Fundamentos da Teoria Literária

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Fundador e Presidente do Conselho de Administração: Janguê Diniz Diretor-Presidente: Jânyo Diniz Diretor de Inovação e Serviços: Joaldo Diniz Diretoria Executiva de Ensino: Adriano Azevedo Diretoria de Ensino a Distância: Enzo Moreira Créditos Institucionais Todos os direitos reservados 2020 by Telesapiens Fundamentos da Teoria Literária

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Fundador e Presidente do Conselho de Administração: Janguê Diniz

Diretor-Presidente: Jânyo Diniz

Diretor de Inovação e Serviços:Joaldo Diniz

Diretoria Executiva de Ensino:Adriano Azevedo

Diretoria de Ensino a Distância:Enzo Moreira

Créditos Institucionais

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Fundamentos da Teoria Literária

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A AUTORATALITA JORDINA RODRIGUES

Olá. Meu nome é Talita Jordina Rodrigues. Sou mestra em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual. Além disso, já cursei duas graduações: a primeira foi em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo e a segunda foi em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa. Sigo sendo estudante, estou prestes a concluir mais uma graduação, dessa vez em Filosofia. Atuei como jornalista em redações de rádio e de televisão por seis anos. Também fui produtora cultural, tendo produzido projetos nas áreas de Literatura, Cinema e Comunicação. Já ganhei dois prêmios literários e dirigi um documentário audiovisual chamado Do tacho à mesa. Como pesquisadora, já publiquei dois livros didáticos e diversos artigos em revistas científicas da área das Letras.

Sou apaixonada pelo que faço e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso, fui convidada pela Editora Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo!

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ICONOGRÁFICOSEsses ícones que irão aparecer em sua trilha de aprendizagem significam:

OBJETIVOBreve descrição do objetivo

de aprendizagem; +

OBSERVAÇÃOUma nota explicativa sobre o que acaba de

ser dito;

CITAÇÃOParte retirada de um texto;

RESUMINDOUma síntese das

últimas abordagens;

TESTANDOSugestão de práticas ou

exercícios para fixação do conteúdo;

DEFINIÇÃODefinição de um

conceito;

IMPORTANTEO conteúdo em destaque precisa ser priorizado;

ACESSELinks úteis para

fixação do conteúdo;

DICAUm atalho para resolver

algo que foi introduzido no conteúdo;

SAIBA MAISInformações adicionais

sobre o conteúdo e temas afins;

+++EXPLICANDO DIFERENTE

Um jeito diferente e mais simples de explicar o que acaba de ser explicado;

SOLUÇÃOResolução passo a

passo de um problema ou exercício;

EXEMPLOExplicação do conteúdo ou

conceito partindo de um caso prático;

CURIOSIDADEIndicação de curiosidades e fatos para reflexão sobre

o tema em estudo;

PALAVRA DO AUTORUma opinião pessoal e

particular do autor da obra;

REFLITAO texto destacado deve

ser alvo de reflexão.

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SUMÁRIOIntrodução aos Gêneros Clássicos .....................................10

A Tríade Clássica .............................................................. 10

O Gênero Lírico: O Poema e suas Características ............. 18

O Drama: As Características e os Principais Representantes ....................................................................27

A Epopeia: Origem e Principais Obras .............................37

Os Principais Gêneros Modernos (o Romance, o Conto, a Crônica) ...............................................................................46

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UNIDADE

02Fundamentos da Teoria Literária

LIVRO DIDÁTICO DIGITAL

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Se você é um leitor frequente, apaixonado pelos livros, provavelmente já ficou em dúvida quanto ao gênero de uma obra. Isso ocorre porque a Literatura é uma arte e, como todas as artes, ela não tem uma regra fixa, fechada, inalterável. Pelo contrário: as artes em geral costumam subverter todas as regras, e essa é, inclusive, uma das características pelas quais distinguidos a arte de outras categorias do mundo. É claro que não se trata de uma coisa completamente anárquica. Podemos dizer que a literatura, assim como as outras artes, têm alguns parâmetros, algumas balizas, e é justamente alguns desses parâmetros que veremos nesta unidade.

Vamos começar?

INTRODUÇÃO

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Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 2. Nosso propósito é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes objetivos de aprendizagem até o término desta etapa de estudos:

OBJETIVOS

Explicar a tríade clássica e o gênero lírico.

Explicar o gênero dramático.

Explicar o gênero épico.

Explicar os principais gêneros literários modernos.

Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao conhecimento? Ao trabalho!

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Introdução aos Gêneros Clássicos

OBJETIVO

Ao final desta unidade, você será capaz de distinguir os gêneros clássicos da literatura: lírico, dramático e épico. Também conhecerá algumas das obras clássicas pertencentes a essa “tríade” tão importante para a arte literária. Além disso, você verá alguns gêneros que surgiram somente a partir da Modernidade, mais precisamente da invenção de Gutemberg: a imprensa. Dentro desse universo, você também terá contato com diversos exemplos para poder apreciar. A partir de todos esses estudos, você conseguirá perceber elementos específicos de textos específicos e os relacionará com algum gênero da Literatura.

A Tríade ClássicaAntes de entrarmos efetivamente em cada um dos gêneros,

é importante que você compreenda o que motivou os capítulos desta unidade. A lírica, o drama e a epopeia constituem aquilo que costumamos chamar de “tríade clássica” quando falamos de gêneros literários, porque esses eram os gêneros que se podia encontrar já na Antiguidade Clássica Grega, embora naquela época ainda não se usasse precisamente esses termos. E são esses os três gêneros principais que constituem uma espécie de guarda-chuva capaz de abarcar qualquer outro gênero que viria a ser inventado posteriormente. Esses gêneros guardam uma característica intimamente ligada à Antiguidade, bastante relacionada ao contexto Grego Clássico: a marca de oralidade.

Você deve lembrar que, na primeira unidade, discutimos a ideia recorrente de relacionar a literatura com os textos

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impressos, não é mesmo? Desconstruímos essa ideia ao lembrar que existe também a literatura oral e que ela foi extremamente popular em um contexto em que a escrita e a leitura ainda não eram popularizadas. É o caso da Grécia Antiga, a principal referência dos primórdios da epopeia, da lírica e do drama.

Figura 1 : Grécia Antiga

Fonte:@pixabay

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Como já estudamos, os textos literários na Antiguidade eram encenados, recitados ou cantados junto a melodias. Pouquíssima coisa era lida individualmente. Isso porque até mesmo o hábito de leitura individual é algo que se relaciona mais à Modernidade. Imagine se acomodar em um lugar confortável e tranquilo, abrir um livro e começar a ler em silêncio. Pois bem! Esse é um hábito que não combina com a Grécia Antiga, nem com outros contextos anteriores à Era Moderna. Basta lembrarmos que até mesmo a questão da individualidade é algo bem mais recente. Sendo assim, é muito importante que você tenha em mente qual era a maneira com que as pessoas se relacionavam com a arte da escrita nos primórdios da literatura e da divisão dos gêneros literários.

SAIBA MAIS

Você sabia que antes da invenção da imprensa, no século XV, não existiam livros impressos? A única forma de reproduzir um texto era copiando-o à mão, o que era praticamente inviável com textos muito longos. Além disso, se o livro fosse mesmo importante a ponto de alguém se dedicar a copiá-lo à mão, ele circularia entre pouquíssimas pessoas, já que a maioria não sabia ler. Na Idade Média, por exemplo, alguns monges exerciam a função de “escribas” e passavam dias e dias copiando manualmente textos importantes. Nessa época, o “formato” das obras também era diferente: em geral, eram escritas em papiro e enroladas em longas folhas.

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Dessa maneira, pensaremos a partir de agora em três gêneros bastante antigos que não precisavam necessariamente do instrumento livro para existirem, e que mesmo sem a reprodução em ampla escala conseguiram sobreviver com o passar do tempo. Os nomes de que trataremos aqui são: lírica, epopeia e drama, mas provavelmente você já deve conhecer ao menos dois deles por outros nomes. Para resumir, a lírica é o que hoje chamamos de “poesia”, e o drama é o que chamamos de “teatro”. Exatamente! A lírica é o que costumamos chamar de poesia e tem características bem próprias, principalmente no que diz respeito à forma. Parece fácil identificar um poema, não é mesmo?

Em relação ao drama, ele é usado para se referir de maneira geral ao texto escrito para ser encenado no teatro. Esse também é facilmente identificado por qualquer estudante, já que ele contém o que chamamos de “rubricas”, que são apontamentos sobre determinadas ações em uma cena. Já a epopeia, também conhecida como gênero épico, é um tipo de narrativa mais antiga que não sobreviveu ao tempo da mesma forma que os outros dois, e com a qual temos um pouco menos de contato hoje em dia.

Aprofundaremos todos esses detalhes logo em seguida, mas por ora é importante você saber que até mesmo essa definição de “tríade” não surgiu na Grécia Antiga. Embora Platão e Aristóteles, assim como Horácio e Longino, tenham discorrido sobre os gêneros literários, eles ainda não eram tão bem definidos quanto passaram a ser posteriormente. Você deve se lembrar, como vimos na unidade anterior, que nem mesmo a palavra “literatura” aparece na obra Poética de Aristóteles, ele se refere a algo que ainda não tinha nome. Alguns termos, portanto, foram sendo discutidos com o passar do tempo, e essa tríade, como estamos chamando aqui, foi oficialmente instituída no campo dos estudos literários a partir de um movimento chamado Romantismo alemão.

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SAIBA MAIS

O Romantismo alemão foi um movimento que englobou as ciências e as artes e que tinha a intenção de se voltar contra o racionalismo excessivo instituído pelo Iluminismo. O movimento deu grandes contribuições para a literatura e para a teoria literária. Alguns dos principais nomes do Romantismo alemão são os teóricos August e Friedrich Schlegel, o poeta Novalis, o escritor Goethe, assim como os compositores musicais Beethoven e Brahms.

Figura 2 : Caminhante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich

Fonte: https://bit.ly/30zWkeD

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É no contexto do Romantismo Alemão que surge a teoria que fundamenta toda essa ideia de tríade clássica de que estamos tratando aqui. Vejamos o que o teórico Gerárd Genette diz sobre esse surgimento:

A gloriosa tríade vai dominar toda a teoria literária do romantismo alemão – logo, muito para além dele – mas não sem sofrer por seu turno algumas novas rein-terpretações e mutações internas. Friedrich Schlegel, que abre aparentemente o fogo, conserva ou reencon-tra a repartição platônica, mas dá-lhe uma significação nova: a “forma” lírica, escreve ele pouco depois [...] em 1797, é subjetiva, a dramática é objetiva, a épica é subjetiva-objetiva. (GENETTE, 1987, p. 54-55)

Como comenta Genette, os românticos alemães, ao consolidarem a ideia de tríade dos gêneros literários, aproveitam para fazer uma importante distinção que se relaciona às ideias de subjetividade e de objetividade. Seguindo esse pensamento do representante do Romantismo alemão, Friedrich Schlegel, uma diferenciação inicial seria:

Quadro 1 : Concepções de Friedrich Schlegel

Lírica (gênero lírico) SubjetivaDrama (gênero dramático) ObjetivoEpopeia (gênero épico) Subjetiva-objetiva

Fonte: Elaborado pela autora (2020)

O Romantismo alemão dá, então, o pontapé inicial da teoria dos gêneros literários como conhecemos hoje. Seus autores também antecipam a distinção dos três principais gêneros a partir de questões de objetividade e de subjetividade, discussão bastante presente no período moderno.

Mas, além dessa forma de distinção, é necessário observar que cada um dos gêneros pode ser visto de maneiras diferentes. Para Anatol Rosenfeld, devemos pensar nos gêneros lírico, dramático e épico a partir de duas categorias:

1. Do ponto de vista do substantivo.

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2. Do ponto de vista do adjetivo.Esses dois termos, substantivo e adjetivo, são emprestados

da gramática e refletem duas das classes de palavras que utilizamos na língua. O substantivo, como você deve se lembrar, é aquilo que dá nome às coisas do mundo. Já o adjetivo é o que qualifica as coisas do mundo. Assim, o que Rosenfeld quer dizer quando distingue o caráter substantivo e o caráter adjetivo dos gêneros é que eles podem ser compreendidos tanto como uma coisa do universo, ou seja, um tipo de texto, quanto como uma qualidade de outras coisas do mundo, ou seja, um traço estilístico. Para resumir:

Quadro 2 : Como se deve pensar os gêneros, segundo Anatol Rosenfeld

Caráter substantivo o texto em si, a coisa do mundo.Caráter adjetivo um traço estilístico.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

EXPLICANDO DIFERENTE+++

Se você observar um serviço de streaming, por exemplo, a Netflix, verá que os filmes estão divididos por gêneros como terror, romance, comédia e assim por diante. Mas se observar a divisão de gêneros em uma livraria, vai ver que algumas nomenclaturas se repetem, mas não dizem respeito à mesma coisa. Isso ocorre porque, em geral, a classificação de gênero no cinema tem a ver mais com o caráter adjetivo, ou seja, com o conteúdo do filme. Um filme de romance, por exemplo, apresenta, em alguma medida, uma história de amor, mas se você buscar um romance em uma livraria, encontrará obras que falam de uma infinidade de assuntos, desde guerras até casos sobrenaturais. Carrie, a estranha, de Stephen King, é um romance do ponto de vista da literatura, mas do ponto de vista do cinema, “Carrie, a estranha” é um filme de terror.

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Figura 3 : Carrie, a estranha

Fonte: https://bit.ly/3iCv7xQ

Essas perspectivas, adjetiva e substantiva, dos gêneros não são, naturalmente, elementos capazes de nos dar conceitos completamente diversos sobre um mesmo gênero. Sobre isso, Rosenfeld explica:

Costuma haver, sem dúvida, aproximação ente gênero e traço estilístico: o drama tenderá, em geral, ao dramático, o poema lírico e a Épica (epopeia, novela, romance) ao épico. No fundo, porém, toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. (ROSENFELD, 1985, p. 18)

Quer dizer, mesmo havendo duas formas de pensar o gênero lírico, por exemplo, elas se complementam. De um lado falamos de um texto lírico porque ele pertence mesmo ao gênero lírico, e de outro falamos de um texto lírico porque, embora pertença a outro gênero, ele tem como uma de suas características o lirismo.

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O Gênero Lírico: O Poema e suas Características

Comecemos a pensar o gênero lírico a partir das categorias propostas por Rosenfeld. Nesse caso, veremos que, do ponto de vista substantivo, falaremos da lírica, ou seja, da poesia, do poema. Por outro lado, sob a perspectiva adjetiva, pensaremos nos traços estilísticos líricos, que podem ser encontrados no interior de textos de diversos gêneros. Se olharmos um dicionário, veremos que uma das definições para o termo “lírico” trata justamente de seu caráter adjetivo:

DEFINIÇÃO

Lírico (adj.): que exprime sentimentalismo.

Ora, como já mencionamos, um texto pode demonstrar algum lirismo mesmo não pertencendo ao gênero lírico, porque estamos tratando de um adjetivo, ou seja, de uma característica, de uma qualidade.

Figura 4 : A expressão do sentimentalismo é o que caracteriza o lirismo

Fonte: https://bit.ly/2StOTB7

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A partir dessa ideia, chegamos também à classificação que Friedrich Schlegel elaborou para os gêneros clássicos. Segundo ele, o gênero lírico é aquele que está mais próximo da subjetividade, como vimos no capítulo anterior. Pois bem! Agora você deve compreender melhor o que Rosenfeld explicava quando dizia que o “adjetivo lírico” estava também contido no “substantivo lírico”, isto é, o lirismo enquanto adjetivo é uma categoria inerente à lírica, ou seja, uma característica do texto considerado pertencente ao gênero lírico. Esse lirismo nada mais é do que aquilo que Schlegel chama de subjetividade.

A partir desse diálogo entre a ideia de lirismo e de subjetividade, podemos caracterizar inicialmente um texto lírico como uma “manifestação verbal imediata de uma emoção ou de um sentimento” (ROSENFELD, 1985, p. 22). Essa manifestação está muito ligada ao que se costuma chamar de “eu lírico”.

DEFINIÇÃO

Eu lírico: voz que expressa a subjetividade do poeta ou do personagem do poema a partir de suas vivências e experiências.

É bom ressaltar que a expressão do sentimento do autor do texto e a de quem está falando no poema podem ser completamente diferentes, porque nem sempre eles são a mesma pessoa, em geral, distinguem-se pelas categorias de autor e de narrador, o que veremos na próxima unidade. Um poema pode ser escrito em primeira pessoa por um homem, por exemplo, mas expressar os sentimentos de uma suposta mulher, uma espécie de personagem. Dessa maneira, o eu lírico sempre será a expressão do sujeito que fala em primeira pessoa no poema, independentemente de ele coincidir ou não com o autor do

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poema. Quando passarmos a tratar das formas narrativas, você verá que essa diferenciação fica cada vez mais “objetiva”, para usar um termo de Schlegel.

Exemplo: Você já deve ter ouvido algumas músicas românticas que fazem parte do gênero sertanejo no Brasil. Se notar, há nessas músicas a presença marcante de um eu lírico, de um sujeito que está expressando seus sentimentos a partir de suas experiências. Você já deve ter percebido também que nem sempre as experiências cantadas refletem a vida pessoal dos cantores ou dos compositores das canções. É claro que em alguns casos, o artista escreve sobre o que realmente aconteceu em sua vida e sobre aquilo que ele mesmo está sentindo, mas em muitos casos ele adota um outro eu lírico, uma espécie de personagem que viveu e sentiu outras coisas.

Dessa forma, podemos sintetizar que a marca da subjetividade é uma das características que Rosenfeld atribuiria à lírica enquanto categoria substantiva. Essa característica pode ser explicada principalmente pela presença constante do eu lírico, aquele que expressa suas emoções particulares, individuais e subjetivas a partir de suas experiências.

No entanto, além dessa característica inicial, um texto do gênero lírico também é composto por diversos outros elementos. Segundo Yves Stalloni, os elementos mais frequentes na lírica são:

�O verso. �A imagem. �A prosódia. �A intransitividade.

O verso é o elemento diretamente ligado à forma de um texto lírico, é o que nos faz reconhecer rapidamente um poema. Para simplificar ainda mais, de um modo geral, o verso é uma espécie de frase ou de organização frasal. Pensando na

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organização de um poema escrito ou impresso, quando um poeta termina um verso, ele parte para a linha seguinte, escrevendo assim outro verso. No verso estão contidas a métrica e o ritmo, dois elementos extremamente importantes. É por causa desses dois elementos que cada verso, quando lido em voz alta, por exemplo, soa tão bem aos nossos ouvidos. A métrica é a medida interna de um verso, isto é, a contagem de sílabas que o compõem, e é de acordo com essa medida que se observa o ritmo do verso e, logo, do poema.

SAIBA MAIS

A contagem de sílabas de um poema é diferente da contagem de sílabas de um texto em prosa, como chamamos os textos que não são escritos em verso. Na escola você provavelmente aprendeu a separar palavras em sílabas, mas esse tipo de separação não serve para a contagem métrica de poema. No caso das sílabas poéticas considera-se, por exemplo, o som formado pela junção de uma letra ao final de uma palavra e uma letra no começo de outra palavra.

A imagem é outro elemento que caracteriza um texto lírico. Segundo Yves Stalloni, “a poesia, como outras formas literárias, é uma arte mimética, cuja particularidade consiste em representar a realidade por vias oblíquas, através de figuras” (STALLONI, 2007, p. 142).

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Figura 5 : O cérebro costuma reproduzir imagens do que estamos lendo

Fonte:@freepik

Isso quer dizer que, quando estamos lendo um poema, é natural que se formem imagens em nossa cabeça, mas obviamente não é qualquer tipo de imagem, elas são, na verdade, imagens que muitas vezes somente a poesia ou a literatura em geral é capaz de produzir. Isso ocorre porque essas imagens são produzidas na poesia a partir do uso de figuras de linguagem como metáforas, metonímias e outras formas de comparação.

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EXEMPLO

Soneto da fidelidadeDe tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes (1946)

O poema acima é um dos mais famosos da literatura brasileira, principalmente os dois últimos versos. Quando Vinicius de Moraes diz “que não seja imortal, porto que é chama”, ele está comparando o amor ao fogo, e isso produz em nossa cabeça a imagem de uma chama de uma vela, por exemplo. Notamos, assim, que a imagem do amor para o autor é a imagem de algo ardente e intenso como é o fogo, mas ao mesmo tempo algo que naturalmente se apaga um dia, como é a chama.

A prosódia é outra característica do texto lírico. Ela está ligada à sonoridade, à musicalidade, ao som, e diz respeito à forma como são pronunciadas as palavras, de acordo com seu acento ou com sua entonação. A organização desses acentos em

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um verso produz ritmo e musicalidade. Para entender melhor, procure na internet o poema Trem de ferro, de Manuel Bandeira, e leia o texto em voz alta. Depois releia de uma maneira mais acelerada. Você verá que o próprio ritmo do poema nos remete ao som de uma viagem de trem.

SAIBA MAIS

No seu surgimento, o gênero lírico era, na verdade, uma espécie de canto. A musicalidade, então, sempre manteve uma ligação estreita com a poesia. Até mesmo o nome “lírica” está relacionado à música, já que vem da palavra “lira”, um instrumento musical muito popular na Antiguidade. Outro dado que denuncia essa relação entre poesia e música é que o deus grego Apolo era considerado o representante dos músicos e dos poetas.

Figura 6 : Apolo, o deus grego da música e da poesia

Fonte: https://bit.ly/3lgnAGH

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A intransitividade é a última característica apresentada por Yves Stalloni para o gênero lírico. Esse elemento dialoga com a função poética da linguagem, teoria elaborada por Roman Jakobson que vimos na Unidade 1. Quer dizer, o texto lírico tem maior incidência da função poética da linguagem, por isso, ele se difere completamente de outras situações cotidianas de comunicação.

ACESSE

O livro de poemas mais popular de todos os tempos chama-se Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, do poeta chileno Pablo Neruda. O curioso dessa obra magistral do escritor que ganhou o Prêmio Nobel é que ela foi escrita quando ele ainda tinha cerca de 17 ou 18 anos. Neruda sempre soube que seria escritor e, por isso, começou muito cedo a trabalhar em seus textos. Depois de pronto, o livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada foi publicado quando Neruda tinha 20 anos de idade. O poeta ainda produziu muitas outras obras ao longo de sua vida, mas seu livro de estreia continuou sendo sua obra-prima. Que tal procurar esse livro em uma biblioteca ou em uma livraria? Alguns de seus poemas também podem ser encontrados na internet. Vamos ler?

Chegamos, então, a uma conceituação bem completa para o gênero épico. Em primeiro lugar, ele é bastante ligado à subjetividade, ao sentimentalismo ou ao que chamamos de lirismo. Essa conexão aparece especialmente por causa do eu lírico, cuja voz exprime sentimentos da experiência do autor ou do personagem que narra o texto. Além disso, vimos que o texto lírico é bastante ligado à música, tendo a prosódia e a métrica como elementos capazes de dar uma melodia aos versos.

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O verso, por sua vez, é uma espécie de organização do poema. Temos ainda a imagem e a intransitividade que ajudam o texto lírico a produzir um efeito no espectador muito diferente do efeito que a linguagem cotidiana é capaz de produzir.

IMPORTANTE

É importante lembrar, contudo, que estamos tratando de uma arte. Como já mencionamos, as artes não têm regras excessivamente fixas, elas só têm alguns princípios, algumas balizas.

Isso quer dizer que podemos encontrar textos do gênero lírico que não atendam plenamente a esse quadro que acabamos de traçar, mas é bem provável que a maioria dos elementos pode ser identificada. O verso, por exemplo, costumava seguir um molde bastante preciso na Antiguidade e na Idade Média, mas depois da Modernidade e, mais precisamente, na Contemporaneidade, tornou-se muito popular uma forma de poema cujos versos são livres e, portanto, não seguem uma métrica específica.

RESUMINDO

Neste capítulo, introduzimos a tríade clássica dos gêneros literários: a lírica, o drama e o épico.

Tratamos de forma mais aprofundada a lírica, seu conceito, seus representantes e suas principais características.

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O Drama: As Características e os Principais Representantes

OBJETIVO

Ao término deste capítulo, você será capaz de explicar as principais características do drama enquanto gênero literários, além de citar seus principais representantes. Vamos lá?.

Para falar do drama, vamos mais uma vez acionar as categorias de Friedrich Schlegel e Anatol Rosenfeld. Começando por Rosenfeld, lembremos que, segundo ele, é importante observarmos os gêneros a partir da perspectiva do substantivo e também do adjetivo. Do ponto de vista adjetivo, drama é aquilo que tem sofrimento, dor, desgraça. Uma novela mexicana, por exemplo, pode-se dizer que é excessivamente dramática, ou seja, que exagera no sofrimento dos personagens, nas situações de desgraça e assim por diante. Por outro lado, do ponto de vista do substantivo, drama pode ser considerado qualquer texto feito para ser encenado.

Figura 7 : O drama é o texto encenado

Fonte: @pixabay

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A partir dessa definição do gênero dramático enquanto substantivo, percebemos que ele está necessariamente ligado a outra arte: o teatro. Assim como o gênero lírico tinha sua ligação inerente com a música, o drama é estreitamente ligado ao teatro. É dessa relação que identificamos, em primeiro lugar, o surgimento do termo “drama”. Sua origem vem do grego “dráo” que significa “fazer”, que está ligado a uma ação. Por causa disso, um escritor de drama não se preocupa com a métrica ou com a rima de um texto que alguém vai ler solitariamente ou em voz alta para um grupo. Um escritor de drama se preocupa em escrever ações. Em seu texto aparecem tanto as falas dos personagens como seus movimentos, quem entra e quem sai de cena, quem deve fazer o quê, como essas pessoas devem se portar etc. Em resumo, um poeta pensa mais em imagens estáticas, enquanto um autor dramático pensa mais em cenas que estão movimento.

ACESSE

Uma ótima pedida para compreender melhor o trabalho de um dramaturgo é o filme Shakespeare Apaixonado. A obra tem como personagem nada menos do que o grande autor de teatro Willian Shakespeare, e procura mostrar um pouco de seu processo de criação, além de retratar o processo de criação de outros dramaturgos da época. O filme ainda demonstra como se produzia teatro na Inglaterra do século XVI, o que é muito interessante. Se você já assistiu a esse filme, por que não revê-lo prestando atenção nos detalhes que dizem respeito ao gênero drama?

A ideia de ação do gênero dramático também se liga à característica que Friedrich Schlegel deu a essa forma literária. Segundo ele, enquanto a lírica é subjetiva, como vimos no capítulo anterior, o drama seria o gênero mais objetivo. Com

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isso, é possível considerar o drama uma espécie de contrário do lírico, ou seja, podemos dizer que o teatro está em oposição à poesia. Um dos principais motivos dessa oposição é que nos textos líricos há a voz do eu lírico exprimindo seus sentimentos, o que não ocorre com os textos dramáticos. Não há um eu lírico no drama porque, em geral, o drama contempla um número maior de vozes (exceto nos monólogos, a princípio). Em resumo, quando cada personagem expõe seu ponto de vista, o texto se afasta da subjetividade individual e se aproxima da coletiva.

DICA

Voltando ao que já conversamos sobre as diferenças entre o que se classifica como “gênero” no cinema e o que vemos como gênero na literatura, o drama é mais um que sofre distorções. Na classificação de filmes, tem-se como drama os enredos que contam histórias sérias, de tristeza, de superação, de enfrentamento de problemas e assim por diante. Na literatura, porém, esse gênero é mais abrangente: é um texto escrito para ser encenado, independentemente de ter a intenção de fazer rir ou chorar. Trocando em miúdos, podemos dizer que, na literatura, o drama nem sempre é dramático.

A presença de diálogos é, portanto, uma característica da forma dramática. Essa característica é tão importante que, de acordo com Anatol Rosenfeld, o diálogo pode ser pensado como o que coloca o drama dentro do universo literário:

É com efeito o diálogo que constitui a Dramática como literatura e como teatro declamado (apar-tes e monólogos não afetam a situação essencial-mente dialógica). Para que através do diálogo se

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produza uma ação é impositivo que ele contrapo-nha vontades, ou seja, manifestações de atitudes contrárias. O que se chama, em sentido estilístico, de “dramático”, refere-se particularmente ao en-trechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o conflito. (RO-SENFELD, 1985, p. 34)

Em resumo, o diálogo no teatro é a contraposição de ideias de sujeitos distintos. Os personagens não concordam entre si, eles se repelem e isso gera o conflito, a ação. Observe o exemplo abaixo extraído de uma das peças do prestigiado dramaturgo norueguês Henrik Ibsen:

EXEMPLO

Rosmer – Serás para mim a única esposa que jamais tive.

Rebecca (com firmeza) – Não me tornes a falar nisso. Nunca serei tua mulher.Rosmer – Que estás dizendo? Nunca? Oh! Não poderias aprender a me amar? Não se esconderá desde já, no fundo de nossa amizade, um fermento de amor?Rebecca (tapando os ouvidos, como que apavorada) – Não fales assim, Rosmer! Não diga isso!Rosmer – Sim, sim, existe aí uma possibilidade. Oh! Vejo que tu o sentes como eu. Não é, Rebecca?Rebecca (readquirindo a calma habitual e dominando-se) – Ouve-me bem: digo-te que se persistes nessa ideia, deixo Rosmersholm.Rosmer – Tu, partires! Não o poderia fazer! É impossível.Rebecca – Mais impossível, ainda, para mim é ser tua esposa. Não o poderia ser, jamais!(IBSEN, 1886, on-line)

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Em primeiro lugar, é importante chamar a atenção para um elemento gráfico que você deve ter notado no trecho acima: os parênteses. Tudo o que está entre parênteses se refere a indicações do autor para os atores que farão a encenação. Na linguagem do drama, chamamos isso de rubrica. As rubricas teatrais servem para que o dramaturgo explique melhor o tom de determinada cena. Se você observar as três rubricas presentes junto à fala da personagem Rebecca, notará que o autor do texto pensou nela como uma personagem forte, que pode demonstrar eventual fragilidade, mas que logo se recompõe.

Outo elemento que voltamos a observar, desta vez a partir do trecho da peça de Ibsen, é o diálogo. No trecho de Rosmershom apresentado acima, há um diálogo entre um homem, chamado Rosmer, e uma mulher, Rebecca. Nele percebemos que há uma discussão amorosa, sobre casar ou não casar. O homem aparentemente quer se casar com a mulher, mas ela o rejeita. É nessa rejeição que está a ação, o conflito da cena. Agora imagine uma peça que fosse completamente “positiva”, digamos. A cena começa com um homem dizendo que quer se casar com uma mulher, na sequência ela diz que sim. A cena acabaria nesse “sim”, não haveria motivos para ter continuidade. Em outras palavras, no drama é preciso haver um conflito para que a ação se desenrole. Para resumir, podemos dizer:Fórmula: DIÁLOGO CONFLITO AÇÃO DRAMA

Figura 8 : O diálogo que contrapõe duas vozes é o que promove a ação

Fonte: https://bit.ly/36zRMZf

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Como já estudamos na unidade anterior, o Teatro Grego foi um dos mais importantes representantes da história do drama, tanto que é o principal objeto da investigação de Aristóteles em sua Poética. Você deve lembrar que, pelo que sabemos hoje em dia, a Poética aristotélica teria sido dividida em duas partes, a Tragédia e a Comédia, e que somente a primeira não se perdeu com o tempo. Aristóteles considerava a Tragédia a mais alta expressão literária, e isso não era por acaso! As tragédias gregas foram importantíssimas e continuam sendo referência para a arte dramática até os dias de hoje.

SAIBA MAIS

Entre as mais famosas tragédias gregas, podemos citar as obras: Medeia, de Eurípedes, Antígona e Édipo Rei de Sófocles. Medeia conta a história de uma mulher que se vê obcecada para vingar a infidelidade do marido. Essa obsessão vai tão longe que ela, por fim, mata os próprios filhos para ver seu companheiro sofrer. Antígona narra a revolta de uma mulher contra a lei que a impossibilita de enterrar seu irmão morto. Ela luta sozinha contra a política de seu reino e desafia a todos. Édipo Rei narra a história de um homem que mata seu pai para casar com a própria mãe sem saber de seu parentesco, já que eles haviam sido separados em seu nascimento. O destino de Édipo já havia sido professado por um oráculo responsável justamente por fazer seu pai enviá-lo para longe da família. Todos esses clássicos da tragédia grega receberam adaptações para o cinema, e também são facilmente encontrados em livros. Que tal conhecer um pouco sobre deles?

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Aristóteles assistiu a muitas dessas tragédias clássicas que eram encenadas na Grécia Antiga. A partir dessa experiência, ele elaborou uma espécie de modelo para a arte dramática, conhecido como as três unidades do teatro grego e tomado como referência ao longo de muitos séculos na tradição dramática. Só mais recentemente, nos últimos séculos, é que os dramaturgos passaram a subverter um pouco dessa ordem aristotélica estabelecida. Para compreender melhor do que se trata essa tríade de unidades fundamentais a uma peça de teatro, observe o quadro a seguir.

Quadro 3 : Três unidades do teatro grego

Três unidades do teatro grego

Unidade de tempo

A história de uma peça deveria ocorrer num curto espaço de tempo, não podendo ultrapassar 24 horas. Sendo assim, uma peça era sempre um recorte temporal bastante rápido. A história contada só poderia acontecer no máximo ao longo de um dia.

Unidade de lugar

A história de uma peça deveria estar ligada a apenas um lugar. Uma peça deveria se passar em apenas um cenário para não confundir o espectador.

Unidade de ação

Uma peça deveria ter uma trama central e deveria ser claramente dividida em começo, meio e fim. Deveria haver uma causa e um efeito.

Fonte: Elaborado pela autora.

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REFLITA

Você já foi ao teatro? Procure lembrar-se de alguma peça a que assistiu e pense se ela se encaixa nesse “padrão” estabelecido por Aristóteles. A história se passava em apenas um dia ou ao longo de anos? Havia apenas um cenário ou os personagens podiam estar em lugares completamente diferentes a cada cena? Havia um tema central bem definido, assim como uma progressão lógica que ia da apresentação de uma causa ao seu efeito final? De agora em diante, sempre que você assistir a uma peça de teatro, procure observar esses elementos.

Saltando da Grécia Antiga para a Inglaterra dos séculos XVI e XVII, encontramos um dos mais importantes dramaturgos de todos os tempos: Willian Shakespeare. As contribuições que ele deu ao drama e principalmente à literatura em geral são incalculáveis. Shakespeare revolucionou os gêneros dentro do drama, mesclando elementos da tragédia e da comédia, coisa que nunca havia sido feita antes. Além disso, ele criou uma série de personagens extremamente complexos com uma subjetividade que seria própria da Era Moderna, mas que até então pouco se via na literatura. Entre suas obras mais famosas estão: Romeu e Julieta, Macbeth, Otelo, Sonho de uma noite de verão e Hamlet.

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SAIBA MAIS

Uma das peças mais divertidas do repertório do dramaturgo inglês Willian Shakespeare se chama A megera domada. Essa história foi adaptada para o cinema em 1967 e tinha a famosa atriz Elizabeth Taylor no papel principal. Aqui no Brasil, uma telenovela adaptou essa mesma história e fez todos se encantarem pela criatividade de Shakespeare, mesmo aqueles que não o conheciam. A novela recebeu o nome de O cravo e a rosa, com a atriz Adriana Esteves no papel principal. Nessa adaptação para as telas, até mesmo os nomes dos personagens foram preservados.

A peça Hamlet, considerada a obra-prima de Willian Shakespeare, conta a história de um jovem príncipe da Dinamarca que percebe a traição de seu tio, que teria matado o pai de Hamlet, tomado o trono e ficado com a rainha.

Figura 9 : Hamlet, de Willian Shakespeare

Fonte: @pixabay

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Ao encontrar o fantasma do pai e conversar com ele sobre a traição, Hamlet decide vingar sua morte. Uma série de acontecimentos imprevisíveis é registrada a partir dessa decisão. Sob uma perspectiva mais geral, a peça Hamlet abarca uma série de temas universais como traição, incesto e corrupção. É justamente por isso que, como todo clássico da literatura, ela se faz sempre atual.

RESUMINDO

Neste capítulo, estudamos acerca do drama, suas características e seus principais representantes.

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A Epopeia: Origem e Principais Obras

OBJETIVO

Ao término deste capítulo, você será capaz de explicar o que é epopeia enquanto gênero literário, sua origem, suas principais características, obras e representantes.

Você já deve ter ouvido um comentarista de futebol falar sobre uma determinada partida usando a seguinte expressão: “foi um jogo épico!”. Ou então já deve ter escutado alguém comentar que determinada festa pretende ser épica. Pois bem! Quando usamos a expressão “épico” ou “épica”, estamos nos referindo ao caráter adjetivo ligado ao gênero. Como Anatol Rosenfeld propôs, os gêneros clássicos são tanto substantivos (espécies de texto), quanto adjetivos (qualidades). No caso da epopeia, sua perspectiva adjetiva costuma ser bem fácil de identificar, já que os termos “épico” e “épica” se diferem um pouco mais do nome dado ao gênero literário “epopeia”. Porém, essa distinção ortográfica não se repete da mesma maneira do ponto de vista conceitual. O nome epopeia está bastante ligado ao adjetivo épico, porque, como vimos com os outros os gêneros, a perspectiva adjetiva é também uma das principais características do gênero enquanto substantivo. Vejamos o que dizem os dicionários:

DEFINIÇÃO:

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DEFINIÇÃO

é·pi·coadjetivo

1. Da epopeia ou a ela relativo; próprio da epopeia.2. Alto, levantado, sublime.substantivo masculino

3. Poeta épico.Fonte: Priberam (2020).

e·po·pei·asubstantivo feminino

1. Poema que tem por assunto .ações ou acontecimentos grandiosos.

2. [Figurado] Série de grandes acontecimentos.

Fonte: Priberam (2020).

Note que na definição da perspectiva substantiva, ou seja, do próprio gênero literário, encontramos a palavra “poema”. A partir disso, você deve estar se perguntando: se a epopeia é um tipo de poema, por que ela não pertence ao gênero lírico? Pois bem, porque ela não é completamente um poema, ou não tem as características básicas do gênero lírico, como a presença do eu lírico. É justamente essa falta que faz com que Friedrich Schlegel classifique a epopeia como um gênero “subjetivo-objetivo”. Como você deve lembrar que, para Schlegel, o gênero lírico é substantivo, e o dramático é objetivo.

Enquanto a lírica está focada na subjetividade dos sentimentos pessoais do eu lírico, o drama se concentra na ação que nasce a partir do diálogo, do confronto de duas vozes.

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Seguindo essa linha de raciocínio proposta por Schlegel, a epopeia não é nem totalmente ação, nem totalmente expressão subjetiva. É por isso que, dependendo do elemento da epopeia que analisarmos, encontraremos proximidades ora com o gênero lírico, ora com o dramático.

SAIBA MAIS

Os textos Odisseia e Ilíada, escritos pelo poeta grego Homero e considerados os primeiros da literatura Ocidental, pertencem ao gênero épico. A Ilíada é uma epopeia que conta a história do grande guerreiro Aquiles durante o último ano da Guerra de Troia. A Odisseia conta a história da tentativa do rei Ulisses em regressar para sua terra natal, Ítaca, depois do fim da Guerra de Troia. Ele leva 10 anos para conseguir voltar para casa, tempo em que passa por inúmeros desafios.

Figura 10 : As tramas mitológicas de Homero

Fonte: @freepik

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Como estávamos falando, a epopeia se difere do gênero lírico principalmente pela ausência do eu lírico. Já em relação ao drama, ela se difere principalmente pela sua forma de apresentação. Uma epopeia não é escrita para ser encenada, mas sim para contar uma história grandiosa a outra pessoa. A leitura não era popularizada na Antiguidade, por isso, as epopeias eram elaboradas em forma de cantos, de maneira que se tornava mais fácil repassar as histórias oralmente. Estamos falando de histórias longuíssimas, escritas de maneiras bastante engenhosas e em versos. Por causa disso, elas não podiam ser simplesmente resumidas pela fala coloquial das pessoas.

Se tomarmos esse ponto de vista e pensarmos na maneira como os espectadores entravam em contato com a obra na Antiguidade, veremos que a epopeia, além de se distanciar do drama por não ser encenada, ela se aproximava da lírica. Isso porque, como vimos, ambos os gêneros utilizavam a música para chegar ao público. No entanto, a forma como era transmitida e escrita fazia com que a epopeia e a lírica fossem muito parecidas. Para lembrar a definição do dicionário que vimos acima, a epopeia não deixa de ser uma espécie de poema.

ACESSE

Tanto a Odisseia quanto a Ilíada, de Homero, foram levadas ao cinema e podem ser conferidas em belíssimos filmes. Boa parte da história contada na Ilíada está presente no filme Troia, com o ator Brad Pitt como protagonista. Entre as adaptações cinematográficas para a Odisseia, uma foi lançada em 1954, com o ator Kirk Douglas interpretando Ulisses, e outra no ano de 1997, protagonizada por Armand Assante. Todas as produções são excelentes, vale muito a pena conferir!

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Apesar de ser escrita em forma de poema, utilizando versos, métrica, às vezes rima e outros elementos líricos, a epopeia tem uma extensão muito maior do que um texto do gênero lírico. Para ter uma ideia, as edições das epopeias clássicas de Homero costumam ter cerca de 400 páginas. Isso ocorre porque a epopeia é, antes de tudo, uma narrativa, ou seja, um texto que conta uma história.

DICA

A epopeia foi o primeiro gênero narrativo da história dos gêneros literários. Sendo assim, podemos considerar o romance e o conto herdeiros da forma épica. Esses dois gêneros modernos têm como característica principal a narrativa de alguma história, assim como acontecia com as epopeias.

A narrativa de que trata a epopeia é uma espécie de ação, mas se difere da ação dramática, porque ela é apenas contada, não encenada ou simulada ao vivo. Além disso, pelo menos duas daquelas unidades que norteavam o drama grego não se aplicam à estrutura da epopeia.

A unidade de lugar, que no teatro era invariável, pode se transformar com frequência na epopeia. No caso da Odisseia, Ulisses viaja passando por diversas ilhas antes de conseguir chegar a Ítaca. Há, portanto, um deslocamento, uma troca recorrente do cenário onde se passa a história, coisa que não ocorria na tragédia grega, por exemplo.

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REFLITA

Se a epopeia é uma narrativa e conta uma história, por que não pode ser considerada uma forma de romance, já que sua extensão também pode ser comparada à de um romance? Sendo assim, reflita sobre a relação entre esses dois gêneros.

Além da unidade de lugar, a unidade de tempo também faz com que o drama e a epopeia se distanciem conceitualmente. No teatro, a história a ser contada não deveria ultrapassar a referência de um dia, ou seja, 24 horas. Isso não ocorre com a epopeia. Como já mencionamos, a Odisseia é o exemplo de uma história épica que dura 10 anos.

Por fim, em relação à terceira unidade do drama que foi postulada por Aristóteles e que vimos no capítulo anterior, a unidade de ação, podemos dizer que é bastante parecida tanto no teatro quanto na epopeia. Há em ambos os tipos de texto a apresentação de um tema central e um ordenamento lógico e progressivo da ação, isto é, começo, meio e fim.

Figura 11 : Ulisses na gruta de Polifemo, de Jacob Jordaens

Fonte : https://bit.ly/34qBQpM

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Em linhas gerais, há a mesma quantidade de elementos que aproximam a epopeia de um drama ou de um texto lírico. Da mesma maneira, a lírica e o drama se distanciam o mesmo número de vezes da epopeia. Para recapitular melhor essas aproximações e distanciamentos que acabamos de ver, observe o quadro a seguir:

Quadro 4 : Quadro comparativo Epopeia X Lírica X Drama

Epopeia X Lírica Epopeia X Drama

Aproximações Distanciamentos Aproximações Distanciamentos

Ambas usam o verso e a métrica.

Não há a presença do eu lírico na Epopeia.

Não há a presença do eu lírico na epopeia, assim como ocorre no drama.

A unidade de lugar no drama é estática, invariável. Essa regra não se aplica à epopeia.

Ambas se relacionam com a música na maneira de exposição.

A extensão de uma epopeia costuma ser muito maior do que a extensão de um poema.

Ambas têm a ação. No drama a ação é encenada, na epopeia a ação é contada.

A Unidade de tempo de um drama não passa de 24h, ao contrário da epopeia.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Tanto Aquiles, o protagonista da Ilíada, quanto Ulisses, o protagonista da Odisseia, são personagens heroicos e extremamente admirados por seus feitos. É justamente esse o tipo de personagem principal que uma epopeia tem. Diferentemente do romance, que pode retratar a vida de qualquer cidadão comum, tendo ele feito coisas louváveis ou não, a epopeia só contempla a vida de heróis, de sujeitos inspiradores. Além disso, podemos encontrar no texto épico mitos e lendas da época. Na epopeia grega, por exemplo, há frequentemente referências a

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deuses e a histórias da mitologia grega. Personagens fantásticos que fazem parte desse universo mitológico também são figuras que aparecem na epopeia.

Um dos exemplos de ser mítico dentro de uma epopeia pode ser extraído da Odisseia, de Homero. Em determinado momento da viagem de regresso a Ítaca, Ulisses e seus companheiros chegam a uma ilha habitada por um ciclope chamado Polifemo. De acordo com a mitologia grega, os ciclopes eram gigantes imortais que tinham apenas um olho no meio do rosto. Nessa história em questão, Ulisses e seus companheiros são feitos prisioneiros na caverna onde o ciclope habita. Para poder escapar, eles dão muito vinho ao gigante para que ele se embriagasse e dormisse profundamente. Durante seu sono, Ulisses e seus colegas enfiam um pedaço de tronco em seu olho, deixando o ciclope cego. É exatamente essa cena que você poderá ler no exemplo abaixo:

EXEMPLO

Tão logo a chama enrubra horrivelmente o tronco,embora verde, logo o retirei do fogo.Tinha ao redor de mim os companheiros todose um mega demo me inspirou bravura. Os sóciosseguram a madeira pontiaguda e a fincamna parte interna do olho. Erguendo-me, por cima,reagiro-a, como, a trado, o lenho do navioé perfurado, enquanto, embaixo, puxam de ambosos lados a correia; o pau não para, avança;assim girávamos a ponta incandescenteno olho, de onde escorria, quente, o sangue. Pálpebrae sobrancelha, o ardor do bafo requeimava,

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por causa da pupila em chama. A base chiaao fogo. Um fabro mete n’água um seguree o enxó, o estrídulo percute agudamente,quando os tempera (fonte de vigor do ferro),o olho ciclópico rechinava assim no pau.Urlou assustadoramente e a rocha ecoa.Recuamos de pavor. Arranca o toro do olho,do qual o sangue esguicha. Alucinando, atira-olonge de si. Então passou a urrar, clamandopelo socorro dos Ciclopes, moradoresem grutas no arrabalde, nos ventosos píncaros.Seus gritos trazem-nos de todos os quadrantes.

(HOMERO, 2014)

A epopeia foi um gênero literário muito importante da Antiguidade, tendo sobrevivido até alguns séculos seguintes, mas, apesar disso, ela não chegou à Modernidade como chegaram os gêneros lírico e dramático. A epopeia é considerada um gênero do passado. Mesmo assim, suas referências estão presentes em novas formas de escrita, o que veremos na sequência.

RESUMINDO

Neste capítulo, estudamos acerca da epopeia, suas características, seus principais representantes e obras.

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Os Principais Gêneros Modernos (o Romance, o Conto, a Crônica)

OBJETIVO

Ao término deste capítulo, você será capaz de citar e exemplificar os principais gêneros literários modernos, suas características e representantes. Siga em frente!

Como você acompanhou no capítulo anterior, a epopeia deu o pontapé inicial na forma narrativa. Surgiria a partir daí uma das principais maneiras de se fazer literatura: a ficção em prosa. Vejamos o que o dicionário assinala como “prosa”.

DEFINIÇÃO

Prosa: forma do discurso que não obedece às normas de versificação.

Ora, se a prosa é o tipo de texto que não é escrito (ou falado) em versos, então inúmeras formas textuais fazem parte desse grupo em que estão os textos em prosa, não é mesmo? Exatamente! Podemos dizer, por exemplo, que o conto, a crônica, o romance, a novela, o ensaio e tantas outras formas de escrita são formas que contemplam a prosa, já que elas não são elaboradas de maneira versificada. Mas então, se a prosa é tão frequente na literatura, por que ainda não tínhamos falado dela?

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Bem, é sempre importante pensarmos no contexto histórico em que determinados gêneros literários foram criados ou em quando determinados gêneros foram mais ou menos populares. Como já falamos inúmeras vezes nesta unidade, não havia texto impresso na Antiguidade, e a leitura não era popularizada. A mudança desse quadro foi determinante para que novas formas de literatura surgissem, em especial aquelas escritas em prosa.

Por volta de 1430, um alemão chamado Johannes Gutenberg inventou algo que mudaria a humanidade para sempre: a máquina de imprensa. Seu invento possibilitou a reprodução mecânica e serial de textos. Com isso, surgiriam posteriormente dois instrumentos poderosíssimos: o livro e a mídia jornalística impressa. Não se pode negar que a invenção de Gutenberg acabou criando, de certa forma, a literatura como conhecemos hoje. Isso porque quando pensamos em literatura, imediatamente nos lembramos da imagem de livros, de uma biblioteca ou de uma livraria.

Figura 12 : A Bíblia impressa por Gutenberg – Museu de Zurique

Fonte: @wikipedia

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SAIBA MAIS

O primeiro texto impresso pela máquina de Gutenberg foi a Bíblia traduzida para o alemão. Para imprimir esse e outros textos, era necessário montar uma sequência de tipos, que eram peças de metal representando sinais gráficos, em uma sequência do tamanho de uma folha. Depois, passava-se tinta nesses tipos e, com isso, era possível imprimir diversas folhas. Claro que o processo de impressão de um livro grande, como a Bíblia, era bastante demorado, por ser preciso organizar e imprimir muitas páginas, mas isso ainda assim representava um grande avanço, devido ao número de cópias finais que era possível obter.

Seguindo um raciocínio histórico, logo depois da invenção da imprensa por Gutenberg, no campo da literatura, começaram a circular ainda mais os chamados romances de cavalaria, que tinham sido inventados na Idade Média. Estes textos em geral apresentavam histórias de cavaleiros viajando pelo mundo, lutando pelas injustiças e conquistando donzelas. Pense na famosa história de uma princesa presa em uma torre, que vê um jovem cavaleiro enfrentar um dragão para salvá-la. Pois bem, os romances de cavalaria seguiam mais ou menos essa lógica.

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ACESSE

As histórias do rei Arthur eram as mais populares entre os romances de cavalaria. Elas narram aventuras do jovem rei junto com seus amigos, os chamados “Cavaleiros da Távola Redonda”. Além disso, os romances sobre ele falavam de seu amor pela bela Guinevere. Para mergulhar mais nessas histórias, há uma infinidade de livros e filmes. Um ótimo exemplo é a série literária As brumas de Avalon, que conta a história do Rei Arthur a partir da perspectiva de sua irmã, Morgana. Há também a adaptação cinematográfica dessa história. Que tal conferir?

Entre as obras mais importantes desse período em que os romances de cavalaria circulavam e eram muito populares está Amadis de Gaula. O romance conta a história de um jovem que não conhece seus pais e parte em busca dessa descoberta. No caminho, ele passa por dezenas de aventuras e se apaixona por uma jovem princesa. A história teria sido impressa pela primeira vez em 1496 na Espanha, porém há indícios de que ela era, na verdade, de origem portuguesa e que já circulava havia muito tempo.

Um dos motivos pelos quais Amadis de Gaula tenha ficado tão conhecida na história da literatura é a sátira dela feita pelo grande escritor moderno Miguel de Cervantes. Considerado o primeiro romance moderno e uma das obras mais importantes de toda a história, Dom Quixote foi escrito por Cervantes para parodiar e satirizar os romances de cavalaria, em especial Amadis de Gaula que, naquele momento, era muito popular. Essa sátira mudou completamente os rumos da literatura e, a partir dela, o gênero romance ganharia mais e mais adeptos e prestígio entre os leitores.

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DICA

É importante lembrarmos que somente a partir desse período é que se pode pensar na figura do “leitor”, ou seja, do sujeito que tem acesso ao instrumento livro, lendo solitariamente a história ou os versos contidos nele. Foi mais ou menos nesse período também que ocorreu a Reforma Protestante, tendo como principal mudança a disseminação do texto bíblico para ser lido e interpretado individualmente.

O romance Dom Quixote narra as aventuras de um homem que, depois de muito ler romances de cavalaria, autoproclama-se cavaleiro e sai pelo mundo em busca de aventura. Com seu fiel escudeiro Sancho Pança, Dom Quixote se envolve em uma série de aventuras fantasiosas, mas sempre tendo a realidade como principal empecilho.

Figura 15 : Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança

Fonte: @commons.

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Uma das cenas mais famosas e emblemáticas narradas em Dom Quixote é a dos moinhos de vento. Nela, Dom Quixote e Sancho Pança chegam a um campo cheio de moinhos de vento, mas Quixote pensa que são gigantes. Sancho tenta alertá-lo sobre a ilusão, mas Quixote insiste em atacá-los. Uma das hélices de um moinho derruba Quixote e seu cavalo Rocinante, mas ele insiste na ilusão, dizendo que uma magia transformou repentinamente os gigantes em moinhos de vento. Essa cena ficou tão famosa que acabou virando uma espécie de expressão do vocabulário popular: “lutar contra moinhos de vento” significa tentar combater inimigos imaginários.

O romance Dom Quixote foi publicado pela primeira vez em Madrid, na Espanha, no ano de 1605. A partir daí, o gênero não parou de crescer e se tornou cada vez mais popular. É claro que, num primeiro momento, ele era acessado apenas pelos nobres e depois pelos burgueses, já que eram as únicas pessoas que aprendiam a ler. Mas, à medida que a escrita e a leitura foram sendo disseminadas, o romance foi acompanhando essa progressão e hoje é um dos principais gêneros literários.

Outro gênero literário próprio da Modernidade é o conto, que se distingue do romance principalmente pela sua extensão, mas ambos são narrativas ficcionais. Devido ao tamanho, o romance consegue desenvolver melhor personagens e histórias. Já o conto costuma ser mais um recorte específico de uma ação, envolvendo também poucos personagens. De acordo com Angélica Soares:

Ao invés de representar o desenvolvimento ou o corte na vida das personagens, visando abarcar a totalidade, o conto aparece como uma amostragem, como um flagrante ou instantâneo, pelo que vemos registrado literariamente um episódio singular e representativo. Quanto mais concentrado, mais se caracteriza como arte de sugestão, resultante de ri-goroso trabalho de seleção e de harmonização dos

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elementos selecionados e de ênfase no essencial. (SOARES, 2007, p. 54)

Em geral, o conto tem os mesmos elementos de uma narrativa ficcional qualquer, que veremos mais atentamente na próxima unidade. Por ora, cabe apenas ressaltarmos o que difere o conto do romance. Como disse Angélica Soares, o conto tem uma abordagem mais instantânea, sendo possível pensá-lo como uma espécie de flash da realidade. Entre os contistas mais importantes da história estão o russo Anton Tchékov, o norte-americano Edgar Allan Poe e os argentinos Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar.

ACESSE

Se você está curioso para ler alguns dos mais famosos contos de todos os tempos, anote aí algumas sugestões de textos produzidos pelos autores que acabamos de mencionar. Os contos Angústia e Pamonha estão entre os melhores de Anton Tchékov. De Edgar Allan Poe, você pode conferir O gato preto e Os assassinatos da Rua Morgue. Entrando no conto argentino, pode procurar por Os jardins dos caminhos que se bifurcam, escrito por Borges, e Casa tomada, de Cortázar.

Dentro da literatura brasileira, tivemos também grandes contistas. O próprio Machado de Assis, nosso mais importante autor, além de escrever romances, elaborou também contos primorosos como O alienista e A missa do galo. João Guimarães Rosa, considerado também um dos maiores autores brasileiros, escreveu contos magistrais. Porém, uma escritora em especial conseguiu se tornar muito popular pela escrita de contos: Clarice Lispector.

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Figura 14 : Clarice Lispector, uma das grandes contistas da literatura brasileira

Fonte: @wikipedia

É justamente de Clarice Lispector que vem o exemplo de conto que vamos ler na sequência. Note a característica da instantaneidade que comentamos sobre o conto.

EXEMPLO

Uma galinhaEra uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi, pois, uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um

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instante ainda vacilou — o tempo de a cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

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— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! Jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a mo-rar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pas-ta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr na-quele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, me-nos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fun-dos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e cir-culava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. (LISPECTOR, 1998)

Além do conto e do romance, podemos nos lembrar de outro gênero importante da Modernidade: a crônica. A crônica é um

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gênero híbrido, uma mistura de literatura com jornalismo, gênero bastante ligado à imprensa, aos jornais e revistas impressos. Em geral, a crônica parte da observação da realidade e desemboca na divagação e na opinião de seu autor sobre determinado fato da vida. Observar as coisas curiosas que nos rodeiam e chamar atenção para eles, então, é a principal tarefa de um cronista. Em uma entrevista, o famoso cronista brasileiro Mário Prata contou que em um dia de verão, ele estava na praia quando viu um ambulante anunciando que estava vendendo meias. Segundo ele, é desse tipo de situação que nascem as crônicas. Ora, vender meias em uma praia em pleno verão é, no mínimo, uma coisa curiosa que pode promover diversas reflexões.

De acordo com Angélica Soares, a crônica pode ser uma representação irônica e poética de manifestações cotidianas.

Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário co-letivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da mera reprodução dos fatos. E, enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o. (SOARES, 2007, p. 64)

Em resumo, assim como o conto, a crônica também é um recorte, mas que parte de um fato real, não de um fato imaginado. Além disso, ela não tem a pretensão de ser atemporal, ao contrário, sua função é justamente captar os temas daquele determinado tempo e lugar. É por isso que, se formos ler uma crônica que saiu em um jornal há, vamos dizer, 20 anos, corremos o risco de não compreendê-la devidamente.

Há, contudo, algumas crônicas que tratam de temas um pouco mais atemporais, servindo mais para os leitores de sua época, mas podendo também ser compreendida entre outras gerações. Luis Fernando Verissimo é um dos nossos mestres da crônica, de quem extraímos o nosso exemplo:

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EXEMPLO

CigarreiraAinda existe cigarro de chocolate? Quando eu era criança, não lembro mais em que século, compravam-se cigarros iguais aos de verdade, em maços, com chocolate dentro em vez de fumo. Eles também serviam para a gente brincar de adulto. Antes de comê-los, “fumávamos” os cigarros, gesticulando com eles como gente grande, dizendo coisas pseudo importantes e tragando e expelindo fumaça imaginária. Nada era mais invejável nos adultos do que a liberdade para fumar e sonhávamos com o dia em que poderíamos assumir todas as poses de fumantes, mas fumando de verdade.Tinha um ritual de fumantes que me fascinava. O homem tirava uma cigarreira – lembra cigarreira? – do bolso de dentro do paletó, abria a cigarreira, escolhia um dos cigarros enfileirados, fechava a cigarreira com um sofisticado clic, depois batia com a ponta do cigarro no tampo da cigarreira, antes de guardá-la, colocar a ponta compactada do cigarro nos lábios e buscar o isqueiro em outro bolso do paletó. No dia em que eu pudesse fazer aquele pequeno teatro com naturalidade, eu seria um homem e, mais do que isso, um homem autossuficiente e elegante, um homem de dar inveja.Outro gesto muito adulto era, segurando o cigarro entre o dedo indicador e o médio, usar o anular e o polegar para catar um fragmento de fumo na língua. Este eu imitava depois de cada tragada nos meus cigarros de chocolate.Um dia, decidi que não ia esperar crescer para ficar adulto. Roubei um cigarro da minha mãe, peguei fósforos e fui para o fundo do quintal. Bati com a ponta do cigarro na caixa de fósforos. Acendi o cigarro. Traguei. Me sentia um ator de cinema (naquele tempo se fumava muito nos filmes), um Tyrone Power depois de acender o da moça, um Humphrey Bogart depois da briga. Mas a pose não durou muito. Foi interrompida por um acesso de tosse. Era horrível, encher a boca de fumaça daquele jeito. Nunca mais botei um cigarro na boca. Nem de chocolate.Mas sei não. Às vezes, penso que faltou uma cigarreira na minha vida. (VERISSIMO, 2017)

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RESUMINDO

Para resumir, o romance, o conto e a crônica são gêneros naturalmente modernos, principalmente porque estão diretamente ligados à leitura e à escrita, ou seja, são gêneros que não costumam ser declamados ou cantados junto com melodias. Não há nesses tipos de texto a presença de versos ou de rubricas de ação, como ocorre respectivamente com a poesia e com o drama, mas há uma série de elementos extremamente importantes e que são muitos estudados na Teoria Literária. São exatamente esses elementos que nós veremos na próxima unidade. Até lá!

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REFERÊNCIASARISTÓTELES. Poética. In: A poética Clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 2014.COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.GENETTE, G. Introdução ao Arquitexto. Rio de Janeiro: Editora Veja, 1987. HOMERO. Ilíada. São Paulo: Editora 34, 2014.HOMERO. Odisseia. São Paulo: Editora 34, 2014.IBSEN, H. O inimigo do povo. In: Seis dramas – parte 2. São Paulo: Editora Escala, 2003.LISPECTOR, C. Laços de família. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.ROSENFEL, A. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.SOARES, A. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 2007.STALLONI, Y. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.VERISSIMO, L. F. Cigarreira. GZH, 9 jul. 2017. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/luis-fernando-verissimo/noticia/2017/06/cigarreira-9811333.html. Acesso em: 22 out. 2019.