Fui No Tororó Villa Lobos

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 I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP Fui no Tororó de Heitor Villa-Lobos: uma investigação sobre sua direcionalidade  Juliano Abramovay PPGMUS/EC A/USP – [email protected] Resumo: Este trabalho faz uma análise da peça Fui no Tororó, de Heitor Villa-Lobos, investigando se existe um pensamento direcional em sua composição. Para isso são utilizadas ideas provenientes do artigo “Por uma Periodicidade Generalizada” de Henri Pousseur, associadas a outras metodologias analíticas como a Teoria dos Conjuntos. Palavras-chave: Heitor Villa-Lobos, Fui no Tororó, Análise Musical, Direcionalidade, Henri Pousseur Fui no Tororó by Heitor Villa-Lobos: investigatins its directionality Abstract: This paper aims to perform an analysis of the work Fui no Tororó, composed by Heitor Villa-Lobos, investigating if there is a directional thought in this music. For such, the ideas from the article “Por uma Periodicidade Genralizada” by Henri Pousseur are used and associated with other analytical methods, such as the Pitch-Class set Theory. Keywords: Heitor Villa-Lobos, Fui no Tororó, Musical Analysis, Directionality, Henri Pousseur As Cirandas de Heitor Villa-Lobos são uma série de 16 peças curtas para  piano solo, composta n o ano de 1926. A nona peça, Fui no Tororó se destaca pelo uso de diversos procedimentos que dão unidade à obra. Este trabalho faz uma investigação do conteúdo intervalar desta peça e de como cada gesto musical se relaciona, buscando uma compreensão dos elementos que dão unidade à peça e investigando se existe um pensamento direcional  na composição da obra. Direcionalidade é um termo bastante discutido pelo compositor e teórico  belga Henri Pousseur (1929-2009). No ensaio Por uma Periodicidade Generalizada , Pousseur defende que para que uma música seja realmente complexa (característica considerada por Pousseur e toda a geração de Darmstad como fundamental para a música), é preciso que exista um balanço entre elementos novos e a repetição de eventos já ocorridos. O resultado da alternância entre o novo e a repetição é uma sensação de periodicidade, que, segundo Pousseur, é um dos elementos que  proporciona direc ionalidade à mús ica (POUSSEUR, 2009 , p. 114-115). A música dos últimos séculos, que consideramos como nossa música clássica em sentido amplo, como nossa música tradicional, e que encontra no sistema da tonalidade sua expressão sintática mais equilibrada, é uma música na qual praticamente tudo se encontra construído e sustentado de

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Transcript of Fui No Tororó Villa Lobos

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP Fui no Toror de Heitor Villa-Lobos: uma investigao sobre sua

    direcionalidade

    Juliano Abramovay PPGMUS/ECA/USP [email protected]

    Resumo: Este trabalho faz uma anlise da pea Fui no Toror, de Heitor Villa-Lobos, investigando se existe um pensamento direcional em sua composio. Para isso so utilizadas ideas provenientes do artigo Por uma Periodicidade Generalizada de Henri Pousseur, associadas a outras metodologias analticas como a Teoria dos Conjuntos.

    Palavras-chave: Heitor Villa-Lobos, Fui no Toror, Anlise Musical, Direcionalidade, Henri Pousseur

    Fui no Toror by Heitor Villa-Lobos: investigatins its directionality Abstract: This paper aims to perform an analysis of the work Fui no Toror, composed by Heitor Villa-Lobos, investigating if there is a directional thought in this music. For such, the ideas from the article Por uma Periodicidade Genralizada by Henri Pousseur are used and associated with other analytical methods, such as the Pitch-Class set Theory. Keywords: Heitor Villa-Lobos, Fui no Toror, Musical Analysis, Directionality, Henri Pousseur

    As Cirandas de Heitor Villa-Lobos so uma srie de 16 peas curtas para

    piano solo, composta no ano de 1926. A nona pea, Fui no Toror se destaca pelo uso

    de diversos procedimentos que do unidade obra. Este trabalho faz uma

    investigao do contedo intervalar desta pea e de como cada gesto musical se

    relaciona, buscando uma compreenso dos elementos que do unidade pea e

    investigando se existe um pensamento direcional na composio da obra.

    Direcionalidade um termo bastante discutido pelo compositor e terico

    belga Henri Pousseur (1929-2009). No ensaio Por uma Periodicidade Generalizada,

    Pousseur defende que para que uma msica seja realmente complexa (caracterstica

    considerada por Pousseur e toda a gerao de Darmstad como fundamental para a

    msica), preciso que exista um balano entre elementos novos e a repetio de

    eventos j ocorridos. O resultado da alternncia entre o novo e a repetio uma

    sensao de periodicidade, que, segundo Pousseur, um dos elementos que

    proporciona direcionalidade msica (POUSSEUR, 2009, p. 114-115).

    A msica dos ltimos sculos, que consideramos como nossa msica clssica em sentido amplo, como nossa msica tradicional, e que encontra no sistema da tonalidade sua expresso sinttica mais equilibrada, uma msica na qual praticamente tudo se encontra construdo e sustentado de

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP maneira peridica. Basta recordar a simetria com que toda a estrutura rtmica disposta nesse sistema, ou as regularidades intrnsecas da estrutura vibratria, responsvel pelas alturas perceptveis, sobre as quais se baseia sua harmonia. Num e noutro domnio, h, de fato, irregularidades, como as sincopas, as dissonncias, etc., mas se trata sempre de estados de tenso provisria, de crises que se desenvolvem momentaneamente, destinadas a ser resolvidas e cuja distenso resolutiva deve reforar ainda mais a hegemonia fundamental da ordem peridica. (POUSSEUR, 2009, p.112)

    Ao realizar o trabalho de anlise, a pea de Villa-Lobos foi dividida em

    trs partes (A, cc.1-30, B, cc.31-62, C, cc.62-83). Uma importante forma de obter

    unidade nesta obra o uso de um nmero reduzidos de elementos musicais que se

    repetem nas diferentes partes. Observamos, por exemplo, o uso de ostinatos rtmicos

    em semicolcheias com desenho em zigue-zague (fig. 5, p.7) e a presena de uma

    nica melodia, de carter mais lento e tonal nas 3 partes da msica (fig. 4, p.6). Um

    dos objetivos deste trabalho perceber como cada um destes gestos sonoros se

    transforma, surge ou deixa de existir entre uma parte e outra, pois nestas relaes

    que encontramos elementos que criam a sensao de repetio, variao ou contraste,

    elementos importantes para a compreenso da direcionalidade da pea.

    1. Parte A

    Apesar da obra no se basear nos fundamentos do tonalismo, alguns

    elementos importantes desta parte nos remetem a certos princpios tonais. O

    compositor utiliza 8 alturas diferentes da escala cromtica que um formam conjunto

    que, na Teoria dos Conjuntos, denominado 8-26, segundo a nomenclatura de Allen

    Forte (FORTE, 1973). Um dos subconjuntos do 8-26 a escala diatnica, que na pea

    se encontra em R bemol Maior. A linha de baixo fortalece a ideia de um centro tonal

    forte, polarizando a msica para R bemol maior no apenas pela quantidade de

    compassos onde o r bemol a nota mais grave da msica (em 12 compassos nos

    primeiros 31) mas tambm pelo fato de todas as frases meldicas do baixo o terem

    como ltima nota.

    Porm, interessante como, ao mesmo tempo em que Villa-Lobos utiliza

    notas provenientes do diatonismo, ele tambm faz uso de elementos que dificultam

    uma audio tonal da pea. O ostinato na regio mdio-aguda deste mesmo trecho cria

    uma ambiguidade tonal pois, ainda que as notas sejam todas da coleo de R bemol

    Maior, suas linhas meldicas no sugerem o acorde de R bemol. J a voz meldica

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP da parte A fornece importante ligao com o tema popular Fui no Toror, que Villa-

    Lobos utiliza na parte C da pea. Sua coleo de alturas, com seis notas, a

    denominada de 6-z24, que um subconjunto do 7-35 (escala diatnica), este sendo o

    empregado na melodia popular. Porm, a melodia faz uso de um elemento de

    instabilidade tonal: uma nota no presente na escala de R bemol Maior, o si dobrado

    bemol. Trata-se de um importante elemento na textura da pea, que empregada

    possivelmente para se evitar uma sonoridade exclusivamente diatnica. Tambm

    merece destaque o fato do si dobrado bemol (circulado na figura abaixo) da melodia

    criar, alm da instabilidade tonal, uma distoro da melodia de Fui no Toror, pois

    sem ele as relaes intervalares das primeiras trs notas seriam idnticas.

    Figura 1: melodia da parte A, comparada com a melodia de Fui no Toror Esta disputa de foras entre elementos diatnicos e elementos no-

    tonais uma caracterstica marcante das partes A e B, e fica ainda mais evidente na

    segunda parte, como iremos observar mais adiante.

    importante notarmos como cada um dos elementos citados acima

    (baixo, ostinato, e melodia) se relacionam. Por vezes, os gestos musicais se

    movimentam pelas alturas de forma paralela, criando uma fora direcional para uma

    regio especfica. o caso de baixo e melodia, que ao longo de todo este trecho

    caminham de forma paralela em teras. Este tipo de movimento tambm ocorre nos

    compassos 14-18, onde baixo e ostinato fazem um salto de quarta, criando uma

    sensao de movimentao tonal que fortalecida pelas teras entre melodia e baixo,

    porm enfraquecida pelo si dobrado bemol presente no ostinato. Tal exemplo mostra a

    importncia da relao entre elementos diatnicos e cromticos na parte A.

    O ltimo elemento deste trecho so gestos rpidos e em sforzando, que o

    compositor utiliza como uma espcie de quebra, para ir de uma textura para outra

    (c.1, 11, 18). Tambm merece destaque o fato de suas notas, enarmonizadas,

    comporem a escala de L Maior, tonalidade da parte C da pea.

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP 2. Parte B

    Aqui, o contraste entre elementos que sugerem uma audio tonal e os que

    se afastam desta sonoridade se torna ainda maior. O compositor utiliza um numero

    maior de alturas, 11 notas (no utiliza apenas o D natural), e o ostinato em

    semicolcheias passa a se movimentar reforando uma sonoridade cromtica. Por outro

    lado, a melodia da parte B, possui relao intervalar idntica de Fui no Toror em

    suas 3 primeiras notas e no possui nenhuma nota estranha ao L Maior, tonalidade

    onde o tema popular apresentado na parte C. Alm disso, o registro agudo do

    ostinato rtmico composto pelas notas l e r bemol, ou d sustenido, reforando o

    centro tonal de L Maior. Fica claro desta forma como a pea ao mesmo tempo se

    direciona ao tema Fui no Toror - pela tonalidade da melodia e tambm pelo seu

    desenho, como mostra a figura abaixo mas tambm e se afasta dele, pelo ostinato da

    regio grave e o si bemol na regio aguda.

    Figura 2: contedo harmnico da Parte B (cc. 31-44) Se antes baixo e melodia se movimentavam paralelamente, agora a

    melodia e o ostinato grave que se movimentam em paralelo. Assim como a parte A

    possui gestos rpidos em sforzando, utilizados como quebra ou em mudanas de

    parte, a parte B tambm se utiliza de um gesto rpido e cromtico, com desenho de

    saltos em teras em zigue-zague. Este tipo de figurao permeia toda a pea e ocorre

    com frequncia na obra de Villa-Lobos, como mostra o livro Villa-Lobos: processos

    composicionais (SALLES, 2009, pp.114-130).

    3. Parte C

    Na terceira parte, a msica se encontra dentro da coleo de alturas

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP diatnicas de L Maior, com apenas alguns cromatismo na linha do baixo. Porm,

    mais uma vez impossvel colocar o trecho dentro dos moldes de uma pea tonal,

    pois o ostinato e o baixo no reforam a ideia de que o trecho composto por acordes

    e funes tonais claras. Ambos se movimentam livremente pelo registro do piano,

    com o baixo apenas por graus conjuntos e ostinato mantendo figurao semelhante

    das partes A e B. aqui que reside parte do interesse de C: Villa-Lobos aumenta a

    independncia de movimentao de cada um dos gestos musicais possivelmente como

    forma de aumentar a complexidade do trecho, que aqui no possui nem o grande

    espectro cromtico da parte B, nem a relao ambgua entre diatonismo e cromatismo

    da parte A, nem funes tonais que criem uma sensao de direcionalidade. A figura

    abaixo mostra ostinato, baixo (ambos em notas pretas) e melodia (em notas brancas),

    sem ritmos. Podemos perceber que, mesmo com uma grande limitao fsica (o

    ostinato e a melodia so executados com a mesma mo, o que impede uma livre

    movimentao destas vozes), existe um esforo para que cada gesto musical no se

    movimente pelo registro do piano de forma absolutamente paralela. Cada gesto possui

    um movimento meldico prprio, e Villa-Lobos faz com que eles caminhem de forma

    paralela apenas em alguns momentos especficos, onde ele deseja reforar o

    movimento da melodia popular, por exemplo. O resultado sonoro disso que temos 3

    acontecimentos musicais distintos, cada um com seu interesse prprio.

    Figura 3: contedo harmnico da parte C de Fui no Toror (cc.63-83) A figura acima mostra tambm que o incio da parte C possui importantes

    eixos simtricos. Os dois registros extremos (a melodia e o baixo) utilizam o mesmo

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP conjunto, 3-2, enquanto o ostinato e a voz intermediria utilizam o conjunto 3-6. Isso

    cria uma simetria por espelhamento, com um eixo horizontal entre o ostinato e a voz

    intermediria. Tal elemento de grande importncia, pois exatamente com o

    material meldico do incio da parte C que Villa-Lobos cria todas as variaes

    meldicas presentes nas partes A e B, como observamos anteriormente.

    4. Concluso

    Para uma boa compreenso da possvel direcionalidade da pea,

    importante uma retrospectiva dos principais elementos de cada parte e de como eles

    se modificam de uma parte para a outra. No gesto meldico em A, existe apenas uma

    semelhana com o contedo intervalar da melodia de Fui no Toror, que encoberta

    por uma nota dissonante escala, o si dobrado bemol. Em B, o contedo intervalar do

    inicio da frase idntico e se encontra na mesma tonalidade da melodia popular, que

    apresentada na parte C. Isso mostra que, no aspecto meldico, a msica possui uma

    direcionalidade que vai da incerteza tonal para a melodia popular (figura na pgina 6).

    Figura 4: melodia das parte A, B, e inicio da melodia da parte C. Em relao ao ostinato, passamos de gestos diatnicos, estticos e

    tonalmente ambguos em A para gestos cromticos com movimentao em B. Na

    parte C, os gestos retornam ao diatonismo (agora em L Maior), porm com intensa

    movimentao, como mostrou a figura 3. Ainda que estes elementos no mostrem por

    si s uma direcionalidade, eles reforam a ideia de um A diatnico porm tonalmente

    ambguo, um B fortemente contrastante em suas relaes diatonismo/cromatismo e

    um C diatnico onde parte do interesse se encontra no movimento autnomo de cada

    um dos gestos musicais.

  • I Jornada Acadmica Discente PPGMUS/USP

    Figura 5: ostinatos das partes A e B Com os exemplos acima espera-se demonstrar o quo construtivo pode ser

    uma reflexo sobre a direcionalidade na msica, trazendo benefcios para uma anlise

    musical mais abrangente e, possivelmente, para uma interpretao musical mais

    consciente da funo de cada elemento musical dentro da obra.

    Referncias:

    FORTE, A. The Structure of Atonal Music. Yale: Yale University, 1973.

    POUSSEUR, H. Apoteose de Rameau e outros ensaios. So Paulo: Editora Unesp,

    2009.

    SALLES, P. T. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas, SP. Editora da

    Unicamp, 2009.