem servir de documento válido a umasua fiel reconstrução os instrumentos musicais têm uma vida limi-

.~ tada no tempo e é difícil reconstruí-Ios após o seu desaparecimento.Mas estas explicações são insuficientes e não nos explicam por queé que ainda hoje podemos representar no teatro o Édipo, a Antígona,ou As Bacantes - e o teatro é igualmente uma arte do tempo -,e como é que da música e dos coros que as acompanhavam, consti-tuindo uma sua parte integrante, só restou a notícia incerta da suaexistência. Se hoje as catedrais românicas ou góticas são monu-mentos arquitectónicos aos olhos de todos, fruíveis por todas aspessoas de cultura mediana mesmo na distância temporal que asseparam de nós, ao passo que uma peça de cantos gregorianos ouuma canção de trovadores soam irremediavelmente longe de nós doponto de vista psicológico, não depende apenas do facto de as pri-meiras~anecerem no espaço e de as segundas se dissiparem notempo. C~m efeito, o problema volta a colocar-se de forma idênticaem épocas muito mais recentes: a distância histórica que nos separade uma missa de Obrecht ou de um mote te de Josquin Després ébastante maior do que a que nos separa de um quadro coevo deRafael ou de Leonardo, ou de uma eséultura de Miguel Ângelo, ouainda de um soneto de Petrarcal-Iforquê, então, esta profunda assi-metria histórica? A música, na nossa civilização, desenvolveu-se aolongo dos séculos com ritmos históricos diferentes relativamenteaos das outras artes. A sua dimensão histórica, a sua vida no pre-

36

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA HlSTORlCIDADE

)

~ I)

, )I)

I )

J~..J

'..J

.-J

.-.J

~.J

I

(..J

.J,)

)

..J

sente e no passado, apresenta-se sob diferentes formas, requerendouma memória histórica diversa.

A música, até muito recentemente, não vivia muito para alémda sua primeira execução, na maioria, dos casos sob direcção dopróprio compositor.lt\Íirmou-se muitas vezes que isso dependia dotipo de notação que o músico utilizava, tão imperfeita e, por isso,inadequada à sua realidade sonora. Contudo, esta afirmação tam-

\ bém poderia ser completamente inverti,dá, epodefía~osdizer que,~1a realidade,,~ música _se baseava numa notação 111!perfe~ta, na

medida em que não se previa ~m prolongamento da sua vida nofuturo. ~vida que a ideia de ~I!,l~istênci~~E1P~ral ass~mtão precária, reduzida quase sempre exclusivamente ao curtoespa\o-da sua execução, não podia deixar de gerar uma consciência histó-'rica bastante diversa -da dos outros artistas, que estão habituados a'trabalhar não só para o presente, mas também para o futuro e. emestreita ligação com o passado. ~ .

Podemos ter uma prova desta ausência de consciência da suadimensão histórica ao verificar que as primeiras e parciais experi-mentações de histórias da música aparecem apenas em finais doséculo xvm, ao passo que nas outras artes se escreveu a história,embora de forma diversa da dos nossos critérios históricos, emtempos bem mais remotos. Cada geração de músicos toma geral-mente como modelo o seu mestre, mas nunca' recoma üffi fiódclo--.- . .........-exemplar de classicjdade; A história da música é muito rica eminúmeras querelas, desde os tempos de Platão, disputas que reen-contramos mais tarde com a ars nova e a ars antiqua, com a pri-meira e a segunda prática na época de Monteverdi, com ospartidários de Lully e Rameau, os simpatizantes da ópera bufa e osseus opositores no século das Luzes, até aos tempos de Liszt eWagner contra Brahms, para citar apenas os mais' conhecidos,controvérsias entre estilos diferentes mas coevos ou, no máximo,entre duas gerações, Nunca se tomou como modelo um estilo dopassado: não é por acaso que o neoclassicismo na música só surgiuno nosso século, desenvolvendo-se, porém, no sentido da mais

.J

I,)

.J..J

J)

J~)

Jj

).J

)

."J

37

Page 19: FUBINI, Enrico. Estética da Música

~ ..

))

)

)

)

)

)

)

)

j

j-.J

J~)

JJJ~.J

j

J...J

...J

...J

j

.J

)

)

)

~)

)

"

ESTÉTICA DA MÚSICA

completa e despreconceituosa paródia. Inclusive a contenda queopôs Galileu e o círculo florentino aos polifonistas deu-se, aparente-mente, apenas em nome de uma c1assicidadegrega que no fundo era

~, inexistente e desconhecida. Na verdade, Galileu estava a fazer uma .~ revolução em nome do novo~ monódico e o su osto c1assicism ~

grego era som~nte um retexto ara uma leg!tim~ção mé!!§efi~az das _~~. Classicidade invocada um pouco artificiosamente, imi-tando os colegas humanistas letrados, arquitectos e escultores.

Com efeito, se a música sempre ocupou um lugar próprio, umpouco isolado e distinto das outras irmãs maiores ou menores nopanorama das artes, tal ficou a dever-se, em boa parte, a essa ausên-cia de consciência da sua historicidade.

causa deste fenómeno, talvez até demasiado enfatizado,., é a vida efémera da música, sem re ligada à execução, à inter-pretação e, portanto ao instante, ainda ue intenso e vital, ue a fazviver_PE~visoriament~, mas_....9.uelogodepois a faz desa arecer.A notação pode superar este inconveniente, porém o simples facto

.de só recentemente se a ter aperfeiçoado a ponto de poder represen-tar um instrumento válido de memória histórica - um documentosuficientemente exacto para uma transmissão fiel da música par(i a

\ posteridade -, pode ser um bom motivo para se considerar que, no. ":::::l passado, não havia estímulos suficientes que levassem o rnúsicca

preocupar-se com o problema da posteridade e,-consequentemente, .~~. do ape~iço~~nto..;da no~~. Por outro lado, há civÚi-zações musicais que até hoje não só nunca se preoc~param_eminventar uma notaçãocorrecta, como também confiaram inteira-m'Tnteria: ttári&rcisSã9õ~aFdo'seu:'Pahimónio m~sic;r: A músic~hcl;;=ãtcaú~m-~id~, até· ii-;je~confiada à-memória, tran;mitida degeração em geração sem nenhum suporte escrito, tendo sucedido omesmo corri a música popular e folclórica de todos os países. Nãoquerer depQsitar a música num documento não impJicª_decerto umestado de inferioridade ou de grimitivismo mas sim uma o çãobem definid<Ulue ~OJ1Lb.<ls..eJlaJhn.ç}ill da música. no seio deuma determinada sociedade.

38

III,.I

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA HISTORICIDADE

Marginalidade histórica da música

Existe talvez uma outra causa da historicidade anómala damúsica na origem do problema da notação e do status do carácterprovisório da música em relação às outras artes, uma causa maisprofunda e estrutural. A música, até tempos muito recentes - E§ti-camente até à época barroca -, assumiu sempre um~funç~ artísticamarginal ou, melhor, a sua existência foi sempre vista em função deootros:5.ns: para acomp~nhar ~põesia, ou seja, como enfatizaçã~'da___ __ __.. 1

palavra e do discurso poético, complemento e reforço da funçãolitúrgica, enquadramento da acção teatral, et~. 'E;ta marginalização "'da~música, nómeno q~e se c~i;-cõma;ua .natureza efémera,contribuiu astante para a não constituição de uma consciênciahistórica Facto que também contribuiu para a formação de umoutro fenómeno curioso, característico apenas da música e nãoverificável nas outras artes. Desde Pitágoras até tem os muitorecentes, a' música encontrou um destino estranho na história dacwturiiÜcTctental:.JJ0rum lado, marginalizada frequentemente como-- --~ ------- - --- ---arte menor, 'exercício manual sem implicações intelectuais, por- .tanto, cõ'mo arte servil; por outro, reabilitada até aos mais altos,mveis nos seüS aspectos não audíveis, não tangí;eis, istO é, com~pura abstracção, cálculo correspondente às mais secretas harmonias"

. . - ."cósmicas, filosofia primeÍra,_s!..~bolo que remete para a própriaessência do mundo .: Contudo, a música, nesta acepção,' não é amúsica dos músicos e dos executant~s, mas .aquela ~!~mente , en- '

.sada, ou seja, por outras palavras, é a filosofia da música. a resul-tado desta--Curiôsafracwra é que atravé-; das obra~ dos fiiósofos seftpode reconstruir uma espéciede.história da música, ou melhor, uma' ,história da teoria, do pensamento, dos debates musicais desde amais remota Antiguidade até tempos mais recentes, rp:ésmodesco-nhecendo totalmente a produção musical autêntica.lla famoso tra-tado De musica do Pseudo-Plutarco, escritor da época alexandrina,não será talvez o esboço de uma história do pensamento musical naAntiguidade grega? E, após o tratado do Pseudo-Plutarco, quantos

39

Page 20: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-~

"i!

f

t \00 doI~Cx . -\-(..!-O --.:A:..:...:::M:..:Ú..:.SI:..:C~A:..:E:....:O:....:S=E~N..:.TI=D..:.O_=D::.:A:..:S:..:U.:..:A:..:HI=S:..:T_=_O:...:RI:..:C:...:ID:..:.AD=E _"f'~-t"0outros tratados histórico-teóricos sobre música não houve nos / Isé~ulos s~guintes até ~ época barroca! ~ uantos tratados históricos~1!lgeneris em que nao aparecem nunca ou quase nunca os pro- Vtagonistas, ou seja, os músicos e-as -verdl'j.deirns-;;-bi:as-;-~a·s.,.enquanto abundam, ao invés, as dissertacões sobre a essência damúsica, sobre as teorias harmónicas,-s~b;e o seu relevo fi1osóf~;ou metafísi.l::o.~tanto, hoje, entre bibliotecas inteiras de tratadossobre teorias musicais, debates entre doutos e filósofos da música. " ,não temos sequer uma história da música,umacrónicalógicaquenos ajude a imaginar como soavam os cantos que, no entanto, eramcompostos ~~ados em grande número na Antiguidade gregaeromana! ve-'-"'--- .., .

ESTÉTICA DA MÚSICA

Marginalidade social do músico

A marginalidade histórica da música e, sobretudo, da execuçãomusical encontra uma correspondência pontual na actual marginali-dade social do músico e do executante. A ideia aristotélica de que aprática musical não era digna de um homem livre, em virtude dacondição manual inevitavelmente associada a esta arte, não perma-neceu decerto isolada. Na Idade Média, Guido d'Arezzo, por voltado século XI, convidava a considerar o músico prático como um

~ «animal»·~6Jé ao Renascimento LardiQ,o músico não gozava de umamuito melhor consideração. e, fosse como fosse, não era decerto~ximável ®s seus cote as,_a~q~itect~, pintor;;'- ;~ultore;-;'-;obr;tudo, letrados, cuja função-;o~ia~;a exaltada desde a mais?emota Antiguid~e. ~ão s;á ~ vã;recordar que foi preciso cl~e--gármos ao fim do século xvm para que se quebrasse esta imagem eque Mozart e Haydn foram dos primeiros músicos a rebelarem-secontra a humilhante condição de serviçais nos palácios da nobreza.

À condição servil de músico, à escassa consideração social pelasua figura e pela sua função corresponde a fractura secular entremúsica e cultura de que tanto se falou nos últimos anos. Se é verdade

40

' .. 1

'[. ..

.I-

II'I

que a musica, por causa de determinados aspectos de carácteresotérico, inatemático e teórico, que, no entanto, nada têm a ver coma sua vida concreta e com a sua corporeidade física, suscitou muitasvezes o interesse dos filósofos, enquanto música concreta terá de

.esperar até ao Iluminismo para adquirir cidadania no mundo dosdoutos, no mundo da cultura e, portanto, no mundo da história dasartes. O músico, durante século~i excluído e a!:!.~ocexcluiu-sedofluxo da cultura, o que teve repercussões na própria' vida da música.--- - ~ - ._. ---;, . "'- -, .._--Reduzida a uma vida efémera que não ia para lá da sua primeiraexecução, a música refugiou-se numa tradição de longe muito maisfechada, mais separada relativamente às outras artes. E, em. contra-partida, a especulação sobre música desenvolveu-se seguindo trajec-tórias completamente independentes da música concreta, com' aelaboração de teorias que se fundam na pura .abstracçãovcom p,9>leocontacto com o mundo concreto da música e dos músicos. V

Música «humana» e música «mundana»

U,Ela_das mais típicas e antigas teorias filosóficas, que resultou== estado de separação e, em parte, da marginalização da música,~ a sua bipartição em música mundanae músi,~ humana~to é,_música dos mundos ou das esferas celestes e música humana ou dos----- -- ---- -- -- - _. - -instrumentos: a priIE~ira é inaudível, intangível, q~ando muito pen-s~vel para o filósofo; _a segunda é audível mas irrelevante ~, nofundo, desprezível enquanto fruto de um trabalho servil: Estafamosa bipartição da música, elaborada pelo mundo grego, tendosobrevivido em muitas variantes praticamente até ao Ilurninismo,nasce de uma situação social e cultural específica, mas, por sua veztambém é a sua causa, no sentido em que contribuiu seguramentepara a manutenção da música humana nesta situação de inferio-ridade. C.!rtamente, o facto de a música desde a Antiguidade at~tempos recentes ter prosseguido por dois canais distintos, o teóricoe prático, sem comunicação de facto entre os dois e, portanto. com ~s

41

)

)

)

,)

)

)

)

JJJ.J.J

.J

.J

).J

.J

J)

.J

J)

.J

,)

JJ)

JJ)

)

Page 21: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

)

~-.J-.J-.J

ESTÉTICA DA MÚSICA

!, y

respectivos desenvolvimentos in9~ endentes, re resen m caso~amente anormal e peculia: na história das artes. i\refle~ãoteórica e filosófica sobre a música foi, ao longo de séculos, quasetotalmente desancorada da realidade histórica da própria música, demodo que prosseguiu por conta própria, seguindo uma trajectóriaindependente. Às vezes, a relação é críptica e só uma análise histó-rica que saiba ler a reflexão teórica nas entrelinhas consegueidentificar algumas relações ténues entre os dois planos, emborasempre muito bem veladas pela abstracção do discurso filosófico.Os dois lanos só a muito cust.? se v~a..rE a l!nir no século X~III,

quando a música saiu lentamente do seu isolamento secular; sóe~entrou no m"Uriêiõdasartes eda cultur~ e a7eflexão-sobre -;;;;;1sic'as; t~rn-;u uma reflexão sobre a m~sica concreta, ~~feitade sons·.A ideia de uma música mundana empalideceü leÜtam~ntee é como se se tivesse dissipado nos ventos da modernidade.Todavia, ficou no ar a sua vaga recordação e a reflexão sobre aessência numérica e metafísica da música nunca desapareceu porcompleto e continuamos a encontrá-Ia sob os mais enigmáticosvestígios, inclusive na cultura contemporânea.

Música e cultura: tradição popular e tradição culta

-.J

Apesar de a música játer conquistado uma consciência histó-rica bastante semelhante, ainda que não idêntica, à das outras artes,é muito problemático estabelecer actualmente as ligações de natu-reza históríêo~~ulturalentreó·desdi1V~lvimento da música e o dasoutras artes,criando-separalelismosmuitas vezes artificiosos e fictí-cios. O passado diferente da música pesa ainda hoje sobre esta arte,diversa não só pelo seu desenvolvimento histórico atípico, mastambém pela reflexão atípica sobre a sua natureza, a sua essência eos seus problemas. Q historiaqor que hoje se disponha a estudar quera música, quer as reflexões sobr;; m'úsi~adeve, ãiites Úmais, saber---. .....apre.:nder os mecanismos culturais que permitiram gue ~úsi~se

.J-.J

)

).J

)

)

42

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA mSTORICIDADE

II!

transmitisse à posteridade: não através de monumentos) documentosde ar~uivo~da,fognaçã~ d~ uma,tra~içáO~tel"2reta~i~ae ex~~, __mas Sllll atraves dos mais mtang!ye1scanais datradiçãç oraJJ.Einúulrepetir que este discurso se aplica principalmente a um passadoanterior, se bem que a secular e milenar história da música antes daIdade Moderna influencie ainda o seu destino hodierno.

Colocou-se a hipótese, nestas páginas, de uma história damúsica separada das outras histórias da arte; mas talvez fossemelhor dizer 9.~Lmúsica se desenvolveu com uma autonomiainte'p'~ p.I6p'rii!_!p!&t~_~aio~ !elaÇ..ãgà~ outras ~es~ É-;erdadeque a literatura e, com maior razão ainda, a pintura e a arquitecturativeram canais de transmissão mais coerentes! mais académicos,mais eruditos, mais independentes, com contribuições extrema-mente cultas, provenientes de culturas populares ou chamadassubalternas. A música, m~smo no interior de uma sua tradição, deum mundo de sons seu,...§o.ube·<!isseminar-see transpor com umadinâmica muito maior os valores!..os estil;;, os estilem;s, as pró:prias invenções~o mundo da música douta para o da música popu-~are vice-versa da tradição oral para a acadêmica, Existe, ortanto,uma gran.demobilidade yertical no mundo musical, na transmissãodo próprio património de uma geração para outra; e existe tambémuma insólita mobilidade horiz~ntal, no espaço, de um país paraôutro, talvez maior do que ~moutras artes, a ponto de gerar um tipdde ·historicidade diferente da que ascendeu praticamente a modeloniversal, pelo menos no Ocidente: Não um rio de curso quase

.:regular, com poucos afluentes, onde tudo o que está a montantecorre para jusante, englobando todos os elementos imprevistos no,álveo central e principal da sua iricontestada corrente. Avmúsica'comporta-se de outro modo:' antigos@tilema;;)continuam a viver ereencontram vida nova e revigorada, oque não ~têêe apenas nosCântos populares em que a d~cia de dez ou mais séculos "éanulada como que Ror encanto; os modos gregorianos, por exem-.. ""....... ..• -- -.--. - -~ ..plo, sobreviveram não gre.ças ajI}~elefJl!qli§mosn~clássl.ç~ ..' ma~sim a um processo de revalorização e reactualização históric~ ~

43

Page 22: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

igual nas outras artes. Assim, estilemas populares de outros paísese de outros tempos, antigos ou antiquíssimos, do .Oriente aoExtremo Oriente encontraram uma nova vida em todos os outroscontextos históricos; cantos, modos e pronúncias do Norte, trans-portados desenvoltamente para Sul e vice-versa; elementos da tradi-ção popular e oral transplantados para a tradição culta e modos damúsica culta que se tornaram património popular!

Atransmissão da música, por um lado, parece exigir o maisalto ~u de- especialização, de douÚina~cte escola; por oU:t;;;,~terri

, de se reconhecer qu< t~ vez j;raça;- a~ se~ apelo ~ profundas raíze~. inst~ntivas, ~.cof!hecimentos mais imediatos e menos mediados pel~. cultura e à sua fácil memorização, a música comunica-se, expande-

, • ------ -e. .' .•

(

-se, passa de geração ~m geração, transmite-se de um povo para. outro, transpondo muitas vezes barreiras, fronteiras políticas, g~o-

gráficas e linguísticascom )lma agilidade e um dinamismo ignora-dos pelas outras artes.Wbr exemplo, o canto sinagogal hebraico,provavelmente, influenciou mais o canto gregoriano do que amúsica grega ou romana; as canções populares dos séculos xv eXVI, ou as festas populares teatrais das povoações e das aldeiasinfluenciaram mais o requintado melodrama barroco do queÉsquilo e Eurípedes. É inútil dar mais exemplos, pois muito facil-mente poderemos formulá-los às dezenas. Podemos ainda recordar,remontando a tempos bem mais recentes, o impacto da músicapopular eslava em diferentes músicos como Smetana, Dvofák,Mahler, Moussorgsky, Janácek, Bartók, Stravinsky, etc.

Para um modelo diferente de historicidade

Contudo, não devemos concluir que a música é um eterno pre-- ...• -.... . - --sente, em que tudo é possível, em que tudo é peITnitido. Trata-se, aoinvés, de reconhecer que a música implica um modelo diferente dehistoricidade, de consciência da sua historicidade e, consequente-mente, de memória histórica. A história, em geral, estuda-se e

44

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA HISTORICIDADE

-;)

\)

)

')

)

).J)

j

j

-.J

J:, J

)-'~,

'..J

..J

(j{-.J

<. r-.J-.J

..J

'..J

(.J'.J

.Jf.J

(Jt)

(){.J

(J()I )

reconstrói-se nos livros, nos arquivos, nas bibliotecas, etc., maspodemos estudá-Ia e· talvez vivê-Ia de outra forma. A música deu--nos, sobretudo no que res eita ao Rassado, um modelo inéditQ. decomo se pode viver e tr1!!1s..!P-Ítkª- históri'!.,_a sua história.ji marzemdos canai;-cultos ; ac~démicos; modelo riem melhor; n~m pior; doqUeo--:-moctel2-humanista e histQricistª-.M~.§..:a~1ÚsjÇa":"Ü2L~cisarrtjpte•fe_itade son§ ~ não de palavras.jíe edl~ª~Ol!.9~ co!es~Çlbre,_tel'!:.

Presentemente, o histo*do~deveterém conta -todos estesaspectos se não quiser desvirtuar completamente a história da música,história por muitos motivos anómala, feita de. mensagens maisenigmáticas, de tempos que não se medem com o calendário, deritmos, de escansão, de invenção e de transmissão que lhe são pró-prios. À música, p0J!anto,E~ falta história, Eem consciência his-tórica, nem historicidade. Podemos talvez concluir afirmando que ~música tem ~ã histõricicfadeCiúe resulta de uma forma diferente deviver a sua história, de nela se inserir e de entrar em relação com as. . .

. outras artes e com a civilização. Qualquer reflexão sobre música, a- ----. . -nível filosófico, histórico, antropológico-ou teórico, não pode deixarde-ter em consideração esta sua situação existencial absolutamentepeculiar e, por seu turno, a estética musical, enquanto reflexão sobrea natureza da I1!úsiça, nãQ..Rodegeixar de ser condicionada e!Qstatusespecial que caracterizQ!!. durante muitos séculos a aI!e dos ~-- -

A teoria da recepção

Recentemente, deu-se maior atenção aos fenómenos associa-dos à recepção da música. Os estudiosos destacaram element,?sfrequentemente negligenciados que estão associados à exp~riênciamusical, corno, por exemplo, o facto de a música ter sem:r;>reum- - ".

çkstinatáriQ, abrindo assim as portas a urna série impensada denovos estudos ~rangem a psicologia, a sociologia, a teoria dainformação, etc. 1\ história da recepção, por exemplo, pode levar aurna reformulação da história da música sob perspectivas bastante

45

Page 23: FUBINI, Enrico. Estética da Música

.,.,..

)

)

)

)

)

)

)

)

)

JJ..J

)

).J).J..J

J)

.J

.J

.JI)

I..J

,)

ESTÉTICA DA MÚSICA

,i'

inovadoras e prometedoras. Neste âmbito, as observações teóricasde Carl Dah1haus são bastante ertinentes e focam com acrudeza oroblema. Nos dias de hoje, não podemos falar de uma verdadeira

história da recepção, mas sim de estudos que se colocam, a nívelteórico e filosófico, o problema de uma história da música que dêconta deste PrincíPio~amentalda sua existência histórica, ouseja, a sua recepção. A ênfase, neste caso, é obviament~.colocada

( ~o momento da interpretação, da ex~cuç~~ e _das ~odalidades. deescuta e não tanto no momento da produção e na consistência daob~~~ra d~~riacão. A ob;; deix~ de ser vista como-~- -- - ... - ~ ~- ..." ~--- ~--- - ----uma essência encerra~.a~~_tempo: do onto de vista ideal, frutode um acto criador que a produz cabalmente ou, na perspectivaillarxista, associada rigidamente à sua época'·histórica-7r;guanto -

. - _ ...- . -~----,._- -- - . ---superestrutura do processo econômico. Segundo a estética darecepção, a ~b;~-de art;-e;-;r;l, e de fo~a ainda mais evident~ a~ ~usic~, projec~a-s~fu~ro ~história em_ ~i~e ;sua_verdadeira vida, oKere~ndo·se ~o_intéIRre~ - quer seja executanteou ouvinte - e' desdobrando a sua vida precisamente na multi lici·

.dade das int~ õ~sjõsSíveis. A relação intérprete-obra não éportanto acidental, mas sim constitutiva da própria vida e essênciada obra. Naturalmente, esta perspectiva não é apenas historiográ-fica, abrange também a forma de conceber a obra de arte. Comefeito, o que põe em causa é a consistência da música enquanto obrade arte encerrada e definida em si mesma. Como justamenteobserva Dah1haus «a visível viragem - às vezes também polémicade um ponto de vista programático - do interesse historiográficopara ahistóriadarecepção,podé entéticier-secomo sendo expressãoe consequênciada crise .emque caiu, nos últimos anos, o conceitode obra encerrada em si mesma, autônoma» (1). Por um lado, pareceque a história da recepção ou, melhor dizendo, a estética da recep-

.J

).J

)

)

)

)

)

)

(1) C. Dahlhaus, Grundlagen der Musikgeschichte, Koln, Amo VoIk Verlag,1980; trad. it. Fondamenti di storiografia musicale, 'Fjesole, Discanto, 1980,p. 187.

46. i

.j

"'1"'-:.• ' t

r

ção tem uma particular congenialidade com alguns aspectos típicosda música contemporânea: a sua abertura ao intérprete através daevidência do momento aleatório, a sua abertura ao fruidor, convo-cando-o muitas vezes a uma espécie de colaboraçã~ criativa,soÜ~i-t~as s~-;e-acçõ'ês cõillõ Parte"cons'tftuti;a -daprópria -;bra q-;:;-e,portanto, tende cada- ~z ~ais a cÍesint~ar-se enquanto unidadecriativa e a fragmentar-se nas formas ~-mq7Ieé recebida' e conti-nuamente recriada ou cri~a. Por outro, a estêt1~a da recepçãocoloca um p;obk-ma maisVãSto: em que medida a obra musicall~g~ elo_p~~do,-..f~~Rrecisamep.te no <:.onceit~ o~ra~cabada e auto-suficiente na sua plenitude, pode ser interpretada,isto é, revivida e dada a viver na sua totalid~d~ justam~nle a~sdo estaque do valor intrínseco da história das suas interpretações,'entendida;co~ mo~ento-interi;r da própria ~ida da ;br; ~~si-~a!? A estética essencialistajião desv;lorizando a ~portância da'pluralidade das interpretações, tendia sempre a compará-Ias com asua adequação, com a «verdade» da obra, que permanecia constantenas multiplicidades históricas e individuais das interpretações.

Estas reflexões filosóficas e historiográficas também põem emcausa o sector dos estudos filológicos, não certamente para menos-prezá-Ias, mas para repensá-los numa perspectiva não tão rigidá-mente ancorada no conceito tradicional de autenticidade. A estéticada recepção. portanto, éaindaum caso em que se manifesta o cruza~mente de experiências diversas como a filosofia hermenêutica,por um lado, e da teflexão sobre a: vanguarda, or outro; dessasexperiêncías, aparentemente muito heterogéneas, resultou umaperspectiva" hlstoriográfica sobr~ a ~úsica bastant~ estim~l~~te e.----- ---'-- - ---" - -----=- pcom imensas consequências também no plano operativo. ~.. ')' ,- -- -- - - .p:\"'-_.__ ~- - ,-- 'VI

. .

Instinto e razão na' música ;?,Ó 10 /O!b V()

r

.~

.'Referimos todas ess~s complexas causas de ordem histórica,ideológica, filosófica, social que contribuíram para determinar a

47

Page 24: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

/

anómalé~storicidade da música. Mas devemos ter em ~nta tam-bém um outro factor mais semelhante à natureza do som;. 'A mú~icaJcomo várias vez~s se observo~ desde -ºs tempos mais antigo..â.,mai~

Ido ue qualquer outra forma d~ arte in~~s aspectos instinti-vos, alóaicos, pré-racionais e pré-linguísticos da natureza humana;e isso parece entrar em contradição com um outro aspecto damúSica, salientado por muitos, ou seja, com a sua profunda racio-

,,' ~.alidade, com o seu caráctér hiper-línguístico, com a sua rígidaorganização matemática: Este tipo ~e. contradição interna presentena arte dos sons constatou-se desde sempre na história do pensa- __mento musical e destacou-se e privilegiou-se ora um aspecto damúsica, ora outro, sem se conseguir conciliar e resolver a contradi-ção interna. Sem dúvida que o desenvolvimento histórico damúsica, tão anómalo em relação à história da civilização, com estescuriosos saltos internos, com esta mobilidade no tempo e no espaço,com esta extraordinária capacidade de combinar. diversos ele-mentos, estilos e civilizações musicais, sonoridades heterogéneas,etc., pode encontrar uma explicação satisfatória precisamente tendoem conta este factor a-histórico e, de certo modo, naturalista,característico apenas da música. O som o~ ~e~envolvimento no <:~~p_o_ segundo_ ritmos ue nada têm. a ver com~regularidade dórelógio, tem antes uma afinidade com os nossosritmos interiores,-- - ._. - -com o nos~o_modo_~experiment~ o fluir do tem o, O aspectosintá~tic~-organizativ.Q. da música, por outras palavras, a sua dimep-são ~stórica, racional e evolutiva não entra em contradição com asua dimensão natural: os dois aspectos coexistem e fazem com quea arte dos sons tenha este efeito mais imediato sobre o homem, uma~olicitação à nossa natureza mais instintiva e física, a-histórica,antes de qualquer especificação sócio-cultural. Isso explica por que.é que existe uma muito maior j~cilid~de em receber as músicas de,outros povos, de outras civilizações, muito distantes da nossa civili-zação ocidental, de outras épocas e ainda por que motivo a aquisi-ção, isto é, a compreensão e a fruição de uma linguagem musi.çalnão pressupõem uma aculturação com arável à necessária para , /"..lI

. rv-- - \ C~ÜLC4l)A b\ S (A,() - -7 C~t~ rf e~(~ + V /I t .

\ )

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA HISTORlCIDADE

)

)

)

I)

J)

)

)

)

)

)

)

..J

.J

.J

.J

adquirir a ling~agem literária~erdade que é necessário aprendera escutar a música, a fruí-la, a desfrutá-Ia, caso contrário não passade um ruído aborrecido e indistinto. ~~ nós já tivemosmuitas vezes a experiência de ue as vias de açesso à músiça, em~'al~~ são de natureza acadérnic~pess~as que ignoram ~~mple-tamente as leis da harmonia, do contraponto e, inclusive, a escrita- - .

musical aproximam-se da música comuma espécie de instinto quelhes permite fruí-la intensa~ent~..sorri:urri~~p..!el)d~zagem ab~0u-tamente essoal, sem nenhuma ,glediaçao _jn~titucional-escolar.

, por outro lado, é igualmente sabido que há pessoas cultas, mas,como se costuma dizer, completamente surdas para a música, aquem nenhum cO~J mento histórico e teórico pode ajudar afruí-Ia plenamentej> .

Tal não implica uma desvalorização do aspecto linguístico,histórico e sintáctico da linguagem musical, aliás, das linguagensmusicais na sua pluralidade e diversidade; uisemos apenas subli-nhar ue além de.toda a linauag~ musical historicamente consti-tuída, há uma eJlpécie_d:~g1L~g~rQ,-ª lingua;"em origi~efunda ~~ eficácia just~~ nessa vertente pré.::li_nguística e 12ro-vavelmente ªt~2!:,é-artística. No entanto, está indissociavelmentepresente em cada obra musical e tem como referentes os elementosinstintivos, obscuros, dificilmente analisáveis, talvez universaisprecisamente pelo seu carácter não linguístico e não mediado, cons-titutivos da natureza humana. Talvez se possa imaginar uma cum-plicidade imaginária entre a natureza temporal do som e a interio-ridade do homem enquanto natureza pré-lógica; hipótese váriasvezes avançada por muitos filósofos a partir de Hegel eSchopenhauer, e por pensadores mais próximos de nós comoBergson, Gisêle, Brelet, Jankélévitch, etc. No fundo, era o que umiluminista como Diderot dizia quando falava de «grito animal» apropósito da música, evocando precisamente este fundo obscuro,instintivo, que se encontra na linguagem musical e que curiosa-mente não contradiz em nada a sua natureza racional e matemática.É claro que este aspecto vital está presente sob diversas formas na

j..J

~

~~.J

J

~)

~.J

))

)

)

)

49

Page 25: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-;)

)

)

~)

j

j

)

.J

)

.J)

j

J.J.J

)

)

)

~) l

ESTÉTICA DA MÚSICA

música e, na tradição ocidental, está indubitavelmente encobertopela força da tradição que se estende ao longo dos séculos, cres-cendo sobre si mesma e formando um espesso manto linguístico, doqual se geram a si mesmos os estilos e as formas, as suas transfor-mações e evoluções. Todavia, todas as grandes novidades, inclusivena música ocidental, surgem de improvisações rejeitadas pelatradição, do aumento de improvisações da linguagem à margem dasregras e da racionalidade em que parecia concretizar-se o seu signi-ficado, de forma a alcançar a força e a originalidade dos elementosobscuros e não racionalizáveis que tocam mais de perto a naturezapré-lógica do homem e da sociedade.

Interpretação e improvisação

l)m.::tprova desta natureza ambígua e bifronte da música pod~encontrar-se em alguns-fenómenos ~ar-acterísticosda sua vida, prin-cipalmente no" fenómeno da interpretação, que já referimos: é'sabido que todas as artes chamadas temporais necessitam da inter-pretação para poderem voltar a viver_após o momento da suacriação.l e a natureza êi~~teS"édesenrolarem-s~ ~o temp~ asua sobrevivência na história de~ ser assegura<!.~poralguma formade grafia 3.ue~onserv~ uma imagem da sua vida até ao momel!!~que o lQtérp...!.etea faça reviver na sua natureza tem oral. É este ocaso da música. Mas o que pode ser uma necessidade, no caso damúsica, torna-se uma arte adicional: o intérprete - maestro ou exe-cutante - disputa, às vezes,' o mérito' da:criatividade com o própriocompositor e; seja como for, é uma figura dotada de autonomia e degrande relevo artístico. Como se sabe, ao intérprete cabe-lJ:!eler apartitura, mas quem tiver a mínima experiência que seja do uei~lica: a interpretação ~usical sabe bem que se trata d~ma arteambígl~a~'wbtil, e~-que_nã;~ de to'd; ~lar~q~;l i~f~~~~--_.-- ..- - -- ,-~ - -. -"-executar o que está escrito na partitura e recriar com a sua perso-nalidade o que existe apenas nos andamentos da 2artitura. Muitos~ . - ,-"". -~. - -- ~

50

I,I

II

I/"

.)i

A MÚSICA E o SENTIDO DA SUA mSTORlCIDADE

filósofos e musicólogos no nosso século têm sublinhado que anatureza da música essencialmente improvisação, se oculta no actode interpretação te a improvisação torna-se evidente que o aspectoda criatividade como impulso imediato e, em parte, alógico, bemcomo a interpretação-execução, é sempre um acto criativo deimprovisação, Além disso, o intérprete manifesta na sua própriaexecução o c~nt~.!2...~ nível ~~~~ físico, iEstint~~, <:.om_a obr~ .musical; o ímpeto da criação, os seus ritmos interiores, o fluxo'IDêl6dicocom as suas vibrações, com as suas pausas, as suas 'infle-xões, tornam-se do intérprete que os vive fisicamente na primeirapessoa e os torna reais, audíveis, palpáveis através do exercícioconcreto da sua arte, uma operação simultaneamente física emental. Esta vida secreta da obra musical, esta sua pulsação notempo, não pode ser expressa e escrita na partitura que, aliás, temapenas a função de esboço, de esquema, de memorando para sugerirao intérprete o melhor caminho para entrar no coração da obramusical, dificilmente traduzível em signos gráficos, mesmo nos damais perfeita notação.

51

Page 26: FUBINI, Enrico. Estética da Música

53

-;)

)

)

)

)

JI' )

)

)

.~

~

JJ)

J'j

Jj

'J..J)

iJ

Jf..J

f)

..J

f)

'j

,)

)

(J')

( )

)

Capítulo 4.

Música e Percepção

Música «percebida» e música «pensada»

Na percepção musical, assim como na própria estrutura damúsica, existem elementos que não são reconduzíveis à história, 11cultura e muito menos à convenção, Todavia, o elemento universalou, melhor, os elementos que representam as condições a priori dasquais não podemos prescindir -as regras básicas que a linguagemdeve em todo o caso respeitar para se poder apresentar à percepçãode forma a ser compreendida e interpretada - encontram-se extre-mamente interligados com o que, ao invés, é claramente histórico ecultural: as duas linhas intersectam-se estritamente no ponto em quetalvez se possa falar não de elementos separados, mas sim de ten~ .dências no interior das quais se movem forças que propendem maispara a dimensão histórica e forças que mostram, pelo contrário, atendência para um elemento que podemos chamar naturalista,O que importa afirmar é que nem tudo é possível no âmbito dacriação musical, embora seja muito difícil traçar uma linha: rígida dedemarcação entre legítimo e ilegítimo. Aliás, muitas vezes surge adúvida de que é impossível traçá-Ia, na medida em que os doismomentos, o histórico e o natural, tendem a sobrepor-se e, emúltima instância, a confundir-se um com o outro. A percepção musi-

Page 27: FUBINI, Enrico. Estética da Música

')

)

) :;1

)~ '!

)" ~~i

) r; 1~~

~)

)

~)

)

J)

)

)

J;

>'J ~i) ~ I

ri.) ~,I..J >1. ,

!;

" '~,i

ESTÉTICA DA MÚSICA

cal configura-se numa dada estrutura de acordo com limites queparecem insuperáveis, tal como os sons acima ou abaixo de deter-minadas frequências não são audíveis pelo ouvido humano; assimcomo certas construções linguísticas não são perceptíveis peloouvido humano ou pela inteligência musical humana como música,mas parecem ser apenas um conjuntodesordenado ou desarticuladode sons-ruídos.

A tomada de consciência deste facto pode ter importantesrepercussões a diversos níveis. ~m primeiro IºW, a nível da crítica

, e da história da música há frequentemente o hábitº-d~~r.J.asobras musicais c<?mo-se tivessem u~a vida indegendente da ps:rcep';:ção-a ue, aliás estãp_Jkstinadas. Analisa-se a sua estrutura e des-codifica-se a obra a nível da linguagem que preside à sua constru-ção, porém, na maioria das vezes esquece-se que tudo isso deve teruma correspondência a nível perceptivo, nível para o qual foicriada (1). Entre f2rmaye~ebi~a e forma concebida.parece, haver;às vezes, -um hiato, que se verifica em particular na música~doséci:iloXX:Contudo, nã~ se deve por isso concluir que essa músicanão existe ou não é válida, mas sim que há uma r~l~o dialécticaentre os dois planos em que a música se apresenta-Por outro lado,na música:de todas as épocas há uma relação dialéctica entre músicapercebida e música concebida, pelo que não é uma novidadeabsoluta da música do século xx. Na música de J. . Bach, deB~tho~n ou, retroced~~ mai§ ainda no,.Jemp9,_l1lLpoolifoniafl~enga. o~ no madriga.~i~modo ~~EuI9__~YI,_ não estará .talvez

:.~

) ,',.

(I) Schõnberg tinha plena consciência de que existe uma música feita paraos olhos e não para os ouvidos, cujo valor é completamente intelectual. Emrodapé a Um cânone enigmático enviado a Thomas Mann, em 1945, Schõnbergescrevia' a dedicatória: «Talvez precisamente para vos dar uma especialdemonstração da minha estima, compus este cânone tão difícil, para não dizerimpossível. Ouvi-Ia é igualmente impossível e espero que vós não o queiraisescutar ...» (Testi per canone, in Schõnberg, Testi poetici e drammatici, Milão,Feltrinelli, 1967, p, 219).

J)

)

)

)

)

) l 54 '

MÚSICA E PERCEpÇÃO

presente esta tensão entre os dois planos em que se apresen~ramusical enão será talvez impossível perceber e ouvir tudo o_quefoiconcebido e projectado?

Natureza e história na linguagem musical

A ideia de que a percepção da música tem o seu fundamentona natureza do homem e de que as regras que presidem à compo-sição musical são, ao invés, em boa parte fruto da cultura e, por-tanto, da história, apresentou-se mais do que uma vez ao pensa-mento ocidental, se bem que não de modo unívoco. Com efeito,encontramos também a ideia oposta, ou seja, a de que a percepçãoe a compreensão da música são fruto essencialmente do hábito eque, por conseguinte, a audição é completamenteinterpretáve1 noseu processo histórico, em íntima relação com a aculturação dohomem, ao passo que a estrutura da música é efectivamente umelemento eterno, congénito com a própria natureza da música e,portanto, não alterável nos seus fundamentos. Estas teses contra-ditórias encontraram respeitáveis defensores desde a mais remotaAntiguidade. As duas teses acima expostas, não se agrupam apenassegundo a ordem em que aqui foram expostas, aliás.jnuitas vezes ~tese da naturalidade da,linguagem musical agrupa-se à tese de umaigual naturalidade da percepção da música, enquanto a tese dahistoricidade da linguagem se agmpa frequentemente à ideia deumahistoricidade paralela da percepção musical. As revoluções dali~auaaem ocorridas no decurso do século xx induziram, seÜ\;l

b o .. :..!,

dúvida, os pensadores e os teóricos da música a considerar que aslinguagens musicais eram, sempre e. em todo o caso, totalmenteinterpretáveis historicamente e que,assim sendo, a percepção detais linguagens só tinha de encontrar também um sólido substratocultural e habitual que permitisse ao ouvido familiarizar-se com oque, à primeira, lhe parecia estranho e hostil em relação aos hábitosperceptivos do passado.

55

Page 28: FUBINI, Enrico. Estética da Música

I'~____ ~~~~ii?

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

')

)

)

,)

ESTÉTlCA DA MÚSICAMÚSICA E PERCEPÇÃO

Schõnberg, um dos maximos responsáveis pelas revoluçõeslinguísticas do século passado, tinha consciência de que as lingua-gens musicais estão em constante mutação e de que o ouvido podee deve habituar-se às novas sonoridades. Com efeito, afirmava:«Mas o destino adquirido com propriedade'é que elas acabam porse desgastar. Não terá talvez sucedido o mesmo com. a tonalidadeem relação aos modos gregorianos? Hoje costuma dizer-se que"os modos gregorianos não eram naturais" e que "os modosmodernos coincidem Com as leis da natureza"; mas, emlempos:,também se dizia que os. modos gregorianoscoincidiam comas leisnaturais. E, no fundo, até que ponto é que as nossas escalas maiorese menores coincidem com as leis naturais, visto que constituem umsistema temperado?» (2)

Quem era propenso a afirmar que na música está presente. apenas um elemento não historicizável e, portanto, universal, inde-pendente das variáveis históricas e que a percepção da música estásujeita a insuperáveis condicionamentos «naturais», não produzidosnem pelos costumes, nem pela história, parecia que devia ser cata-logado como conservador, se não mesmo reaccionário, e que traziaconsigo o pensamento musical de muitos séculos. Até há poucasdécadas quem defendia a naturalidade da linguagem musicalreferia-se evidentemente à linguagem tonal e sujeitava-se, assim, àfácil objecção de que na história nem sempre existiu a linguagemtonal e que muitos outros povos, não sendo de todo primitivos, usamoutras linguagens, outras escalas, outras harmonias. De Stravinskya Hindenúth, de E. Ansermet a Gisêle Brelet, os defensores docarácter eterno e necessário da tonalidade face às ousadias dasvanguardas históricas da primeira metade do século xx, no fundo,reduziam-se à negação da validade da revolução ·linguística emcurso, expondo-se, portanto, à acusação de não compreenderem o

seu tempo e de não estarem abertos às propostas dos músicos maisrevolucio~ários (3).

A situação moderna é bastante distinta e, após o fim das van-cru ardas históricas e das de Darmstadt, podemos lançarum olharbastante diferente sobre o passado. Existem ainda dúvidas sobre avalidade das novas linguagens, mas sob uma diferente perspectiva.Os receios recaíram sobre as implicações 'ideológ~càs negativas econservadoras ao fazerem-se. discursos sobre' a .naturalidade dapercepção musical e ao afirmar-se que existem limites intrahspon~cveis para todas as linguagens musicais dada a sua total incapaci-dade de comunicar. Assim, podemos ter dúvidas sobre a historici-dade, em sentido radical, das linguagens musicais e aventar ahipótese de na raiz da pluralidade das linguagens musicais ha:ertalvez uma ur-linguagem, uma espécie de gramática generattva- como dizia Chomsky a propósito da linguagem verbal-, que estápa origem da pluralidade das linguagens sem sermos acusados de.conservadorismo. O que, evidentemente, implica. uma série demudanças no nosso comportamento face à história da música, àmúsica dos outros povos, às novas linguagens do século xx. Entrousezuramente em crise o modelo de pensamento segundo o qual háb

uma evolução das linguagens musicais, na medida em que cadauma delas já contém em si os germes da sua dissolução e da sua

)

)

J)

)

')

)

{.J

().J

')

)

I)

(3) Schõnberg tem ideias muito claras a propósito e, com efeito, afirma que«a diferença (entre consonância e dissonância) é, portanto, gradual e não substan-cial, como se nota também pelos algarismos que exprimem o número das vibra-cões estes não são antitéticos tal como não o são o número dois e o número dez;~ as 'expressões "consonância" e "dissonância", que indicam uma antítese, estãoerradas: depende apenas da capacidade crescente do ouvido de se familiarizar atécom os sons harmónicos mais distantes, alargando desse modo o conceito de «somapto a produzir um efeito de arte", por forma a que todos os fenómenos n~turais,no seu conjunto, aí tenham lugar» (ibidem, p. 24). O problema, para Schonberg,é, por conseguinte, apenas uma maior ou menor familiaridade com o mundo dossons na sua totalidade, que pode passar a fazer parte de legítimo direito, semlimitação alguma, do mundo da música. )

I)

(2) A. SchOnberg, Manuale di armonia, MiJano, Il Saggiatore, 1963,p.36.

56S7 )

)

)

Page 29: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

))

)

)

)

)

).J

)

J)

)

)

)

J-,J

)

)

J.J

JJ-.J

)

.J ,

.J-.J.J

)

)

)

)

j

ESTÉTICA DA MÚSICA

superação no interior de um deterrninismo histórico a que não podeescapar (4).

Observou-se frequentemente que a vanguarda, nos seus pro-jectos de composições, não teve em consideração o facto de não tor-nar perceptível a ideia musical que está na sua base. Perante requin-tadas e complexas construções musicais verifica-se a impossibilidadede as perceber auditivamente. Por outro lado, sublinhou-se que amesma melodia serial, a partir de cuidadosas experiências feitas pelospsicólogos da música, não é facilmente memorizável por músicosentendidos e ainda menos por um comum ouvinte, ao passo que amelodia tonal é sempre muito mais facilmente memorizável. Poder--se-ia ainda simplesmente argumentar que a nossa memória musicalestá educada para a melodia tonal e. não está ainda igualmente edu-cada para a melodia serial. Mas também se pode deduzir que uma éintrinsecamente mais difícil de memorizar do que a outra porque nãoé hierarquizada, na medida em que não tem um centro em torno doqual gravita a própria melodia; por outras palavras, pode deduzir-seque as dificuldades não são de carácter cultural mas sim estrutural (5).

(4) Sch6nberg afirmava ainda significativamente: «Ele (o aluno) tem desaber que as condições da dissolução do sistema estão contidas nas próprias con-dições que o determinam e que, em tudo o que vive, existe aquilo que modifica,desenvolve e destrói a vida. A vida e a morte estão contidas na mesma semente eno meio está apenas o teinpo, isto é, nada de essencial, que acaba apenas porultrapassar os seus limites. A partir deste exemplo deve aprender o que é eterno:a mudança; e o que é temporal: a existência ... e que, portanto, as leis que queriampassar por leis de natureza nasceIIl do desejo de tratar o material de forma exactado ponto de vista artesarraL..».(ibidem; p. 37). .

(5) Cf: R. Francês, La. perception de Ia musique, Paris, Vrin, 1958. Esteestudo, fundamental para oposterior desenvolvimento da psicologia da música,abordava precisamente, numa perspectiva experimental, a questão da possibili-dade e da substancial dificuldade de o ouvido perceber a série e fazia assim umaclar~ distinção entre forma percebida e forma concebida. A este propósito veja-setambém M. Imberty, La scuola francese, in La psicologia della nascita in Europae in Italia, organizado por G. Stefani e por F. Ferrari, Bolonha, Clueb, 1985; eainda do mesmo autor: Prospettive cognitiviste nella psicologia musicale odierna,in «Rivista Italiana di Musicologia», nn. 1-2,2000.

58

i~1

j

i...~-

MÚSICA E PERCEPÇÃO

Face a estes e inúmeros outros resultados da investigação experi-mental, muitos estudiosos acreditaram poder concluir que a tona-lidade é mais natural ou, o que é quase o mesmo, é mais consonantecom a estrutura do ouvido humano; mas as conclusões podem sermuito mais articuladas. Na verdade, as experiências não conduzemde modo algum à conclusão de um privilégio da tonalidade emrelação à serialidade, antes à formulação da hipótese de que hácondições sem as quais a audição e a percepção musical se tornampraticamente impossíveis ou entram em crise. A tonalidade cumpreexemplarmente estas condições, mas tal não implica que as outraslinguagens musicais não as possam cumprir igualmente bem, comoefectivamente acontece, por exemplo, nas culturas musicais doOriente.

O problema de educação do nosso ouvido existe e, portanto,não deve ser menosprezado. O nosso ouvido de homens ocidentaisestá fortemente educado para a música tonal e para o tipo de hierar-quização das notas e dos intervalos no interior da escala diatónicaque essa implica e sente-se deslocado e perplexo face a uma melo-diamodal ou a músicas construídas em escalas pentatónicas. Nestecaso, a educação e o hábito têm evidentemente uma função primá-ria; todavia, o ouvido não tem nenhuma dificuldade em particularem habituar-se a linguagens diferentes da linguagem tonal.

. )Mesmo permanecendo nesta perspectiva, encontram-se

problemas complexos no que toca a linguagem serial, no entantoseria inútil entrincheirarmo-nos numa negação abstracta e teórica:Observou-se COm freqüência que a música serial ganhou signi-ficado pelo facto de o ouvido a confrontar, instintiva e conscientecfomente, com a linguagem tonal e encontrar nela um sentido que essa'não lhe concede mas que gostaria que lhe concedesse. Por outrolado, a organização serial dos sons coloca-nos perante uma constru-ção rigorosa, embora não perceptível, que temos seus fundamentosem determinados modelos de raciocínio talvez mais consonantescom o pensamento hodierno no que respeita à lógica newtoniana ougalilaica. Intelectualmente podemos compreender que a música

59

Page 30: FUBINI, Enrico. Estética da Música

60 61

)

)

)

)

I' )

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

I)

)

)

)

)

Jf)

.J

()

!)

.)

I't)

)i, t )

)

r I

)

)

)

ESTtTICA DA MÚSICA MÚSICA E PERCEPÇÃO

seria], na medida em que de certa forma não satisfaz o ouvido, nosabre precisamente a espiral de um mundo outro, se bem que alta-mente problemático, mundo que funciona com uma outra lógicaque não a do mundo tradicional. Talvez toda a música de vanzuarda

. .. b

represente urna grande e nobre utopia, mas, corno todas as utopiasna sua irrealidade, pode ter consequências positivas e satisfazerexpectativas ainda que diferentes das que tradicionalmente se têmem relação à uma obra musical.

não se apresentam as mesmas dificuldades que temos perante umalinguagem verbal desconhecida, que requer meses e anos para seraprendida. Talvez seja precisamente a presença de um fundo musi-cal comum em todas as linguagens musicais que nos permite per-

. cebê-las como significativas num espaço de tempo muito maiscurto, por muito distante que estejam dos nossos hábitos auditivos.Este fundo comum é mais característico da estrutura da nossapercepção auditiva e não tant9 daestrut~ra musicàl: toda a músicaque se funda e articula nestes dados ou esquemas elementares, masfundamentais, da percepção torna-se compreensível, sem necessi-dade de tradução alguma até para o ouvido mais inexperiente,menos educado para as linguagens musicais. Há, portanto, um ele-mentoque, para abreviar, podemos chamar instintivo ou natural quenos permite perceber, após breves aculturações~ músicas mesmofora do nosso horizonte cultural.

Todos têm experiência que não é, pois, tão difícil, mesmo parauma pessoa musicalmente inexperiente, escutar música africana,que se funda principalmente em ritmos e não tanto na melodia, emúsicas orientais, que se baseiam em escalas completamente diver-sas das nossas escalas diatónicas. Um certo grau de inatismo depredisposição para a música pode ser uma prova de que a músicaage e assenta em qualidades que não se adquirem com o estudo ecom a cultura, que são, pelo menos em parte, independentes daaculturação e que graças a elas somos capazes de compreendertodos os géneros de expressão musical.

É difícil tirar ilações peremptórias destas breves reflexões.Sem dúvida que está presente na música um emaranhado deelementos, dificilmente distinguíveis, que parecem estar numirremediável conflito entre si: natureza e cultura. Na realidade, aco-presença de ambos é absolutamente necessária paraqlle se possafalar de música e não de vagidos infantis ou de um amontoado desons incompreensíveis à nossa percepção auditiva. Talvez sejaimpossível determinar até onde chega a natureza e onde começa acultura porque a fronteira se desloca continuamente com a mudança

Intraduzibilidade e universalidade da linguagem musical

Se admitirmos a hipótese de' que na linguagem musical estápresente um dado elementar, biológico e psicológico universal

. talvez se possam apreender alguns fenómenos de outro mododificilmente explicáveis. Em primeiro lugar, é sintomático que afruição da linguagem musical tenha um certo grau de universali-dade. Disse-se muitas vezes que uma das características maissalientes da linguagem musical, relativamente à linzuazem verbal<> b ,

é a sua intraduzibilidade. As notas, os sons, os agrupamentos signi-ficativos de sons não são palavras e, portanto, não são traduzíveispara uma outra linguagem, nem mesmo para outra linguagem musi-caL Poderíamos então dizer que, precisamente por causa destaintraduzibilidade para outra linguagem que não a que conhecemos,em que fomos educados, ser-nos-ia negada a possibilidade de per-ceber, receber, fruir outras linguagens de outras épocas ou de outrasregiões geográficas e culturais. Contudo, apesar desta intraduzibili-dade de fundo, sabe-se que as coisas não se colocam exactamentenestes termos. É verdade que quando se escuta, pela primeira vez,música estranha ao nosso mundo cultural-musical a compreensão setorna difícil; mas também é verdade que, mesmo sem especiaisnoções gramaticais e sintácticas acerca da música que escutamospela primeira vez, temos a possibilidade de penetrar na nova lingua-gem com uma relativa facilidade e, seja como for, com certeza que

Page 31: FUBINI, Enrico. Estética da Música

')

)

)

)

j

j

)

)

)

j

)

)

) iI

j '~I

'~.

->)

j

.J

->

)

)

.J.

,.)

j

J)

)

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

da perspectiva histórica e cultural. Não é obrigatório o músico terem conta, somente para se adequar, o elemento inato, universal ounatural presente na estrutura da percepção: pode acontecer até quea música se oponha a tal elemento, vá contra ele. Talvez o maisimportante seja o músico relacionar-se de alguma forma com a estru-tura da percepção, inclusive para se opor àsua criação. Na verdade,o homem possui indubitavelmente uma natureza própria que nãopode ser esquecida; mas quantas vezes consegue agir o homemcontra a sua natureza, voar quando estava destinado a caminhar naterra, transpor os limites que a natureza lhe parecia ter imposto deforma iniludível? No fundo, aquilo de que não podemos abdicar, namúsica bem como em outros domínios, é a relação com estasestruturas naturais, mesmo que seja para as negar, para as superar,mas nunca para as esquecer e agir como se nunca tivessem existido.

A caminho de uma «globalização» da linguagem musical?

Se pensarmos na história da música do século XVIII até aosnossos dias, podemos facilmente identificar um fenómeno pendu-lar: épocas. em que prevalecia a tendência para um processo deuniversalização da linguagem musical alternaram com épocas emque nós parecia predominar a tendência para a diversificação, paraa descoberta e para a valorização dos particularismos, Todo o Ilurni-nismo na música foi dominado pelo imperialismo vianense e pelatendência a impor o estilo, as formas, o gosto e a sua linguagemcomounivásdl,abs~luta,~orrio uma realização associada a umnível superior da civilização humana. Nível esse que todos, maiscedo ou mais tarde, alcançariam. Fortes impulsos de corrente con-trária semanifestaram ao longo de todo o século XIX e ainda nasprimeiras décadas do século xx. O desenvolvimento da etnornusi-cologia, a descoberta da música de outros povos distantes de nós,distantes do nosso eurocentrismo, a crise da linguagem, tonal e ainvenção de outros sistemas, em primeiro lugar o da dodecafonia,

62

1

Ij

I~

II

MÚSICA E PERCEPÇÃO

tiveram um impacto determinante ao criarem a consciência damultiplicidade de estilos e de pensamentos musicais. Puderam,assim, coexistir no século xx a tradição vienense schõnbergianacom Bartók e Kodaly, Prokofiev e Schostakovich com Stravinsky eCage, Varêse e Milhaud com Messian e Stockhausen. A multipli-cidade de linguagens no interior da própria música chamada culta eacadémica vinha reforçar a já radicada convicção de que a lingua-gem musical era plural, isto é, um produto simultaneamente histó-rico e social, e de que a variedade de estilos, modos, formas eabordagens tão diversas não tinha muito a ver com as diferentessituações de cada país, de cada zona geográfica, de cada tradição e,segundo uma visão marxista, com a classe social dominante. Con-tudo, se o pluralismo permanece ainda uma ideia muito em voga,não podemos deixar de salientar que nestas últimas décadas atendência na música, e não só, foi na direcção oposta e não é poracaso que hoje se fala tanto de globalização em outros campos paraalém do campo econórnico. No espaço de poucos anos deu-se umimpulso unificador, pelo que, pondo entre parêntesis as retaguardas(ou seja, o que permanecia associado a posições aparentementesuperadas e fora de moda), as vanguardas tendiam de facto para aunificação das linguagens. Nunca corno nestas décadas, músicos devanguarda nascidos em Tóquio.Los Angeles, Colóniaou Milão seassemelharam nas suas .produções, ou melhor, é bastante difícil,para o ouvinte,distingui-los com base nos países de origem ou combase nos princípios, supostamente diversos, em que se funda a .música. de cada um deles. Observou-se várias vezes que o músicodito zeloso se diferencia muito pouco ou quase nada do colega não ljzeloso ou daquele que nega radicalmente o próprio princípio de "zelo. A linguagem musical, se é que ainda se pode falar de lingua-gem, levou ao longo de muitos anos a uma concreta unificação.Poderíamos· dizer, .para utilizar uma terminologia mais conhecida,que levou a uma intemacionalização.

Mas como terá ocorrido esieuniversalização nas vanguardasdo pós-guerra? É inútil referir aqui ós imensos lugares comuns da

63

Page 32: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉT1CA DA MÚS1CA

.~

nossa civilização de massas que tende a uniformizar todas as for-mas de expressão humana, a estandardizã-las em chavões predis-postos a criar linguagens «universais», iguais tanto em Tóquiocomo em Nova lorque,ou tanto em Colónia como em. Los Angeles.E é óbvio que este processo que se verificou em todas as linguagense comportamentos humanos não pôde deixar de influenciar a lin-guagem musical, tendendo a sufocar e a apagar os particularismos,as peculiaridades, as tradições locais, relegadas agora para os estu-dos mais específicos, museus de folclore, colecções de fitas magné-ticas ou cátedras universitárias. Mas não é apenas este fenómeno,demasiado conhecido para que nos detenhamos nele, a impulsionaro processo de universalização. Além dei aumento vertiginoso dasmudanças culturais ao intensificar-se a informação a todos osníveis, devemos ter em conta, no âmbito deste processo, a uniformi-zação dos instrumentos musicais, bem como a importância dadifusão da música electrónica e do uso do computador. Este últimofenómeno deu um novo impulso à criação de uma linguagem musi-cal que, mais do que universal no sentido clássico da palavra, é, .poderíamos dizer, internacional.

Em certos aspectos, poderíamos talvez concluir que a músicadestas últimas décadas, na sua práxisconcreta, favoreceu a consoli-dação da antiga teoria, que parecia já ultrapassada, da universali-dade da linguagem musical. É inegável que, de um ponto de vistacompletamente empírico, não se pode deixar de constatar que, hoje,a linguagem musical tende cada vez mais a abrir-se a uma unifor-midade - em que Leste, Ocidente, Sul e Norte tendem cada vezmais a aproximar-se e, em última análise, a confundir-se. As parti-cularidades nacionais, as tradições históricas tendem a uniformi-zar-se cada vez mais. Mas o problema é perceber o que está pordetrás desta tendencial uniformidade. De que linguagem musical setrata? Será uma das muitas linguagens que estão presentes nahistória da música? Será a linguagem que nasceu de uma certa evo-lução da dodecafonia e do serialismo, ou um novo commonwealtlimusical, ou será ainda a linguagem universal que finalmente triun-

64

MÚSICA E PERCEPÇÃO

)

)

)

)

)

),)

)

)

J

)

)

)

)

)

,)

)

J)

J..J

'J)

)

, )

)

)

J/ )

" )

( )

~~ / )

)

)

fou sobre todos os anteriores particularismos? Não é fácil respondera problemas tão intriricados que implicam juízos históricos quetalvez se arrisquem a ser demasiado genéricos sobre fenómenosarticulados e complexos. Certo é que, actualmente, a tendencialuniformização das linguagens musicais volta a pôr em discussão erepropõe um velho problema: em que medida, e em que sentido, alinguagem musical se pode consideraruniversal. independente-mente dos particularismos históricos e geográficos?

65

Page 33: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

Segunda Parte

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

~)

)

)

~)

)

Jj

~)

Jj

J.j.

;.. ) .

JY)

)

J)

Breve Históriado Pensamento Musical

II

1III

'Jli

)

Page 34: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

).)

)

)

'J

)

)

)

)

)

)

.)

)

Capítuloé.

o Mundo Antigo

Dos pitagôricos a Damão de Oa

. Reconstruir um esboço que seja do pensamento musical naAntiguidade grega apresenta várias dificuldades, sobretudo nosséculos mais antigos: os testemunhos são imensos, mas geralmenteindirectos e fragmentados. Apesar de revelarem, sem dúvida, umacultura musical bastante extensa e deixarem entrever uma socie-dade em que a música tinha um lugar de não secundária importân-cia, não são suficientes para nos fornecerem uma imagem fiel dopensamento musical na Antiguidade grega, na medida em que prati-camente não há fontes directas, isto é, músicas concretas. Isso nãose verifica apenas no período arcaico, pois não há vestígios da pro-dução musical do mundo grego, com excepção de poucos fragmen-tos de leitura imprecisa. Dos tempos de Damão de Oa e de Platão,os testemunhos teóricos e filosóficos já não são fragmentados erepresentam o desenvolvimento de um pensamento articulado inte-grado num complexo contexto filosófico; todavia, reconstruir umpensamento sobre a música sem poder ter em consideração aprodução musical concreta da época constitui sempre uma grandedificuldade. Por outro lado, não obstante esta grave e incolmatávellacuna, é no pensamento grego que se encontram as raízes da nossa

)

')

)

)I;i;

'\ )

)

)

)

)

)

)

)

)

69

Page 35: FUBINI, Enrico. Estética da Música

).)))

j

J~)

J)

)

~.J

).J

~).J

)

~.

~.J

,j

J)

)

)

Jj

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

civilização musical. As concepções elaboradas sobre música pelomundo antigo tiveram uma importância histórica tal que deixarammarcas profundas mesmo em tempos recentes, embora não tenha-mos clara consciência disso,

Todo o pensamento sobre a música dos Gregos é dominadopelo tema da relevância ética, positiva ou negativa, da música nasociedade. O quesito se, e entre que limites, a música se pode consi-derar um elemento educativo do ponto de vista social é fundamentalno pensamento grego e representa o núcleo duro em tomo do qualse articula a problemática sobre a relevância ética da própriamúsica. Antes de mais, importa esclarecer que o conceito de músicana cultura antiga é bastante diferente do conceito moderno demúsica como arte com contornos bem definidos. Musike, no mundogrego, significava um conjunto de actividades que abrangia desde aginástica e a dança até à poesia e ao teatro, compreendendo, por-tanto, a música e o canto em sentido estrito. O problema da rele-vância ética da música está no centro de um grande número demitos mais antigos, assim como do pensamento dos pitagóricos. Porisso, poder-se-ia falar em sentido lato de uma concepção utilitaristada música ou, seja como for, instrumental, na medida em que amüsicapode ser útil à sociedade na educação do homem. O Pseudo--Plutarco, no seu tratado De musica - que remonta ao século m d. C.e representa uma das mais importantes fontes para reconstruir opensamento musical da antiguidade -, afirma, referindo-se à épocahomérica e evocando a mítica figura do centauro Quirão (1), que era«professor não só. de música roas também de justiça e de medicina»,antecipando assim alg\ms dos temas chave do pensamento pita-górico .sobre música. Com efeito, a escola filosófica em que amúsica assumiu uma particular relevância foi a escola pitagórica.

(I) Pseudo-Plutarco, De musica, 40 (tradução do texto da F. Lasserre,Olten-Lausanne, Graf, 1954). Obra da época helénica, fonte fundamental para oconhecimento do pensamento musical da antiguidade grega, foi editada porF. Lasserre, Plutarque de ia musique, Olten-Lausanne, Graf, 1954 (texto grego e

tradução francesa).

70

o MUNDO ANTIGO

O conceito de harmonia, embora seja central na especulação dospitagóricos, é um conceito musical apenas por analogia, ou porextensão, pois o seu significado primeiro é antes de mais meta-físico. A harmonia é concebida pelos pitagóricos como unificaçãode contrários, o pitagórico Filolau afirma que: «a harmonia só nascedos contrários; porque a harmonia é unificação de muitos termosmesclados e acordo de elementos discordantes» (2). Dado comoponto assente este princípio, podemos estender o conceito deharmonia quer ao Universo concebido como um todo, quer à alma,como afirma Aristóte1es, reportando-se às ideias dos pitagóricos naPolítica, bem como no De anima. O conceito de harmonia com-pleta-se com outro conceito bastante mais obscuro de número, queparece ser, para os pitagóricos, fundamento de todas as coisas e ,portanto, afim ao conceito de harmonia .

Tais conceitos, que têm evidentemente um valor sobretudometafórico e que tiveram muitas consequências para a história dopensamento musical, foram compreendidos diversamente pelospróprios pitagóricos. Com efeito, para alguns, o Universo parece serfeito de números, ao passo que, para outros, esses constituem a har-monia na qual se funda o mundo e, para outros ainda, os númerossão o modelo originário do mundo a partir do qual nascem todas as'coisas. É impossível aprofundar nest~ estudo a complexa doutrinado númeroe· das suas várias interpretações, já trazidas à luz por'Aristóteles na sua metafísica;basta apenas recordar a importânciaque ela teve na história do pensamento musical, uma vez que, para'os pitagoricos, a natureza mais profunda da harmonia e do númeroé revelada exactamente pela música.. . . . fi

Convém esclarecer desde logo o que se pode entender por r,

música neste contexto. Se é verdade que as relações entre os sonspodem ser expressas em números, como afirma o pitagóricoFilolau, e se tais relações musicais exprimem da forma mais tan-

(2) Cf. H. Diels e W. Krantz, Fragmente der vorsokraiiker, 3 vols., Berlim,Weidmann, 1956-1959,44 B 10.

71

Page 36: FUBINI, Enrico. Estética da Música

J

J

')

J

Jf..J

, ))

,)II f)~f:~ I )1,'I~== ~ ~ ~ ~ ~ __~ ~~·nL~~~)

ESTÉTICA DA MÚSICA

gível e evidente a natureza da harmonia universal, então as relaçõesentre os sons podem ser vistas como modelo da mesma harmoniauniversal. A música toma-se assim um conceito abstracto que nãocoincide necessariamente com a música tal .corno é comummentecompreendida. Por conseguinte, a música pode ser .não só aquelaproduzida pelo som dos instrumentos, mas também, e; com maiorrazão, o estudo teórico dos intervalos musicais ou inclusive amúsica hipotética, aliás inaudível, produzida pelos astros que giramno cosmos segundo leis numéricas e proporções harmônicas. Abre-

, -se então no pensamento grego, ? partir dos pitagóricos, a fracturaque terá um peso determinante em todo o desenvolvimentosucessivo do pensamento musical, entre a música puramente pen-sável e a música audível, privilegiando claramente a primeira.

Um outro conceito importante no que respeita às doutrinas damúsica dos pitagóricos é a catarse. Como referimos anteriormente,o poder da música sobre a alma humana funda-se na afinidade coma sua essência constitutiva. Porém, os pitagóricos foram mais longe,afirmando que a música tem o poder de restabelecer a harmoniaperturbada da nossa alma. Daqui nasce um dos conceitos-chave detoda a estética musical, e não só musical, da antiguidade, isto é, oconceito de catarse. Purificação significava essencialmente remédiopara a alma; a ligação da música com a medicina é antiquíssima e acrença no poder mágico-encantatório da música remonta a temposanteriores a Pitágoras; este conceito encontra-se em outras regiõesculturais e sobreviveu até aos nossos tempos em muitos povos.Todavia, os pitagóricos têm o mérito de precisar esse conceitoconferindo-lhe uma dimensão manifestamente ética e pedagógica.Esta concepção catártica da música deve ser relacionada com adoutrina da harmonia como conciliação e equilíbrio de contrários.

A função catártica da música pode exercer-se de duas formasdiversas: a música, segundo Damão de Oa, filósofo pitagórico doséculo v, pode não só genericamente educar a alma, como tambémcorrigir especificamente as suas más inclinações. Esta correcção éproduzida por uma música que imita a virtude que se quer inculcar

o MUNDO ANTIGO

I)

)

)

)

, ))

)

)

I )

If1l'('

I~I

na alma e,dessa forma, erradica o vício e a má inclinação. Falou--se, neste caso, de catarse alopática; Aristóteles entende diversa-mente a catarsee considera que a correcção do VÍCiose pode obteratravés da imitação do próprio vício de que a alma se deve libertar.Desse modo os vícios tornam-se, por assim dizer, inofensivoseaalma «purifica-se» ao ouvir uma música que imitarido os senti-mentos que nos oprimem, como «piedade, medo e entusiasmo», «seencontra nas condições de quem foi curado' e purificado» (3).Nestecaso, podemos falar de catarse homeopática. Seja como for que aentendamos, o que importa sublinhar é o conceito deethos musicalque se encontra em ambas as acepções do conceito de catarse.

Toda a doutrina pitagórica sobre música, a que fizemos apenasuma breve referência, destinava-se a diferentes e contraditóriosdesenvolvimentos: alguns filósofos destacaram e desenvolveram oaspecto moralista da tradição pitagórica, uns o aspecto matemático(a tradição atribui ao próprio Pitá goras as pesquisas sobre o cálculodos intervalos), outros o aspecto metafísico ligado ao conceito deharmonia das esferas, outros ainda o aspecto pedagógico-político.O pitagorismo permanecerá, portanto, um ponto de referência fun-damental na história do pensamento ocidental da música e estendeua sua influência praticamente até .aos nossos dias. '..J

)

! )

i)

)

)

J

'J,)

'J..J

J

Platão e Aristóteles

Nos diálogos de Platão convergem, embora não de forma siste-mática, todas as correntes da especulação precedente sobre música.Contudo, não podemos dizer que Platão, no que respeita à música,se limitou a expor as doutrinasde outros. O interesse e a fecun-didade do seu pensamento musical consiste no facto de a músicarepresentar um dos focos centrais da sua filosofia. Não é fácil

(3) Aristóteles, Política, VIII, 1342. Todas as passagens reportadas foramextraídas da edição organizada por C. A Viano, Turim, UTET, 1966.

73

Page 37: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-y ,,-{(.1

)

)

)

j

)

)

)

.J

)

j

).J

)

.J.,.

)..J

ESTÉTICA DA MÚSICA

reconstruir as suas ideias sobre música, visto que esta surge sempre,em quase todos os diálogos, com uma configuração diferente,oscilando entre unia consideração ético-política e considerações deordem matemático-astronómica, hedonística, metafísico-filosófica.Além do mais, Platão parece oscilar nos seus diálogos entre '-~;r;a:""\.condenação radical da música e umaexaltação incondicionadadesta como forma suprema de beleza e de verdade_J'~a República

.-~...: -'-'"'

<afirma: «os amantes das audições e dos espectáculos amam os belossons, cores e formas e todas as obras feitas com tais elementos,embora o seu pensamento seja incapaz de discernir e de amar anatureza do belo em si» (4). Nesta passagem, em que a música éagrupada a outras artes na mesma condenação, não só não se referea nenhuma virtude ético-educativa desta, como põe em evidência ofacto de- ela se afastar da contemplação do belo em si. Este parece-ser percebido como objecto de contemplação filosófica e nãodos sentidos. O livro X da República confirma esta perspectiva.Portanto, no .estado ideal concebido por Platão, a «Musa aprazívelna lírica» (poesia e música) deve ser banida, caso contrário «gover-narão o prazer e a dor, em lugar da lei»: «é antigQ~. diferendo entrefilosofia e música» (5). Ao atribuir à música apenas o efeito deproduzir prazer, Platão parece demarcar-se da tradição pitagóricaque considerava a música principalmente pelas suas virtudes éticas.A música, enquanto fonte de prazer, é antes de mais uma techne,isto é, uma arte e não uma ciência.A música é, portanto, osu fazer,cujautilidade é inegável, quanto mais não seja por produzir prazer,mas cuja liceidade importa examinar atentamente. No fundo, estaconcepção'párcialrrientenegativa'e limitadora encontra-se sempreque Platão-considera a música exercício efectivo de uma arte,entendo arte no sentido grego do termo, isto é, como umatechfl?'Sob este aspectoprático~ a música poderá ser justificada e admitida,

.J..J.J

J..J

J"i

.J-..J..J

)

)

~j

)

(4) Platão, República, V, 476. Todas as passagens citadas de Platão foramretiradas da edição Opere complete, 9 vols., Bari, Laterza, 1971. .

(5) Ibidem, 607 a-b,

74

o MUNDO ANTIGO

desde que o prazer por ela produzido não aja em sentido contrárioàs leis e aos princípios da educação.

O prazer produzido pela música não é, portanto, um fim masum meio: toda a música produz prazer, quer a boa, quer a má; numaperspectiva educativa há que desfrutar o prazer produzido pelamúsica boa, após se ter banido aquela contrária às leis do Estado.Para Platão, as músicas boas são as consagradas pela tradição;as músicas más são, ao invés, as do seu tempo, as que se dirigemexclusivamente ao deleite do ouvido.

Em relação à que foi chamada a revolução musical do século v,Platão manifesta uma absoluta intolerância: «há que procurar portodos os meios - afirma ele - que os nossos filhos não tenhamdesejo de aceder a novas imitações na dança e no canto e que nin-guém os persuada a tal com oferta de prazeres de todo o tipo» (6) .Esta posição, claramente conservadora, explica-se melhor à luz deoutros diálogos onde o seu pensamento sobre música se alarga emoutras direcções. Com efeito, a música não é apenas objecto dossentidos: para Platão, pode ser também objecto da razão e, porconseguinte, enquanto ciência pode aproximar-se da filosofia aponto de com ela se identificar, entendida como dialéctica e sabersupremo (sophia).

Obviamente, a música, que em última instância se identificacom. a filosofia ao ponto de. ser concebida como a filosofia ndsentido mais nobre do termo,não é a mesma música. que acaricia osnossos ouvidos: é uma música puramente pensada. Existe, portanto,

_uma música que se ouve com os ouvidos e outra que não se ouve:sóa segunda é digna da atenção do filósofo, aliás a meditação sobre.a música abstracta pela sua sonoridade é comparável à filosofia;~sendo talvez o grau mais alto da própria filosofia. Este conceito demúsica, que reaparece várias vezes nos diálogos platónicos, remete--nos para lima atmosfera pitagórica e só pode ser plenamente enten-dido se for associado ao conceito de harmonia. A harmonia da

(6) Id., Leis, 798a.

75

Page 38: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

música, segundo Platão, espelha a harmonia da alma e, simultanea-mente, a do Universo. Por isso, o seu conhecimento representa querum instrumento educativo no sentido mais nobre do termo, uma vezque pode dar harmonia ao equilíbrio perturbado da alma, quer uminstrumento de conhecimento da essência mais profunda do Uni-verso, na medida em que a harmonia representa a ordem que reina110 cosmos. A música torna-se, então, o símbolo desta unidade edesta ordem divina da qual participam a alma e o Universo. Porém,esta música não é a dos instrumentos, não. é ados músicos exe-cutantes, mas sim aquela puramente pensada como harmonia.Assim Platão pode afirmar na República, isto é, no diálogo ondeproclama mais energicamente a condenação da música e das artesem geral, que «o verdadeiro músico» é aquele que realiza «o per-feito acorde da alma» (7). O pressuposto desta doutrina é de que aharmonia que constitui a música é do mesmojipe da harmonia querege a alma do homem e o Universo (8).

. Os pólos entre os quais se move o pensamento platónico pare-cem ser, por um lado, a música real e concreta como se apresentavana Atenas do século IV e, por outro, a música puramente inteligível,isto é, completamente abstracta, sem aparentes ligações com omundo da música real. O conceito de educação, vendo bem, podeser o princípio mediador capaz de harmonizar, em certa medida, afractura entre as duas músicas. A atitude negativa de Platão face àmúsica do seu tempo e às suas inovações, às novas harmonias e aosnovos ritmos que se começavam a praticar, por exemplo com o.teatro. de Eurípedes, prende-se não só com a sua atitude conserva-dora, mas também com a ideia de música como ciência divina,como expressão da harmonia cósmica. Com efeito, seria um contra-senso, do ponto de vista da filosofia platónica, fazer alterações einovações numa arte, aliás numa ciência, cujos princípios são está-veis e eternos como o mundo. Conservar a tradição significa, por

(1) u,Repubblica, 591d.(8) Cf. Id., Timeu, 35b; 88c.

76

o MUNDO ANTIGO

)

)

)

J

J)

)

j

~)

.J

).J

)

j

)

)

.J

)

)

)

)

)

)

}

)

)

)

)

,)

)

conseguinte, conservar o valor de verdade e de lei da música.Há, portanto, uma possibilidade de introduzir a música na cidade,sem prejuízo dos princípios educativos e do carácter nonnativo daprópria música, na condição de que permaneça afastada dos desre-gramentos da música do seu tempo (9). Neste caso, a música, na sua

. consistência física, pode ser a ponte de passagem da realidadesensível para o puro iriteligível. Não se pode negar que há umarelação de tensão entre música e filosofia 'no pensamento platónico:relação de tensão que oscila entre a mais radical oposição e a totalidentificação, através de um processo de aproximação lenta e difícilque compreende toda a esfera da educação do homem.

Com Platão, ganha cada vez mais expressão a fractura que seacentuará nos séculos sucessivos entre uma música puramentepensada, e por isso aparentada com a matemática e a filosofia, euma música realmente ouvida e executada, aparentada por isso comos ofícios e as profissões técnicas. Essa fractura foi-se acentuandocada vez mais, chegando ao ponto de não haver relação entre asduas músicas. Provavelmente o facto de a música grega nos tertransmitido quase tudo no que diz respeito à teoria, mas quase nadano que diz respeito à sua história real, à sua existência concreta,deve-se certamente, por um lado, à escassa consideração de quegozava como arte prática e, por outro, à honra que lhe era atribuídacomo disciplina matemática e filosófica, A cisão entre música ecultura, ainda hoje não completamente superada, teve provavel-mente a sua origem no pensamento grego pós-platônico earistotélico.

A corrente do pensamento musical de inspiração pitagórico--platónica foi sem dúvida preponderante e, em última análise,vencedora na Antiguidade grega e na cultura ocidental, pelo menosaté ao Renascimento. Todavia, não devemos pensar que não houveoposição ao platonismo. Na Grécia de então, as filosofias materia-listas, cépticas e epicuristas destacavam:, contra as correntes mora-

II.1iiIi·

(9) Cf. Id., Leis, 700, 701.;,i

I -~: li77::I;

1 '.f

Page 39: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

j

)

j

j

j

j.Jj

Nestas poucas passagens parece claro existir uma oposição aopensamento platónico e, por outro lado, nos próprios textos dePIatão e; mais tarde, de Aristóteles, transparece claramente umaacesa polémica contra os músicos, os teóricos e, em geral, contra acultura musical do seu tempo que testemunha a existência decorrentes de pensamento vivas e operantes, manifestamente opostasao movimento pitagórico-platónico,

Aristóteles retoma todos os temas do pensamento pitagóricoeplatônico, mas; a()mesmo -tempo, dá conta de todos os aspectos dopensamento hédonistaeepicurista. A sua reflexão é uma sínteseoriginal que representa uma etapa importante no pensamento

ESTÉTICA DA MÚSICA

listas, o valor hedonista da música, separando-o de qualquer con-teúdo educativo que fosse. Demócrito afirmava que «a músicanasceu depois das outras artes porque não tem origem na necessi-dade mas nasce, pelo contrário, do supérfluo que já existe» (10).O valor educativo não é sequer mencionado e o mesmo sucede emmuitos outros filósofos da altura. 'Filodemo, filósofo da escolaepicurista, afirmava no seu tratado De musica que a música é«essencialmente um passatempo agradável» (11). Um retórico des-conhecido do século IV, contestando a doutrina platónica sobre arelevância ética da música, afirmava:

Os hannonistas defendem que certas melodias tomam oshomens patrões de si mesmos, sensatos ou justos, ou tambémcora~osos, ao passo que outras os tomam velhacos: não pensamsequer que o género cromático seria incapaz de tomar velhaco umhomem que o utilizasse, do mesmo modo que o género enar-mónico seria incapaz de o tomar corajoso (12).

)

)

)

J

..J

j

J....).J)

j

j

j

(Ia) Cf. H. Diels e W. Krantz, Fragmente der Vorsokratiker, cit., 6 B 144.(11) Filodemo, De musica, I, XVI, 7 (cf. ed. organizada por van Krevelen,

Hilversum,1939).(12) Papiro de Hibeh (fragmento citado por F. Lasserre, Plutarque de Ia

musique, cit., p. 85).

78

)

j

o MUNDO ANTIGO

musical da Antiguidade grega. À semelhança dos seus antecessores,introduz o discurso sobre a música na Política, obra dedicada àeducação e ao problemas da polis. Ao associar o problema damúsica ao da educação, parece evidente que Aristóteles pretendeenquadrar-se na tradição platónica, mas, ao mesmo tempo, afasta--se logo após introduzir o discurso. Para Aristóteles, a música temcomo finalidade o prazer, embora tenha começado por fazer partedas disciplinas de tradição didáctica. Enquanto prazer representaum ócio, ou seja, algo que se opõe ao trabalho e à actividade. A suainserção na educação dos jovens' só se justifica tendo em conta ofacto de «noções e práticas» «que se têm a si próprias como fins»também serem necessárias ao repouso. Por isso, conclui Aristóteles,«os que inicialmente introduziram a música na educação, não ofizeram por verem nisso qualquer necessidade (pois não há mesmonenhuma) ou qualquer utilidade [...]. Parece óbvio, portanto, que nointuito de ocupar o ócio se tenha introduzido a música na educação,considerando-a divertimento à altura dos homens livres» (13).

No pensamento aristotélico há uma conexão evidente entre o tempolivre, ou' seja, o ócio, e as disciplinas «liberais e nobres», acen-tuando dessa forma, no que se refere à música, o antagonismo, jápatente em Platão, entre audição, e o consequente deleite a elaassociado, e a execução autêntica da música: a primeira é a activi-dade não manual, digna de um homem livre, a segunda constitui umofício, um trabalho manual que não faz parte da educação liberal.Todo o pensamento aristotélico se funda, portanto, neste conceitode oposição e separação radical entre a prática musical associada aoofício do executor e a fruição musical. Na Política, os últimoscapítulos do livro VIII são totalmente dedicados ao problema dImúsica e representam um dos primeiros tratados estruturados sobremúsica provindos da Antiguidade. O seu discurso sobre problemasmusicais articula-se 'com base neste sistema filosófico: a novidadeem relação aos tratados filosóficos anteriores é a atenção dada aos

(13) Aristóteles, Política, 1337b-1338a.

79

Page 40: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTlCA DA MÚSICA o MUNDO ANTlGO

i ..,1

problemas de natureza psicológica atinentes à música e à fruiçãomusicaL Contudo, o ponto de partida continua a ser a ética musicalde Damão de Oa e de Platão. Excluída, assim, a música comoprofissão e como prática executora além dos limites restritos do quese poderia chamar, em termos modernos, introdução a audição, ficaainda por esclarecer, de forma mais precisa, o seu valor educativonesta óptica que poderíamos definir psicológica. Trata-se de, poroutras palavras, «ver se de certo modo influencia o carácter e aalma» (14). Aristóteles tinha diante de si duas teorias diversas:. por·um lado, a teoria pitagórica, segundo a qual a música se relacionadirectamente com a alma, pois esta, tal como a música, é harmoniae por isso a música pode restabelecer a harmonia quando for pertur-bada; por outro, a teoria que remonta a Damão de Oa, segundo aqual a relação entre música e alma deve ser vista à luz do conceitode imitação. Com efeito, certas melodias; ritmos e harmonias imi-tam quer a virtude, quer os vícios, pelo que a música tem um podereducativo se for usada com prudência e com cOl1heci~ento dos seusefeitos sobre a alma humana. Aristóteles não descarta a primeirateoria, se bem que o seu realismo o leve a preferir e desenvolver asegunda teoria numa perspectiva nitidamente psicológica. «Poroutro lado, nas próprias melodias. há imitação de disposiçõesmorais. E isso é claro, na medida em que as melodias se caracteri-zam por não serem todas de natureza idêntica; quem as escuta reagede modo distinto em relação a cada uma delas», algumas induzema melancolia e o recolhimento (a harmonia mixolídia), outras inspi-ram «sentimentos voluptuosos», outras ainda incutem «circunspec-ção e moderação» (a dórica), ao passo que a frígia induz o entu-siasmo (15).

A música enquanto arte é, portanto, imitação e suscitasentimentos quer positivos, quer negativos. É educativa, no sentidode o artista poder escolher mais oportunamente o objecto da sua

imitação e influenciar muito positivamente a alma humana. O bene-fício que daí pode .advir para o homem passa pelo mecanismo decatarse. Aristóteles, na Política, não explica em que consiste estaespécie de purificação ou catarse e remete-nos para a Poético" ondeo problema é tratado com maior amplitude, se bem que .não demodo exaustivo. Parece que Aristóteles usava esse termo em sen-tido homeopático e que esta tese pode ser confirmada por umapassagem do livro VIII da Politica; Todas as.harmonias podem serusadas, afirma Aristóteles, embora' «não tod~s' da mesmaforma» (l6). «Piedade, temor, entusiasmo» são emoções Comuns atodos os homens, mas queocorrem

)

)

}

\./

)

com maior ou menor intensidade [ ...] Aliás, há quem se deixeinfluenciar sobretudo por esta última emoção. É o que verificamosna música sagrada, quando alguém, afectado por melodias quearrebatam a alma, recupera a serenidade, como se estivesse sobefeito de um remédio ou de uma purificação. Estas mesmasemoções têm necessariamente que afectar não s6 os que se encon-tram dominados pela piedade e pelo temor, ou por qualquer paixãoem geral; mas também os restantes, na medida em que se deixaramdominar por estes sentimentos. Ora, em todos eles será provocadauma determinada purificação e alívio, acompanhada de prazerr!").

)

.J

)

)

)

)

)

)

J

J

j

80 81

)Parece, assim, que, segundo Aristóteles, não há harmonias ou

músicas prejudiciais em absoluto do ponto de vista ético; a músicaé um remédio para a alma, precisamente, quando imita as paixões_ou as emoções que nos atormentam e das quais nos queremoslibertar ou purificar.

Portanto, a catarse, para Aristóteles, não se identifica com aeducação, no sentido platónico do .termo. Pode, no limite, ser sim-plesmente uma técnica para obter um maior bem-estar para ohomem. Com efeito, ainda na Política diz que «a música não deve

(14) Ibidem, 1341a.(15) Ibidem, 1340b.

(l6) Ibidem, 1342a.(l7) Ibidem.

)

)

)

)

)

, )j

)

)

)

)

}

Page 41: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

))

)

J)

)

)..J

j

J)

)

)..J

)

).)

)

)

.)

)

)

j

j

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

ser praticada em virtude de um único tipo de benefício que delapossa derivar, mas sim de múltiplas utilidades, na medida em quepode ser útil para a educação, para alcançar a catarse e, em terceirolugar, para o repouso, elevação da alma e suspensão das fadi-gas» (18). Entrevê-se a possibilidade de usar todas as harmonias,uma vez que as três principais finalidades da música não estão sepa-radas mas integradas umas nas outras. A ausência de censura àmúsica, por parte de Aristóteles, abre espaço a uma sua conside-ração mais desvinculada de propósitos moralistas e deixa entreveruma exigência que, com um termo completamente estranho à cul-tura e à mentalidade gregas, poderíamos chamar, talvez impropria-mente, «estética». A aceitação do prazer como factor organica-mente ligado à fruição musical parece confirmar esta perspectivaestético-hedonista, que permanecerá como um ténue fio condutorno percurso da história do pensamento musical.

Época helénica

Ocarácter prático, empírico, da investigação psicológica quese aflorava no pensamento aristotélico e, em geral, em toda a escolaperipatética, acentua-se no· pensamento de Aristóxeno, filósofo eteórico da música, discípulo de Aristóteles, a par de uma tendência.fortemente psicologista. Nos dois livros que chegaram até nós,Elementos de Harmonia e Elementos de Rítmica, Aristóxeno pro-.cura, pela primeira vez, separar a experiência musical da filosofia,salientandoa importâncià.dapercepção auditiva na formação de umjuíz~sobrea matéria. Mesmo não chegando a uma contraposiçãoentre ouvido e intelecto, estranha à tradição grega, Aristóxeno tendea.dissociar as duas faculdades, sendo por isso uma figura de impor-tâncià capital na história do pensamento musical. Com efeito, ocentro do interesse da música deslocou-se, pela primeira vez, dos

(18) lbidem, p. 1342b.

82

···1

[.III

o MUNDO ANTIGO

aspectos puramente intelectuais para os mais concretamente sensí-veis. Se a tradição pitagórica havia desenvolvido exclusivamente oaspecto matemático da música, dando um grande impulso ao desen-volvimento de uma teoria musical, Aristóxeno lança as bases paraum novo género de abordagem à música que dá conta da reacçãopsicológica do indivíduo e, deste modo, dos aspectos subjectivos dafruição musical. Por isso, polemiza muitas vezes com os queformulam «princípios racionais afirmando que a excelência de umsom consiste numa certa relação numérica e no número relativo devibrações [...]. Consideram a harmonia uma ciência sublime eacreditam que com o seu estudo podem fazer um bom músico; e nãosó, alguns crêem até que ela sublime o seu sentido moral» (19). Comisso, Aristóxeno não pretende refutar toda a tradição do pensamentodesde Pitágoras a PIatão, ou negar o carácter intelectual da músicae o seu valor educativo, mas principalmente colocar estes valoresnum plano empírico-perceptivo. Aristóxeno não negava, por exem-plo, a ligação entre uma determinada forma musical e um deter-minado ethos, mas considerava que esta ligação tinha um funda-mento histórico e não se baseava em nenhuma qualidade intrínsecada música. Pois, como refere Pseudo-Plutarco (20) ao expor o pensa-mento de Aristóxeno, o modo lídio, condenado por Platão devido àsua lascívia, foi usado pelos poetas trágicos, ao passo que o mododórico, considerado viril eeducativo por PIatão, foi usado em. .outras épocas para canções de amor. Aristóxeno sustenta, na esteirado seu mestre Aristóteles, que todos os modos têm direito à cida-

.. dania no mundo da música, desde que usados convenientemente,inclusive o género enarmónico, «o mais belo dos géneros»:os modos em si nada têm de converiiente ou inconveniente-O apelG .frequente ao exercício requintado do próprio ouvido na audiçãomusical deixa presumir que Aristóxeno se qualifica, no pensamento

(19) Aristóxeno, The Armonics 01Aristoxenus, trad. inglesa organizada porH. S. Macran, Oxford, Clarendon, 1902, pp. 187 ss.

(20) Pseudo-Plutarco, De musica, cit., 17.

Page 42: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

grego, como o descobridor do que, em termos modernos, se podedefinir o valor estético da música. Com efeito, Aristóxeno não negaque os modos têm um valor ético, afirma antes que são qualidadessecundárias, na medida em que a sua qualidade fundamental eprimária é a estética, ou seja, serem belos. As melodias podem até«melhorar o carácter», mas talvez não seja esta a sua única função,

. uma vez que se dirigem em primeiro lugar às nossas faculdades" auditivas e perceptivas. A evocação de aspectos estéticos e de leis

próprias do mundo da música, que já se aflorava em alguns escritos.de Aristóteles, é salientada e explicitada no pensamento deAristóxeno a ·ponto de constituir uma corrente independente. no

"pensamento musical antigo e um ponto de referência importante, sebem que minoritário, no pensamento medieval e renascentista.A escola peripatética de Alexandria desenvolveu o pensamento de'Aristóteles e de Aristóxeno, fixando as pedras basilares quer 'parauma consideração estética e não apenas moralista da música, querpara um estudo da teoria musical independentemente dos pressu-postos metafísicos ou cosmológicos.

84

Capítulo 6'

')

)

)

)

\ ;;

-j

Entre o Mundo Antigo e Medieval)l'

I}\'::'

.~l~I\j

~~i~"liliiH

t ~;,

c. i~fi!

)

.J

)

Jj

o pensamento cristão e a herança clássica

,O cristianismo foi obrigado a confrontar-se, desde o início, como problema da música em íntima relação com a oração, na sua formacolectiva, como canto litúrgico. Os primeiros padres da igrejadepararam-se assim com uma série de problemas de carácter prático,teórico, filosófico e ideológico de não fácil solução. Eram, em parte,herdeiros de todo o pensamento grego, em particular das duasgrandes correntes do movimento pitágórico-platónico e do movi-mento peripatético. Do ponto de vista estritamente musical, herda-vam duas tradições diversas e nitidamente antagônicas dado oespírito que as animava: por um lado, a música greco-romana, inti-mamente ligada aos usos, aos ritos, às festas do mundo pagão; poroutro, a tradição do canto sinagogal hebraico. O mundo cristão tinha,evidentemente, bons motivos para se distinguir e afastar quer dafilosofia grega, quer da música pagã, quer da hebraica, em busca deuma modalidade original e específica com a qual exprimir as suasaspirações religiosas. Este trabalho de pensamento reflecte-se numemaranhado de contradições, nas atitudes muitas vezes ambíguas eoscilantes dos primeiros teóricos e filósofos dos primeiros séculosdo cristianismo: a música foi vista como uma fonte de corrupção, um

'/

~.J

)

)

j

')

)

}

r(,

"

85

Page 43: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

Clemente e outros padres da Igreja, no fundo, atribuem àmúsica os mesmos poderes que lhe atribuíamos antigos pitagóricos.A ideia de que a música tem o poder de harmonizar os elementosdiscordantes, bem como a de que o próprio Universo é constituídode música, ou seja, harmonia, não são estranhas ao pensamento deClemente: «O que será mais nobre doque este cântico puro, moradado Univer~o~ h~6nia de.todas as coisas que se propaga do centropara a circunferênciae' dos limites extremos para o centro?» (1).

O canto, no novo mundo cristão, é assim identificado com o próprioverbo.divino e os poderes que os Gregos atribuíam ao canto de Orfeusão agora atribuídos ao cantor bíblico, David.

ESTÉTICA DA MÚSICA

)ir

J

J)

)

)

~

J)

)

JJ.J~

)

)

J

instrumento do demónio para a nossa perdição, mas também comoum poderoso meio de ascese espiritual, uma imagem da harmoniadivina. Como poderá ter existido uma oscilação tão ampla nasconsiderações sobre música? Antes de mais há que recordar que ospadres da Igreja efectuavam uma nítida distinção entre a música dospagãos e a da nova igreja cristã. A diferença entre músicas não dizrespeito tanto à ordem estilístico-formal, mas sim às diversasfunções que desempenham e aos seus diferentes conteúdos. Se amúsica pagã resplandecia no seu poder demoníaco, a dos novostempos cristãos encontra o seu vigor no conteúdo religioso. Todavia,existe ainda outra diferença a nível formal entre as duas músicas queé verificável no diferente grau de harmonia que essas reflectem.

Nota como é poderoso o novo cântico! - observa Clementede Alexandria na sua obra Exortação aos Gregos - aqueles quemorreram, aqueles que não tinham nenhum contacto com a verda-deira e autêntica vida, renascem só de ouvirem o novo cântico.Além do mais, foi precisamente este cântico que compôs toda acriação numa ordem melodiosa e harmonizou os elementos discor-dantes, e todo o Universo pode estar em harmonia com ele.

,III

!,I:1t

)...J

..J

j

-))

J)

)

)

)

)

(1) Clemente de Alexandria, Exortação aos Gregos, Londres,.Heinemann,1919, pp. 3-17.

86

f'"IfJJ

rJ

ENTRE o MUNDO ANTIGO E MEDIEVAL

A matriz pitagórica e platónica sobrevive no pensamento cris-tão dos primeiros séculos da nova era e, aliás, é a corrente filosóficaque melhor integra o pensamento cristão. A perspectiva metafísico--pitagórica anima-se muitas vezes com veios mais marcadamentepedagógicos. Assim se explica como o pensamento cristão sobremúsica oscile entre receios de recaída numa visão hedonista pagani-zante e esperanças num novo uso da música enquanto instrumentode ascese e edificação religiosa. Muitos escritores cristãos subli-nham, nos seus escritos, a ideia de que o canto pode tomar-se uminstrumento auxiliar de oração e de que a finalidade da música étomar mais aceitável a oração graças à dose de diversão que oelemento musical lhe pode conferir. As verdades de fé serão assimmais agradáveis e de mais fácil aprendizagem. «o que não seaprende de boa vontade - afirma São Basílio - não se interioriza,mas o que se apreende com prazer e amor fixa-se mais solidamentena mente» (2). Se o pensamento da Igreja relativamente à música sepode resumir no provérbio latino sobre a oportunidade de juntarutili dulci, convém também acrescentar que a doçura da música seassocia, nos cânticos religiosos, a uma disposição da alma pelo quese deve distinguir o modo de cantar puramente com a voz, «como écostume dos actores de tragédias que conspurcam a garganta comuma droga agradável» (3), do modo «de cantar com o coração dando

. .' j

graças' ao Senhor» (4) .. '

Pitagorismo, neoplatonismo, receios moralistas de ascendên-cia platónica mas. enquadrados no novo contexto cristão, preocupa"

. ções ,pedagógicas,· todos estes aspectos se juntam numa sínteseoriginal no pensamento de um dos mais eficazes e modernos};filósofos dos 'primeiros' séculos da era cristã: Santo Agostinho."No seu imponente tratado De musica, bem como no livro autobio-

(2) São Basílio, in Patrologia Graeca, organizado por J.-P. Migne,166 vols., Paris, 1857-1866, vol, XXIX, p. 213.

(3) São Jerónimo, in Patrologia Latina, organizado por J.-P. Migne,222 vols., Paris, 1884-1866, vol. XXVI,p. 651.

(4) lbidem.

87

Page 44: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

gráfico Confissões e em outros escritos, ele repensa todos os aspec-tos do pensamento clássico, mas revividos intensamente na pri-meira pessoa, para projectã-Ios no novo contexto cultural e filo-sófico do mundo cristão. As ambivalências típicas da atitude cristãface à música encontram uma expressão completamente pessoal, epor vezes dramática, em Santo Agostinho e sintetizam bem os moti-vos a favor e contra a música. Assim afirma Santo Agostinho nas

i; Confissões:

Porém, quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouviros cânticos da Vossa Igreja nos primórdios da rninhaconversão àfé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música mas pelas letrasdessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apro-priada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume.

Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares efeitos,que a experiência nos mostra, Portanto, sem proferir uma sentençairrevogável, inclino-me a aprovar o costume de cantar ria Igreja,para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, seeleve até ao afecto de piedade. Quando, às vezes, a música mesensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor,que pequei, Neste caso, por castigo, preferiria não ouvir cantar (5).

Santo Agostinho, sensível à arte dos sons e ao fascínio damúsica, oscila, sem conseguir decidir-se, entre a ideia de que oprazer sensível da música deve ser condenável, na medida em queafasta a alma do que é espiritual, e a de que é precisamente atravésdesse prazer e na sua graça que a alma pode ser conduzida à oração.

Esta ambiguidade, típica do pensamento medieval, surge tam-bém numa outra oscilação insolúvel, herança do mundo antigo,entre urna música puramente pensada, música como ciência teoré-tica, e uma música efectivamente ouvida e executada. SantoAgostinho, que à semelhança de outros pensadores do seu tempo

(5) Santo Agostinho, Confissões, X, 33, organizado por C. Carena, Turim,Einaudi, 1966.

88

)

ENTRE O MUNDO ANTIGO E MEDIEVALI ,)

não sente:grande simpatia pelos músicos que quando «interrogadossobre os ritmos utilizados ou sobre o intervalo dos sons agudos egraves não são capazes de responder» (6), como vimos, vacilaperante, o dilema de aceitar o prazer ambíguo da música,esque-

, cendo as abstracções e os raciocínios dos teóricos e da metafísicados números, ou renunciar a ele radicalmente em favor da oração,da palavra sem ornamento algum. Estedualismo, que em SantoAgostinho encontra expressões dramáticas, pet~~neceuma cons-tante no pensamento medieval: música como ciência teorética, àsvezes entendida corno instrumento privilegiado de ascese mística,ou música corno atracção dos sentidos, corno som físico e corpóreo,e, portanto, possível. instrumento de perdição. Na origem destadicotornia, que marcou não só todo o pensamento musical até aoRenascimento, se não mesmo até mais tarde; mas também a práxismusical concreta e a história da própria música, estão duas diferen-tes concepções estéticas: a música corno possibilidade de asceseremete-nos para uma estética pitagórica dos números; a músicacomo fluxo concreto de sons, objecto de prazer sensível, remete--nos para uma estética de carácter empirista de matriz aristotélica epara uma concepção de música como imitação das paixões. Estasduas concepções estéticas, características da antiguidade grega, masrecuperadas, se bem que com uma terminologia diversa e num outrocontexto cultural, na Idade Média cristã, cruzar-se-ão e opor-se-ãodurante muitos séculos, determinando por várias razões a evoluçãoda história da música.

A formulação mais sintética desse dualismo encontra-se nopensamento de um contemporâneo de Santo Agostinho, SeverinoBoécio, também ele um pensador de matriz platónica. No seuDe institutione musica reafirma a superioridade da razão sobre ossentidos, mas desta feita sem nenhuma implicação' de carácterreligioso. Boécio divide a música, segundo a conhecida tripartição

)

)

)

)

)

j

)

)

)

J)

)

)

)

)

)

)

)

.)

)

)

)

.J

, ))

)

)

)

)

)

)

(6) Idem, De musica, I, 4-5, organizado por G. Marzi, Florença, Sansoni,1969,

89

Page 45: FUBINI, Enrico. Estética da Música

I)~

)

)

)

)

)())

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

que terá muito sucesso nos séculos seguintes, em música mundana,humana e instrumentalis, divisão essa de evidente origem pitagó-rica. A música mundana, a preferida de Boécio, não é senão amúsica das esferas e, em última instância, identifica-se com o pró-prio conceito de harmonia em sentido lato. A sua audibilidade nãoé de modo algum um problema acessório, uma vez que se reduz aum conceito abstracto. A música mundana, portanto, é a únicamúsica verdadeira e os restantes tipos de música são-no apenas porreflexo, na medida em que participam da harmonia do cosmos ou aevocam. Assim, a música humana reflecte, na união harmoniosadas várias partes da alma com o corpo, a música das esferas.A última, a instrumentalis, é a música concreta. A sua valoraçãonegativa está ligada à concepção grega, segundo a qual o trabalhomanual não é digno do homem livre. «Corno é superior a ciência damúsica no conhecimento teórico em comparação com a actividadeprática!» (1), afirma Boécio e acrescenta que o músico não é o quetoca um instrumento, mas «o que conquistou a ciência do canto

.racionalmente, sem sofrer a escravidão da prática e com a orientaçãoda especulação» (8). Santo Agostinho e Boécio representam.' por-

.tanto, os dois pilares a partir dos quais se desenvolveu o pensamentomusical na Idade Média ea ponte entre o antigo mundo pagão e onovo mundo cristão. O platonismo, que foi sem dúvida a forma depensamento dominante no que se refere à música, encontrou assimuma conciliação satisfatória com a nova mentalidade cristã.

')

'...JI...J

'...J

Do abstracto ao concreto

Se percorrermos os. imensos tratados de música que surgiramao longo da Idade Média não podemos deixar de sentir um ligeiro:~.J

!...J

'...J

')

)...J

'...J

)

(1) Boécio, De institutione musica, capo XXXIII, organizado por A. Damerini,Florença, Fussi, 1949.

(8) Ibidem.

90

I!

ENTRE O MUNDO ANTIGO E MEDIEVAL

-=

aborrecimento com a uniformidade dos temas tratados, com ogrande número de definições decalcadas umas das outras e com aevocação constante de Boécio como nume tutelar da musicologia.O seu nome é recorrente em todos os tratados musicais, juntamentecom a sua afortunada e famosa tripartição da música em mundana,humana e instrumentalis. Todavia, por trás desta monotonia e repe-tição, uma leitura mais atenta revela que, mesmo sem sobressaltose proclamações revolucionárias, ocorrem alterações profundas nomodo de considerar a música. A dialéctica entre posições diversascontinua apenas a ser aflorada e dificilmente é compreendida.No entanto, existe um complexo itinerário de pensamento ao longodos séculos da Idade Média cristã que, do ponto de vista da evolu-ção da música, foi do canto gregoriano à polifonia e à ars nuova.A especulação sobre a música, esquematizando as transformaçõesocorridas nesses séculos, foi primeiramente marcada pela abstrac-ção trazendo consigo os sinais da profunda cisão entre um pensa-mento teórico, completamente avulso da realidade musical' con-creta, e Uma reflexão prática. Lentamente, muitas vezes através dedisquisiçõespedantescas sobre questões práticas que hoje nos podemparecer absolutamente marginais, aproximaram-se muito de pro-blemas mais concretos, associados à situação histórica da músicaconcreta. Paralelamente, o interesse pela relevância religiosa d~música foidirninuindo .na agitação da sua progressiva mundaniza-ção e laicização. Cresce assim o interesse pelos problemas de com-posição, execução. e de pedagogia relativamente ao ensino da

'.música aos cantores nas igrejas; assiste-se a uma tomada deconsciência das diferenças entre os vários estilos musicais, entre 0/~velho e o novo; entre a tradiçãO gregoriana e a nova práxis polifó- .nica e surgem, depois do ano mil, as primeiras verdadeiras polémi-cas musicais baseadas não só em abstractas tomadas de posiçãoideológicas e filosóficas, mas também na realidade musical daépoca.

Só após o ano mil surge esta nova atitude no pensamentomusical: a especulação parte do mundo concreto da música e a

91

Page 46: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

exigência de educar os cantores representa, muitas vezes, o pontode partida para uma reflexão sobre a música ligada aos problemasreais da sua existência. Guido D' Arezzo, um dos maiores teóricosda Idade Média que viveu depois do ano mil, é um dos primeiros adarem atenção aos problemas técnicos da música e da pedagogiamusical. É verdade que segue a tradição já secular, segundo a qualquem executa a música é considerado muito inferior a quem

ri especula sobre ela. Com efeito, afirmava que «é imensa a distânciaentre o cantor e o músico: os primeiros cantam, as segundos sabeino que constitui a mús.ica. Aquele que faz o que não sabe, podedefinir-se uma besta» (9); e acrescentava: «actualmente, os cantoressão os mais néscios de todos os homens» (10). Esta posição, que seexplica com base numa tradição secular de desprezo pelo ofício domúsico, é efectivamente superada pelo aceso e premente interesseque Guido d' Arezzo demonstrou em muitas obras suas pelos pro-blemas técnicos concretos da música e pelas suas implicações decarácter pedagógico. '

-Não devemos esquecer que precisamente cerca do ano' mil secomeçam a desenvolver as primeiras tentativas embrionárias depolifonia: os problemas de ritmo e da grafia musical adquiremassim uma importância inédita. Guido d' Arezzo dirige por isso asua atenção para esses novos aspectos da música, consciente da suanova relevância no plano didáctico. Se, em várias passagens dassuas obras designava, como vimos, os cantores pelo epíteto poucoelogioso de «bestas», que fazem coisas que não entendem, e lhescontrapõe os «músicos» verdadeiros, isto é, os teóricos, em outraspassagens parece quase inverter os termos da questão. Na partefinal da sua Epistola de ignoto cantu convidava aqueles que que-riam aprender música a ler o seu Microlugus, obra claramente

(9) Guido dArezzo, Regulae Rhythmicae, in M.'Gerbert, Scriptores eccle-siastici de musica sacra potissimum, 3 vols., 1784, vol. I, p. 234 (ed. anastáticaHildescheim, G, Olms, 1963),

(10) Ibidem, vol. n, p. 34,

92

··1!!

I"

II

ENTRE O MUNDO ANTIGO E MEDIEVAL

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

didáctica, e vangloriava-se de não ter seguido Boécio, «cujos livrossão úteis' apenas para os filósofos e não para os cantores» (11). Nãopodemos deixar de notar um certo clima de suspeição por parte dequem conhece, por experiência directa, a música em relação ,aostratados «úteis apenas para os filósofos», isto é, em relação às puras

, elucubrações teóricas sem qualquer ligação com a realidadernusi-cal. Não é por acaso que Guido d'Arezzo.defendea prática musicale a importância do factor didáctico precisamente na Epistola deignoto cantu, onde formula o seu fácil sistema mnemónico pararecordar a entoaçãoexacta das notas. Os tratados de Guido Arezzo,com o crescimento do interesse dos teóricos pelos problemasdidácticos, tornaram-se um ponto de referência nos séculossucessivos.

Após o ano mil, os teóricos da música tendem a defini-Ia deforma cada vez mais articulada: a própria música tende a organizar-se

,de modo cada vez mais autónomo e com um maior grau de comple-xidade. As fórmulas tantas vezes repetidas da música como ciênciaou como bene modulandi scientia parecem cada vez mais distantes.Por outro lado, o desenvolvimento impetuoso da polifonia e do con-traponto representou um acontecimento de fundamental importân-cia, na medida em que constituiu um forte estímulo, para os teóri-cos, repensar os conceitos, os esquemas já cristalizados há séculos,que pouco tinham a ver com a nova realidade musical que ia ganhandoforma. Seria inútil citar neste breve esboço histórico os imensostratados de música que surgiram após o ano mil. Os traços caracte-rísticos que os unem são precisamente o reduzido interesse peladimensão especulativa e filosófica do objecto musical, tão apre-ciado pelos primeiros teóricos medievais, e uma maior atenção paracom os problemas reais apresentados pela nova prática polifónica.

É esta a premissa para a decadência progressiva da concepçãoteológico-cosmológica da música e para o nascimento do que, emtermos modernos, poderíamos chamar uma verdadeira estética

.,)

..J

)

)

)

)

)

)

)

)'.'.: ~ --'

'1'(11) Ibidem, p. 50,

93

Page 47: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

).J

)

j

)

j

.J..J.J

)..J.J

..J

.J-.J..J

)

,j..J..J

r..J).J

)

,)

ESTÉTICA DA MÚSICA

musical, isto é, um pensamento atento àqueles que hoje consi-deramos serem os valores estéticos da música. Todavia, o termo«estética» deve usar-se sempre com muita cautela no plano damúsica para não se incorrer em equívocos. A partir do século XIV,

começam as primeiras e tímidas aparições de considerações sobre abeleza da música como facto autónomo, que encontra a sua justi-ficação em si mesma, na pura beleza dos sons. Marchetto daPadova no início do livro XIV do seu tratado Lucidarium dedicadoao cantochão, no capítulo com o título indicativo «À beleza damúsica», escrevia: «a música é a mais bela de todas as artes [...]a sua nobreza investe tudo o que vive e o que não vive [...]. Comefeito, não há nada de mais adequado ao homem do que ficardescontraído com os modos suaves e tenso com o contrário. Não hánenhuma idade do homem em que ele não sinta prazer com umasuave melodia» (12). O critério de beleza continua a ser de origemgrega, ou seja, a realização da harmonia; contudo, será precisa-mente o conceito de harmonia que irá mudar. A categoria metafí-sico-matemátic~ tende a laicizar-se e a assumir um aspecto maisterreno e mais psicológico. A dimensão da subjectividade começacada vez mais a fazer parte dos tratados de música e o próprioMarchetto da Padova define a consonância e a dissonância já nãoem termos exclusivamente matemáticos mas sim psicológicos, istoé, como fontes de prazer oudesprazer para o ouvido. NemMarchetto, nem os outros teóricos deixam de evocar os sagradosnomes de Boécio, Isidoro, Guido d'Arezzo, mas o seu pensamentonavega agora em outras águas, As~im, o monge inglês SimonTunstede, ·c6ritefIlp·orâneo.de Marchetto, apesar de continuar aapoiar-se em todos oslúga~escomuns dos tratados medievais, naideia de música como ciência, na tripartição de Boécio, etc., renovacompletamente os termos da especulação clássica quando coloca aquestão, que embora possa parecer ingénua é na verdade astuciosa,

(12) Marchetto da Padova, in M. Gerbert, Scriptores ecclesiastici de musicasacra potissimum, cit., p. 66.

94

ENTRE O MUNDO ANTIGO E MEDIEVAL

se a musica ja não existiria antes da ciência da música. A suacândida resposta é que a música sempre existiu porque

Os homens, normalmente, utilizam os cantos [...], e, emborainexperientes nas artes, uniam as suas vozes com admiráveldoçura [...]. Essa faz parte da própria natureza do homem [...]; comefeito, é tão comum em todas as épocas que crianças, jovens,idosos e mulheres usufruem juntos com prazer natural das docesmelodias [...]. Parece óbvio, portanto, que a música está tão estri-tamente ligada à natureza do homem que, mesmo que quisésse-mos, não poderíamos existir sem ela(13).

Embora o monge se apresse a acrescentar que «como diz SãoJerónimo, é tão torpe para os cantores não conhecer a músicaquanto ignorar as letras» (14), as suas afirmações não perdem a suaimportância e deixam entrever um horizonte de pensamento quevirá a desenvolver-se plenamente nos séculos posteriores .

A «ars antiqua» e a «ars nova» na consciência crítica doscontemporâneos

O debate entre fautores da ars antiqua e fautores da ars nova ,1

é talvez a primeira querelle musical em que as categorias estéticase filosóficas são usadas por ambas as partes para defender e justifi-car a validade de um determinado estilo musical. A conhecida bulacom quê o Papa João XXII condenava a ars nova e as novas ten-dências modernistas na música é, talvez, um dos documentos mais ,~significativos da época do ponto de vista do novo pensamentomusical. Com efeito, da sua condenação emergem, de forma inequí-

(13) Simon Tunstede, Quatuor principalia musicae, in C-E.-H. Coussemaker,Scriptorum de musica medii aevii, Paris, 1869, vol. IV, pp. 203-206 (ed. anastáticaHildesheim, G. Olms, 1963).

(14) Ibidem .

ii

1

~

II

95

Page 48: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

voca, as razões de uma e de outra parte não só no plano do gosto,mas também no das ideologias antagónicas, enquanto duas formasdiversas de conceber a música. A bula papal, ao descrever os defei-tos da nova música, giza inconscientemente a: estética dos novostempos. Face à maior complexidade da ars nuova, em que o entrela-çamento polifónico das vozes se torna um motivo de fruiçãoautónomo para o ouvinte, eis a preocupação de João XXII:

s

A multiplicidade das suas notas apaga os simples-e equili-brados raciocínios' através dos quais, no cantochão, se distinguemas notas umas das outras. Correm e nunca descansam, inebriam osouvidos e não cuidam das almas; imitam com gestos o que tocam,de modo que se esquece a piedade que se procurava e se manifestaa descontracção que se deveriaevitar,

Estão claramente indicados neste documento os fins a que sepropunha a ars antiqua e aqueles a que se propõe a ars nova: aoposição não é apenas entre os valores da simplicidade e da clarezacontra a.abstrusidade, a complicação e a novidade gratuita, oposi-ção habitual em todas as épocas, característica da eterna polémicaentre passado e presente, entre tradição e renovação; a oposição éessencialmente entre urna concepção da música a servico deoutrem, isto é, como instrumento de devoção religiosa, : urnaconcepção da música corno fim em si mesma, auto-suficiente eautónoma no seu valor puramente auditivo. Depois da ars nova, asrazões da música tornam-se cada vez mais prepotentes e tendem aafirmar-se, prescindindo de forma cada vez mais clara de motiva-ções e justificações de tipo teológico, cosmológico e moralista.Os ecos e as sequeI as da polémica entre fautores da ars antiqua eda ars nova não ficaram apagados por muito tempo: Johannes deMuris, Philippe de Vitry, Jacob de Liêge e outros mais continuarama sua batalha ideológica ao serviço de urna ou de outra parte,contribuindo dessa forma para fazer o ponto da situacão relativa-mente aos termos da polérnica nos planos estético e filosófico.

96

I!!f .

I·III

I

Capítulo 7·

I)

')

I.J

)

)

( )(j

)

/ 1

. ,

II

)

I )

)

)

')

, ),)

)

)

)

')

')

A Nova Racionalidade

I )

Os teóricos da harmonia e a descoberta dos afectos í.J

()(.JI.J

O processo de progressiva dissolução das doutrinas musicaismedievais, fundadas muitas vezes na autoridade de Boécio e numplatonismo filtrado através da obra de Santo Agostinho, acelerou-secada vez mais com a aproximação do Renascimento. Na segundametade do século xv, Johanes Tinctoris, teórico nascido na Flandres,escrevia alguns breves tratados musicais que assinalaram, talvez, aruptura mais radical com o pensamento medieval. No Diffinitoriummusicae, pequeno dicionário musical escrito com fmalidades didác-ticas, Tinctoris dá-nos algumas definições que demonstram como sedemarca da argumentação de carácter teórico-matemático sobremúsica. A harmonia, por exemplo, é definida em termos absoluta-mente subjectivos corno «um certo prazer produzido por sons apro-priados»; sendo que o compositor seria «o inventor de algumas novasmelodias»; a consonância e a dissonância também são definidas numaperspectiva subjectiva, a primeira é «uma mistura de diversos sons quetraz doçura aos ouvidos», enquanto a segunda é «uma mistura dediversos sons que, pela sua natureza, ofendem os ouvidos» (I). Assim,

)

'.J

()

II'I

(1) Johannes Tinctoris, Inffinitorium musicae, in C.-E.-H. Coussemaker,Scriptorum de musica medii aevii, cit., pp. 179-182

97

,'=------- -

"i

Page 49: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

J)

)

)

'J

J)

)

J)

JJ

.J

'.J! "'.J

;- ~j

í

'.J

J J)

JIJ)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

numa outra pequena obra, Complexus effectuum musices, Tinctorisenumera os vinte efeitos produzidos pela música no homem, agru-pando-os sob a função de estímulo emotivo. À parte as breves edistraídas referências às funções litúrgicas da música, negligen-ciam-se todas as referências às antigas correspondências entreharmonia como princípio objectivo inerente à música e a harmoniada alma, assim como todas as reminiscências da tripartição boe-ciana da música em mundana, humana e instrumentalis. A únicamúsica de que se ocupa Tinctoris é a instrumentalis, aquela querealmente ressoa e que, por conseguinte, é analisável nos efeitosque produz.

Esta atitude, sem dúvida mais empirista na abordagem damúsica, coincide também com um certo renascimento do aristo-telismo e abre perspectivas completamente novas no pensamentomusical, em parte associadas ao reconhecimento do prazerobjectivo e fim não secundário da música. É significativo o queescreve Adamo de Fulda, contemporâneo de Tinctoris, no seu tra-tado Música de 1490: «Parece claro, por muitas razões, que amúsica é de muita utilidade para os estados. O primeiro fim é oprazer; com efeito, a alma humana [...] tem necessidade de algunsprazeres que a confortem, sem os quais praticamente não pode viver[...], segundo fim é espantar a tristeza». A partir do momento emque se considera o sentido do ouvido, ainda que como meio parachegar à psique humana, o destinatário da música e o prazer(delectatio) o seu fim, muda radicalmente a perspectiva a partir daqual sejulga a música: aabstracção racional e moralista da IdadeMédia 'dá :ruga~,'por um Iado, auma concepção psicológica damúsica e, por outro,à'umaconcepção racionalista-naturalista no..que respeita à teoria da harmonia.

. O novo clima cultural próprio do Renascimento deixa as suasmarcas também na música, se bem que com um certo atraso e comaspectos particulares em relação às outras artes. Com efeito, osideais de classicismo, de regresso aos modelos antigos fortementepresentes nas outras artes, só começaram a fazer sentir os seus

98

Ir,

II

A NOVA RACIONALIDADE

efeitos na música no fim do século XVI. Portanto, os primeiros teóri-cos humanistas como Henricus Glareanus (1488-1563), logo noinício do século XVI, procuraram conciliar a teoria musical medievalcom a prática musical do seu tempo, que muitas vezes tendia a abrirbrechas na mais rigorosa das tradições polifónicas, Glareanus, noseu conhecido tratado Dodekachordon, contrapõe os que chama«symphonetae» aos «phonasci», isto é, os que escrevem a váriasvozes aos que inventam melodias, pronunciando-se a favor destesúltimos precisamente porque têm o dom da invenção; os phonascisão, portanto, os primeiros músicos mais autênticos, os que desco-brem novas melodias. Os symphonetae são, sem dúvida, os maiseruditos, mas não desempenham a mais simples e.natural função damúsica que é a de sublinhar e sublimar o sentido das palavras, tor-nando-as mais eficazes e expressivas. Estes conceitos, entrevistosna obra de Glareanus, tomar-se-ão centrais na especulação musicaldos séculos sucessivos, em particular, na Camerata de Bardi, numclima declaradamente humanista, e levarão à teorização e à criaçãodo melodrama e da monodia acompanhada.

Os aspectos expressos, de forma ainda embrionária,' porGlareanus e pelos primeiros teóricos do Renascimento convergemcom maior agudeza e, principalmenre, com maior organicidade naobra do músico e teórico veneziana Gioseffo Zarlino (1517-1590).Os seus escritos, permanecendo durante muito tempo um ponto de'\referência para os teóricos, abordam sobretudo o problema darefundação da teoria musical com base num novo racionalismo que~e funda: na própria natureza dos sons. Se o racionalismo medievalera abstracto porque nos levava a criar construções musicais fictí- fi.cias, independerites da experiência e fundadas em princípios geral- "mente estranhos à música, a nova teoria tem como objectivojustificar racionalmente o uso real que agora é feito dos intervalosmusicais. Zarlino tenta, talvez pela primeira vez, efectuar essaracionalização sistemática nos seus três grandes tratados, Istituzioniharmoniche (1558), Dimostrarioni harmoniche (1571), Sopplimentimusicali (1588), perspectiva essa que encontrará, quase dois

99

Page 50: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

séculos mais tarde, um ponto de chegada na obra de Rameau.Zarlino evoca ainda a música mundana, mas unicamente paraafirmar que na base dos intervalos não está uma relação arbitráriaou convencional, antes uma relação baseada na natureza das coisase, portanto, racional, uma. vez que a ordem geral do mundo nãopode ser senão racional. A relação que há entre eis sons encontra-seem todos os «elementos», isto é, entre todos os fenómenos naturais.

" Zarlino não tinha plena consciência de que a nova harmonia tonal,que dava precisamente os primeiros passos naqueles anos, repre-sentava um sistema novo e radicalmente alternativo em relação àsmodalidades. gregorianas; pensava, por isso, que a sua obra poriaum pouco de ordem e clareza no complicado e confuso mundo dosteóricos da polifonia. O fenómeno dos harmônicos superiores (2)oferecia-lhe, portanto, ocasião de teorizar, pela primeira vez, o quena prática musical do século XVI se ia afirmando cada vez mais commaior insistência, ou seja, a nova harmonia fundada em dois modos,o maior e o menor, em substituição do modalismo gregoriano comtodas as suas enredadas questões teóricas e práticas. O fenómenodos harmónicos superiores representava, para Zarlino, a oportu-nidade de demonstrar que o acorde perfeito maior existe na natu-reza, ao passo que o acorde perfeito menor se pode obter indirecta-mente por via matemática. O acordo maior é belo e consonanteprecisamente porque é natural, isto é, existe na natureza, e é naturalporque é perfeitamente racional.

Este racionalismo, em certo sentido, pode fazer renascer omito de uma música mundana, já não entendida como música pro-duzida por esferas celestes e, portanto, iniludíveis, mas comoproduto de uma completa matematização e racionalização domundo musical, com base numa idêntica e correspondente matema-tização e racionalização do mundo da natureza, de cujo o primeiro

(2) Sabe-se que todos os corpos vibrantes produzem, além do som funda-mental, uma série infinita, de intensidade decrescente, de outros sons; entre osprimeiros encontram-se os que compõem o acorde perfeito maior, isto é, a terçamaior e a quinta justa.

100

I )

I)

)I)

,)

\ )

A NOVA RACJONALlDADE

é espelho fiel. Evidentemente que o modelo de inspiração, para osteóricos da' música, era a nova visão galilaica matematizante domundo. Corri efeito, afirmava Zarlino: «Todas as coisas criadas porDeus foram ordenados por Ele pelo Número, aliás, esse Número foio principal exemplar na mente do criador» (3).

Não é por acaso que, no Renascimento, Zarlino e não só,haveria ainda que referir outros teóricos COmO Vicentino, Galileu,Artrusi, de Salinas, Aaron, etc.; evocamosmesmosmotivos cultu-rais de ordem geral comum aos letl:'~dos, aos filósofos, aos arqui-tectos e aos pintores: por um lado, a visão matematizante e racio-nalista do mundo; e, por outro, o retorno ao classicismo da Gréciaantiga, elevado a modelo perene não só de simplicidade, de clareza,de beleza, mas também de racionalidade. Esta evocação da cultura,das outras artes e, em geral, dos grandes temas filosóficos da épocaé um sintoma de que a posição não só do teórico mas do músico emgeral está a mudar. A nítida e categórica diferenciação entre aactividade de execução e a de composição da música, por um lado,e a teorização e reflexão sobre a música, por outro, constituíam abase da concepção medieval de música que se concretizava na claraseparação entre teoria e práxis. Esta concepção tinha uma confir-mação directa no diferente status social de que gozava a figura doteórico, que se considerava praticar uma arte liberal, em relação àdo executante, simples figura de artífice afecto a uma arte servil.Apesar de ter de passar ainda muito tempo, praticamente até ao fimdo século XVIII, para que mudasse de facto e de direito a condiçãosocial do músico, iniciou-se no Renascimento aquele processolento, cheio de contrastes e de contradições que iria conduzir a umaplena integração da música, em todos os seus aspectos, na culturahumanista, da qual havia sido excluída até então. Glareanus eZarlino já haviam encarnado na sua obra esta aspiração, não é poracaso que lhes chamam a ambos, simultaneamente, compositores e

-)

)

)

.J

,)

,)

)

I.J

').J

')

)

rj)

).J

.J

')

I)

J')

)

)

)I )

)

)

)

(3) Istituzione harmoniche, Veneza, 1558, livro I, capo XII (ed. anastáticaRidgewood, Gregg, 1966).

101

Page 51: FUBINI, Enrico. Estética da Música

·"%15 004 5NP mm= ........"-..,;.,..,...=_._~

)

)

)

)

)

)

)

).J

Ij

J.J,)

J'J

ESTÉTICA DA MÚSICA

teóricos e que o seu pensamento musical se desenvolveu precisa-mente como reflexão sobre o seu modo de actuar enquanto músicos.

Palavra e música: o nascimento do melodrama

A exizência de encontrar um sistema simples e racional parao

adaptar as palavras à música era sentida de forma bastante viva pelopróprio Zarlino, se bem que a práxis polífónica que ele seguia nassuas composições o impedisse de encontrar uma solução satisfató-ria para essa questão. O problema enquadrava-se não só no climacultural humanista pelo desejo de fazer reviver o teatro grego, mastambém na exigência de renovação da Igreja da Contra-Reforma:queria alcançar-se uma melhor compreensão dos textos ou, poroutras palavras, uma reabilitação da palavra em relação à música.O problema de uma correspondência e coerência entre palavra emúsica integrava-se;' além do mais, na concepção mais ampla de

.música como instrumento para estimular os «afectos»; nesta pers-pectiva, é necessário que a cada palavra, dotada obviamente de umadeterrriinada carga semântica, corresponda uma harmonia análogana música. Por isso, já Zarlino, nas suas obras teóricas, esboçarauma espécie de vocabulário musical que o músico utilizava paracompor de acordo .com o texto, sem criar contradições irracio-nais (4). A linguagem verbal toma-se, portanto, o modelo a que omúsico se deve adaptar e submeter. Este será precisamente o idealda Camerata de Bardi e cios primeiros músicos e libretistas, cria-dores do novo. género melodramático. .

A c~ise do mundo musical da polifonia manifestava-se na pre-tensãohumanista de um regresso à Grécia Antiga, o que represen-tava uma implícita, mas clara polérnica em relação ao contrapontoe 'às suas complicadas e irracionais abstrusidades. Os novos teóricosda monódia acompanhada, invocando o regresso à simplicidade dos

(4) Cf. Istitutlone harmoniche, cit., livro 1, capo XXXII.

102

A NOVA RACIONALIDADE

antigos como antídoto para as degenerações dos modernos, identifi-cam a Idade Média bárbara com a polifonia; esboçam o esquemahistoriogáfico, reafirmado tantas vezes até à aurora do Roman-tismo, que faz da Idade Média um longo parêntesis de decadência ede barbárie, do qual a humanidade reemerge apenas com o Renas-cimento - que recupera o movimento áureo da cultura clássica.Já no mundo luterano se havia invocado uma maior compreensãodas palavras e, portanto, uma música mais próxima da sensibilidadedo povo. O cantus firmus da tradição gregoriana e os seus com-plicados enredos polifónicos eram preteridos a favor dos motivospopulares mais simples e melódicos para adaptar aos textos linir-gicos, de forma a que todos pudessem entoá-los e senti-Ios comoseu património musical. A nova Igreja Católica, com o Concílio deTrento, acatou essas exigências e conduziu a sua batalha pela cla-reza e compreensibilidade dos textos da liturgia, mesmo no âmbitoda música polifónica, invocando uma maior transparência do tecidomusical. Laicos e religiosos concordam, se bem com motivaçõesdiversas, em exigir aos músicos uma maior aderência aos textos e,definitivamente, uma submissão do elemento musical ao verbal,considerado, em todo o caso, o eixo portante no encontro entremúsica e palavra.

Estas teorias são debatidas em ambiente hurnanista no famososalão de Florença do conde Giovanni Bardi. O mais vivaz e arguto .'animador deste. cenáculo de literatos e de músicos é VincenzoGalilei, o músico e teórico que traçou, organicamente, no famoso'Dialogo delta musica antica e della moderna (1581), os princípiosfundamentais do novo estilo musical e, sobretudo, os cânones esté- ..ticos, teóricos e filosóficos que a ele presidem. A nova concepção ;~racionalistada música nasce, em Galilei, de considerações já nãoteológicas ou metafísicas, mas sim técnicas e históricas no âmbitode uma filosofia racionalista. A monódia é mais verdadeira do quea polifonia, não só porque os Gregos' a haviam adaptado, mastambém porque é mais natural, isto é, mais consonante com a natu-reza do homem e, por isso, eterna e imutável. Além do mais,

103

,j'"

Page 52: FUBINI, Enrico. Estética da Música

~

J)

J)

)

)

)

)

)

)

~l~~ ~ -L ~ __~ ~ __~)

ESTÉTICA DA MÚSICA

segundo a teoria dos afectos, se a cada intervalo e a cada modocorresponde uma determinada emoção ou sentimento, a polifonia éirracional, porque, por exemplo, no movimento contrário das partesanula qualquer efeito que seja. Com efeito, «a quinta ao elevar-se étriste e ao descer é alegre e, ao invés, a quarta é assim assim aosubir», afirma Galilei e conclui desta forma: «tal confusa e contráriamistura de notas não pode suscitar afecto algum em quem asouve» (5).

As críticas que eram feitas à polifonia, quer por Galilei, querpor outros teóricos da Camerata de Bardl, centravam-se na sua irra-cionalidade (até os afectos respondem a princípios de racionali-dade!) e no seu hedonismo. Com efeito, na polifonia, em que pre-valeciam claramente as razões da música sobre as da palavra, odiscurso musical não podia ter como finalidade representar algo,nem imitar os afectos; segundo Galilei

a contínua delicadeza da diversidade dos acordes, misturada comum pouco de acrimónia e tristeza das diversas dissonâncias, alémde outras mil sobejas maneiras de artifício, que com tanto engenhoforam procurando os contrapontistas dos nossos tempos paraseduzir os ouvidos, são de sumo impedimento ao sugestionamentode alguma afecção na alma que, ocupada e praticamente ligada aesses laços .do prazer assim produzido, não tem tempo para ouvirnem para considerar as mal proferidas palavras (6).

Estas expressões polémicas, para aqueles que ainda susten-tavam a polifonia, vinham de um laico e humanista como VincenzoGalilei e eram pronunciadas em nome de uma eficaz «expressãodos afectos», como será mais tarde exigida, em particular, pelonovo espectáculo melodramático. Todavia, uma polémica, no fundo

(5) Vincenzo Galilei, Dialogo della rnusica antica e della moderna, Flo-rença, 1581, capo I (cf. ed. reduzida organizada por F. Fano, Milão, Minuziano,1947).

(6) Ibideni, capo L

104

A NOVA RACIONALIDADE

)

,)

)

)

)

)

)

)

)

J

J

JJJ)

~

J

~~)

~

não muito' diferente, eclodia na facção eclesiástica contra a mesmamúsica polifónica, polémica desta feita conduzida em nome dadefesa e do respeito do texto litúrgico e da sua adequada com-preensão. A negação da autonomia da linguagem musical e de-umseu valor autónomo excessivo é, portanto; comum a laicos ereli-giosos 'e levará a desfechos talvez não previstos pelos própriosprotagonistas desta batalha: por um lado.:o aparatoso melodramabanoco, por outro, a nova música litúrgica, as solenese grandiosasvolutas barrocas da cantata sacra e do oratória: O cenário moralistae racionalista, que sempre representara a premissa para uma con-cepção heterónoma da música, continua presente no novo· mundomusical barroco, católico e contra-reformista e continua a ser oelemento-chave em que se funda a poética do melodrama.

Umas das poucas .vozes discordantes que se levantam noRenascimento tardio a este quase unânime coro de crítica à polifo-nia é a do músico e teórico Giovanni Maria Artusi, que se tomou.conhecido talvez não tanto pelas suas polémicas contra a modernamusica mas pela controvérsia com Monteverdi a que essas deramorigem. Os argumentos de Artusi (1), não explicitamente dirigidos aMonteverdi, são apenas parte dos argumentos dos nostálgicos dostempos passados; os seus raciocínios em defesa da polifonia têm,portanto, um interesse exclusivamente estético. A oposição deArtusi à nova música monódica prende-se não só com a afirmaçãogeral de que as inovações dos modernos «ofendem o ouvido», masprincipalmente com a sua aversão a conceber a música como«expressão dos afectos, isto é, a apresentar valores subjectivos e aentregar-se à sensibilidade do indivíduo. Por isso, defende a poli-fonia, o contraponto, as fugas, as composições «estudiosas», poissão passíveis de ser absolutamente definidas e enquadradas nasregras codificadas e, portanto, objectivas. O músico moderno, aoinvés, segundo Artusi, não hesita em ofender o ouvido e, principal-

(1) Cf. L'Artusi ovvero delle imperfettioni della moderna musica, Veneza,1600-1603 (ed. anastática Bolonha, Forni, 1968).

105

Page 53: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)."

)

)

)

J)

)

)

)

)

)

.)

JJ-->)

ESTÉTICA DA MÚSICA

mente, em ir contra a razão - que para ele se identifica com a tradi-ção - em nome da expressão. Monteverdi, que à época encarnavamais do que qualquer outro músico a nova música, terá escolhidoprecisamente a expressão, sacrificando os que para Artusi são osverdadeiros valores da arte: a beleza, a razão, a tradição.

Apesar de ter o seu ponto forte na defesa das regras e das leispróprias da música, a posição de Artusi estava a destinada ao fra-casso à luz dos posteriores desenvolvimentos da história da música.Contudo, esta batalha combatia-se em terreno perdedor, isto é, entreo quadro teórico das modalidades gregorianas e da polifonia contra-pontista. A evocação da natureza da música, das suas leis definíveisem termos matemáticos, representou sempre um movimento vivona história secular do pensamento musical a partir de Pitágoras.Outros teóricos, após Artusi, apropriaram-se desta herança, mas aautonomia da música (à semelhança de Zarlino, evocado pelopróprio Artusi) será defendida no novo terreno do mundo nascenteda harmonia ~ da, monodia, Descartes, Leibniz e, principalmente,Euler até Rameaudefenderão, na esteira da tradição pitagórica, ,amúsica como linguagem perfeitamente auto-suficiente, na medidaem que o seu fundamento e a sua razão de ser se encontram nosfundamentos naturais e eternos da harmonia tonal.

Esta tendência para recuperar o sentido da autonomia damúsica é mais acentuada no mundo protestante do que no católico'e latino. Já no pensamento dos primeiros reformistas (em particularde Lutero) se pode notar que a música, mesmo no âmbito de um usolitúrgico, não é concebida corno jnstrumentum regni, mas cornovalorauto-suficiente; capaid~ porsi só elevar a alma a Deus, nãoem virtuded~ texto.Iitúrgico que acompanha, mas pela própriaharmonia dos sons. Assim afirma Lutero:

106

.J

)

J

.)

.) '...J

..J.

,.J.)

.J

)

).) J

j.J

)

A música é um pouco como uma disciplina que toma oshomens mais pacientes e dóceis [...]. É um dom de Deus e não doshomens; espanta o demónio e faz-nos felizes [... ]. Gostaria deencontrar palavras dignas para tecer elogios a este maravilhoso

A NOVA RACIONALIDADE

dom divino, a bela arte da música [...]. Há que familiarizar osjovens com esta arte, porque toma os homens bons, delicados edispostos a tudo (8).

Está ausente desta perspectiva - reafirmada por Lutero emmuitos outros escritos e na sua obra de educador de música - qual-quer vestígio dó moralismo que caracterizou, por muitos séculos, deSanto Agostinho em diante, o pensamento da Igreja, com o receioconstante de que a sedução do som pudesse desviar a alma dasorações ou, pior, tomá-Ia vítima do demónio. O espírito luteranoabole, primeiro que tudo, o dualismo entre sensibilidade e razão,entre prazer e virtude, característico da tradição teórica medieval.

A teorização filosoficamente mais consci~nte desta perspec-tiva característica do mundo luterano é a de Leibniz nos poucos,mas significativos, passos que ele dedicou à música. Leibniz estáconvencido de que a música possui uma firme estrutura matemá-tica. Todavia, essa convicção não o leva a contrapor, à semelhançada tradição, razão e sensibilidade. Para Leibniz, a música é,essencialmente, uma percepção aprazível dos sons. Na sua célebredefinição da música como «exercitium arithmeticae occultumnescientis se numerare animi» (9), quis exprimir o conceito de que'a estrutura matemática da música se manife~ta logo na sua percep-ção sensível e que o efeito deste cálculo inconsciente efectuado pela'alma se nota através de um «sentido de prazer perante a conso-nância e de aborrecimento perante a dissonância» (10). A harmonia'.matemãtica do Universo revela-se, por isso, através dos sentidos eimediatamente à percepção, antes mesmo de se revelar à razão do ,~homem. Talvez nenhum teórico da música tenha expresso de fortna f,

tão sintética e exemplar a exigência de reconciliação entre ouvido e

(8) M. Lutero, Carta a Senfl, 1530, citada em F.A. Beck, Df. M. LuthersGedanken über die Musik, Berlim, 1828, p, 58.'

(9) G. W. Leibniz, Lettera 154 a Christian Goldbach, in Epistolae ad diver-sos, ao cuidado de Chr. Kortholt, 4 vols., Leipzig, Breitkopf, vol. r, pp. 239-242,

(10) Ibidem.

107

Page 54: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

razão, entre sensibilidade e intelecto, entre arte e ciência. Esta con-cepção de música, que aflora sinteticamente as lapidares definiçõesleibnizianas, está presente no aparecimento florescente de estudosnos séculos XVII e XVIII, com o propósito de aprofundar os funda-mentos naturais da nova ciência da harmonia que culminou com avasta obra de Rameau, bem como, em certo sentido, no floresci-mento de música instrumental pura como acto de fé na autonomia,na auto-suficiência expressiva e na validade da linguagem dos sons,que tem o seu coroamento na obra instrumental de J. S. Bach.

A teoria dos afectos e as polêmicassobre o melodrama

As primeiras investigações conduzidas por Zarlino, com vistaa uma organização racional da harmonia segundo leis baseadas numfundamento natural firme, e as exigências de um novo tipo deexpressão musical, desenvolvido na esteira da invenção e da difu-são do melodrama e da desagregação da polifonia, encontraram oseu ponto de convergência no mundo barroco, na teoria dos afectos(AjJektenlehre). Essa teoria, na verdade, não é senão a recuperaçãodo espírito do Humanismo e da mais antiga teoria do ethos musical,isto é, a ideia de que existe uma relação directa entre a música e aalma humana. A teoria dos afectos sobreviveu praticamente aolongo da época barroca, enriquecendo-se, no Iluminismo, com onovo conceito de gosto, até ao limiar do Romantismo. Irá delinear--se, no âmbito desta teoria, uma espécie de retórica da nova música,que se pode gabar de possuir os instrumentos técnico-linguísticoscapazes de suscitar os sentimentos ou emoções correspondentes nosouvintes e, consequentemente, de exprirni-los.

Embora, em Zarlino e nos escritos de Galilei, a teoria dosafectos já esteja completamente formulada e a finalidade da música,enquanto expressão e descrição dos afectos, seja igualmente refe-rida, só encontraremos uma verdadeira formulação intencionaldessa doutrina algumas décadas mais tarde na obra Musurgia

108

1

A NOVA RACIONALlDADE

universalis sive ars magna consoni et dissoni (1650) do padrejesuíta Athanasius Kircher, de fundamental importância para oconhecimento das concepções estéticas da música no períodobarroco. Kircher, com a expressão musica pathetica, quer sublinharprecisamente o poder da música sobre o temperamento humano(constitutio temperamentii, pressupondo que este é passível deser influenciado de várias formas por diversos estilos musicais.«A alma humana - afirma Kircher-. apresenta determinadas carac-terísticas que dependem do temperamento inato de cada indivíduoe é em virtude do mesmo que o músico tem mais tendência para umtipo de composição do que outro. Há, portanto, uma variedade decomposições quase tão grande quanto a variedade de temperamen-tos que podemos encontrar nos indivíduos» (11). Esta perspectivaestética, que nas décadas seguintes levou à elaboração. de verda-deiros dicionários musicais de paixões e de afectos - cujosvocábulos ou «figuras» não eram apenas genericamente os estilos.musicais, mas mais especificamente os acordes, os intervalos, osritmos, os acentos, a dinâmica, os instrumentos, etc., em uso naépoca barroca - tem as suas raízes no melodrama e na música que

. nasceu à luz do modelo de expressão melodramática.O novo tipo de união entre música e poesia implicava uma

nova concepção da música como instrumento de intensificação daspaixões e, portanto, uma sua afinidade com a linguagem verbal.Músicos, filósofos, teóricos seguem esta via, afinando e aprofun-dando estas premissas, que, aliás, não contradiziam, muito pelocontrário, as investigações mais propriamente musicológicas, mate-máticas e científicas sobre a harmonia, nem as perspectivas estéti-cas e filosóficas em sentido lato, fundadas no conceito de alie comoimitação da natureza. A teoria dos afectos foi implicitamente for-mulada no século XVII, bem como no século xvm, tanto nos escritosdos músicos como nos dos críticos e dos filósofos; encontram-se

(ll) Musurgia universalis sive ars magna consoni et dissoni, Roma, 1650,capo V, p. 581.

109

)

)

)

)

)

)

)

,)

JJ

'.-J

,)

'..J

I)

(..J

I./

'.J, , '..JI

JI

J

(~I !.J

.j )!1

I)J,I..J

,)

'J.J

I )

1,1'().( )

,. ( )()

>t:)

Page 55: FUBINI, Enrico. Estética da Música

")I )

I)

)

)

)

J)

)

JJ)

)

.J

premissas quer na corrente científico-racional, que tem o seu apo-geu em Rameau, quer na corrente tendencialmente empirista, queencontra as suas formulações mais interessantes nos Enciclope-distas.

Os estudos sobre a harmonia, o temperamento e o significadodos intervalos conduzidos por músicos e matemáticos comoWerckmeister, Euler e o próprio Descartes (que no seu Compen-dium musicae,escrito em 1618, elabora uma estética musical total-mente fundada: na acústica e na psicologia auditiva) contribuem,embora de diferentes modos, para este processo de mundanização elaicização da música, reportando-a à esfera da psique humana, dossentimentos e das emoções. Com excepção talvez do teórico, filó-sofo e matemático Marin Mersenne que, na sua Harmonie univer-selle (1636-1637), se mantém ancorado na concepção teologizadada música e que, em certos aspectos, nos remete para um climamedieval. Com efeito, para ele, toda a ciência da música reside natrindade: os três géneros tradicionais -'- diatónico, cromático, enar-mónico - são disso símbolo. A harmonia do Universo tem a suacorrespondência exacta na harmonia da música, não baseada emfenómenos físico-acústicos, mas sim em complicadas e abstrusasanalogias metafóricas onde reaparece o conceito de música dasesferas e o conseqüente dualismo entre música como objecto dossentidos e música como ciência. A posição de Mersenne está, sem'dúvida, isolada e destinada ao fracasso face ao interesse dos músi-cos e filósofos já firmemente centrado na relevância afectiva domundo sonoro, numa atmosfera manifestamente laicizada. Por isso,os críticos "e filósofosda mdsicatendem a dirigir-se não só aosespecialistas e aos doutos, mas também em geral ao homem degosto.

ESTÉTICA DA MÚSICA

110

\J

.J)

j

J)

j,.)

)

)

Capítulo 8

o Iluminismo e a Música

A teoria dos afectos no século XVIlI

No século XVIII, a teoria dos afectos é recuperada sobretudo noâmbito da cultura alemã, onde a música instrumental se desenvolvecom maior exuberância. Johann Mattheson, compositor, crítico eteórico de Hamburgo, retomou a teoria dos afectos no seu tratadoDas neu-erõfnete Orchestre (1713), aplicando-a aos instrumentos e.aos seus timbres e atribuindo uma tonalidade emotiva particular acada instrumento. Mathenson também se destaca por ter fundado o ,primeiro jornal musical alemão Crítica de Música (1722), seguido,poucos anos mais tarde, pelo músico e musicólogo J.' AdolphScheibe, que no semanário Der Kritische Musikus (1737-1740) (debateu os problemas' históricos eestéticos da música mais premen-tes da época, contribuindo assim, juntamente com Mattheson, parafta difusão da ~úsica a nível não especializado. Scheibe também"retomou a teoria dos afectos com o nome de Figurenlehre (doutrinadas figurações), com o objectivo de codificar a correspondênciaentre determinadas figuras (isto é, grupos de notas), determinadosintervalos, determinados acordes harmónicos ou grupos de acorde-se o afecto correspondente, formando assim uma espécie de léxicomusical. A correspondência entre figura e afecto já não é deixada

111

Page 56: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

ao critério do músico, é fixada, segundo uma retórica rígida, numaindubitável conexão com a prática melodramática e com as fórmu-las com que se tendia a unir frase musical e frase literária, segundomodelos estereotipados.

Neste quadro conceptual insere-se a polémica sobre a música deBach, em que Scheibe,· Mattheson e, mais tarde, músicos comoQuantz, Leopold Mozart, Carl Philipp, Emanuel Bach e outros mais

ri contrapõem, nos seus tratados, as músicas contemporâneas, as que«tocam o coração» através da melodia, à música de Bach, que per-manece um árido contraponto, incapaz de suscitar algum efeito e, porconseguinte, afectos e emoções, irremediavelmenre ligada ao passado.

A teoria dos afectos, muitas vezes, configura-se como umateoria rígida, mas sob influência do empirismo inglês e da estéticado gosto, representá o eixo portante da nova concepção de músicacomo linguagem dos sentimentos. Em Inglaterra, o compositor eteórico Charles Avison, no ensaio Essay in Musical Expression(1752), referindo-se às breves anotações de Addison (onde amúsica, em vez de se submeter às regras, se cirscunscreve ao gostocomo única medida de juízo), considera a música um dos meiosmais eficazes para suscitar paixões:

a música - afirma Avison - quer com a imitação dos vários sons,na devida sujeição da harmonia às leis da melodia, quer através deoutros métodos de associação, trazendo para diante de nós objec-tos das nossas paixões [...J, suscita naturalmente uma variedade depaixões no coração humano (1).

Avison (e, poucos anos mais tarde, o historiador e crítico demúsica Charles Burney) remete-nos para um clima filosófico ecultural distante da teoria dos afectos, que tende a separar-se daspremissas ainda racionalistas em que essa se fundava, para dar lugarà livre voz dos sentimentos que não está sujeita a regras e imposi-

(1) Ch. Avison, Essay on Musical Expression, Londres, 1752, pp. 3-4.

112

IJ

o ILUMIN1SMO E A MÚSICA

I )

)

)

())

)

)

:.- I

)

ções da razão. Precisamente nestas décadas, na segunda metade doséculo XVIII, se esclarecem os termos de uma polémica, que atéentão não se manifestara de forma explícita, entre uma concepçãoracionalista e uma concepção sentimentalista e, por vezes, irracio-

. nalista da música, polérnica essa que se identifica com as correrites.mais avançadas do pensamento ilurninista .:

As razões da música e as razões da poesia

A invenção da monódia acompanhada e do melodrama polari-zou a atenção dos teóricos, dos 'letrados e dos músicos durantemuito tempo relativamente ao problema das relações entre músicae poesia. Problema complexo quer do ponto de vista prático, querdo ponto de vista teórico e filosófico, que se traduz, em primeirolugar, num aprofundamento da relação entre duas linguagens; averbal e musical- que cada vez mais se configuravam não só diver-sas mas também antagónicas e, muitas vezes, inconciliáveis: uma éprópria da razão, a outra da sensibilidade e do sentimento. Nestecenário teve lugar, no século XVII mas principalmente no séculoXVIII, uma das mais acesas polémicas que envolveram não sómúsicos e teóricos, mas também letrados e homens de cultura emgeral. Em torno dela delinearam-se os problemas que terão cons-tituído o âmago da estética musical no sentido moderno do termo.O debate sobre relações entre música e poesia, sobre a possibilidadedo encontro ou da convivência entre estas duas linguagens, sobre asubordinação de uma à outra, assumiu frequentemente formas indi-rectas e disfarçou-se sob as mais diversas querelas. A classificaçãohierárquica das várias artes, .as querelles sobre música italiana efrancesa, sobre ópera séria e ópera bufa, a polérnica contra a músicainstrumental pura e muitas outras questões musicais e paramusicaisque foram repetidamente abordadas pelos dou tos da época, podemdecididamente reconduzir-se à preocupação de definir em certamedida as relações entre música e poesia.

')

I)

)

-:

)

)

j )

I )

.J

I )

)

)r );1-

)

)

)

113

Page 57: FUBINI, Enrico. Estética da Música

~~--~------------------~---~--~~--=-=--~-=--~--=-~--~-~-~-~.=---=--~--=-=---~--~~-~~--~~========================================~.j-~\ ))

)))

,)

,)

)

)

))

ESTÉTICA DA MÚSICA't·

o que une a maior parte dos po1emistas é a condenação dogénero melodramático, condenação que ganha maior expressãopo1émica nas décadas em que o melodrama - indiferente aos avisosque lhe chegam de várias partes, para se ater a uma maior verosi-milhança cénica e, portanto, a uma maior racionalidade -, se afirmacada vez mais como um elemento fundamental na vida social daaltura, encontrando um sucesso crescente junto do público aristo-crático e burguês. O melodrama, nas décadas entre o século XVII eo século XVIII, tornou-se objecto de uma polémica de fundo mora-lista e não tanto estético. Com efeito, a música, na esteira de umatradição secular, continua a ser considerada uma arte não conso-nante com a moral, ou, pelo menos, sem conteúdo moral: a músicarepresentaria apenas um deleite para os nossos sentidos, para oouvido, acariciado pelo jogo de sons e pelas doces melodias.A razão, diante dela, permaneceria inerte e não receberia nenhum.conteúdo sério. O homem possui uma única linguagem válida queé a da razão. Para uma mentalidade rigidamente racional e carte-siana há uma' incompatibilidade originária entre poesia e música:tendem para direcções diferentes sem se poderem encontrar,excluindo-se mutuamente. Muratori, Baretti, Alfieri e outros, emItália, concordam em condenar o melodrama como espectáculohíbrido, contrário à razão, «sumamente prejudicial para os costu-mes do povo, que se torna cada vez mais vil e dado à lascívia aoescutá-lo» (Muratori). Esta hostilidade geral dos críticos, em parti-cularitalianos e franceses, em relação ao melodrama (e ainda maisem relação à música instrumental, em que não há qualquer ele-mento racional) assume, desde cedo, configurações absolutamentepeculiares e transformou-se na polémica entre fautores do melo-draina italiano e fautores do melodrama francês.

A primeira polêmica significativa, cuja inspiração é já clara-mente estética, é entre o abade francês Raguenet e Lecerf de LaViéville em 1702-1704. No final do século XVIII, Raguenet fez umaviagem a Itália, onde teve oportunidade de conhecer de perto amúsica e, em particular, o melodrama italiano. Alguns anos mais

\.,:;.

114

o ILU1vITNISMO E A MÚSICA

tarde escreveu o conhecido Parallêle des Italiens et des François ence qui regarde Ia musique et les opéras, um breve pamphlet, o pri-meiro de uma longa série, onde o problema é abordado com grandelucidez e clareza. Raguenet reconhece que as óperas italianas sãopobres do ponto de vista literário, ao passo que as francesas sãomais coerentes, mais fascinantes e podem representar-se inclusivesem música. Todavia, a obra italiana apresenta uma qualidade denatureza completamente diferente a ponto de a tomar preferível àfrancesa: a musicalidade. Talvez pela primeira vez na história dopensamento musical, a música é reconhecida como um elementocompletamente autónomo, independente da poesia e livre dos deve-res moraiseducatívos ou intelectuais. O que conta, para Raguenet,é a inesgotável inventividade musical italiana face ao talento«limitado e tacanho» dos franceses. Dois anos mais tarde, em 1704,a resposta de Lecerf de La Viéville, grande admirador de Lully, emComparaison de Ia musique italienne et de Ia musique française

esclarecerá perfeitamente os termos da polémica iniciada porRaguenet, estabelecendo pontualmente as respectivas posições: porum lado, com Lecerf, os defensores da tradição racionalista eclassicista encarnados no melodrama de Lully e dos seus discí-pulos; por outro, os amantes do «bel canto» italiano, isto é, os quedefendem a autonomia dos valores musicais e as exigências doouvido: Com efeito, Lecerf, no seu pamphlet contra o melodrama'italiano, recorre a argumentos como o meio termo, a simplicidade,ao convite para evitar os excessos, abolir. o supérfluo e sobretudo'observar as regras. Lecerf acusa sobretudo os italianos de ferirem ocoração para se abandonarem ao prazer produzido pelo belo som. ji

A polémica entre Raguenet e Lecerf é a primeira de uma longa série' ,e, decididamente, reduz-se não tanto a uma batalha entre pro-gressistas e conservadores quanto a uma batalha entre ouvido erazão, entre sensibilidade e intelecto. Por outro lado, Raguenet equem pensava como ele não tinham grandes armas para atacarem osadversários: o ouvido não se pode defender enquanto não encontraras suas razões; só na segunda metade do século XVIII se afirmarão

115

Page 58: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MúSICA

as premissas filosóficas e estéticas para uma abordagem do pro-blema baseada em argumentos mais sólidos.

A França toma-se a pátria de eleição para estas disputas,que se desenvolvem com um fervor polémico cada vez maior nodecorrer do século XVIII e que se vão toma~do cada vez mais áspe-ras e combativas até gariharem uma tonalidade claramente polí-tica com os Enciclopedistas. Portanto, já na primeira metade do

.r: século XVIII - em Inglaterra com Shaftesbury e, mais tarde, com osempiristas, e em França sobretudo com o abade Du Bos mas tam-bém com Batteux e outros teóricos -, desenvolver-se-ãoas pre-missas de uma estética do gosto e do sentimento enquanto órgãosde criação e de fruição artística que são,por sua vez, uma-premissapara um discurso filosoficamente fundado na autonomia da arte eda música em particular.

Da razão à arte e da arte à razão

A via para fundar a autonomia da música e salvar a sua diani-b

dade artística face à poesia não passa apenas pela estética do gostoe do sentimento, mas também pela recuperação da antiga correntepitagórica do pensamento musical. Rameau, músico que surgiu nacena musical francesa como antagonista de Lully, acusado de italia-nismos, na verdade não tinha nenhuma veleidade revolucionária.Tinha antes a ambição, como músico, de entrar naquele mundo dedoutos e de sapientes donde a figura do músico havia sido excluídapor uma tradição secular. De modo que reivindicava energicamenteo estatuto de ciência para a música, isto é, de linguagem significa-tiva, analisável pela razão, fundada em poucos, claros e indubitá-veis princípios. Esta sua aspiração, embuída de um espírito decunho cartesiano, concretizou-se numa série de tratados, dos quaisse destaca o primeiro, talvez o mais conhecido de todos, Traité del'harmonie reduite à son principe naturel (1722), que já pelo títulodeixa entrever o horizonte filosófico em que se funda. «A música

116

I

iI,.

I

o lLUMlNISMO E A MÚSICA

) I

)

)

)

)

).)

)

)

.J

- afirma Rameau na introdução - é uma ciência que deve ter regrasestabelecidas; estas devem derivar de um princípio evidente quenão se pode revelar sem a ajuda da matemática» (2). O «maravi-lhoso princípio» em que se baseia a música é o fenómeno, já conhe-cido de Zarlino, dos harmónicos superiores, produzidos por Um

.qualquer corps sonore: nele está contido o acorde perfeito maior noqual se funda a harmonia. Esta concepção rigidamente racionalistanão exclui nem o prazer do ouvido, nem uma-relação-entre músicae sentimento. A música agrada-nos e sentimos prazer ao ouvi-Iaporque exprime precisamente, através da harmonia e da ordemuniversal divina, a própria natureza.

Rameau, à semelhança de todos os teóricos e críticos da época,também nos fala de imitação da natureza a propósito da música;mas por natureza entende não os quadros idílicos e pastorais a quegeralmente se referiam. os filósofos, mas sim um sistema de leismatemáticas, associando-se assim mais ao mecanicismo da concep-ção newtoniana do mundo do que à estética sensualista e empirista.

Rameau posiciona-se idealmente à margem das polémicasentre fautores da música italiana ou francesa: a música é uma lin-guagem absolutamente racional e, como tal, universal, «há textosigualmente bem organizados em todas as Nações onde governa amúsica» (3). As diferenças entre uma nação e outra diriam respeitoessencialmente à melodia, que tem a ver sobretudo com o gosto.A prioridade da harmonia, no pensamento de Rameau, funda-seportanto no facto de se poder extrair dela «regras exactas», o quenão sucede com a melodia apesar de não ser menos importante. Porisso, a harmonia é o primum lógico e ideal do qual derivam todas asoutras qualidades da música, incluindo o próprio ritmo.

Embora apresentasse uma importante alternativa à concepçãoiluminista da música, que tendia a ver a música corrio linguagem

)

;

i",.

(2) J.-P. Rameau, Traité de l'harmonie reduite à son príncipe naturel, Paris,1722, Introdução.

(3) Ibidem.

117

Page 59: FUBINI, Enrico. Estética da Música

j'

))

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

{.

~l'"j

T

i:,11-1

!

ESTÉTICA DA MÚSICA

dos sentimentos ou um luxo inocente, Rameau permaneceu isoladono seu século. Tomar-se-ã um importante ponto de referência parao pensamento romântico, prenunciando, em particular nas obrasdo último período eivado de uma tonalidade mística, a futura con-cepção romântica da música como linguagem privilegiada,expressão não só de emoções e de sentimentos individuais, mas dadivina e racional unidade do mundo.

Os Enciclopedistas e as «querelles»

o pensamento iluminista, como se disse, tendia para umadirecção completamente diferente e os Enciclopedistas deram umcontributo decisivo para o desenvolvimento de uma concepção damúsica como linguagem privilegiada dos sentimentos. Mas, emgeral, as suas ideias sobre música ganharam expressão nas cha-madas querelles. A segunda representação parisiense da Servapadrona de Pergolesi, em 1752, foi '0 pretexto para o violento-reacendimento da nunca aplacada querelle entre apologistas datradição francesa e apologistas da música italiana, ou seja, entrepartidários da ópera bufa italiana e os seus opositores (defensoresda tragédie lyrique francesa), que se juntou à polémica precedenteentre os defensores de Lully e os de Rameau.

Paris inteira - escreve Rousseau - se divide em dois partidosmais combativos do que se tratasse de um assunto de Estado ou dereligião. Um, mais. poderoso e ..numeroso, constituído pelos gran-

'des'ncos' e'mulheres;;defe~di'a a música francesa, o outro, mais., < • " .•

vivo, mais confiante e eritusiasta, era composto por verdadeirosconhecedores e pessoas inteligentes, por homens de génio r')..

Os Enciclopedistas, evidentemente, tomam partido da músicaitaliana, identificando nela, e em particular na óperabufa, o triunfo

(4) J.-J. Rousseau, Confessions, livro VIII.

118

o ILUMINISMO E A MÚSICA

do sentimento que encontra a sua expressão musical no livre fluxoda melodia. Por isso, ao contrário de Rameau que via na harmonia,fenómeno eminentemente racional, o fundamento da universalidadeda linguagem musical, os Enciclopedistas, e em particularRousseau, viam na melodia, que se funda, ao invés, na livre inventi-vidade e na fantasia, o fundamento da' diferenciação da música depovo para povo. Rousseau, o Enciclopedista que ocupa o lugar maisimportante e original na elaboração de uma nova concepção demúsica, distante do pitagorismo de Rameau, seu acérrimo adver-sário, reavaliou a música considerando-a a linguagem que fala maisde perto ao coração do homem. O filósofo genebrino não gostavada música instrumental pura, mas não pelos mesmos motivos que oscríticos racionalistas a refutavam enquanto linguagem insignifi-cante. Se Rousseau.recuperou a famosa frase do letrado classicistae racionalista FontanelIe, «Sonate, que me veux-tu?», não é parasustentar que a música se deve reduzir a um omamentoinessencialda poesia, mas sim para afirmar que a música e a poesia têm umaorigem mítica comum no canto primitivo do homem, em que,perfeitamente fundidas, realizavam a forma de expressão maisautêntica. O divórcio entre música e poesia é um efeito da civiliza"ção moderna, e o melodrama, aproximando extrinsecamente umalinguagem verbal dura e sem melodia a uma música transformadaem inessencial e insignificante ornamento, não reconstituiucertamente a unidade originária.

.Embora a expressão do canto primitivo seja agora irrecupe-rável, em países.ondéa língua conservou uma certa melodia, comoem Itália, é ainda possível (pelo menos parcialmente) a união damúsica com a palavra: exemplo disso são os melodramas italianos{~mais imediatos, expressivos e melódicos do que os franceses. Porisso, no pensamento de Rousseau, rrielodia e harmonia aparecemcomo dois elementos antagónicos, excluindo-se mutuamente. A har-monia, com o seu complicado e contraditório cruzamento de vozes- Rousseau confunde-a com a polifonia -, é fruto de uma invençãobárbara da razão; a melodia, ao invés, na sua simplicidade e unidade

119

Page 60: FUBINI, Enrico. Estética da Música

120 121

)

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA o ILUM1NISMO E A MÚSICA

não obedece a outra lei que não a de ser espontânea e directaexpressão do sentimento. A harmonia não imita a natureza: estaúltima «inspira cantos e não acordes, dita melodia e não har-monias» (5).

Rousseau, autor de muitas entradas sobre música da Ency-clopédie (mais tarde reunidas no Dictionnaire de musiquey. foi ofilósofo da música mais original do grupo dos Enciclopedistas e as

{I suas teorias sobre a união originária da música com a linguagemtiveram imenso sucesso em França e não só; serão retomadas edesenvolvidas no Romantismo, embora com contornos diversos e àmargem da velha 'polémica entre fautores do melodrama italiano edo melodrama francês, por Herder.Harnann, Schlegel e, ainda, por

r Nietzsche e Wagner.O Iluminismo e. os Enciclopedistas, em particular, tiveram,

antes de mais, o mérito de alargar o debate sobre música,. inte-grando-a no contexto vivo da cultura. Com efeito, não é por acasoque surgiram precisamente nessa altura a crítica e a historiografiamusical com as primeiras obras históricas do padre Martini emBolonha (Storia della musica, 1757-1781), de Charles Burney emInglaterra (A General History of Music, 1776-1789), de J. N. Forkelna Alemanha (Allgemeine Geschichte der Musik, 1788), etc. Aindanesta época, com a evolução da música instrumental, floresceminúmeros tratados. sobre problemas de execução: referem-se, emgeral, a vários instrumentos da época, mas o cenário em que semovem não é puramente técnico e muitas vezes incluem obser-vações importantes sobre problemas estéticos gerais. É o caso dostratados de Geminiani (The Art of Playing on the Yiolin, 1740), deJ. J. Quantz (Versuch einer Anweisung die Flõte traversiere zu spielen,1752), de C. Ph. E. Bach (Versuch einer grundlichen violinschulezu spielen, 1756), geralmente inspirados na estética do sentimentoe na teoria dos afectos.

Outros Enciclopedistas, apesar de se terem dedicado à músicaapenas como connaisseurs, deixaram nos imensos pamphlets, quesurgiram na sequência da querelle des bouffons, importantes contri-butos; há que referir D' Alembert com O seu Discours préliminaireà Encyclopédie e a sua tentativa de mediação entre as ideias de

.Rameau e de Rousseau, mas o mais importante foi Diderot, queabordou o problema musical em muitas dás suas. obras com con-tornos quase pré-rornânticos. Comefeito, ele entende-a música nãosó como expressão genérica dos sentimentos, mas como expressãoimediata e directa das paixões mais tumultuosas, da vitalidade ins-tintiva (le cri animal). A imprecisão semântica da música instru-mental é vista por Diderot como. um facto positivo, uma vez quedeixa uma maior margem à imaginação e exprime melhor a vida nasua riqueza, totalidade e indeterminação. Diderot, subvertendo radi-calmente as hierarquias tradicionais que punham a música geral-mente no último nível, formula, talvez pela primeira vez, a ideia doprimado da música sobre as outras artes: com efeito, poder-se-ia,em certa medida, concluir - afirma Diderot - que a música é a artemais realista porque, precisamente em virtude da sua indetermi-nação conceptual, pode conseguir exprimir os aspectos maissecretos e, de outro modo, inacessíveis da realidade.

Ideias muito semelhantes às dos Enciclopedistas, a nível daconsciência filosófica, encontram-se no pensamento de Kant.O filósofo alemão, na Crítica da Faculdade de Julgar, avança ahipótese de a música, que do ponto de vista da razão ocupa o últimograu na hierarquia das artes, poder subir até ao primeiro lugar se forconsiderada do ponto de vista da sensação. Com efeito, «ela esti-mula o ânimo de modo mais variado e mais íntimo», e sob esteponto de vista representaria então «a linguagem dos afectos», «alinguagem universal da sensação compreensível a cad~homem» (6).

)

,L

(),)

l)

)

I....J

(-.J

,.)

,)

.J

, )l-.J

r

'J

J{..J'-.J'-.J(-.J'.J(..J

.J

J'...J

.J

(5) Idem, Saggio sull'origine della lingua, ao cuidado de P. Bora, Turim,Einaudi, 1989, capo XVII.

(6) L Kant, Crítica deZ giudizio, trad. it., Roma-B3J1, Laterza, 19947,

pp. 191 ss,

')

( )')

()!' I .J

\ ,1. ,J

Page 61: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

)

~.J

).J

J)

'.~j

J..J

J..J

j..J

JJJ.-i

..)j

Jj

)

~)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

Os temas debatidos pelos ilurninistas franceses adaptam-se àsdiferentes situações culturais e musicais quer em Itália, quer naAlemanha. As polérnicas sobre o melodrama já estão presentes emIl teatro alla moda de Benedetto Marcello (1720) e, com maiorprofundidade, em Saggio sopra l'opera in musica de Algarrotti(1755) e em Le rivoluzioni deZ teatro musicale italiano dalle sueoriginejino al presente de Arteaga (1783-1785). A ambição de umareforma do teatro melodramático, com o intuito de lhe trazer ummaior equilíbrio entre o elemento musical e o literário, encontrou oseu ponto de chegada, pelo menos no âmbito da cultura iluminista,na reforma de Gluck, mas cujo verdadeiro inspirador, no que tocaao aspecto teórico, foi o seu libretista Calzabigi.

Na Alemanha, a problemática estética sobre a música polari-zou-se na alternativa entre Bach e o que representava cultural eesteticamente a sua música, por um lado, e o novo estilo, por outro .A música de Bach era geralmente condenada como árido contra-ponto, incapaz de imitar a natureza, de tocar o coração e de suscitaralgum afecto ou emoção, pertencendo irremediavelmente ao passado,

.resíduo da gotische Barbarei de que falavam com desprezo os críti-cos alemães da época; o ideal da música de salão e elegante, defen-dido e proposto em quase todos os tratados teóricos, muitas vezesescritos pelos próprios músicos da época, funda-se numa concepçãoestética que vê na música a linguagem dos sentimentos, a linguagemmais adequada para «tocar o coração» (Mattheson). O austero idealbachiano de uma música que «não deve aspirar a mais nada senão àhonra de Deus e à recriação da alma», não é compatível, nem capazde estabelecer uma .mediacão doma nova estética do prazer e da

'. . • .~' .!I ••

linearidade melódica. Além disso a historiografia musical desen-volve-se. em linhas bem definidas, segundo as quais o progressocoincide com o que é produzido por último, isto é, com a moda e coma condenação inapelável de tudo o que pertence ao passado e que nãose adequa rapidamente à nova ordem estilística. Teremos de esperarpelo Romantismo para que a recuperação do. passado possa ocorrernum quadro historiográfico ideologicamente novo.

122

Capítulo 9

Do Idealismo Românticoao Formalismo de Hanslick

A música como linguagem privilegiada

o processo de revalorização da música, entendida como lin-guagem autónoma dos sentimentos, iniciado com o Ilurninismo,encontrou na época romântica o terreno de desenvolvimento maisfértil. A assemanticidade da música, que no classicismo racionalistarepresentava o principal ponto de acusação contra a música, torna--se para os românticos um motivo de privilégio em relação às outrasartes. Com efeito, a música, como já havia intuído Diderot, é asse-mântica se a avaliarmos segundo os critérios da linguagem comum,no entanto, graças a esta sua incapacidade .institucional de denotarfactos. e coisas da vida comum, pode ganhar uma nova dimensão etornar-se reveladora de verdades de outro modo inacessíveis ao",-homem: a hierarquização tradicional classicista e racionalista dasartes é, deste modo, completamente subvertida e a música podeagora ascender a rainha das artes .

A distâ'ncia entre a nitidez semântica da palavra e a densaindeterminação da música é sublinhada e sublimada pelos filósofose pensadores românticos. Wackenroder exprime com eficácia estenovo comportamento face à arte dos sons: a música «desenha senti-

123

Page 62: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTlCA DA MÚSICA

mentos humanos de forma sobre-humana [...] porque fala umalinguagem que nós não conhecemos na vida corrente, que nãosabemos nem como, nem onde a aprendemos, que se pode conhecersó como linguagem dos anjos». Mendelssohn, numa conhecidacarta a Marc-André Souchay, afirmava: «a música genuína preen-che a alma com milhares de coisas melhores do q\.Je as palavras.Os pensamentos, que são expressos pela música que amo, não são

~. demasiado indefinidos para serem expressos em palavras, muitopelo contrário, são é demasiados definidos» (1842).

Portanto, o esforço dos românticos vai no sentido de encontrarum espaço. expressivo próprio da música, graças ao qual essaencontre não só uma diferenciação mas também um privilégio faceàs outras artes. A música instrumental pura, precisamente em vir-tude da sua pureza' e de se manter alheia a misturas com outrostipos de expressão, torna-se o símbolo desta nova linguagem pri-vilegiada que nos permite aceder a regiões do ser .de outra formainacessíveis.

A música e os filósofos românticos

O novo interesse pela música que emerge na cultura românticapode reconhecer-se pelo lugar que os grandes filósofos lhe reser-varam nos seus sistemas: Hegel, Schelling, Schlegel, Schopenhauer,Nietzsche, etc., consideram a música um elemento essencial e inte-grante do seu sistema especulativo e estético. Assim, por outro lado,muitos letrados e músicos, com aberturas culturais até então inusi-tadas, ocupam-se de música em termos não especializados: JeanPaul Richter, E.T.A. Hoffrnann, Novalis, Stendhal, passando porBaudelaire entre os letrados, e Beethoven, Schumann, Berlioz,Liszt, Wagner, apenas para referir alguns músicos, deixaram-nosalgumas das páginas mais iluminantes sobre música, não só no querespeita alguns excertos de crítica musical, mas também pelas notasde carácter mais propriamente estético e filosófico, com uma notá-l'

124

.{I

DO IDEALISMO ROMÂNTICO AO FORMALlSMO DE HANSLlCK

, )

)

)

)

),

)

)

)

)

vel convergência do horizonte das perspectivas teóricas avançadaspelos filósofos.

A música tem um lugar bem definido entre os grandes sistemasfilosóficos românticos. Para Schelling, a arte é representação doinfinito no finito, do universal no particular, objectivação do ábso-luto rio fenómeno. Nesta concepção, a música enquanto pura tem-poralidade, mesmo sendo das artes mais ligadas à matéria físicaenquanto som, «é a arte mais di~tarite da corporeidade, ria medidaem que nos apresenta o puro movimento como tal, prescindindo dosobjectos e é transportada por asas invisíveis e quase espirituais» (I).

No sistema hegeliano das artes, a música ocupa igualmente umlugar bem definido. A ideia manifesta-se nas artes como uma formasensível, mas na música a forma sensível é superada e, como tal,transforma-se em pura interioridade, em puro sentimento. A músicaé, portanto, no sistemahegeliano, a revelação do Absoluto na formado. sentimento. Contudo, a principal função da música não é expri-mir os sentimentos particulares, mas sim revelar. ao espírito a suaidentidade, «o puro sentimento de si próprio», graças à afinidade dasua estrutura com a do próprio espírito. Com efeito, «o tempo, e nãoo espaço, é o elemento essencial em que o som ganha existência evalor musical» (2).

As análises de Hegel sobre a temporalidade da música consti-tuem de longe a parte mais interessante da sua estética musical evirão a ser retomadas pelo pensamento formalista. Schopenhauer jáse havia debruçado sobre alguns temas tratados por Regel, atribuindo .à música um lugar central na sua filosofia, sendo a sua expressãomáxima, o seu coroamento lógico. Com efeito, para Schopenhauer,enquanto a arte, em geral, é objectivação da vontade, isto é, do prin-cípio cósmico infinito; segundo formas universais semelhantes àsideias platónicas, a música representa a própria imagem da vontade.

)...J

JJ)

)

)

).J

).J

'J)

)

)

1 )

)

'.../

I)

i)

1 )

')

)

I)

f)

(I) .F.W. S. Schelling, Philosopliie der Kunst, in Schellings Werke, Leipzig.Eckardt, 1907, vol. III, p. 150.

(2) G.W.F. Hegel, Lezioni di estetica, III, parte I, organizado por N. Merkere N. Vaccaro, Turim, Einaudi,1967.

125

Page 63: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

), )

)d

( )"

)

)

J

'r'~~I.-J \:~,

j,tJ li,:

~

{

:: i..)

ESTÉTICA DA MÚSICA

A música é objectivação directa, uma vez que enquanto as outrasartes «nos dão apenas o reflexo, a música dá-nos a essência». Porisso, para Schopenhauer, a música não deve, por natureza, ser des-critiva: «se se quiser adaptar muito a música às palavras e modelá-Iaaos factos, essa esforça-se por falar uma linguagem que não é asua» (3). A música tem, portanto, um carácter de universalidade emantém uma posição abstracta e formal em relação a cada sentimentodeterminado e expresso em conceitos. A música deve exprimir efec-tivamente «o em si do mundo», e uma eventual relação com as pala-

, vras deve configurar-se de forma análoga à relação que «qualquerexemplo deve ter com o conceito geral» (4); a música, à semelhançado que acontecia em Hegel, não exprime este ou aquele sentimentodeterminado, mas sim o sentimento in abstracto.

Paralelamente a este movimento filosófico - que visa não sóprivilegiar a música em relação às outras artes, mas também revalo-rizar a música instrumental em relação à vocal com base na suamaior indeterminação semântica e, portanto, no seu maior poderexpressivo a um nível mais profundo -, podemos encontrar noRomantismo uma corrente de pensamento que tem como objectivo

.encontrar uma justificação estética para novas formas musicaisdesenvolvidas no século XIX a par da música instrumental dita«pura», isto e, o poema sinfónico, a música descritiva, a progra-mática e as novas formas de teatro musical. O programa e a inten-ção descritiva são considerados por Berlioz, bem como por Liszt,novos, e revolucionários meios para ir além das correntes formaisque impõem urna determinada estrutura à obra musical. O músico--poeta pode-estender os lmrites'd~ suaarte «quebrando as correntesque impedem ; voo livre da sua fantasia» (Liszt). Além do mais, amistura da música com outras artes é vista por estes românticoscomo uma superação dos vínculos impostos por uma única arte para

)

J'.J.

Yj

)

)

)

.J

)

(3) A. Schopenhauer, li mondo come volontà e rappresentazione, trad. it.2 vols., Bari, Laterza, 1928-1930, vol. Il, pp. 321 ss.

(4) Ibidem.

126

1I

Ij;,1

t,,'o.

DO IDEALISMO ROMÂNTICO AO FORMAUSMO DE HANSLICK

a obtenção de uma expressão mais perfeita. A sublimação damúsica programática enquadra-se, assim, perfeitamente na preten-são romântica de convergência das artes sob a égide da música(já Novalis afirmava que a música representa o ponto limite para oqual tendem todas as artes, nomeadamente a poesia).

Wagner e a obra de arte total

Esta corrente do pensamento romântico que põe a tónica, nãotanto no poder formal da música e na sua positiva indeterrninaçãosemântica, mas no seu poder expressivo, na capacidade de exprimiro sentimento em todos os seus matizes, encontra a sua expressãomáxima em Wagner. Não distante de algumas ideias já formuladaspor Liszt, Wagner retoma o pensamento de Rousseau de uma uniãooriginária da poesia com a música para chegar ao conceito de obra dearte total (Gesamikunstwertà. O pano de fundo do seu pensamento éainda o conceito romântico de arte como expressão, unido ao ideal daconvergência de todas as artes com o intuito de alcançar umaexpressividade perfeita. A obra de arte total, a obra de arte do futuro,encontro de todas as artes, poesia, dança e música, é o drama, que, nóentanto, não se identifica com' a ópera tradicional; que Wagnerconsiderava uma paródia daquela. O drama, para Wagner, não é unigênero musical, mas a única arte verdadeira, completa e possível, aarte que reintegrará a expressão artísticanasua unidade e totalcornunicabilidade. Beethoven, ,segundo Wagner, antecipou, com: aNona Sinfonia, esta íntima fusão entre som e palavra destinada a,

'. ,I}

devolver a linguagem à sua origem. Há que regressar ao estado origi!'nário em que o poeta e o músico «são um só; porque cada um sabe esente O que o outro sabe e sente. O poeta tornou-se músico e o músicopoeta: agora ambos formam o homem artista completo» (5).

(5) R. Wagner, Oper und Drama, Ill, capo IV, organizado por L. Torchi,Turim, Bocca, 1894.

127

Page 64: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

Não podemos concluir o discurso sobre Wagner sem referir-mos Nietzsche, não só pela amizade que ligava o músico ao filó-sofo, mas também pelos estreitos laços entre a estética wagnerianae nitzscheana. Em Nietzsche, a música representa o centro da espe-culação estética, é a arte por excelência, a origem d~ todas as artes.Por isso, assim como em Schopenhauer, a música não é uma arteentre as artes, ainda que privilegiada, antes uma categoria do espí-rito humano, uma das grandes constantes da história eterna dohomem; em vez de música dever-se-ia falar de espírito musical.:O dissídio que se criou entre Nietzsche e Wagner pode explicar-secom as duas possíveis interpretações da concepção romântica demúsica no interior da raiz comum schopenhaueriana: Wagner levouaté às últimas consequências o concei to rousseauniano e herderianoda união originária da poesia Com a música, ao passo que Nietzschedesenvolveu o princípio, já presente em Wackenroder, em Hoffmann,em Schopenhauer e em muitos outros pensadores. românticos, deabsoluto privilégio e autonomia da música instrumental pura.A música, mais do que um ponto de convergência de todas as artes,deve ser, segundo Nietzsche, a origem, o gérmen de todas as cria-ções estéticas. A inspiração dionisíaca - isto é, musical - precede edomina a inspiração apolínea - isto é, plástica e figurativa -, masum dia Apelo acabará por «falar a língua de Dioniso» (6). As gran-des criações poéticas e figurativas, na medida em que participam doespírito dionisíaco, participam de igual modo na vida primordial doUniverso e dar-nos-ão um prazer de natureza musical.

A parábola do Romantismo pode dar-se por concluída comNietzsche: não obstante a sua negação do Romantismo como sím-bolo de decadência, a sua indiferença pelo Wagner de Parsifal,nostálgico do cristianismo, e o seu entusiasmo pela clareza medi-terrânica e solar da Carmen de Bizet, a sua concepção de músicacomo geradora de todas as artes é romântica e talvez represente

(6) F. W. Nietzsche, La nascita della tragedia, organizado por E. Ruta,Bari, Laterza, 1967.

128

DO IDEALISMO ROMÂl\'TICO AO FOR.\1ALISMO DE HANSLICK

/ I)

)

)

)

)

)

)

)

j

)

)

mesmo a expressão máxima e a conclusão de toda a especulação

romântica da música.

Do formalismo à sociologia da música. .

A primeira metade do século xtx caracteriza-se por um inte-.resse crescente pela música "e pelos -seus programas, não só porparte dos músicos, mas sobretudo por parte dos letrados, poetas,filósofos e homens de cultura. Com efeito, uma das característicascomuns a muitas obras sobre música deste período é o tom literárioe não especializado. Os problemas inerentes à especificidadetécnica da linguagem musicalnão interessam de forma particular aomúsico que escreve sobre a sua arte, nem ao crítico, nem ao filó-sofo. Só o facto de a música representar, para o homem romântico,o ponto de convergência de todas as artes em virtude do seu carácterexclusivamente espiritual, da ausência de elementos materiais, dasua assemanticidade, comparada com a linguagem verbal, faz comque essa se situe acima de qualquer consideração teórica.

Apenas no fim da segunda metade do século XIX, com a pri-meira reacção positivista à filosofia e à estética romântica, o pensa-mento e a crítica musical adquirem uma nova fisionomia. Desen-volvendo o movimento tendencialmente formalista já presente emalzuns filósofos românticos e chamando a atenção para aspectos

b

específicos e peculiares da linguagem e da experiência musical emgeral, Eduard Hanslick, crítico e historiador de música, colaboradormusical de revistas importantes, exerceu toda a vida a crítica mili-tante e, além disso, em 1854, escreveu o famoso ensaio O BeloMusical (Das Musikalish-Schõne), onde estabeleceu as bases doformalismo musical que teve muito sucesso nas décadas seguintese que se estendeu praticamente até aos dias de hoje.

Numa resposta implícita às afirmações de Schurnann, segundoo qual «a estética de uma arte é igual à de outra, só difere namatéria», Hanslick contrapôs que a estética de uma arte é com-

129

)

)

~.J

~.J

)r!f

I'

j .

Page 65: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

J)

j.J

ESTÉTICA DA MÚSICA

pletamente diferente da de outra arte precisamente porque a matériaé diferente: «as leis do belo, em cada arte, são inseparáveis dascaracterísticas particulares da sua matéria, da sua técnica» (1).

A técnica musical não é, para Hanslick, um meio para exprimirsentimentos 'ou suscitar emoções, mas sim a própria música e nadamais. Não faz sentido estabelecer hierarquias de valores entre asartes porque cada arte é autónoma, não exprime nada para além desi e possui a sua beleza particular.

O primeiro alvo do ensaio de Hanslick é a estética do senti-mento, em particular, a estética wagneriana. Todo o discurso docrítico boémio é animado por um espírito de objectividade cientí-fica e, por isso, se opõe à estética romântica, identificada com aestética dos diletantes e incompetentes. «O estudo do belo - afirmaHanslick - se não se quer tomar de facto ilusório terá de se aproxi-mar do método das ciências naturais» (8). Todavia, afirmar que amúsica é pura forma sem finalidade e que, enquanto tal, nãoexprime sentimento algum, na medida em que as ideias manifes-tadas pelo músico «são, antes de mais, e, sobretudo, puramentemusicais», não significa que não se relacione de algum modo como nosso mundo emocional. A música pode representar a «dinâmica»dos sentimentos, pode «imitar o movimento de um processopsíquico segundo as suas diferentes fases: presto, adagio, forte,piano, crescendo, diminuendc. bôes o movimento é apenas umaparticularidade do sentimento e não o próprio sentimento» (9) .Em vez de representação dos sentimentos talvez seja mais correctodizer que a música tem uma relaçãosimbólica com eles, isto é, quea música pode simbolízar.jiasua autonomia, a forma e a dinâmicado próprio sentimento. Se a música não remete directamente paraalgo fora de si, quer dizer que sendo significativa esgota em si os

)

)

J.J

J

J

.J

~

J~.J

)

(1) E. Hanslick, 11 bello musicale, trad. it., organizada por L. Rognoni,Milão, Minuziano, 1945, p. 27.

(8) lbidem, p. 26.(9) Ibidem, p. 49 .

.J)

)

130

DO IDEALISMO ROMÂNTICO AO FORMALISMO DE HANSUCK

seus significados. É impossível que sobreviva qualquer analogiaentre música e linguagem: a música é as semântica, na medida emque não se pode traduzir para linguagem comum, embora não sejaum «jogo vazio», embora «ideias e sentimentos fluam como sanguenas veias do belo e bem proporcionado corpo sonoro» (10).

A partir de meados do século XIX até aos nossos dias, Hanslickserá um ponto de referência fixo quer para a estética musical deorientação formal, quer para a de orientação antiformal: o seu peri-samento surge não como um ponto de chegada, mas sim como umponto de partida rico em possibilidades de desenvolvimento.

Alguns pontos salientes no pensamento de Hanslick (em par-ticular, a atitude analítico-científica, especializada, antiliterária)anunciam uma fase absolutamente nova dos estudos musicais.A historiografia, a paleografia, as investigações acústicas e fisioló-gicas, a psicologia musical eram estudos até então esporádicos,pontuais, sem método e seriedade científica; faltavam instrumentosde investigação, bases metodológicas indispensáveis para essaspesquisas e,. sobretudo, estímulo cultural e pressupostos filosóficosque funcionassem como incentivo a tais estudos. A obra de «cien-tifização» dos estudos musicais, na esteira do movimento filosóficodo positivismo e do pensamento de Hanslick, mudou, no espaço depoucas décadas, o horizonte do pensamento musical, orientando-o

\

para novos-interesses e novos campos de estudo. O mundo alemãoe o mundo anglo-saxãocom a sua tradição empirista tiveram umindubitável primado neste novo movimento de estudos designado'

.por Musikwissenschaft (ciência da música). Um dos problemas quemais apaixonavam esta nova geração de estudiosos foi o da origemj

. . .'. b "

da música, problema associado também aos primeiros estudos deetnomusicologia, Spencer, Darwin, Wallaschek, Combarieu, Gumeyocuparam-se dessa questão obviamente insolúvel do ponto de vistacientífico, mas relevante do ponto de vista filosófico. As teoriasevolucionistas de Darwin e de Spencer, os conceitos de ritmo vital,

(!O) lbidem, p. 197.

131

Page 66: FUBINI, Enrico. Estética da Música

mI~I,'il

,

/

:''J

"I~!i -;..1

'jII~1:j

~lliH

'ILfitjI,11"11dH'1P.L

li:1/,

i!

ílli,!ji

II

t!

"j

ESTÉTICA DA MÚSICA

de energia psíquica e da sua força de expansão estão na base dosestudos sobre a origem da música e da expressão musical. A pardessa orientação de estudos são igualmente importantes as inves-tigações sobre a acústica e a fisiopsicologia dos sons, conduzidassempre com a expectativa de poder escla~ecer e explicar a realidademusical através de uma análise rigorosamente científica.

Foram assim retomados os antigos estudos sobre a harmoniade Zarlino e de Rameau: Helrnholtz, autor de Die Lehre .vonTonempfindungen als physiologisçhe Grundlage für die Theorie dei"Musik (1863), colocou em primeiro plano o problema dos funda-mentos da harmonia e das consonâncias, sustentando a antiga teseda naturalidade do sistema harrnónico, embora com -bases maiscientíficas. Próximos de Helmholtz em te1J11OSde orientação epressupostos metodológicos;' os estudos de Riemann movem-senum quadro genericamente formalista, acentuando o carácter autó-nomo da realidade musical, considerada linguagem auto-suficiente,dotada de leis próprias.

A Musikwissenschaft continua a ser um movimento vital nopensamento musical contemporâneo, em particular no alemão eanglo-saxão, e não se pode decerto afirmar que o seu ciclo vital ter-minou com o positivismo oitocentista; com efeito, muitos musicó-logos no nosso século orientaram os seus estudos segundo esta tra-dição. Carl Stumpf desenvolveu, em particular, os problemas liga-dos à acústica, na senda de Helmholtz, aprofundando, no entanto, asua relevância para a psicologia. No seu estudo, Tonpsychologie(1883), procurou demonstrar que as investigações acústicas efisiológicas, para as quais Helmholtz dera um contributo decisivo,deviam ser integradas no plano da psicologia. Portanto, com Stumpfabre-se, à estética musical do século xx, um campo fecundo deinvestigações que têm precisamente o seu ponto de referência napsicologia.

As leis acústicas deixam de ser consideradas suficientes parajustificarem o discurso musical bem como a estrutura fisiolózica do

b

ouvido: tais investigações devem ser integradas em novos estudos

132

"I. )

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

~..J

...J

-.J

)

~

)

)

.J

)

r J.J

..J

I )

I )

.J

f )

}

DO LDEALISMO ROMÂNTICO AO FORMALISMO DE HANSLICK

sobre a percepção e sobre a psicologia auditiva. Os estudos de GézaRévész (Zur Grundlegung der Tonpsychologie, 1913) e, em parti-cular, de Ernest Kurth (Musikpsychologie, 1931) vão precisamentenesse sentido; se Ernest Kurth deu especial atenção ao problema deenergia psíquica que condiciona a criação e a percepção da obra.musical, Géza Révész e, mais recentemente, Albert Wellek (Dasabsolute Gehõr und seine Typen, I 938; Musikpsychologie und

. Musikãsthetik, 1963) aprof.undararn,lÍo invé~;' o: problema dotalento musical considerado do ponto de vista psicológico,apoiando-se num vasto material experimental. A Gestalpsychologieteve uma influência considerável nos estudos de psicologia musi-cal: inúmeras pesquisas ainda recentes, como as de Robert Francês(La perception. de la musique, 1958) ou de Abraham Moles (Théo-rie de l'information et perception esthétique, 1959), inserem-se, empalie, nesta corrente da psicologia. Nos Estados Unidos importareferir, ainda no âmbito dos estudos musicológicos inspirados napsicologia, Carl Seashore que considera a percepção da música umfenômeno cientificamente analisável e mensurável (cf. em parti-cular Psychology of Music, 1938); neste campo destacam-se os seusestudos sobre a interpretação musical, considerada não abstracta-mente coincidência ou convergência da personalidade do criadorcom a do intérprete, mas sim desvio mensurável de um determinadomodelo constituído pela partitura.

A musicologia francesa aprofundou uma outra corrente deestudos, colocando a ênfase na relevância social do fenómenomusical e desenvolvendo outra tendência do positivismo no sentidode evidenciar os reflexos mais no plano social e colectivo das artesdo que no individual. Jules Combarieu é um dos mais importantesestudiosos desta corrente: teórico e historiador da música, partiuda experiência anterior dos estudos musicais inspirados naMusikwissenschaft, desenvolvendo a sua problemática num âmbitocultural mais alargado. Os seus estudos sobre a origem da música(La musique et Ia magie, 1909), a sua vasta história da música eainda o seu estudo mais propriamente estético iLa musique, ses lois

133

Page 67: FUBINI, Enrico. Estética da Música

")

}

j

)

)

)

j

)

)

.J

j

~)

)

.J

~~

J..J..J

..J

J-.J

J

~..J

;1.':

..J

)..J

~ ,.1

)

)

)

J)

ESTÉTICA DA MÚSICA

et son évolution, 1907) retomam ec1ecticamente todos os temas dacultura positivista para fundi-los numa perspectiva unitária e densade estímulos culturais: o formalismo de Hanslick, o evolucionismo(<<primeiro a magia com os seus encantamentos, mais tarde a reli-gião com o seu lirismo e as suas diversas formas de hinos litúrgicos,odes, dramas; por fim, a aparição de uma arte que se separa aospoucos dos dogmas para se organizar, paralelamente à músicasacra, e passar por três fases, o divertimento profano, a expressãoindividualista e o naturalismo - Beethoven; estes são os grandesperíodos da história. A sua sucessão repetiu-se muitas vezes» (11 )),

o sociologismo, a ambição de uma orientação científica da estéticamusical. Todos estes temas estão presentes na obra de Combarieu,que constituiu um importante elo de uma longa corrente do pensa-mento francês.

É nesta corrente de estudos, que de um modo geral se podechamar «sociológica», que também se insere o pensamento mar-xista. Podemos considerar de inspiração marxista os estudos deSidney Finkelstein (Haw Music Expresses Ideas, 1953) e os de IvoSupicic tMusique et societé, 1971), dado que aprofundain asrelações entre música e sociedade, o primeiro num plano histórico,o segundo num plano teórico. Notas interessantes para a estéticamusical encontram-se igualmente nos escritos de Galvano DellaVolpe, que originalmente uniu a perspectiva marxista à perspectivasemiológica de origem anglo-americana. Contudo, os estudos maissignificativos para a estética musical talvez sejam os da musicólogapolaca, Zofia Lissa, que nos seus inúmeros estudos (Fragen derMusikãsthetik, 1954; Über dasSpezlfische der Musik, 1957; Szkicez estetyki murycznej, -1965) analisa as estruturas da música,procurando identificar as relações que a ligam às ideologias e àsestruturas sociais próprias de cada época histórica. Todavia, estásempre presente nos seus estudos a ideia de que há uma ligação,mediata e não directa, entre música e sociedade. Além disso, a

C") J. Cornbarieu, Histoire de Ia musique, Paris, Colin. 1913, Introdução.

134

·1

IIiII

i. í

IIi

DO IDEALISMO ROMÂNTICO AO FORMALISMO DE HA.NSLlCK

música - afirma Zoffa Lissa -, na sua história, tende a desenvolverautonomamente as formas e as estruturas linguísticas, pelo que afunção do musicólogo é identificar as ligações que unem a música,como parte substituta da superestrutura, à sociedade, mas reconhe-cendo-lhe uma autonomia e especificidade próprias.

135 IIi

Page 68: FUBINI, Enrico. Estética da Música

Jj

.J

)

)

.)

')

)

~~====~~~~--------------------------------------------------------~I~~~-------------------------- ~ ~ ~~~~=)

...•.

Capítulo 10.·

A Crise da Linguagem Musicale a Estética do Século XX

A crítica e a estética musical em Itália

Fora de Itália, na primeira metade do século xx, as investi-gações musicais históricas e teóricas desenvolveram-se sob a égidedo positivismo, sobretudo na linha do formalismo hanslickianointerpretado diversamente e enriquecido por vários contributosfilosóficos e culturais. Porém, em Itália, os estudos musicais toma-ram outro rumo e, ao longo de quase meio século, salvo rarasexcepções, foram dominados pela estética idealista gentiliana e,principalmente, crociana.

Fausto Torrefranca, quando imperava ainda em Itália a obra deestudiosos como Torchi e Chilesotti e o clima positivista inspiradona Musikwissenschaft alemã, foi o primeiro a formular uma estéticaque se opunha, nos seus princípios, à musicologia positivista.No entanto, os seus objectivos ganharam expressão, no que respeitaà estética musical, num ensaio (J) cheio de ambiguidades místicas,inspiradas nos motivos da estética crociana, por um lado, e emSchopenhauer e nos românticos, por outro: a arte em geral, afir-

(1) F. Torrefranca, La vita musicale dello spirito, Milão, Bocca, 1910.

137

.~)

)

)

)

)

)

. J5)

')

.J

)

".1'1

'.)

.J

'.J)

Page 69: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-<)

)

j

)

)

)

)

)

)

~.J

)

J)

)

Jj

)

~

J

)

JJJ

<,)

~)

)"J

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

mava Torrefranca, seguindo neste aspecto Croce, é o primeiromomento intuitivo do espírito; porém, existe ainda uma «pré-cate-geria». A música, com efeito, é por excelência, «a actividade ger-minal» do espírito e há que admitir «a hegemonia e a germinalidadeda música .ern relação às artes, ou seja, a sua precedência espiritualem relação a essas» (2).

Outros estudiosos posteriores a Torrefranca apresentaram umamaior fidelidade à estética crociana, estendendo os seus princípiosà historiografia, à crítica e à estética musical. Reunidos em tomo darevista Il pianoforte (fundada em 1920 por G.M. Gatti) e, maistarde, da La Rassegna Musicale (também dirigida por Gatti), desen-volveram na cultura musical italiana um importante e originaldebate sobre todos os problemas musicais. Os maiores musicólogositalianos dedicaram-se, neste trabalho teórico, a repensar toda a pro-.blemática musical à luz dos princípios estéticos crocianos, commaior ou menor ortodoxia. Alfredo Parente foi dos primeiros arealizarem este trabalho teórico, distinguindo-se pelo seu espíritocombativo e rizor filosófico. Nos seus estudos (3) destacam-se doiso .

problemas fundamentais: o da unidade das artes e o do valor datécnica. A música, enquanto expressão lírica do sentimento, síntesede conteúdo e forma, é idêntica a qualquer outra expressão artística.As artes diferenciam-se apenas pela técnica que usam, mas essapermanece à margem da arte e destina-se unicamente «à traduçãofísicadas imagens», ao passo que «a faculdade lírica nasce sempre,sejam quais forem as experiências, independentemente do. pro-blema da tradução material ou execução da arte» (4). Parentedesenvolveuestas suas tesescorn extremo rigor, estendendo-asao campo da .metodologia crítica e historiográfica e polemizandocom as correntes que se inspiram mais ou menos directamente na

(2) lbidem, p. 17.(3) De A. Parente veja-se principalmente La musica e le arti, Bari, Laterza,

1936.(4) lbidem, p. 203.

138

1<

II

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX

Musikwissenschaft e que pretendem escrever histórias da músicaconcebidas como história de géneros ou de técnicas.

Outros musicólogos italianos procuraram adaptar a estéticacrociana aos problemas da música, mas com maior elasticidade.Massimo Mila, por exemplo, alterou o conceito crociano de«expressão» para «expressão inconsciente», motivado pela urgên-cia crítica de compreender e justificar, no plano teórico, a músicacontemporânea, em particular as correntes neoclássicas que negamdeliberadamente, à música, a faculdade de exprimir o que quer queseja, como por exemplo Stravinsky. Outros críticos, como LuigiRonga e Andrea Della Corte, focaram a sua atenção sobretudo nahistoriografia musical, procurando reinterpretar a história damúsica à margem dos esquemas evolutivos positivistas, baseadosmuitas vezes em compartimentos estanques segundo a genealogiadosgéneros. No âmbito desta corrente de pensamento desenvolveu--se, entre 1930 e 1940, uma acesa polémica sobre o problema dainterpretação musical. Partindo sempre de pressupostos idealistas,crocianos ou gentilianos delinearam duas soluções diferentes: umatendente a limitar a função do intérprete a uma tarefa exclusiva-mente técnico-reprodutora (parente); outra tendente a sublinhar afunção criativa (Pugliati). Nem-todos alinharam rigidamente numa <

ou noutra posição, pelo que se desenvolveu um debate que levou àformulação de teses maisrealistas, menos esquemáticas e mais liga-'das à complexa função do acto interpretativo, que. não se deixareduzir à alternativa demasiado simplista.. criador ou simples exe- ~.cutor de ordens (Gatti, Milla.iGrazíosi, Casella, etc.).

o jormalismo e as vanguardas

A herança do pensamento formalista de Hanslick assumiu umagrande relevância no século xx; encontram-se muitas vezes solu-ções formalistas mesmo em pensadores bastante distantes dos pres-supostos originários dessa estética. Na cultura francesa, em espe-

139

Page 70: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX

cial, O formalismo teve um extraordinário sucesso bem comomuitos musicólogos, filósofos e músicos que directa ou indirecta-mente estavam associados a essa estética. Entre os músicos Izor

". ' b

Stravinsky representa agora um ponto de referência obrigatório.A sua forma de conceber a música - expressa em inúmeros ensaiose entrevistas - ea forma como ,a praticou são a· mesma coisa.Stravinskyquer assumir a posição do artesão medieval que opera,ordena, fabrica com materiais à sua disposição, completamentefascinado pelo material sonoro que-pode manusear aseu bel-prazer, .não de forma instrumental mas como fim em si mesmo. «Inspi-ração, arte; artista - afirma Stravinsky - são termos um tanto ouquanto ambíguos que não deixam ver claramente, num domínioonde tudo é equilíbrio e cálculo, onde é que passa o sopro doespírito especulativo» (5). Sob esta perspectiva formalista 'e inte-lectualista, contra todas as concepções intuicionistas, expressivas elsentimentalistas da música, Stravinsky salienta o valor da dimensãotemporal do fenómeno musical, que é concebido principalmentecomo «uma certa organização do tempo» (6). Esse aspecto arquitec-tónico e construtivista da criação musical representa a base da polé-inica de Stravinsky contra o romantismo; a música, afirma ainda omúsico, «dada a sua essência, é impotente para exprimir o que querque seja: um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, umfenómeno da natureza, etc. A expressão não foi nunca propriedadeimanente da música» (1).

tidos e com instrumentos conceptuais mais afinados, por um grandenúmero de -musicólogos. Gisêle Brelet concentrará todo o seupensamento estético no conceito de «tempo musical», fazendo con-vergir na sua importante obra o movimento do espiritualismo fran-cês -:-nomeadamente o pensamento de Bergson e de Lavelle - e atradição ·do. formalismo .. «O acto criador '~afirma a musicólogafrancesa - só toma consciência de si próprio no momento em quedescobre um imperativo estético que ooridnta para arealizaçãoded~terininadas possibilidades' fü;mais» (8). A essênCia do processocriador é um diálogo perene entre a «matéria e a forma»; comefeito, o artista «aspiraa um modo de vida original que pressupõe·aforma e a realiza». A autonomia da criação musical revela-se nopróprio desenvolvimento do pensamento musical, desenvolvimentoesse que «procede logicamentesegundo leis internas, independen-temente da personalidade dos diferentes criadores» (9). Todavia, hátambém uma relação entre a criação musical e o seu criador, masnão a nível psicológico: o elo de ligação pode observar-se precisa-mente na forma temporal da música, que encontra uma íntimacorrespondência com a temporalidade da consciência. Stravinskyrepresenta, para Brelet, a encarnação do seu ideal de música comopura temporalidade: «o tempo de Stravinsky exprime a consciênciana pureza do seu acto fundamental e não o mundo dos conteúdosempíricos em que o eu mais ou menos se dissolve» (10).

Em ensaios mais recentes, Brelet parece mudar a sua perspec-tiva sobre a música contemporânea, adoptando as poéticas dasvanguardas irracionalistas. Brelet substitui o conceito de formaenquanto expressão da pura temporalidade por um conceito deforma como expressão do vivido que nasce sem qualquer estruturapreexistente, ao contrário do que se verifica na música clássica: «amúsica só encontra a sua estrutura definitiva. na actualidade do

Aforma e o tempo musical

Esta poléinica, que se insere no espírito antiwagneriano e for-malista da cultura francesa, é retomada, embora em tons mais esba-

(5) L Stravinsky, Poétique musicale, Paris, Plon, 1952, p. 18.(6) Ibidem, p. 2l.(1) Ibidem.

(8) G. Brelet, Esthétique et créa.tion musica.le, PaJis, PUF, 1947.

(9) Ibidem, p. 7.(10) Ibidem, p. 158.

140 141

F ~-!

) .

)

)

: .)

)

)

J

-.J

J)

Jj

)

J,)

)

Jj

c.

)

.J

I)

.)

-.J)

" .)

JJ)

J;' )

')

)

Page 71: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

3

J)

)

)

Jj

J)

J..J

'..J

-.J

.J

j.J

J,--'

JI

I·.J

j :'r

"J'J

..J

)

JJJ.J

ESTÉTICA DA MÚSICA

tempo vivido» (11). Brelet, nos seus últimos ensaios, tornou-se umaintérprete perspicaz de algumas exigências não só artísticas, mas,tatu sensu, filosóficas da música das vanguardas seriais e aleatórias,inaugurando um discurso que foi retomado e aprofundado por mui-tos teóricos da Nova Música.

Na mesma linha cultural podemos ainda enquadrar o filósofoe musicólogo Vladimir Jankélévitch, recentemente desaparecido.A sua base filosófica é a herança do espiritualismo francês bergso-niano e o seu pensamento estético e musical funda-se numa análisedo tempo e da forma entendidos não como esquema para se aplicarà criação musical, mas sim como profundidade do vivido. Por issoem todas as suas análises musicais, sempre extremamente subtis efascinantes, tende compreensivelmente a privilegiar a cultura musi-cal francesa face à cultura vienense e austro-alemã, Com efeito,Jankélévitch encontra, precisamente na experiência musical e exis-tencial de Debussy, o sentido misterioso e inapreensível do tempointerior e do .seu fluxo imprevisível, submetido aos mais subtismatizes do vivido, sem que a forma com o seu esquematismo sesobreponha ao livre fluxo da consciência. Jankélévitch, nestesúltimos anos, está a ter um sucesso que não teve em vida, inclusivena cultura italiana, tão distante do espiritualismo francês, e é hojelido e estudado com novo interesse, talvez com a mesma· intensi-dade com que Adorno e a sua escola são esquecidos e margina- .lizados,

As análises subtis quer de Brelet, quer de Jankélévitch, centra-das no conceito de forma temporal, estão a ser retomadas por outrosmusicólogos, .embora se téi1d~ cada vez mais a dar atenção ao

. . . .. .aspecto linguístico e comunicativo da música e às estruturas que otornam possível. Borisde Schloezer, partindo de estudossobre amúsica de Bach, foi um dos primeiros estudiosos a abordarem deforma incisiva o problema da peculiar estrutura linguística da

(11) Cfr, Musique et structure, em «Revue Int~mationale de Philosophie»,nn. 73-74 (1965).

142

I". \

IJ

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX

música. «Na música - afirma de Schloezer - o significado é ima-nente ao significante, o conteúdo à forma, de tal modo que, rigoro-samente falando, a música não tem um sentido mas é um sen-tido» (12). Podemos, então, dizer que a música é uma espécie delinguagem formada por símbolos absolutamente peculiares, isto é«dobrados sobre si próprios» (13); compreender a música não signi-fica descobrir um significado para além dos sons ou ter umasucessão mais ou menos agradável de sensações auditivas, mas simpenetrar no «sistema múltiplo de relações sonoras em que cada somse insere com urna função precisa. Se concebermos a obra comouma estrutura tendencialmente fechada em si mesma, temos de pen-sar que os seus elementos, em vez de se eliminarem no decorrer deuma execução, coexistem na sua unidade, sucedendo-se notempo» (14). A concepção de de Schloezer diverge radicalmente,neste ponto, da de Brelet. Se, para esta, a música era a imagem dodevir, da pura duração, do tempo organizado, para o primeiro, aforma musical é essencialmente atemporal: com efeito, «organizarmusicalmente o tempo significa transcendê-lo» (15).

Esta concepção de música como tempo rígido numa unidadesincrónica é comum a todas as concepções da forma musical comoestrutura. O antropólogo Lévi-Strauss, por exemplo, fala sobre issousando os mesmos termos: a música, afirma eficazmente, necessitado tempo só «para lhe .infligir um desmentido [...] A audição da'obra musical, em virtude da sua organização interna, imobilizou otempo que passa; como um pano revolvido pelo vento, apanhou-o e'dobrou-o. De modo que, ao ouvir a música e enquanto a escutamos,acedemos a uma espécie de imortalidade» (16). Esta posição estética,

. ,',

(12) B. de Scloezer, Introduction à 1.5. Bach. Essai d'esthétique musicale,Paris, Gallirnard, J 947, p. 44.

(13) Ibidem, p. 30.(14) Ibidem .(15) Ibidem, p. 3l.(16) C. Lévi-Strauss, Le cru et te cuit, Paris, Plon, 1964; trad, it. de

A. Bonomi, Jl Grudo e il cotto, Milão, Il Saggiatore, 1966, pp. 32-33.

143

Page 72: FUBINI, Enrico. Estética da Música

, 1

ESTÉTICA DA MÚSICA A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX )

Música e linguagem

a sua característica é a expressividade e não a expressão» (18).É, portanto, impossível isolar parcelas musicais dotadas de signifi-cado; os esforços feitos nesse âmbito por vários estudiosos parecemnão fazer sentido do ponto de vista de Langer. As tentativas de

. A.Schweitzer, de A. Pirro, de J. Chailley e, mais recentemente.idomusicólogo americano D. Cooke de esboçar uma espécie de voca-bulário musical das emoções (os primeiros; em particular, para amúsica de Bach, o último para a músicaem geral); parecem, comonunca, pobres nos seus resultados: podem quando muito indicarcertas associações parcialmente válidas para alguns autores, ouconvenções mais largamente aceites numa determinada época, masnão seguramente «leis de expressão musical» (19). Com efeito,segundo Langer, a música não é o próprio sentimento ou a suacópia, antes a sua apresentação simbólica segundo leis estritamentemusicais. A arte e a música, em particular, são um «símbolo origi-nário», organizado segundo «a lógica de um processo orgânico» (20)e, como tal, não analisável, não decomponível e não traduzível.

As investigações do musicólogo Leonard Meyer, apesar de nãose afastarem muito dos fundamentos filosóficos de Langer, dão umamaior atenção à estrutura psicológica da fruição musical, mantendofirme o princípio de que a linguagem musical não tem uma funçãoreferencial. O significado da música está na própria música e éessencialmente «o produto de uma expectativa». «Um aconteci-mento musical (seja um som, uma frase, ou uma composiçãointeira) tem significado porque está em tensão com outro aconteci-mento musical por que esperamos» (21). O significado surge namedida em que a relação entre a tensão e a solução se torna explí-cita e consciente. Todavia, tudo isso é relativo e vale durante um

)

)conduz inevitavelmente a uma atitude de desconfiança ou de abertahostilidade em relação às vanguardas mais recentes, que têm geral-mente como alvo a desestruturação da linguagem musical, a sualibertação das formas pré-constituídas e a progressivacoincidênciaentre tempo vivido e tempo musical; não é por acaso que quer deSchloezer, quer Lévi-Strauss tomam posições contra essas tendên-cias da vanguarda. A música de vanguarda, segundo de Schloezer

fI «deixou evidentemente de ser uma linguagem, não se comunica noacto do seu devir, não apresenta .significado algum. O seu. seresgota-se no acto em que se produz. Apresenta-se como um acto demagia» (17).

144 145

)

)

}

.J

)

)

)

)

)

)

)

)

..J

)I./

)

t )

" )

j

)

)

)

)I

)

)

Muitos estudos, que surgiram na cultura anglo-saxónica,desenvolveram-se nessa direcção. Suzanne Langer, aluna de ErnstCassirer, e Leonard Meyer (que se inspira, em parte, nos princípiosda estética de Dewey) orientam a sua investigação no sentido deaprofundar as estruturas comunicativas da linguagem musical.Segundo Langer, a música, linguagem artística emblemática peloseu carácter totalmente abstracto e não representativo, é um modosimbólico de expressão dos sentimentos. O símbolo da linguagemmusical, todavia, é um símbolo sui generis, isto é, um símbolo quese auto-apresenta ou, melhor, não se consome; por outras palavras,o símbolo da linguagem discursiva esgota-se, consome-se com-pletamente na transcendência em relação ao objecto designado e,por isso, é completamente transparente, ao passo que o símbolomusical é iridescente, isto é, o seu significado é implícito masnunca convencionalmente fixado. Fruímos o símbolo musical por simesmo: «A sua vida é articulação mesmo sem nunca afirmar nada,

(17) B. de Schloezer e M. Scriabine, Problêmes de Ia musique moderne,Paris, Minuit, 1959, p. 179.

(18) S. Langer, Philosophy in a New Key, Nova Iorque, Mentor Books,p.240.

(19) Ibidem, p. 232.(20) Ibidem, p. 126.(21) L. Meyer, Emotion and Meaning in Music, Chicago, University of

Chicago Press, 1956, p. 35.

Page 73: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

)

)( )

j

j

.Jr..J

.J..J

(..J

I)

fJ

.J

'.J.J

.J

..J

J ~.;

J:..J

.J

)

j

)

j"

())

ESTÉTICA DA MÚSICA

determinado período e para um determinado grupo social: «a comu-nicação depende, pressupõe e surge do universo do discurso que naestética musical se chama estilo» (22). O que é significativo numcerto estilo, numa certa sociedade, pode não sê-lo de todo numoutro grupo humano se essas relações, tensões e resoluções não setornarem explícitas. Seja como for, li percepção do significado damensagem musical não é uma contemplação passiva, mas sim umprocesso activo que envolve toda a nossa psique; processo cons-ciente na busca de uma solução num estado provisório, ambíguo,

. inconclusivo, que conduz a um ponto firme. A estrutura formal daobra musical tende, para Meyer, a satisfazer as exigências própriasdo funcionamento da psique humana. Sem dúvida que o modelo deestrutura formal indicado por Meyer se adapta muito bem à músicatonal concebida como um sistema de tensões construídas em tornode um ponto de atracção tonal, mas, em contrapartida,a sua aplica-ção a outros mundos sonoros parece bem mais problemática, comoé o caso do gregoriano, da dodecafonia ou da música pós-weber-niana.

Esta orientação de estudos, com o objectivo de aprofundar aestrutura da obra musical e o seu carácter linguístico particular emrelação também aos novos estudos de etnomusicologia, permaneceviva e, aliás,· demonstrou ser um dos movimentos mais fecundosdos últimos anos, quer para a estética musical, quer para a crítica.

o pensamento musical face à revolução linguistica--

P~deinos perguntar-nos em que medida a profunda revoluçãoocorrida na linguagem musical do século :xx influenciou e deter-minou a elaboração teórica e estética destas últimas décadas.Actualmente é difícil dizer se a invenção da dodecafonia, na pri-meira metade do século, representou realmente uma novidade de tal

(22) Ibidem, p. 42.

146

I

ji~j

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO xx

forma importante a ponto de ser comparada com o evento da har-monia tonal no século xvn. O que é certo é que a história da músicaatravessou, desde meados do século XIX até hoje, um período decrise, de intensa transformação, de renovação. Período de formaalguma terminado e ainda hoje, os filósofos, os críticos, os musicó-logos e os próprios músicos se encontram perante uma realidade emrápida transformação, cheia de interrogações, de pontos obscuros,de incertezas que aguardam uma sistematização teórica no quadrode uma nova concepção da música que está a desbravar caminhoatravés de um grande número de tentativas e experimentações. Se aharmonia tonal colocou os teóricos diante de problemas completa-mente novos (como a racionalização da linguagem musical, a suanaturalidade, o significado do novo léxico, a sua relação com omundo dos sentimentos), a crise do mundo tonal, a dodecafonia, amúsica pós-weberniana (aleatória, sem uma estrutura lógico-musi-cal em sentido tradicional, associada a novas leis, a novas conven-ções) repropuseram, com nova urgência, o problema da linguagem.Alguns teóricos e filósofos continuaram o seu trabalho à margem detudo o que estava a acontecer no mundo vivo da música, mas muitosoutros sentiram claramente que não podiam, de certa forma, deixa,rde tomar consciência da nova e tumultuosa. realidade que se ia afir-mando. Primeiro que tudo, a atonalidade e, mais tarde, a dodecafo-nia representaram um acontecimento que levou muitos musicólo-gos, bem como músicos e inclusive literatos (por exemplo, ThomasMann), a reflectir sobre Ô seu significado histórico e teórico.

.Sch6riberg foi talvez o primeiro músico a tentar identificar, nosseus inúmeros escritos teóricos, o sentido da revolução que elE'jpróprio iniciara com a suá obra. Mas muitos dos seus críticos tarn-.bém tomaram posição em relação. à dodecafonia: Hindernith,Stravinsky, Ansermet e outros mais' tomaram uma atitude nitida-mente conservadora; mostrando o absurdo de um sistema que dei-xou de se basear na natureza, na convicção de que a linguagemmusical não pode prescindir de fundamentos naturais ou suposta-mente tais. Leibowitz, Eimert, Webern e muitos outros, cada um

147

Page 74: FUBINI, Enrico. Estética da Música

~~~~~~~~~~~~~~~~~ES~T~É·TI~C~A~D~A~M~Ú~SI~C~A~~~~~~~~~~~~~~~~~~~----A~C~~~SE--D-A-L~m-G-U-A-G-E~M-M--u-sr-C-AL--E-~--ES~T-É-T-rC-A-D-O--SÉ-C-UL--o-xx----~------~~--~lr ..--~~~ I

!i))

)),)

)

j

)

com bases diferentes, defenderam a validade do novo sistema queconfere ao músico uma nova dimensão criativa. Sem dúvida que ainterpretação mais conhecida e mais interessante da revoluçãododecafónica e, em geral da música contemporânea, foi a do filó-sofo e musicólogo alemão Theodor Wiesengrund Adorno. Na suavasta obra, Adorno, que fundiu de forma original diversas meto-dologias críticas, tais como o marxismo, a psicanálise, a sociologia

~. da escola de Frankfurt, repensou criticamente todos os problemasda história recente e menos recente sob uma perspectiva particular.A relação música-sociedade, e mais especificamente a relação entreestruturas musicais e estruturas sociais, está no ceritro da Sua aten-.ção. Todavia, não se enquadra obviamente na tradição positivista,em particular na francesa, que tendia li conceber os valores artís-ticos como simplesprojecções de uma determinada sociedade.Segundo Adorno, a arte tem uma relação dialéctica e problemáticacom a realidade social: a música «não deve garantir. ou reflectir apaz e a ordem», mas «obrigar a aparecer o que é relegado parabaixo da superfície e, portanto, resistir à opressão da superfície, dafachada» (23). Assim como a música pode assumir uma função esti-mulante face à própria sociedade, pode igualmente denunciar acrise e a falsidade das relações humanas, desmascarar a ordemconstituída. A resposta ao antigo e tradicional problema da estéticamusical, se a música é expressiva ou se o seu valor é unicamentearquitectónico e formal, só pode ter uma solução dialéctica no pen-samento de Adorno: a música pode ser expressão ou forma con-soante a função que assume na sociedade. As figuras de Stravinskye de Schõnberg são emblemáticas desta linha de pensamento:o construtivismo e o neoclassicismo do primeiro representam aaceitação do facto consumado, da sujeição à situação presente demodo acrítico, a petrificação das relações humanas, a via da inau-tenticidade, o espelho passivo da trágica alienação do homem no

(23) Th. W. Adorno, Dissonanren, Gõttingen, Vandenhoeck und Ruprecht;trad. it, organizada por G. Manzoni, Dissonanze, Milão, Feltrinelli, 1959.

mundo moderno; a música de Schõnberg representa, ao invés, a viada denúncia. Na construção dodecafónica, o compositor confina-sea limites preestabelecidos, negando-se a liberdade que o mundo sóconcede ilusoriamente. Mas na revolta contra a tonalidade, contra alinguagem tradicional, salva a subjectividade e a música de caírem.na classe de produtos de massa estandardizados.

À luz desta interpretação da dodecafonia COIP.O única forma deautêntica vanguarda, masCLue encefraem -sí inevitavelmente os

,- . .' .germes da sua dissolução, é compreensível que, poucos anos depoisde ter escrito o célebre ensaio sobre Schõnberge Stravínski (24),Adorno tenha declarado que a música moderna envelheceu, ou seja,a vanguarda pós-weberniana do pós-guerra. A agressividade davelha: vanguarda transformou-se em brandura, em «mentalidadetecnocrata». «Se a arte aceita inconscientemente a eliminação daangústia e se reduz a puro jogo porque se tornou demasiado fracapara ser o contrário, ela desiste da verdade perdendo o único direitoà existência» (25). .

Este grito de alarme lançado por Adorno não está, porém, iso-lado; nestes últimos anos muitas vozes se levantaram prontas adeclarar morta e ultrapassada a música das gerações mais jovens decompositores, apesar de muitas das vozes que declaram a superaçãoda dodecafonia se fundarem em princípios estranhos ao pensamentode Adorno. Quando o músico Pierre Boulez escreveu o agora céle-bre ensaio Schõnberg est mort, queria precisamente aludir à novaera que se abria para a música após os anos cinquenta e, sobretudo,.aos problemas completamente novos do ponto de vista estético,filosófico e linguístico que se apresentavam então pela primeiravez; problemas bem vivos não só na consciência dos críticos, mastambém na consciência da maior parte dos músicos de vanguarda.Importa ainda referir que boa parte da música de vanguarda nasceusobretudo por um impulso crítico e filosófico e não tanto por razões

(24) Id., Philosophie der neuen Musik, Tübingen, Mohr, 1949.

(25) Id., Dissonanze, cit., p. 160.

149

)

)

)

J)

JJ.J

)

)

J.J

j

)

)

)

)

)

~ )

Page 75: FUBINI, Enrico. Estética da Música

))

))

)

)

)

)

)

J

..J

)

)

)

.J ,'.j

.Jj)

)

)

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

de ordem estritamente musical. Com efeito, o facto de muitos músi-cos actualmente comporem música e, simultaneamente, escrevereminúmeros ensaios de carácter filosófico, estético e teórico não é umacoincidência ..Cage, Stockhausen, Boulez, Berio, apenas para citaros mais conhecidos, deram sem dúvida um importante contributo,com os seus. escritos, para penetrar e' compreender as suas obrasmusicais, bem como para apreender as motivações de ordem maispropriamente estética e filosófica que estão na base da cultura e dopensamento musical modernos .

As vanguardas e a estética musical contemporânea

.. t

A vanguarda, como dissemos', dedicou-se profundamente àreflexão sobre a sua própria obra, reflexão essa que se deveu tam-bém ao facto de, no século xx, as revoluções linguísticas no domí-nio da música, e não só, terem sido de tal forma vastas e profundasque deram ampla matéria de reflexão não só aos críticos e filósofos,mas também aos próprios protagonistas dessas revoluções. Éevi-dente que actualmente não podemos falar de estética musical quenão seja, antes de mais, o repensamento do significado dos eventosque se sucederam de forma tumultuosa na própria música. Do ato-nalismo à dodecafonia, da serialidade integral à música aleatória, damúsica concreta ao aparecimento de ideologias musicais empres-tadas de outras culturas, o filósofo não lhes podia ficar indiferente.Os temas antigos ou antiquíssimos como a semanticidade damúsica, ,a naÜlralidad~ da Iiriguagem, a relação com a' linguagempoética ou vefb~l, nãod~sapareceram certamente do horizonte daestética musical mas tiveram de ser repensados em termos com-pletamente novos à luz, das dramáticas e radicais transformações 'ocorridas no mundo da música.

Na estética musical, paralelamente ao que sucedeu também emoutros campos do pensamento filosófico, assistiu-se a uma frag-mentação dos interesses teóricos, não só por uma certa descon-

150

I,I

I, II

"

I)

II

A CRISE DA Lli'IGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO xx

fiança da nossa época em relação aos grandes e omnicompreensivossistemas filosóficos, mas também pela urgência de uma série denovos problemas, cuja abordagem exige muitas vezes competênciasespecíficas. Talvez deste ponto de vista, o pensamento de Adorno seapresente como a última tentativa de um olhar filosófico, coerente eomnicompreensivo sobre a música. Assim sendo, poderíamos falarnão só da morte da arte, mas também da morte da estética musical.Todavia, raciocinando em termos menos apocalípticos, talvez sejamais realista falar de uma profunda mudança nestas últimas décadasno modo corno pensamos os problemas da música a nível teórico,filosófico e estético. Muitos problemas clássicos da estética musical,como por exemplo o debate entre fautores da forma e fautores daexpressão, são hoje pensados em outros, termos, com urna novalinguagem, e as polérnicas são conduzidas em outros moldes.

A linguística, disciplina nascida no início do século xx comoestudo dos mecanismos que presidem ao funcionamento da lingua-gem verbal, estendeu-se recentemente ao estudo de todos os siste-mas significantes, incluindo a música; na vaga desta azáfama deestudos nasceu também a semiologia da música, disciplina que teveo seu momento de maior desenvolvimento nos anos setenta. À luzdestas investigações, a atenção concentrou-se, à semelhança do que'aconteceu com a linguagem verbal, no significante, nas suas estru-turas internas e nos mecanismos que presidem ao seu funciona- 1

mente. O problema do significado não foi descartado, mas simreconsiderado sob uma outraperspectiva no que respeita ao quesito-abstracto de origem hansliekiana: a música pode significar? Estequesito transformou-se sobretudo no seguinte: quais são as funções .d .isica'i Hole damo-noso .. J~a música: oje amo-nos conta de que a música tem várias fun- 'çõese de que O seu estudo nos conduz ao interior do problema dosignificado. As funções podem ser artísticas e não artísticas, deacompanhamento ou integração de outras linguagens, entre as quaisa verbal: funções sociolinguísticas, sociopsicológicas, didácticas,educativas, etc. De modo que os estudos de semiologia da músicacruzaram-se muitas vezes com outros estudos actualmente bastante

151!

I

Page 76: FUBINI, Enrico. Estética da Música

~~--~~~---==--=~----------------------~--rtiiIIi\

ESTÉTICA DA MÚSICA

prometedores, campos pouco explorados como a psicologia damúsica, a sociologia, a musicoterapia, o estudo da percepção sonoraa nível científico, etc.

A semiologia da música

Pode ser útil examinarmos, ainda que sumariamente, algunspontos-chave dos mais recentes estudos de semiologia da' músicaque serviram para estabelecer as bases desta jovem disciplina. Noestudo breve, mas fundamental, de Lévi-Strauss, a que nos refe-rimos anteriormente, utilizaram-se; talvez pela primeira vez, instru-mentos da linguística para serem aplicados à música; prosseguiramnesta linha outros estudiosos, muitos deles franceses, para amplia-rem, aprofunda.rem e, por vezes, contestarem os seus .resultados.Sob esta perspectiva, o estudo de Nicolas Ruwert é bastante impor-tante não só pela agudeza da investigação, mas também porquepermaneceu um ponto de referência obrigatório nos anos vin-douros (26). Os estudos de Saussure, bem como os estudos maisrecentes de Jakobson constituíram os pontos de referência funda-mentais. Tratava-se, no entanto, de realizar a difícil transferência daanálise da linguagem verbal para uma linguagem muito diferentecom uma estrutura e modalidades de funcionamento como as damúsica - admitindo que seja considerada uma linguagem, o quenem sempre é consensual, uma vez que a música pode ser lingua-gem em certas circunstâncias históricas, sociais e estilísticas e nãosê-Io em outras. Para Ruwet, «a música é linguagem. É um dossistemas de comunicação através dos quais os homens trocam signi-ficados e valores. Para existir, ter uma eficácia, tem de obedecer àsregras que tomam possível, de forma geral, o funcionamento de umsistema de comunicações» (27).

(26) N. Ruwet, Langage, Musique et Poésie, Paris, Editions du Seuil, 1972.(27) lbidem, p. 8.

152

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO xx

I )

)

)

I)

I)

1 )

1 )

)

I)

')

I)

I)

()')

'.J, ),)

I)

)

.J

'.J

'),)

.JI.J

I)

'.J

.J

)

)

1 )

I)

)

)s)

,(C.

iIt·

É precisamente aqui que começa o trabalho dos semiólogos damúsica, ou seja, identificar as regras que tomam possível o funcio-namento da música como linguagem, ainda que sui generis, dotadade uma estrutura que só metaforicamente a deixa definir comolinguagem. Talvez seja este um dos motivos que provocaram umacerta desconfiança nos semiólogos relativamente à vanguarda pós-weberniana. Já Lévi-Strauss havia pensado poder concluir que adodecafonia, e em geral a música serial. Ilãb respeitava as condi-ções mínimas para lhe poder ~ham~r lÍnguagem. Ruwet também.abriu, de forma significativa, a sua antologia de ensaios supracitadacom um capítulo intitulado «Contradições da linguagem serial» eterrnina-o manifestando sérias dúvidas de que a música de Webeme, principalmente, a depós-Webern consiga construir «um sistemade relações diferenciadas», concluindo que «isso explicaria a bre-vidade, a economia de Webern: seriam compreendidas pela vontadede dominar um sistema instável, transitório e não por uma qualquerpreocupação de ascetismo» (28).

Se alguns autores como Ruwet colocam a ênfase na estruturae não na comunicação ou, melhor, na estrutura como prius lógicoque torna possível a comunicação, outros, como por exemplo GinoStefani, preferem sublinhar principalmente o momento da comu-nicação da linguagem musical. «O nosso ponto de partida - afirmaStefani - é o facto de a música falar da realidade e, mais precisa-mente, da cultura de uma dada sociedade. Tal como a língua, osgestos, os cerimoniais, o modo de vestir [...] enfim, todos os diver-sos tipos de cultura, a música - para nós, a música ocidental,clássica e ligeira, tradicional e contemporânea - remete-nos para acultura circunstante através de um sistema, aliás, vários sistemas deconvenções». O autor conclui, precisando as tarefas de uma sernio-logia da música: «Nós todos "falamos", isto é, exercemos e com-preendemos estas convenções, estes códigos culturais: mesmo semnos darmos conta, como sucede com a língua. Reconhecer esses

(28) Ibidem, p. 23.

153

Page 77: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

j

)

j

~)

)

)

J.J

)

JJ

JJ

-j.J

)

)

)

j

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA

códigos significa pôr o dedo nos mecanismos 'fundamentais dacomunicação em música, significa explicar - de um ponto de vistasócio-linguístico - porquê e como "percebemos" a música. A semió-tica musical, como nós a entendemos, dedica-se precisamente aisso». Este trabalho, segundo Stefani, pode ser conduzido a váriosníveis e não necessariamente só por especialistas. Cada tentativaconsciente de associar «certos significados (determinados aspectosda cultura) a certos aspectos da música» é um trabalho serniológico.

Cada análise serniológica é, portanto, uma análise estrutural,embora uma análise estrutural, por si só, não seja semiológica. Comefeito, se a serniologia é uma ciência dos significados, cada investi-gação semiológica não pode deixar de ter em consideração umduplo nível de investigação: por um lado, deve articular-se com oestudo do significante (isto é, da estrutura analítica do excertomusical, das suas regras internas, da sua estruturação), por outro,com a análise correspondente do seu significado no mundo dacultura. «A hipótese de base da serniótica é cada segmentação no

,plano da expressão ser, ao mesmo tempo, uma segmentação noplano dos conteúdos e vice-versa. O que significa duas coisas.

. .

Primeiro: uma semântica, o estudo dos significados, sem um crité-rio correspondente na organização do significante, não é ainda umestudo semiótico; a crítica' musical deveria implicar a análisetextual. Segundo: já não parece ser possível imaginar uma teoria euma a~álise musical que prescindam do significado» (29).

Estes pontos indiscutíveis, evidenciados por Stefani, colocam,porém, uma série de problemas amplamente discutidos pelossemiõlogcsncs últimos élnós:quai~ são os limites e os moldes deuma análisemusicalcorrecta? Se a análise e, por consequência, asegmentação linguística a que deve ser submetido o texto corres-pende sempre a uma segmentação paralela no plano dos significa-dos.vhaverá, por assim dizer, um nível «neutro» de análise? E no

(29) G. Stefani, Introduzione alta semiotica delta musica, Palermo, Sellerio,1976, p. 13.

154

1.A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX

plano dos significados, a evocação será de tipo puramente emotivoou pode imaginar-se também uma evocação de tipo cognitivo?Estes e outros problemas inerentes a este tipo de análise crítica dalinguagem musical foram largamente debatidos pelos serniólogosda música; a discussão sobre o chamado nível «neutro» da análisefoi particularmente acesa nos anos setenta, na medida em que aexistência desse nível é de facto central para a serniologia da música.Ruwet, mais tarde J. J. Nattiez, em particular, e ainda Stefani insis-tiram especialmente no nível neutro de análise. Geralmente,cadaanálise musical. segmenta em partes o continuum musical, pro-curando alcançar as unidades que de alguma forma podem repre-sentar «significados»; tais unidades podem ser ~s formas, ou partedas formas como os temas principais, secundários, etc.; acordes,grupos de notas, incisos, etc. Não importa pois que tipo de signifi-cado se atribui a essas unidades, ou seja, se são puramente formais,ou emocionais e materiais. O principal problema para os serniólo-gos é a hipótese de um nível de análise. que possa ser neutro doponto de vista do possível significado. Há contextos sócio-culturaisem que um traço pertinente no que se refere aos significados é otimbre, para outros é a altura das notas e assim por diante. Masentão existe um tipo de análise «neutra», em que a segmentação deum excerto musical pode realmente prescindir do significado e con-seguir encontrar as unidades «naturais» que não estão comprometi-das com a linguagem em que, histórica e culturalmente, a músicaencarnou num determinado' contexto histórico e social? .

Não podemos' obviamente dar solução a este problema com-plexo que foi trazido à luz por serniólogos da música, mas, comotodos os problemas da semiologia musical, tem realmente unirelevo particular em contextos filosóficos e metodológicos diver-sos. Definitivamente a análise serniológica de um excerto musicalnão deveria diferir muito, pelo menos em linhas gerais, das opera-ções realizadas pelo crítico musical de cunho tradicional, que, intui-tivamente, procura correlacionar a música, a estrutura musical, asformas musicais, a linguagem de uma época, com os afectos, as

155

Page 78: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

situações culturais, os comportamentos SOCIaIS,etc.; a diferençapoderia consistir principalmente no diferente nível de consciênciadas operações realizadas, na consciência metodológica do seutrabalho, certamente numa reflexão mais atenta sobre oseu trabalhode crítico e sobre os pressupostos conceptuais que o tornam possí-vel e útil. Por outras palavras; entre uma crítica tradicional e umafeita por um semiólogo da música existe a mesma diferença que

~/ pode existir entre uma análise intuitiva e uma análise rigorosa.Todavia, é indubitável que a semiologia da música teve méritosconsideráveis na orientação da atenção do crítico e do musicólogopara os mecanismos de funcionamento da linguagem e da dimensãosocial da sua compreensão e fruição.

Colocar a ênfase na linguagem como facto social e cultural enão tanto como facto expressivo e individual fez com que a semio-logia da música alcançasse os seus melhores resultados na análisedos momentos mais comunicativos da realidade musical, isto é, damúsica de consumo ou da música não especificamente destinada auma fruição artística. Assim, como referimos anteriormente, tevemais sucesso na análise das músicas que se desenvolveram na linhade uma tradição linguística sólida, como a tonal, do que no âmbitodas vanguardas mais recentes que problematizaram a existência deuma linguagem musical. A chamada crítica tradicional, quesegundo algunssemiólogos se basearia principalmente na intuição,sem pretensões de rigor científico, não foi suplantada pela semio-logia e raramente se serviu de forma sistemática dos instrumentosque o semiólogo lhe facultou.

Talvez um excesso de rigidez na gíria, talvez uma certa evi-dência nas conclusões a que chegaram depois de atarefados per-cursos, levou a que nestes últimos anos se tenha abandonado oprimitivo rigor doutrinário de uma determinada semiologia própriados anos do entusiasmo da sua descoberta e fundação para, aoinvés, aprofundar muitos aspectos que se revelaram mais produ-tivos, ainda que aparentemente laterais. Com efeito, se se reconhe-cer como assunto central da semiologia da música o estudo da

156

I\I

I

I1\!

)

)

)

)

)

)))

)

)

)

)

)

I-.J

)

)

-.J-.J

)

)

)..J)

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO xx

')

I)

)

relação entre significante e significado abrem-se inúmeros camposde investigação que, por si sós, não são novos mas podem ser novosmodos de os abordar. As implicações e orientações de investigaçãodiferem se a linguagem for vista da perspectiva do significante, istoé, da sua estrutura gramatical e sintáctica, seja ela qual for, ou se for

o vista dOaperspectiva do significado e do destinatário: o primeiro tipode abordagem é utilizado tendencialmente pelos estudiosos daescola de Montreal (Nattiez; Hirbourí'aquette), com 00 resultadospositivos no campo dos estudos mais propriamente analítico--linguísticos; ao segundo tipo de abordagem dedicaram-se muitos o

estudiosos italianos e franceses. Gino Stefani salientou nos seusestudos as implicações a nível sócio-pedagógico, ao passo que estu-diososfranceses, como Michel Imberty (30), estudaram as implica-ções a nível psicológico e psicanalítico do processo de significaçãoda música. Outros aprofundaram o mecanismo significativo espe-cífico da música em relação à linguagem poética, entre os quaisdestacamos os estudos supracitados de Ruwet. o Muitos destesestudos acabam por convergir, nos seus resultados, com os de estu-diosos de outras escolas, anteriormente referidas, como sociólogosda música, o estudiosos de processos semânticos, como Meyer,Cooke ou a própria Langer, de Schlõzer ou Francês no que respeitaà psicologia da percepção musical. A semiologia da músicasocorre-se, portanto, de outras disciplinas e, por seu turno, é útil aoutros domínios de estudos como estímulo a uma análise maisatenta dos aspectos linguísticos da música e dos mecanismos dacomunicação.

)

)

)

,)

( ))

1

I-.J(30) Michel Imberty, Psychologique de ia musique, tese de doutoramento,

Paris, 1978. Cf. do mesmo autor Entendre ia musique, Paris, Dunod, 197ge Lesécritures du temps, Paris, Dunod, 1981; trad. it. Suoni emozioni significati. Peruna semantica psicologica delia musica, organizado por L. Callegari e 1. Tafurí,Bolonha, Clueb, 1986.

157

Page 79: FUBINI, Enrico. Estética da Música

WI

II

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

~)

,)

)

JJJ.J

..)

J v cÓ:

..)

)

J)

)

)

)

)

)

ESTÉTICA DA MÚSICA A CRlSE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO XX

A análise musical ~;L!IÍ",GPc:; •. !, Y~:'r \:.0: "\'Y()'8'>~G t;.(' "\\i.' c"

estimularam fortemente, a partir do século XIX, o desenvolvimentode teorias sobre a análise musical. Um campo que, por um lado,pode parecer distante da estética mas que, por outro, é rico emimplicações estéticas e principalmente filosóficas. II

A análise musical é um conceito bastante vago que remete para'uma qualquer metodologia capaz de analisar um trecho musical.As análises de Hoffmann dos trios de Beethoven e as de Schumannda Sinfonia Fantástica de Berlioz poderiam, latu sensu, inserir-se naanálise musical. Todavia, só se assumirá como disciplina conscientedos seus instrumentos de investigação e dos seus métodos na épocapositivista, com Riemann. Uma disciplina autenticamente analíticasurgirá, mais tarde, com os estudos do teórico austríaco HeinrichSchenker que, na sua grande obra Novas Teorias e FantasiasMusicais (1906-35) expôs a sua teoria analítica da música. E~ta per-manece ainda hoje uma base de discussão para qualquer outro tipode abordagem analítica, principalmente nos estudos provenientes daárea cultural anglo-saxónica, embora o interesse pelas rnetodologiasanalíticas se tenha difundido, nos últimos anos, na Europa, inte-grando-senos estudos de carácter semiológico.

·A análise schenkeriana inspira-se, sem dúvida, numa referên-.cia filosófica: a fenornenologiade Husserl. Com efeito, as pre-missas metodológicas das suas teorias analíticas fundam-se no

, ,facto de soba página musical (a referência é sempre a música tonal)estar uma estrutura originária, à qual é necessário remontar .sequisermos apreender a verdadeira estrutura do trecho analisado. c

A análise de Schenker visa, portanto, apreender sempre as estru-turas escondidas quecondicionam as manifestações exteriores de/~uma obra, estruturas que se reduzem à identificação de umaur-Linie, uma linha originária ou primordial que deve ser libertadapor forma a. apreender a essência da obra. Essa linha é sempre decarácter melódico e é a responsável pelocarácter profundo da obramusical. Os pressupostos teórico-filosóficos das teorias schenke-rianas foram justamente associados aos da gramática generativa deChomsky.

A semiologia não foi decerto a única corrente vital da estéticamusical destas últimas décadas. Até há bem poucos anos, a van-guarda representou, sem dúvida, um dos núcleos em tomo do qualse condensaram os problemas mais apaixonantes e estimulantespara os teóricos da música. É difícil estabelecer se todas as discus-sões a propósito dos múltiplos aspectos da música de vanguarda seinserem no conjunto de disciplinas designado pelo nome de estética

, musical. Mas não foi apenas a revolução linguística que conduziu àprópria negação do conceito de linguagem a atrair os pensadores;muitos outros fenómenos ligados à vanguarda, após os anos cin-quenta, colocaram um grande número de Pfoblemas, muitas dasvezes completamente novos. O acaso, por exemplo, levou ao desen-volvimento de novas interrogações sobre o alcance do fenómenointerpretativo na música assim como à redefinição do conceito decriatividade musical. A música electrónica levou igualmente areflexões sobre a natureza do som, do timbre e dos sistemas musi-cais. Outros campos ainda, bastante próximos da estética musical,surgiram ou foram potenciados pela reflexão sobre alguns aspectosda experiência musical fruitivae compositiva destas últimasdécadas. A cultura musical, as novas dimensões da fruição musicale os novos modelos de percepção sonora induzida por imponentesfenómenos sociais - o alargamento do público, a difusão da instru-ção musical também a nível escolar, a difusão de meios cadavez mais sofisticados e ao alcance de todos para a reprodução dósom.«, influênCiarárI1ob:Yiame~te aelaboração de novas correntesde refl~xão, de '~ovos modelos de pensamento. Se a experiência davanguarda foi, decisiva nestes últimos anos para o pensamentomusical, outros campos de estudos musicológicos desempenharam'um' papel importante.D alargamento do horizonte dos estudos his-tóricos também a outras civilizações e a épocas muito distantes dasnossas, o aperfeiçoamento dos instrumentos de pes-quisa e investi-gação, a elaboração de novas metodologias de estudos, históricos

;L~ •

158 159

Page 80: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

Mesmo nos limites indicados por muitos estudiosos (o privilé-gio da função melódica, a sua aplicabilidade unicamente à músicatonal, etc.), a teoria analítica de Schenker teve o inegável mérito deabrir vastos campos de investigação e de sugerir métodos analiticosque, embora seccionando a obra, não perdem de vista o seu valorunitário, que é identificado na estrutura originária que está na suabase. Os estudos e as teorias de carácter analítico desenvolveram-se

~' com grande vigor nestas últimas' décadas e são imensos os textosque se cruzam, de certa forma, com esta corrente de pensamento, .pelo que não nos é de todo possível fazer aqui uma exposição por-menorizada destes, limitando-nos, por isso, a fazer breves refe-rências.

É evidente que todas as teorias analíticas se deparam com oproblema de privilegiar a dimensão da obra que se considera maisrelevante do que outras. Todavia, todas as escolhas implicam exclu-sões, pelo que todas as abordagens analíticas destacam, inevitavel-mente, um aspecto em detrimento de outros e arriscam-se a nuncapoder apreender o que utopicamente se pretendia apreender, ouseja, a totalidade da obra. Vimos como Schenker tendia a privilegiaro aspecto melódico tonal por ser o mais relevante no que respeita àidentificação da estrutura «originária» da obra. Numa linha nãomuito diferente situam-se os estudos de Rudolph Reti, musicólogodos EUA. Na sua obra mais conhecida (31), ele pretende demonstrarque, nas obras dos grandes músicos, todas as ideias temáticas deri-vam de um único motivo germinal, cuja sucessiva transformaçãorepresenta um processo capaz de conferir um significado e umsentido unitário a toda a composição. A investigação deste modelotemático representa um processo de redução - utilizando uma lin-guagem fenomenológica - semelhante à de Schenker na investi-gação da linha melódica originária. Também neste caso se referesempre obviamente a exemplos retirados da música tonal. Como

(31) R. Reti, The Thematic Process in Music, London, Faber and Faber,1961.

160

. !

I

jr

II

A CRISE DA LINGUAGEM MUSICAL E A ESTÉTICA DO SÉCULO xx)

)

afirma o próprio Reti «nas grandes obras da literatura musical, osdiferentes movimentos de uma composição estão ligados entre sipor uma unidade temática - unidade que é conferi da não só por umavaga afinidade, mas por uma substância musical idêntica» (32). Porum lado, implica que se deve demonstrar esta unidade temáticasubjacente a todas as obras, mas, por outro, pressupõe que a uni-dade representa o valor estético por excelência. Demonstração essanem sempre possível, a menos quese queira afirmar dogmatica-mente que, por exemplo, numa sonata os dois temas «se opõemaparentemente entre si mas, no fundo, são idênticos em substân-cia» (33). O conceito de unidade permanece, portanto, bastante pro-blernático, quer no seu aspecto técnico-analítico, quer no aspectoestético-filosófico, hoje largamente contestado pelos músicos devanguarda.

Os estudos analíticos assumiram nestes anos dimensões impen-sadas, extrapolando as esferas estritamente especializadas, a pontode entrarem, por vezes, em outras áreas de estudos musicológicos,socorrendo-se frequentemente da psicologia, da psicanálise, dateoria da percepção, etc. Portanto, na base dos estudos analíticos estásempre a tentativa de criar modelos teóricos explicativos dotados deuma universalidade mais ou menos acentuada. A tradição analíticaschenkeriana privilegiou o aspecto formal da obra musical. Todavia,podemos atribuir à corrente analítica estudos aparentemente muitosdistantes como os de Hermann Kretschmar, que evocam a herme-nêutica, isto é, a ciência da interpretação, entendendo-se por inter-pretação a descoberta do significado do texto. Significado não for-mal mas afectivo, emotivo ou até intelectivo. Por isso a velha teoriados afectos setecentista pode, de certa forma, ser considerada aprimeira tentativa de uma teoria analítica da música, mas exposta doponto de vista dos conteúdos afectivos em relação a determinadas«figuras» próprias da retórica musical barroca.

.)

),)

)

)

')

)

)

)

I~

)

)

J).J)

)

'jj

')

()

I)

)

(32) Ibidem, p. 4.(33) Ibidem, p. 139.

161

Page 81: FUBINI, Enrico. Estética da Música

-S")

)

)

)

)

)

)

)

)

)

J)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

J~

i..J j

i ..

) ,e:-1

J.J

.J

J)

\/

)

)

)I'

,."~ ." ". '.-:..--': - .~! .-:..,( .". .

Conclusão

No final deste breve, e certamente lacónico, excursus pelahistória do pensamento musical da Antiguidade até aos nossos dias,podemos legitimamente interrogarmo-nos se em todas estasespeculações tão díspares sobre a música, provenientes de fontestão diversas, há, no entanto, um fio condutor que as une numpercurso coerente, E, além disso, podemos perguntar-nos seainda existe um pensamento musical com especial relevância filo-sófica e se se insire numa tradição estética. Há uma ligação entreestas duas interrogações, na medida em que, face urna crise geral dopensamento filosófico sistemático, a estética musical é inevita-,velmente afectada por ela, Se, de certo modo, era fácil reconhecerum desenvolvimento coerente ,e unitário do pensamento musicalquando estava ligado a uma tradição filosófica bem definida, é'muito mais difícil encontrar.esta coerência quando, as fontes dei-xam de ser os escritos filosóficos para darem lugar aos escritos dosmúsicos, dos teóricos, dos críticos e dos historiadores da música;actualmente as suas reflexões radicam de forma geral numa.,experiência prática e tendem a tratar de problemas inerentes à"acústica, à psicologia da percepção,. às mudanças históricas dalinguagem musical. No passado procurou-se trazer à luz o fiocondutor que, apesar de tudo, une as diversas experiências depensamento da música, mas hoje é muito mais difícil realizar estaoperação devido ao desaparecimento de um dos dois pólos: ofilosófico-sistemático.

163

Page 82: FUBINI, Enrico. Estética da Música

':;r:-)2-

- ,..". .-;;

"'~~"1.

~,",

,JC'

'"A:'1-f

-:r»

.~.'.~

r,i:'"

I'

~ 1I:

r

ESTÉTICA DA MÚSICA

~'

Se considerarmos a expressão «estética musical» em sentidoestrito, como reflexão a nível filosófico e sistemática sobre amúsica, temos de concluir que está a acabar ou talvez já tenhaterminado há algumas décadas: Adorno é" talvez, o último grandefilósofo da música e a sua obra a última tentativa de formular umavisão global da música.' Mas se considerarmos a estética musical deacordo com a acepção mais lata, como tentámos considerá-la nestebreve estudo, temos de concluir de forma menos apocalíptica edizer simplesmente que hoje a estética musical seguiunovas orien-"tações e que tende a 'fragmentar-se em diversos sectores de inves-,tigação da experiência musical considerada na sua complexidade ediversidade de aspectos.' C~~II,,'I·Ii.l'~'n.C ";;;~; \1"7 '!>!'; ',t'uc.<;c. "o ;L""t,

As grandes revoluções linguísticas e estilísticas na história damúsica fizeram com que a atenção dos teóricos e dos músicos sefocasse numa maior reflexão sobre os aspectos propriamentetécnicos e linguísticos da sua arte, abordando apenas indirectamenteos problemas filosóficos e estéticos que subjazem sempre às novasexperiências artísticas. Foi o que sucedeu na passagem da arsantiqua à ars nova, na passagem da polifonia à monodia, bem comoactualmente com a invenção da dodecafonia e com as experiênciaslinguísticas radicalmente novas associadas às mais recentes van-guardas. Aquilo a que assistimos hoje não é sequer um fenómenoassim tão inédito: o declínio da estética musical como disciplinafilosófico-sistemática e a proliferação paralela de estudos, nemsempre facilmente classificáveis, sobre muitos aspectos da NovaMúsica, sobre a experiência musical, interpretativa, fruitiva, recep-tiva, sobre metodologias historiográficas, sobre psicologia da audi-ção e da criação, sobre mecanismos linguísticos que tornam possí-vel a formação dos significados, etc., não é efectivamente umfenómeno novo na história do pensamento musical. Por outro lado,há correntes fragmentadas de pensamento que se reconfiguram,inesperadamente, em perspectivas mais unitárias, mais explicita-mente filosóficas, O que sucedeu nas últimas décadas na estéticamusical é análogo ao que ocorreu em outros campos da reflexão

164

CONCLUSÃO

estética sobre arte em geral e sobre cada arte em particular, Mas atéo mais' fiel propósito de se confinar à especialização e tecnicismomais puro, devido a uma desconfiança radical em relação à reflexãofilosófica, não é suficiente para isolar definitivamente a reflexãosobre a música da estética e da filosofia. Por isso, não' é possívelprefigurar presentemente o futuro da estética musical: nunca fOIuma disciplina' auto-suficiente e sempre se alimentou de outrasdisciplinas, o que mostra o seu ,caráctá essencialmenteinterdisci-plinar, Os grandes temas d~'pensamento musical, que hoje parecem'ter-se eclipsado face ao tecnicismo e às investigações mais concre-tas e pontuais sobre aspectos mais circunstanciados da música,reaparecem muitas vezes sob, novas roupagens, frequentementeenriquecidos com uma maior atenção dada à riqueza e diversidadecom que hoje o fenómeno musical se apresenta aos olhos de umobservador atento. A natureza inevitavelmente filosófica de todasas reflexões sobre música não pode ser dissociada do desejo dedestruir a ideia de morte da filosofia. Sem dúvida que hoje estámorto, ou talvez só esteja entre parêntesis, um certo modo de con-ceber a filosofia e, portanto, a estética musical, mas não o pensa-mento sobre a música e sobre os seus problemas. O futuro dessepensamento, as configurações que assumirá no futuro, as soluçõesque serão propostas, dependem evidentemente desses e de outrosparâmetros que não se referem apenas ao mundo da música e da arteem geral, mas ao sentido e à direcção da própria civilização em quevivemos.

165

i1

I)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

'.J

j.J

j

'..J

.J

...J

'.J

),)

)

')

)

)

..)

Page 83: FUBINI, Enrico. Estética da Música

Bibliografia

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

J

)

)

.J

J)

)

)

j'

.J

.J.J

)

)

).

)

)

)

rr-- - 'U

!

fI'I

No que se refere à primeira parte, Iimitar-nos-ernos a indicar algunslivros publicados nas últimas décadas que têm particular relevância noâmbito dos problemas tratados, privilegiando a bibliografia em italiano.

.~

Sobre a especificidade da linguagem musical da história da músicaveja-se:

DALHAUS,Carl, Grundlagen der Musikgeschichte, Colónia, Amo Volk, 1980;trad. it. Fondamenti di storiografia musicale, Fiesole, Discanto, 1980.

MAGNANI,Luigi, Lefrontiere della musica, Milão, Ricciardi, 1957.MILA, Massirno, L'esperienza musicale e l'estetica, Turim, Einaudi, 1950 .PARENTE,Alfredo,La musica e learti, Bari, Laterza, 1936.RONGA;Luigi, L' esperienza storica della musica, Bari, Laterza, 1961.

Sobre problemas ligados à linguagem musical, às suas relações comci poesia e à semiologia da música veja-se:

BARONI, Mario, Suoni e significati, Florença, Guaraldi, 1987 .COLLISANi,Amalia, Musica e simboli, Palerma, Sellerio, 1988 .FUBINI, Enrico, Musica e linguaggio nell'estetica contemporanea, Turim,

Einaudi, 1973.NATIlEz, Jean-Jacques, Il discorso musicale. Per una semiologia della

musica, trad. it., Turim, Einaudi, 1987.--, Musicologia generale e semiologia, Turim, EDT, 1989.

167

··"t"

Page 84: FUBINI, Enrico. Estética da Música

168 169

, ))

)

'. J

ESTÉTICADAMÚSICA BIBLIOGRAFIA

PAGAl\ljN1,Marcello, Lingua e musica, Bolonha, II Mulino, 1974.RUWET, Nicolas, Langage, musique et poésie, Paris, Seuil, 1972; trad. it.

Lingua, musica e poesia, Turim, Einaudi, 1983.STEFANI, Gino, Introdurione alta semeiotica delta musica, Palerma,

Sellerio, 1976.

Veja-se também os inúmeros ensaios sobre o problema da inter-pretação . na antologia de «La Rassegna Musicale» (organizado porLuigi Pestalozza), Milão, Feltrinelli, 1966, em particular entre 1930 e1940.

\ )

Sobre problemas da relevância social e psicológica da música e do~. músico, sobre tradição popular e tradição culta e sobre a relevância

metafisica da música veja-se:

Para a segunda parte, cuja bibliografia seria infinita, limitar-nos--emos a indicar algumas fontes importantes, sobretudo para a parte antigae medieval, e obras de carácter geral mais recentes e fáceis de encontrarna história da estética musical. IndicaretrlOsàinda as obtasmais importan-tes nos vários períodos históricos .

)

~J

! )

)

f)

Sobre as fontes do pensamento musical antigo e medieval:

Ji)

)

.J

, )f)

().J

')

')

)f.J

')

)

I)

.J

'.J)

)

),)

)

1 )

)

. ANSERMET,Ernest, Lesfondements de Ia musique dans Ia consciencehumaine,Neuchâte1, La Baconniêre, 1961.

, ATTALI,Jacques, Bruits: Essai SUl' l'economie politique de Ia musique,Paris, PUF, 1977; trad. it. Runiori. Saggio sull'economia politicadelta musica, Milão, Mazzotta, 1978.

. BARTÓK,Béla, Valagatott zenei irasai, Budapeste, Magyar Korus, 1948;trad. it. Scritti sulla musica popolare, Turim, Einaudi, 1955.

FRANCÉSROBERT,La perception de Ia musique, Paris, Vrin, 1958.FUBINI,Enrico, La musica nella tradizione ebraica, Turim, Einaudi, 1994.IMBERTY,Michel, Entendre Ia musique, Paris, Dunod, 1981.JANKÉLÉVI1'CH,Vladimir, La musique et L'ineffable, Paris, Colin, 1961;

trad. it. La musica e l'ineffabile, Nápoles, Tempi Moderni, 1985.KERMAN,Joseph, Musicology; Londres, Collins, 1985.MATHIEU,Vittorio, La voee, Ia musica, il demonio; Milão, Spirali, 1983.SERRAVEZZA,Antonio, La sociologia della musica, Turim, EDT, 1980.SILBERMAN, Alphons, Wovon lebt die Musik? Die Prinripien der

Musiksoriologie, Regensburg, Busse, 1957.WIORA, Walter, Musicapopulare europea e musica occidentale, 1957. -,

Die Vier Weltalter der Musik, Stuttgart, Kohlhammer, 1961.

FERGUSON,Donald, A Historyof Musical Thought, Nova Iorque, Crofts,1935.

FUBINI, Enrico, L'estetica musicale dall'antichità ai Settecento, Turim,Einaudi, 1976.

--, L'estetica musicale dai Settecento ad oggi, Turim, Einaudi, 1987.LANG, Paul, Music in Western Civilization, Nova Iorque, Norton,

1941.

PORTNOY,Julius, The Philosopher and Music: A Historical Outline, NovaIorque, Humanities Press, 1954.

STRUNK,Oliver, Source Readings in Musical History from Classical Anti-quity through the Romantic Era, Nova Iorque, Norton, 1950.

Sobre o problema da interpretação musical veja-se:

COUSSEMAKER,.Charles-Edmond-Henri, Scriptorum de musica medii aevinovam seriem a Gebertina alteram, 4 vols., Paris, 1864-1876.

DIELS, Hermann, Die Fragmente der vorsokratiker, 3 vols., Berlim,Weidmann,1956-1959.

GERBERT,Martin, Scriptores ecclesiastici de musica sacra potissimum,3 vols., 1784.

PSEUDO-PLUTARCO,De musica (veja-se a óptima tradução francesa ecomentários de F. Lasserre, Plutarque de Ia musique: texte, tra-duction, commeniaire, Olten-Lausanne, Graf, 1954).

RUELLE, Charles-Emile, Collection des auteurs grecs rélatifs à Ia musi-que, Paris, J 895.

BRELET,Gisele, L'interprétation créatrice, Paris, PUF, 1951.GRAZIOSI,Giorgio, L'interpretarione musicale, Turim, Einaudi, 1952.PUGLlATTI,Salvatore, L'interpretazione musicale, Messina, Secolo nostro,

1940.

Page 85: FUBINI, Enrico. Estética da Música

BIBLIOGRAFIA

)')

)

)

)

)

)

)

)

)

j

J)

)

)

)

J

J)

)

.)

JJJJ.)

J-)

j

J)

)

)

)

ESTÉTICADAMÚSICA

Para o período barroco, são muito úteis as colectâneas de escritosde tratados da época organizadas por:

MALPIERO, Gianfrancesco, I profeti di Babilonia, Milano, Bottega di .poesia, 1924.

SOLERTI,Angelo, Le origini del melodramma, Turim, Bocca, 1903.

A produção ensaística sobre cada período é vastíssima. Indicaremosapenas alguns títulos de maior importância e acessibilidade.

Sobre a Antiguidade:

DEL GRANDE, Carlo, L'espressione musicale dei poeti greci, Napoli,Ricciardi, 1932.

GAVAERT,François Auguste, Histoire et théorie de la musique de l'anti-quité, Gand, 1871-1881.

--, Les problêmes musicaux d'Aristote, Gand, 1903.LALOY,Louis, Aristoxêne de Tarante et la musique de l'antiquité, Paris,

Lecêne, 1904.LIPPMAN,Edwàrd A., Musical Thought in Ancient Greece, Nova Iorque,

Colombia University Press, 1964.MOUTSOPOULOS,Evanghelos, La musique dans l'oeuvre de Platon, Paris,

PUF,1959.SACHS,Curt, The Rise of Music in theAncient World: East and West, Nova

Iorque, Norton, 1943; trad. it. La musica nel mondo antico,-Florença,Sansoni, 1963.

Sobre a Idade Média:

AÚER,T, iÚrirúmn:·Die :!v[usik~nsch~uung des Mittelalters und ihreGrundlagen, Halle,·1905 ...

REESE,Gustav,Music in the Middle Age, Nova Iorque, Norton, 1940; trad.it. La musica nel medioevo, Florença, Sansoni, 1960.

RIEMANN, Hugo, Geschichte der Musiktheorie im 9-19 lahrhundert,Leipzig, 1898.

SESlNI,Ugo, Poesia e musica nella latinità cristiana dal Ill ao X secolo,Turim, SEI, 1949.

170

Sobre o Renascimento e Barroco:

ALBERT,Hermann, Luther und die Musik, Wittenberg, LutherGesellschaft,1924.

BUKFOZER,Manfred, Studies in Medieval and Renaissance Music, NovaIorque, Norton, 1950.

MASSERA, Giuseppe, Lineamenti storici delta teoria muicale nell'etàmoderna, Parma, Studium Parmense, 1977.

PALISCA,Claude v., The Florentine Camerata, New Haven, Yale Univer-sity Press, 1989.

PIRROTA,Nino, Li due Orfei: da Poliziano a Monteverdi, Turim, Einaudi,1975.

REESE, Gustav, Music in the Renaissance, Nova Iorque, Norton, 1954.

Os inúmeros textos dos teóricos renascentistas são de fundamentalimportância, estando quase todos disponíveis em edições anastâticas, deentre os quais destacamos:

ARruSI, Giovanni Maria, L'Artusi ovvero delle imperfettioni delta modernamusica, Veneza, 1600-1603 Cedoanastática Bolonha, Forni, 1968).

DESCARTES;René, Musicae Compendium, Utrecht, 1650.GALILEI, Vincenzo, Dialogo delta musica antica et della moderna,

Florença, 1581 Cedolimitada de F. Fano, Milão, Minuziano, 1947) .GLAREANO,Heinrich, Dodekachordon, Basel, ·1547.KIRC!:lER,Athanasius, Harmonieuniverselle, 3 vols., Paris, 1636-1637.'MONTEVERnI,Claudio, Letteree prefazioni, Roma, De Sanctis, 1973.VICENTlNO,Nícola, L'antica musica ridotta alta moderna prattica; R0ri1a,

1555.. ZARLINO,Gioseffo, lstituzioni harmoniche, Venezia, 1558 Cedoanastática

Ridgewood, Gregg, 1966). i'4

--, Dimostrazioni harmoniche, Veneza, 1571.Sopplirnenti musicali, Veneza, 1588.

Sobre o século XVllf e o Iluminismo imensas obras de carácter geral:

BUKOFZER,Manfred, Music in The Baroque Era, Nova Iorque, Norton,1947; trad. it. La musica barocca, Milão, Rusconi, 1982.

171

Page 86: FUBINI, Enrico. Estética da Música

· '

ESTÉTICADAMÚSICA

CLERCX,Susanne, Le Baroque et Ia musique: Essai d'esthétique musicale,Bruxelas, 1948.

ECORCHEVILLE,Jules, De lulli à Rameau, 1690-1730: L'esthétique musi-cale, Paris, Fortin, 1906.

FUBINI,Enrico, Gli Enciclopedisti e ia musica, Turim, Einaudi, 1971.GOLDSCHMIDT,Hugo, Die Musikãsthetik des 18. Jahrhunderts und ihre

Beziehungen zu seinem Kunstschaffen, Zürích.Rascher, 1915,JULLIEN,Adolph, La musiqueet les philosophes au XVIlIe siêcle, Paris,

~'

1873.

OLIVIER, A. R., The Encyclopedists as Critics of Music; Nova Iorque,Colombia University Press, 1947. .

STEFANI,Gino, Musica barocca, poetica e ideologia, Milão, Bornpiani,1978.

Um grande número de textos do pensamento musical do século XVIIIestá disponível em várias edições recentes e menos recentes. Referimos,em particular, as obras de interesse musical de Rousseau, de Diderot, deGrimm e de Rameau.

Para o Renascimento há imensos ensaios sobre estética de autoriaindividual, entre os quais salientamos:

DAHLHAUS, Carl, Die Ideen der absoluten Musik, Kassel, Barenreiter,1978; trad. it, L'idea di musica assoluta, Florença, Discanto-LaNuova Italia, 1988.

--, Die Musik des 19. lahrhunderts, Wiesbaden, Athenaion, 1980; trad.it. La musica dell'Ottocento, Florença,Discanto-La Nuova Itália, 1990.

EINSTEIN,Alfred, Music in the Romantic Era, Nova Iorque, Norton, 1947;trad. it. La musica nel período romantico, Florença, Sansoni, 1952.

GLOCKNER, Ernst, Studien zur romantischen Psychologie der Musik,München,1909.

RILBERT,Werner, Die Musikãsthetik der Frühromantik; Remscheid, 1911.LASSERRE,Pierre, Les idées de Nietzsche SUl' Ia musique, Paris, 1907.Lours, Rudolf, Die Weltanschauung Richard Wagners, Leipzig, 1898.MAGNANI, Luigi, 1 quaderni di conversarione di Beethoven, Milão-

-Nápoles, Ricciardi, 1962.

172

BIBLIOGRAFIA

(), )

)

)

)

,)

)

),JJ

'J'.-J

.: >J'J'.J

(J'JI.,)

.J

'~J.

)I.-J

I, . ./)

iJ'.J

J.J

I..J

'J,)

),)

I)

I )

Moas, Paul, Richard Wagner als Asthetiker, Berlim, 1906.REICH, Willi, Musik in Romantischer Schau:Worte der Musiker, Basel,

Auerbach, 1947.SEYDELMARTIN,Arthur Schopenhauers Methaphysik der Musik, Le~pzig,

1895.

Os textos do pensamento e da filosofia da músicadoRomantismoestão disponíveis em edições recentes ê quase todós emtraduções 'italia-nas, quer no que respeita os filósofos maiores, quer no que respeita osescritos dos literatos e dos próprios músicos.

Relativamente à imensa bibliografia do século xx, Iimitar-nos-emosa alguns dos títulos mais significativos divididos por áreas linguisticas:

Bibliografia francesa:

ANSERMET,Ernest, Les fondements de Ia musique dans la conscientehumaine, Neuchâtel, La Baconniêre, 1961.

BASCH, Victor, Du pouvoir expressif de Ia musique. Essai d'esthétique,Paris, Alcan, 1934.

BaULEz, Pierre, Penser la musique aujourd'hui, Mainz, Schott's Sohne,1963; trad. it. Pensare Ia musica oggi, Turim, Einaudi, 1979.

BRELET,Gisêle, Esthétique et création musicale, Paris, PUF, 1947.--, Le temps musical, Paris, PUF, 1949.1MBERTY,Michel, Les écritures du temps, Paris, Dunod, 1981; trad. it.

Suoni, emozioni, significati. Per una semaniica psicologica dellamusica, Bolonha, Clueb, 1986.

LALo, Charles, Eléments d'une esthétique musicale scieniifique, Paris,Alcan, 1908.

MOLES, Abraham, Théorie de l'information et perception esthétique,Paris, Flamarion, 1958. .

PIGUET,Jean-Claude, Découverte de Ia musique, Neuchâtel, La Bacconiére,1948.

SCHLOEZER,Boris de, Introduction à 1. S. Bach, Essai d'esthétique musi-cal, Paris, Gallimard, 1947.

SEGaND, Joseph, L'esthétique du sentiment, Paris, Boivin, 1927.

173

Page 87: FUBINI, Enrico. Estética da Música

j)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

)

~)

)..J

!

,) 'I

J,I1,\,i..J 'I,{,-.;;,

j , ,I,

) .!"i

;:'!1',

) I'í

.J . ',

; :1,..J

~.J,

~ j)

)

)

).J

)

ESTÉTICADAMÚSICA BIBLIOGRAFIA

SERVlEN, Pius, Introduction à une connaissance scientifique des faitsmusicaux, Paris, Blanchard, 1929.

STRAVINSKY,Igor E, Poétique musicale, Paris, Janin, 1945.

Bibliografia anglo-saxánica:

LISSA, Zofia, Fragen der Musikãsthetik, Berlim, Heischelverlag, 1954.MERSMANN,Hans, Angenwandte Musikãsthetik, Berlim, Hesse, 1926.SCHENKER, Heinrich, Neue musikalischen Theorien und Phantasien,

Viena, Universal Edition, 1906.SCHONBERG,Arnold, Harmonielehre, Viena, Universal Edition, 19l0;

trad, it. Manuale d'armonia, Milão, Il Saggiatore, 1%3.

CAGE, John, Solence, Middletown (Conn.), Wesleyan University Press,1961.

COOKE, Deryck, The Language of Music, Londres, Oxford UniversityPress, 1959.

COPLAND,Aaron, Music and lmagination, Cambridge (Mass.), HarvardUniversity Press, 1952.

LANGER,Suzanne, Philosophy in a New Key, Nova lorque, Mentor Books,1942.

MEYER, Leonard, Emotion and Meaning in Music, Chicago, University ofChicago Press, 1956.

PRATI, Carro1, The Meaning of Music, Nova Iorque, Mcgraw Hill, 1931.RETI RUDOLF,Totality, Atonality, Pantonality, Londres, Rockliff, 1958.SEASHORE,Carl, The Psychology of Musical Talent, Chicago, Silver, 1919.WATI; Henry, The Foundation of Music, Cambridge, Cambridge Univer-

sity Press, 1917.

Bibliografia italiana:

BASTIANELLI, Giannotto, L'opera ed altri saggi di teoria musicale,Florença, Vallechi, 1921.

BERTOLOTIO,Mario, Fase seconda, Turim, Einaudi, 1969.DE NATALE,Marco, Strutture e forme nella musica come processi sim-

bolici, Nápoles, Moram), 1978 .PANNAlN,Guido, La vita del linguaggio musicale, Milão, Curei, 1947.ROGNONI,Luigi, Espressionismo e dodecafonia, Turim, Einaudi, 1954.TORREFRANCA,Fausto, La vita musicale dello spirito, Milão, Bocca, 1910.VLAD, Roman, Modernità e tradizione nella musica contemporanea,

Turim.Einaudi, 1955.

Bibliografia alemã:

ADORNO,Wiesengrund Theodor, Philosophie der Neuen Musik, Tübingen,Mohr, 1949; trad. it. Filosofia delta musica moderna, Turim,

. Einaudi;1959. . " : ," "

BAHLE,Julius,Di~ musikali;d1e Schaffensprozess, Leipzig, Hirzel, 1936 .BLAUKOPF;Kurt, Musikosoziologie, St. Gallen, Zollikofer, 1950 ..BUSON1,Ferruccio, Entwurf einer neuen Âsthetik der Tonkunst, Trieste, '

, Schrnidl, 1907.DE LA MOTIE-HABER, Helga, Musikpsychologie, Colónia, Gerig, 1975;

trad. it. Psicologia delia musica. Una. introdurione, Fiesole,Discanto, 1982.

KURT,Ernst, Musikpsychologie, Berlim, Hesse, 1931.

174 175

Page 88: FUBINI, Enrico. Estética da Música

fi Índice Onomástico

Aaron, P., 10 1Adamo di Fulda, 98Adison, I., 108Adorno, Th. w., 25, 142, 148, 149,

151,164,174Agostinho de Hípona, 87-90,97,107Alfieri, v.. 114Ansermet, E., 56,147,168,173Aristóxeno, 82-84Aristóteles, 19,71,73,78-84Arteaga, E., de., 122Artusi, G. M., 105, 106, 171Avison, c., 112

Bach, C. P. E., 112, 120Bach,. 1. S., 54, 108, 112, 122, 142,

143, 145Barcli, G. M., 99, 102-104Baretti, G., 114Bartók, 44, 63,168Basílio de Cesárea, 87Baudelaire, C., 124Beck, F. A, 107Beethoven, L. van, 54, 124, 127,

134, 159Bergson, H., 49, 141, 142Berio, L., 150Berlioz, H., 124, 126, 159

Bizet, G., 128Boécio, Severino, 89-91, 93,94,97Bonomi, A, 143Bora, P., 120Boulez, P., 149, 150, 173Brahms, I., 3Brelet, G., 49, 56,141-143,168,173Bumey, c., 112,.120

Cage, I., 63, 150, 174Callegari, L., 157Calzabigi, R. de', 122Carena, C., 88Cassirer, E., 144Chailley, J., 145Chilesotti, O., 137Chomsky, N., 57, 159Clemente de Alexandria, 86Combarieu, 1.,131,133,134Cooke,D., 145, 157, 174Coussemaker, C.-E.-H, 95, 97, 169Croce, B., 12, 13, 138

Dalhaus, c., 167D'Alembert, 1.-B., 121Damerin, A, 90Damão de Oa, 69, 72, 80Darwin, C. R., 131

177

'))

)

)

)

)

),)

j

)

)

..J

)

'J)-.J

())

)

';J')

'j

j

)

')( )

.,.";.=.~.• !

Page 89: FUBINI, Enrico. Estética da Música

:Y'"))

)

J)

))

)

)

~..J~

J)

Eimert, H., 147Ésquilo,44Euler, L., 106, 110Eurípedes, 44, 76

ESTÉTICA DA MÚSICA ÍNDICE ONOMÁSTICO

r,

Debussy, c., 142Della Corte, A., 139Della Volpe, G., 134Democrito, 78Descartes, R., 106, 110, 171Després, J., 36Dewey, J., 144Diderot, D, 49, 121, 123, 172Diels, H., 71, 78, 169Du Bos, J.-B., 116Dvofák, A., 44

")";

['I

1'::[I

!!f

"it ,

.J

.J

..J ".,

"

..J ~r~

,-)

)

.J

).J

)

)

..J I

Fano, F., 104Ferrari, F., 58Filodemo, 78Filolau, 71Finkelstein, S., 134Forkel, J. N., 120Francês, R,58, 133,157, 168

Galilei, v.. 103, 104, 108, 171Gatti, G. M., 138, 139Geminiani, 120Gerbert, M., 92, 94; 169Glareanus, H., 99, 101Gluck,122Graziosi, ó., 139,168Guido d'Arezzo, 40, 92-94 .Gurney, E., 131

Hamann,T, G., 120Hanslick, E., 12, 123, 129-131, 134,

137, 139,Haydn, J. M., 40Hegel, G. W. F., 49,124-126

Helmholtz, H. von, 132Herder, J. G., 120, 128Hindernith, P., 56, 147Hirbour Paquette, L., 157Hoffmann, E. T. A., 124, 128, 159

Manzoni, G., 148Marcello, B., 122Marchetto da Padova, 94Martini, G. B., 120Marzi, G., 89Mattheson, J., 111, 112, 122Merker, N., 125Mersenne, M., 110Meyer, L., 144-146,157,174Miguel Ângelo Buonarroti, 36Migne, J.-P., 87Mila, M., 139, 167Milhaud, D., 63Moles, A, 133, 173Monteverdi, C., 37, 105, 106, 171Mozart, L., 112Mozart, W. A., 40Muratori, L. A., 114Muris, J. de, 96Moussorgsky, M. P., 44

Imberty,M., 33, 58,157,168,173Isidoro de Sevilha, 94

Jacob de Liege, 96Jakobson, R, 152Janácek, L., 44Jankélévitch, 49, 142, 168Jerónimo de Strídon, 87,95João XXII (J.-A. d'Euse), Papa, 95,

96

Kant, 1., 121Kircher, A., 109, 171Kodaly,63Kortholt, c., 107Krantz, w., 71,78Kretschmar, H., 161Kurth, E., 133

Nattiez, J.J.,155, 157, 167Nietzsche, F., 120, 124, 128,Novalis (F. L. von Hardenberg), 124,

127Langer, S., .144, 145, 157, 114Lasserre, F., 70, 78, 172Lavelle, L., 141Leibniz, G. w., 106-108Leibowitz, R, 147Leonardo da Vinci; 36Lévi-Strauss, C., 143, 144, 152, 153Lissa, Z., 134, 135, 175Liszt, F., 37, 124, 126, 127Lully, J.-B., 37, 115, 116, 118Lutero, M., (M. Luther), 106, 107

Obrecht, J., 36Olms, G., 92, 95

Parente, A., 138, 139, 167Pergolesi, G. B., 118Petrarca, F., 36 .Pirro, A., 145Pitágoras, 27, 39, 72, 73, 83, 106Platão, 19,37,69,73-80,83Prokofiev, S., 63Pseudo-Plutarco, 39, 70, 83, 169Pugliatti, S., 168Macran, H. S., 83

Mahler, G., '44Mann, T., 54, 147 Quantz, J. J., 112, 120

178

Raguenet, F., 114, 115Rameau, J. P., 37, 100, 106, 108,

110, 116"119, 121, 132, 172Reti, R, 160, 161, 174Révész, G., 133Richter, J. P. F., chamado Jean-Paul,

124Riemann, H., 170Rognoni, L., 130, 175Ronga, L., 139, 167Rousseau, J.-J., 118-121, 127, 128,

172Ruta, E., 128Ruwet, N., 15.2, 153, 155, 157, 168

Salinas, F. de, 101Saussure, F. de, 152Scheibe,J. A., 111, 112Schelling, F. W. S., 124, 125Schenker, H., 159, 160, 175Sch1egel, F. von, 120, 124Schlõzer, B. F. de, 157Schõnberg, A, 54, 56-58, 147-149,

175Schopenhauer, A., 49,124-126,128,

137Schurnann, R A., ·13, 15, 124, 129,

159,Schweitzer, A., 145Scriabine, M., 144Seashore, C., 133,174Shaftesbury, C. E., 116Smetana,B.,44Souchay, M.-A., 124Spencer, H.,.!31Stefani, G., 58, 153-155, 157, 168,

172Stendhal (H. Beyle), 124Stockhausen, K., 63, 150

179

ft"

Page 90: FUBINI, Enrico. Estética da Música

ESTÉTICA DA MÚSICA

Stravinsky, r. F., 44, 56,63,139-141,147, 148, 174

Stumpf, c. 132Supicic, L, 134

Tafurí, J., 157Tinctoris, J., 97,98Torchi, L., 127, 137

fi Torrefranca,F., 137, 138, 175Tunstede, S., 94, 95

. Vaccaro, N., 125Van Krevelen, L., 78Varêse, E., 63

Viano, C.A., 73Vicentino, N., 101, 171Viéville, L de Ia, 114, 115Vitry, P., 96

Wackenroder, W. H., 123, 128Wagner, R., 37, 120, 124, 127,

128Wallaschek, R., 131Webern, A. von, 147, 153Werckmeister, A, 110

Zarlino, G., 99-102, 106, 108, 117,132,171

180

Índice·· .

INTRODUÇÃO : : .

PRIMEIRA PARTE

OS PROBLEMAS ESTÉTICOS E mSTÓRrCOS DA MÚSICA

CAP!TULO 1 - As características da disciplina .Quais os limites da estética musical? .A música e as outras artes .A história da música: uma história à parte .A música, prisma das mil faces .Quais as fontes para uma estética musical? .

CAPÍTULO 2 - O Ocidente cristão e a ideia de música : .Adimensão estética da música ·.·..Música e poesia .Música e matemática · .Música e significado: .Música e afectos : .

CAPíTULO 3 - A música e o sentido da sua historicidade .História da música e metajísica da música .Marginalidade histórica da música .

181

7

(j)

)

, )

)

)

))

)

)

j

)

~

~')

~~)

..J

J..,~

..J

).J

~)

j

)

)

)

)

jI )

( ).: .

;; "''':~~'''''' .- )

11.1112131618

232324272830

353539

Page 91: FUBINI, Enrico. Estética da Música

)

))

J)

)

)

j

j

CAPíTULO 6 -'-Entre o mundo antigo e medieval .O pensamento cristão e a herança clássica .Do abstractoaoconcreto .. : :: i' ...•. : ••••...•..•.••.••.••••.••••.••.•.•..••.••.

A «ars antiqua» e a «arsnova- na consciência críticados contemporâneos .

ESTÉTICA DA MÚSICA

Marginalidade social do músico 40.' Música «humana» e música «mundana» 41

Música e cultura: tradição popular e tradição culta.......................... 42Para um modelo diferente de historicidade 44A teoria da recepção 45Instinto e razão na música 47Interpretação e improvisação :.................................... 50

CAPíTULO 4 - Música e percepção............... -53'Música «percebida» e música «pensada» 53Natureza e história na linguagem musicaL........................................ 55Intraductibilidade e universalidade da linguagem musical................ 60A caminho de uma «globalização» da linguagem musical?............... 62

SEGUNDA PARTE

BREVE HISTÓRIA DO PENSAMENTO MUSICAL

) CAPÍTULO 5 - O mundo antigo .Dos pitagõricos a Damão de Oa .Platão e Aristóteles .A época helénica ; .

Jj.J.J..J

JJ

:-.JJ~))

(~

J

CAPíTULO 7 - A nova racionalidade .A teoria da harmonia e a descoberta dos afectos .Palavra e música: o nascimento do melodrama ; .

A teoria dos afectos e as polémicas sobre o melodrama : .

182

696973 !82 :1

I'I

85 I85 l90

r.95

9797

102108

íNDICE

CAPÍTULO 8 - O Ilurninismo e a música .A teoria dos afectos no século XVIII ..................•......................•...........

As razões da música e as razões da poesia : .Da razão à arte e da arte à razão .Os Enciclopedistas e as «querelles» .

CAPfTULO 9 - Do idealismo romântico ao formalismo de Hanslick .A mlÍsica como linguagem privilegiada .A música e os filósofos românticos .Wagner e a obra de arte total.. .Do formalismo à sociologia da música .

CAPÍTULO 10 - A crise da linguagem musical e a estética so século xx .A crítica e a estética musical em Itália .O formalismo e as vanguardas .Aforma e o tempo musical.. .Música e linguagem .O pensamento musical face à revolução linguistica .As vanguardas e a estética musical contemporânea .A semiologia da música : .A análise musical : .

CONCLUSÃO ............•........... , : .

BlBLIOGRAFIA .

íNDICE ONOMÂSTICO ; . .

183

lU111113116118

123123124127129

137137139140144146150152158

163

167

177

!J