Função Social da Propriedade na Prática Jurisprudencial Brasileira.Anderson Schreiber

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Funo Social da Propriedade na Prtica Jurisprudencial Brasileira Anderson SchreiberSUMRIO: 1 Introduo. 2. Consideraes preliminares sobre a funo

social da propriedade. Estrutura e funo. Concepo pluralista da propriedade. 3. Interesses sociais relevantes. Tratamento constitucional da funo social da propriedade. Anlise de decises judiciais. 4. Princpios e regras. A funo social como princpio e como regra. Novo standard jurdico das relaes patrimoniais. 5. Parmetros objetivos para aplicao do princpio da funo social da propriedade. Conflitos entre valores. Tcnica de ponderao. 6. Efetivao da funo social. A emblemtica questo do IPTU progressivo. 7. Concluses.

1. Introduo. " mais raro que baste uma resposta para eliminar uma questo do mundo que um ato" o verso de Bertold Brecht1 serve de aviso a todos aqueles que tm a tendncia de se apaixonar por complexas teorias, e descuidar da prtica. A histria do pensamento cientfico est repleta de construes lgicas que desmoronaram diante da simples constatao de que a vida funciona mesmo de maneira diferente. de se ter sempre memria o exemplo do padre Caspar, engenhoso personagem de Umberto Eco, que acabou submerso sob o peso de suas rigorosas noes de fsica hidrosttica.2 Tudo por lhe ter faltado a preocupao com a aplicabilidade concreta, sem a qual toda teoria se converte em frustrante desperdcio ou mera abstrao. Melhor sorte seguramente reservada aos estudos jurdicos que vm sendo desenvolvidos em torno da funo social da propriedade, matria cujo fascnio transcende o mbito do direito civil para colher adeptos tambm no direito administrativo e constitucional. A profuso de estudos e ensaios acerca da funo

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BERTOLD BRECHT, "O N Grdio", in Poemas 1913-1956, So Paulo: Ed. 34, 5 ed., 2000, p. 29. O episdio retratado em UMBERTO ECO, A Ilha do Dia Anterior, Rio de Janeiro: Record, 1995, 5 ed.

social,3 se no encerra todas as controvrsias em torno do tema, certamente contribui para uma "re-viso" do instituto da propriedade diante dos novos valores consagrados na Constituio de 1988. nesse sentido que se nota, cada vez mais, uma tendncia a repensar as caractersticas essenciais do domnio4 e a redimensionar a proteo que lhe dispensada pelo ordenamento jurdico. Mas a que ponto essa nova tendncia tem interferido no tratamento jurisprudencial do direito de propriedade? Que papel tem sido atribudo pelos tribunais brasileiros ao princpio da funo social? De que maneira vem se garantindo ou buscando garantir a efetiva funcionalizao do domnio? Essas so questes de ordem prtica que o ttulo, pouco sedutor, j sugeria e que apenas a anlise das decises judiciais permite responder. O que se pretende aqui to-somente confrontar o pensamento doutrinrio e o tratamento jurisprudencial, a teoria e a prtica da funo social da propriedade, a fim de se alcanar uma percepo mais realista dessa matria no direito brasileiro.

2. Consideraes preliminares sobre a funo social da propriedade. Estrutura e funo. Concepo pluralista da propriedade. O estudo das decises dos tribunais brasileiros revela determinadas questes polmicas em que se tem centrado a discusso sobre a funo social da propriedade. Essas questes no necessariamente coincidem com aquelas de que se ocupa a

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Inclusive por parte de autores consagrados. Cf. GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 267-291; LUIZ EDSON FACHIN, "Da Propriedade como Conceito Jurdico", in Revista dos Tribunais n 621, pp. 16-39; FABIO KONDER COMPARATO, "Funo Social da Propriedade dos Bens de Produo", in Revista de Direito Mercantil n 63, pp. 71-79; CELSO RIBEIRO BASTOS, "A Funo Social como Limite Constitucional ao Direito de Propriedade", in Revista de Direito Constitucional e Cincia Poltica v. 4, n 6, pp. 101-113; JOS DINIZ DE MORAES, A Funo Social da Propriedade e a Constituio Federal de 1988, So Paulo: Malheiros, 1999; e LUS ROBERTO GOMES, "O Princpio da Funo Social da Propriedade e a Exigncia Constitucional de Proteo Ambiental", in Revista de Direito Ambiental n 17, pp. 160-178, entre outros. 4 Os termos propriedade e domnio so aqui utilizados como sinnimos, embora alguns autores sustentem a sua diferenciao. Cf., por exemplo, RICARDO ARONNE, Propriedade e Domnio Reexame Sistemtico das Noes Nucleares de Direitos Reais, Rio de Janeiro: Renovar, Biblioteca de Teses, 1999.

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doutrina, mas quase sempre podem ser interpretadas como efeitos especficos de debates tericos mais genricos. De fato, o que a prtica jurisprudencial expe, em ltima anlise, so os reflexos do conflito entre a ultrapassada concepo individualista da propriedade e a sua atual funcionalizao a interesses sociais, como fruto de uma tica mais solidria e menos excludente. A transio do modelo anterior para o novo provoca naturalmente alguma instabilidade. Diante disso, os juristas tm avidamente buscado apoio em conceitos slidos e instrumentos tcnicos consagrados, dos quais ainda anda cata a nova concepo. Quanto ao prprio conceito de funo social da propriedade permanece ainda alguma incerteza. O contedo ideolgico sugerido pela expresso faz com que nela se vislumbre, vez por outra, uma ameaa de negao propriedade privada e ao prprio sistema capitalista. Exemplo disso se tem na seguinte ementa: "Ningum nega ao Poder Pblico o direito de instituir parques nacionais, estaduais ou municipais, contanto que o faa respeitando o sagrado direito de propriedade assegurado pela Constituio Federal anterior (artigo 153, 22) e pela vigente (artigo 5, inciso XXII). (...) O fato de o legislador constitucional garantir o direito de propriedade, mas exigir que ele atenda a sua funo social (XXIII) no chegou ao ponto de transformar a propriedade em mera funo e em pesado nus e injustificvel dever para o proprietrio." (original sem grifo). 5 O temor explica-se, em parte, diante da prpria evoluo histrica do conceito de funo social, que surge, na obra do constitucionalista francs Leon Duguit, como contraposio ao direito subjetivo de propriedade.6 s por meio de rduos esforos5

Trecho do voto proferido pelo Min. Garcia Vieira, do Superior Tribunal de Justia, no Recurso Especial 32.222-8/PR, julgado em 17 de maio de 1993. A ementa do acrdo j sugeria a investida contra a ideologia socialista: "Da queda do muro de Berlim e do desmantelamento do imprio comunista russo sopram ventos liberais em todo o mundo. O Estado todo poderoso e proprietrio de todos os bens e que preserva apenas o interesse coletivo, em detrimento dos direitos e interesses individuais, perde a sobrevivncia." 6 LEON DUGUIT, Les Transformations du Droit Priv Depuis le Code Napolon, Paris: Armand Colin, 1 ed., 1913, sobretudo pp. 152 e ss. Para detalhada anlise da lgica funcional de Duguit e de sua

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da doutrina italiana que a funo social vem se consolidar como elemento interno do domnio, capaz de alterar a estrutura desse instituto jurdico.7 Os institutos jurdicos, em consagrada classificao , decompem-se em dois elementos: o elemento estrutural e o elemento teleolgico ou funcional; em outras palavras, a estrutura e a funo. Na lio de Pietro Perlingieri, "estrutura e funo respondem a duas indagaes que se pem em torno do fato. O como ? evidencia a estrutura, o para que serve? evidencia a funo."8 A funo corresponde aos interesses que um certo instituto pretende tutelar, e , na verdade, o seu elemento de maior importncia j que determina, em ltima anlise, os traos fundamentais da estrutura. Para Salvatore Pugliatti, a funo a "razo gentica do instituto" e, por isso mesmo, seu elemento caracterizador9. Das lies do Professor de Messina se extrai, em sntese, que: (i) a funo corresponde ao interesse que o ordenamento visa tutelar por meio de um determinado instituto jurdico; e (ii) a funo de um instituto jurdico pr-determina a sua estrutura. Na concepo individualista do direito de propriedade, definido como o direito de usar e dispor das coisas "de la manire plus absolute", parece evidente que a funo do domnio correspondia unicamente proteo dos interesses do proprietrio. O titular do direito de propriedade era dotado de um direito quase absoluto, cuja amplitude esbarrava apenas em limitaes de carter negativo, obrigaes de no fazer que lhe eram impostas pelo Poder Pblico. E mesmo essas

crtica ao direito subjetivo, ver, entre ns, JOS FERNANDO DE CASTRO FARIAS, A Origem do Direito de Solidariedade, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 222-236. 7 Cf. GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., sobretudo pp. 277-283. 8 PIETRO PERLINGIERI, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 94. 9 SALVATORE PUGLIATTI, La Propriet nel Nuovo Diritto, Milano: Dott. A. Giuffr Editore, 1964, p. 300: "Non soltanto la struttura per s conduce inevitabilmente al tipo che si pu descrivere, ma non individuare, bens inoltre la funzione esclusivamente idonea a fungere da criterio d'individuazione: essa, infatti, d la ragione genetica dello strumento, e la ragione permanente del suo impiego, cio la ragione d'essere (oltre a quella di essere stato). La base verso cui gravita e alla quale si collegano le linee strutturali di un dato istituto, costituita dall'interesse al quale consacrata la tutela. L'interesse tutelato il centro di unificazione rispetto al quale si compongono gli elementi strutturali dell'istituto (...)".

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obrigaes negativas eram consideradas excepcionais e estranhas ao instituto da propriedade. A tudo isso veio se opor a idia de funo social. A crise de legitimao da propriedade privada e o movimento solidarista evidenciaram a necessidade de se tutelar, com o instituto da propriedade, no apenas os interesses individuais e patrimoniais do proprietrio, mas tambm interesses supra-individuais, de carter existencial, que poderiam ser prejudicados pelo irresponsvel exerccio do domnio (e.g., preservao do meio ambiente e bem-estar dos trabalhadores). Altera-se, assim, drasticamente a funo da propriedade, que passa a abarcar tambm a tutela de interesses sociais relevantes. Como se v, a modificao essencialmente de funo, mas a insero de interesses sociais no elemento funcional gera, por via reflexa, uma remodelao da estrutura do direito de propriedade. A propriedade passa a ser vista no mais como direito absoluto ou "poder inviolvel e sagrado" do proprietrio, mas como situao jurdica subjetiva complexa em que se inserem direitos, deveres, nus, obrigaes.10 Esses deveres no equivalem queles de carter negativo, considerados externos ao domnio e impostos ao proprietrio em nome do interesse pblico ou do poder administrativo de polcia. So deveres de carter tambm positivo11 atribudos ao titular do domnio como conseqncia do prprio direito de propriedade; sua origem no se situa em um fator externo qualquer que justifique a limitao do exerccio do10

"A construo, fundamental para a compreenso das inmeras modalidades contemporneas de propriedade, serve de moldura para uma posterior elaborao doutrinria, que entrev na propriedade no mais uma situao de poder, por si s e abstratamente considerada, o direito subjetivo por excelncia, mas una situazione giuridica soggetiva tpica e complessa, necessariamente em conflito ou coligada com outras, que encontra a sua legitimidade na concreta relao jurdica na qual se insere" (GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., p. 279). 11 "Em um sistema inspirado na solidariedade poltica, econmica e social e no pleno desenvolvimento da pessoa (...) o contedo da funo social assume um papel do tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretaes deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso no se realiza somente finalizando a disciplina dos limites funo social" (PIETRO PERLINGIERI, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional, cit., p. 226). Nada obstante, no incomum que autores identifiquem tambm nas limitaes administrativas propriedade uma manifestao de sua funo social. A verdade que os fundamentos das limitaes administrativas, embora historicamente diversos da

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direito, mas, ao contrrio, encontra sua gnese no interior do prprio instituto, mais precisamente em seu elemento funcional. Esclarea-se que funcionalizar a propriedade ao atendimento de interesses sociais no significa, de modo algum, propor o aniquilamento dos direitos individuais ou pregar a negao da propriedade privada. Muito pelo contrrio. A funo social, impondo ao proprietrio a observncia de determinados valores sociais, legitima a propriedade capitalista e a compatibiliza com a democracia social que caracteriza os sistemas polticos contemporneos.12 O proprietrio permanece como beneficirio imediato, e quase sempre predominante, do domnio; apenas se impe a ele que exera o seu direito atendendo tambm aos interesses sociais. A propriedade se mantm privada, mas se afasta da definio individualista de "poder absoluto do proprietrio" para buscar na conformao ao interesse social a sua legitimao, a razo e o fundamento de sua proteo jurdica.13 Nessa nova concepo, a propriedade passa a ser tutelada apenas na medida em que observe os interesses sociais relevantes. A conduta do proprietrio e a tutela dos seus interesses passam a estar condicionadas ao atendimento da funo social da propriedade.14 No se oprime o indivduo, mas se exige dele alguma ateno aos anseios mais graves do organismo social em que se insere.15

funo social, repousavam, em ltima anlise, sobre os interesses supra-individuais que a funo social veio a atrair para o interior da relao jurdica de propriedade. 12 Da a observao crtica de Orlando Gomes: "Se no chega a ser uma mentira convencional, um conceito ancilar do regime capitalista; por isso que, para os socialistas autnticos, a frmula funo social, sobre ser uma concepo sociolgica e no um conceito tcnico-jurdico, revela profunda hipocrisia pois 'mais no serve do que para embelezar e esconder a substncia da propriedade capitalstica'. que legitima o lucro ao configurar a atividade do produtor de riqueza, do empresrio, do capitalista, como exerccio de uma profisso no interesse geral. Seu contedo essencial permanece intangvel, assim como seus componentes estruturais. A propriedade continua privada, isto , exclusiva e transmissvel livremente. Do fato de poder ser desapropriada com maior facilidade e de poder ser nacionalizada com maior desenvoltura no resulta que a sua substncia se estaria deteriorando." (ORLANDO GOMES, Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 2001, 18 ed., p. 109). 13 A necessidade de buscar a legitimao da propriedade no em seu contedo, mas em seus fins, remonta a P. J. PROUDHON, Thorie de la Propriet. Suivie dun Nouveau Plan dExposition Perptuelle, Paris: Librarie Internationalle, 1871, p. 128. 14 Note-se, entretanto, que a perda dessa tutela e a supresso do direito de propriedade no so conseqncias instantneas; esto submetidas aos requisitos e procedimentos previstos em cada ordenamento jurdico. 15 "A despeito, portanto, da disputa em torno do significado e da extenso da noo de funo social, poder-se-ia assinalar, como patamar de relativo consenso, a capacidade do elemento funcional em

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A perspectiva funcional acima analisada permite compreender construo doutrinria de grande importncia, referente multiplicidade do domnio. A doutrina civilstica j demonstrou que no h um nico instituto jurdico de propriedade, mas vrios institutos, regulados por estatutos jurdicos prprios de acordo com a funo a que visem atender. O direito de propriedade mltiplo, plural, porque, dependendo do interesse tutelado pelo ordenamento, poder atrair disciplinas normativas inteiramente diversas. As diferentes funes a serem exercidas pela propriedade, conforme as caractersticas de seu sujeito ou objeto, fazem incidir sobre ela regras particulares. Assim, por exemplo, o proprietrio tem, em regra, o direito de alterar a coisa sobre a qual recai o seu domnio, mas nega-se igual direito ao proprietrio de coisa em condomnio, salvo se houver permisso de todos os condminos. Muito embora o co-proprietrio seja por si s proprietrio, o direito de alterao da coisa lhe restrito. Outro exemplo se apresenta na chamada propriedade literria, cientfica e artstica, em que a perpetuidade tendencial tpica do domnio desaparece em face do prazo de tutela dos direitos patrimoniais do autor, e o conseqente ingresso da obra em domnio pblico.16 Nestas e em outras situaes17 as disciplinas normativasalterar a estrutura do domnio, inserindo-se em seu profilo interno e atuando como critrio de valorao do exerccio do direito, o qual dever ser direcionado para um massimo sociale." (GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., pp. 281-282). 16 Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, artigos 41 a 44. Ressalve-se que controversa a prpria insero dos direitos autorais na dogmtica do direito de propriedade. Para um histrico das crticas a essa concepo, cf. PIERRE RECHT, Le droit d'auteur: une nouvelle forme de propriet, Gembloux: J. Duculot, 1969, pp. 229-233, e, entre os juristas brasileiros, DARCY BESSONE, Direitos Reais, So Paulo: Saraiva, 1996, 2 ed., pp. 114-118. Em sntese, julgando inadequado o paradigma da propriedade, h autores que optam por considerar o direito do autor como um monoplio; o caso de PLANIOL e JOS DE OLIVEIRA ASCENSO, para quem "o direito de autor (...) no nem uma propriedade e nem um direito real. A obra intelectual, uma vez divulgada, no pode estar sujeita ao domnio exclusivo dum s. Todos desfrutam diretamente deste bem, mas s o titular pode beneficiar economicamente com ele. Tem pois um exclusivo de explorao econmica da obra (...) os direitos sobre bens intelectuais se inserem na categoria dos direitos de exclusivo ou de monoplio" (Direitos Reais, Coimbra: Almedina, 1978, p. 106). Outra corrente advoga a sua incluso numa categoria parte, a dos "direitos intelectuais"; esta foi a proposio de PICARD, seguida, entre ns, por CARLOS ALBERTO BITTAR, para quem os direitos do autor seriam um "direito sui generis, especial ou autnomo, diante de sua natureza desfruta de teoria prpria, que o separa dos demais direitos privados" (Contornos atuais do direito de autor, So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 21). No julgamento do Recurso Especial 89.171-MS, o Min. Fontes de Alencar, relembrando o magistrio de Tobias Barreto, criador da expresso "direito autoral", considerou "no mais apropriado falar-se em propriedade literria, cientfica e artstica. No mais a propriedade intelectual. O nosso tempo retomou a denominao tobiana, e s vezes na forma plural, reacendeu a idia de que o direito autoral insere-se no campo dos direitos pessoais". O referido acrdo foi um dos precedentes invocados quando da

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particulares produzem diferenas to significativas entre os direitos que, a rigor tcnico, talvez no seja possvel atribuir a todos a denominao comum de propriedade. A funo o elemento responsvel pelo surgimento dos estatutos legais diferenciados e pela conseqente "repartio" da propriedade em institutos jurdicos distintos.18 Nem por isso se deixar de atribuir funo da propriedade uma noo essencial, genrica e flexvel, apta a assumir feies distintas em cada "espcie" normativa de propriedade. Basta, para tanto, determinar-lhe o contedo fundamental, e aqui ser preciso retornar, agora em definitivo, idia de insero de interesses sociais no mbito da tutela do domnio. No ordenamento jurdico brasileiro, essa insero se d mesmo por fora dos princpios constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana (Constituio, artigos 1, III, e 3, I e III).19 Oaprovao do verbete n 228 da Smula de Jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, em 1999: " inadmissvel o interdito proibitrio para a proteo do direito autoral". Diante dessas instabilidades conceituais, certeza somente se tem na afirmao de MARIE-ANGLE HERMITTE: "la propriet intellectuelle peut se lire comme l'histoire d'une categorie juridique brise" ("Le rle des concepts mous dans les techniques de djuridicisation: l'exemple des droits intellectuels", Archives de Philosophie du Droit, n. 30, 1985, p. 331). 17 A anlise do ordenamento brasileiro revela uma srie de estatutos jurdicos diferenciados, conforme variem, qualitativa e quantitativamente, o objeto ou o sujeito do domnio. Assim, primeiramente sob o perfil subjetivo, podemos identificar estatutos jurdicos diversos de acordo com o fato de o titular ser ente pblico ou particular (cf. Cdigo Civil, artigo 65, e Constituio da Repblica, artigo 183, 3), ou singular ou plural (cf. Cdigo Civil, artigos 623 a 646). Sob o perfil objetivo, o estatuto jurdico ser distinto conforme se trate de coisa material ou imaterial (cf. Lei 9.610/98), mvel ou imvel (cf. Cdigo Civil, artigos 592 a 622 e 530 a 591), imvel rural ou urbano (cf. Constituio da Repblica, artigos 183 e 182, 4 e 2, e, por outro lado, artigos 191, 184 e 196), pequeno imvel rural ou no (cf. Constituio da Repblica, artigo 191 e Lei 4.504/64, artigo 21), e, por fim, pequena propriedade urbana ou no (cf. Constituio da Repblica, artigo 183). Embora em muitos casos se esteja diante de modos de aquisio, modos de extino, faculdades jurdicas, instrumentos de proteo e at qualidades essenciais totalmente distintas, todos esses estatutos jurdicos so objeto de uma s designao: propriedade. 18 A demonstrao de que no h verdadeira unidade no instituto jurdico da propriedade encontra-se em SALVATORE PUGLIATTI, La Propriet nel Nuovo Diritto, cit., p. 309. O autor assim encerra sua anlise dos estatutos jurdicos proprietrios existentes no direito italiano: "Non ci occorre altro per concludere (e ben altro si potrebbe aggiungere). La risposta al quesito che ci siamo proposti all'inizio sta nell'analisi che abbiamo condotta e potrebbe trovare specifica conferma in quella che altri vorr condurre. Qui in sintesi e a suggello del lungo discorso, possiamo dichiarare che la parola propriet non ha oggi, se mai ha avuto, un significato univoco. Anzi troppe cose essa designa, perch possa essere adoperata con la pretesa di essere facilmente intesi. In ogni caso l'uso di essa, con le cautele e i chiariamenti necessari, anche se si protrarr ancora nel prossimo futuro, non pu ormai mantenere l'illusione che all'unicit del termine corrisponda la reale unit di un saldo e compatto istituto."). 19 Sobre o papel dos princpios da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana como condicionantes da autonomia privada, v. MARIA CELINA BODIN DE MORAES, "Constituio e Direito

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ncleo do conceito de funo (social) da propriedade situa-se, hoje, no condicionamento da tutela do direito do proprietrio realizao dos valores constitucionais, e ao atendimento de interesses no proprietrios considerados socialmente relevantes. 3. Interesses sociais relevantes. Tratamento constitucional da funo social da propriedade. Anlise de decises judiciais. A expresso "interesses sociais relevantes" dotada de certa indefinio, e bem se sabe que ao esprito dos juristas a indefinio aparece quase sempre como uma porta aberta arbitrariedade. Da a tendncia a se estabelecer parmetros objetivos para a especificao do contedo das clusulas gerais e dos conceitos jurdicos abertos ou indeterminados.20 busca de definio mais precisa para esses interesses sociais relevantes deve-se percorrer, como primeiro passo, o direito positivo. No que tange funo social da propriedade, encontram-se previses constitucionais expressas primeiramente no artigo 5, XXIII, em que o Constituinte, logo aps garantir o direito propriedade, declara que "a propriedade atender a sua funo social."21 A funo social aparece tambm no artigo 170, III, entre os princpios da ordem econmica. At aqui, no h, todavia, qualquer indicao que aconselhe ou auxilie a determinao dos interesses sociais que a propriedade funcionalizada deve reverenciar. Essa pretenso encontrarCivil: Tendncias", in Revista Estado, Direito e Sociedade n 15, Rio de Janeiro: Pontifcia Universidade Catlica (Departamento de Cincias Jurdicas), p. 104: "No Estado Democrtico de Direito, o poder do Estado est limitado pelo Direito; mas no s: o poder da vontade do particular, em suas relaes com outros particulares, tambm o est. Limita-o no apenas a eventual norma imperativa, contida nas leis ordinrias, mas, sobretudo, os princpios constitucionais da solidariedade social e dignidade humana que se espraiam por todo o ordenamento civil, infra-constitucional. Evidentemente, permanecem espaos abertos de liberdade mas esta liberdade (autonomia) consentida e j no serve mais a definir o sistema de direito privado." 20 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, "Insuficincias, deficincias e desatualizao do Projeto de Cdigo Civil na questo da boa-f objetiva nos contratos", in Revista Trimestral de Direito Civil, ano 1, vol. 1, Rio de Janeiro: Padma, 2000, p. 11: "Os conceitos jurdicos indeterminados especialmente o bando dos quatro, a que me referi continuam a ser usados, mas, agora, no paradigma de hoje, o ps-moderno, com diretrizes materiais." 21 Benefcio imediato que decorre desse dispositivo a insero da funo social entre as clusulas ptreas, o que, em boa hora, a pe a salvo do nosso obstinado Poder Constituinte Derivado. Cf.

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abrigo apenas mais frente, no artigo 186 do texto constitucional, em que se enumerou expressamente os requisitos para atendimento da funo social da propriedade rural. "Art 186. A funo social cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I aproveitamento racional e adequado; II utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente; III observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho; IV explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores." O mesmo se poder dizer com relao funo social da propriedade urbana, j que a Constituio especifica, em seu artigo 182, 2, que "a propriedade urbana cumpre sua funo social quando atende s exigncias fundamentais de ordenao da cidade expressas no plano diretor". Pode-se concluir que ao menos no que diz respeito propriedade imobiliria, urbana e rural, o Constituinte indica expressamente, nos artigos 182 e 186, interesses sociais relevantes que entende devem ser atendidos pelo titular do direito de propriedade. Entretanto, no apenas a esses interesses sociais que se deve submeter o proprietrio. Os dispositivos constitucionais mencionados acima no podem ser interpretados isoladamente, mas precisam ser lidos luz dos princpios fundamentais da Constituio. A prpria opo axiolgica do Constituinte, privilegiando valores existenciais sobre valores meramente patrimoniais, deve ser levada em considerao na definio do contedo concreto do princpio da funo social da propriedade.22Constituio da Repblica, artigo 60, 4, IV: "No ser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV os direitos e garantias individuais." 22 GUSTAVO TEPEDINO, "O Cdigo Civil, os chamados Microssistemas e a Constituio: Premissas para uma Reforma Legislativa", in Problemas de Direito Civil-Constitucional, Rio de Janeiro:

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Dessa forma, a noo de funo social deve ser informada por valores existenciais e interesses sociais relevantes, ainda que estranhos literalidade dos artigos 182 e 186 da lei fundamental. A anlise das decises judiciais confirma esse entendimento. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, j decidiu que a propriedade imobiliria urbana no cumpre sua funo social quando desrespeita normas municipais de carter urbanstico, ainda que no se trate de exigncias formuladas no plano diretor. "No que concerne ao artigo 5, XXII alegao de ofensa ao direito de propriedade o acrdo deu resposta correta. O que deve ser considerado que a propriedade atender a sua funo social: Constituio Federal, artigo 5, XXIII. Ora, 'o Municpio, ao editar a lei que se l s fls. 40 e seguintes teve por finalidade exatamente atender a esse preceito.' (...) dizer, fundado em convenincias administrativas, razoveis, facultado ao Municpio limitar, no seu territrio, o direito de construir certo que essas limitaes no so exclusivas do plano diretor." 23 A deciso do Supremo Tribunal Federal ainda poderia ser vista como mera interpretao ampliativa do artigo 182, 2, mas outras h que transcendem inteiramente o dispositivo. O Superior Tribunal de Justia, no acrdo em epgrafe, entendeu que hospitais particulares devem atender funo social representada pelo interesse geral sade e ao trabalho, e, portanto, esto compelidos a aceitar oRenovar, 2000, p. 10: "Percebe-se a a diferena fundamental entre a clusula geral admitida pela Escola da Exegese (...) e a tcnica das clusulas gerais imposta pela contemporaneidade, que reclama, necessariamente, uma definio normativa (narrativa) de critrios interpretativos coerentes com a ratio do sistema, voltada para valores no patrimoniais, como quer, no caso brasileiro, o texto constitucional." 23 Recurso Extraordinrio n 178.836-4/SP, julgado em 8 de junho de 1999, trecho extrado do voto do Ministro Carlos Velloso. Votou vencido o Min. Marco Aurlio de F. Mello, sob o argumento de que, conforme o disposto no artigo 174 da Constituio da Repblica, o planejamento urbano meramente indicativo, e no vinculante, para a iniciativa privada. Parece, contudo, que o artigo 174 quer se referir ao planejamento econmico em geral, e no ao planejamento urbano, contemplado especificamente no

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ingresso de mdicos e a internao dos respectivos pacientes em suas instalaes, ainda que esses mdicos sejam estranhos ao seu corpo clnico. "(...) Da que a sentena, baseando-se na funo social da propriedade, e se louvando igualmente, no particular, em prestigiosa doutrina, deu espcie, a meu sentir, correta soluo. Com efeito, no caso de internamento de pacientes, existe interesse maior (do prprio paciente, ou de seu mdico), e olhem que a sade direito de todos embora seja dever do Estado!, interesse que nem sempre h de coincidir com o do proprietrio do hospital privado. (...) o direito aqui nestes autos proclamado no se choca com o direito de propriedade, pois este, em sendo um direito, um direito sujeito a limitaes, ou, noutras palavras, a propriedade privada, mas a sua funo social." 24 Outro exemplo encontra-se em polmica deciso do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, que considerou no cumprir sua funo social propriedade rural que, no obstante produtiva, apresentava dbitos fiscais de natureza federal, mantendo assentadas, por essa razo, as seiscentas famlias carentes que haviam ocupado a rea. A supremacia dos valores existenciais tambm foi invocada como fundamento da deciso. "Prevalncia dos direitos fundamentais das 600 famlias acampadas em detrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de agasalho, casa e refgio do cidado. Inobstantecaptulo intitulado "Da Poltica Urbana", de cujo artigo 182, notadamente 2 e 4, se extrai a obrigatoriedade de observncia do plano diretor pela iniciativa privada. 24 Recurso Especial n 27.039-3/SP, julgado em 8 de novembro de 1993, trecho extrado do voto do Min. Nilson Naves. O pedido autoral encontrou amparo, ainda, na Resoluo n 1.231/86, do Conselho Federal de Medicina, que, em seu artigo 1, assegura a todo mdico o direito de utilizar-se das instalaes de qualquer hospital pblico ou privado, ainda que no faa parte do seu corpo clnico. O recorrente invocou, tambm, os artigos 20 e 25 do Cdigo de tica Mdica, que tipificam o cerceamento de atividade profissional. O proprietrio do hospital, por outro lado, sustentou que as aludidas normas administrativas violavam o seu direito de propriedade, consubstanciado no artigo 524 do Cdigo Civil, que na condio de norma hierarquicamente superior deveria prevalecer. A deciso invocou a funo social da propriedade (artigo 5, XXIII, da Constituio da Repblica), a fim de afastar a pretendida violao ao dispositivo do Cdigo Civil.

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ser produtiva a rea, no cumpre ela sua funo social, circunstncia esta demonstrada pelos dbitos fiscais que a empresa proprietria tem perante a unio."25 Deciso interessante colhe-se tambm no Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, que invocou a funo social para julgar necessria a conformao do direito de propriedade de condmino ao interesse na segurana coletiva, por meio da retirada de fechadura instalada em porta de elevador que conduzia ao seu pavimento. "O direito de propriedade deve se harmonizar com a respectiva funo social (artigo 5, XXIII, da Constituio Federal) e no pode constituir obstculo ao bem estar coletivo. Considerando tambm esse aspecto, a intimao para que se retire fechadura da porta de pavimento, conforme determina o ordenamento positivo que regula a matria, configura ato administrativo de polcia vlido e eficaz, porque editado com o intuito de assegurar a proteo aos usurios dos elevadores e, como conseqncia, de preservar o interesse coletivo em harmonia com a funo social da propriedade."26 Confira-se ainda deciso do Tribunal de Justia do Paran, que encontrou na funo social da propriedade o legtimo fundamento para exigncia de instalao, em bancos comerciais, de bebedouros e sanitrios acessveis aos seus clientes. "Cabe ao municpio a poltica de desenvolvimento urbano e a propriedade urbana exerce funo social em obedincia s exigncias

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Agravo de Instrumento n 598.360.402 - So Luiz Gonzaga, julgado em 6 de outubro de 1998, Rel. Des. Elba Aparecida Nicolli Bastos, trecho extrado da ementa oficial. Para o exame dos aspectos mais polmicos dessa deciso, seja permitido remeter a GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER, "Funo Social da Propriedade e Legalidade Constitucional", in A Luta pela Reforma Agrria nos Tribunais, Porto Alegre: Companhia Rio-Grandense de Artes Grficas, no prelo. 26 Apelao Cvel n 2000.001.09199, registrada em 26 de maro de 2001, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, ementa oficial.

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fundamentais do plano diretor da cidade. A imposio de sanitrios abertos clientela dos bancos atende ao fim social da propriedade"27. Por fim, veja-se a sentena proferida pelo Juzo da 8 Vara da Justia Federal de Minas Gerais, em que a solidariedade social e outros princpios constitucionais serviram de fundamento contra a retirada de diversas famlias alojadas s margens da rodovia BR 116. "(...) enquanto no construir ou pelo menos esboar uma sociedade livre, justa e solidria (CF, art. 3, I), erradicando a pobreza e a marginalizao (art. 3, III), promovendo a dignidade da pessoa humana (art. 1, III), assegurando a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social (art. 170), emprestando propriedade sua funo social (art. 5, XXIII, e 170, III) (...), enquanto no fizer isso, elevando os marginalizados condio de cidados comuns, pessoas normais, aptas a exercerem sua cidadania, o Estado no tem autoridade para dele exigir diretamente ou pelo brao da Justia o reto cumprimento da lei." Em cada uma dessas decises, e em outras que no foram citadas, o que se nota que os tribunais brasileiros tm buscado tutelar, por meio da funo social da propriedade, interesses sociais que transcendem a interpretao literal dos artigos 182, 2, e 186 da Constituio. Nos casos mencionados, interesses sociais em sade, segurana, trabalho e bem estar coletivo, embora no contemplados expressamente nos dispositivos constitucionais especficos, encontraram no princpio da funo social da propriedade um caminho para sua efetivao. Mas pergunta-se: ter sido um caminho vlido? O condicionamento da tutela jurdica da propriedade ao atendimento de interesses sociais distintos daqueles mencionados nos artigos 182 e 186 no consistir em violao da legalidade

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Apelao Cvel 79.573-5 - Londrina, julgada em 28 de setembro de 1999, trecho do voto do Rel. Des. Fleury Fernandes.

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constitucional? Pode o juiz, margem de previso legislativa especfica, eleger os interesses sociais que lhe paream relevantes? 4. Princpios e regras. A funo social como princpio e como regra. Novo standard jurdico das relaes patrimoniais. A resposta a essas indagaes s se pode encontrar, a nosso ver, na clara distino entre as regras e os princpios jurdicos. O reconhecimento do carter normativo dos princpios, conquista da doutrina contempornea, vem a inseri-los definitivamente no gnero das normas jurdicas, de que tambm so espcie as regras. Princpio, em conhecida definio, "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia, exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico".28 A distino entre princpios e regras pode se basear em uma srie de critrios, que vo desde o grau de indeterminabilidade at a finalidade desempenhada no ordenamento jurdico. Pode-se dizer, por exemplo, que (i) os princpios encontram-se imediatamente relacionados com os valores sociais; (ii) os princpios possuem maior grau de generalidade aplicando-se a uma mais ampla variedade de situaes;29 (iii) os princpios so enunciados de forma vaga, enquanto as regras possuem linguagem mais especfica; (iv) os princpios consistem na ratio das regras; (v) princpios antagnicos podem ser ponderados e aplicados a um mesmo caso, enquanto as regras, em caso de antinomia, se excluem; (vi) princpios exercem funo fundamentadora e

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CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, So Paulo: Malheiros, 1994, 5 ed., p. 450. 29 As regras podem ser gerais no sentido de serem aplicveis a um nmero indeterminado de atos ou fatos que podem se enquadrar na situao pr-determinada. A generalidade dos princpios, contudo, mais ampla porque so eles aplicveis a uma srie indefinida de situaes. A lio de JEAN BOULANGER, "Principes Gnraux du Droit et Droit Positif", apud PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, So Paulo: Malheiros, 2001, 11 ed., p. 239.

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estruturante do ordenamento jurdico, e regras destinam-se a regulao especfica; enfim, h, nesta matria, muitos caminhos a seguir.30 Sob qualquer dos critrios se chegar mesma concluso: a funo social da propriedade , por sua natureza, um princpio constitucional. A prpria Constituio assim o confirma em seus artigos 5, XXIII, e 170. Na qualidade de princpio, a funo social se espraia por todo o ordenamento jurdico, moldando as relaes patrimoniais, de forma a submet-las ao atendimento dos valores existenciais. Alm disso, o princpio da funo social da propriedade inspira, fundamenta, serve de ratio para algumas regras jurdicas, entre as quais se incluem aquelas dos artigos 182 e 186 da lei fundamental. A funo social fundamenta esses dispositivos, mas neles no se esgota; permanece incidindo como princpio independentemente da aplicao das regras que inspira. A anlise das decises judiciais revela justamente que os tribunais brasileiros vm abandonando uma postura inicialmente tmida31 para se preocupar cada vez mais com a efetividade e a aplicao do princpio da funo social da propriedade e dos valores constitucionais que, por via dela, se inserem nas relaes de carter30

Para uma distino mais completa, ver J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, Coimbra: Livraria Almedina, 4 ed., p. 1125: "Os princpios interessar-nos-o, aqui, sobretudo na sua qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas das outras categorias de normas, ou seja, das regras jurdicas. As diferenas qualitativas traduzir-se-o, fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princpios so normas jurdicas impositivas de uma optimizao, compatveis com vrios graus de concretizao, consoante os condicionalismos fcticos e jurdicos; as regras so normas que prescrevem imperativamente uma exigncia (impem, permitem ou probem) que ou no cumprida (...); a convivncia dos princpios conflitual (Zagrebelsky), a convivncia de regras antinmica; os princpios coexistem, as regras antinmicas excluem-se. Conseqentemente, os princpios, ao constiturem exigncias de optimizao, permitem o balanceamento de valores e interesses (no obedecem, como as regras, 'lgica do tudo ou nada'), consoante o seu peso e a ponderao de outros princpios eventualmente conflituantes; as regras no deixam espao para qualquer outra soluo, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescries, nem mais nem menos." 31 Exemplo dessa letargia inicial se extrai do acrdo proferido pelo Superior Tribunal de Justia, no mbito dos Embargos de Declarao em Interveno Federal 15/PR, julgados em 17 de dezembro de 1993: "No resta dvida de que a propriedade deve ter funo social. Mas descabe ao Judicirio embrenhar por tais searas. Solucionar tais conflitos se acha unicamente nas mos dos Executivos federal e estadual." Veja-se, ainda, o seguinte trecho do acrdo proferido pelo Tribunal de Alada Civil do Estado de So Paulo, no Agravo Regimental 914.906-4/01, julgado em 1 de maro de 2000: "A ordem jurdica nacional no pode compactuar com tais invases: a reforma agrria deve ser

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patrimonial. Quando as cortes brasileiras utilizam a funo social da propriedade em relao a interesses sociais como sade, trabalho, segurana ou bem-estar coletivo, transcendendo a dico expressa dos artigos 182 e 186, esto, na verdade, se valendo da aplicao direta de um princpio constitucional. No se pode evidentemente limitar a incidncia do princpio anlise literal dos artigos 182 e 186, sob pena de se esvaziar o princpio e se passar a aplicar somente as regras.32 A valorao da conduta do proprietrio a fim de verificar o atendimento aos interesses sociais relevantes ficar a cargo do julgador, que dela se desincumbir com ateno aos valores constitucionais e s circunstncias do caso concreto. Alis, a ampla invocao do princpio da funo social da propriedade nas cortes de todo o pas legitima-se, de plano, como meio de realizao do projeto constitucional, ainda adormecido em larga extenso. As decises judiciais revelam mesmo que a funo social, com seu contedo relativamente indeterminado, vai assumindo o papel de standard jurdico nas relaes patrimoniais,33 comparando-se boa-f nas relaes contratuais e ao melhor interesse da criana nas relaes familiares.34 A comparao, entretanto, deve ser feita cumpromovida pela Unio, segundo as normas constitucionais, sem violncia e ilegalidades, no sendo permitido s pessoas escolherem, a seu bel prazer, qual a rea que dever ser ocupada ou no." 32 O risco de inverso semelhante se apresenta nas relaes entre as normas constitucionais e o Cdigo Civil. Cf., a respeito, GUSTAVO TEPEDINO, "Premissas Metodolgicas para a Constitucionalizao do Direito Civil", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 1-22. 33 O termo transcende deliberadamente as relaes de propriedade. Acerca, por exemplo, da funo social da posse, v. LUIZ EDSON FACHIN, "A funo social da posse e a propriedade", in Revista da Associao Brasileira de Reforma Agrria v. 18, n 1, pp. 77-82. Sobre esse tema, cf. ainda ANTONIO HERNNDEZ GIL, La Funcion Social de la Posesion, Madrid: Alianza Editorial, 1969. No que tange s relaes patrimoniais em geral, seja permitido remeter, mais uma vez, a GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER, "Funo Social da Propriedade e Legalidade Constitucional", in A Luta pela Reforma Agrria nos Tribunais, cit.: "(...) toda atividade econmica privada, tanto na titularidade dominical, quanto no exerccio de quaisquer direitos patrimoniais, encontra-se vinculada aos princpios fundamentais da Repblica, inscritos no Ttulo I da Constituio Federal, que tm como fundamentos, dentre outros, na dico do art. 1o, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa." 34 O standard jurdico da funo social deve ser entendido como elemento interno das relaes patrimoniais, verdadeiro critrio de valorao do exerccio dos direitos envolvidos. Alguns autores, todavia, parecem considerar a funo social como elemento externo, excepcional e meramente programtico. Cf., por exemplo, FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introduo, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 3 ed., pp. 357-358: "(...) a funo social se configura como princpio ordenador da disciplina da propriedade e do contrato, legitimando a interveno do Estado por meio de normas

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granu salis, porque o standard da funo social no encontra a mesma receptividade que a boa-f ou o melhor interesse da criana. Enquanto a esses ltimos standards opem-se situaes jurdicas cuja supresso no esbarra em fortes obstculos culturais (m-f e desconsiderao do interesse do menor), a plena realizao da funo social sofre histrica resistncia oriunda da fora cultural do individualismo proprietrio.35

5. Parmetros objetivos para aplicao do princpio da funo social da propriedade. Conflitos entre valores. Tcnica de ponderao. Impor parmetros objetivos aplicao dos princpios constitucionais necessrio e conveniente. Isso por inmeras razes que vo desde a possibilidade de abuso por parte do Poder Judicirio at os riscos de que a invocao repetitiva e impertinente do princpio acabe por convert-lo em frmula vazia, abandonada incredibilidade e ao esquecimento. Consoante a melhor doutrina, servem de parmetros para a aplicao dos princpios e clusulas gerais os prprios valores consagrados na Constituio.36 O conflito entre regras antagnicas, j se observou acima, resolve-se pela excluso de uma das regras e aplicao da outra, seja porque uma delas foi declarada invlida seja porque recorreu-se a uma das clusulas de exceo previstas no prprio

excepcionais, operando ainda como critrio de interpretao jurdica. A funo social , por tudo isso, um princpio geral, um verdadeiro standard jurdico, uma diretiva mais ou menos flexvel, uma indicao programtica, que no colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exerccio na direo mais consentnea com o bem comum e a justia social" (grifou-se). 35 Cf. PIETRO BARCELLONA, L'individualismo proprietario, Torino: Boringhieri, 1987, sobretudo o captulo intitulado "La metamorfosi del soggetto e il principio proprietario", pp. 78-113. 36 "O legislador contemporneo, instado a compor, de maneira harmnica, o complexo de fontes normativas, formais e informais, nacionais e supranacionais, codificadas e extracodificadas, deve valer-se de prescries narrativas e analticas, em que consagra expressamente critrios interpretativos, valores a serem preservados, princpios fundamentais como enquadramentos axiolgicos com teor normativo e eficcia imediata, de tal modo que todas as demais regras do sistema, respeitados os diversos patamares hierrquicos, sejam interpretadas e aplicadas de maneira homognea e segundo contedo objetivamente definido." (GUSTAVO TEPEDINO, "O Cdigo Civil, os chamados Microssistemas e a Constituio: Premissas para uma Reforma Legislativa", cit., p. 11).

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ordenamento.37 As regras so aplicadas de acordo com a lgica do "tudo ou nada" e, em caso de antinomia, apenas uma delas ser autorizada a influenciar a deciso.38 A coliso de princpios, por sua vez, se resolve no com a excluso ou invalidade de um dos princpios, mas por meio da ponderao dos valores envolvidos. Princpios conflitantes coexistem, porque a sua prpria natureza permite o balanceamento de valores39 e interesses, podendo ambos informar a deciso, cada um em certo grau.40 A ponderao de valores no uma tcnica guiada por uma metodologia precisa, mas a doutrina contempornea tem se esforado por estabelecer critrios mnimos a serem seguidos nesse processo. , por exemplo, amplamente aceita, entre os autores que se ocuparam do tema, a idia de que a tcnica de ponderao no pode resultar na absoluta supresso de um valor em favor de outro. "Como no existe um critrio abstrato que imponha a supremacia de um (valor constitucional) sobre o outro, deve-se, vista do caso concreto, fazer concesses recprocas, de modo a

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Lex posterior derogat priori, lex superior derogat inferiori e lex specialis derogat generali. Os brocardos correspondem aos critrios cronolgico, hierrquico e da especialidade. Alguns autores ressalvam, todavia, que esses critrios no so inteiramente suficientes para a soluo de antinomias. Cf., por todos, NORBERTO BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurdico, Braslia: Universidade de Braslia (UnB), 1999, 10 ed., pp. 91-114. 38 Neste sentido, RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1999, 17 ed., p. 24: "The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to a particular decision about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision." 39 Analisando a doutrina de Robert Alexy, conclui PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 251: "Da posio de Alexy se infere uma suposta contigidade da teoria dos princpios com a teoria dos valores. Aquela se acha subjacente a esta. Se as regras tm que ver com a validade, os princpios tm muito que ver com os valores." 40 Ainda RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, cit., p. 26: "() This first difference between rules and principles entails another. Principles have a dimension that rules do not the dimension of weight or importance. When principles intersect (the policy of protecting automobile consumers intersecting with principles of freedom of contract, for example), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each. This cannot be, of course, an exact measurement, and the judgment that a particular principle or policy is more important than another will often be a controversial one. Nevertheless, it is an integral part of the concept of a principle that it has this dimension, that it makes sense to ask how important or how weighty it is."

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produzir um resultado socialmente desejvel, sacrificando o mnimo de cada um dos princpios ou direitos fundamentais em oposio."41 Da anlise de inmeras decises do Tribunal Constitucional Federal alemo, Karl Larenz extraiu alguns parmetros metodolgicos para a ponderao de valores: "(...) trata-se, em primeiro lugar, de saber se, segundo a ordem de valores contida na Lei Fundamental, se pode estabelecer uma clara prevalncia valorativa de um dos bens aqui em questo face ao outro. Haver que dizer, sem vacilar, que vida humana e, do mesmo modo, dignidade humana corresponde um escalo superior ao de outros bens, em especial os bens materiais. (...) Mas, na maioria dos casos, tratar-se- ou de direitos de igual escalo, por exemplo, de iguais direitos de personalidade, ou de bens cuja disparidade exclui uma comparao abstracta. (...) Ento, trata-se, em primeiro lugar, da medida em que o bem jurdico protegido realmente afectado (...) e, alm disso, do grau de prejuzo que haveria de sofrer um ou outro bem, no caso em que tivesse de ceder face ao outro. Finalmente, tm validade os princpios da proporcionalidade, do meio mais idneo ou da menor restrio possvel."42 O princpio da funo social consubstancia valores existenciais que, privilegiados pelo prprio ordenamento constitucional, devem prevalecer quando em conflito com valores meramente patrimoniais. No obstante, a ponderao entre esses valores h de ser feita sempre com a inteno de garantir a menor restrio possvel a todos eles, e de evitar ao mximo a supresso de um em favor de outro. Exemplo de deciso em que se procedeu ponderao de valores, por meio de concesses recprocas, foi a deciso do Tribunal de Justia de So Paulo que denegou

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LUS ROBERTO BARROSO, "Liberdade de expresso, direito informao e banimento da publicidade de cigarro", in Temas de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 265. 42 KARL LARENZ, Metodologia da Cincia do Direito, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997, 3 ed., pp. 585-586. Cf., entre ns, DANIEL SARMENTO, A Ponderao de Interesses na Constituio Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 96: "Com efeito, na ponderao, a restrio imposta a cada interesse em jogo, num caso de conflito entre princpios constitucionais, s se justificar na medida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivncia do interesse contraposto, (b) no houver soluo menos gravosa, e (c) o benefcio logrado com a restrio a um interesse compensar o grau de sacrifcio imposto ao interesse antagnico."

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ao reivindicatria de terreno urbano sobre o qual j se consolidara determinada comunidade social. Utilizou-se o tribunal dos seguintes argumentos: (i) a retirada fsica de trinta famlias, integradas comunidade, invivel; (ii) os loteamentos e lotes urbanos perderam suas qualidades essenciais, de modo que deve ser considerado perecido o objeto do direito de propriedade; (iii) os reivindicantes e os proprietrios anteriores exerceram o direito de propriedade de forma anti-social, relegando o imvel ao abandono. O direito indenizao foi, todavia, garantido, a fim de no se suprimir inteiramente o valor da iniciativa privada em favor da realizao dos valores existenciais consubstanciados na permanncia daquela comunidade. Houve, portanto, razovel ponderao dos valores em jogo. "No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicados e suas imediaes ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos (...) O jus reivindicandi fica neutralizado pelo princpio constitucional da funo social da propriedade. Permanece a eventual pretenso indenizatria em favor dos proprietrios contra quem de direito."43 6. Efetivao da funo social. A emblemtica questo do IPTU progressivo. A indicao pelo Constituinte de parmetros objetivos para aferio do cumprimento da funo social da propriedade rural e urbana deu-se no sentido de garantir sua efetividade e evitar frustraes semelhantes quelas outrora experimentadas pelo legislador ordinrio.44 Tambm com vistas a garantir a efetividade do princpio da funo social, a Constituio colocou a servio do Poder Pblico uma srie de instrumentos43

Apelao Cvel n 212.726-1/8, julgado em 16 de dezembro de 1994, Rel. Jos Osrio, publicado na Revista dos Tribunais n 723, 1996, pp. 204 e ss.

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destinados coero do proprietrio que no atende aos interesses sociais relevantes. Se alguns desses instrumentos, como a desapropriao,45 j eram conhecidos no direito brasileiro, outros so inteiramente inovadores. o caso, por exemplo, do parcelamento e da edificao compulsrios, institutos de amplo potencial transformador,46 cuja plena aplicao permanecia ainda espera de regulao especfica,47 omisso parcialmente sanada com a recente edio do Estatuto da Cidade.48 Instrumento tambm mencionado pelo Constituinte e que tem gerado infindveis controvrsias nas cortes brasileiras o IPTU progressivo, situado no artigo 182, 4, inciso II. A progressividade aparece tambm no artigo 156, 1, do texto constitucional, nos seguintes termos: "O imposto previsto no inciso I (imposto44

A falta de objetividade normativa j condenara inefetividade a funo social da empresa, mencionada, sem a fixao de parmetros objetivos ou sanes especficas, nos artigos 116 e 154 da Lei das Sociedades por Aes (Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976). 45 Registre-se aqui, por pertinente, a crtica de FBIO KONDER COMPARATO, "Funo Social da Propriedade dos Bens de Produo", in Revista de Direito Mercantil, n 63, So Paulo: Ed. RT, p. 77: "A sano clssica contra o abuso da propriedade particular a expropriao pela autoridade pblica. Mas o regime desse instituto, no Direito brasileiro e ocidental, de modo geral, padece de grave defeito. , na verdade, logicamente insustentvel que a desapropriao, como sano do abuso particular, tenha, legalmente, o mesmo tratamento que a expropriao por utilidade pblica sem abuso do proprietrio. No entanto, a garantia constitucional da propriedade, arrancada a constituintes timoratos ou cmplices, pela presso dos interesses dos proprietrios, iguala ambas as expropriaes na exigncia de prvia e justa indenizao em dinheiro; ou, em se tratando de imveis rurais includos nas reas prioritrias de reforma agrria, na exigncia de justa indenizao (art. 161) que o STF acabou interpretando como correspondente ao valor venal dos imveis (RE 100.045-7/PE). Em termos prticos, a sano do abuso, em tais hipteses, pode redundar em manifesto benefcio econmico do expropriado." 46 Por meio do parcelamento e edificao compulsrios impe-se ao proprietrio do solo urbano mal aproveitado uma prestao de contedo positivo (evidenciando-se a diferenciao entre a funo social e aquelas limitaes administrativas, externas ao domnio e de carter eminentemente negativo). Sobre parcelamento e edificao compulsrios, a lio de RICARDO PEREIRA LIRA, Elementos de Direito Urbanstico, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 167: "J se viu que, no ordenamento atual brasileiro, o no-uso uma faculdade do dominus soli, constituindo esse fato um dos fatores que ensejam a prtica especulativa nos grandes centros urbanos. Em reas previamente definidas em lei municipal, baseada em plano de uso do solo, o no-uso pode deixar de ser uma faculdade desse dominus. (...) Trata-se da possibilidade da criao da propriedade urbanstica acompanhada de uma obrigao propter rem, consistente na obrigao de fazer (parcelar, edificar ou utilizar) sobre o solo, nos termos da lei municipal, baseada em plano de uso do solo". 47 Artigo 182, 4, da Constituio. A exigncia de regulao especfica corroborada pela jurisprudncia: "A matria relativa ao uso, parcelamento e ocupao do solo urbano deve ser regulada atravs de lei, na forma dos artigos 30, I e 182 da Constituio Federal" (Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, Mandado de Segurana n 2000.009.00048, julgado em 2 de maio de 2000).

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predial e territorial urbano IPTU) poder ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da funo social da propriedade". Ambos os dispositivos tratam do IPTU progressivo como instrumento de efetivao da funo social da propriedade urbana. Todavia, enquanto o artigo 182, 2, em sua literalidade, parece vincular a noo de funo social ao atendimento das exigncias do plano diretor, o artigo 156 no traz qualquer especificao nesse sentido, referindo-se apenas genericamente ao "cumprimento da funo social da propriedade". Diante disso, tornou-se necessrio definir se a aplicao do IPTU progressivo era possvel fora da hiptese de violao ao plano diretor. A doutrina dividiu-se entre os que sustentavam que a progressividade apenas poderia ser fixada com base no critrio do artigo 182, 2, (terrenos baldios etc.),49 e aqueles que, ao contrrio, defendiam a ampla incidncia do IPTU progressivo com base em quaisquer critrios que, no entendimento do Poder Pblico, configurassem meio de efetivao da funo social da propriedade (e.g., rea e localizao dos imveis).50

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Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituio Federal, estabelece diretrizes gerais da poltica urbana e d outras providncias. O parcelamento, edificao ou utilizao compulsrios so regulados nos artigos 5 e 6 do Estatuto. 49 Nesse sentido, RICARDO LOBO TORRES, Os Direitos Humanos e a Tributao, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 436-437: "Tanto a progressividade do art. 156, 1, quanto a do art. 182, 4, repita-se, tm a finalidade extrafiscal de assegurar o cumprimento da funo social da propriedade. O imposto poder variar para atingir asperamente os terrenos baldios, os imveis abandonados etc. Mas no poder ser progressivo em razo de caractersticas intrnsecas do imvel ou de aspectos subjetivos, porque implicaria discriminao proibida." 50 TOSHIO MUKAI, "O Imposto Predial e Territorial Progressivo A Funo Social da Propriedade e a Constituio de 1988", in Cadernos de Direito Municipal, Revista de Direito Pblico n 93, pp. 243244: "Para ns, nada autoriza ou obriga interpretao conjugada que se pretende dar aos arts. 156, 1, e 182, 2 e 4 da Constituio. Ao contrrio, por se tratarem de situaes e figuras jurdicotributrias distintas, exigem interpretaes isoladas. (...) A progressividade disposta no 1 do art. 156 da CF sempre existiu, sendo apenas o reconhecimento constitucional desse fato, isto , da utilizao normal do tributo com finalidades extrafiscais, funo de h muito reconhecida aos tributos, no mundo civilizado. J a progressividade no tempo, do inc. II do 4 do art. 182 da CF novidade no texto constitucional, sendo penalidade aplicvel a situaes anormais apenas; e por essa razo, mereceu do constituinte cuidados especiais, tanto que fez depender sua aplicao de lei federal e de lei especfica para que a rea onde for utilizada seja prevista no plano diretor".

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O Supremo Tribunal Federal optou pela orientao mais restritiva ao considerar o IPTU como imposto de natureza real, no sujeito a progressividade com base em qualquer aspecto da capacidade econmica do contribuinte. Segundo a suprema corte, o IPTU progressivo admitido pelo ordenamento constitucional excepcionalmente, e apenas na hiptese de descumprimento do plano diretor, conforme consignado no artigo 182, 2 da lei fundamental. "No sistema tributrio nacional o IPTU inequivocamente um imposto real. Sob o imprio da atual Constituio, no admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, 1, porque esse imposto tem carter real que incompatvel com a progressividade decorrente da capacidade econmica do contribuinte, quer com arrimo na conjugao desse dispositivo constitucional (genrico) com o artigo 156, 1 (especfico). A interpretao sistemtica da Constituio conduz inequivocamente concluso de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do 4 do artigo 182 a explicitao especificada, inclusive com limitao temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, 1. Portanto, inconstitucional qualquer progressividade,em se tratando de IPTU, que no atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, 1, aplicado com as limitaes expressamente constantes dos 2 e 4 do artigo 182, ambos da Constituio Federal." (grifou-se)51 A orientao excessivamente restritiva e no se coaduna com a concepo da funo social como princpio constitucional e standard jurdico das relaes patrimoniais. De fato, a violao ao plano diretor apenas uma das possveis manifestaes contrrias aos interesses sociais que integram e condicionam o direito de propriedade. O artigo 182, 2, representa apenas um parmetro objetivo indicado pelo Constituinte a fim de garantir a efetividade da funo social, mas no pode, de

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Recurso Extraordinrio n 153.771-0, julgado pelo tribunal pleno em 20 de novembro de 1996, Rel. Min. Moreira Alves, ementa oficial.

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maneira alguma, ser considerado como definio taxativa de seu contedo, mesmo porque a funo social princpio constitucional informado por valores existenciais da mais variada ordem, e sua aplicao direta no pode ser limitada pela incidncia das eventuais regras que inspire. certo que o IPTU progressivo deve ser instrumento de carter excepcional e que sua incidncia deve ficar limitada quelas hipteses em que se configura a finalidade de garantir o cumprimento da funo social. Da no se infere, entretanto, que deva ficar limitado aos casos de violao ao plano diretor. A observncia das exigncias de ordenao urbanstica critrio objetivo dirigido efetividade da funo social, mas no a funo social. Concluso diversa somente se atinge por meio de uma interpretao isolada e literal do artigo 182, 2, em total desateno aos demais dispositivos constitucionais, notadamente aos artigos 5, XXIII, e 170, III, que se tornariam inteis (com relao propriedade urbana) se o contedo do princpio se esgotasse na violao s normas do plano diretor. Se a doutrina tem se preocupado com a fixao de parmetros objetivos para a efetivao dos princpios e clusulas gerais, certo que no pode igualmente descuidar do risco de que esses parmetros acabem, em uma grave inverso metodolgica, sendo tomados como taxativa especificao do contedo dessas normas que tm, entre suas principais caractersticas, justamente o alto grau de generalidade de seus enunciados. No caso especfico do IPTU, diversas leis municipais, editadas em sua maioria antes de 1988, autorizavam os Municpios a empregar a progressividade com base na rea e na localizao dos imveis tributados.52 H aqui, na verdade, aspectos bastante distintos a demandarem tratamento e soluo diferenciados: se a localizao do imvel no parece, a princpio, critrio justificado para a cobrana do tributo progressivo, a sua rea , por outro lado, critrio que se legitima em face mesmo das dificuldades de acomodao do contingente humano que se amontoa nos grandes52

Ver, por exemplo, Lei 914/84 do Municpio do Rio de Janeiro.

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centros urbanos. A concentrao excessiva gera no raro a marginalizao de comunidades inteiras, relegadas s encostas de morros e a terrenos de geografia pouco hospitaleira, mas prximos dos principais ncleos de desenvolvimento. A cobrana do IPTU progressivo com base na rea do imvel guarda, portanto, ntima relao com a funo social da propriedade urbana, no representando instrumento de punio dos grandes proprietrios, mas to-somente forma razovel de repartio dos custos sociais. Com o tributo progressivo, assegura-se a propriedade privada sob extensas reas urbanas, ao mesmo tempo em que se financia o atendimento aos valores existenciais das populaes marginalizadas, tudo em plena consonncia com os princpios da solidariedade social e da realizao da dignidade humana. Atento a essas razes, o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, mesmo aps a manifestao do Supremo Tribunal Federal, considerou constitucional lei que institua a progressividade de acordo com o valor venal do imvel, em deciso de cuja ementa se extrai o seguinte trecho: "A adoo de alquotas diferenciadas e progressivas para clculo de IPTU, tendo por base o valor venal do imvel e na forma estabelecida em lei, no inconstitucional e cumpre a funo social da propriedade".53 A incidncia do IPTU progressivo com base na rea do imvel, no seu valor venal, ou em outros critrios capazes de garantir o cumprimento da funo social da propriedade urbana, evidentemente no exclui a sua aplicao aos casos de descumprimento das exigncias de ordenao urbanstica, nos termos do artigo 182. Nesse particular, o Presidente da Repblica sancionou recentemente (10 de julho de

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Apelao Cvel n 598321107, julgada em 21 de outubro de 1999. Nada obstante, os tribunais estaduais tm, de uma forma geral, seguido o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Cf. deciso do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, na Apelao Cvel 2000.001.07385, registrada em 13 de setembro de 2000: "O plenrio do Egrgio Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que o IPTU, como imposto de natureza real que , no pode variar segundo a presumvel capacidade contributiva do sujeito passivo, sendo a nica progressividade admitida pela Constituio Federal de 1988 a extrafiscal (artigo 182, 4, II), destinada a assegurar o cumprimento da funo social da propriedade. A segunda Turma do Egrgio Supremo Tribunal Federal, em recente acrdo, proclamou que o artigo 67 da Lei n 914/84, do Municpio do Rio de Janeiro, que instituiu a progressividade do IPTU levando em conta a rea e a localizao dos imveis fatos que revelam a capacidade contributiva no foi recepcionado pela Carta Federal de 1988."

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2001) o Estatuto da Cidade,54 que, entre outras medidas, regula a aplicao do IPTU progressivo aos terrenos no construdos, objeto de especulao imobiliria. Com o Estatuto da Cidade, os proprietrios de imveis urbanos no construdos e situados em rea afastada passam a estar sujeitos, ano a ano, cobrana de alquotas crescentes de IPTU.55 A inovao representa inegvel conquista no campo da efetividade da funo social da propriedade urbana. 7. Concluses. (i) Os institutos jurdicos se decompem em dois elementos: estrutura e

funo. A funo, consistindo no interesse tutelado pelo ordenamento, se erige em elemento caracterizador do instituto jurdico, sendo capaz de moldar-lhe a estrutura. (ii) A necessidade do ordenamento de tutelar interesses distintos por meio

das diferentes manifestaes do domnio acaba gerando a elaborao de estatutos jurdicos to diferenciados que resultam em uma verdadeira "fragmentao" do instituto jurdico da propriedade. No obstante essa multiplicidade de funes (e a conseqente multiplicidade de propriedades), possvel identificar um ncleo essencial ao conceito de funo da propriedade, que, hoje, pode ser situado no condicionamento da tutela do domnio verificao de atendimento aos interesses sociais relevantes e, de forma mais ampla, aos valores consagrados no texto constitucional. (iii) O termo funo social corresponde, portanto, a essa insero de

interesses sociais no mbito da tutela da propriedade, que, com isso, deixa de ser encarada como direito tendencialmente absoluto, para se constituir em situao jurdica subjetiva complexa, composta de direitos, nus, deveres, obrigaes. A funo social serve, mais, de fundamento, de verdadeira causa legitimadora da

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Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, sobretudo artigo 7. Cf. artigos 7 e 8, caput, do Estatuto.

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propriedade privada, a qual se legitima por meio do atendimento aos interesses sociais. (iv) Esses interesses sociais no so apenas os mencionados nos artigos 182

e 186 da Constituio, mas incluem tambm quaisquer interesses voltados realizao dos valores constitucionais, notadamente os de natureza existencial, que no ordenamento brasileiro gozam de inegvel primazia em relao aos valores patrimoniais. Os artigos 182 e 186 contm to-somente parmetros objetivos para a verificao do cumprimento do princpio da funo social, parmetros esses previstos pelo Constituinte como meio de garantir a efetividade da funcionalizao do domnio, e no no intuito de determinar taxativamente o seu contedo, o que seria incompatvel com a prpria noo de princpio. (v) Os tribunais brasileiros tm procedido a uma ampla aplicao do

princpio da funo social como critrio qualificativo da conduta do proprietrio em face dos interesses sociais e dos valores constitucionais envolvidos, utilizando-o como verdadeiro standard jurdico das relaes patrimoniais, equiparvel boa-f nos contratos e ao melhor interesse da criana nas relaes familiares. (vi) Como princpio, a funo social se irradia pelo sistema, informando

outras normas e servindo de critrio para sua interpretao e integrao, sem embargo da sua aplicabilidade direta. Os valores existenciais tutelados pelo princpio da funo social esbarram ocasionalmente com outros valores, que lhes so contrapostos. A tcnica de ponderao de valores antagnicos deve evitar a supresso de um valor em favor de outro. , todavia, de se reconhecer que os valores existenciais devem prevalecer sobre os valores patrimoniais, conforme se extrai da prpria tbua axiolgica consubstanciada na Constituio. (vii) Algumas decises judiciais j vm, inclusive, revelando a aptido do

Poder Judicirio brasileiro para a ponderao dos valores envolvidos nos conflitos relativos propriedade. Ao mesmo tempo em que asseguram o atendimento aos

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valores existenciais, inequivocamente superiores, alguns tribunais garantem aos proprietrios direito indenizao pela limitao ou supresso do domnio. (viii) Ainda no intuito de atribuir efetividade funo social, a Constituio coloca disposio do Poder Pblico determinados instrumentos de coero (parcelamento e edificao compulsrios, desapropriao etc.), dentre os quais se destaca o IPTU progressivo, cuja incidncia no deve ser limitada hiptese de violao ao plano diretor (artigo 182, 2). O IPTU progressivo instrumento de efetivao da funo social e deve, como tal, ser aplicado a qualquer situao em que a realizao dos valores existenciais esteja sofrendo injustificada restrio em virtude da atuao de interesses de natureza meramente patrimonial. Em matria de funo social da propriedade, preciso concluir que, de uma forma geral, a atuao dos tribunais brasileiros tem estado em sincronia com a recente evoluo doutrinria. Embora a f nos juzes seja, na lio de Calamandrei, o primeiro requisito de um advogado,56 no a crena imotivada na atuao do Poder Judicirio o sustentculo dessa concluso. Os tribunais brasileiros encontram-se, de fato, atentos nova imagem do direito de propriedade que vai se desenhando no espao entre um capitalismo autofgico e um socialismo radical: um novo direito de propriedade, um direito de propriedade legitimado porque cumpridor dos interesses sociais e dos valores existenciais consagrados pelo ordenamento jurdico. Esse novo paradigma, essa nova forma de pensar a propriedade pode ser extrada das decises judiciais mencionadas acima ou das lies doutrinrias mais recentes. A verdade, contudo, que, nem nestas nem naquelas, se encontrar a idia com a fora e a clareza que acompanharam as palavras simples do socilogo Herbert de Sousa: "A terra era grande e a vida pequena. Inicial. A vida foi crescendo e a terra ficando menor, no pequena. Cercada, a terra virou sorte de alguns e desgraa de tantos. (...) A terra e a cerca (...) A democracia esbarrou na cerca e se feriu nos seus

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PIERO CALAMANDREI, Eles, os Juzes, vistos por um Advogado, So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 1.

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arames farpados. (...) Mas tanta (a terra), to grande, to produtiva, que a cerca treme, os limites se rompem, a histria muda e ao longo do tempo, o momento chega para pensar diferente."57

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HERBERT DE SOUSA, Carta da Terra.

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