Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo...

252

Transcript of Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo...

Page 1: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria
Page 2: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Fundação Universidade de Brasília

Ivan Marques de Toledo CamargoSônia Nair Báo

Ana Maria Fernandes

Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria Machado MendonçaEduardo Tadeu VieiraEmir José SuaidenFernando Jorge Rodrigues NevesFrancisco Claudio Sampaio de MenezesMarcus MotaPeter BakuzisSylvia FicherWilson Trajano FilhoWivian Weller

ReitorVice-Reitora

Diretora

Conselho Editorial

Livro_Clarice Lispector.indd 2 28/10/2015 15:08:36

Page 3: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 3 28/10/2015 15:08:37

Page 4: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Equipe editorial

Daniela Alves dos Santos BezerraAllan Petterson da Silva PinheiroEduardo Silva de MedeirosAna Alethéa OsórioDenise Pimenta de OliveiraTalita Guimarães Sales RibeiroAllan Petterson da Silva Pinheiro

Copyright © 2015 byEditora Universidade de Brasília

Direitos exclusivos para esta edição:Editora Universidade de Brasília

SCS, quadra 2, bloco C, nº 78, edifício OK,2º andar, CEP 70302-907, Brasília, DFTelefone: (61) 3035-4200Fax (61) 3035-4230Site: www.editora.unb.brE mail: [email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Gerente de produção editorialDiagramação

Editoração eltrônicaPreparação de originais

Revisão

Capa

Ficha catalográ�ca elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

Impresso no Brasil

Jatobá, Vivian Resende.J39 Clarice Lispector e a descoberta do mundo / Vivian Resende Jatobá - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015. 252 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-230-1166-6

1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Crítica literária - Brasil. 3. Lispector, Clarice, 1920-1977. I. Título.

CDU 869.0(81)

Livro_Clarice Lispector.indd 4 28/10/2015 15:08:37

Page 5: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Agradecimentos

Àqueles que �zeram a cuidadosa leitura deste trabalho e, com sua contribuição, ajudaram-me a torná-lo possível: prof. Dr. Sérgio de Sá e prof. Dr. Gustavo de Castro, da Faculdade de Comunicação da UnB, e profa. Dra. Virgínia Leal, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas, também da UnB.

Àqueles que �zeram parte deste início de percurso acadêmico e aos amigos e familiares que, com afeto, me acompanham e me impulsionam para passos mais largos.

Aos meus amigos e colegas de trabalho que vibram com cada pequena conquista e trocam comigo a experiência de educar e aprender diariamente. Nossa tarefa é, sem dúvidas, tão grati�cante quanto desa�adora.

Aos meus pais, Maurício e Célia, pelo suporte, pela compreensão, pela presença e por apoiarem minhas descobertas e estimularem a busca de outras tantas.

Livro_Clarice Lispector.indd 5 28/10/2015 15:08:37

Page 6: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 6 28/10/2015 15:08:37

Page 7: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Sumário

Introdução................................................................................9

I. A crônica............................................................................21

II. A jornalista........................................................................41

III. A primeira pessoa...........................................................79

IV. A máscara........................................................................111

V. O diálogo.........................................................................157

VI. A experiência estética...................................................193

VII. Considerações �nais...................................................239

Livro_Clarice Lispector.indd 7 28/10/2015 15:08:37

Page 8: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 8 28/10/2015 15:08:38

Page 9: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

9

Introdução

Este trabalho, resultado da minha dissertação de mestrado intitulada “Descobertas de si e do mundo: intimidade e poética

do cotidiano na crônica de Clarice Lispector”, pretende fazer uma abordagem da obra da autora inicialmente publicada no Jornal do Brasil e posteriormente reunida em A descoberta do mundo. Serão investigadas as crônicas, nas quais se buscam traços que revelem a manifestação de sua intimidade, bem como da exposição na imprensa e do potencial de extrair, de situações diárias, elementos que tornem eventos banais sublimes o bastante para que se possa falar em experiência estética. Busca-se evidenciar o papel da crônica como importante meio de revelação do eu e, além disso, deseja-se encontrar algumas poéticas que se camuªam no material de que a crônica é feita. Como �cará claro mais adiante, a valorização

Livro_Clarice Lispector.indd 9 28/10/2015 15:08:38

Page 10: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

10

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

e a exibição da primeira pessoa, como se vê em tantas outras manifestações da contemporaneidade, por exemplo, na internet, têm importantes aparições já na crônica de Clarice. Procura-se aqui olhar mais para a Clarice comunicadora, que, por meio da crônica, torna públicas suas angústias e sua intimidade sem a alegoria �ccional, mostrando-se muito mais acessível ao público, que passou a acompanhá-la semanalmente no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973.

Os textos que compõem A descoberta do mundo mostram uma Clarice que escreve sem o pudor de confessar que o faz porque precisa ganhar dinheiro. Ao contrário do que acontece em Correio Feminino, cujos textos mascaram a autora, que escrevia com pseudônimos – Teresa Quadros e Helen Palmer – ou como a ghost--writer Ilka Soares – e tratava a respeito do universo feminino, de seus cuidados com a beleza, a vida afetiva e a casa. O propósito é trazer as crônicas de 1967 a 1973 para ilustrar a vida de Clarice, que, sobretudo em A descoberta do mundo, manifesta-se pessoalmente e revela suas angústias por meio de textos que se classi�cam como crônica, gênero que se afasta do rigor jornalístico da reportagem, aproximando-se da literatura, trazendo ou não personagens �ctícios aliados a uma abordagem da própria vida cotidiana.

É com esse tratamento do dia a dia que o leitor se identi�ca a ponto de incluir-se nos textos, aproximando-se da cronista, enviando--lhe cartas, as quais são respondidas e comentadas na própria coluna. Do mesmo modo, o cotidiano que inspira a crônica é o mesmo que inspira a poética de que ela é feita. Assim, uma das tarefas de que me encarrego neste trabalho é abordar que poéticas são essas que dão aos

Livro_Clarice Lispector.indd 10 28/10/2015 15:08:38

Page 11: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

11

Vivian Resende Jatobá

textos de A descoberta do mundo um caráter singular como tudo o que é assinado por Clarice Lispector.

A abordagem contemplará a exposição da intimidade de Clarice por meio dos textos reunidos em A descoberta do mundo. Faremos o contraste com o confortável anonimato de sua postura com os pseudônimos e como ghost-writer, com textos publicados em Correio Feminino. Será conveniente inclusive trazer essa abordagem da intimidade para a atualidade, uma vez que, considerando a exposição dos indivíduos em uma sociedade de espetáculo, vivemos na época da “extimidade”, nas palavras de Paula Sibilia (2008). Será inevitável, portanto, utilizar trechos das crônicas da própria Clarice a �m de construir o per�l da escritora que, ao assumir a função de jornalista, expunha-se intimamente, construindo com o leitor uma relação muito mais estreita do que aquela que havia quando a �cção a colocava por trás da �gura do narrador.

Sendo a crônica um gênero híbrido, situado entre o jornalismo e a literatura, aqui se pretende desenvolver um trabalho que permita esmiuçar a peculiaridade da crônica clariceana e as aberturas que permitem que a autora, nesses textos, revele-se, expressando-se não por meio da criação de personagens, mas sim pelo uso da própria experiência e pela exposição de emoções tão pessoais.

Situaremos Clarice no contexto da comunicação, muitas vezes estabelecendo o distanciamento de sua crônica em relação aos demais textos jornalísticos que compõem esse veículo diário de comunicação. Para estabelecer essas diferenças, será interessante citar trechos e veri�car neles a intimidade da autora, que declara: “Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de

Livro_Clarice Lispector.indd 11 28/10/2015 15:08:38

Page 12: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

12

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito” (LISPECTOR, 1999, p. 81). Para ela, portanto, era desa�ador escrever o que no jornal deveria se chamar crônica e, quanto a nós, cabe questionar se, de fato, são crônicas os textos que encontraremos nessa amostra.

Dos textos e da insegurança gerada pela inde�nição do gênero a que eles pertencem, vem muitas vezes a exposição da autora, seu “grito”, de modo que ela se torna protagonista do que ela mesma escreve. Mais do que falar apenas do cotidiano e lançar um novo olhar sobre assuntos comuns às reportagens, Clarice expõe angústias pessoais, e é isso que se pretende veri�car, imaginando que é dado o nome de angústia a um desconforto, uma instabilidade e um questionamento relativos a assuntos que preenchem sua vida diária.

Tais assuntos, por sua vez, não são simplesmente descritos, mas sim singularmente recriados, isto é, embora tratem de situações comuns, são vistos pela autora com tamanha sensibilidade que geram novos olhares, de modo que se percebam emoção e poesia em um terreno que não parecia fértil. O talento de Clarice, pois, é fertilizar terrenos, tornando locais de aparente singeleza a sede de emoções insuspeitadas, que tendem a surpreender e envolver o leitor que se dirige à crônica da autora.

Os textos contêm em si um potencial de aproximação entre a autora e seus leitores. Embora haja a incerteza da adequação ao gênero, não se pode negar que é dada a Clarice a liberdade de expressar-se com a própria voz, diferentemente das possibilidades com que trabalham jornalistas comprometidos com a objetividade e o pragmatismo da notícia. Trazendo à tona fatos de sua vida privada, manifestando suas inquietações, resgatando memórias pessoais

Livro_Clarice Lispector.indd 12 28/10/2015 15:08:38

Page 13: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

13

Vivian Resende Jatobá

sem o intermédio de outro narrador ou de personagens �ctícias, Clarice se aproxima do leitor, que lhe envia cartas, sobre as quais ela comenta frequentemente. O que se concretiza na crônica clariceana é a quebra de barreiras, pois se fala da vida sem a impessoalidade da reportagem, mas também sem os traços �ccionais e de profunda imersão psicológica característicos dos contos e romances da autora. A vida é vista, portanto, de um ponto de vista pessoal que focaliza meros detalhes e neles enxerga grandezas que motivam a expressividade dos textos.

É questionável falar em objetividade da reportagem quando sabemos que o responsável por levar fatos ao conhecimento do leitor é um sujeito que inevitavelmente levará ao outro uma impressão pessoal. Entretanto, não se deseja que transpareça no texto jornalístico tal caráter subjetivo. Por outro lado, na crônica não há um desejo de inibir a subjetividade do autor e isso, portanto, não o limita. Dessa maneira, notícia e crônica, apesar de trazerem certa carga de subjetividade, são distintas entre si no que diz respeito à admissão da subjetividade.

A crônica, em relação a outros gêneros literários, torna-se, antes de tudo, mais compreensível e acessível ao leitor, uma vez que, embora seja um texto mais pessoal, é curto e publicado em jornal, meio de grande circulação e à disposição de uma amostra ampla de leitores. Despindo-se de personagens e dispensando máscaras, pseudônimos e personalidades que não sejam a sua, em diversos momentos, Clarice compartilha sentimentos próprios, gerando no leitor a identi�cação e a aproximação. Em outros textos, parecem mais nebulosos os limites entre �cção e não �cção, e o leitor

Livro_Clarice Lispector.indd 13 28/10/2015 15:08:38

Page 14: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

14

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

busca entender se aquela que se expõe é a própria autora ou uma personagem criada por ela. De um modo ou de outro, a crônica derruba barreiras interpostas entre autor e leitor, de modo que seu encontro seja facilitado pela circulação do jornal, em que a coluna de Clarice encontrava lugar sempre aos sábados.

Em relação à própria atividade, a autora, con�rmando a aproximação com o público por meio de sua exposição, diz:

Sou uma colunista feliz. Escrevi nove livros que �zeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os do Rio de Janeiro, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos sábados tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem me lê. E feliz por escrever para os jornais que me infundem respeito. (LISPECTOR, 1999, p. 94-95).

Certamente, leitores a amavam “de longe” porque a �cção cria um muro entre autor e leitor, de modo que um não conheça o outro. O autor evita se expor e o leitor, por sua vez, conhece dramas das personagens, bem como a personalidade delas e o enredo no qual se envolvem. A �cção camuªa a realidade e a recria por meio do uso da alegoria, artifício que faz com que a obra não corresponda a um retrato da realidade, mas sim a uma recriação dela. A presença da alegoria, portanto, metaforiza elementos para disfarçar aquilo que não se deseja colocar à mostra.

Livro_Clarice Lispector.indd 14 28/10/2015 15:08:38

Page 15: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

15

Vivian Resende Jatobá

Assim, os nove livros de até então, por serem de �cção, não permitiam ao leitor conhecer a autora da maneira como foi possível a partir do momento em que ela se revelou na crônica por meio de textos confessionais, cumprindo ela mesma as funções de narradora e personagem, embora em outras, constantes na mesma coletânea, essa coincidência entre autora e personagem seja incerta, exatamente em virtude do temor que a autora tinha de entregar a outrem sua intimidade. Por sinal, é a própria Clarice que diz que “escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano” (LISPECTOR, 1999, p. 80). Tal máscara, podemos pensar, é dispensada na escrita de certas crônicas, as quais reªetem a cara de sua autora, que conservava algum pudor, mas não conseguia evitar a exposição.

Interessa ressaltar, ainda, a singularidade do gênero crônica. Para Antônio Dimas, ela “funciona como oásis lúdico em meio à aridez das notícias secas” (DIMAS, 1974, p.47), isto é, con�gura no jornal o espaço adequado para que haja uma livre e pessoal expressão de assuntos que habitam aquele veículo, mas que são, em sua maioria, tratados com a objetividade e o olhar não participante do jornalista, quando este obedece ao rigor dos manuais de redação. Para estes, o jornalista não deve permitir que transpareça no texto uma impressão pessoal sua acerca dos fatos. Sabe-se que a subjetividade do jornalista existe mesmo quando ele se encarrega de um texto em que deve prevalecer a imparcialidade, mas, comparando a reportagem à crônica, percebe-se quando é permitido ao autor ser pessoal e quando lhe é vetado esse direito. A diferença entre a notícia e a crônica está sobretudo na presença do lirismo, responsável por dar

Livro_Clarice Lispector.indd 15 28/10/2015 15:08:38

Page 16: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

16

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

à narrativa características de um texto no qual a sensibilidade não precisa ser evitada pelo autor e, sendo assim, salta aos olhos do leitor.

A crônica, portanto, pressupõe por si só uma liberdade, da qual Clarice Lispector, por sua vez, apropria-se falando de si e de casos corriqueiros de sua rotina particular. Já Antonio Candido declara que “a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. [...] pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas” (CANDIDO, 1995, p.5), o que nos serve para a observação do que faz Clarice a partir de seu cotidiano: pequenos fatos suscitam reªexões que ganham espaço e conquistam o leitor, que passa a conhecer a autora à medida que percebe que semanalmente ela torna públicas tanto sua privacidade quanto sua visão tão pessoal a respeito de assuntos que são parte de sua rotina.

A composição da crônica de Clarice, revelando seu modo de pensar, bem como seu modo de vida, enriquece um gênero que se difere, naturalmente, do romance e do conto, mas que merece tanta atenção quanto. Muito se diz a respeito da obra de Clarice sem considerar a relevância do período em que atuou como jornalista. Este trabalho pretende aprofundar essa abordagem, trazendo à cena a possibilidade que Clarice tinha de se comunicar sem máscaras, apropriando-se do próprio cotidiano como matéria su�ciente para despertar sensibilidade.

Pelo processo da comunicação, aqui, entende-se que

Comunicação compõe o processo básico para a prática das relações humanas, assim como para o

Livro_Clarice Lispector.indd 16 28/10/2015 15:08:38

Page 17: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

17

Vivian Resende Jatobá

desenvolvimento da personalidade individual e do per�l coletivo. Pela comunicação, o indivíduo se faz pessoa, indo do ser singular à relação plural. Em sua prática corrente, a comunicação envolve um ethos, que diz respeito à atitude de quem opina ou argumenta; um logos, que se refere à racionalidade inerente à opinião ou ao argumento apresentado; e um pathos, que tem a ver com a arte de tornar apaixonante o fato mesmo de opinar ou de argumentar. Objeto de estudos acadêmicos e cientí�cos, a comunicação sintetiza características de�nidoras da sociedade e traços distintivos da cultura. (POLISTCHUK; TRINTA, 2003, p. 62-63).

Assim, o que se sublinha na condução desta pesquisa é sobretudo a transição do indivíduo que vai “do ser singular à relação plural”, de modo que, nas relações humanas, seja levado a conhecimento público o que pertence ao universo privado. É dessa maneira que Clarice se comunica por meio da crônica: levando ao leitor a sua experiência, a sua reªexão e a perspectiva poética do seu cotidiano. A mensagem contida na crônica, portanto, trará no seu conteúdo o conhecimento da vida pessoal da própria autora, que, por meio da sua expressividade, passará a estar ao alcance do público leitor.

Construído esse panorama, estamos diante de um objeto que contempla o exercício comunicacional de Clarice Lispector, isto é, o diálogo que a sua crônica permite ao levar ao conhecimento do leitor as ocorrências ordinárias de um cotidiano, que é visto pelo

Livro_Clarice Lispector.indd 17 28/10/2015 15:08:38

Page 18: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

18

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

olhar sensível da autora. Em termos metodológicos, faremos a seleção e a análise dos textos constantes em A descoberta do mundo, e estaremos atentos à relação que podemos depreender entre eles e a abordagem do campo da experiência estética, no qual nos interessa buscar referências teóricas para o enriquecimento da análise e para a compreensão da crônica de Clarice Lispector.

Para isso, será tratado, no capítulo inicial, o gênero híbrido com que trabalharemos, uma vez que ele constitui o corpus em que se veri�cam a autoexposição da escritora e os assuntos dos quais ela extrai o potencial poético. Revisitaremos o que se falou a respeito da crônica até aqui e apresentaremos uma visão geral a respeito da possibilidade de mesclar literatura e jornalismo, partindo da realidade para tratá-la de maneira poética e subjetiva, com a liberdade de que a literatura pode gozar e a reportagem não. Uma vez que a própria Clarice Lispector duvidava de sua habilidade para escrever crônica, cabe nos dedicarmos a uma abordagem que contemple esse gênero e as peculiaridades que o caracterizam, além de questionarmos se é válido classi�car como crônica aquilo que o corpus nos oferece. Isso porque, uma vez inseridos em meio à heterogeneidade característica desse gênero, não parece difícil fugir de seus limites, ainda mais em se tratando de Clarice Lispector, a quem não interessava classi�car seus textos como pertencentes a esta ou aquela categoria.

No capítulo seguinte, o foco será a experiência de Clarice Lispector no jornalismo. Falaremos desde sua atuação nas colunas femininas, em que pôde se privar de assinar com seu próprio nome; passaremos, em seguida, por sua experiência como entrevistadora, quando já é possível conhecer melhor a autora por meio de suas

Livro_Clarice Lispector.indd 18 28/10/2015 15:08:38

Page 19: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

19

Vivian Resende Jatobá

revelações e, a�nal, chegaremos ao momento que receberá nossa maior dedicação: seu ingresso como cronista no Jornal do Brasil, em que assinar com o próprio nome lhe traria a insegurança de trabalhar com o gênero, o contato com o leitor e o desnudamento da autora, a partir do que podemos falar do desnudamento do eu.

A seguir, a atenção se voltará para o tratamento das evidências da intimidade exposta no Jornal do Brasil. Trechos de crônicas mostrarão o potencial revelador que tem a crônica escrita por Clarice entre 1967 e 1973. Nosso olhar volta-se para a questão da intimidade manifestada, que será abordada inclusive no �nal do capítulo. Nele, nos dedicamos à abordagem da exposição da intimidade na contemporaneidade, mostrando que o fato de a narrativa de Clarice, embora não tivesse a intenção de desvelar a autora, já sinalizava uma tendência que presenciamos hoje, em um momento em que o eu não deseja mais ser discreto ou recluso, mas sim ter sua presença notada com a ajuda de holofotes, no palco e em clara evidência.

A máscara, meio que ajudava a escritora �ccionista e que lhe servia para preservar-se da exposição de si, será o objeto de interesse do capítulo seguinte. A�nal, ela é o recurso que esconde o autor por trás de narradores, personagens e enredos, alegorias da �cção de que a atividade no jornal tem que abrir mão, obrigando a autora a escrever com a nudez de sua própria alma. Teremos a oportunidade de falar de crônicas que, em outras coletâneas, são classi�cadas como conto e falaremos acerca dos limites inde�nidos entre �cção e realidade na escrita de Clarice Lispector.

Posteriormente, esmiuçaremos a relação que se dá entre emissor e receptor, autor e leitor, aproximados pela abordagem do real, pela

Livro_Clarice Lispector.indd 19 28/10/2015 15:08:38

Page 20: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

20

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

exposição de um eu que se dá a conhecer e torna o seu mundo aberto ao ingresso do outro. Aí se pretende explorar o corpus da crônica que se volta justamente para o contato com o leitor, a referência explícita que se faz a ele. A partir da explicitação desses trechos, outros teóricos serão explorados para que se aborde justamente, e com a devida atenção, o que se diz a respeito da inclusão e da troca com o leitor. Será interessante, por isso, trazer textos não apenas assinados pela própria Clarice Lispector, mas também de teóricos que foram seus leitores e que têm muito a dizer acerca da identi�cação com a autora, aspecto que certamente contribui imensamente para que haja a troca entre os dois sujeitos do discurso, de modo que a crônica se torne o texto acessível e atrativo que é.

Por �m, o último capítulo se dedica ao estudo da experiência estética veri�cado nas crônicas de nosso corpus. A análise dos textos se articula aos estudos que nos permitem enxergar a transição do banal para o sublime, de modo que seja possível perceber de que maneira a autora recria suas próprias experiências para colocar ao alcance do leitor um retrato mais sensível da realidade. Perceberemos que Clarice brinca de pensar, como diz em um dos seus textos, e que coloca seu olhar a serviço da percepção de eventos banais, nos quais enxerga alguma riqueza.

Livro_Clarice Lispector.indd 20 28/10/2015 15:08:38

Page 21: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

21

I. A crônica

“Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.”

(Clarice Lispector)

A crônica, por sua circulação no jornal, está presente na vida diária dos leitores. Isso faz dela um gênero popular, mas tal

característica não basta para de�ni-la; precisamos destacar outras, que nos deixem a par da singularidade desse gênero. Trabalha-se, sobretudo, com a certeza de que é um texto pessoal, em que se permite ao autor falar com a própria voz, dispensando o formato mais limitado de um texto jornalístico – que carrega consigo a obrigação de, imparcialmente, levar ao leitor uma informação. Por outro lado,

Livro_Clarice Lispector.indd 21 28/10/2015 15:08:39

Page 22: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

22

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

se estamos nos afastando da abordagem jornalística, também não nos abandonamos completamente à literatura.

O hibridismo característico desse gênero nos impede de de�ni-lo, o que, portanto, amplia nossas possibilidades e nos faz pensar que os textos de Clarice Lispector em A descoberta do mundo não pertençam exclusivamente a essa categoria, embora o livro se apresente como uma coletânea de crônicas. À própria autora não interessava classi�car seus textos, no entanto, ela tentou se ajustar às exigências de um veículo como o jornal. O que se pretende neste capítulo é delinear o gênero, a �m de, posteriormente, discutir se o que Clarice fez coincide com o que a crônica tem como características.

Clarice Lispector tinha consciência de que seu texto para o Jornal do Brasil seria lido por mais pessoas do que suas obras �ctícias, em virtude da veiculação semanal do gênero. Não por acaso, sua linguagem é mais acessível nele. E, como bem lembra Antonio Candido, a crônica evita oferecer “um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes.” (CANDIDO, 1995, p. 5). Estamos, portanto, diante de um hibridismo jornalístico-literário, em que o autor livra-se do rigor da impessoalidade e tem a liberdade de criar conforme inspira o cotidiano, uma vez que o nome do próprio gênero é derivado do grego chronos, cujo signi�cado é “tempo”.

A respeito do cronista e de sua obra, Massaud Moisés já nos introduzira o hibridismo do gênero, dizendo que

O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o �ccionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia.

Livro_Clarice Lispector.indd 22 28/10/2015 15:08:39

Page 23: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

23

Vivian Resende Jatobá

Aliás, como procede todo autor de �cção, com a diferença de que o cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe �ltre as impurezas ou lhe con�ra as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo �ccionista de lei. De onde as características da crônica, como também suas grandezas e misérias, resultarem dessa inalienável ambiguidade radical. A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia. No primeiro caso, a crônica envelhece rapidamente e permanece aquém do território literário: na verdade, a senescência precoce ou tardia de uma crônica decorre de seus débitos para com o jornalismo stricto sensu. (MOISÉS, 2005 apud KLÔH, 2009, p. 57).

Das palavras de Massaud Moisés, o que nos interessa ressaltar é o potencial de poeta e �ccionista atribuído ao cronista, que, por sua vez, parte do cotidiano recriado, fantasiado e munido do poder da fantasia. Essas possibilidades de representação livre do cotidiano, ainda que se esgotem rapidamente em virtude da efemeridade do gênero e do veículo em que se publicam, representam a face mais humanizada de cada fato diário. Do mesmo modo, é permitida a associação com o que disse Gustavo de Castro: “O jornalismo trata dos mesmos dramas humanos que a literatura, só que através do �ltro da rotina” (CASTRO, 2002, p. 75). Isto é, dramas humanos

Livro_Clarice Lispector.indd 23 28/10/2015 15:08:39

Page 24: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

24

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

estão presentes tanto na objetividade jornalística quanto na liberdade literária. À liberdade da literatura se une a possível e atrativa poetização do que há de mais trivial em nós, seja no cotidiano, seja nas dores mais existenciais. A crônica se situará nesse intervalo, já Clarice Lispector permanece um desa�o deslocado de de�nições.

Antonio Candido contribui dizendo que, quanto às crônicas, “por serem leves e acessíveis, talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o dia” (CANDIDO, 1995, p. 11). Essa perspectiva nos leva a crer no seu poder de, despretensiosamente, expor os dramas humanos de que Gustavo de Castro fala e, a partir deles, despertar poéticas que dialoguem com suas angústias, como �cará claro à medida que nos apropriarmos da amostra de A descoberta do mundo. Candido nos chama também a atenção, a partir da crônica “Ser brotinho”, de Paulo Mendes Campos, para o fato de que ser cronista consiste em “dar aos objetos e aos sentimentos um arranjo tão aparentemente desarranjado e na verdade tão expressivo, tirando signi�cados do que parece insigni�cante” (p.13), isto é, ocupar-se da trivialidade diária e extrair dela um sentido que só um olhar mais sensível é capaz de enxergar é o exercício do cronista, que não pode trabalhar de outra maneira senão poeticamente. Assim, as imagens extraídas da crônica são de natureza sensível e a riqueza desse gênero está em despertar a expressividade do autor a partir da matéria do dia a dia, que será colocada a serviço da comunicação com o leitor.

A crítica literária, por sua vez, deixa a crônica à margem da sua atenção, embora o potencial poético despertado pelo gênero pudesse ser mais explorado. Em comparação ao romance e ao poema, que

Livro_Clarice Lispector.indd 24 28/10/2015 15:08:39

Page 25: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

25

Vivian Resende Jatobá

já chamam para si mais atenção, a crônica �ca em um lugar mais desprestigiado do interesse intelectual. Isso porque o texto é efêmero e ainda “coage o autor a uma elaboração relativamente despoliciada, na medida em que é matéria para o jornal do dia seguinte” (DIMAS, 1995, p.48). Dimas pontua ainda que não é justo comparar literatura a jornalismo e em virtude disso desprestigiar a crônica. Isso porque os dois campos têm em comum o uso da palavra, mas as �nalidades são muito distintas. O jornalismo não se compromete em, como a literatura predominantemente faz, deixar uma obra para o futuro. Seu produto parte sobretudo da referencialidade (isto é, da prioridade de informar), e não da poeticidade (que prioriza a expressividade e o cuidado estético com o texto). Por sua vez, a crônica, dentro do jornal, é o espaço em que não se leva tão a sério a obrigação de informar, tampouco a de criar uma obra memorável e cuidadosamente composta como quando se escreve um romance. Tal fato, entretanto, não tira seu valor. O terreno em que a crônica nasce é fértil, pois se trabalha com o presente e com a espontaneidade, o que dá ao seu autor a voz e a oportunidade de tratar acerca do cotidiano. Ainda segundo Dimas, a crônica adquire valor em virtude de seu potencial de revelar seu autor.

Com o desnudamento do autor perante o público e a partir de um exame severo de sua produção, perguntamo-nos se não seria possível o levantamento de determinadas linhas-mestras que informam sua ideologia. [...] não seria a crônica um veículo

Livro_Clarice Lispector.indd 25 28/10/2015 15:08:39

Page 26: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

26

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

generoso para identi�car as matrizes ideológicas que se ocultam sob sua retórica? (p. 49).

Não por acaso estamos interessados na crônica clariceana. Uma vez que a crônica traz tão claramente uma posição do autor acerca da realidade – e não fornece mais a �cção como pano de fundo no qual atuam um narrador e personagens envoltos em um enredo –, torna-se nítida a contribuição desse gênero na tentativa de entender melhor o cronista e seu modo de vida, ainda mais se lhe é dado o direito de expressar-se sensivelmente a respeito do que assuntos diários inspiram. Como disse Antonio Candido, “por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem nevcessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia”. (1995, p. 5).

Essa sensibilidade, compartilhada entre autor e leitor por meio da espontaneidade e disponibilidade da crônica, é, por sua vez, exibida na crônica de Clarice para o Jornal do Brasil, como se pretende mostrar aqui. Jorge de Sá, sublinhando fatores relativos à proximidade entre autor e leitor, além da própria exposição do autor, diria que

A vida diária se torna mais digna de ser vivida quando a convivência com outras pessoas nos leva a olhar para fora de nós mesmos, descobrindo a beleza do outro, ainda que expressa de forma simplória, quase ingênua, mas sempre numa dimensão que ultrapassa os limites do egocentrismo. Assim, quando o

Livro_Clarice Lispector.indd 26 28/10/2015 15:08:39

Page 27: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

27

Vivian Resende Jatobá

cronista fala de si mesmo [...], é a vida que está sendo focalizada por uma câmara disposta a alcançar um amplo raio de ação. (SÁ, 2005, p. 22, grifo do autor).

O mesmo autor ainda nos conduz de modo a acreditar que, em um texto que preza pela espontaneidade de seu conteúdo e proximidade com o leitor,

[...] nos deleitamos com a essência humana reencontrada, que nos chega através de um texto bem elaborado, artisticamente recriando um momento belo da nossa vulgaridade diária. Mas esse lado artístico exige um conhecimento técnico, um manejo adequado da linguagem, uma inspiração sempre ligada ao domínio das leis especí�cas de um gênero que precisa manter sua aparência de leveza sem perder a dignidade. (p. 22).

Traços que revelam a natureza e a �nalidade desse gênero são ressaltados e, entre eles, há ainda o coloquialismo da linguagem, mais um atrativo para que o público leitor reconheça nesse texto o seu valor. Con�gura-se, portanto, um cenário em que autor e leitor estão igualmente dispostos a ter uma conversa livre, ao mesmo tempo afastada do rigor e da objetividade do jornalismo e da literatura, que se disfarça com máscaras e recursos de linguagem que dão força à �cção. Sá ressalta:

Livro_Clarice Lispector.indd 27 28/10/2015 15:08:39

Page 28: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

28

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória ganha sua dimensão exata. (p. 10-11).

Antes de tratar da experiência clariceana como cronista, convém lembrar as considerações de Walter Benjamin acerca do narrador. O autor, em 1933, já temia o desaparecimento dessa �gura. Isso porque a narrativa artesanal que se fazia antigamente vinha perdendo espaço à medida que evoluíram as tecnologias. Nas palavras de Paula Sibilia, Benjamin temia que “toda essa agitação teria gerado uma perda das possibilidades de reªetir sobre o mundo, bem como um inevitável distanciamento com relação às próprias vivências” (SIBILIA, 2008, p. 39). Benjamin esclarece que a �gura do narrador está fadada à extinção, uma vez que a aceleração e a mecanização de nossa vida deixam de valorizar a experiência e transferem seu valor para a informação. E essa informação, que carece de comprovação na realidade, nos compromete a imaginação e a troca de experiências.

Hoje é interessante pensar que a crônica, em alguns pontos, pode trazer o resgate da narrativa cujo desaparecimento era temido pelo �lósofo alemão. Isso porque a crônica não tem como objetivo informar, ela não leva ao leitor um fato que não gere sua reªexão. Pelo contrário. Embora parta da vida cotidiana, sempre tão acelerada, a crônica é o momento da conversa, da troca, do contato com o leitor por meio da aproximação, que parte de assuntos do dia a dia que

Livro_Clarice Lispector.indd 28 28/10/2015 15:08:39

Page 29: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

29

Vivian Resende Jatobá

suscitam reªexões compartilhadas. A riqueza da crônica está aí. Ela é pessoal, valoriza a experiência e o cotidiano, não se limitando exclusivamente à transmissão de informação.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994, p. 198).

Partindo, portanto, da experiência pessoal e cotidiana, o cronista deve ser valorizado em virtude de seu papel atrativo, que convida o leitor a desfrutar de uma breve reªexão em meio a uma in�nidade de informações. Para isso, ele tem e emprega a liberdade de ser pessoal, possibilidade semanalmente explorada por Clarice Lispector no Jornal do Brasil.

Convém entrar mais em detalhes sobre o que entendemos por experiência. Para John Dewey, a arte não se limita àquilo que se expõe em museus ou galerias, mas é fundada em uma relação mais próxima da nossa vivência diária. É por isso que a abordagem da experiência estética interessa a este trabalho. Trataremos dela mais detalhadamente nos capítulos que destrincham as crônicas de Clarice, mas aqui cabe sinalizar aspectos importantes:

Para compreender o estético em suas formas supremas e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma

Livro_Clarice Lispector.indd 29 28/10/2015 15:08:39

Page 30: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

30

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

bruta; nos acontecimentos e cenas que prendem o olhar e o ouvido atentos do homem, despertando seu interesse e lhe proporcionando prazer ao olhar e ouvir: as visões que cativam a multidão – o caminhão do corpo de bombeiros que passa veloz, as máquinas que escavam enormes buracos na terra; a mosca humana escalando a lateral de uma torre; os homens encarapitados em vigas, jogando e apanhando parafusos incandescentes. (DEWEY, 2010, p. 62, grifo do autor).

Assim, quando falamos em “experiência”, contemplamos as atividades de que nos ocupamos e as vivências que temos em decorrência do aprendizado proporcionado por toda atividade nossa. Essa experiência é matéria-prima para os relatos contidos em uma crônica e é a ela que o autor recorrerá para dar ao seu texto o olhar subjetivo sobre qualquer temática. Dewey acrescenta que

A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de signi�car um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, signi�ca uma troca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, signi�ca uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos. Em vez de signi�car a rendição aos caprichos e à desordem, proporciona nossa única demonstração de uma estabilidade que

Livro_Clarice Lispector.indd 30 28/10/2015 15:08:39

Page 31: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

31

Vivian Resende Jatobá

não equivale à estagnação, mas é rítmica e evolutiva. Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a experiência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa que é a experiência estética. (p. 83-84, grifos do autor).

Isto é, a experiência consiste na base de qualquer manifestação artística, e resulta da relação de um sujeito com algum objeto. Não é diferente do que acontece com a crônica, que nasce das experiências de um autor, seja ele testemunha ou personagem do fato que relata. Esse autor, por sua vez, procede à reªexão, que consiste na atribuição de signi�cados às suas vivências. Daí deriva a crônica, cujo conteúdo é levado ao leitor, com quem se estabelece contato e se realiza um exercício comunicacional por meio de temas cujo tratamento passa pela sensibilidade do autor.

Sem a pretensão de ser um gênero em busca da eternidade, a crônica tem muito a nos dizer. Para voltar a falar de Benjamin, podemos dizer que é, sim, uma manifestação moderna e bem distante da literatura oral e tradicional de que o �lósofo alemão tratava, mas ainda assim é coerente pensarmos que ela seria um modo de resgatar alguns traços de que o narrador benjaminiano se encarregava.

Se antes as narrativas artesanais vinham de longe e eram ouvidas e coletivamente construídas, a vida moderna modi�cou essa realidade e nos impôs um estilo de vida que di�culta encontrar o per�l traçado por Benjamin. Ele considera que “é como se estivéssemos

Livro_Clarice Lispector.indd 31 28/10/2015 15:08:39

Page 32: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

32

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (DEWEY, 2010, p. 83- -84). Se levarmos, porém, em consideração a pessoalidade (isto é, a presença da subjetividade do autor, que se aproxima diante do objeto que contempla), a espontaneidade e o uso da vivência expressos na crônica, podemos pensar que nela existe, sim, o intercâmbio de experiências, ainda que elas não sejam compartilhadas por quem vem de longe. Na crônica, autor e leitor estão à mesma altura, em diálogo construído a partir de um fato despretensioso que suscita reªexão e constrói um vínculo, mesmo que breve, entre emissor e receptor.

Embora hoje se privilegie a informação em detrimento da experiência, a pessoalidade que se pode explorar na crônica permite que de algum modo a experiência seja valorizada. Esse gênero, diante de tais evidências, constitui, sim, uma modalidade contemporânea em que se manifesta alguém que merece tanta atenção quanto o narrador benjaminiano. Nosso interesse é dar atenção menos ao monumental e mais ao circunstancial, o qual também permite que se compartilhem experiências. Nesse sentido, rompe-se com a tradição literária mais antiga e procura-se uma crítica menos preciosista, que favoreça a análise dos gêneros e das narrativas que são (apenas em sua aparência) menores, mas não menos relevantes.

Não signi�ca dizer que chamaremos de narrativa qualquer manifestação pessoal que se veri�que hoje, em virtude de vivermos em uma época diferente da de Walter Benjamin. Há na crônica uma manifestação da intimidade – é o que a amostra da crônica de Clarice vai nos evidenciar neste trabalho –, no entanto, isso não

Livro_Clarice Lispector.indd 32 28/10/2015 15:08:39

Page 33: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

33

Vivian Resende Jatobá

nos dá abertura para considerar que haja a presença do narrador ou qualquer outro valor narrativo nas manifestações de “extimidade” que têm proliferado na internet por meio de gêneros confessionais encontrados em blogs e redes sociais. Nessas manifestações há muito mais uma valorização do eu do que uma intenção de transmitir experiências pessoais convertidas em reªexões. Enquanto na crônica o “eu” é o instrumento para tratar de reªexões surgidas a partir do cotidiano, nas manifestações virtuais o “eu” é o ponto de partida e de chegada, havendo apenas a �nalidade da exposição, da visibilidade e da autovalorização. Esse é um aspecto relativo à intimidade como vem sendo manifestada hoje.

Voltando à crônica, Clarice não manifesta certeza alguma a respeito do gênero.

Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever para o Jornal do Brasil, eu só tinha escrito romances e contos. (LISPECTOR, 1999, p. 112).

Ela, demonstrando preocupação, diz que “deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica” (p. 112). O próprio Rubem Braga, porém, diria, como o citou Humberto Werneck: “Se não é aguda, é crônica”, tornando ainda mais nebulosa qualquer de�nição em que se insista a �m de de�nir esse tipo de texto. Werneck, por sua vez, con�rma, dizendo que

Livro_Clarice Lispector.indd 33 28/10/2015 15:08:39

Page 34: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

34

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

uma das coisas mais difíceis que tem é conceituar a crônica. Muitos estudiosos já tentaram fazer isso, mas ninguém alcançou grande sucesso. Para mim, a crônica é uma boa conversa. (2011, p. 12).

E tal conversa, segundo ele mesmo, seria

aquele momento em que você sente que o autor está sentado no meio �o com você, no mesmo plano, nunca num caixotinho acima, perorando ou dizendo umas coisas solenes, te ensinando alguma coisa. (WERNECK, 2011, p. 12).

É por conversar em tom ameno, em condição de igualdade com o leitor, que a crônica se torna convidativa, de fácil acesso, e muito pessoal. Não se fala com o leitor de maneira amigável abrindo mão do direito à pessoalidade. Assim a conversa inibe as máscaras, e logo entrega a revelação de modos de vida e de pensar, ajudando-nos a delinear cada autor. Machado de Assis, a respeito da origem desse gênero híbrido, destacou seu tom de espontaneidade e conversa:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma diria que não

Livro_Clarice Lispector.indd 34 28/10/2015 15:08:39

Page 35: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

35

Vivian Resende Jatobá

pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica. (apud SANTOS (Org.), 2007, p. 27).

Walter Benjamin, ainda no texto “O narrador”, faz também suas considerações a respeito da crônica. Diz ele, apesar de não falar a respeito da crônica de que tratamos aqui, que “o cronista é o narrador da história” (BENJAMIN, 1994, p. 209) e considera que “no amplo espectro da crônica, todas as maneiras se estrati�cam como se fossem variações da mesma cor” (p. 209). Diferentemente da história e de seu rigor, que privilegiam a informação veri�cável, a crônica será importante porque tratará dos fatos com uma liberdade que provavelmente dará mais margem à reªexão do que a informação, que, transmitida objetivamente pelo historiador, não tende a atrair o público, tampouco gerar reªexão.

É em virtude desse afastamento da crônica em relação à história que devemos considerar que a primeira não traz necessariamente a veracidade. Embora parta de fatos comuns à realidade e tenha sua matéria-prima no cotidiano, ela não é o retrato �el do acontecimento, não tem a pretensão de ser veri�cável como a notícia ou como um documento de valor histórico. É interessante partirmos desse princípio para entender que, em suas crônicas, Clarice Lispector não necessariamente transcreve seu cotidiano, mas usa a verossimilhança

Livro_Clarice Lispector.indd 35 28/10/2015 15:08:39

Page 36: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

36

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

em lugar da veracidade, explorando a liberdade que a crônica lhe concede.

Benjamin mostra-se preocupado com a recepção da narrativa, pois é o que lhe dará sobrevida. Mais adiante, este trabalho ocupar- -se-á da �gura do leitor, que, diante da crônica clariceana, sentir-se-á acolhido e incluído, convidado a um diálogo e provavelmente sujeito à identi�cação com a autora que se expõe.

Clarice, embora manifestasse suas inseguranças, sabia que deveria falar diretamente ao leitor. Ela se dispõe a conversar com ele, faz referências à �gura do receptor e frequentemente faz o exercício da troca. Seu leitor é também seu correspondente, sua companhia, seu interlocutor. É o que ela explicita nas linhas �nais da crônica de nome pertinente: Conversas, publicada em 14 de setembro de 1968, no JB: “Como vocês veem isto não é coluna, é conversa apenas. Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?” (p. 136), fazendo referência a outro texto seu publicado na mesma data, chamado Fartura e Carência.

Mais do que zelar por ser compreensível, Clarice quer, no jornal, comunicar, e o melhor meio não seria outro senão a crônica. Ela aproximará autor e leitor por meio do assunto, trazido do cotidiano para a folha do jornal, semanalmente, e tal aproximação será solidi�cada pela frequente menção que faz à �gura que recebe seus textos. É naturalmente um processo de comunicação, em que a emissora pretende se fazer entender e deseja ser recebida, compreendida, sentando-se ao lado do leitor e conversando com ele – amigavelmente, como não poderia deixar de ser.

Livro_Clarice Lispector.indd 36 28/10/2015 15:08:39

Page 37: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

37

Vivian Resende Jatobá

A crônica tem sobretudo um caráter acolhedor. Ela pode ser ainda, além do meio de Clarice se manifestar intimamente, o seu modo de proporcionar prazer a quem a lê.

Prometo aos meus leitores que serei mais feliz e assim eu os farei, pelo menos por um instante, mais felizes. [...] Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita (p. 95).

A crônica, embora não se de�na facilmente, conquista e constrói um vínculo muito imediato (ou, para usar as palavras da autora, “pelo menos por um instante”) entre quem escreve e quem lê, ainda que seja breve tal relação, e se esgote tão rapidamente, tendo em vista a extensão do texto e a não perenidade do próprio jornal como veículo.

Clarice Lispector encanta-se ao perceber que sair publicada no periódico exerce certa magia sobre o receptor – como se ele a compreendesse mais, ainda que ela não acreditasse que houvesse mudado substancialmente seu modo de se comunicar com os leitores. (ANGIOLILLO, 2004, p. 9).

Como disse a própria Clarice, o leitor espera pela sua voz, isto é, ele pretende encontrar na crônica a voz do autor. Diferente de textos �ctícios, em que é levado ao universo de uma personagem e seus dramas, na crônica o leitor sabe que encontrará a própria realidade –

Livro_Clarice Lispector.indd 37 28/10/2015 15:08:39

Page 38: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

38

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

ou, no mínimo, certa dose dela – e, no lugar da voz de um narrador, a voz do autor. É trazendo a própria voz que Clarice se expõe a tal ponto de falar tão publicamente a respeito de sua intimidade, o que engloba a exposição de sua rotina por meio de episódios que contam com a participação de �lhos, empregadas, amigos. Tudo isso inspira textos, mas parte sempre de eventos que levam as particularidades da vida da autora ao alcance do leitor. Quando ela não protagoniza os episódios contados, é testemunha deles, e se envolve da mesma forma, por meio da subjetividade que lhe é característica. O que se pretende abordar mais adiante é tanto a revelação da intimidade quanto o envolvimento da autora com os acontecimentos que lhe inspiram crônicas. Ela não se sentia confortável, hesitava e descon�ava de sua capacidade enquanto cronista, mas permaneceu escrevendo e, à medida que o fazia, revelava um pouco mais a seu respeito. Em virtude ainda do alcance da crônica, Clarice se popularizou. Não conseguiu evitar que, junto com sua voz, transparecesse em seus textos sua vida pessoal.

Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas, mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada. Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco a minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que

Livro_Clarice Lispector.indd 38 28/10/2015 15:08:39

Page 39: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

39

Vivian Resende Jatobá

se eu escrever sobre o problema da superprodução de café no Brasil terminarei sendo pessoal. Daqui em breve serei popular? (p. 136-137).

A crônica constituía para Clarice um objeto nebuloso, como ainda é para quem ousa falar dela e de suas peculiaridades. A própria autora hesitava quanto a seu desempenho como cronista e “o exercício da �ccionista diante da crônica é quase sempre levado no plano metalinguístico” (p. 9). Veremos, portanto, uma discussão acerca da própria di�culdade em relação ao gênero literário- -jornalístico como uma inevitável exposição de si mesma. Clarice, ainda que desconfortável, lidava com essas duas possibilidades, mas o fazia porque precisava do dinheiro que tal atividade lhe rendia, e não escondia isso de ninguém. Ela sabe também da necessidade de se comunicar com o leitor e da extensão de seu público no jornal, e escreve se expondo a �m de cumprir a tarefa de escrever assinando seu nome, falando por si mesma, e não por uma personagem.

Grosso modo, é como se Clarice fosse obrigada a vender a própria intimidade, embora de maneira distinta como se vê fazerem hoje as pessoas que desejam fama. Não era, de�nitivamente, o caso da cronista e �ccionista. Clarice previa a popularidade, mas, se pudesse, optaria pelo anonimato. O resultado é que a crônica publicada no Jornal do Brasil constitui um retrato de sua vida, uma janela através da qual acompanhamos as angústias que ela não conseguiu guardar. A necessidade de se comunicar a levava a dizer muito de si mesma, explorando a rotina pessoal e abordando pequenos fatos, dos quais

Livro_Clarice Lispector.indd 39 28/10/2015 15:08:39

Page 40: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

40

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

participavam pessoas que faziam parte de sua vida. Na crônica, era inevitável dar-se a conhecer.

A autora tornou-se transparente a partir do momento em que não havia mais a fuga para o anonimato, tampouco a possibilidade do uso de máscaras que na �cção poderiam ser exploradas, de modo que a autora permanecesse “anônima e discreta”, o que necessariamente se opõe ao outro lado da moeda, proporcionado pela experiência no JB: “Daqui em breve serei popular?” Sim, seria. A�nal, o leitor a encontraria facilmente nas páginas do jornal, onde estaria exposto o texto, que, por sua vez, traria a exposição da autora.

Livro_Clarice Lispector.indd 40 28/10/2015 15:08:39

Page 41: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

41

II. A jornalista

Será preciso entrar em detalhes acerca da atividade de Clarice Lispector no meio jornalístico. Precisamos estar a par de sua

vida e da necessidade que a levou a escrever para jornais. Nesta seção, pretende-se esclarecer a atividade da autora como jornalista e sua experiência como cronista no período em que escreveu para o Jornal do Brasil, momento em que deixou transparecer o que até então não se sabia a seu respeito. Cabe aqui, portanto, delinear melhor o nosso interesse e começar a voltar a atenção para dois traços que devem conduzir o objetivo desta pesquisa: a) a exposição de si e o compartilhamento da intimidade, que se torna pública; b) o anúncio de uma aproximação com o leitor, que se sente mais atraído e incluído nos textos da autora em virtude da preocupação dela de se comunicar.

Livro_Clarice Lispector.indd 41 28/10/2015 15:08:39

Page 42: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

42

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Já na década de 1940, “num momento em que as técnicas jornalísticas desconheciam os manuais de redação” (ANGIOLILLO, 2004, p. 3), a autora começou como redatora e repórter na Agência Nacional, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Getúlio Vargas, então presidente da República. Seu modo de escrever já era peculiar àquela época. Não se parecia com o de outros que escreviam no mesmo veículo, já transparecendo “um tom que hoje raramente seria permitido a um jornalista” (p. 4).

Clarice desde então fazia notar a inclinação para a �cção. Nas palavras de Angiolillo, o que ela fazia era “entrar no sentimento do outro.” (p. 4), o que nos permite fazer relação com o que era feito também na sua obra �ccional, em que ela fazia o que Suzana Klôh de�ne como “experimentação da alteridade” (KLÔH, 2009, p. 40). Suas reportagens não eram o relato de acontecimentos dos quais o leitor deveria tomar conhecimento. Eram um relato carregado de um detalhamento além da informação, que atingiam o leitor de outra maneira. Seria o indício do que viria nos anos seguintes, uma vez que, depois de sair do Brasil em virtude do casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, dedicou-se à literatura.

Somente em 1952, casada e de passagem pelo Brasil, Clarice retornou à imprensa a convite de Rubem Braga. Era a sua estreia em Comício, jornal em que assinou com o pseudônimo Teresa Quadros a coluna Entre Mulheres. Como o nome sugere, a autora deveria tratar do universo feminino. Falava de moda, de receitas culinárias, de assuntos do lar.

Livro_Clarice Lispector.indd 42 28/10/2015 15:08:39

Page 43: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

43

Vivian Resende Jatobá

Vivia-se o pós-guerra, e essas áreas sofriam revoluções, com o advento dos eletrodomésticos e de novos tecidos, por exemplo. ‘Entre mulheres’, a coluna, era um bate-papo de Teresa com a leitora. (ANGIOLILLO, 2004, p. 5).

A possibilidade de assinar com outro nome lhe garantia o anonimato e com isso se preservava a identidade da autora, a qual ainda não revelaria suas angústias pessoais, como viria a acontecer anos depois, quando estreasse no Jornal do Brasil. A respeito dessa experiência, Aparecida Maria Nunes declara que a jornalista

tinha de manejar uma linguagem mais despojada e adotar um discurso calcado na estética da imprensa feminina, construída no tom de conversa íntima, afetiva e persuasiva. (NUNES, 2006, p. 8).

Cabe aqui ressaltar que a tal conversa íntima mencionada não revelava, claro, nada a respeito da autora Clarice Lispector, como aconteceria a partir de 1967. Esse tom de intimidade contempla, na verdade, os segredos que geralmente se compartilham e se compreendem no universo feminino. Já nesse espaço, existe a aproximação com a leitora, uma vez que existe o tom de conversa.

A página de jornal, ao se tornar espaço de diálogo, aproximando a colunista de sua interlocutora, através do �o condutor ‘a mulher e o espaço em que vive’, em

Livro_Clarice Lispector.indd 43 28/10/2015 15:08:39

Page 44: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

44

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

alguns momentos, poderá se transformar em pretexto para a escritora iniciar a leitora. (p. 8).

Depreende-se, portanto, o potencial da crônica, gênero que atrai leitores em virtude do compartilhamento de uma realidade comum, da qual tanto autor quanto leitor fazem parte e onde têm espaço para serem pessoais.

Trabalhando com assuntos comuns à mentalidade do público feminino da época, Tereza Quadros acabará por adquirir a con�ança de quem a lê. Conversa sobre coisas simples, revela segredos, apresenta novidades da Europa, ensina como tornar a vida prática e faz com que sua companheira de bate-papo se sinta diferenciada, especial, feminina. (p. 2).

Clarice Lispector sente-se confortável assumindo um pseudônimo. Embora não gostasse de escrever para jornal e o �zesse apenas por necessidade �nanceira, não utilizar o próprio nome lhe dava a possibilidade de se preservar da exposição. Ela usava suas habilidades de �ccionista e teria consigo a máscara da jornalista que escreve para o público feminino acerca dos interesses desse universo. É por isso que Maria Aparecida Nunes fala em “jogo de disfarces”.

Na receita de vestir, a colunista ensina que, na grande moda, ‘são os pequenos detalhes, quase imperceptíveis, que constroem o conjunto’. Por

Livro_Clarice Lispector.indd 44 28/10/2015 15:08:39

Page 45: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

45

Vivian Resende Jatobá

isso, o corte ‘raglan’ das mangas, combinando com uma lapela ovalada, esconde as linhas retas e tira a ‘severidade do sóbrio tecido de inverno’. E a leitora aprende que os detalhes da moda ajudam a compor o feitio, simulando elegância e bom gosto. Mas também, através da fala de Tereza Quadros, se pode identi�car o recurso pelo qual Clarice Lispector se pautou para compor suas páginas femininas e que de certa forma caracteriza sua �cção: o gosto pelo interdito, pelas entrelinhas, pelos pequenos detalhes. (2006, p. 1-2).

Assim, na tarefa de apresentar à leitora um comportamento conveniente, a hábil escritora, por trás do pseudônimo, ressalta a relevância dos detalhes, como ela mesma fazia em sua obra. A coluna assinada com o pseudônimo Teresa Quadros, embora seja importante para nos ajudar a delinear o per�l da jornalista, durou pouco tempo, uma vez que logo Clarice e o marido foram novamente embora do país.

Depois do �m do casamento, Clarice retornou ao Brasil e, a partir de 1959, encarnou Helen Palmer, pseudônimo que utilizaria enquanto escrevesse para o Correio Feminino, do jornal Correio da Manhã. O trabalho continuaria voltado para o público e o universo feminino, mas dessa vez tinha o patrocínio da Pond’s, indústria de cosméticos que orientava que a jornalista devia instruir subliminarmente a leitora a consumir aqueles produtos. Seria mais uma vez uma oportunidade de utilizar as entrelinhas a favor do

Livro_Clarice Lispector.indd 45 28/10/2015 15:08:39

Page 46: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

46

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

que a pro�ssão exigia e mais um recurso de disfarce para a autora, acostumada a utilizar máscaras, o que não daria ao leitor pistas de quem estava por trás do pseudônimo.

Já no Diário da Noite, até 1961, a convite de Alberto Dines (que soube, por intermédio de Otto Lara Resende, que Clarice Lispector precisava de trabalho), a autora seria ghost-writer de Ilka Soares, modelo e atriz brasileira da época. A coluna seria “Só para mulheres”:

No espaço feminino do Diário da Noite, desaparece a vocação professoral das colunas anteriormente conduzidas por Clarice. Ilka é a ‘amiga’ esperta, que conhece o último grito da moda, sabe onde encontrar as melhores ofertas e ainda compartilha segredos caseiros. (NUNES, 2006, p. 8).

Clarice assumiu, portanto, papéis de mulheres que desejavam instruir e dialogar com a leitora que a acompanhava. O universo feminino de que tratou em tais oportunidades não contemplava problemas de natureza amorosa, tampouco qualquer outro assunto que a conduzisse a uma abordagem individualmente íntima, em que coubesse falar de sentimentos. Clarice se dedicava ao ofício

de falar para mulheres em linguagem acessível, distanciada completamente do hermetismo de sua �cção, e sobre assuntos que interessam à natureza feminina. (p. 10).

Livro_Clarice Lispector.indd 46 28/10/2015 15:08:39

Page 47: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

47

Vivian Resende Jatobá

Aparecida Maria Nunes caracteriza essa atuação como semelhante a uma “conversa íntima, ao pé do ouvido” (2006, p. 11), em que poderia haver a troca entre emissora e receptora, ambas compartilhando as particularidades do universo feminino a que pertenciam. Trata-se de “uma outra Clarice Lispector, menos introspectiva e mais trivial, que, agora, tem a oportunidade de sobrepujar o tempo e a folha de jornal” (p. 12). A autora daqueles textos não era conhecida, pois era fruto da habilidade �ccionista de Clarice, que conseguiu se esconder por trás dos pseudônimos. Ela só largaria a máscara anos depois, em uma possibilidade que seria inaugurada a partir de 1967 e se estenderia até 1973, período em que escreveu para o Jornal do Brasil, também a convite de Dines. O jornalista, a respeito da autora, antecipa-nos o desa�o que viria adiante:

Clarice era reservada. Ia pouco à redação, preferia tratar por telefone. Pensava que era involuntariamente discreta por causa do acidente que deformou parte de seu corpo. Era uma pessoa muito bonita. Com o tempo, ela acostumou-se às marcas da queimadura, mas em mim �cou a impressão que viveu sempre se protegendo daquelas cicatrizes. Nunca consegui saber se o seu modo esquivo em lidar era anterior ou se nasceu com o incêndio em seu colchão. En�m, Clarice era tudo menos óbvia. Ela era secreta.

Livro_Clarice Lispector.indd 47 28/10/2015 15:08:39

Page 48: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

48

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Uma autora reservada, portanto, deveria, a partir de então, deixar pseudônimos e recursos �ctícios para escrever um gênero com o qual não sabia lidar senão sendo outra e tratando de assuntos limitados pelos interesses femininos da época. Dessa vez, assinando com o próprio nome, Clarice Lispector se revela insegura. Embora não fosse novidade atuar na imprensa, seria sua tarefa escrever crônica, um gênero que a deixava temerosa a ponto de compartilhar com o leitor sua incerteza. Era apenas um elemento do universo de coisas que ela passaria a compartilhar. As crônicas, hoje reunidas em A descoberta do mundo, trazem uma Clarice mais crua, que não cria mais um universo �ctício, tampouco pseudônimos atrás dos quais possa se esconder, mas que, no lugar disso, leva ao leitor seu próprio universo, ainda que íntimo. Então serão compartilhadas angústias relativas aos �lhos, ao cotidiano doméstico, às empregadas, às lembranças da infância, às visitas que faz e recebe. De acordo com Marta Milene Gomes de Araújo, a partir do momento em que Clarice se dedica às crônicas do Jornal do Brasil,

Ela se enquadraria na de�nição de Sá (1985) de ‘narradora-repórter’. Isso porque, sem seguir uma estrutura padrão, Clarice registra o mundo super�cial e o circunstancial de forma simples, discorrendo sobre temas urbanos combinados com elementos da natureza como bichos e ªores. Misturando jornalismo com literatura, suas crônicas – muitas vezes assumindo a forma de conto – resultam numa poetização do cotidiano, aliando a linguagem direta

Livro_Clarice Lispector.indd 48 28/10/2015 15:08:39

Page 49: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

49

Vivian Resende Jatobá

com as metáforas, de forma espontânea. (ARAÚJO, 2011, p. 31).

Clarice não vestirá mais máscaras, mas mostrar-se-á plural. Levará ao conhecimento do leitor seus per�s de escritora, de mãe, de cidadã, todos eles protagonizados por ela mesma. Pequenos fatos se tornam su�cientes para despertar reªexões que ganham seu lugar na crônica. A partir de então, Clarice se torna uma autora que se aproxima do público pela própria voz. As personagens, dessa vez, não são criações ilusórias. São pessoas, além dela mesma, que fazem parte de sua vida e que aparecerão em seus textos. Tem-se, portanto, elementos que fazem parte da vida compartilhados, tornando visíveis a vida e a intimidade de sua autora.

Depois da atividade nas colunas femininas a que se dedicou, cabe falarmos também de seu papel como entrevistadora. É a partir dessa função que Clarice permitir-se-ia conhecer mais do que se sabia a seu respeito até então. Desde maio de 1968, ela realizou entrevistas para a revista Manchete e, em tais oportunidades, revelou muito acerca de si mesma, mesmo que estivesse no papel de entrevistadora e não no de entrevistada. Embora a função referencial seja característica do trabalho na imprensa, nesse papel Clarice Lispector se manifesta e se mostra muito pessoalmente.

Como entrevistadora, o foco parece estar mais em quem indaga do que a quem se dirige a pergunta. Ao entrevistar conhecidos, “cria-se frequentemente um clima íntimo e descontraído, e ambos – entrevistadora e entrevistado – acabam por se mostrar com naturalidade” (KLÔH, 2009, p. 31), de modo que ambos se

Livro_Clarice Lispector.indd 49 28/10/2015 15:08:39

Page 50: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

50

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

revelam e a entrevista torna-se um momento que dá margem para a exposição: “O senhor já se sentiu alguma vez em estado de graça? Eu, humildemente, já senti mais de uma vez. Morro de saudade de sentir de novo, mas tanto já me foi dado que não exijo mais” (LISPECTOR, 1999 apud KLÔH, 2009).

Nas palavras de Claire Williams, professora de línguas e culturas lusófonas na Universidade de Oxford, as entrevistas que ela conduziu tornam-se invulgares, porque podiam a qualquer momento virar conversas íntimas e sem a objetividade de um repórter” (WILLIAMS, 2007, p. 9), o que, portanto, já traz à tona a singularidade de seu trabalho como jornalista que dá voz ao íntimo. Ainda de acordo com Williams,

às vezes ela oferecia informação pessoal para incentivar os outros a falar: ‘Fernando [Sabino], por que é que você escreve? Eu não sei por que escrevo, de modo que o que você disser talvez sirva para mim. (WILLIAMS, 2007, p. 9).

Segundo Suzana Klôh, “mais que mero instrumento, Clarice também é objeto de suas entrevistas” (KLÔH, 2009, p. 32), e também se pode dizer o mesmo a respeito das crônicas de que se pretende falar a seguir.

O anonimato de que Clarice pôde gozar até 1967 se quebra completamente a partir do momento em que passou a escrever para o Jornal do Brasil. As entrevistas de que falamos já nos antecipavam a exposição e o compartilhamento de si mesma e da própria vida,

Livro_Clarice Lispector.indd 50 28/10/2015 15:08:39

Page 51: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

51

Vivian Resende Jatobá

mas nas crônicas isso será ainda mais evidente. Por ter vivido no exterior enquanto foi casada, a autora criou suas obras e teve seu nome conhecido, mas não sua história. Pelo menos não da maneira como aconteceu depois que começou a assinar as próprias crônicas. Ela pôde ainda se preservar com o anonimato enquanto escreveu as colunas femininas. É sua atividade no Jornal do Brasil que inaugura um desnudamento. Não bastasse a pessoalidade permitida pelo próprio gênero que escreveria, Clarice diz muito a seu respeito. “Escapa dos trilhos que tenta se impor. E fala de si, de seus sentimentos – en�m, encontrando, também no novo gênero, o caminho expressivo que passa pelo coração” (ANGIOLILLO, 2004, p. 8-9). É isso que abrirá portas para que se possa falar acerca da exposição de sua intimidade. A esse respeito, a crônica “Amor imorredouro”, de 9 de setembro de 1967, será ilustrativa. Trata-se justamente da con�ssão da própria autora que transita do anonimato para a popularidade, e que ainda se sente desconfortável com o gênero e com a possibilidade de exposição:

Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neó�ta no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como pro�ssional, sem assinar. Assinando, porém, �co automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. (LISPECTOR, 1999, p. 29).

Livro_Clarice Lispector.indd 51 28/10/2015 15:08:39

Page 52: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

52

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Nitidamente, o texto começa com a revelação e o compartilhamento de experiências da própria autora, que sente a necessidade de revelar ao público a sua insegurança, decorrente de sua atividade enquanto jornalista que, até então, não havia assinado os textos com o próprio nome. Sente-se, então, o receio de estar vendendo a alma, o que, neste livro, tratamos como a venda da intimidade, que é exposta para que a cronista possa ganhar dinheiro, como ela sempre diz precisar.

Prosseguindo a crônica daquele sábado, ela continua falando de uma conversa com amigos, em que falava justamente de estar vendendo a alma. E, referindo-se posteriormente ao leitor, diz: “vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma – a parte da conversa de sábado” (LISPECTOR, 1999, p. 29). Desse modo, além de compartilhar uma conversa que teve, a cronista se dispõe a conversar também com o leitor, vendendo-lhe a alma e estabelecendo o �o de comunicação que a crônica requer.

Ela continua falando da escolha dos assuntos que caberiam na sua coluna. Em conversa com seus amigos – que compartilha com o leitor –, diz ter chegado à conclusão de que o que mais interessa à mulher é o homem e vice-versa. E, partindo dessa constatação, prossegue a crônica falando acerca do caso contado por um chofer com quem conversou enquanto fazia uma de suas viagens de táxi. Conta a história do chofer, expondo-o também, a�nal, não expõe só a si mesma, como também a todas as pessoas de quem fala em seus textos. Clarice diz que o chofer “encontrou em mim ouvidos distraídos” (p. 32) e ela, por sua vez, encontra os olhos dos leitores, dispostos a encontrá-la no oásis que os livrará da aridez das notícias

Livro_Clarice Lispector.indd 52 28/10/2015 15:08:39

Page 53: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

53

Vivian Resende Jatobá

secas. Assim, estabelece o diálogo com o leitor, fala acerca de si e de quem despertou um assunto que poderia ser tratado naquele sábado. É como age a cronista na tentativa de, ainda que sem segurança, escolher um assunto que possa ser comunicado.

Clarice tem, nitidamente, a necessidade de se comunicar, e passa a fazê-lo por meio da primeira pessoa e da liberdade que lhe é concedida para falar do que o cotidiano puder inspirar. A esse respeito, na crônica “Anonimato”, de 10 de fevereiro de 1968, ela diz:

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria �car calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. (p. 75-76).

Fica evidente que a autora prefere o anonimato, preservando--se da exposição, embora não consiga evitá-lo porque precisa de dinheiro. É por essa razão que, apesar de soar extremista, pode-se dizer que a ela vende sua intimidade. Assinando seu texto, ela já não pode mais se ver confortavelmente escondida por qualquer um

Livro_Clarice Lispector.indd 53 28/10/2015 15:08:39

Page 54: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

54

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

dos pseudônimos que já havia utilizado. Esse fato gera incômodo na escritora, que manifesta e deixa claro em muitos momentos que sua atividade na imprensa, como cronista, justi�ca-se pela necessidade �nanceira. Não por acaso, além de temer não saber escrever a crônica, ela teme a exposição indesejada.

Sabendo ainda que se tornou mais acessível em virtude de sua publicação na imprensa, ela faz referência à �gura do leitor:

O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor. (LISPECTOR, 1999, p. 79).

Evidencia-se no trecho a ligação – agora mais estreita – entre autor e leitor, de modo que o encurtamento desse vínculo permite que o segundo saiba muito mais a respeito do primeiro. O gênero textual e as várias possibilidades temáticas que ele contempla favorecem essa realidade. O escritor, que expõe a própria voz, expõe também a sua realidade, a profundidade de seus pensamentos e alguns de seus silêncios. O leitor, por sua vez, diante de palavras que revelam tanto aquele que escreve, sente-se mais atraído e também escritor. Existe aqui, portanto, a solidi�cação de uma relação que desconhece as fronteiras que haveria, por exemplo, no romance e no conto, obras de caráter �ctício que não têm o mesmo potencial revelador, uma vez que nestes se manifesta um narrador, envolvido ou não em um

Livro_Clarice Lispector.indd 54 28/10/2015 15:08:40

Page 55: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

55

Vivian Resende Jatobá

enredo �ctício. Aqui convém ressaltar as palavras de Marta Araújo (2011, p. 31), que diz:

Escrever para o jornal era invadir um meio excessivamente exposto, efêmero e demasiadamente próximo de um interlocutor desconhecido. Envolvia uma intimidade que desagradava, até certo ponto, a escritora, mas que, por isso mesmo, oferecia-lhe a oportunidade de vivenciar uma abertura para o mundo vulgar que talvez não obtivesse por outros meios. Era uma escrita diferente do livro, esse espaço mais intimista e seletivo, no qual se sentia mais à vontade, mas que também a segregava de um contato que necessariamente precisaria estabelecer com o público, se desejasse ser lida.

O mundo vulgar a que Araújo faz menção diz respeito ao mundo não �ctício, em que diariamente o indivíduo se vincula a problemas de ordem social, por exemplo. A crônica, publicada em jornal, é o espaço para que a autora fale a respeito desse mundo com sua própria voz, o que muitas vezes a leva a falar também de si mesma, isto é, de seu mundo interior. Essa proximidade da realidade é o que abre portas para que se exponha a intimidade do escritor que, enquanto �ccionista, pôde recorrer a narradores e alegorias que falassem em seu lugar. Se o livro, como diz Araújo, é o espaço mais intimista, não signi�ca que nele se conheça a intimidade do autor do modo como a crônica permite. Signi�ca apenas que a ele tem acesso

Livro_Clarice Lispector.indd 55 28/10/2015 15:08:40

Page 56: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

56

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

somente o leitor mais interessado, e não aquele que recorre ao jornal diariamente e se depara com a frequente crônica e sua abordagem da realidade de um ponto de vista pessoal.

Clarice Lispector diz que

num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compromisso nenhum. (LISPECTOR, 1999 apud ARAÚJO, 2011).

Talvez por isso a própria escritora se considerasse amadora. Ela dizia que só escrevia quando queria, mas isso diz respeito apenas à sua �cção, pois se sabe que, trabalhando com a crônica, existem a necessidade e o compromisso com o jornal de escrever semanalmente. Isto é, pro�ssionalmente, Clarice escreve crônicas e isso lhe dá a consciência de que há diante de si a �gura do leitor, que recorre frequentemente ao jornal e à própria autora, enviando-lhe correspondências. Já enquanto �ccionista, ela se considera amadora, escrevendo quando quer e sem o compromisso de dialogar com o leitor, que chegará à sua obra intencionalmente, e não apenas por encontrá-la ao acaso como se encontra uma crônica ao folhear o jornal.

A crônica, portanto, implicando a exposição semanal do escritor no jornal, derruba eventuais barreiras impostas pela �cção e tira do autor sua máscara, uma vez que sua matéria-prima será a própria realidade, na qual tanto ele quanto leitor estão inseridos. Tem-se,

Livro_Clarice Lispector.indd 56 28/10/2015 15:08:40

Page 57: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

57

Vivian Resende Jatobá

por isso, apesar do receio de Clarice, uma aproximação entre escritor e leitor que caracteriza muito bem a crônica. Como Humberto Werneck já havia antecipado, autor e leitor estão no mesmo plano, ambos sentados no meio-�o, em uma conversa despretensiosa, sem o tom de palestra, sem outra necessidade senão a de comunicar. Tal necessidade é tão recorrente que a cronista declara:

Escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser jornalista, como fui e sou hoje, é uma grande pro�ssão. O contato com o outro através da palavra escrita é uma glória. Se me fosse tirada a palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar ou pintar. Alguma forma de comunicação com o mundo eu daria um jeito de ter. E escrever é um divinizador humano. (LISPECTOR, 1999, p. 95).

É o fato de se falar acerca da própria vida, do cotidiano e de histórias pessoais que permite que o leitor se sinta atraído. No oásis lúdico, ele sentir-se-á convidado a receber histórias que o cronista se dispôs a compartilhar, revelando um pouco de si em um texto que se permite a liberdade de falar de si e da visão pessoal que se tem da realidade. Clarice tinha essa consciência e sentia-se mais próxima do leitor, como revela em “Ser Cronista”, crônica de 22 de junho de 1968.

E também sem perceber, à medida que escrevia para aqui, ia me tornando pessoal demais, correndo o

Livro_Clarice Lispector.indd 57 28/10/2015 15:08:40

Page 58: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

58

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

risco daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que não pretendo. Outra coisa que notei: basta eu saber que estou escrevendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo mundo, e não para um livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de escrever se transforme. (LISPECTOR, 1999, p. 112).

Embora não pretendesse publicar sua vida, Clarice não conseguiu evitá-lo. Muito se sabe a seu respeito em virtude do que foi publicado no Jornal do Brasil. Ninguém melhor do que ela mesma poderia ter revelado tanto a seu respeito. Em vez de partir de um fato que �zesse parte de uma realidade comum aos brasileiros ou de partir de um tema que tivesse sido tratado em uma reportagem que compunha o jornal, a autora partia de si mesma. Tratava de seu particular cotidiano, e não de assuntos de conhecimento público ou relativos à realidade social. Já que não criava personagens e não deveria �ccionalizar demais a sua coluna, partia de si mesma, de sua própria vida e de suas histórias pessoais, que rendem reªexões e con�ssões das quais tomamos conhecimento quando lemos e passamos a saber mais sobre a autora.

Certamente a autora diz ao leitor apenas o que lhe interessa que ele saiba. Clarice não lhe dá notícias de sua vida privada, mas compartilha reªexões inspiradas na sua vida doméstica, o que nos situa não no campo da veracidade incontestável, mas no da verossimilhança. Essa, sim, dá pistas de sua vida íntima e leva ao público pouco mais sobre a autora que na �cção só se dava a conhecer

Livro_Clarice Lispector.indd 58 28/10/2015 15:08:40

Page 59: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

59

Vivian Resende Jatobá

de maneira muito implícita, camuªada em �guras de linguagem e recursos que construíam ao redor de si um universo �ccional.

Reconhece-se nos textos de Clarice no Jornal do Brasil a “poética do cotidiano”, termo utilizado por Denilson Lopes (2006) para referir-se ao uso da realidade e da rotina como matérias-primas para a composição de algo em que se perceba a vida do autor e a inserção dele em sua obra, uma vez que ele e seu leitor compartilham, algumas vezes, de uma realidade comum. Apesar de ser possível fazermos essa consideração, a Clarice não agradava que colocasse tanto de si à mostra. “A autora, no mesmo espaço, queixa-se de sua atitude. Diz que a considera pouco apropriada, embora, quem sabe, tivesse mesmo pudor de se mostrar tanto e com tanta frequência” (ANGIOLILLO, 2004, p. 9). Há uma necessidade de comunicação que a move e o fato de saber que está “escrevendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo mundo”, motiva a sua necessidade de se fazer entender, isto é, de comunicar.

Como jornalista, Clarice pretende ser compreendida mais facilmente. Sabendo que não há espaço para longos ªuxos de consciência e criação desmedida, ela deseja ser compreendida por um público que sabe ser muito mais amplo do que aquele que leria um romance seu. “Nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor. Aqui no jornal apenas falo com o leitor e agrada-me que ele �que agradado” (p. 112). A esse respeito, Francesca Angiolillo (p. 9) nos con�rma que

Clarice Lispector encanta-se ao perceber que sair publicada no periódico exerce uma certa magia sobre

Livro_Clarice Lispector.indd 59 28/10/2015 15:08:40

Page 60: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

60

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

o receptor – como se ele a compreendesse mais, ainda que ela não acreditasse que houvesse mudado substancialmente seu modo de se comunicar com os leitores. A cronista usaria seu próprio espaço para agradecer presentes, comentar cartas, mandar recados a quem lhe dedicava o tempo dos sábados. E, sempre, Clarice é ela, presente ali, nas linhas do jornal.

A partir disso se nota que não por acaso estamos interessados em perceber a Clarice que se revela no jornal e que tem consciência de seu desnudamento e simultânea aproximação com a �gura do receptor. Estamos diante de um estudo que se interessa pela percepção da Clarice comunicadora, que revela a primeira pessoa e sabe que se encontra frequentemente diante de uma segunda, com a qual mantém contato. Um fato que pode contribuir para isso é que seus textos são publicados tão logo são escritos. Isto é, há enorme diferença do processo de escrita de um romance, cuja produção demanda tempo e a publicação nem sempre se dá rapidamente. O leitor, portanto, não recebe a obra tão logo ela é escrita.

A crônica, por sua vez, é rápido produto do pensamento de um autor. Breve, ela concentra o pensamento dele acerca de um fato ou reªexão recente. Esse texto é publicado em um veículo mais amplo na mesma semana em que é escrito, isto é, o diálogo entre autor e leitor pode encontrar mais oportunidades de se estabelecer na medida em que ambos compartilham uma realidade em comum, retratada no texto. Tanto a temática quanto a rapidez do processo

Livro_Clarice Lispector.indd 60 28/10/2015 15:08:40

Page 61: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

61

Vivian Resende Jatobá

favorecem essa realidade. Não signi�ca dizer que não haja troca e contato entre quem lê e quem escreve a �cção, uma vez que nela o leitor também pode ser levado à identi�cação com o narrador e ao diálogo com ele.

A peculiaridade da crônica está no fato de ela ser um produto que permite que se estabeleça a comunicação de modo rápido e denotativo. O leitor a lê por entretenimento, fugindo da “aridez das notícias secas” e o cronista a escreve pela liberdade de não precisar informar, embora utilize fatos do cotidiano. Em comparação ao romance, ela é praticamente instantânea. A resposta ao leitor que desejar comentar algum texto chegará provavelmente na semana seguinte ou na outra, com a publicação de um novo texto. Esse gênero, portanto, enriquece a possibilidade de interação entre quem escreve e quem lê. Nasce da espontaneidade do autor e encontra a disponibilidade do leitor que deseja entretenimento no lugar da informação, consistindo, assim, em um veículo em que o encontro se torna inevitável.

É por meio da frequência dos encontros, inclusive, que há o reconhecimento daqueles que estabelecem diálogo semanalmente no jornal e, à medida que o autor revelar a seu respeito, seu leitor o conhecerá e sentir-se-á atraído, pois nada pode lhe interessar mais do que conhecer aquele que lhe chama atenção semanalmente. Infere-se, portanto, que a exposição do autor encontra eco no leitor, associando a exibição da intimidade ao processo de comunicação. Dessa maneira, o compartilhamento da individualidade de Clarice está articulado ao interesse e à necessidade que ela tem como

Livro_Clarice Lispector.indd 61 28/10/2015 15:08:40

Page 62: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

62

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

comunicadora. Ficam, assim, indissociáveis a exposição de si e o diálogo com o leitor.

Em se tratando da crônica, gênero em que é inevitável falar da presença do autor, entramos em conªito com as ideias de Roland Barthes, que diz que,

para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do autor. (BARTHES, 1988, p. 70).

Isso porque, para ele, não se deve ler uma obra tendo em mente a �gura do autor, uma vez que

a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco onde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (p. 65).

Entretanto, na crônica é inevitável que a �gura do autor se sobressaia.

Apesar de, na �cção, o texto bastar-se, de modo que o leitor ocupe-se apenas da história e do envolvimento que ela provoca, na crônica, o autor parte de uma realidade que é compartilhada por ele e pelo leitor, isto é, não há espaço para a fuga. Pode-se falar na morte do autor quando convém falar na sua ausência, uma vez que ele usará alegorias para manter-se distante de sua obra, de modo que

Livro_Clarice Lispector.indd 62 28/10/2015 15:08:40

Page 63: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

63

Vivian Resende Jatobá

apenas ela baste. Entretanto, quando falamos a respeito da crônica, sabemos que o gênero pressupõe uma liberdade associada ao modo de tratar a realidade, isto é, o autor aparece e não se pode falar na sua morte ou no desaparecimento do sujeito em um caso como esse. É inevitável que a identidade do autor seja aparente nesse gênero, que tratará do cotidiano e é veiculado em um meio que trata justamente da realidade diária, comum a autor e leitor. Dessa maneira, o autor, de quem parte o texto, está tão presente quanto o leitor, a quem ele se destina. O autor não morre em um contexto como este, ao contrário: é evidente a sua voz, sua participação, uma vez que ele toma partido do assunto sobre o qual escreve. Não cabe a ele se expor e tornar sua voz superior ao texto na �cção, mas na crônica ele se despe, encontra-se em um meio em que sua liberdade de falar deve estar associada à realidade.

Michel Foucault também sugere o apagamento da �gura do autor, pois para ele o texto tem autonomia e se basta. À crítica não cabe

destacar as relações da obra com o autor, nem querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência: ela deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas. (FOUCAULT, 2009, p. 269),

Entretanto, como já foi dito, a crônica pertence não a um universo �ctício criado e independente do autor, mas é a realidade abordada poética e livremente a partir dos olhos de um autor presente.

Livro_Clarice Lispector.indd 63 28/10/2015 15:08:40

Page 64: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

64

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Foucault relaciona a escrita com a morte, como se o autor se ausentasse para dar à luz a narrativa, de modo que a história se desenrole na sua ausência, sem que transpareça um traço pessoal do autor. Isso é plausível na �cção, quando o autor utiliza recursos que minimizem sua participação no texto, a �m de que sua presença se transforme em ausência. Entretanto, em um veículo como o jornal, em que não existe a possibilidade de invenção e tudo está atrelado a fatos verídicos, se para o jornalista não é fácil se ausentar do relato da notícia, uma vez que ele é testemunha de um fato que levará ao conhecimento do leitor, não será fácil para o cronista ser indiferente ao assunto de que trata, ausentando-se completamente.

Falar da crônica implica repensar ideias que tão veementemente falam acerca do afastamento, da ausência ou da morte do autor. Para Foucault (p. 269),

Essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular: a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita.

Como se pretende veri�car aqui, a crônica que Clarice escreve entre 1967 e 1973 traz justamente traços pessoais da escritora, portanto não existe nesse gênero o desaparecimento de que Foucault

Livro_Clarice Lispector.indd 64 28/10/2015 15:08:40

Page 65: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

65

Vivian Resende Jatobá

fala. De acordo com ele mesmo, “a noção da escrita bloqueia a certeza da desaparição do autor”, ainda mais se levarmos em consideração os momentos em que a própria cronista fala do escrever. Sua presença se veri�ca no texto, ao contrário do que se pode pensar em sua obra de �cção.

Não por acaso a crônica de Clarice Lispector é o que mais se assemelha a uma autobiogra�a. Em um gênero como este a que nos dedicamos, o texto não é independente, não tem vida própria. Ele traz em si o potencial que o autor tem de apresentar sua visão acerca de pequenos fatos diários, que por sua vez são compartilhados com aquele que terá o jornal diante de si. Portanto, enquanto a �cção se esgota em si mesma, não sendo necessário recorrer à �gura de quem é responsável por ela, a crônica está em constante diálogo com a realidade e é isso que traz a presença do autor, porta-voz de sua visão acerca de fatos que se tornam pretexto para uma poética do cotidiano.

Denilson Lopes, no texto Da estética da comunicação a uma poética do cotidiano, ajuda-nos a elucidar essa questão referente ao uso dos pormenores do dia a dia como matéria para algum produto artístico. O autor sai da abordagem dos Estudos Culturais Britânicos, que situam a arte sempre vinculada a contextos culturais sociais e históricos, e foca na estética que se manifesta na intimidade, no compartilhamento da experiência pessoal. Isto é, o interesse de Denilson Lopes coincide com o nosso olhar voltado para a crônica de Clarice, uma vez que a autora parte de fatos de sua rotina para abordá-los em sua obra.

Livro_Clarice Lispector.indd 65 28/10/2015 15:08:40

Page 66: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

66

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

O desejo de Lopes é “implodir a dialética e/ou dualidade entre arte e sociedade, bem como ir além dos estudos de representações sociais” (LOPES, 2006, p. 117), indo em direção a uma abordagem que contemple a arte não mais como exclusivamente ligada a contextos sociais representativos, mas sim presente no nosso cotidiano e na exploração (e exposição) de nossas experiências. Para o autor,

propor uma poética do cotidiano, quando este é dilacerado pelas transformações urbanas e midiáticas, implica enfrentar o embate ético e estético de pensar os espaços e as narrativas da intimidade, especialmente o da casa. (p. 124).

Isto é, estamos diante de uma possibilidade que explora a privacidade e extrai das experiências pessoais reªexões que se tornam matéria para pensar na poética do cotidiano. Tal possibilidade nos põe em contato com a “paixão pelo real” (LOPES, 2006, p. 126).

Na visão poética do cotidiano, Denilson Lopes reconhece a presença do banal,

que nos conduz à valorização de seu espaço natural: a comunidade, a multidão, o ser/estar junto com, a vida coletiva desordenada e multicolorida que se traduz em três palavras programáticas: senso comum, presente e empatia. (p. 127).

Livro_Clarice Lispector.indd 66 28/10/2015 15:08:40

Page 67: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

67

Vivian Resende Jatobá

Portanto, é levado a público algo que pertença à vida comum de todos nós e aproxima o leitor, que, tanto quanto o autor, insere-se em um cotidiano no qual se deseja enxergar alguma poesia. Essa possibilidade existe na crônica clariceana, uma vez que a autora parte de fatos de sua rotina que são levados ao conhecimento do autor por meio de um tratamento que mistura a liberdade literária à realidade tratada no veículo jornalístico. A arte contemplando a vida real, portanto, é veri�cada na crônica, em que autor e leitor reconhecem a realidade a que estão habituados ser transcrita poeticamente, de tal modo que há o que Lopes chama de:

[...] informalidade que leva à ausência de um grande tema e à descoberta dos aspectos do absoluto na vida cotidiana [...] numa espécie de realismo superior ao realismo de boca de lixo, sem favelas de malandros que corrompem pessoas inocentes, mas realismo que implica um compartilhar as emoções, como uma espécie de impressionismo. (p. 127).

Dessa maneira, a poética do cotidiano consiste na recuperação de uma delicadeza que se perde em meio a temas trágicos recorrentes tanto nos jornais quanto na literatura. Portanto, o foco dessa poética é buscar uma visão voltada para o cotidiano íntimo a �m de sair do explorado retrato social, cujo foco gira em torno da violência e da miséria. O interesse da poética do cotidiano está nos ambientes onde se encontram os afetos humanos, a intimidade, as relações internas que acontecem diariamente dentro de um lar e que podem

Livro_Clarice Lispector.indd 67 28/10/2015 15:08:40

Page 68: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

68

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

fornecer material para a produção de algo que fuja da temática social. O uso dessas relações internas representam a possibilidade de um afastamento da cansativa abordagem de mazelas sociais. A aposta de uma estética que valorize o cotidiano e sua poeticidade, portanto, está “no olhar as pequenas coisas, os pequenos dramas” (p. 137). Esse olhar coincide com o que percebemos no material de Clarice publicado no Jornal do Brasil, uma vez que em suas crônicas reconhecemos o apelo aos pormenores diários que, ao revelar a própria autora, falam também de seu cotidiano. Assim, essa poética do cotidiano é um viés que se percebe na revelação de sua intimidade.

Jorge de Sá também nos ajuda a elucidar que a crônica é espaço onde se pode encontrar a dimensão poética de pequenos fatos da vida diária. De acordo com ele, a liberdade de que o cronista dispõe é o que potencializa sua capacidade de contornar poeticamente o tema abordado naquele dia, por mais banal que ele seja.

[...] até as reportagens – quando escritas por um jornalista de fôlego – exploram a função poética da linguagem, bem como o silêncio em que se escondem as verdadeiras signi�cações daquilo que foi verbalizado. Na crônica, embora não haja a densidade do conto, há a liberdade do cronista. Ele pode transmitir a aparência de super�cialidade para desenvolver o seu tema, o que também acontece como se fosse ‘por acaso’. (SÁ, 2005, p. 9).

Livro_Clarice Lispector.indd 68 28/10/2015 15:08:40

Page 69: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

69

Vivian Resende Jatobá

Ainda de acordo com Sá, mesmo que a crônica tenha impregnada em si a transitoriedade de um gênero que, em princípio, tem seu espaço no jornal de todo dia, isso não a impede de trazer à tona a sensibilidade que se extrai da vida cotidiana. O ar despretensioso desse texto que se assemelha a uma conversa remete a uma circunstância, isto é, a uma motivação que desperte signi�cados mais profundos, como se veri�ca a seguir:

O termo (circunstância) assume aqui o sentido especí�co de pequeno acontecimento do dia a dia, que poderia passar despercebido ou relegado à marginalidade por ser considerado insigni�cante. Com seu toque de lirismo reªexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. (p.11).

Dessa maneira, a matéria-prima da crônica põe em cena assuntos aparentemente banais, que despertarão abordagens mais profundas à medida que o cronista usa sua liberdade e consegue atingir justamente “a complexidade das nossas dores e alegrias”. É nisso que consiste a poética que se deseja sublinhar aqui e é no potencial de revelar poéticas que está o valor atribuído à crônica. No caso de Clarice Lispector, não seria diferente, pois em A descoberta do

Livro_Clarice Lispector.indd 69 28/10/2015 15:08:40

Page 70: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

70

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

mundo não se percebe apenas a presença da autora, mas também a sua relação com o mundo e o uso de fatos pequenos que têm a nobreza de carregar consigo não apenas a poética do cotidiano, mas tantas outras que se percebem à medida que se tem contato com o que está à nossa volta.

A poética, aliás, não é limitada ao tratamento do cotidiano. Ela pode ser plural, consistindo, portanto, em poéticas que valorizem com sensibilidade qualquer coisa sobre a qual o cronista lance o seu olhar. A tendência, de modo geral, é sempre captar com mais lirismo algo que muitas vezes escapa aos nossos olhos à medida que nos envolvemos com tantas outras atividades. Nas palavras de Jorge de Sá,

Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado ou de um poeta: vê mais do que a aparência, e descobre, por isso mesmo, as forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores consagrados. É preciso ir mais longe, romper as conceituações, buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a imagem. (SÁ, 2005, p. 48).

No caso de Clarice, não há como negar a sensibilidade com que cada assunto é tratado. Mais do que contar com a presença da cronista como narradora e personagem, os textos de A descoberta do mundo incluem o olhar subjetivo voltado não para a contemplação

Livro_Clarice Lispector.indd 70 28/10/2015 15:08:40

Page 71: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

71

Vivian Resende Jatobá

super�cial do que é tematizado, e sim para o tratamento aprofundado e poetizado de todo o objeto sob o foco da autora. Embora salte aos olhos a exposição da cronista que, até então, pouco havia dito a seu próprio respeito, não há nada que se fale sem que se percebam o envolvimento de quem escreve e a particularidade advinda da sua sensibilidade.

A presença do sujeito Clarice envolve, portanto, a porção de fantasia que se carrega quando se transforma um objeto puro em objeto sensível. Isto é, a presença do autor se percebe pelo fato de que todo objeto tratado em seu texto é visto sob a ótica da sensibilidade. Ainda de acordo com Sá, “eliminar o jogo ilusório é eliminar a própria realidade; estimular o jogo é ampliar o alcance do real” (p. 49), o que nos levará a entender que mesmo na crônica há certa porção de fantasia, a qual estará justamente onde estiver lançada a contribuição da sensibilidade do autor, pois “o sentido da poesia – e, por extensão, da crônica, que tem um suporte poético – está na ultrapassagem do que é, para alcançar o aquilo que pode ou poderia ser” (p. 50).

Assim, em textos como a crônica, não existe apenas a participação explícita de um sujeito que se expõe ou que toma partido de um objeto. Esse sujeito enriquecerá tal objeto a partir do uso da fantasia e da imaginação, de modo que o exercício de contemplação da realidade vá muito além dos limites que existem quando se escreve uma notícia com a obrigação da imparcialidade. A crônica permite “a fusão do sujeito com o objeto, numa troca tão intensa que saibamos ver o outro, para melhor compreender a nossa própria face” (SÁ, 2005, p.51). Portanto, se Clarice teme

Livro_Clarice Lispector.indd 71 28/10/2015 15:08:40

Page 72: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

72

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

se delatar, é por saber que tal delação aconteceria à medida que ela manifestasse seu envolvimento com objetos extraídos de seu cotidiano e de sua vida privada.

O fato de a autora recorrer à infância em muitos de seus textos também decorre da possibilidade de se extrair poesia dessa nostalgia: “a infância, lúdica por excelência e ainda livre dos padrões que ameaçam a criatividade do adulto, é uma gostosa reedição paradisíaca” (p. 53). Na vida urbana e nas responsabilidades da vida adulta é mais raro encontrar os objetos que despertam poesia. A lembrança da infância certamente está rica de possíveis relatos e memórias que, percebidos a partir do olhar do adulto e de sua saudade, facilmente desencadeiam uma sucessão de imagens e sentimentos dignos de inspiração, os quais se tornam fonte para o relato do cronista à procura de seu suporte poético. “Assim, a nostalgia não é uma forma de alienação, mas sim uma preservação daquilo que justi�ca a poesia” (p. 55).

Algumas das poéticas adotadas por Clarice e percebidas em A descoberta do mundo são a poética do próprio cotidiano, baseada no que é contemplado pela autora no dia a dia e que lhe inspira certo lirismo reªexivo; a poética da nostalgia, quando se recorre às imagens e aos fatos da infância, que já vêm impregnados da poesia contida na saudade. Entre uma poética e outra, é interessante notar que a infância está presente. Na do cotidiano, as crianças são os �lhos de Clarice e, na da nostalgia, a infância retratada é a sua própria. Há ainda a poética do sacrifício, percebida por meio da insegurança da autora no exercício do papel de cronista.

Livro_Clarice Lispector.indd 72 28/10/2015 15:08:40

Page 73: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

73

Vivian Resende Jatobá

Retornando à abordagem de Denilson Lopes, deve-se levar em consideração que o autor trata a presença da poética do cotidiano situando-se nos dias de hoje, sem fazer referência à prática dessa possibilidade em uma perspectiva histórica. Entretanto, é possível nos apropriarmos dessas ideias para falarmos do que Clarice Lispector produziu como cronista. Embora o Brasil vivesse, desde 1964 até 1985, o período da Ditadura Militar, não se veem nos textos da autora no Jornal do Brasil retratos sociais que liguem suas inquietações ao contexto político da época. De acordo com Aparecida Maria Nunes,

os editores, em meados da década de 1950, segundo (Paulo) Francis, evitavam-na como praga. Estava em evidência o ‘realismo socialista’, e o texto de Clarice não supria essa demanda do mercado. (NUNES, 2012, p. 103).

Sua temática, a�nal, gira em torno da vida pessoal – seja no presente ou no passado – , de fatos que compõem a vida doméstica, de pessoas que fazem parte de seu convívio e da própria abordagem metalinguística do escrever, tudo sob a ótica do sensível. A realidade e o contexto político da época não estão no foco de sua atenção e assim se manifestam em sua obra as poéticas voltadas para focos distintos, mas sempre distanciadas dos aspectos sociais e próxima dos pormenores e das angústias da vida diária.

Livro_Clarice Lispector.indd 73 28/10/2015 15:08:40

Page 74: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

74

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Nas entrevistas, Clarice procurava não apenas considerar o contexto da época em alguns momentos, mas também voltar-se para a sua subjetividade e do entrevistado. Claire Williams evidencia isso:

Enquanto os estudantes se revoltavam em Paris e na Europa do Leste, enquanto a Apollo 11 chegava à Lua, enquanto a guerra assolava o Vietnã, enquanto a repressão militar no Brasil aumentava, ela fazia aos seus entrevistados perguntas sobre a economia brasileira, os direitos autorais, as manifestações dos estudantes, o planejamento urbano, a pílula anticoncepcional, os isótopos radioativos... Com muita frequência, ela fazia perguntas mais abstratas, profundas, �losó�cas, estranhas: ‘Qual é a coisa mais importante do mundo?’, ‘Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?’ e ‘O que é o amor?’ eram as favoritas. (WILLIAMS, 2007, p. 7).

A poética do cotidiano de que Denílson Lopes fala se manifesta na produção de Clarice na imprensa a partir do momento em que a escritora escreve com seu próprio nome, seja nas crônicas, seja nas entrevistas. A expressão do subjetivo na imprensa é o que particulariza sua participação nas páginas do jornal e nos leva a encontrar pessoalidade e lirismo no veículo em que geralmente se preza por imparcialidade e objetividade.

Livro_Clarice Lispector.indd 74 28/10/2015 15:08:40

Page 75: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

75

Vivian Resende Jatobá

Considerando a necessidade de expressão que Clarice tem e a di�culdade de evitar dizer a respeito de sua vida, pode-se citar a �lósofa espanhola María Zambrano, que, em “A metáfora do coração”, declara: “O profundo é uma chamada amorosa, por isso toda a gruta atrai” (ZAMBRANO, 1998, p. 24), a partir do que podemos fazer inferência acerca do poder de atração exercido pela exibição da intimidade, decorrente das manifestações poéticas. Estamos, portanto, diante de uma possibilidade atrativa. Quanto mais Clarice se expõe por meio do lirismo reªexivo, mais o leitor se interessa. A �gura, antes misteriosa, que utilizava a máscara do narrador de �cção ou do pseudônimo que se encarregava de escrever colunas femininas, dessa vez encontra-se em um espaço em que é inevitável se revelar e, a cada oportunidade, ampliar essa brecha, dando-se a conhecer.

O encanto existe principalmente porque Clarice se torna mais pública e aparentemente acessível do que antes. Se antes a �cção e os pseudônimos a escondiam, a partir do momento em que passa a assinar com o próprio nome, passa a existir também uma atração em torno da possibilidade de conhecê-la melhor. Apesar da excitação que isso gera, deve-se considerar que Clarice não é a jornalista que com o máximo de veracidade possível escreve uma notícia, mas sim uma cronista que, apenas com verossimilhança, traz a público a poética do cotidiano. O potencial atrativo se encontra justamente nessa rotina privada que se faz pública, pois dá ao leitor a impressão de que a autora disse o que sempre tentou esconder, quando na verdade ela mantém os seus silêncios (“Há coisas que nunca escrevi,

Livro_Clarice Lispector.indd 75 28/10/2015 15:08:40

Page 76: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

76

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

e morrerei sem tê-las escrito” (LISPECTOR, 1999, p. 76) e abre brechas para falar um pouco mais de si, o que a assusta.

Zambrano esclarece que o coração seria a sede da intimidade. Todas as profundidades e mais íntimas reªexões, portanto, seriam de uma subjetividade que se guarda no coração, uma gruta que atrai. Como existem a preocupação e a necessidade de comunicar, Clarice se revela mesmo que o pretendesse evitar. María Zambrano esclarece que “a razão é pura manifestação, é a própria comunicação” (1998, p. 22). Seria, entretanto, incoerente o cronista usar a sua possível liberdade limitando-se ao uso da razão. As reportagens têm essa limitação, devem transmitir uma informação objetivamente (tanto quanto for possível) e sua �nalidade é tão somente a de levar algo ao conhecimento do receptor. O cronista, por sua vez, deve atrair o leitor de outra maneira. Uma vez que não lhe cabe dar informação, ele deve lançar mão de outros artifícios que tornem o seu texto atraente. Para isso lhe é concedida a liberdade de ser pessoal, o que Clarice utiliza mostrando ao leitor um pouco de si a partir do seu contato com o mundo, lançando seu olhar poético sobre o que a cerca, isto é, abrindo o coração, possibilitando que o leitor, com quem deseja se comunicar, entre na gruta que revelará sua intimidade. Zambrano certamente valorizaria a autoexposição de Clarice. Segundo a �lósofa,

O coração é a víscera mais nobre porque leva consigo a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas situações, se abre. Este abrir-se é a sua maior nobreza [...] Oferece-

Livro_Clarice Lispector.indd 76 28/10/2015 15:08:40

Page 77: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

77

Vivian Resende Jatobá

se por ser interioridade e para continuar a sê-lo. E isto (interioridade que se oferece para continuar a ser interioridade, sem a anular) é a de�nição da intimidade. (p. 23).

De algum modo, para a �lósofa, é nobre dar-se a conhecer. Talvez, na época em que escreveu “A metáfora do coração”, a intimidade não havia ainda sido vulgarizada como passou a ser no século XXI, quando espaços virtuais se multiplicaram trazendo à tona uma in�nidade de possibilidades e redes cujo propósito é de oferecer ao indivíduo a oportunidade de falar acerca de si. Esse indivíduo o fará dando a conhecer os seus interesses por meio do compartilhamento de links, entregando sua intimidade, suas preferências e seus pensamentos a qualquer um que tiver acesso a seu per�l. Essa possibilidade oferecida pelo meio virtual, claro, distancia-se muito do mistério que, receosa e lentamente, Clarice quebra ao resolver falar de si em suas crônicas. O que se pode dizer é que a autora, por meio de crônicas que faziam referência à própria vida e que dialogavam com o leitor, sinalizava desde então a realidade que vivemos hoje.

Livro_Clarice Lispector.indd 77 28/10/2015 15:08:40

Page 78: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 78 28/10/2015 15:08:40

Page 79: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

79

III. A primeira pessoa

“En�m, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era”

(Clarice Lispector, em A paixão segundo GH)

Em “A escrita de si”, Michel Foucault fala-nos sobre modalidades de texto nas quais as reªexões do autor são a respeito de si

mesmo, consistindo em relatos sobre sua própria rotina e sobre pensamentos que derivam de leituras feitas. Foucault refere-se, mais especi�camente, à caderneta de anotações e à carta, nas quais é inevitável o aparecimento da subjetividade de quem escreve e a revelação de si mesmo. Não trata especi�camente da crônica, mas diz que “escrever é, portanto, ‘se mostrar’, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (2012, p. 152). É de tal declaração que partimos

Livro_Clarice Lispector.indd 79 28/10/2015 15:08:40

Page 80: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

80

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

para falar acerca da experiência de Clarice Lispector como cronista, pois interessa-nos destacar de que maneira ela se mostra ao falar de episódios pessoais e ao reªetir sobre eventos banais, colocando em prática a introspecção, quebrando seu invólucro e �nalmente levando-se ao conhecimento do leitor.

No dia 23 de dezembro de 1967, ano em que começou a escrever para o Jornal do Brasil, Clarice publica “O caso da caneta de ouro”, crônica que inspirará a primeira de algumas reªexões que podemos fazer a respeito da exposição da intimidade da autora por meio desse gênero que se encontra (ou se perde) entre o jornalismo e a literatura.

Esse texto é mais um dos que ganha motivação a partir de fatos cotidianos e aparentemente simples, mas que inspiram reªexão conforme a cronista avança. Clarice conta ter ganhado uma caneta de ouro, o que inicialmente a preocupa pela responsabilidade de imaginar que, com aquele objeto, deve escrever textos valiosos, dignos de uma caneta de ouro. A outra preocupação é relativa aos �lhos, sendo que apenas um deles manifestou interesse pelo objeto.

A mãe cronista relata, então, a reação de seu �lho e o diálogo com ele: “Então nós dois passamos a reªetir juntos” (p. 56), ela diz, referindo-se à conversa que conduziria ao acordo a que chegariam. Não se pode, entretanto, deixar de considerar que tal reªexão possa se dar também entre a autora e o leitor, que passa a ter conhecimento de um fato que inicialmente se encontrava dentro dos limites familiares e passou posteriormente para as páginas do jornal. O leitor, portanto, acompanha as reªexões que conduziram o comportamento materno de Clarice Lispector. Essa aproximação

Livro_Clarice Lispector.indd 80 28/10/2015 15:08:40

Page 81: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

81

Vivian Resende Jatobá

gera certa cumplicidade entre emissor e receptor, ambos envolvidos no fato que se expõe no veículo impresso.

Uma nova preocupação se instala a partir do momento em que a autora-narradora-personagem declara ter �cado triste pelo desinteresse do outro �lho. A conversa com ele se desenvolve – e se expõe – de tal maneira que a caneta de ouro tenha se tornado apenas um ponto de partida para que a relação entre mãe e �lho seja discutida entre eles, envolvidos na situação; e exposta aos leitores, que se envolvem no evento familiar que a autora torna público.

Pouco estava importando a caneta de ouro. O que importava é que um �lho pedia e o outro não pedia. Retomei a conversa: ‘Vem cá, por que é que você não me pede coisas?’ A resposta foi pronta e contundente: ‘Eu já pedi muitas coisas e você não me deu nada’. (LISPECTOR, 1999, p. 57).

De tal modo o diálogo se estende que a autora conclui: “A caneta de ouro nos levara longe. Achei melhor parar. E por aí �camos. Nem sempre esmiuçar demais dá certo” (p. 58).

Encontra-se nesse texto uma estrutura que pode levar a um per�l que diz muito a respeito da atividade de Clarice como cronista. A autora parte de fatos que se desenrolam na privacidade da sua casa, na companhia de pessoas que lhe são próximas. Ao analisar a crônica de Carlos Heitor Cony, Jorge de Sá nos traz uma observação que se aplica também ao caso de Clarice:

Livro_Clarice Lispector.indd 81 28/10/2015 15:08:40

Page 82: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

82

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Em vez de ir sempre à rua, como todos os escribas do cotidiano, ele �ca em sua casa, nesse pequeno universo doméstico onde acontecem os dramas e as alegrias do mundo inteiro. (SÁ, 2005, p. 58).

Tais fatos, sejam dramas ou alegrias, despertam divagações que Clarice, como Cony, estende, extraindo delas algo que considere válido expor no jornal de sábado. É justamente o seu ponto de partida, utilizando elementos constituintes da vida privada, que denuncia a exposição da intimidade. A autora tem consciência disso e tantas outras vezes declarará na mesma coluna que, como cronista, ela se dá a conhecer. Ela sabe do alcance dos textos publicados na imprensa e diz: “Agora entendo melhor os nossos melhores cronistas. Porque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente” (LISPECTOR, 1999, p. 137, grifos meus).

A ressalva, feita por ela mesma, de que os cronistas assinam os próprios textos, diz respeito à própria experiência dela na imprensa. Enquanto pôde utilizar as máscaras de Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, Clarice Lispector não se deu a conhecer nem parcialmente. Para falar à leitora, partia da experiência feminina comum, da moda e dos conselhos convenientes.

A partir do momento em que utilizou seu próprio nome, no entanto, partiu também da própria experiência, dizendo muito a seu respeito, permitindo que o leitor conhecesse a autora que seria também protagonista de seus textos em primeira pessoa. “Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa

Livro_Clarice Lispector.indd 82 28/10/2015 15:08:40

Page 83: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

83

Vivian Resende Jatobá

a palavra que o exprima” (LISPECTOR, 1999, p. 150). A procura, que buscava a profundidade, revelou Clarice a si mesma e ao público, mas não em sua totalidade, uma vez que há o indizível. Ainda é inegável que sua intimidade tenha se evidenciado semana após semana nos relatos que se seguiam com tamanha espontaneidade que atraíram um público cuja dimensão ela desconhecia quando se dedicava exclusivamente à �cção. Entretanto, é igualmente indiscutível que o temor que Clarice tinha da exposição de si a faria esconder outro tanto a seu respeito. Por isso mesmo foi grifado, no parágrafo anterior, que somente até certo ponto nós conhecemos os cronistas intimamente.

Em O pacto autobiográ�co, Philippe Lejeune esclarece que “Para que haja autobiogra�a (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem” (p. 15). Isto é, pressupõe-se a necessidade de que autor, narrador e personagem tenham o mesmo nome e se identi�quem na mesma pessoa. O autor elucida ainda que textos autobiográ�cos podem ser escritos em segunda ou terceira pessoa, embora a principal maneira – e que mais nos interessa – se faça na primeira pessoa.

O mesmo autor declara que “é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa” (p. 22). Por isso é que Clarice teme e se incomoda ao ter que empregar e assinar com seu próprio nome as suas crônicas. Seu incômodo não é usar o “eu” – uma vez que ele já fora usado na �cção –, mas associar esse pronome ao seu nome próprio e pessoa, Clarice Lispector. A�nal, segundo Lejeune, “só existe presença

Livro_Clarice Lispector.indd 83 28/10/2015 15:08:40

Page 84: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

84

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

plena pela denominação” (p. 22). Embora a autora não tenha escrito propriamente uma autobiogra�a, os relatos contidos na crônica clariceana constituem a “literatura íntima” de que fala Lejeune. Para ele, quando o nome da personagem e do autor coincidem, não se trata de �cção.

Clarice mantém alguns silêncios na tentativa de ainda se preservar, uma vez que a profundidade de seus sentimentos atinge o indizível, algo que a expressão das palavras não alcança. A espontaneidade característica da crônica consegue dizer muito a respeito da autora que a assina, mas há ainda o inefável, isto é, aquilo que as palavras não expressam, e que a autora procura manter em silêncio. Existe aí uma oposição entre a profundidade dos sentimentos, inexprimível, e a brevidade da escrita de um gênero como a crônica, que diz muito a partir da exploração de fatos que compõem a rotina do cronista, mas tem seus limites e só nos permite conhecê-lo até certo ponto.

Assim, apesar do desconforto de trazer à tona o seu cotidiano, existe também o que não foi publicado, algo ainda mais íntimo e mais privado do que o que a escritora nos permitiu saber. Ela mesma dizia: “Com o perdão da palavra, sou um mistério para mim” (LISPECTOR, 1999, p. 307), e nada seria mais natural do que ser um mistério também para o receptor que a lia. Assim, o que está ao alcance do leitor não é a totalidade da intimidade da autora, mas apenas o que ela permitiu que transbordasse. A necessidade de ganhar dinheiro a obrigava a se revelar e, por outro lado, a necessidade de preservar outro tanto de si a fazia �ltrar o que seria levado a público. Signi�ca dizer que sabemos sobre a autora o que a necessidade �nanceira a fez dizer e que, portanto, a intimidade foi

Livro_Clarice Lispector.indd 84 28/10/2015 15:08:40

Page 85: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

85

Vivian Resende Jatobá

colocada à venda, mas a parcela do indizível não seria negociada por dinheiro algum.

Em Genius, o italiano Giorgio Agamben faz uma reªexão interessante a respeito desse deus ao qual cada ser humano é entregue no momento de seu nascimento. Todos nós somos constituídos de uma parcela de indivíduo e outra parcela de genius, sendo que este não se permite conhecer, como se estivesse acima de nós mesmos e fosse indecifrável. A parcela do inefável, portanto, pode ser essa correspondente ao genius, com o qual convivemos, mas sobre o qual nada sabemos. De acordo com Agamben,

compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas que, desde o nascimento até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual. (AGAMBEN, 2007, p. 16).

O Genius, portanto, acessa a nossa intimidade melhor do que nós mesmos. Apesar de Clarice mostrar a si, ela se preserva, pois seu eu individual é capaz de dizer muito a seu próprio respeito, mas não tudo. O genius, que está acima de nós, nos preserva de nos conhecermos em nossa totalidade e assim, por mais que algumas situações contribuam para nossa exposição, nem tudo é colocado ao alcance do conhecimento alheio. Agamben completa que “viver com Genius signi�ca [...] manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento” (p. 17) e o Eu tende a não conseguir

Livro_Clarice Lispector.indd 85 28/10/2015 15:08:40

Page 86: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

86

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

apropriar-se de seu Genius. Não por acaso, Clarice era um mistério para si mesma tanto quanto todos nós nos desconhecemos em parte.

Nesse permanente desconhecimento de nós mesmos, “buscamos no outro a relação com Genius que não conseguimos alcançar sozinhos, a nossa secreta delícia e a nossa nobre agonia” (AGAMBEN, 2007, p. 20). Isto é, quando o leitor vai ao encontro de Clarice, ele busca nos relatos dela algo que lhe revele a si mesmo, e não que forneça informações a respeito da vida privada da autora. É por isso que se instaura um diálogo e a sensação de compreensão entre autor e leitor. Além disso, a própria temática contemplada pelas crônicas clariceanas contribui para isso, uma vez que é a vida cotidiana que lhe serve de matéria-prima e os dilemas internos que despertam olhares poéticos. A esse respeito, convém lembrar que Agamben considerou que “é poética a vida que se leva na tensão entre o pessoal e o impessoal” (p. 18), de onde podemos inferir que a frequente tentativa de nos compreendermos é que desperta possíveis poéticas – isto é, um modo de repensar, a partir da própria sensibilidade, cada ocorrência de nossa vida – como um desdobramento de nosso olhar subjetivo.

Essa possibilidade de desdobramento deriva da sensibilidade de cada um ao lidar com as próprias experiências, extraindo delas signi�cados cada vez menos super�ciais. O que há, sem dúvidas, é o lirismo evidente em todos os textos, uma vez que eles partem do olhar subjetivo de Clarice sobre algum fato. De acordo com Jorge de Sá,

Em todos os cronistas há um certo lirismo, pois é através dos seus estados de alma que eles observam

Livro_Clarice Lispector.indd 86 28/10/2015 15:08:40

Page 87: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

87

Vivian Resende Jatobá

o que se passa nas ruas. Entretanto, já vimos que a aparência de leveza da crônica revela, quase sempre, o acontecimento captado sob a forma de uma reªexão, mesmo quando se trata de alguma coisa afetivamente ligada só ao escritor. (SÁ, 2005, p. 57).

É interessante notar que nos ligamos ao intimismo explorado na crônica de Clarice, uma vez que é uma preocupação da própria escritora evitar se expor demais. Entretanto, a intimidade só se revela porque o lirismo é extraído da vida do próprio cronista, de maneira que acima da exposição de si está a abordagem poética da vida. O espaço da casa, por exemplo, é na verdade microcosmo, representante de um espaço muito maior. As angústias que se revelam nela, portanto, são também maiores. O cronista é como um porta-voz e, por meio do lirismo reªexivo, usa suas dores para falar de dores mais universais. Seu objetivo não é falar de si, mas explorar a sua sensibilidade para falar do que o rodeia. Assim, embora não se possa negar que a intimidade da autora se expõe, também não podemos reduzir sua crônica a uma exposição vazia de si mesma. Se existe uma intimidade revelada, a �nalidade dela é partir de angústias particulares para abordar as universais, de modo que o leitor se torne seu cúmplice. Dar-se a conhecer, no caso da crônica clariceana, é um ato de nobreza, pois por meio da exibição do eu se alcançam reªexões mais profundas e extensivas a todos nós.

A seguir, exploramos o que se entende pelo verbete “intimidade” de acordo com o Houaiss,

Livro_Clarice Lispector.indd 87 28/10/2015 15:08:40

Page 88: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

88

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

1. Qualidade do que é mais íntimo, profundo. 2. Vida doméstica, particular. 3. Familiaridade, proximidade. 4. Relação muito próxima; convivência fraterna. 5. Comportamento atrevido, abuso. 6. Contato sexual. (HOUAISS, 2009).

O que se pode depreender a partir de tais possíveis de�nições é que o termo intimidade, como usamos, cabe na nossa abordagem. Nas crônicas de Clarice para o Jornal do Brasil, o que se vê justamente é o retrato da vida doméstica, particular, conforme a segunda de�nição do dicionário; ou ainda, cabe usarmos a familiaridade e proximidade, da terceira de�nição, exatamente como a crônica o faz, chamando o leitor e criando com ele um vínculo familiar, uma vez que ele passa a ter conhecimento do que se passa na vida privada da cronista. A convivência fraterna e a relação muito próxima de que fala a de�nição número quatro trata justamente do elo entre autor e leitor gerado na crônica, que abordará assuntos que trazem a qualidade do que é mais íntimo, profundo, de que se fala na primeira de�nição do verbete – embora aqui se deva fazer a ressalva de que as limitações da crônica e das próprias palavras não vão tão longe a ponto de atingir tal profundidade, mesmo porque o que é íntimo e profundo a tal ponto pode não ser de conhecimento do próprio Eu, mas apenas do genius. Essa intimidade exposta incomoda a autora, que não consegue evitar se despir nesse gênero e em diversas oportunidades reclama de estar se dando a conhecer. Embora esse desnudamento não aconteça em sua totalidade, a parcela que transparece e que chega ao conhecimento do receptor basta para

Livro_Clarice Lispector.indd 88 28/10/2015 15:08:40

Page 89: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

89

Vivian Resende Jatobá

que a cronista se sinta incomodada. No entanto, provavelmente a confortaria saber que nesse desnudamento de si cabem angústias que se estendem a todos nós.

Até os próprios �lhos de Clarice a questionaram a respeito de sua exposição. Ela, claro, revelou-o por meio da crônica, como se seguisse um ciclo: revelava-se na crônica, era questionada acerca dos motivos que a levavam a fazê-lo e, na crônica, expunha-se novamente para dizer o porquê de se revelar e de ser pessoal.

É fatal, numa coluna que aparece todos os sábados, terminar sem querer comentando as repercussões em nós de nossa vida diária e de nossa vida estranha. Já falei com um cronista célebre a esse respeito, me queixando eu mesma de estar sendo muito pessoal, quando em 11 livros publicados não entrei como personagem. Ele disse que na crônica não havia escapatória. (LISPECTOR, 1999, p. 284).

Há episódios e textos na vida de Clarice que nos con�rmam que, na crônica, de fato, embora haja do autor a preocupação de �ltrar o que lhe convém, não há escapatória total. Clarice começou a escrever para o Jornal do Brasil em agosto de 1967, onze meses depois de ter sofrido um incêndio que lhe queimou a mão direita, os braços e as pernas. O acidente foi provocado pela própria escritora, que adormeceu com o cigarro aceso e acordou com o quarto em chamas durante a madrugada. Existe a possibilidade de se atrelar a �cção de um autor a traços de sua biogra�a, embora não seja essa a maneira

Livro_Clarice Lispector.indd 89 28/10/2015 15:08:40

Page 90: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

90

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

mais rica de se analisar uma obra. De qualquer forma, a crítica que trata de Clarice Lispector tende a fazer isso, considerando a peculiaridade da própria autora, que tinha ao redor de si certa aura de mistério.

Por ter sido o primeiro romance publicado após o incêndio, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres desperta bastante atenção. Leitores e estudiosos tentarão depreender da história reªexões que tenham sido geradas pelo trauma sofrido pela autora. Na crônica, porém, há menções mais explícitas ao episódio. Não precisando utilizar os recursos que se usariam na �cção para esconder a �gura do autor por trás do narrador, a crônica entrega a história real e a reªexão que se faz a partir dela é conduzida pela própria autora, também narradora e personagem nesse espaço que privilegia a experiência do eu em benefício do entendimento de todos.

Em 13 de julho de 1968, é publicado na coluna de Clarice o texto “A opinião de um analista sobre mim”. Nele, a autora conta que algumas amigas suas frequentam o mesmo psicanalista, e todas elas falam muito dela, a escritora. Imaginando que o terapeuta estaria farto de ouvir seu nome, ela decide enviar-lhe um exemplar de um de seus livros, Laços de Família, e relata: “Na dedicatória pedi desculpas pela minha letra que não está boa desde que minha mão direita sofreu o incêndio” (p. 116). O comentário do psicanalista, que chegou ao seu ouvido, ela também compartilha. Segundo uma de suas amigas, ele disse que “Clarice dá tanto aos outros, e no entanto pede licença para existir” (p. 116). O último parágrafo da crônica é dirigido ao próprio Sr. Lourival, o psicanalista que recebeu o livro e a dedicatória e cujo comentário despertou a autora para a

Livro_Clarice Lispector.indd 90 28/10/2015 15:08:40

Page 91: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

91

Vivian Resende Jatobá

reªexão que seria compartilhada naquele sábado. Tem-se, portanto, uma aproximação com o leitor, o direcionamento a um leitor especí�co em determinado momento e um fato da vida da própria autora que chama a atenção. São acessórios do texto que con�guram a exposição de um eu que escreve o que protagoniza e o oferece ao jornal. A�nal, “ser escritor é não ter pudor na alma.” (LISPECTOR apud SOUSA, 2011, p. 498), uma vez que o eu que se sacri�ca ao se expor o faz porque acredita que suas dores de alguma forma também ressoam e se assemelham às dores do receptor. O próprio analista nos serve de testemunha, uma vez que é dele a constatação de que Clarice se dava tanto aos outros.

Também motivada pelo evento do incêndio, a crônica “Doar a si próprio”, de 15 de agosto de 1970, desperta uma reªexão a partir da declaração inicial:

Tenho lidado com problemas de enxerto de pele, �quei sabendo que um banco de doação de pele não é viável, pois esta, sendo alheia, não adere por muito tempo à pele do enxertado. É necessário que a pele do paciente seja tirada de outra parte de seu corpo, e em seguida enxertada no lugar necessário. Isto quer dizer que no enxerto há uma doação de si para si mesmo. (LISPECTOR, 1999, p. 304).

A crônica seguirá com a reªexão a respeito da doação que se faz ao outro em detrimento da doação de si para si mesmo. Como na �cção, na crônica também há a condução do leitor para o pensamento

Livro_Clarice Lispector.indd 91 28/10/2015 15:08:40

Page 92: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

92

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

epifânico. No jornal, entretanto, esse pensamento é gerado por um fato real, protagonizado, narrado e publicado pela mesma pessoa, que leva a público um pedaço de si mesma. Pode-se dizer, em virtude disso, que Clarice doa-se a si mesma, pois escreve para se sustentar e ao mesmo tempo doa-se ao público, que até então não tinha tido a oportunidade de conhecer a autora da maneira transparente como foi revelado por ela mesma. Para além desse conhecimento da autora, o leitor também é conduzido para questões mais profundas que também lhe dizem respeito, a�nal o episódio mencionado serve de pretexto para reªetirmos a respeito da doação de nós para nós mesmos, em um plano mais plural do que o da intimidade. Assim, o que Clarice escreve não diz respeito apenas a si mesma.

Em sua tese, Clarice Lispector e o narrar-se, Suzana Klôh fala da presença da própria Clarice em seus textos, desde aqueles publicados na imprensa, até os de �cção. Ela percebe a exposição da autora e, acerca disso, dirá:

Clarice, na verdade, não conseguia fugir de si, dos assuntos pessoais (o curioso é que, embora ela negasse essa pessoalidade, seu próprio �lho havia identi�cado essa característica em seus textos). Tal como suas personagens, o drama desse eu encontra-se, sobretudo, em seu interior – não no que lhe é externo. A pessoalidade, no entanto, a incomodava. (KLÔH, 2009, p. 60).

Livro_Clarice Lispector.indd 92 28/10/2015 15:08:41

Page 93: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

93

Vivian Resende Jatobá

Klôh percebe evidências do quão incômodo era, para Clarice, dar-se a conhecer na crônica, uma vez que em muitas oportunidades a autora manifestou sua insatisfação com o fato de que o gênero lhe tirava a máscara, isto é, ela tornava-se pessoal.

O que é desagradável para Clarice Lispector, no que diz respeito à escrita das crônicas, é o gesto de revelar-se, de retirar a máscara – pois a máscara protege o rosto sensível. (p. 63).

Como veremos mais adiante, entretanto, as máscaras �ccionais de Clarice são, na verdade, substituídas pela máscara de seu próprio rosto. Em se tratando de uma autora com tamanha habilidade de criar alegorias, é natural que na crônica houvesse algum recurso que ao menos a ajudasse a �ltrar parte do que ela temia expor.

Fabrício Carpinejar, cronista gaúcho, em 2012 declarou em seu twitter que “A crônica é uma autoentrevista”. Seria, portanto, o meio de tornar público o pensamento que um indivíduo tende a guardar consigo mesmo. Autoentrevistando-se, o cronista se permite conhecer tanto por si mesmo quanto pelo leitor. “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”, foi o que disse Rubem Braga em resposta a Clarice, que o havia procurado para dizer: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que eu faço?” (LISPECTOR, 1999, p. 349). Não havia o que fazer. A autora declarou inúmeras vezes esse temor, uma vez que não haveria modo de se esconder. Quanto à possibilidade de se esconder, Klôh esclareceu que

Livro_Clarice Lispector.indd 93 28/10/2015 15:08:41

Page 94: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

94

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Atrás de uma obra de �cção, a escritora poderia se esconder mais confortavelmente, vivendo uma outra vida a partir da dela: a escolha de uma máscara para sua proteção. Isso não acontece com sua produção semanal. O eu sempre presente faz com que o leitor imediatamente associe a cronista à �gura concreta da escritora, uma vez que as mesmas crônicas forneciam dados para tal, como, por exemplo, referências ao incêndio de que Clarice foi vítima. (KLÔH, 2009, p. 64).

Semanalmente, sua autoentrevista era publicada, colocada ao alcance de uma ampla amostra de leitores que a teriam crua diante de si. E como a crônica dá ao autor a voz e a possibilidade de falar de si, de expor a própria realidade diante do público, ela seria a atraente gruta – nas palavras de María Zambrano – onde se encontra a intimidade de um autor ou – nas palavras de Antonio Dimas – o oásis lúdico, também atraente, em que se mata a sede após caminhar pela aridez de notícias secas, impessoais. O espaço lúdico a que o leitor tem acesso promove sua interação com a autora, não apenas porque lhe é dada a possibilidade de conhecer a autora intimamente, mas porque essa intimidade está a serviço de algo maior, que é partir de si para falar de algo que também pertence à vida do leitor, a�nal, a doação de si para si mesmo não é um privilégio de Clarice, mas inclui todos nós.

O texto de 29 de agosto de 1970, “Perguntas e respostas para um caderno escolar”, tem a estrutura de entrevista, com perguntas

Livro_Clarice Lispector.indd 94 28/10/2015 15:08:41

Page 95: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

95

Vivian Resende Jatobá

e respostas feitas e dadas pela própria escritora, isto é, consiste na autoentrevista de que Carpinejar falava. Nesse texto, em meio à estrutura de perguntas e respostas, encontramos uma sequência que pode nos revelar muito a respeito do receio que Clarice tinha de se expor. Ela fala da timidez e da ousadia de escrever:

– Você é tímida como escritora?

– Na hora de escrever não sou inibida. Pelo contrário: entrego-me toda. Como pessoa sou às vezes inibida.

– Como nascem suas histórias? Elas são planejadas antes do ato de escrever?

– Não, vão se desenvolvendo à medida que escrevo, e nascem quase sempre de uma sensação, de uma palavra ouvida, de um nada ainda nebuloso.

[...]

– O que acontece com a pessoa encabulada que você é, enquanto tem a ousadia de escrever?

– Desabrocho em coragem, embora na vida diária continue tímida. Aliás sou tímida em determinados momentos, pois fora destes tenho apenas o recato que também faz parte de mim. Sou uma ousada-

Livro_Clarice Lispector.indd 95 28/10/2015 15:08:41

Page 96: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

96

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

-encabulada: depois da grande ousadia é que me encabulo.

– Você conhece os seus maiores defeitos?

– Os maiores não conto porque eu mesma me ofendo. Mas posso falar naqueles que mais prejudicam a minha vida. Por exemplo, a grande fome de tudo, de onde decorre uma impaciência insuportável que também me prejudica. (LISPECTOR, 1999, p. 308--309, grifos meus).

Esse trecho tem enorme potencial revelador. Clarice, como ela mesma diz, entrega-se toda. Embora seja inibida, escreve para o jornal motivada pela necessidade �nanceira. Não lhe agrada ter que ser pessoal e abrir mão da máscara que a �cção lhe permite utilizar. Entretanto, é ousada ao ser pessoal. Diz muito a seu respeito, dá ao leitor a oportunidade de compartilhar de sua intimidade, de saber acerca de suas conversas com taxistas, de seu incêndio, de seus diálogos com os �lhos e das histórias que coleciona de empregadas que trabalharam em sua casa, detalhes que revelam a si mesma, mas que têm alcance maior a partir do momento que um leitor se apropria deles e poderá relacioná-los à própria experiência.

Além disso, o que escreve nasce “de um nada ainda nebuloso”, às vezes apenas “de uma palavra ouvida”, o que nos permite inferir que Clarice reªete e ressigni�ca cada pequeno gesto presenciado por ela. A autora vive experiências estéticas, uma vez que parte de fatos

Livro_Clarice Lispector.indd 96 28/10/2015 15:08:41

Page 97: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

97

Vivian Resende Jatobá

aparentemente insigni�cantes para desenvolver profundamente algo que diga respeito a si mesma e também ao leitor. Ela tem, portanto, a capacidade de transformar poeticamente objetos despretensiosos, revelando neles um potencial de que antes não se poderia suspeitar senão por meio de muita sensibilidade. Falaremos mais cuidadosamente acerca das peculiaridades da experiência estética no último capítulo, mas por enquanto interessa-nos sublinhar que se trata de um modo por meio do qual nenhuma vivência é meramente transcrita, mas preenchida com mais sentidos, os quais são dados por um indivíduo, tenha ele sido protagonista ou testemunha de tal vivência.

Para John Dewey,

Quando um escritor põe no papel ideias já claramente concebidas e coerentemente ordenadas, é porque o verdadeiro trabalho foi feito previamente. Ou então, ele talvez con�e em que a maior perceptibilidade induzida pela atividade e sua transmissão sensível orientem sua conclusão do trabalho. O mero ato de transcrição é esteticamente irrelevante, a não ser na medida em que entra integralmente na formação de uma experiência que se move para a completude. (2010, p. 132-133).

Isto é, o que Clarice faz é transmitir para a crônica uma vivência sobre a qual ela já tenha reªetido, à qual ela já tenha atribuído signi�cados. Não se trata de transcrição, pois transcrever não implica

Livro_Clarice Lispector.indd 97 28/10/2015 15:08:41

Page 98: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

98

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

agir com a expressividade que o cronista dá ao texto. A crônica, por sua vez, ao ser colocada diante do leitor que se apropria dela, será ressigni�cada novamente. Dewey acrescenta que

Quando o artista não aperfeiçoa uma nova visão em seu processo de fazer, ele age mecanicamente e repete algum velho modelo, �xado como uma planta baixa em sua mente. Uma dose incrível de observação e do tipo de inteligência exercido na percepção de relações qualitativas caracteriza o trabalho criativo na arte. (p. 132-133).

É por isso que falamos em poética: a artista Clarice Lispector observa situações com inteligência, disposta a não agir apenas mecanicamente, mas a captar sentidos, emprestando lirismo às ocorrências sobre as quais lhe convém escrever. Assim, ela realiza o que Paulo Mendes Campos já havia caracterizado como “Ser brotinho”: “É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto” (CAMPOS, 2007, p. 91). Isso nos deixa face a face com a grande ousadia de Clarice: desabrochar em coragem para atribuir signi�cados ao que parece nulo, ainda que isso custe uma parcela da pessoalidade que não lhe agrada deixar à mostra. É isso que acontece em “Perdoando Deus”, texto publicado no jornal e em A descoberta do mundo como crônica, mas também aproveitado em Felicidade Clandestina, como conto. A inde�nição do gênero deixa também inde�nida a aparição ou não da própria autora, mas não anula a grandiosidade do texto.

Livro_Clarice Lispector.indd 98 28/10/2015 15:08:41

Page 99: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

99

Vivian Resende Jatobá

Nele se relata a atenção com que a autora testemunha a existência de cada coisa em seu caminho pela Avenida Copacabana:

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensi�cou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que eu me sentia satisfeita com o que via. (LISPECTOR, 1999, p. 311).

Com a “atenção sem esforço”, ela sentia a liberdade de presenciar a existência de cada elemento componente do cenário e se dava conta de que seu passeio lhe proporcionava uma percepção, produzindo sentidos e lhe rendendo o que, a seguir, ela diria ser a impressão de se sentir a mãe de Deus. Isso deriva do olhar carinhoso com que se volta para o que preenche o espaço por onde passa. Esse olhar é sobretudo cheio da sensibilidade que atribui signi�cados e novos sentidos a um aparente “nada ainda nebuloso”.

Entretanto, a alegria espontânea e o sentimento satisfatório de, sem pretensão ou superioridade, ser a mãe de Deus, são interrompidos por um episódio que também é ressigni�cado: pisar

Livro_Clarice Lispector.indd 99 28/10/2015 15:08:41

Page 100: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

100

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

em um rato morto é o que encerra o prazer ingênuo de até então. “Então não podia eu me entregar desprevenida ao amor?” (p. 312). O sentimento de revolta diante do que lhe era colocado justamente quando se sentia grata por ser a mãe de Deus a conduz a outras reªexões. Ela questiona, então, sua capacidade de amar: “Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil” (LISPECTOR, 1999, p. 313).

O que Clarice faz é proporcionar a si e ao outro uma experiência que nunca se esgota em si mesma. Um passeio não seria digno de ser retratado na crônica se não a levasse a reªetir outras coisas, conduzindo-a ao pensamento epifânico. Tudo sob sua atenção é ressigni�cado de modo a revelar em si um potencial poético, que deixa ao alcance do leitor uma experiência estética, aquela cujo conteúdo, segundo Gumbrecht, “seriam os sentimentos íntimos, as impressões e as imagens produzidos por nossa consciência” (GUMBRECHT, 2006, p. 54). Assim, o objeto da crônica não é meramente a vulgaridade diária retratada, mas sim a trans�guração da vulgaridade em algo de valor, que oferece ao leitor uma reªexão aprofundada acerca de si e do que preenche sua vida diariamente.

No texto Ter uma experiência, John Dewey (2010, p. 130) a�rma que “o artista, comparado a seus semelhantes, é alguém não apenas dotado de poderes de execução, mas também de uma sensibilidade inusitada às qualidades das coisas. Essa sensibilidade também orienta seus atos e criações”. Isso signi�ca dizer que Clarice Lispector, como artista, tinha tais poderes e, portanto, exercia essa função artística: de presenciar situações e, por meio de sua sensibilidade, conseguir expressá-las verbal e emotivamente, transferindo a outrem a

Livro_Clarice Lispector.indd 100 28/10/2015 15:08:41

Page 101: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

101

Vivian Resende Jatobá

possibilidade de também se sensibilizar com o que será lido. Dewey trata de arte em um contexto amplo, que inclui as artes plásticas, mas que aqui nos serve para incluir a literatura.

O autor norte-americano também diz que

para que a habilidade seja artística, no sentido �nal, ela precisa ser ‘amorosa’; precisa importar-se profundamente com o tema sobre o qual a habilidade é exercida. (p. 127).

Essa característica também reconhecemos em Clarice Lispector, que lança sobre os objetos o seu olhar carinhoso, capaz de extrair signi�cados captados pela sensibilidade. Se é imprescindível que o tema de sua arte seja valorizado pelo executor (no nosso caso, autor), a cronista supre essa necessidade ao falar do que lhe interessa: �lhos, lar, empregadas e cenas que a surpreendem. Diante de tudo isso, é improvável que se contenham a expressividade, o lirismo e o envolvimento com que a autora trabalha ao dedicar-se ao que lhe chama a atenção. É por isso que destacamos:

A emoção é a força motriz e consolidante. Seleciona o que é congruente e pinta com suas cores o que é escolhido, com isso conferindo uma unidade qualitativa a materiais externamente díspares e dessemelhantes. Com isso, proporciona unidade nas e entre as partes variadas de uma experiência. (DEWEY, 2010, p. 120).

Livro_Clarice Lispector.indd 101 28/10/2015 15:08:41

Page 102: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

102

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Dessa maneira, Clarice Lispector age guiada pela emoção e, ao relatar o passeio pela Avenida Copacabana, fala sobre sentir-se a mãe de Deus, e posteriormente sobre o fato de que amar não é tão fácil quanto se imagina. Não podemos fugir do fato de que seu impulso é, sim, a emoção, responsável por dar às suas palavras a intensidade que elas têm. Disso deriva a estetização da experiência, a�nal, uma vivência só se torna estética na medida em que há um sujeito agindo e reªetindo sobre ela, pensando não só na sua execução, mas também nas impressões que ela vai gerar.

Dewey entende que “toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela viva” (p. 122). Para que seja dado a essa experiência o predicado de “estética”, deve haver certo envolvimento que a expressividade e a emoção são capazes de dar, uma vez que

Os inimigos do estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual. Abstinência rigorosa, submissão coagida e estreiteza, por um lado, desperdício, incoerência e complacência displicente, por outro, são desvios em direções opostas da unidade de uma experiência. (p. 117).

A disposição de Clarice para preencher seus textos com a catarse

de um sujeito que se envolve profundamente com cada situação nos

Livro_Clarice Lispector.indd 102 28/10/2015 15:08:41

Page 103: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

103

Vivian Resende Jatobá

deixa claro que sua a�nidade com a estética é inegável. O fato de a autora ser pessoal deriva do fato de ela oferecer sua visão a respeito de assuntos diversos, inclusive os que contam com a participação de pessoas do seu convívio. Clarice teme a pessoalidade, mas é inevitável aderir a ela quando se busca poetizar o que é colocado ao alcance do seu olhar. Necessariamente, a autora imprimiria subjetividade sobre qualquer coisa que oferecessem ao seu campo de visão. Como cronista, não seria diferente, pois é do ofício desse pro�ssional enxergar a realidade e tratá-la não de maneira crua, mas a partir da ressigni�cação, resultado de um olhar sensível.

O que sai publicado na crônica é uma parcela da vida privada que se expõe com ousadia, embora sem vontade. E, ao ver-se exposta no jornal, há o incômodo, o desespero de ter se tornado “excessivamente pessoal” (LISPECTOR, 1999, p. 349), e o fato de se encabular “depois da grande ousadia” (p. 309). A autoentrevista semanal deixará Clarice, ousada ou tímida, ao alcance do leitor, e sua vida tornar-se-á conhecida por meio de seus relatos, gerando-se um vínculo de intimidade compartilhada com o leitor. É por isso que os textos que hoje integram A descoberta do mundo são uma oportunidade para que descubramos Clarice Lispector e para que associemos a experiência dela à nossa

Na crônica, Clarice não deixa de colocar essas inquietações que, observamos, eram a base de sua literatura: ‘Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.’ (HE, p. 11). A fala de Rodrigo S.M., narrador-escritor criado para contar a

Livro_Clarice Lispector.indd 103 28/10/2015 15:08:41

Page 104: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

104

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

história de A hora da estrela (1977) [...] evidencia essa necessidade. No entanto, agora, inserida dentro de um diferente tipo de texto, essa voz que é a de Clarice Lispector, cronista [...], que, semanalmente, coloca-se em seus textos, apesar de todo o desconforto que tal entrega poderia lhe causar. O sacrifício faz com que Clarice se torne íntima de seus leitores – como, sob os três pseudônimos que utilizou para escrever as colunas femininas, tornou-se íntima de suas leitoras. (KLÔH, 2009, p. 65).

Interessa-nos destacar que a intimidade e a cumplicidade estabelecidas entre Clarice e os leitores não se dão apenas porque para o leitor é atrativo conhecer a autora. Do mesmo modo como as leitoras das colunas femininas aderiam aos conselhos dados por Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, os leitores das crônicas reunidas em A descoberta do mundo podem associar episódios da vida de Clarice a episódios de sua própria vida, de modo que a experiência da cronista, mais do que permitir que se conheça Clarice Lispector, permite que o leitor entre em contato consigo mesmo a partir da poesia explorada pela autora.

Quanto à exposição da intimidade vista de uma ótica contemporânea, pode-se dizer que a autoentrevista publicada por Clarice e a consequente exposição a que se deu lugar a partir de então são sinalizadores de uma realidade que se presencia hoje. Em “Eu real e os abalos da �cção”, Paula Sibilia nos diz que a realidade tem se transformado em material de grande potencial

Livro_Clarice Lispector.indd 104 28/10/2015 15:08:41

Page 105: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

105

Vivian Resende Jatobá

atrativo. Se antigamente a força da literatura estava em conferir à �cção alguma veracidade, hoje o esforço se dá na via contrária em várias manifestações culturais: deseja-se �ccionalizar a realidade, partindo dela e de seu potencial atrativo, isto é, de exposição, para a espetacularização. Uma vez que a intimidade atrai, nada mais promissor do que utilizar histórias reais para agregar público. “Uma das manifestações dessa fome de veracidade na cultura contemporânea é o anseio por consumir lampejos da intimidade alheia” (SIBILIA, 2008, p. 195).

É importante ressaltar que, embora Clarice Lispector, por meio da crônica, antecipe essa realidade atual, que deseja consumir a intimidade alheia, há uma enorme diferença entre a experiência da cronista e a realidade a que assistimos hoje. A autora sentia-se desconfortável ao despir-se fora do ambiente �ccional e se deixava transparecer sua intimidade é porque buscava partir de suas experiências para imprimir à crônica a sensibilidade pretendida, como não poderia deixar de ser. As obras produzidas hoje, entretanto, têm na espetacularização o seu ponto de partida e de chegada. As pessoas permitem e procuram se fazer notar diante das câmeras, tornando-se personagens de uma realidade que será a matéria-prima daquilo a que se assiste na TV e nos cinemas. Sibilia usa o termo “fetichismo do real” para se referir ao fenômeno que presenciamos hoje. O tempo avançou de tal maneira que se notam mudanças bruscas assinaladas pela autora:

Espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar nossas personalidades e vidas (já nem

Livro_Clarice Lispector.indd 105 28/10/2015 15:08:41

Page 106: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

106

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

tão) privadas em realidades �ccionalizadas com recursos midiáticos. (SIBILIA, 2008, p. 197).

Os anos passaram de modo que a autoexibição se tornou um fenômeno gradativo. O contraste é nítido: entre 1967 e 1973, Clarice Lispector, atuando como cronista, declarava-se insegura e com medo de se dar a conhecer por meio de sua atividade na imprensa. Ela seria ao mesmo tempo autora, narradora e personagem dos textos que trouxeram à tona sua experiência pessoal. Hoje, o desejo de se fazer notar publicamente é tamanho que autores se tornam mais atrativos do que suas próprias obras, isso quando não se tornam a própria matéria de que se ocupa a obra.

Fora do âmbito literário, pessoas reais são retratadas em atividades e dramas diários e servem de personagens para quadros de programas televisivos que buscam na realidade algo de onde se possa extrair alguma �cção comovente. Não há nesse retrato o pudor que percebemos haver em Clarice. Estamos mais centrados na �gura do eu e a cada dia os relatos se baseiam e se constroem a partir de alguém que simultaneamente age como autor e narrador. A experiência individual passou a se con�gurar como ponto de partida para grandes espetáculos, mas neles não se pretende ver mais do que o próprio eu, distante de qualquer outro objetivo como o de usar a própria sensibilidade para despertar a do espectador.

Promove-se uma intensi�cação e uma crescente valorização da própria experiência vivida, um impulso que se encontra nas bases de uma certa

Livro_Clarice Lispector.indd 106 28/10/2015 15:08:41

Page 107: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

107

Vivian Resende Jatobá

‘guinada subjetiva’ que hoje se constata na produção de narrativas, sejam �ctícias ou não. (p. 197).

Essa egocentralização cresceu de tal modo que passou a ser indispensável tomar conhecimento da biogra�a de um autor ao ler sua obra. Há um apelo e uma necessidade de consumir a realidade, um espetáculo atrativo que deixará a intimidade de um indivíduo ao alcance de todos. Em virtude disso, eleva-se a importância da biogra�a do artista e deixa-se à margem a obra dele. Na biogra�a, claro, os detalhes referem-se o que se passou de mais íntimo, de mais escandaloso e de mais interessante, tudo para �sgar o leitor pela curiosidade, não pela sensibilidade decorrente de um relato mais poetizado, isto é, com signi�cados mais densos, que permitem a reªexão além da transcrição. Nessa elevação da importância conferida à biogra�a talvez também esteja a importância dada hoje à crônica de Clarice Lispector.

É natural que houvesse curiosidade em torno da �ccionista que estava por trás da máscara de narradores de romances e contos que tiveram espaço em nossa literatura. Uma vez que a autora se desse a conhecer, sua crônica con�gurar-se-ia como um prato cheio para que pudéssemos enxergar a autora pessoal e intimamente, como personagem e narradora de histórias que trariam sua experiência pessoal. No entanto, sabemos que, ao tratarmos de Clarice Lispector, nossa missão extrapola a mera curiosidade em torno de sua intimidade. Queremos, na verdade, perceber o entrelaçamento da intimidade ligada à poetização da própria vida, a�nal, é a

Livro_Clarice Lispector.indd 107 28/10/2015 15:08:41

Page 108: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

108

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

exposição de experiências pessoais que cede espaço para o olhar subjetivo acolhedor de poéticas.

Falar de si, portanto, exerce um magnetismo desde muito tempo. Existe na intimidade um poder de atração que se compara ao poder de atração de uma gruta que esconde algo a ser revelado. “A ancoragem na vida real torna-se irresistível” (SIBILIA, 2008, p. 203). Por meio do compartilhamento da vida real, o autor consegue aproximar o leitor e este sentirá identi�cação de modo direto, sem passagem por metáforas ou tempos distintos em que a �cção se situe, havendo o acolhimento de autor e leitor em um momento que é comum aos dois, além de uma realidade que exerce seu poder de atração, pois não é a realidade social tratada no telejornal, e sim uma realidade privada que se compartilha, despertando a curiosidade alheia. Havendo, portanto, o potencial de identi�cação, gera-se o potencial de atração.

Assim, o viés intimista que se privilegia hoje é encontrado em produções de toda natureza midiática. Em �lmes, biogra�as, programas televisivos, perceber-se-á o apelo ao egocentrismo e a avidez da mídia em buscar a realidade como elemento �ccionalizável e de grande potencial. A realidade das experiências pessoais é justamente a gruta à qual se quer ter acesso. Não basta partir de uma realidade impessoal, transmitida objetiva e secamente, mas deve- -se apelar para a sensibilidade que há na realidade de experiências individuais e, quanto menos pudor houver na transmissão de detalhes, mais o espectador ou leitor sente-se atraído. A cronista Clarice Lispector con�gura a ponta inicial dessa linha justamente porque, embora se desse a conhecer, conservava algum pudor. Tanto

Livro_Clarice Lispector.indd 108 28/10/2015 15:08:41

Page 109: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

109

Vivian Resende Jatobá

é que a escritora, como diz na crônica “Lembrança da feitura de um romance”, de 2 de maio de 1970, diz que abriria mão de escrever se pudesse se exprimir de outra maneira:

O que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. É como se eu quisesse uma comunicação mais direta, uma compreensão muda como acontece às vezes entre as pessoas. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: viveria, não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda. (LISPECTOR, 1999, p. 285).

A cronista parece andar na contramão do que vemos hoje, na luta de egos e de busca de espaço sob holofotes. Ela preferiria viver no anonimato, como quem não escreve e, portanto, não se expõe. Se fosse possível uma “compreensão muda”, escrever não seria necessário, pois toda a poética percebida e verbalizada pela autora poderia ser calada, sem que houvesse a necessidade de compartilhar com outra pessoa as próprias angústias e as reªexões que, com todo seu lirismo, preenchem sua obra. O pudor manifestado, entretanto,

Livro_Clarice Lispector.indd 109 28/10/2015 15:08:41

Page 110: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

110

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

não a impediu de se expor, uma vez que era inevitável e nos próprios textos há a expressão de sua sensibilidade.

Escrevendo e assinando com o próprio nome, seria possível ser tão �ngidora como o poeta imaginado por Fernando Pessoa, “que �nge tão completamente que chega a �ngir que é dor a dor que deveras sente”. Coube à autora, na impossibilidade de buscar outras máscaras, vestir a sua própria e a fantasia de cronista, tornando públicas as dores que deveras sentia. Embora fosse desconfortável e parecesse não lhe caber, seu poder de assumir outras faces lhe fez tratar o seu próprio rosto como mais uma máscara. Seu conforto era poder �ngir, utilizando uma face que não fosse a sua própria, por isso assinar com o próprio nome no jornal era a representação de um sacrifício.

Como as colunistas Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, era possível assumir um personagem. A responsabilidade que ela tinha de dar à coluna o tratamento característico, naturalmente, não daria espaço para que se permitisse inferir ou perceber traços da intimidade da autora. Não havendo fusão entre autor e narrador, evita-se a abertura de frestas que permitam ver além do que se deseja mostrar. Já como �ccionista, a habilidade de Clarice Lispector criava narradores que esconderiam bem a autora por trás de si. Assim, ainda que narradores dissessem algo baseado na experiência da própria autora, tal exercício seria feito de maneira que as alegorias não permitissem chegar a tal conclusão. Era a época em que obra e autor ainda se afastavam, sem a necessidade de voltar para o autor a atenção que recaía sobre a obra.

Livro_Clarice Lispector.indd 110 28/10/2015 15:08:41

Page 111: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

111

IV. A máscara

Na própria �cção, de acordo com Carlos Mendes de Sousa, Clarice já deixa transparecer sua personalidade e elementos de

sua vida pessoal. Entretanto, a �cção lhe permite utilizar alegorias, as quais serão como uma máscara para a autora. Sousa cita Antonio Maura, que a�rma que “a autora de Perto do coração selvagem ‘se multiplica em numerosos autorretratos ao longo da sua produção narrativa’” (SOUSA, 2012, p. 473). Mesmo a �cção, portanto, carrega traços relativos à vida e à personalidade da autora, que, embora não se identi�que plenamente com a personagem, coloca nela alguma(s) característica(s) sua(s). A vantagem é o direito à máscara, pois, mesmo que haja alguma con�ssão no decorrer de um enredo, é à personagem que ela é atribuída. A crônica, por sua vez,

Livro_Clarice Lispector.indd 111 28/10/2015 15:08:41

Page 112: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

112

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

uni�ca autor, narrador e personagem, de modo que a camuªagem se torna uma possibilidade mais remota.

Há textos da autora, porém, apresentados ora como crônica, ora como conto, o que nos leva a questionar a respeito dos limites entre �cção e realidade na obra clariceana. Essa inde�nição nos levará a crer que, pelo menos em alguns momentos, sua crônica era em parte �ctícia ou que sua �cção era em parte realidade. Tanto em A descoberta do mundo quanto em Felicidade clandestina, encontramos “Perdoando Deus”, “Miopia progressiva”, “Uma esperança”, “Uma história de tanto amor”, “Restos de carnaval”, “O primeiro beijo”, “Os obedientes”, que em ambos os livros aparecem com o mesmo nome. Outros sofrem mudanças no nome do título, como é o caso de “Tortura e glória”, nome dado em A descoberta do mundo ao texto que em Felicidade clandestina dá nome ao livro. Em casos como este, temos uma inde�nição do que é não �cção e do que é �cção e, se Clarice era um mistério para si mesma, também o é para toda a crítica, uma vez que nada na sua obra é de�nitivo ou permite respostas exatas, tudo está sujeito a reªexão.

Outros textos permitem de�nir limites mais precisos entre �cção e realidade. A relação de Clarice Lispector com o cachorro Dilermando, por exemplo, motivou o conto “O crime do professor de Matemática”, publicado em Laços de família. No conto, a alegoria �ccional leva o leitor a acompanhar a história de um homem que foi até uma colina carregando um saco de ossos de um cão qualquer, o qual representaria o cachorro que outrora o protagonista havia abandonado. O homem reªete a respeito do abandono a que teve que sujeitar o cachorro de que tanto gostava.

Livro_Clarice Lispector.indd 112 28/10/2015 15:08:41

Page 113: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

113

Vivian Resende Jatobá

“Pôs-se então a pensar com di�culdade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com di�culdade na sua verdadeira vida. O fato de o cachorro estar distante na outra cidade di�cultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança” (LISPECTOR, 2009, p. 121).

E, continuando, como se estivesse conversando com o cão abandonado, faz sua con�ssão de culpa:

Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio, sim, pois exigias [...] que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança, com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão. [...] Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido. A possibilidade de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer. (p. 123-124).

Livro_Clarice Lispector.indd 113 28/10/2015 15:08:41

Page 114: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

114

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Dessa maneira, o narrador-personagem sensibiliza o leitor tratando o abandono como crime, e em diversos momentos sua voz se dirige ao cão abandonado. Por trás de tudo isso, embora não esteja ao alcance de o leitor reconhecer, está Clarice Lispector, que parte da própria experiência para criar uma situação que ganha características de �cção. A autora só usará a própria voz e a própria experiência quando lhe for dada a liberdade de ser pessoal e utilizar a própria realidade. É na crônica, portanto, que ela se torna também narradora e personagem, sem utilizar a alegoria do crime e o tom emotivo e de arrependimento empregados no conto. Na crônica “Bichos (I)”, publicada em 13 de março de 1971, em que a relação com Dilermando é mencionada em meio a tantos outros relatos que dizem respeito a bichos, Clarice relata a experiência de ter tido aquele cão.

É uma história comprida, a de minha vida com esse cão que tinha cara de mulato-malandro brasileiro, apesar de ter nascido e vivido em Nápoles, e a quem dei o nome rebuscado de Dilermando pelo que nele havia de pernosticamente simpático e de bacharel do começo do século. Desse Dilermando eu teria muito a contar. Nossas relações eram tão estreitas, sua sensibilidade estava de tal modo ligada à minha que ele pressentia e sentia minhas di�culdades. Quando eu estava escrevendo à máquina, ele �cava meio deitado ao meu lado, exatamente como a �gura da es�nge, dormitando. Se eu parava de bater por ter

Livro_Clarice Lispector.indd 114 28/10/2015 15:08:41

Page 115: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

115

Vivian Resende Jatobá

encontrado um obstáculo e �cava muito desanimada, ele imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça, olhava-me, com uma das orelhas de pé, esperando. (LISPECTOR, 1999, p. 333-334).

Nessa crônica, é permitido a Clarice ser mais transparente, dar logo a entender que a história se passara consigo. Ela diz que “nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão” (p. 334) e, embora haja o tom emotivo, sabe-se que a autora não foi alegórica tampouco metafórica senão na descrição do cão que tinha ar de “bacharel do começo do século”. Na crônica não aparece a sensação de culpa por ter cometido aquilo que no conto chama de crime. O episódio do abandono sequer é mencionado nas páginas do jornal. Clarice, embora se reserve o direito de não entrar em detalhes quanto a isso, nitidamente já revela muito, levando ao conhecimento público mais uma experiência pessoal sua.

O norte-americano Benjamin Moser, autor de Clarice, uma biogra�a, esclarece que o tal abandono mencionado no conto e não revelado na crônica se deu quando, de mudança de Nápoles para Berna, Clarice recebeu a informação de que não poderia levar o cachorro consigo.

Um relato, que depois se revelaria errôneo, de que os hotéis suíços não aceitavam cães, obrigou-a a deixar Dilermando para trás. Ela encontrou uma moça

Livro_Clarice Lispector.indd 115 28/10/2015 15:08:41

Page 116: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

116

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

gentil para tomar conta dele, mas �cou com o coração partido. (MOSER, 2009, p. 246).

Fora, portanto, uma experiência pessoal que abriu precedente para que, no conto, houvesse uma con�ssão de culpa e o compartilhamento de um sentimento de remorso, em que o personagem e os recursos literários têm a função de camuªar a realidade, recon�gurando-a, e por isso não deixam transparecer o envolvimento da autora com tal enredo. Na crônica, por sua vez, o breve relato da história faz com que a autora evidencie o que no conto �cara omitido. Daí infere-se que na crônica transparece o que muitas vezes os recursos da �cção – seja em conto ou romance – omitem e, portanto, o gênero, que ganha espaço no jornal, torna público o privado e, ao ter como ponto de partida o cotidiano e a realidade, dá voz à autora, que vestirá outra máscara: a de si mesma.

O que se percebe na obra de Clarice, ao contrastar a �cção com a não-�cção, é que a primeira lhe dá o direito de ser outro, e de fazer com que seus dramas ganhem lugar na �cção por meio do uso de alegorias. Na verdade, essa possibilidade não é exclusividade sua, mas de qualquer autor que se permita camuªar a realidade, criando um novo cenário, no qual um enredo se desenvolva com a participação de personagens cujas características podem até remeter às do autor, mas que conseguem ter vida própria. O poema Contranarciso, de Paulo Leminski, fala dessa possibilidade de ser o outro:

em mim eu vejo o outro

Livro_Clarice Lispector.indd 116 28/10/2015 15:08:41

Page 117: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

117

Vivian Resende Jatobá

e outro e outro en�m dezenas trens passando vagões cheios de gente centenas o outro que há em mim é você você e você assim como eu estou em você eu estou nele em nós e só quando estamos em nós estamos em paz mesmo que estejamos a sós (LEMINSKI, 2013, p. 32)

Assim, do mesmo modo que o eu lírico do poema, Clarice via em si a possibilidade de ser tantos outros, e o realizou por meio da escrita �ccional. Embaraçada com o diálogo com a realidade que a escrita de crônica propõe, ela se dá parcialmente a conhecer, mas

Livro_Clarice Lispector.indd 117 28/10/2015 15:08:41

Page 118: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

118

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

conseguindo permanecer, em alguns momentos, um enigma, como no caso dos textos que ora são crônicas, ora contos. O que sobressai, mais do que a sua intimidade, é seu olhar subjetivo sobre a vida, sobre a simplicidade que povoa a vida cotidiana e sobre as experiências que ganham contornos poéticos à medida que são apropriadas pela sensível escritora.

Philippe Lejeune de�ne ainda mais os limites entre �cção e realidade reªetindo a respeito da identi�cação ou não entre o nome da personagem e o nome do autor:

No caso de nome �ctício (isto é, diferente do nome do autor) dado a um personagem que conta sua vida, o leitor pode ter razões de pensar que a história vivida pelo personagem é exatamente a do autor: seja por comparação com outros textos, ou até mesmo pela leitura da narrativa que não parece ser de �cção. [...] Ainda que se tenha todas as razões do mundo para pensar que a história é exatamente a mesma, esse texto não é uma autobiogra�a, já que esta pressupõe, em primeiro lugar, uma identidade assumida na enunciação, sendo a semelhança produzida pelo enunciado totalmente secundária. (LEJEUNE, 2008, p. 24-25, grifos do autor).

Assim, embora o professor de Matemática não seja o narrador da história, ele também não é, na história, Clarice Lispector, pois não recebe o seu nome. Essa narrativa con�gura-se, portanto, como

Livro_Clarice Lispector.indd 118 28/10/2015 15:08:41

Page 119: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

119

Vivian Resende Jatobá

�ccional, como não poderia deixar de ser, embora se inspire em fatos da vida real da autora. Por não contar com a identi�cação explícita entre personagem e autor, nesse texto há o pacto romanesco, ao contrário do que costuma acontecer com mais frequência na crônica, em cujos relatos pessoais quase sempre existe o pacto autobiográ�co, em que personagem, narrador e autor são a mesma pessoa. Apenas na crônica a autora é também narradora e personagem e, assim, em “Bichos (I)”, não nos restam dúvidas de que se trata de uma escrita íntima. Ainda assim, porém, a �cção nos serve de apoio porque nela está contido o sentimento de remorso que não transparece na crônica. É por isso que, quando mascarada, a autora ousa dizer coisas que, quando se assume personagem, não se permite confessar.

Tanto a �cção quanto a crônica contribuem parcialmente para que se desvende uma verdade a respeito do autor. Para Lejeune,

Não se trata de saber qual deles, a autobiogra�a ou o romance, seria o mais verdadeiro. Nem um nem outro: à autobiogra�a faltariam a complexidade, a ambiguidade etc.; ao romance, a exatidão. Seria então um e outro? Melhor: um em relação ao outro. O que é revelador é o espaço no qual se inscrevem as duas categorias de textos, que não pode ser reduzido a nenhuma delas. Esse efeito de relevo obtido por esse processo é a criação, para o leitor, de um ‘espaço autobiográ�co’. (2008, p. 43, grifos do autor).

Livro_Clarice Lispector.indd 119 28/10/2015 15:08:41

Page 120: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

120

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

A verdade, portanto, não se concentra nem na �cção nem na autobiogra�a – termo usado por Lejeune que aqui estendemos à crônica. Ambas se complementam quando se pretende revelar o autor. O que é dito na autobiogra�a é dito mais profunda e alegoricamente na �cção, como se percebe no contraste entre a crônica “Bichos (I)” e o conto “O crime do professor de Matemática”. Assim, a intimidade de Clarice Lispector não está toda na crônica, embora a incomode usar seu nome e ter de abrir mão de recursos que poderia explorar na �cção.

A função-autor e o autor indivíduo, dessa maneira, atuam juntos quando se fala em revelar o autor, pois cada um revela uma parcela de verdade. A primeira, embora tenha como objetivo camuªar o segundo, é a máscara por trás da qual se torna mais confortável dizer verdades, de modo que o autor por trás dela se sentirá menos exposto para, profundamente, revelar suas dores – como fez Clarice ao escolher a �gura do professor de Matemática para assumir um remorso que era da própria autora. O segundo, por sua vez, contém a voz do próprio autor, que falará a seu próprio respeito de maneira mais direta e menos profunda. Clarice, entretanto, mesmo permitindo-nos enxergar sua �gura em parte na �cção e em parte na crônica, conserva sua parcela de enigma, a qual não foi escrita em lugar algum.

Dizemos, assim, que Clarice vestia a máscara do próprio rosto, o que parece pertinente, pois con�gura um caso de inde�nição tanto quanto o fato de certos textos aparecerem como crônica ou como conto, a depender da coletânea em que se encontram. Embora se trate de uma máscara, que tende a investir na intenção de �ltrar a

Livro_Clarice Lispector.indd 120 28/10/2015 15:08:41

Page 121: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

121

Vivian Resende Jatobá

exposição do autor, trata-se ao mesmo tempo de um rosto que é o daquele que escreve, isto é, certamente escapará algo do controle do autor. Clarice transforma a angústia de se expor em uma ambiguidade que confunde o leitor e coloca em primeiro plano não a sua �gura que confunde a máscara com o próprio rosto, mas a própria reªexão poética que é oferecida no texto, a partir da qual as experiências do narrador são preenchidas com divagações e olhares subjetivos lançados por ele. Aos leitores, entretanto, continua interessando que a autora se dê a conhecer, pois, como disse Lejeune, eles

passaram a gostar de adivinhar a presença do autor (de seu inconsciente) mesmo em produções que não parecem autobiográ�cas, de tal modo os pactos fantasmáticos criaram novos hábitos de leitura. (LEJEUNE, 2008, p. 46).

Esse pacto fantasmático de que o autor fala nada mais é do que a prática à qual o leitor aderiu: fazer do texto de �cção uma fonte em que se encontram “fantasmas reveladores de um indivíduo” (p. 43).

A autora, entretanto, não pretende atender à expectativa do leitor (o que não o impede de ainda assim insistir em localizá-la nos seus textos de �cção). Em “A experiência maior”, texto de 1971, �ca clara a intenção que Clarice tinha de não assumir o próprio rosto:

Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria

Livro_Clarice Lispector.indd 121 28/10/2015 15:08:41

Page 122: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

122

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

ser o âmago dos outros: e o âmago dos outros era eu.(LISPECTOR, 1999, p. 385).

Ao nosso alcance está entender que ser os outros é o que Clarice realizava por meio da �cção, mas ser o âmago dos outros implicava encontrar a si mesma, como fazia por meio da crônica, em que seu próprio nome era exposto. É como se a autora, por meio da exposição de si, alcançasse não apenas uma autoexposição, mas também e principalmente uma identi�cação mais profunda com o outro, o leitor. Dessa maneira, por meio da poética que se expõe através do olhar com que o cotidiano é percebido, o outro é alcançado em virtude da sensibilidade do eu que tem a ousadia de se expor.

No contraste entre o conto “O crime do professor de Matemática” e a crônica “Bichos (I)”, os possíveis acessórios da �cção funcionam como um �ltro que seleciona o que se pode depreender a partir de tais acessórios. Certamente o �ltro serve para que se preserve o que o autor quer dizer, e para que todo o resto esteja nebuloso. Não é, a�nal, da vontade de qualquer �ccionista deixar transparecer o autor por trás da �gura do narrador ou do personagem. A crônica, entretanto, age de modo diferente, trazendo a voz do autor e permitindo que se veja o que outrora se escondeu na tentativa que a autora tinha de se preservar. Entretanto, como foi dito, se em alguns momentos a distinção entre a �cção e a crônica é nítida, em outros, ela é invisível, pois os mesmos textos são apresentados ora como crônica, ora como �cção. Clarice nos confunde ao trocar de máscaras e também ao vestir a máscara do próprio rosto. Provavelmente a intenção não é evidenciar sua presença ou ausência no texto, mas sim a poética

Livro_Clarice Lispector.indd 122 28/10/2015 15:08:41

Page 123: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

123

Vivian Resende Jatobá

que o texto contém, de modo que em primeiro plano, em vez da intimidade de quem escreve, esteja o olhar participante desse autor sobre ocorrências ordinárias. É esse olhar que torna tais ocorrências menos banais e mais ricas, nas quais se percebe que a poética deriva da sensibilidade de quem narra experiências e encontra nelas mais signi�cados do que a aparência pode anunciar.

Podem nos servir ainda algumas considerações de Giorgio Agamben, que, em “O autor como gesto”, elucida o que Michel Foucault havia considerado no já comentado texto “O que é um autor?”: o autor-indivíduo real está em oposição à função-autor, como está dito mais claramente a seguir:

O autor não é uma fonte in�nita de signi�cados que preenchem a obra, o autor não precede as obras. É um determinado princípio funcional através do qual, em nossa cultura, se limita, se exclui, se seleciona: em uma palavra, é o princípio através do qual se criam obstáculos para a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição da �cção. (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2007, p. 56-57).

Dessa maneira, ao autor não interessa expor a si mesmo em sua obra. A �cção existe para que se dê a quem escreve o direito de ser outro e de se colocar em posição diversa. O autor deseja dar vida à obra e se excluir, �ltrando-se e mascarando-se para evitar que transpareça nela qualquer traço seu. Isso é o que foi realizado por

Livro_Clarice Lispector.indd 123 28/10/2015 15:08:41

Page 124: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

124

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Clarice no decorrer de sua produção e, como já foi dito, também no conto “O crime do professor de Matemática”, em que outro personagem e outra situação são criados para tratar de uma história que, no fundo, se inspira em uma experiência do autor-indivíduo.

Na crônica, porém, algumas vezes se torna impraticável �ltrar o autor e evitar seu aparecimento, tendo em vista que, embora exista a natureza poética do próprio gênero textual, existe também o seu constante diálogo com a realidade. Nos textos mais ambíguos, pode haver uma fusão entre as �guras da função-autor com a do autor-indivíduo. Quando se adere exclusivamente à �cção, porém

‘A marca do escritor reside unicamente na singularidade da sua ausência; a ele cabe o papel do morto no jogo da escritura’. O autor não está morto, mas pôr-se como autor signi�ca ocupar o lugar de um morto. Existe um sujeito-autor, e, no entanto, ele se atesta unicamente por meio dos sinais da sua ausência. (AGAMBEN, 2007, p. 58).

Isto é, a partir da referência a Foucault, Agamben reforça a ausência do autor no texto. No contexto da �cção, está claro que o sujeito-autor se afasta de seu texto a �m de promover a própria obra, e não a �gura que está por trás dela. A diferença entre a �cção e a crônica é a mesma que existe entre a presença e a ausência da voz do indivíduo autor, embora no caso de Clarice esses limites não sejam tão bem de�nidos e facilmente a �cção se misture à realidade quando quem age é um autor vestindo a própria máscara. É por isso que para

Livro_Clarice Lispector.indd 124 28/10/2015 15:08:41

Page 125: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

125

Vivian Resende Jatobá

Clarice é tão desconfortável o ofício de cronista: sua vontade era se ausentar, evitando a exposição do autor-indivíduo, mas a crônica exige a voz do autor e a explicitação de sua presença. Na �cção, por outro lado, a presença do autor acontece de maneira singular: por meio de sua ausência, isto é, ela se manifesta camuªada nas alegorias e “nos aparece unicamente por meio daquilo que silencia e distorce com uma careta” (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2007, p. 59). Apesar disso, mesmo que a �cção não pretenda localizar o autor, o leitor aderiu à tendência de procurá-lo nas entrelinhas do que foi inventado.

O autor, portanto, no contexto da �cção, usa armadilhas a �m de não se delatar no texto e, nas palavras de Foucault, “vidas reais foram postas em jogo” (p. 59), isto é, elas passam a ser representadas e colocadas em cena na pele de alguém que não será o próprio autor, mas que apenas exercerá a função-autor.

É uma tendência buscar na obra �ccional de Clarice traços que remetam à sua vida pessoal, pois existe a subjetividade expressa sempre peculiarmente em seus textos. Precisamos, entretanto, enxergar que não é o sujeito autor que se encontra ali em evidência, mas apenas a função-autor, cuja tarefa é camuªar a �gura do autor. Isso porque “o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central” (AGAMBEN, 2007, p. 59). Existe nos textos uma vida que é posta em jogo, mas não se sabe por quem ela é posta, sobretudo porque existe a máscara ou, como disse Foucault, a função-autor, a qual “aparece como processo de subjetivação mediante o qual um

Livro_Clarice Lispector.indd 125 28/10/2015 15:08:41

Page 126: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

126

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

indivíduo é identi�cado e constituído como autor de um certo corpus de textos” (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2007, p. 57).

Em suma, a função-autor é a que se encontra dentro do texto, é a �gura que usa a máscara, enquanto a participação do autor como indivíduo está escondida no corpus do texto �ccional. O interesse da crítica e do leitor, entretanto, é associar as duas �guras para encontrar na �cção tantos traços autobiográ�cos quanto aparecem na crônica. Na crônica, a diferença é o fato de a presença do autor ser mais explícita, por meio de sua própria assinatura e pelo fato de o próprio autor ser também narrador e personagem, o que a distingue da �cção e dos limites impostos por ela.

Se mesmo na �cção nossa análise permite depreender, por trás da função-autor, a presença do autor-indivíduo, é porque hoje a obra de Clarice já não se esgota em si mesma. Existem várias biogra�as que nos revelam traços da vida da autora associados aos enredos de suas obras �ccionais. Além disso, as próprias crônicas tendem a resgatar o que na �cção �cara omitido, como percebemos na análise de “Bichos (I)” e sua relação com o conto “O crime do professor de Matemática”. Ainda que se queira, portanto, isolar a função-autor, ao tratarmos de Clarice Lispector essa missão encontra frequentemente outras análises nas quais já se revela o autor como sujeito. Apesar disso, para Clarice era mais confortável o terreno da �cção, no qual acreditava não se delatar ao colocar em cena a função-autor em primeiro plano. Deriva daí o seu incômodo diante da crônica, em cujo terreno seria ela mesma e não a função-autor que apareceria.

Quanto ao fato de alguns dos textos, entretanto, serem situados tanto no terreno da �cção – ao serem classi�cados como conto –

Livro_Clarice Lispector.indd 126 28/10/2015 15:08:41

Page 127: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

127

Vivian Resende Jatobá

como no da realidade – ao serem classi�cados como crônica –, a justi�cativa é a intenção da autora de tornar nebuloso esse limite, de modo que a crônica também possa ser vista de modo �ccional, já que ser pessoal tanto incomodava a autora. Assim, é conferida à crônica uma possível característica �ccional, de modo que o leitor já não tenha tanta certeza da presença da autora. Por outro lado, também pode ser um modo de encontrar a autora por meio do texto que se pretende �ccional quando situado em uma coletânea de contos.

Na �cção, ainda que não contemos com a presença explícita do autor como indivíduo, contamos com a subjetividade, pois, nas palavras de Agamben, “uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela” (AGAMBEN, 2007, p. 63). O ambiente �ccional implica, portanto, que o indivíduo dê lugar à máscara da função-autor. Toda a linguagem usada por ele tende a criar uma atmosfera �ccional, com a qual o leitor se envolve e na qual ele seguirá a tendência de tentar encontrar traços nos quais o autor tenha se diluído. Por meio de uma investigação que envolva outros textos e o conhecimento da vida do próprio autor, o leitor terá elementos para deduzir a presença do indivíduo camuªado pela função-autor.

Enquanto isso, na crônica, ainda que queira se mascarar, o indivíduo autor, com certo pudor e à revelia, se dá a conhecer, pois deve partir da realidade e dialogar com ela, encontrando elementos a partir dos quais seja possível explorar alguma sensibilidade. Nos casos em que �cção e crônica se fundem, criando uma ambiguidade que não nos permite ter certeza da presença ou da ausência do autor,

Livro_Clarice Lispector.indd 127 28/10/2015 15:08:41

Page 128: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

128

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

também se fundem a função-autor com o autor-indivíduo, de modo que A descoberta do mundo seja uma fonte misteriosa em que nem tudo é absoluto e alguns textos se relativizam em virtude da tênue linha que os separa da �cção: não há plena presença do autor assim como não é apenas a função-autor que toma todo o espaço. O fato de Clarice apelar para uma máscara que é a do próprio rosto nos obriga a reªetir a respeito da poética e da presença de sua sensibilidade na obra, discussão que será feita mais detalhadamente no último capítulo.

Diante da reªexão, que nos põe a discutir a respeito do que as máscaras revelam ou deixam de revelar, cabe citar Oscar Wilde (1969, p. 389): “O homem é menos ele mesmo quando fala por si. Dê-lhe uma máscara e ele lhe dirá a verdade”.1 Isto é, provavelmente Clarice nos disse muito mais quando estava atrás da máscara, quando a �gura de autor não coincidia com a do narrador. O uso de alegorias lhe convém porque permite que se esconda e diga o que pretende. Certamente, há muito de Clarice Lispector em seus romances e contos, obras �ctícias cujos acessórios tinham o objetivo de compor um cenário em que não se percebesse qualquer fundo biográ�co. Como Lejeune já apontou, na �cção encontra-se, com mais complexidade e profundidade, o que o autor diz por trás da máscara da função autor.

No compromisso assumido com um veículo que se encarrega de levar informação ao leitor, os recursos da �cção não podem ser

1 Man is least himself when he talks in his own person. Give him a mask and he will tell you the truth.

Livro_Clarice Lispector.indd 128 28/10/2015 15:08:42

Page 129: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

129

Vivian Resende Jatobá

utilizados da mesma maneira, con�gurando uma realidade à parte e afastando a �gura do autor de sua obra. Resta ao cronista trocar máscaras pelo próprio rosto, ou usar a máscara do próprio rosto, tratando a si mesmo como personagem e �ltrando o que lhe for conveniente quando houver o temor de se expor demais. É justamente essa troca que permite que se exponha a intimidade e que se revele alguma inibição. Como disse Oscar Wilde, as máscaras tornam fácil a tarefa de dizer verdades. Dizê-lo com o rosto à mostra pode trazer à cena um autor inibido, mas que certamente não conseguirá evitar a exposição diante do que a crônica propõe: diálogo e espontaneidade, com autor e leitor conversando à mesma altura.

A respeito do uso e da necessidade de máscaras, convém ressaltar que Clarice sequer deixava registros seguros de sua data de nascimento. Há documentos modi�cados e certa insistência em não deixar certeza alguma sobre essa data. A escritora, que disse em Água Viva “com o perdão da palavra, sou um mistério para mim”, trecho que se repete em uma de suas crônicas, pretendia ser, de fato, um mistério para os outros. Sua identidade parece suspensa e fora do alcance, uma vez que a todo momento é escolhida uma máscara, e a multiplicidade delas con�rma que, de fato, como já citamos, “escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano” (LISPECTOR, 1999, p. 80). Quanto a essa multiplicidade e imprecisão que mergulham a própria autora em meio a incertezas que se tem a seu respeito, Carlos Mendes de Sousa diz:

Pode-se dizer que esta proliferação de datas, em lugares que se pretendem estabilizadores, é a consequência

Livro_Clarice Lispector.indd 129 28/10/2015 15:08:42

Page 130: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

130

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

mais ou menos direta do jogo de ocultações e desvelamentos que mesmo biogra�camente a autora desde muito cedo pôs em marcha por causa de sua situação de ‘estrangeira’, nascida em outra distante terra. (SOUSA, 2011, p. 504).

A diversidade impressa na obra da autora, tanto como �ccionista quanto como cronista, leva-nos a pensar em sua pluralidade e ao mesmo tempo a buscarmos algo de biográ�co no que foi deixado. Citado por Sousa, Starobinski já dizia que “falar já é não coincidir consigo mesmo, já é mascarar-se” (STAROBINSKI, 1993 apud SOUSA, 2011, p. 501). Diante, portanto, da capacidade que Clarice tinha de modi�car-se e até multiplicar-se em discursos e personagens distintos, a máscara exerce atração pela curiosidade gerada e a crônica seria a possibilidade de se satisfazer tal curiosidade. Até então, perguntava-se o porquê de Clarice não dedicar suas obras a uma abordagem de questões sociais, mas apenas reªexivas, que mergulhassem em dramas de personagens.

Clarice Lispector havia marcado com muita precisão o seu território e, apesar de algumas vezes seu nome aparecer catalogado como o de uma escritora ‘alienada’, prosseguia na formação de uma obra singular, de�nida primacialmente em função de uma circularidade de tipo autista. (SOUSA, 2011, p. 506).

Livro_Clarice Lispector.indd 130 28/10/2015 15:08:42

Page 131: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

131

Vivian Resende Jatobá

O tempo, entretanto, leva a autora a manifestar-se mais acerca de fatos que preenchem a realidade social brasileira e a sua própria, passando a tirar de si a máscara que a cobriu enquanto escreveu �cção, ou ao menos a trocar outras máscaras pela de seu próprio rosto.

Este empenho, por seu turno, parece também decorrer de um vasto processo de desvelamento de ordem autobiográ�ca; é precisamente na fase �nal que a memória da infância nordestina vai ser tematizada (vejam-se os contos de Felicidade Clandestina), e é por esta altura que em entrevistas Clarice aborda assuntos nunca referidos como a pobreza na sua infância. O fato de só em fase tardia da obra surgirem mais claramente as referências toponímicas é um procedimento observável em vários autores: torna-se mais nítido o passado e, com ele, a necessidade de fazer o balanço da vida. Hora em que se percebe o que era impossível perceber no centro do momento eufórico – em que não se pode parar –, a retrospectiva é uma coisa da maturidade do tempo; a poesia no sentido mais metafórico é-o da adolescência. (p. 507).

A maturidade, aliada à necessidade de ganhar dinheiro, que leva a autora a escrever para jornal, contribuem para que, no �m da vida, Clarice Lispector deixe à margem as máscaras que a acompanharam em todos os seus relatos e assuma uma outra, a de si mesma. Nos

Livro_Clarice Lispector.indd 131 28/10/2015 15:08:42

Page 132: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

132

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

textos semanalmente publicados no Jornal do Brasil, percebe-se uma autora transparente, que teme se expor porque até então se escondia, e, em virtude da grande circulação do jornal e do uso de seu próprio nome assinando os textos, está diante do público como nunca antes. Ainda assim, permanece a poética do cotidiano, quando não o resgate de memórias pessoais. Sobre a realidade política da época, quando o Brasil se encontrava sob o comando dos militares, tudo o que há é silêncio.

Na crônica “Restos de carnaval” (uma das que retorna em Felicidade Clandestina como conto, embora se conserve o conteúdo), de 16 de março de 1968, há um resgate da infância e a lembrança de um fato é compartilhada. Deve-se aqui ressaltar a necessidade que Clarice expõe de querer ser outra. Quando menina, na época de Carnaval, não podia fantasiar-se, uma vez que as preocupações se voltavam para o estado de saúde de sua mãe. A menina, então, �cava presa à realidade e não poderia ousar fantasiando-se, sendo outra, como eram outros aqueles que se mascaravam nas ruas da cidade.

Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me havia fantasiado. Em compensação, deixavam-me �car na rua até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. (LISPECTOR, 1999, p. 83).

A menina se sentia privada da felicidade porque não tinha a oportunidade de ser outra sequer naqueles dias. Se lhe dessem uma máscara ou uma fantasia, um pouco a mais do que “um lança-

Livro_Clarice Lispector.indd 132 28/10/2015 15:08:42

Page 133: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

133

Vivian Resende Jatobá

-perfume e um saco de confete”, ela estaria satisfeita e não haveria outra necessidade. Seria o su�ciente para ser outra que não ela mesma, uma criança em cuja casa, em meio aos cuidados com a mãe doente, só lhe era dado o possível, que era menos do que desejavam a sua imaginação e o seu já latente desejo de ser outra. O possível era apenas enrolar os cabelos, pintar os lábios e passar rouge nas faces. “Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice” (p. 83), como quem escapa parcialmente da própria realidade.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim. (p. 83).

Termos como “vital e necessário” já nos levam a crer no quão indispensável seria para a autora tornar-se outra. Uma vez que a realidade não era como o que se desejava, havia a necessidade de se criar um mundo imaginário que favorecesse seus sonhos, onde ela não seria a mesma e a realidade seria leve. O contato com o mundo interior, como ela mesma diz, é indispensável; e as pessoas, misteriosas. Percebe-se o quão difícil deve ser para a autora entrar

Livro_Clarice Lispector.indd 133 28/10/2015 15:08:42

Page 134: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

134

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

em contato com a própria realidade. Depois de tanto tempo escrevendo como outra pessoa, a tarefa de assumir o próprio rosto e fazer das próprias histórias matéria que se compartilhe no jornal seria desa�ador e até desconfortante para quem se atraía por máscaras e disfarces, vitais e necessários, mas dos quais foi preciso abrir mão – até certo ponto, a�nal, segundo ela mesma suspeitava, o rosto humano também é uma espécie de máscara.

Quando pequena, ela abria mão do disfarce em virtude das circunstâncias impostas pela realidade, a doença de sua mãe. Quando adulta, depois de ter se convertido em narradores e personagens, teve que recorrer à própria máscara quando se viu em di�culdade �nanceira e teve que assumir a própria assinatura e as próprias histórias para torná-las crônicas. A�nal, seu primeiro gesto voluntário teria sido escolher a própria máscara.

Se na �cção lhe cabiam tantas possibilidades, na crônica deveria haver uma alternativa. Temendo que seu pudor fosse ferido, a saída seria incorporar a cronista, isto é, fazer dela uma personagem sua, que contasse histórias próprias, dispensando a �cção, mas não a literatura, como é típico da crônica. As histórias de si mesma contêm em si alguma poética, a�nal era indispensável o contato com o seu mundo interior, “que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério” (LISPECTOR, 1999, p. 83). Isto é, passa a ser do conhecimento do leitor o mundo interior da autora, embora esse tenha consigo alguns mistérios.

No carnaval especí�co tratado na crônica daquele sábado, o papel crepom destinado à fantasia de uma amiga sua havia sobrado. A mãe da menina

Livro_Clarice Lispector.indd 134 28/10/2015 15:08:42

Page 135: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

135

Vivian Resende Jatobá

talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. (p. 84).

E o mais importante: “Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.” (p. 84). Era en�m concedido à menina Clarice o direito de não ser ela mesma, de assumir outro papel, de fugir de si. Desde tão cedo aquela necessidade já se manifestara e o interessante é a protagonista ter publicado este fato quando já trabalhava como jornalista, o que a privava, como antes, do direito de ser outra.

Naquele carnaval, porém, apesar de lhe ter sido concedido o direito de ser outra, ela seria chamada à realidade devido ao estado de saúde de sua mãe, que havia piorado. E mesmo vestida de rosa, teve de ir à farmácia buscar o remédio de que a mãe precisava. “Mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil.” (p. 84). Mesmo com fantasia, o rosto era o mesmo, e havia a necessidade da maquiagem que disfarçasse sua meninice. Mesmo após a casa ter-se acalmado, quando sua irmã lhe havia pintado e penteado, já era tarde para a fantasia.

[...] alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo

Livro_Clarice Lispector.indd 135 28/10/2015 15:08:42

Page 136: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

136

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma ªor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. (LISPECTOR, 1999, p. 85).

Para Clarice, portanto, menina ou madura, a máscara não é mera alegoria. O disfarce é necessário para confortá-la da realidade. Quando criança, a fantasia convinha para que se participasse da festa popular e se esquecesse da mãe doente dentro de casa. Quando adulta, as personagens lhe exigiriam a dedicação necessária e lhe convidavam a um universo em que a solidão poderia ser amenizada. Isso porque a autora escreveu muitos de seus livros enquanto viveu fora do país, longe da família, por causa do casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente.

Custa-lhe, portanto, abrir mão da máscara ou buscar alternativa. Ela a usa como quem usufrui de um direito até o momento em que a necessidade a obriga a afastar-se dele. Escrever para o Jornal do Brasil é, assim, uma renúncia ao direito de ser outra. Sem ao menos batom nos lábios e rouge nas faces, o rosto ainda assim buscará mascarar-se e a autora, que será também e ao mesmo tempo narradora e personagem, nos dirá muito e em meio a tantos relatos estará presente a representação de sua intimidade.

Cabe dizer que se trata, sim, de uma representação, pois Clarice Lispector era personagem de si própria mesmo enquanto não escrevia. Em sua vida, ela se permitia recorrer a máscaras possíveis, a alegorias disponíveis e não seria diferente mesmo quando houvesse a necessidade de partir para a crônica. Nela, ela se colocaria como a personagem Clarice Lispector, que aparece nas histórias resgatadas

Livro_Clarice Lispector.indd 136 28/10/2015 15:08:42

Page 137: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

137

Vivian Resende Jatobá

da infância e que se volta também para o presente, presenciando fatos e envolvendo-se com eles a ponto de usá-los como ponto de partida para reªexões.

A fantasia, para Clarice, é um direito que lhe cabe. Ao vesti- -la, podendo gozar da permissão para ser outra, ela cresce, torna-se mulher, como na crônica “Tortura e glória”, posteriormente publicada como o conto “Felicidade clandestina” no livro homônimo, como já se disse. No texto, conta-se a história de uma menina moradora de Recife que desejava ler As reinações de Narizinho, livro que outra menina, �lha do dono da livraria, possuía. O desejo de tê-lo conduz a menina diariamente à casa da proprietária do livro, que adia a satisfação daquela que anseia pelo direito à fantasia ao mesmo tempo em que renova sua esperança de adquirir o livro sempre no dia seguinte, quando retornasse à casa da pequena torturadora.

A realidade da espera pelo livro vira um sofrimento. A dona dele insiste em tê-lo emprestado a outra menina enquanto a que espera por ele insiste em buscá-lo. Uma se satisfaz com o plano “tranquilo e diabólico” (LISPECTOR, 1999, p. 28) enquanto a outra, ingênua e regularmente, retorna à sua espera. Até o dia em que a mãe da dona do desejado livro é quem �nalmente dá à menina a glória: o direito de �car com ele “pelo tempo que quisesse” (p. 28). O direito à �cção é o que muda a menina: até então, ela saía da casa da pequena torturadora sendo criança: saltitando, com seu “modo estranho de andar pelas ruas de Recife” (p. 28). A partir do momento em que o livro está em seu poder, como se lhe fosse concedido o privilégio de ingressar em outro universo que não aquele da tortura e da espera, a menina não sai mais pulando, mas usufruindo de modo diferente

Livro_Clarice Lispector.indd 137 28/10/2015 15:08:42

Page 138: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

138

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

daquele prazer desconhecido, daquela felicidade clandestina. Então, “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante” (p. 29).

Construída a imagem da transição, de alguém que andava saltitando e depois passa a conviver com o prazer de andar devagar em posse da fantasia que desejava, constrói-se também o que essa situação ilustra: vestir fantasias torna Clarice uma mulher, dando- -lhe segurança, satisfação e felicidade. Ter direito à �cção e à máscara oferece à autora a possibilidade de ser mais mulher, pois lhe dá a liberdade de falar sem expor a si mesma.

A ausência de máscara, a restrição do direito à fantasia, por outro lado, provocam os mesmos efeitos que vimos em “Restos de Carnaval”: “eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.” (p. 85). Ser privada da possibilidade de ser outra, portanto, signi�ca passar da condição de mulher à de menina. Mostrar o próprio rosto é amedrontador e o único modo de afugentar tal medo é recorrer à �cção.

Partindo do enredo de “Felicidade Clandestina” ou “Tortura e Glória”, a apresentação dos números 17 e 18 dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, fala da autora que recorre à �cção:

Um dia, os livros deixariam de ser emprestados, ou mesmo adquiridos – e, sobretudo, deixariam de ser de outros autores. E a felicidade clandestina que assaltara aquela menina de origem humilde e estrangeira ao voltar para casa, andando não mais aos saltos, como

Livro_Clarice Lispector.indd 138 28/10/2015 15:08:42

Page 139: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

139

Vivian Resende Jatobá

de costume, porém devagar, comprimindo contra o peito a obra de Lobato, iria se de�nir sobre o branco da própria página. E a vida, dura e linda como um diamante, se tornaria sinônimo de escrever para ela, Clarice Lispector, a mais notável das �ccionistas do idioma, uma espécie de milagre, uma tal aleluia da literatura brasileira. (CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2004, p. 6).

É coerente pensarmos que a �cção é o refúgio de Clarice Lispector e que, mesmo quando a autora não pode recorrer a ele, �ccionaliza a si mesma, isto é, Clarice se torna um personagem de si mesma para que seja possível, deste modo, levar adiante a tarefa de escrever crônica, por exemplo. Assim, se o desnudamento a incomoda e se renunciar à fantasia lhe é desconfortável, sua saída é fantasiar sua própria realidade, de modo que, embora até aqui tenhamos considerado que ela coloque sua própria alma à venda nas páginas de A descoberta do mundo, devemos encarar que aquela que se expõe pode não ser exatamente Clarice Lispector, mas apenas uma de suas várias faces, uma Clarice mascarada. A face exposta em A descoberta do mundo, portanto, seria a de uma cronista que se incomoda com o fato de se tornar o foco da atenção do leitor, que é insegura com a missão que lhe é dada e que não tem outra saída senão recorrer a suas memórias e fatos de seu dia a dia para cumprir a tarefa que lhe é dada. Antes mesmo de ingressar no Jornal do Brasil, Clarice já havia sido várias não apenas na �cção.

Livro_Clarice Lispector.indd 139 28/10/2015 15:08:42

Page 140: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

140

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

A pesquisadora Aparecida Maria Nunes dedicou-se ao “devido registro e conhecimento dos vários per�s de Clarice do jornalismo: a repórter, a cronista, a colunista de página feminina e a entrevistadora” (NUNES, 2012, p. 18), o que apenas sublinha a capacidade da autora de se multiplicar em funções, gêneros e personagens diversos. Mais uma vez, as palavras de Nunes nos con�rmam tal pluralidade:

Ucraniana, por acaso. Brasileira, por opção, já que se naturalizou. Mas sempre estrangeira, como disse certa vez Antônio Callado. O que pode perfeitamente explicar a singularidade com que via o mundo, a vida, a si própria e, por extensão, a literatura e o jornalismo. (p. 19).

Clarice era, aparentemente, uma estrangeira no jornal, pois o conforto da �cção lhe fazia falta e desde as primeiras experiências como repórter �cava clara a peculiaridade de sua escrita. Na crônica de que nos ocupamos não seria diferente. A descoberta do mundo é, na verdade, a manifestação de várias descobertas de si mesma, de diversas Clarices, que, deslocadas e desconfortáveis diante da tarefa de escrever crônica, recorriam à subjetivação e à poetização do mundo com a singularidade de que Aparecida Nunes fala. Clarice era um personagem, ou vários.

Sua condição de estrangeira se explicita na crônica “Pertencer”, de 15 de junho de 1968, na qual diz:

Livro_Clarice Lispector.indd 140 28/10/2015 15:08:42

Page 141: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

141

Vivian Resende Jatobá

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. (LISPECTOR, 1999, p. 110).

A �m de preservar a parcela do indizível, a autora não revela a razão de sua vontade de pertencer, mas imagina-se que, em virtude do seu permanente deslocamento e de sua condição de estrangeira, ela tenha aderido às várias faces de suas várias personagens a �m de, de algum modo, se reconhecer em alguém, sentindo-se pertencente a um grupo, e não isolada como aparentava ser:

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste. (p. 110).

Sua necessidade de aderir à máscara é solução para a pobreza que diz ter. Ter apenas um corpo e uma alma não basta, e escrever é seu modo de se multiplicar e pertencer a si mesma, fazendo do conjunto de suas personagens um grupo ao qual pertença pela semelhança.

Livro_Clarice Lispector.indd 141 28/10/2015 15:08:42

Page 142: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

142

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Não se trata de “fazer parte de grupos ou associações” p. 110), mas de encontrar a si mesma, de dividir a solidão e os sentimentos, tais como suas alegrias solitárias, que ela diz poderem se tornar patéticas:

É como �car com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos. (p. 110).

Se seus sentimentos não são embrulhados, talvez suas personagens se apropriem deles exatamente da maneira como pertencem à autora. O fato de Clarice se multiplicar, assim, é um modo de realizar sua necessidade de ser outras e de dividir seu sentimento com suas personagens, as quais, envolvidas em situações distintas, retomam os sentimentos de quem as criou. Desse modo, uma vez engajada na tarefa de criar, Clarice pertence à literatura brasileira, o que lhe dá alegria:

E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria a invasão de que uma pessoa popular é vítima –, eu, que não quero a popularidade, sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por orgulho, nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que

Livro_Clarice Lispector.indd 142 28/10/2015 15:08:42

Page 143: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

143

Vivian Resende Jatobá

nada têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma intelectual. Feliz apenas por ‘fazer parte’. (LISPECTOR, 1999, p. 111).

Fazer literatura é, assim, sua maneira de pertencer a algo por dois motivos: por fazer parte da literatura brasileira e por criar suas personagens e emprestar a elas os seus sentimentos, de modo que em cada uma delas haja alguma característica original sua. É na �cção que a autora se encontra, pois, na vida, ela confessa ter �cado frustrada por acreditar não ter pertencido a seus pais: a esperança deles era que seu nascimento salvasse a mãe de grave doença. “E sinto até hoje essa carga de culpa: �zeram-me para uma missão determinada e eu falhei” (p. 111).

Para Clarice, buscar o pertencimento era uma missão de vida, por isso se dedicava à literatura, já que, na sua realidade, carregava a culpa de não ter salvado a mãe como esperavam, bem como a condição de estrangeira que se deslocava desde o nascimento e que permaneceu mudando de endereço mesmo depois de adulta, em virtude do casamento com diplomata. O biógrafo Benjamin Moser, por sinal, lembra que originalmente seu nome sequer era Clarice. Ele esclarece que

O nome que ela recebeu em Tchechelnik, Chaya, que em hebraico signi�ca ‘vida’ – e que também tem a apropriada conotação de ‘animal’ – desapareceria, reaparecendo apenas em hebraico em sua lápide tumular, e mantendo-se pouco conhecido no Brasil

Livro_Clarice Lispector.indd 143 28/10/2015 15:08:42

Page 144: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

144

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

até décadas depois de sua morte. (MOSER, 2009, p. 57).

Como Clarice é multifacetada e explora a faculdade de trocar de máscaras a todo tempo, ela trata a si mesma como personagem. Chaya era uma desconhecida e Clarice era seu personagem, que, embora conservasse um pouco de si em cada personagem, fazia de cada uma delas uma máscara sua. Assim, embora para o público da crônica pareça evidente que se esteja diante da autora que se dá a conhecer, ela, por sua vez, conforta-se com a ilusão de não se tratar como pessoa, mas como personagem, de modo tão ambíguo que o mesmo texto pode ser ora �cção, ora realidade.

Talvez a realidade de Clarice fosse a �cção. Como já dissemos anteriormente, ela era personagem de si mesma. Um fato de sua biogra�a nos comprova isso. Em Clarice, uma vida que se conta, Nádia Batella Gotlib traz a conhecimento do público um fato que lhe chega por intermédio de Olga Borelli, amiga de Clarice que acompanhou a �ccionista até os últimos dias de vida.

Na véspera da morte, Clarice estava no hospital e teve uma hemorragia muito forte. Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:

Livro_Clarice Lispector.indd 144 28/10/2015 15:08:42

Page 145: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

145

Vivian Resende Jatobá

– Você matou meu personagem! (GOTLIB, 1995, p. 484).

Assim, o que �ca claro é a frequente tentativa de Clarice de recorrer à �cção para fugir de sua própria realidade, na qual sentia falta de pertencer a algo. A �cção lhe parece um lugar seguro e a máscara é um direito de que ela não abre mão mesmo diante da morte. A�nal, a autora, que passou boa parte da vida fora do Brasil, �cava na companhia dos livros, criando mundos à parte, que a afastavam de sua realidade. Ela mesma, aliás, encontrava-se distante de suas origens, como foi desde o início de sua história. Em A hora da Estrela, o narrador Rodrigo S.M. representa um pouco a voz da própria autora:

A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signi�que. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. (LISPECTOR, 1998a, p. 11).

Parece que as palavras da personagem retomam a realidade da autora, que era um mistério, por isso tinha sua verdade como tão interna e inexplicável. Clarice Lispector era um personagem e viveu em permanente deslocamento. De família judia, veio para o Brasil fugindo da perseguição que se dava na Europa, o que justi�ca a mudança de nome. Depois de estabelecida no Rio de Janeiro, para

Livro_Clarice Lispector.indd 145 28/10/2015 15:08:42

Page 146: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

146

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

onde se mudou após a infância em Maceió e Recife, casou-se e passou a acompanhar o marido diplomata fora do país. Dessa maneira, as mudanças frequentes de cenário implicavam também mudanças frequentes de disfarces, por isso somos conduzidos ao encontro com uma diversidade de personagens e de dramas, sem que possamos concluir uma verdade de�nitiva.

Seria inevitável, portanto, o incômodo gerado por um retrato intimista que se publicasse na crônica e, diante de tal sensação, nenhuma outra possibilidade senão assumir-se como personagem seria mais confortável. A Clarice que conhecemos por meio da crônica, portanto, não assume outro nome e, apesar de, nos textos, fazer menção a pessoas que participavam de seu cotidiano, ainda assim se mantém parcialmente misteriosa, pois a presença da ressigni�cação de experiências nos seus relatos foge de um retrato cru da realidade e encontra possibilidades literárias.

É como se Clarice, em permanente deslocamento, não se encontrasse onde está o seu corpo. O espírito naturalmente vaguearia em outro universo, buscando outra realidade que não aquela. Por isso a tentativa de fuga do hospital, bem como a frequente tentativa de evasão da crônica, que parece uma ameaça à medida que tenta prendê-la à realidade, por ser veiculada em jornal. O real é terreno de permanente incômodo para quem se satisfaz na �cção.

Como lembra Benjamin Moser, o encontro de Clarice com a es�nge egípcia, quando a autora passava pelo Cairo no caminho de volta à Itália, é signi�cativo:

Livro_Clarice Lispector.indd 146 28/10/2015 15:08:42

Page 147: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

147

Vivian Resende Jatobá

Clarice Lispector nunca voltou ao Egito. Mas, muitos anos depois, relembrou sua breve excursão turística, quando, nas ‘areias do deserto’, encarou desa�adoramente ninguém menos que a própria Es�nge.

‘Não a decifrei’, escreveu a orgulhosa e bela Clarice. ‘Mas ela também não me decifrou.’ (MOSER, 2009, p. 12).

Orgulhosamente, Clarice não se permitia decifrar. Talvez nem por ela mesma, que ocultou seus dramas nos de suas personagens e que, mesmo na crônica, procurou preservar pelo menos parcela de sua intimidade. De acordo com Moser, “quando morreu, em 1977, Clarice Lispector era uma das �guras míticas do Brasil, a Es�nge do Rio de Janeiro, uma mulher que fascinava os brasileiros praticamente desde a adolescência” (p.12), que rea�rma sua aura misteriosa, que caminha ao mesmo tempo entre �cção e realidade.

As tentativas de descrever essa mulher indescritível volta e meia seguem essa linha, recorrendo aos superlativos, embora aqueles que a conheceram, em pessoa ou por seus livros, também insistam que o aspecto mais notável de sua personalidade, sua aura de mistério, escapa a toda descrição. ‘Clarice’, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade,

Livro_Clarice Lispector.indd 147 28/10/2015 15:08:42

Page 148: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

148

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

‘veio de um mistério, partiu para outro.’ (MOSER, 2012, p. 13).

Certamente, Clarice não desvendaria todos os seus mistérios na crônica. Ela os conservaria. A crônica lhe serve, na verdade, para falar do retrato do cotidiano, do que foi visto e interpretado pela singularidade de seu olhar, do que foi falado por seus �lhos, do que foi testemunhado pela autora, do que a aªige e do que pode ser poeticamente transcrito. A sensibilidade que se nota nos textos deriva do seu contato com a literatura e de sua liberdade para não se prender com exclusividade ao real. Não seria, portanto, no jornal, que Clarice revelaria seus mistérios mais profundos. Não lhe cabia o papel de jornalista investigativa sobre si mesma. Se havia incômodo em virtude da pessoalidade característica do gênero, é porque era exigido que se assinasse com o próprio nome, e não se permitiria que ela se tornasse Lóri ou Macabéa, por exemplo. Ainda assim, quando morresse, ela carregaria consigo seus mistérios e plantaria nos leitores várias indagações.

Em A hora da estrela, novela publicada no ano de sua morte, por exemplo, Clarice está um pouco dissolvida na �gura de Rodrigo S.M., o narrador-personagem, bem como na de Macabéa, a pobre protagonista que, apesar de não ter profundidade intelectual tampouco dinheiro, mostrava-se sensível às experiências diárias; e na de Olímpico, o rapaz com quem Macabéa se envolve. O primeiro diz que “A ação desta história terá como resultado minha transformação

Livro_Clarice Lispector.indd 148 28/10/2015 15:08:42

Page 149: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

149

Vivian Resende Jatobá

em outrem e minha materialização en�m em objeto” (LISPECTOR, 1998a, p. 20) e que

apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona. (p. 24).

Isto é, o narrador Rodrigo S.M. fala de seu papel, que o obriga a também se transformar, como certamente fazia Clarice Lispector ao criar suas personagens e, por meio delas, escrever, a�nal “é paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela.” (p. 29), como diz Rodrigo S.M. Os sussurros citados são o que há de mais profundo na �cção e, camuªados em meio aos fatos narrados, certamente preservam a porção que há da própria Clarice em suas personagens, que são sua trans�guração e que, por meio de alegorias, falam de dramas tão seus.

Em Macabéa, também há uma porção de Clarice:

E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser. (LISPECTOR, 1998a, p. 36).

Livro_Clarice Lispector.indd 149 28/10/2015 15:08:42

Page 150: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

150

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Embora a personagem tenha características próprias, tais como pro�ssão e virgindade, ela representava, como Clarice, o papel de ser no decorrer do dia. Clarice Lispector o fazia diariamente, tanto como indivíduo, quanto como escritora, fosse como �ccionista ou jornalista. Apesar de termos falado, portanto, na distinção entre função-autor e autor indivíduo, na obra de Clarice os limites entre uma �gura e outra não parecem tão visíveis, pois a própria autora era uma personagem que criava outras, nas quais havia um pouco dela mesma.

A respeito de Olímpico, também ele, apesar de tão distinto de Macabéa, tinha em si a pré-disposição para se tornar outro:

Não se arrependeu um só instante de ter rompido com Macabéa, pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser outro. (p. 65).

Essa personagem alimenta sua fome de ser outro por meio da ambição de um dia tornar-se deputado e conhecido, mas ainda assim deseja abandonar-se para dar lugar a uma outra face de si, mais reconhecida e bem sucedida.

O que talvez seja um alento para Clarice Lispector em seu trabalho como cronista é o fato de que esse gênero lhe permite não se situar exclusivamente no limite da realidade, mas partir dela para alcançar outro universo, em que a sensibilidade se alcance e se manifeste. Portanto, à medida que estamos dispostos a buscar poéticas exploradas em A descoberta do mundo, é natural que não

Livro_Clarice Lispector.indd 150 28/10/2015 15:08:42

Page 151: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

151

Vivian Resende Jatobá

encontremos fatos vistos objetivamente, um “simples registro formal” (SÁ, 2005, p. 9) do cotidiano, mas, em vez disso, “tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação da realidade” (p. 9). Assim, é possível que Clarice Lispector, de alguma maneira, se contente com o que a crônica lhe oferece, a�nal, tendo em mente os textos que se repetem ao mesmo tempo como crônica e como conto, não estão de�nidos contornos absolutos que separem completamente um gênero de outro. Portanto, ambos podem recorrer a uma realidade para logo em seguida torná-la �cção.

Sabendo que a crônica é relativa a um momento especí�co e que dele se podem extrair reªexões, citamos Jorge de Sá:

Rubem Braga conhece a importância desses pequenos momentos que também fazem parte da condição humana. Tanto é assim que ele a�rma: ‘A verdade não é o tempo que passa, a verdade é o instante’. Brevíssimo instante, onde se oculta a complexidade das nossas dores e alegrias, protegidas pela máscara da banalidade. (SÁ, 2005, p. 12).

Isto é, mesmo a crônica consegue mascarar realidades, embora se inspire em fatos reais. O cronista não se obriga a aprofundar suas dores e/ou alegrias, de modo que, embora ele se dê a conhecer, impõe certos limites, uma vez que seu texto não reproduz, mas recria a realidade, o que é natural, tendo em vista sua interface com a literatura. A crônica, na verdade, suscita poéticas que dialogam

Livro_Clarice Lispector.indd 151 28/10/2015 15:08:42

Page 152: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

152

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

com o que está no campo do real, mas mesmo tais poéticas só existem ao resultarem de ressigni�cações e não de traduções literais do que presenciamos diariamente. Essas poéticas consistem em um exercício de dar certa dose de lirismo a qualquer situação narrada, de modo que essa situação seja trans�gurada e ganhe contornos de subjetividade e literariedade.

Desse modo, o que se pretende deixar claro é que Clarice não precisa abandonar máscaras para dedicar-se à crônica. A autora utilizará fatos aparentemente banais da vida cotidiana, mas não com a �nalidade de se expor, e sim de fazer com que tais fatos levem além deles mesmos, despertando olhares poéticos por meio dos quais seja possível perceber mais do que a aparência revela. Não se trata de limitar-se ao que é visível, mas sim de buscar sentidos que só se encontram quando há o exercício da busca, da reªexão.

Se na crônica existe uma recriação que parte da realidade em vez da mera transcrição do que é real, não é impossível que o próprio cronista também se recrie e se tome como personagem, a�nal, no espaço que lhe é destinado no jornal, cabe o uso da liberdade. A experiência estética de atribuir novos signi�cados a acontecimentos banais só existe, por sinal, em virtude dessa liberdade. Portanto, a crônica não é inªexível, não obriga o autor a se revelar completamente, apenas torna sua �gura mais visível, o que não o impede de usar a máscara de si mesmo, isto é, de se ressigni�car tanto quanto é ressigni�cado o cenário ao alcance do seu olhar.

Em A descoberta do mundo, podemos falar em representação da intimidade, o que abre um universo muito mais amplo do que a simples exposição de tal intimidade. Se a intimidade fosse exposta

Livro_Clarice Lispector.indd 152 28/10/2015 15:08:42

Page 153: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

153

Vivian Resende Jatobá

claramente, a crônica nos bastaria para conhecer a autora. No entanto, sabemos que há muito a seu respeito nas suas personagens e nas suas �cções, embora de maneira mais implícita, do mesmo modo como reconhecemos que há ainda o seu mistério que nem na crônica nem na �cção foi desvendado.

Dessa maneira, na crônica tem-se a con�guração de um cenário em que Clarice, incomodada com uma possível restrição das possibilidades alegóricas em virtude de estar escrevendo para jornal, torna-se personagem e representa a si mesma. É isso que a permitirá reproduzir como contos alguns dos textos que inicialmente publicou como crônica. Não bastando ser nebulosa para si mesma e tratando--se como personagem, a autora torna nebulosa também a sua obra, de modo que até os limites entre �cção e realidade se tornem questionáveis tanto dentro quanto fora do universo da escrita, a�nal, mesmo quando não escrevia, Clarice vivia em um universo à parte, criado por ela mesma, sendo ela um personagem seu.

Já que a cronista Clarice é como uma personagem sua, essa fusão permite que o mesmo texto seja ora tratado como crônica, ora como conto. Assim, permanecemos em contato com uma máscara, ainda que seja a da própria autora. Costumamos associar suas crônicas a uma exposição de quem escreve, mas devemos estar cientes de que o caso de Clarice Lispector é singular, uma vez que nem mesmo o contato com a realidade a impede de recorrer a máscaras. Como a crônica, ainda que se situe no limite da realidade, não deixa de ter seu contato com a literatura, a autora gozará da liberdade de �ccionalizar a si mesma, como fez até a véspera de sua morte.

Livro_Clarice Lispector.indd 153 28/10/2015 15:08:42

Page 154: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

154

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Mergulhando no cenário da crônica, portanto, não há a necessidade de abandonar completamente a máscara. Esse gênero permite aberturas que, embora não sejam su�cientes para torná-lo um romance – nos quais também se dissolve disfarçada e alegoricamente a realidade da autora –, também não nos abandonam ao retrato simples e cru da realidade. É justamente ao fugir da representação �el de tal realidade que se cede espaço para a manifestação poética que a crônica nos permite encontrar. Ao fazer crônica, portanto, estamos buscando traços da realidade e enriquecendo-os com nosso olhar mais sensível, o que dá ao texto um potencial expressivo que não se vê em uma notícia, mas que, ao mesmo tempo, nos permite dialogar com o que ele deixa transparecer da realidade ou da biogra�a do próprio autor. Como diz Jorge de Sá,

O elemento biográ�co funciona como a linha costurando o tecido da vida, tecendo a renovação do imaginário, através do qual o homem se rea�rma como ponte para outras formas de conhecimento e convivência. (SÁ, 2005, p. 15).

Assim, a presença do autor e a sua exposição são o que conferem ao texto, no caso da crônica, uma sensibilidade. Isso acontece justamente porque é o olhar subjetivo sobre a realidade que permite que haja a ponte a que Sá se refere. Dessa forma, o leitor de Clarice Lispector encontrará, para além da exposição da própria autora, a exploração da relação de um eu com o mundo. Nas páginas de A descoberta do mundo se mostram não apenas os

Livro_Clarice Lispector.indd 154 28/10/2015 15:08:42

Page 155: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

155

Vivian Resende Jatobá

efeitos do dia a dia na vida privada, mas na reªexão subjetiva, em que o leitor poderá se encontrar. O eu que se sacri�ca falando de si é, na verdade, no caso de Clarice, um personagem (ou um autor que se deseja personagem), um eu representado cujo olhar extrai o potencial poético dos acontecimentos diários.

A intenção de Clarice Lispector de recorrer à máscara para preservar-se da exposição felizmente não a inibe a ponto de impedi--la de ver e expor o mundo de acordo com sua sensibilidade. A essa postura expressiva se deve o poder de sua crônica, cuja matéria está sempre a serviço do diálogo com o mundo.

Livro_Clarice Lispector.indd 155 28/10/2015 15:08:42

Page 156: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 156 28/10/2015 15:08:42

Page 157: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

157

V. O diálogo

Veri�ca-se nos textos de A descoberta do mundo a presença de uma autora que se conscientiza da presença do leitor diante de si.

Uma vez que a crônica parte do cotidiano e, inicialmente, é publicada em um veículo tão visitado como o jornal, é inevitável que seu autor esteja a par da repercussão que suas palavras irão alcançar. Esse gênero traz em si a aproximação de autor e leitor, que em comum têm a realidade na qual se inserem. A partir dessa con�guração, é inevitável que tal aproximação pressuponha diálogo entre as duas partes. Jorge de Sá diria que “o cronista consegue conquistar a nossa cumplicidade” (SÁ, 2005, p. 27) e Humberto Werneck, como já se

Livro_Clarice Lispector.indd 157 28/10/2015 15:08:42

Page 158: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

158

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

citou, assinala seu tom de informalidade e conversa, em que autor e leitor estão sentados à mesma altura.

Citado por Jorge Sá, Vinícius de Moraes também já havia sinalizado que a crônica é “conversa �ada”, o que Sá complementa ressaltando que ela “recebe um tratamento literário, mesmo que não seja considerado �ccional” (p. 28). Assim, mesmo que a crônica de Clarice Lispector tenha as peculiaridades que buscamos relatar, seria impossível fugir da “generosa acolhida dos leitores” (p. 29). Não há máscara que iniba a proximidade que se estabelece entre emissor e receptor quando o conteúdo da conversa reªete a sensibilidade extraída de nossas reªexões diárias.

Mesmo o ambiente �ccional pressupõe o envolvimento do leitor, a�nal é nele que se presenti�cam os sentimentos sugeridos pelas palavras contidas no corpus. Embora já tenhamos dito que na �cção o autor se ausente em primeiro plano, Agamben lembra que

Por de�nição, um sentimento e um pensamento exigem um sujeito que os pense e experimente. Para que se façam presentes, importa, pois, que alguém tome pela mão o livro, arrisque-se na leitura. Mas isso pode signi�car apenas que tal indivíduo ocupará no poema exatamente o lugar vazio que o autor ali deixou, que ele repetirá o mesmo gesto inexpressivo através do qual o autor tinha sido testemunha de sua ausência na obra. (AGAMBEN, 2007, p. 62).

Livro_Clarice Lispector.indd 158 28/10/2015 15:08:42

Page 159: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

159

Vivian Resende Jatobá

O leitor, portanto, à medida que ocupa o mesmo lugar deixado pelo autor, compartilha com ele algo em comum e se torna seu cúmplice, uma vez que é nele que qualquer sentimento despertado pela obra provocará ressonância. No caso da crônica, ele não ocupa o mesmo lugar do autor porque este não se ausenta, mas isso não impede a cumplicidade entre ambos. Mais do que a possibilidade de se colocar no lugar do outro, o leitor se sentirá à vontade também para dialogar com ele e, percebendo a poeticidade do texto que parte de situações tão comuns, certamente entrará em contato com o autor, como �zeram os leitores que acompanharam Clarice semanalmente no Jornal do Brasil.

O francês Antoine Compagnon ressalta que o leitor é o “modelo de homem livre”, como se especi�ca a seguir:

A subjetividade moderna desenvolveu-se com a ajuda da experiência literária, e o leitor é o modelo de homem livre. Atravessando o outro, ele atinge o universal: Na experiência do leitor, ‘a barreira do eu individual, na qual ele era um homem como os outros, ruiu.’ (Proust), ‘eu é um outro’, ou ‘sou agora impessoal’ (Mallarmé). (COMPAGNON, 2012, p. 36).

Compagnon diz isso porque, ao resgatar as funções já atribuídas à literatura, sublinha que uma delas é a de aprendizagem, uma vez que “segundo o modelo humanista, há um conhecimento do mundo e dos homens propiciado pela experiência literária” (p. 35). Assim, o autor instrui e o leitor, ao entrar em contato com ele, é instruído. No

Livro_Clarice Lispector.indd 159 28/10/2015 15:08:42

Page 160: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

160

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

caso das crônicas clariceanas, não se trata de doutrinar o leitor, mas de fazê-lo entrar em contato com a sensibilidade que a autora percebe nas paisagens que a cercam. Essa experiência literária, portanto, fará com que o leitor atinja o universal por meio do contato com o relato da autora, uma vez que ele diz respeito à própria vida coletiva e não apenas à intimidade de quem escreve.

Em “Autocrítica no entanto benévola”, de 14 de junho de 1969, Clarice fala do encontro, que aqui tratamos como possível encontro de autor e leitor por meio da identi�cação entre ambos:

E tantas vezes não consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto dizemos: ‘Ah!’ Às vezes esse encontro consigo mesmo se consegue através do encontro de um ser com outro ser.

Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente que quero o máximo – e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve, haver um modo de chegar a isso. (LISPECTOR, 1999, p. 201, grifos meus).

A autora, mais do que buscar ser outra, como fez na �cção (e algumas vezes na realidade, como o episódio da véspera de sua morte mencionado no capítulo anterior), busca ainda o contato com o outro. Não o contato super�cial, mas um contato que revele o

Livro_Clarice Lispector.indd 160 28/10/2015 15:08:42

Page 161: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

161

Vivian Resende Jatobá

indivíduo a si mesmo por meio do encontro com outro ser. Isto é, a cumplicidade com o leitor é uma �nalidade do seu trabalho, em que, declaradamente, deseja o máximo. A experiência literária adquirida pelo leitor, portanto, pretende-se produtiva. Do mesmo modo como uma música pode arrebatar, a sua literatura parece ter essa função, seja na crônica ou na �cção. No caso da primeira, o arrebatamento é gerado a partir do uso das mais simples situações cotidianas, que, ressigni�cadas, atingem autor e leitor.

Dewey tem considerações importantes a respeito da receptividade. Para ele, esta

não é passividade. Também ela é um processo composto por uma série de atos reativos que se acumulam em direção à realização objetiva. Caso contrário, não haveria percepção, mas reconhecimento. (DEWEY, 2010, p. 134).

Ele acentua, portanto, a questão da percepção, que “substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva” (p. 135). Dessa maneira, para Dewey, o fato de um indivíduo apropriar-se de uma obra, signi�ca que suas emoções são acionadas, e há comoção, de modo que ele se agita. Não se trata de reconhecimento, uma vez que este se limita à visão que identi�ca algo sem se interessar por se aprofundar na sua percepção.

O reconhecimento é super�cial, enquanto a percepção se aprofunda, permitindo que o sujeito se envolva emotivamente, construindo sua visão a partir daquilo que lhe é oferecido. Podemos

Livro_Clarice Lispector.indd 161 28/10/2015 15:08:42

Page 162: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

162

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

dizer que Clarice, ao entrar em contato com o leitor e levar ao seu conhecimento algumas experiências vividas ou testemunhadas por ela, não deseja o seu mero reconhecimento, mas a sua participação, a sua mobilização. O seu propósito é fazer com que o leitor também tenha impressões, também perceba a essência das coisas, e não apenas os seus contornos mais óbvios.

Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua ‘apreciação’ é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína. (p. 137).

O leitor que se envolve com Clarice abre mão do direito à preguiça. Comunicar-se com a autora exige a disposição de acompanhá-la, de aderir à sua sensibilidade e de se permitir pensar. A leitura implica não apenas o reconhecimento, mas a percepção, desde, é claro, que o leitor tenha sensibilidade para tal, pois o preço da cumplicidade que se estabelece é ter de se mobilizar emotivamente, uma vez que “não existe na percepção um ver ou ouvir acrescido da emoção. O objeto ou cena percebido é inteiramente perpassado pela emoção” (DEWEY, 2010, p. 135, grifo do autor).

Quando falamos acerca da percepção, nossas considerações são válidas tanto para os textos de �cção quanto de não-�cção, tendo em vista que Clarice Lispector, independentemente disso, não abre mão da sensibilidade e deseja despertar no leitor mais do que o

Livro_Clarice Lispector.indd 162 28/10/2015 15:08:42

Page 163: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

163

Vivian Resende Jatobá

reconhecimento. A respeito das diferenças entre escrever para jornal e escrever livro, em uma de suas crônicas, ela revela que a distinção está principalmente no contato que se tem com o leitor:

Num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compromisso nenhum. (LISPECTOR, 1999, p. 421).

Isto é, Clarice sente a proximidade do leitor quando escreve um texto que tem o jornal como destino. Essa realidade nos interessa, pois favorece a interlocução entre autor e leitor, de modo que não se possa negar a existência de uma comunicação estabelecida por meio da crônica.

Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que �zera uma constatação curiosa: certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados. Há um texto meu sobre o estado de graça que, pelo próprio assunto, não seria tão comunicável e no entanto soube, para meu espanto, que foi parar até dentro de missal. Que coisa!

Livro_Clarice Lispector.indd 163 28/10/2015 15:08:42

Page 164: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

164

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Respondi ao jornalista que a compreensão do leitor depende muito da sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de ideias preconcebidas. E o leitor de jornal, habituado a ler sem di�culdade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque “ jornal é para ser entendido”. Não há dúvida, porém, de que eu valorizo muito mais o que escrevi em livros do que o que escrevo para jornais – isso sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo. (p. 421).

Clarice Lispector estava ciente não apenas da presença do leitor, como também de sua predisposição para entendê-la. Em um texto que já comentamos, ela diz que “os cronistas do Rio de Janeiro são muito amados” (p. 95) e essa popularidade a torna cada vez mais consciente do vínculo estabelecido entre emissor e receptor. Certamente, a brevidade do texto publicado em jornal contribui para atrair o público, e, além disso, nesse veículo conta-se com um leitor que está, como disse a autora, isento de ideias preconcebidas. Ainda que considere “difícil” um texto da autoria de Clarice, quando o vê no jornal, o leitor sente que sua tarefa foi facilitada. Diante disso, é mais provável que o encontro dele com ela seja frutífero.

No jornal, a autora encontra-se mais acessível. Sem escapar para a �cção, que lhe permite o uso desmedido de alegorias, ela estará mais facilmente ao alcance do leitor, que terá disposição para ler os textos da cronista e dialogar com ela por meio de assuntos

Livro_Clarice Lispector.indd 164 28/10/2015 15:08:42

Page 165: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

165

Vivian Resende Jatobá

que tornam emissor e receptor mais próximos. No jornal, Clarice carrega o compromisso da comunicabilidade. Fala não apenas consigo mesma, mas também com o outro, e por isso precisa estar disponível. Ela tem, então, que fazer com que o leitor a acompanhe, de modo que suas divagações sejam compreensíveis não apenas para si. Clarice sente pesada a responsabilidade de ter que se fazer entender, no entanto, aos poucos se encanta com as possibilidades oferecidas pela interlocução, a�nal, a partir do momento em que ela se permite entender, o leitor se sentirá motivado para procurá-la a �m de compartilhar descobertas ou ideias a�ns. A descoberta do mundo é, a�nal, não apenas uma descoberta de um mundo interior de quem escreve, mas de uma possibilidade de contato e troca com o outro. É por isso que o leitor é tão descobridor quanto o cronista.

O autor da crônica convive com a recepção rápida do leitor e também se torna leitor à medida que recebe cartas daquele que semanalmente se encontra diante de seus textos. A crônica condensa assuntos que dizem respeito não apenas a um universo particular, mas que desperta interesse também do outro e que o levam a dialogar com aquele que lhe despertou uma reªexão. Como disse Sá,

O escritor não perde de vista que a sua situação particular só conta para o leitor na medida em que funciona como metáfora de situações universais, o que permite que façamos da leitura uma forma de catarse e simpatia.

Livro_Clarice Lispector.indd 165 28/10/2015 15:08:43

Page 166: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

166

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Nesse processo de puri�cação em que se juntam o autor e a sua contrapartida, que é o leitor, os sentimentos perdem o caráter de expressão da alma solitária e ganham a dimensão de lirismo reªexivo e participante da imensa vida coletiva. Recompor a própria história individual é um jeito de o cronista nos ensinar a compor a nossa história na condição de pessoas ligadas a tantas e tantas heranças culturais. (SÁ, 2005, p. 14).

Dessa maneira, os assuntos que dizem respeito à rotina da Clarice cronista e que citam personagens da sua vida não estão à disposição do leitor para que esteja ao seu alcance o conhecimento da vida alheia, mas porque primeiro despertam a sensibilidade da própria autora e em seguida ressoam no público que a recebe.

O que acontece, portanto, é a recomposição da história do cronista, que se torna personagem e leva a narrativa ao conhecimento do público. É disso que se extrai o lirismo reªexivo, o qual consiste em utilizar a voz do autor para extrair signi�cados simbólicos da realidade, os quais, por sua vez, se impregnam de poéticas que chegam ao leitor e com ele estabelecem comunicação. Assim, cabe a Clarice dizer que “o contato com outro ser através da palavra escrita é uma glória” (LISPECTOR, 1999, p. 95). Se, para a autora, “escrever é um divinizador do ser humano” (p. 95), estar à disposição do público e fazer com que sua palavra tenha ressonância no leitor certamente potencializa esse divinizador: o leitor embarca na crônica e na sensibilidade de Clarice, que, por sua

Livro_Clarice Lispector.indd 166 28/10/2015 15:08:43

Page 167: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

167

Vivian Resende Jatobá

vez, encanta-se com a possibilidade de receber o contato de quem a lê. A comunicação acontece em via de mão dupla, de modo que autor e leitor se confundem e trocam de papéis ao trocarem ideias e, além do contato, �ca estabelecido também certo vínculo afetivo: “Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita” (p. 95).

A sequência de textos que se publicaram semanalmente no Jornal do Brasil suscita também uma sequência de cartas que são recebidas e comentadas pela autora em forma de novas crônicas. A descoberta do mundo também contempla essas e fornece um material interessante para veri�car justamente o enriquecimento gerado pelo contato entre autor e leitor. Clarice comenta na crônica “Sentir-se útil” o bem que lhe fazem as palavras de uma leitora:

Exatamente quando eu atravessava uma fase de involuntária meditação sobre a inutilidade de minha pessoa, recebi uma carta assinada, mas só darei as iniciais: ‘Cada vez que me encontro com a beleza de suas contribuições literárias, vejo ainda mais fortalecida minha intensa capacidade de amar, de me dar aos outros, de existir para meu marido.’ Assinada H.M.

[...] Mas, H.M., como você me fez sentir útil ao dizer-me que sua capacidade intensa de amar ainda se fortaleceu mais. Então eu dei isso a você? Muito obrigada. Obrigada também pela adolescente que

Livro_Clarice Lispector.indd 167 28/10/2015 15:08:43

Page 168: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

168

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

já fui e que desejava ser útil às pessoas, ao Brasil, à humanidade, e nem se encabulava de usar para si mesma palavras tão imponentes. (p. 78).

Do mesmo modo que as palavras de Clarice são uma contribuição para a leitora, as palavras da leitora HM têm utilidade para Clarice. O que há, portanto, é um contato que enriquece as experiências tanto de autor quanto de leitor e se até o momento falamos em uma exposição da autora, podemos também sinalizar uma exposição do leitor que se diz sensibilizado pelas contribuições literárias de quem escreve. Como disse Freud (1969, p. 156), “uma con�dência merece outra e todo aquele que exige intimidade de outra pessoa deve estar preparado para retribuí-la”. Assim, o contato entre autor e leitor se dá em via de mão dupla, de modo que, além de o autor falar a seu respeito ou acerca de suas impressões sobre ocorrências cotidianas, o leitor também se permite a exposição para falar ao autor suas impressões mais profundas, havendo certa reciprocidade nos textos de um para outro.

Publicada no mesmo dia de “Sentir-se útil”, a crônica “Outra carta” permite aprofundar a reªexão não só apenas no que diz respeito à relação entre autor e leitor mas também quanto à exposição íntima do autor. O leitor, identi�cado como L. de A., “termina sua carta dizendo: ‘Não deixe sua coluna sob o pretexto de que pretende defender a sua intimidade. Quem a substituiria?’” (LISPECTOR, 1999, p. 78). A resposta de Clarice interessa não apenas a L. de A., mas a nós, que nos ocupamos da intimidade como objeto de pesquisa:

Livro_Clarice Lispector.indd 168 28/10/2015 15:08:43

Page 169: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

169

Vivian Resende Jatobá

Por enquanto, L. de A., não estou largando a coluna: mas aprendendo um jeito de defender minha intimidade. Quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas, mas nos romances. Estes não são autobiográ�cos nem de longe, mas depois �co sabendo por quem os lê que eu me delatei.

[...] Mas quem sabe se um dia, L. de A., saberei escrever ou um romance ou um conto no qual a intimidade mais recôndita de uma pessoa seja revelada sem que isso a deixe exposta, nua e sem pudor. Se bem que não haja perigo: a intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus. (p.78).

O leitor atento L. de A. e sua curiosidade se aproximam de Clarice e desejam continuar ouvindo a voz que aparece nas crônicas da autora. Suas provocações despertam a resposta de Clarice tanto quanto os textos e a exposição de Clarice lhe despertam o interesse de escrever a ela. A seguir, Clarice encerra a crônica e a resposta com o que pode nos interessar muito:

O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor. (LISPECTOR, 1999, p. 79).

Livro_Clarice Lispector.indd 169 28/10/2015 15:08:43

Page 170: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

170

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Não apenas os papéis de leitor e autor se confundem como salta aos nossos olhos que o leitor é um personagem, o que pode pressupor que exista também um personagem autor. A conversa �ada da crônica, portanto, é a interação de dois personagens que convivem com dramas comuns a uma realidade compartilhada por ambos.

Um dos personagens cuja experiência merece ser relatada é o jornalista José Castello, que ainda em 1974 se arriscou escrevendo alguns textos de �cção, os quais endereçou a Clarice Lispector, de quem era leitor. Para sua surpresa, ela entrou em contato dizendo: “Você é muito ‘medrrroso’. E com medo ninguém consegue escrever” (CASTELLO, 1999, p. 19). A conversa por telefone deixou a Castello algumas heranças:

O telefonema é rápido, mas deixa em mim sequelas íntimas que ainda hoje, mais de vinte anos depois, não digeri inteiramente. Posso dizer, se for para me lamentar, que ele me paralisou. Posso dizer o contrário: que ele me serviu de acesso a algo que desconhecia. Até hoje não posso escrever – reportagens, cartas pessoais, diários de viagem, �cções, biogra�as – sem pensar em Clarice Lispector. É como se ela vigiasse às minhas costas, repetindo o aviso: ‘Com medo ninguém consegue escrever...’ (p. 20).

O “acesso a algo que desconhecia” de que José Castello fala é algo comum aos leitores de Clarice que se permitem deixar levar pela escritora e sua sensibilidade. Ela alertava Castello sobre o medo

Livro_Clarice Lispector.indd 170 28/10/2015 15:08:43

Page 171: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

171

Vivian Resende Jatobá

porque sabia que o pudor engessa o escritor e é a falta de pudor que permite que se estabeleça um diálogo frutífero com o leitor.

Anos depois, em 1976, na redação de O Globo, o jornalista recebe a missão de entrevistar Clarice. Ele teme, uma vez que o que justi�cava a tarefa era justamente o fato de que a escritora estava decidida a não receber mais a imprensa. Então, no elevador do prédio dela, Castello se amedronta nos instantes que antecedem o encontro:

Clarice me levara por um caminho que eu não esperava encontrar, mas agora eu estava ali e a estrada me arrastava; era a estrada que andava e me conduzia, e eu apenas me deixava ir. Ela sabia toda a verdade. (p. 21).

Acontece com ele o efeito a que Clarice sujeita o seu leitor: ela parece arrastá-lo, conduzi-lo a um universo em que um episódio suscita reªexões inusitadas e profundas a ponto de se falar em epifania.

As palavras de Castello ao relatar seu momento diante da escritora são coincidentes com as impressões que deixamos claras até aqui: “Clarice parece habitar outra esfera, situada além do humano, e estar ali representada apenas por uma máscara” (CASTELLO, 1999, p. 22). Mesmo sem escrever, sua presença parece, por si só, impor a presença de um personagem, situado em um universo particular. Clarice é um personagem sem precisar escrever, usa máscara mesmo de cara limpa e conversar com ela implica a necessidade de assumir a postura de leitor disposto a ingressar em outro universo.

Livro_Clarice Lispector.indd 171 28/10/2015 15:08:43

Page 172: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

172

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Não é difícil aderir ao uso de uma máscara ou comungar de uma poética quando se está imerso na interação entre autor e leitor, ainda mais se nos referimos a Clarice Lispector como ponto de partida. A autora torna sua vida pública por meio da poetização e ressigni�cação do que povoa o seu cotidiano. Isso só interessa ao leitor porque ele “também recria, também atribui signi�cações às frases que compõem as imagens poéticas” (SÁ, 2005, p. 48). Dessa maneira, não é apenas a exposição de um autor que mobiliza o leitor, mas o fato de ele, o leitor, se encontrar nas situações ilustradas por um autor-personagem e de, a partir delas, incluir suas experiências e utilizar o texto para ressigni�cá-las poeticamente, a partir de um olhar despertado pelo cronista. Jorge de Sá faz importantes considerações a esse respeito, tratando da função do jornal e da crônica. Acerca do primeiro, ele diz:

Um dos objetivos dos meios de comunicação é manter a nossa sensibilidade despertada, a �m de que possamos participar ativamente dessa imensa aldeia global. Já se disse mesmo que o mundo de hoje não comporta as dores individuais, pois a solidariedade e a esperança de épocas melhores exigem que partilhemos todas as dores. (p. 55).

Assim, o jornal socializa e põe ao alcance de todos as narrativas da realidade, colocando o público em contato com o que está mais distante e com o que está mais perto dele. “Acontece, porém, que a preocupação básica do jornal é com a notícia, com o fato em si,

Livro_Clarice Lispector.indd 172 28/10/2015 15:08:43

Page 173: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

173

Vivian Resende Jatobá

deixando em segundo plano as pessoas que participaram da cena” (p. 56) e, diante disso, vem a crônica cumprir o seu papel: aproximar não apenas as pessoas dos fatos, mas as pessoas entre si, de modo que elas compartilhem sensações a partir de uma escrita que admitirá mais liberdade.

Cumpre ensinar o leitor a ver mais longe, muito além do factual. Isto só é possível quando o fato, os personagens e a preocupação estética revelada na estruturação do texto se associam para que o resultado �nal alcance empatia com o leitor. Uma empatia que signi�ca a cumplicidade entre quem escreve e quem lê, mas também a elaboração de uma linguagem que traduza, para o leitor, as muitas linguagens cifradas do mundo. Portanto a função da crônica é aprofundar a notícia e deªagrar uma profunda visão das relações entre o fato e as pessoas, entre cada um de nós e o mundo em que vivemos e morremos, tornando a existência mais grati�cante. (SÁ, 2005, p. 55).

É por meio desse processo de expor poéticas inspiradas na vivência de um autor que o leitor se sentirá incluído, uma vez que o texto não se esgotará na experiência de quem escreveu, mas encontrará também a de quem lê o texto. O leitor torna-se, assim, tão personagem quanto o autor do texto, de modo que se estabeleça a cumplicidade que Sá comenta. A crônica é, a�nal, um texto cuja sensibilidade permite que se encontre no leitor um eco. Sem precisar

Livro_Clarice Lispector.indd 173 28/10/2015 15:08:43

Page 174: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

174

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

recorrer a fatos relativos à realidade do mundo econômico, social ou político, a crônica poetizará os dramas que mais se aproximam de nós, aprofundando nossa própria percepção acerca do que vivemos. Ela o fará por meio do frequente exercício de imprimir lirismo aos eventos que lhe convém relatar.

O contato entre autor e leitor, dessa maneira, torna-se uma forma de convivência, na qual há afetividade e compreensibilidade, uma vez que a situação de comunicação na qual se encontram favorece a troca de experiências e o diálogo, de modo que um sempre está consciente da presença do outro – seja por meio das referências que Clarice faz ao público, seja por meio das cartas que seus leitores lhe enviam.

Retomando as considerações de José Castello, devemos nos lembrar do porquê de Clarice ter alertado o jovem escritor a respeito de seu medo. Ela assinala que ele não deve se amedrontar ou, como já dissemos em outra oportunidade, não deve ter pudor na alma. A�nal, seja fazendo �cção ou tratando da realidade mais próxima, a matéria-prima do escritor são os dramas humanos. Por isso, ele deve partir de seus sentimentos e publicar a sua sensibilidade, tarefa que exige coragem para que se atinja toda a profundidade necessária. O próprio José Castello con�rma isso:

Não posso separar a mulher de um lado – desequilibrada, hipersensível, agressiva – e a obra – de outro. Deve haver algum elo que mantém as duas coisas em estado de conexão. (CASTELLO, 1999, p. 25),

Livro_Clarice Lispector.indd 174 28/10/2015 15:08:43

Page 175: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

175

Vivian Resende Jatobá

A�nal, o escritor tende a reªetir um pouco de si naquilo que escreve, ainda que recorra ao uso de máscaras quando lhe é conveniente.

Se, de um lado, o escritor se reªete na crônica e, de outro, o leitor se torna seu cúmplice e se identi�ca por meio da atribuição de novos signi�cados ao texto, temos a interação de dois personagens aproximados pela sensibilidade, um matando a sede do outro. É por isso que Clarice, ao ser questionada por Castello do motivo que a leva a escrever, devolve a pergunta questionando-lhe a razão por que ele bebe água, e ambos se aproximam de alguma forma ao constatarem que a resposta coincide: escreve-se por necessidade assim como bebe-se água porque se tem sede. O escritor, a�nal, escreve para não morrer, do mesmo modo como o leitor precisa beber água pela mesma razão. A cumplicidade está no fato de que o escritor, de algum modo, mata a sede do leitor lhe fornecendo água, como se lhe desse uma dose vital de sensibilidade em matéria de texto.

José Castello vai além ao tratar não apenas de seus diálogos com Clarice e do quão intrigante ela tornava todos eles. Depois da morte dela, ele entra em contato com Claire Varin, canadense estudiosa da obra clariceana. É Claire quem lhe dirá que a obra de Clarice, para ser entendida, demanda o uso do “método telepático”: “Só é possível ler Clarice Lispector tomando seu lugar – sendo Clarice” (CASTELLO, 1999, p. 29). Segundo o próprio Castello, os livros de Varin sobre a obra de Clarice “não são obra de especialista, mas de uma apaixonada” (p. 29), isto é, Claire Varin foi uma entre tantos outros leitores que se identi�caram e que foram sensibilizados pelas palavras de Clarice. Para a especialista, “o leitor deve se tornar um médium, através do qual Clarice se incorpora.” (CASTELLO,

Livro_Clarice Lispector.indd 175 28/10/2015 15:08:43

Page 176: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

176

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

1999, p. 29), o que sinaliza que a cumplicidade entre autor e leitor seria tamanha que ambos poderiam se confundir na mesma pessoa. Dessa maneira, é a intuição e não o entendimento que guiam o leitor de Clarice. Essa liberdade é que permite a aproximação daquele que lê com quem escreve, pois o leitor guiado intuitivamente se sentirá mais à vontade para buscar a autora e dirigir a ela algumas palavras.

Aqui não se pretende defender ou fazer acusações à validade do método telepático. Ele apenas é mencionado para que nos ajude a ressaltar o potencial de aproximação que Clarice adquire com o leitor tendo como ponte o próprio texto. Isso não é exclusividade da crônica, mas nela o leitor está explicitamente incluído e também por meio dela é que se respondem aos questionamentos do leitor mais interessado.

José Castello faz também referência a uma carta de Otto Lara Resende endereçada a Clarice, partindo dela para falar das sensações que as palavras de Clarice provocam no leitor, sejam elas boas ou desconcertantes:

‘É engraçado como você me atinge e me enriquece ao mesmo tempo que me faz um certo mal, me faz sentir menos sólido e seguro.’ Otto descreve, com precisão, o estado ambíguo em que os leitores de Clarice são lançados. Aqueles que não sintonizam, apalermados, fecham o livro. Só os que entram em harmonia com a escrita de Clarice, os que conseguem oscilar como ela entre a palavra e o susto, podem seguir adiante. (CASTELLO, 1999, p. 30).

Livro_Clarice Lispector.indd 176 28/10/2015 15:08:43

Page 177: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

177

Vivian Resende Jatobá

A comunicação com Clarice, portanto, pressupõe a necessidade de que o leitor também mergulhe no pensamento epifânico, sem medo de acompanhá-la. Caso contrário, ele sentirá certo estranhamento. À medida, porém, que comungar com a autora dos pensamentos que são oferecidos por ela, será mais fácil estabelecer um diálogo.

Cada obra reservará uma experiência distinta justamente em virtude do caráter plural da autora. Confrontando as constatações de Claire Varin com as de Hélène Cixous, francesa também dedicada ao estudo da obra clariceana, José Castello diz:

�co pensando quantas Clarices cabem numa só mulher. Porque cada um a lê de uma força particular, cada um é Clarice de uma maneira. Clarice, então, me obriga a encontrar a minha. (p. 31).

Isso nos leva a pensar que não existe uma leitura universal, única a respeito do que quer que seja. Com Clarice, não seria diferente. Cada leitor é atingido de uma maneira, pois o que se consegue com a estética do texto clariceano é fazer com que o leitor trans�ra para si considerações que a cronista faz em relação ao seu cotidiano particular. A�nal, o texto não despertaria interesse se se esgotasse em si mesmo ou se fosse limitado a con�ssões de uma autora conhecida. Ele adquire valor porque ultrapassa esses limites e ecoa em quem o recebe, e somos então levados ao que lembra José Castello: “Talvez Clarice estivesse certa: ler é, provavelmente, a maneira mais intensa de escrever” (p. 32).

Livro_Clarice Lispector.indd 177 28/10/2015 15:08:43

Page 178: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

178

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Se um texto não se esgota em si e se o leitor sente necessidade de recorrer a Clarice para interagir com ela e falar dos efeitos provocados pela sua crônica, estamos diante de uma experiência estética, isto é, “o sentimento de algo que excede as dimensões e os conceitos que usamos normalmente para enfrentar o mundo (o que chamamos de ‘sublime’)” (GUMBRECHT, 2006, p. 52). Assim, o leitor se apropria do texto de Clarice e extrai da experiência da autora algo sublime, de modo que haja a identi�cação e a cumplicidade entre os personagens autor e leitor. Embora partam de contextos diferentes, eles comungam no texto de algo que lhes pertence e assim a experiência da autora não é apenas sua, mas se universaliza à medida que é apropriada por vários leitores.

Tanto autor como leitor têm como função ressigni�car experiências. O primeiro ressigni�ca o que viveu, transformando em texto a sua experiência, usando ou não máscaras e alegorias que componham uma obra. O segundo, por sua vez, tem contato com o que foi trazido pelo autor e tende a fazer associações entre o texto e sua própria vida. Martin Seel, autor ao qual Gumbrecht faz referência, “diz que o conteúdo da experiência estética não é simplesmente um objeto, mas um objeto associado ao conceito que lhe atribuímos na nossa linguagem” (GUMBRECHT, 2006, p. 53). Assim, não apenas textos são capazes de nos despertar sensações que suscitam experiências estéticas, mas qualquer olhar sobre algo comum que permita associações mais profundas basta para que se possa falar em ressigni�cação, a fonte de uma experiência estética, cujos objetos seriam, como disse Gumbrecht, “as coisas suscetíveis de desencadear tais sentimentos, impressões e imagens” (p. 54).

Livro_Clarice Lispector.indd 178 28/10/2015 15:08:43

Page 179: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

179

Vivian Resende Jatobá

A relação entre autor e leitor e o diálogo que se estabelece entre eles, portanto, são fruto de uma experiência estética, derivada, por sua vez, do olhar poético que a autora lança sobre o cotidiano e sobre fatos de sua vida privada. É o compartilhamento de experiências e olhares que contribui para a cumplicidade característica desse gênero literário. Aqui cabe ressaltar que

Os conteúdos da experiência estética se nos apresentam como epifânicos, isto é, eles aparecem repentinamente (‘como um relâmpago’) e desaparecem de repente e irreversivelmente sem permitir-nos permanecer com eles ou de estender sua duração. (p. 55).

Portanto, da mesma maneira como Clarice lança seu olhar, repentinamente, para fatos breves de seu cotidiano, retirando deles uma profundidade que, a princípio, não era visível; o leitor, ao entrar em contato com o relato que lhe chega, também recorrerá ao pensamento epifânico para se apropriar daqueles pensamentos e associá-los à própria vivência. Essa é a origem do contato entre quem lê e quem escreve, pois o leitor só enviará alguma contribuição ao autor se tiver sido tocado por seu texto, isto é, se tiver reconhecido nele o potencial poético e a força de fazer com que a experiência do autor se converta, de alguma forma, a partir da ressigni�cação, na experiência e no enriquecimento do leitor. É por isso que a leitora H.M. se dirige a Clarice, como foi dito anteriormente. Encontrando “a beleza de suas contribuições literárias”, ela tem fortalecida a

Livro_Clarice Lispector.indd 179 28/10/2015 15:08:43

Page 180: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

180

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

própria “intensa capacidade de amar e de se dar aos outros”, como disse a leitora.

Talvez em virtude da contribuição de H.M., Clarice tenha chegado à conclusão de que duas de suas vocações eram escrever e amar os outros. A crônica “As três experiências” é de 11 de maio de 1968, mesmo ano da publicação de “Sentir-se útil”, em que se refere à carta da leitora H.M.

Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus �lhos. [...] As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca. (LISPECTOR, 1999, p. 101).

As três vocações parecem intimamente ligadas, mas nos interessa falar mais precisamente do amor aos outros e da escrita. Parece-nos que escrever, para Clarice, é um modo de doar-se ao leitor e de amá-lo, transferindo-lhe também a capacidade de amar, do mesmo modo como a leitora H.M. conta ter sido atingida. A poética de Clarice envolve, a�nal, não apenas a voz da autora, como também o eco do leitor. Ela diz que “escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada” (p. 134), e coloca sua palavra a serviço do leitor e da experiência dele, que ressigni�cará o que for dito no texto.

Livro_Clarice Lispector.indd 180 28/10/2015 15:08:43

Page 181: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

181

Vivian Resende Jatobá

Ao falarmos de “amar os outros” e de “escrever”, é inevitável aliarmos as duas vocações para, a partir disso, pensarmos na relação de afeto que um leitor passa a ter com o autor. A crônica, que permite proximidade entre quem escreve e quem lê, naturalmente abre brechas também para que, a partir do diálogo dos dois, haja generosidade e carinho de um para outro, de modo que tanto o autor seja acolhido pelo leitor quanto o contrário.

Sérgio de Sá, ao analisar romances de Rodrigo Lacerda, ressalta a generosidade como fator presente nas obras do escritor, que abre brechas para o diálogo com o leitor:

A literatura deixa de ser tão ensimesmada, e o autor generoso não menospreza a inteligência de quem lê. André Comte Sponville, em seu Pequeno tratado das grandes virtudes, lembra que a generosidade é o oposto do egoísmo. (SÁ, 2013, p. 142).

O autor, apoiando-se em Antonio Candido, ainda nos diz que “generosidade é mais comunicação e menos experimento, porque interessada em falar ao leitor” (p. 141). Em nossa análise, também cabe observar que, ao admitir a interlocução com o leitor e a participação dele, Clarice Lispector é generosa e oferece seu texto para iniciar a comunicação com outrem.

Interagir com o leitor é uma forma não de colocá-lo a par da vida pessoal do escritor, mas de perceber o poder da literatura de fazer dialogar a diversidade de pessoas e de experiências. Em “Os prazeres de uma vida normal”, são narrados acontecimentos

Livro_Clarice Lispector.indd 181 28/10/2015 15:08:43

Page 182: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

182

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

banais que revelam experiências ricas, sobre as quais é possível falar poeticamente.

Pois e eu que durmo tão mal, dormi de oito da noite até seis da manhã. Dez horas: senti um orgulho pueril. Acordei com o corpo todo aumentado nas suas células. Ah, isso é vida normal, então? Mas então é muito bom!

E eu que nunca �z luxo para comer, andei há um tempo fazendo dieta para perder uns quilos a mais. Aí experimentei uma vida anormal para comer. Andava exasperada como se outros estivessem comendo o que era meu. Então, de raiva e fome, de repente comi o que bem quis. E como é bom comer, dá até vergonha. [...]

Outro prazer que é normal é quando escrevo o que se chama de inspirada. O pequeno êxtase da palavra ªuir junto do pensamento e do sentimento: nessa hora como é bom ser uma pessoa!

E receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer dos outros existirem e de a gente se encontrar nos outros. Eu me encontro nos outros. Tudo o que dá certo é normal. O estranho é a luta que se é

Livro_Clarice Lispector.indd 182 28/10/2015 15:08:43

Page 183: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

183

Vivian Resende Jatobá

obrigado a travar para obter o que simplesmente seria o normal. (LISPECTOR, 1999, p. 137).

Em situações comuns, encontram-se e exaltam-se prazeres, con�rmando que a experiência estética não carece de acontecimentos excepcionais para se manifestar. Nesse trecho veri�ca-se, ao mesmo tempo, o uso do banal para a construção do poético e a concepção da comunicação como algo sublime. Clarice encontra razões muito simples para compor um texto com sensibilidade e o encerra falando do prazer que há na existência do outro e no encontro com ele. Por isso a �gura do leitor é também um personagem, com o qual a comunicação é indispensável para a manutenção e existência do personagem autor. Clarice tem necessidade de fazer do seu leitor um destinatário ativo e se enche de alegria quando recebe dele um retorno, algo que a motive a escrever continuamente, realizando uma de suas vocações.

O leitor de Clarice, portanto, materializa-se, isto é, ele adquire um corpo e deixa de ser apenas uma virtualidade, como diz Bruno Souza Leal (2006) no texto “A poesia que a gente vive, talvez”. Leal usa Zumthor como referência e diz:

Segundo Zumthor, o ‘poético, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, tem necessidade da presença ativa de um corpo’. Assim, da mesma forma, ‘a poeticidade depende do reconhecimento do sentimento que o nosso corpo tem’ e, ainda, ‘[...] um

Livro_Clarice Lispector.indd 183 28/10/2015 15:08:43

Page 184: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

184

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

discurso se torna realidade poética na e pela leitura que é praticada por um (tal) indivíduo’. (2006, p. 80).

Leal nos sinaliza que uma certa experiência adquire o status de poética quando mobiliza o leitor, ao sensibilizar sua percepção. Em virtude das respostas dirigidas a Clarice e comentadas por ela mesma, seus leitores nos permitem considerar sua escrita como poética, uma vez que eles se sensibilizam a ponto de dirigir-se à própria autora para manifestar-se, seja agradecendo ou fazendo acréscimos aos textos lidos.

Se o receptor, portanto, é quem confere a poeticidade a uma manifestação, mesmo as mais despretensiosas podem ser poéticas se bastarem para despertar a sensibilidade de alguém. Na crônica, isso é válido porque o leitor se envolve muito facilmente e pode ser conduzido pelo cronista a ver o lirismo dissolvido no dia a dia. Para Zumthor, autor no qual Bruno Leal se apoia, o receptor se mobiliza �sicamente para concretizar a poeticidade de um texto.

Um texto, em si mesmo, não é nada, a não ser ruído, amontoado, barulho; o termo, então, designa uma virtualidade, na dependência de um receptor que a concretize, uma estrutura de apelo que necessita ser atualizada por um tal indivíduo, numa situação comunicacional especí�ca. (p. 81).

À medida que um leitor se manifesta e se mostra envolvido, portanto, é que o texto adquire sentido e fala-se em “presenti�cação

Livro_Clarice Lispector.indd 184 28/10/2015 15:08:43

Page 185: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

185

Vivian Resende Jatobá

da virtualidade do texto” (p.81) no momento em que o receptor deixa a condição de paciente e se torna também agente da situação, seja ela uma cena, um texto ou um momento presenciado por ele mesmo. É nesse momento que um texto permitirá a comunicação, pois o receptor adquire também a função de ator e o objeto consumido é experimentado não apenas intelectual, mas também corporalmente, segundo Zumthor.

No caso de Clarice, a manifestação do leitor está no contato com o autor, possibilidade facilitada em um gênero como a crônica. Esse meio enriquece a possibilidade de interação e é por isso que estabelece a cumplicidade entre dois personagens. Clarice não faz um monólogo, pois conta com a atividade de quem a lê também. Ela mesma havia constatado que os cronistas eram muito amados, pois pôde con�rmá-lo por meio da presença do leitor que se mostrava interessado e, sobretudo, sensibilizado com suas “contribuições literárias”.

É interessante notar ainda o que acrescenta Leal:

A ‘vibração’ do texto é resultante de sua natureza profundamente dialógica. Um texto constituído diacrônica e sincronicamente em relação a outros textos, de naturezas e dispositivos distintos, ao mesmo tempo os nega e os reitera. Nessa perspectiva, todo e qualquer texto é ele mesmo a performance, a presenti�cação, de outros, via negatividade. (2006, p. 85, grifos meus).

Livro_Clarice Lispector.indd 185 28/10/2015 15:08:43

Page 186: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

186

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Assim, o leitor clariceano, também personagem e também ator, vibra em função do dialogismo proporcionado pela fala da autora. Uma vez que a crônica, por ser inicialmente publicada em jornal, situa-se em um limite que nos coloca em um universo real, ela dialoga ainda com os acontecimentos e com o cotidiano do mundo, de modo que o leitor se insira no contexto e entre em contato não apenas com a autora, mas também com a realidade apresentada por ela. O cenário, portanto, con�gura uma poética a partir do momento em que põe autor e leitor em contato e sensibiliza o segundo a partir das experiências narradas pelo primeiro. Um texto que não privilegia exclusivamente o papel do autor permite o ingresso do leitor e o aparecimento de sua voz, de modo que a sua ação legitime a poeticidade da obra.

A crônica “Você é um número”, de 7 de agosto de 1971, é um exemplo do despertar do leitor que se inclui no texto. A autora detalha o quanto os números nos de�nem por estarem presentes no nosso endereço e nos nossos registros, seja como motorista, como eleitor ou como cidadão que tem um registro civil.

Se você não tomar cuidado vira um número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classi�cam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Pro�ssionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identi�cado

Livro_Clarice Lispector.indd 186 28/10/2015 15:08:43

Page 187: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

187

Vivian Resende Jatobá

com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento – Tudo é número. (LISPECTOR, 1999, p. 365).

Assim, em permanente contato com o leitor por meio do uso do pronome de tratamento mais coloquial – “você” – e do possessivo “seu”, a interação se mantém de modo que a ideia é desenvolvida e evidencia-se a presença dos números na nossa vida. Duas semanas depois da publicação dessa crônica, entretanto, retorna-se a ela graças ao envolvimento e à manifestação de um leitor. Com o título “Perdão, explicação e mansidão”, Clarice repensa o que havia dito em “Você é um número” e refaz o discurso.

Estou escrevendo sobre um texto aqui publicado e chamado ‘Você é um número’. Do dia 7 de agosto, sábado. E escrevendo com a maior pressa para logo atingir quem por acaso tenha sido atingido do modo errado.

Senti – mas senti mesmo – no ar quanto desagradei com o tal texto. Eu própria me ofendia. E sabia que ofendia os outros. Não. Você não é um número. Nem eu.

Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que ªutua. E se Deus tem número – eu não

Livro_Clarice Lispector.indd 187 28/10/2015 15:08:43

Page 188: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

188

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável. Consideração também. A criatividade.

[...]

E agradeço a carta que recebi do dia 10 de agosto. Transcrevo-a literalmente:

‘Liberdade eu tomo de te escrever e se tu me permites respondendo à tua crônica ‘Você é um número’, publicada no Jornal do Brasil de 7 de agosto de 1971 – sábado. Lendo-a, aªorou em mim um sentido de defesa ao número e que eu espero que tu compreendas. Não tenho segundas intenções. Lê por favor o que eu te envio. (...) E por que te preocupa o número? Tu não vives em função do número do Félix Pacheco, embora ele te seja necessário. Tu vives em função da palavra e do pensamento. E tu não medes as palavras e tu não contas os pensamentos. Corre em tua veia o sangue que não se soma. E a Matemática não é o essencial. Tu não precisas aprendê-la porque tu sabes mais do que ela. Porque tu amas o Belo e o

Livro_Clarice Lispector.indd 188 28/10/2015 15:08:43

Page 189: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

189

Vivian Resende Jatobá

Belo não se divide. É íntegro apesar de existir em várias formas.’ (LISPECTOR, 1999, p. 370).

O leitor, portanto, tem presença e voz ativa a ponto de interferir no pensamento da autora, de modo que não apenas ele se engrandece com o que ela escreve, como também o contrário se torna possível: ela recebe a contribuição de quem a lê e transforma seu discurso a partir da colaboração de outrem. A poética, dessa maneira, existe porque é compartilhada e porque conta com a participação de um receptor que atua, bem como conta com a colaboração de um autor que, ao mesmo tempo que sensibiliza o leitor, é sensibilizado por ele. Assim, mais do que intimidade compartilhada, existem em A descoberta do mundo experiências pessoais convertidas em reªexões que se fazem coletivamente. A descoberta, dessa maneira, não é algo que se faz individualmente.

No texto “O autor como produtor”, Walter Benjamin fala a respeito da função que o autor tem de interferir na sociedade, posicionando-se nas relações de produção e na luta de classes. Não se deseja aqui falar a respeito de uma possível interferência de Clarice em assuntos de natureza política ou social, mas utilizar algumas das ideias de Benjamin que podem tornar produtiva nossa discussão acerca da inclusão do leitor e sua interação com o autor.

Benjamin diz que o escritor sai da condição de intelectual para a de produtor à medida que se posiciona politicamente. Isto é, ele adquire uma função de questionador ativo, que usa a literatura a serviço da crítica social. Não basta que o autor seja apenas um “mecenas ideológico” (BENJAMIN, 1994, p. 127) do proletariado,

Livro_Clarice Lispector.indd 189 28/10/2015 15:08:43

Page 190: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

190

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

pois de nada adiantaria ele ter opiniões se não as usasse a favor de algo ou, nas palavras de Benjamin,

a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor. (p. 125-126).

É daí que vem a importância de estreitar relações com o leitor, fazendo dele também um colaborador, um coautor. O escritor operativo, como de�ne Tretyakov, distingue-se do escritor informativo em virtude da sua participação ativa e de combate e o espaço do jornal, por exemplo, é de�nitivo para que se estabeleça diálogo com a �gura do leitor.

No caso da imprensa da Europa Oriental, que, ao contrário da Ocidental, não pertencia ao capital, o jornal se revela como espaço aberto ao leitor, que se apropriará das páginas disponíveis para se manifestar e defender os interesses de sua classe. Assim, de acordo com Benjamin,

Com a assimilação indiscriminada dos fatos, cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária

Livro_Clarice Lispector.indd 190 28/10/2015 15:08:43

Page 191: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

191

Vivian Resende Jatobá

na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva arti�cialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever e prescrever. Como especialista – se não numa área de saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções –, ele tem acesso à condição de autor. (p. 124, grifos meus).

O que nos interessa, portanto, é a elevação da �gura do leitor a uma função de colaborador. Embora Benjamin faça referência a esse fenômeno em um contexto completamente distinto do que estamos privilegiando, suas ideias são pertinentes porque consideram a presença do leitor não como receptor inativo, mas como possível colaborador e autor, como acontece na relação poética entre Clarice e seus leitores. De um lado, contemplado por Benjamin, temos o leitor elevado à categoria de autor movido pelo interesse de se manifestar politicamente, dando voz à sua classe; de outro, contemplado pela nossa pesquisa, o leitor é um coautor que se dirige à cronista porque se sente agradado com suas contribuições literárias e agradece o privilégio de ter acesso à sua intimidade e ao seu olhar poético no tratamento dos assuntos relativos ao dia a dia. No caso de Clarice, a autora em vez de (re)produzir ideologias ou manifestações políticas, produz

Livro_Clarice Lispector.indd 191 28/10/2015 15:08:43

Page 192: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

192

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

sensibilidade e a transfere ao leitor, que passa a ter conhecimento de fatos que dizem respeito à vida privada e à subjetividade da autora.

Livro_Clarice Lispector.indd 192 28/10/2015 15:08:43

Page 193: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

193

VI. A experiência estética

Até agora falamos de Clarice, a personagem que veste a máscara do próprio rosto, estabelece contato com quem a lê

e fala de si sem deixar de ser um enigma. Toda essa atividade da autora está atrelada permanentemente ao seu poder de extrapolar eventuais limites. Exercendo o papel de jornalista, Clarice não deixa de interagir com a literatura, terreno ao qual é habituada e que lhe oferece mais segurança. Por isso mesmo, suas crônicas não têm a obrigação de falar a respeito de um assunto contemplado em uma das reportagens do jornal, mas concentram assuntos à parte, pertencentes à rotina que não é vista, mas sentida.

O olhar de Clarice volta-se, portanto, para o que não pode ser visto apenas. A autora explora sua capacidade de sentir e expressar,

Livro_Clarice Lispector.indd 193 28/10/2015 15:08:43

Page 194: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

194

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

de falar de um universo o qual indagamos e do qual nada sabemos. Dessa maneira, ela trata de incertezas, não de fatos. É de onde extrai sua liberdade para, em vez de reproduzir, criar. O que é colocado ao seu alcance está sujeito a profundas interpretações. Em virtude disso, falamos a respeito da experiência estética, que cria imagens sublimes reveladas a partir de banalidades e que, por isso, está nos pormenores de um passeio, nas frestas de uma janela através das quais é possível, senão ver, pelo menos imaginar ou supor algo.

Usando sua singular capacidade de sentir, a autora não encontra limite algum. Incomoda-se, naturalmente, com a necessidade de ter que assinar com o próprio nome e tornar-se a personagem-autora, como já falamos. Entretanto, faz disso um pretexto para tirar o foco de si e transferi-lo para o que é observado. Clarice, por isso, convida--nos a pensar, como fez desde o primeiro dia em que publicou crônica no Jornal do Brasil: “Brincar de Pensar” é de 19 de agosto de 1967.

Segundo ela mesma, o pensamento leva a caminhos de emoção e, se não fosse por isso, poderia se considerar que “pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir” (LISPECTOR, 1999, p. 23). Diz ainda que o pensamento se pode compartilhar desde que haja um despretensioso convite: “o melhor modo é convidar apenas para uma visita e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras” (p. 23). Trata-se da síntese do que a autora faz na crônica: pôr-se a pensar acerca de determinado objeto e fazer com que o leitor embarque no pensamento rumo a descobertas comuns.

Assim, Clarice entra em detalhes a respeito do que se propõe a fazer por meio do pensamento compartilhado:

Livro_Clarice Lispector.indd 194 28/10/2015 15:08:43

Page 195: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

195

Vivian Resende Jatobá

Para pensar fundo – que é o grau máximo do hobby – é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a con�ança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. (LISPECTOR, 1999, p. 23).

Desse modo, a autora fala da solidão que a conduzia ao pensamento epifânico, que a levava a experimentar, a partir de divagações, algo que surpreendesse. Entretanto, ao colocar seu pensamento ao alcance do leitor, torna-o justamente o “outrem” com o qual não pode haver constrangimento, mas apenas con�ança. Portanto, estabelece-se a proximidade necessária na crônica para o acolhimento de quem lê. O leitor, por sua vez, ao ser acolhido, adquire a responsabilidade de observar o que a cronista relata e, a partir disso, experimentar as mesmas revelações, o que será possível se ele tiver um coração grande, pré-disposto a sentir com profundidade o que é contado pela autora.

A brincadeira de pensar tem um risco: “brinca-se e pode-se sair de coração pesado” (p. 24). Isso porque Clarice, ao conduzir o leitor para a brincadeira, leva-o para um universo onde mesmo o mais leve dos comentários contém uma reªexão mais profunda. A�nal, sua poética se faz a partir do que é banal e aparentemente

Livro_Clarice Lispector.indd 195 28/10/2015 15:08:43

Page 196: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

196

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

despretensioso, mas guarda a grandeza necessária para despertar a sensibilidade de outrem, com quem se brinca de pensar.

Clarice se põe a brincar de pensar. Não trata a brincadeira apenas como um ofício de cronista, pois a colocava em prática mesmo como �ccionista, quando levava a protagonista para um passeio e a conduzia a várias epifanias, reªexões profundas despertadas a partir de um chiclete ou de um passeio aparentemente sem propósito pelo Jardim Botânico. É o que acontece em “Amor”, conto de Laços de Família, e em tantas outras histórias que ganham corpo à medida que se aprofundam em situações comuns, nas quais a simplicidade não inibe a sensibilidade. A autora o faz

[...] enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe – nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma o�cina de consertos ou uma sala de costuras – nessas horas: pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde. (p.24).

Isto é, seu modo de vida era brincar de pensar, encontrando situações que despertassem brincadeiras sérias. Escrevendo em casa, perto dos �lhos, ela se colocava à disposição deles e presenciava suas ações, muitas das quais geravam crônicas. Mesmo que o sentimento gere um pensamento a princípio difícil de compreender, não se deve �car aªito. É o que Clarice ilustra quando escreveu “rol de

Livro_Clarice Lispector.indd 196 28/10/2015 15:08:43

Page 197: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

197

Vivian Resende Jatobá

sentimentos” ao dar nome ao rol de roupas, no tempo em que mandava lavar roupa fora.

O que eu queria dizer com isto tive que deixar para ver depois – outro sinal de se estar em caminho certo é o de não �car aªita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender. (LISPECTOR, 1999, p. 24).

Não entender é um modo de buscar o entendimento. A sensibilidade, na verdade, é que se responsabiliza pela compreensão de ideias que surgem espontaneamente de situações simples. É assim que Clarice começa uma lista de sentimentos cujo nome desconhece: “Estar ocupada – e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?” (p. 24). A autora, assim, brinca com palavras, com ideias e com o próprio pensamento, que não se contenta com o super�cial e só considera a brincadeira válida se atingir mais profundamente os signi�cados de nossas experiências a ponto de torná-las sublimes.

A desocupação desanuviadora que se sente é que mergulha a autora em suas experiências, que passam a ser vistas de modo diferente. Não lhe interessa descrever sua realidade, mas ressigni�cá-la, atribuindo sentimentos que só no fundo podem ser buscados para vir à tona. O que tratamos como a exposição da autora e de sua intimidade existe, mas não literalmente. Ela falará de seu desconforto diante da missão de escrever crônica, mas aproveitará os

Livro_Clarice Lispector.indd 197 28/10/2015 15:08:43

Page 198: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

198

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

textos para mergulhar em si e nas suas experiências. Não se trata de uma transcrição da sua rotina, mas de uma interpretação de eventos que fazem parte dela, meio que sugere mais delicadeza, mais atenção aos afetos e, como não poderia deixar de ser, mais subjetividade, uma vez que estamos em um terreno que conta com a participação e com o envolvimento do sujeito.

Então �camos de sobreaviso: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas frutífero” (p. 24). Isto é, ao fazermos reªexões de nossas vivências somos levados a considerar vários aspectos, que nos permitem interpretar nossas experiências sob uma ótica distinta da que percebemos na super�cialidade do dia a dia. O brinquedo começa a brincar conosco à medida que nos envolvemos com ele, e então a brincadeira se torna frutífera, pois nos põe em contato com algo de que sequer suspeitávamos. Nossas experiências convertidas em brincadeira, reªexão e crônica, portanto, são o retrato da situação a que a sensibilidade pode nos conduzir.

É por isso que Denilson Lopes dedica-se à percepção da delicadeza nas narrativas audiovisuais, por exemplo, e que aqui estendemos à literatura, mais especi�camente à crônica. Ele diz:

Cada imagem, som, narrativa, teoria, categoria me levaram a um novo encontro. O sublime no banal. A leveza no cotidiano. Eclipse do sujeito, do autor diante do mundo. Tudo se traduziu, por �m, em paisagens. (LOPES, 2007, p. 18).

Livro_Clarice Lispector.indd 198 28/10/2015 15:08:43

Page 199: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

199

Vivian Resende Jatobá

Assim, sua disposição para perceber a presença dos afetos e das sutis delicadezas em narrativas nos servirá de inspiração, a�nal Clarice esteve diante do mundo e de sua descoberta, que se traduziu na maneira como ela o interpretou, percebendo detalhes que o preenchem e que dizem muito, embora nem sempre estejamos atentos o bastante para escutar.

É a abordagem de Lopes que nos serve de guia para falar acerca do sublime. Para ele, “o sublime seria a experiência entre horror e prazer, experiência de fascínio diante de uma paisagem, uma pessoa ou uma obra de arte” (p. 39). Sua de�nição nos chama a atenção porque é com fascínio que Clarice Lispector escreve diante de situações comuns. Ela não precisa estar em uma ocasião extraordinária para encontrar algo que suscite sua sensibilidade e, por sua vez, a faça enxergar o que há de sublime na banalidade.

A Lopes interessa destacar a presença do sublime no comum, como também pretendemos abordar, tendo em vista que a crônica se apropria de objetos despretensiosos, “ao rés do chão”, como diria Antonio Candido, e é nela que percebemos o olhar de Clarice voltado para os pequenos eventos domésticos, para os pormenores da vida cotidiana, para as falas espontâneas dos personagens que atuam na sua vida. Nada disso torna a crônica menos fértil, uma vez que “sua própria força estaria não em uma transcendência, mas num mergulho mesmo no mundo das coisas, no aqui e no agora” (LYOTARD, 1998, p. 104 apud LOPES, 2007, p. 41), de modo que seu conteúdo, portanto, inspirado no que é comum, banal e cotidiano, é que permite que as coisas, mesmo triviais, sejam vistas profundamente.

Livro_Clarice Lispector.indd 199 28/10/2015 15:08:43

Page 200: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

200

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Tendo isso em vista, assim como nós apostamos na crônica de Clarice como fonte de reªexões e percepção do poético, Denilson Lopes diz:

Acredito e aposto numa linhagem do sublime em tom menor, no cotidiano, em personagens comuns, presente na poesia de Manuel Bandeira e nas crônicas de Rubem Braga como bem mapeou Davi Arrigucci (1990, 1987). A ‘poesia menor’ de Bandeira pode ser atualizada como uma ‘poética da despreocupação’, ‘uma dis-tensão precisamente da tensão que provoca a experiência-limite’ [...] Essa poética da despreocupação, longe de uma postura de isolamento do mundo como numa torre de mar�m esteticista, a�rma um distanciamento para uma melhor compreensão, uma opção pela experiência mínima, cotidiana, não-gloriosa de cada dia, um desejo de dissolução no universo, de desaparecer discretamente. (LOPES, 2007, p. 42).

Assim, convém associarmos nosso interesse ao de Denilson Lopes, que percebe o potencial de Manuel Bandeira e de Rubem Braga. Estes não partiam tampouco precisavam de algo grandioso para provocar grandes efeitos literários ou sensações estéticas. Não se trata, como disse Lopes, de uma “postura de isolamento do mundo”, mas sim de uma participação da vida cotidiana coletiva, a qual o cronista ou poeta tenta compreender apenas com sua sensibilidade,

Livro_Clarice Lispector.indd 200 28/10/2015 15:08:43

Page 201: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

201

Vivian Resende Jatobá

sem a pretensão de ilustrar de�nitivamente um cenário. Pressupõe- -se, assim, a necessidade de que o cronista se envolva com o que o cerca, de modo que se torne possível experimentar uma epifania a partir do ordinário. Não lhe basta observar friamente os objetos cotidianos. Ele deve ir além disso, permitindo-se envolver calorosamente com os eventos e experiências comuns para que eles revelem seu potencial poético.

Por um lado, a poética da despreocupação de Bandeira se difere um pouco do sacrifício que Clarice parece fazer por desacreditar que é capaz de fazer crônica; por outro, no entanto, ambos farão da espontaneidade das pequenas coisas o combustível para seus relatos, sendo adeptos da poética do cotidiano.

Lopes ressalta que “essa linhagem desdobra-se, também, num desejo de revalorização da narrativa como forma de se aproximar do público” (p. 42), aspecto sobre o qual já falamos, uma vez que o gênero literário que permite que autor e leitor entrem em contato tem como características o coloquialismo, a espontaneidade e o dialogismo. Assim, ao tratar sensivelmente de assuntos que pertencem também à vida do leitor, o autor pode torná-lo participante, uma vez que faz dele não apenas interlocutor, mas também protagonista do que é narrado. Tratar do banal é, por isso, um meio de valorizar experiências de todos nós e de todos os dias.

Trata-se da possibilidade de uma experiência de beleza que emerge de um cotidiano povoado de clichês, implica repensar o banal. Essa experiência se situa de forma tensa entre a dimensão transgressora

Livro_Clarice Lispector.indd 201 28/10/2015 15:08:43

Page 202: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

202

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

e transcendental do sublime associado ao grandioso e do belo, marcado pelo agradável, convencional. (LOPES, 2007, p. 42).

Falando da trans�guração do banal em sublime, podemos contemplar a crônica clariceana por meio das considerações de Denilson Lopes. O produto de Clarice reunido em A descoberta do mundo não traz clichês, mas uma visão subjetiva que se apropria dos objetos que o cotidiano traz à tona. Clarice não fala apenas do belo, mas coloca pequenas coisas ao alcance de sua percepção e sensibilidade, e mesmo suas experiências mais banais são convertidas em algo de que se pode tratar poeticamente.

Seria o sublime, portanto, um enobrecimento do banal, dar ênfase, foco ao que não tem? Sem dúvida, o sublime se situa no quadro em que a arte foi se tornando cada vez mais um conceito ampliado e complexo, em que a beleza se afastou de objetos especí�cos. [...] O sublime pode estar no grotesco desde Victor Hugo (GUERLAC, 1990) até no abjeto, como quando a protagonista de A paixão segundo. G.H., de Clarice Lispector, engole uma barata. (p. 44).

Tendo como base essas considerações de Lopes, nos ocorre que a crônica é essa forma de arte que toma proporções mais amplas, apropriando-se não apenas do que é belo, mas acrescentando à sua

Livro_Clarice Lispector.indd 202 28/10/2015 15:08:44

Page 203: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

203

Vivian Resende Jatobá

visão também o que não é ou que, a princípio, não poderia ser digno de representação artística. Lopes cita um dos romances de Clarice, em que a epifania se dá justamente no inusitado, em um episódio que, apesar de grotesco, revela-se importante para a protagonista e essencial para suas divagações. Não é diferente nas crônicas, cujo interesse não é exclusivamente o belo, tampouco o grotesco, mas a totalidade das coisas e das experiências que povoam a vida humana. Mais uma vez, Lopes nos ajuda a construir esse conceito lembrando que

Não se trata tanto de uma militância virulenta e sim de produzir sentidos precários, recolher cacos, vestígios, habitar ruínas. Não esperar a revelação, a epifania, a iluminação, nem idealizar o simples, o cotidiano, mas certamente desmisti�car o grandioso, o monumental. (p. 44).

A�nal, o leitor que se dirige à crônica não espera revelações, mas pode encontrá-las conforme a autora o conduz. Ela, por sua vez, não terá a intenção de fornecer uma visão ideal do que nos cerca diariamente, mas de apenas retratar uma singularidade insuspeitada na presença de tudo o que compõe a vida de todos os dias. A beleza da crônica está na sua falta de pretensão, no uso de pormenores, na apropriação do banal que surpreende. Não interessa que Clarice seja insegura na sua função, que sinta falta de sua máscara �ccional ou que se conserve um enigma, mas sim que permaneça a sua disposição

Livro_Clarice Lispector.indd 203 28/10/2015 15:08:44

Page 204: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

204

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

para captar a singularidade de eventos nada promissores, no entanto reveladores. É dessa maneira que se torna essencial

Falar do sublime não para ter saudade de algo que nós perdemos, de canonizar e monumentalizar a alta modernidade, mas nos referindo a algo que podemos encontrar quando menos esperamos, sobretudo quando não esperamos mais nada, não como ato restaurador, mas de transformação, de acolhimento do outro, de ser outro. (BLOOM, 2001, p. 22 apud LOPES, 2007, p. 45).

A brincadeira de pensar, assim, está associada ao encontro do sublime, de modo que não é necessário nada de grandioso para perceber uma revelação. Ela é frutífera justamente porque permite que se parta do que é menor e imprevisível. O acolhimento do outro de que Bloom fala, por sua vez, pode ser o olhar do autor voltado para o objeto onde ele percebe potencial poético, bem como o laço que ele estabelece com o leitor, unindo-se a ele por meio do objeto banal trans�gurado em sublime: “Nada de grandioso, transcendental, mas menor, banal, cotidiano, concreto, material. O sublime é uma alternativa ao discurso fatigado das transgressões tardo-modernas”. (p. 45).

Sabendo, portanto, que o sublime pressupõe a necessidade de uma sensibilidade que o desperte a partir do banal, podemos falar em leveza e delicadeza, tão necessárias a quem escreve e a quem lê, a �m de que seu encontro tanto entre si quanto com o objeto se

Livro_Clarice Lispector.indd 204 28/10/2015 15:08:44

Page 205: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

205

Vivian Resende Jatobá

torne frutífero. Brincar de pensar exige disposição. Não para partir de longe, para falar de grandezas, mas para superar os limites da objetividade e enxergar o que o banal reserva de surpreendente. É dessa maneira que falamos do sublime “não como fuga do mundo, escapismo, mas a�rmação da possibilidade do encontro, da presença” (LOPES, 2007, p. 45), pois autor e leitor se envolvem em uma comunicação íntima, na qual a presença dos dois é requerida para que se perceba o que um deseja revelar e o que o outro deseja alcançar.

A frequente referência a Denilson Lopes se torna inevitável, uma vez que o autor pensa e percebe a presença da afetividade e da leveza nas manifestações comunicacionais, o que nos chama a atenção. De acordo com ele, “o sublime é a base de uma educação dos sentidos a partir do precário, do fugaz, do contingente, de tudo o que evanesce rápido, mas que brilha inesperada e sutilmente” (LOPES, 2007, p. 46), com o que concordamos, uma vez que somos levados a perceber a ocorrência de experiências reveladoras a partir dos relatos de Clarice que exploramos aqui. Nem mesmo a aparente insegurança da autora inibe sua disposição para encontrar o potencial “de tudo o que evanesce rápido”, pois é sua sensibilidade que a guia para tirar de paisagens e ocorrências rápidas um retrato muito mais profundo do que a singela aparência permite enxergar.

Por esse motivo, Lopes nos encaminha para a consciência de que “pensar os frágeis limites entre o sublime e o banal implica recolocar a atualidade ou não de uma estética hoje em dia” (LOPES, 2007, p.45), uma vez que, seja no cinema, na literatura ou em outras manifestações que o campo da Comunicação traz à tona,

Livro_Clarice Lispector.indd 205 28/10/2015 15:08:44

Page 206: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

206

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

a delicadeza se evidencia como recurso. Em uma sociedade que estabelece laços afetivos por meio inclusive de redes no ambiente virtual, convém falar de suas angústias e de suas experiências, cada vez mais estéticas. As imagens produzidas, seja na literatura ou no cinema, podem ser interpretadas de um ponto de vista poético, que pense o que elas têm de sublime e perceba sua delicadeza.

Entretanto, uma vez sabendo que nem todo tipo de texto pode usufruir do recurso poético tampouco tratar o pensamento como brincadeira, Manuel Ángel Vázquez Medel aponta convergências e divergências entre os discursos jornalístico e literário, que ora parecem muito distintos, ora conseguem dialogar. O autor elucida que uma das distinções entre um campo e outro aponta para a função referencial, privilegiada pelo jornalismo, e a função poética, privilegiada pela literatura. A última, evidentemente, valoriza o viés estético de seu discurso, a�nal, ainda de acordo com o autor, à criação literária interessa abordar o essencial humano, e não o circunstancial e urgente, como interessa ao jornalismo. É por isso que Medel (2002, p.18) sublinha que “nossa época se caracteriza pelo sacrifício das coisas verdadeiramente importantes, em benefício das que reclamam nossa atenção com o engodo da urgência”.

O jornalismo, a�nal, preocupa-se com a urgência de cobrir fatos e levá-los ao conhecimento do leitor, enquanto a literatura oferece sua visão depois de contemplar um acontecimento, como diz Héctor Anaya, citado por Medel. A crônica, entretanto, como está no fértil terreno situado entre os polos jornalístico e literário, permite que sejam rompidas algumas de�nições e que novas possibilidades sejam colocadas em prática. É nesse sentido

Livro_Clarice Lispector.indd 206 28/10/2015 15:08:44

Page 207: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

207

Vivian Resende Jatobá

que a poética ganha espaço nos jornais, de modo que ao leitor não seja oferecida apenas a urgência de um fato recente, transmitido de maneira rápida, com a pretensão de um olhar objetivo e não participante do jornalista. A crônica realiza a liberdade de falar, mesmo no jornal, não apenas do que é urgente, mas também do que interessa ao humano: sua própria essência. O gênero se aproveita de sua transitoriedade para falar dos acontecimentos que rapidamente se esvaem em nosso dia a dia, de modo que lhe interessa captar a delicadeza presente em nossas experiências. Não só o essencial será poeticamente transmitido, mas também o circunstancial, uma vez que a crônica tem um vínculo com o tempo presente. Diante dessas condições é que Clarice consegue engrandecer o que parece banal.

Ao jornalista não cabe falar do banal, pois lhe interessa apenas o que pode ser relevante a �m de chamar a atenção de quem deseja ser informado. O direito de brincar lhe é negado. Para o cronista, entretanto, que se atrai pela possibilidade de poetizar o cotidiano, a banalidade representa um ponto de partida, no qual se enxerga o necessário para trans�gurar e ressigni�car suas próprias experiências. Assim, enquanto a narrativa jornalística se interessa pela informação, a crônica, mais precisamente, se atrai pela experiência. Dessa maneira, se Walter Benjamin dizia que a arte de narrar estava em extinção em virtude da elevação de importância dada à informação e à desvalorização da experiência, a crônica representa uma narrativa tal qual desejava o �lósofo alemão, uma vez que ela faz da experiência individual uma matéria-prima para o enriquecimento da narrativa. É nesse terreno que encontramos o

Livro_Clarice Lispector.indd 207 28/10/2015 15:08:44

Page 208: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

208

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

sublime e é também nele que Clarice Lispector se rea�rma como porta-voz de uma poética encantadora.

Já Alex Galeno, em “Palavras que tecem e livros que ensinam a dançar”, fala-nos do potencial de a escrita dar à imaginação a possibilidade de se manifestar. Ele reforça, assim, a possibilidade lúdica do discurso e se lembra de Rainer Maria Rilke, que “demonstra que a literatura germina a imaginação e faz com que os percursos se prolonguem pelos passos andarilhos e vagabundos da escrita” (GALENO, 2005, p. 100). Desse modo, somos levados a pensar que uma literatura livre está ligada à liberdade da imaginação, que �ca responsável por buscar outros caminhos ainda mais diversos do que os apontados pela leitura. Assim é tanto para o escritor, que parte de sua experiência para tecer histórias, como para o leitor, que atrela a narrativa a experiências suas. Essa realidade é permitida em virtude da função estética que há na literatura. Uma vez que o autor tem habilidade bastante para explorá-la, ele tornará suas experiências mais ricas, bem como as do leitor, de modo que ambos não se esgotem em suas vivências, mas as tornem experiências estéticas. Usar a imaginação nada mais é do que “brincar de pensar”, experiência que Clarice gosta de colocar em prática e que se revela frutífera.

Galeno cita Vilém Flusser, que questiona: “É paraíso, ou é inferno, estar cercado de coisas deliberadamente transformáveis em outras?” (FLUSSER, 1998, p. 123 apud GALENO, 2005, p. 101). Não nos cabe a�rmar se se trata de paraíso ou de inferno, mas �car atentos para as palavras do autor, que sublinham que as coisas são transformáveis, Assim, se o cronista é o �âneur que vê as coisas

Livro_Clarice Lispector.indd 208 28/10/2015 15:08:44

Page 209: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

209

Vivian Resende Jatobá

com o “olhar carinhoso” da protagonista de “Perdoando Deus”, ele não apenas as vê, como também enxerga nelas certa profundidade insuspeitada e transforma seu passeio em imagens que, colocadas ao alcance de leitores por meio das palavras, tornam-se ainda mais plurais do que já eram. É por isso que a crônica, texto que sai das mãos do �âneur, tem seu poder dialógico, colocando pessoas em contato a partir de um retrato espontâneo, nascido de coisas banais nas quais o sublime pode ser encontrado. É a liberdade do �âneur e das palavras que viabiliza essa prática.

Ainda apoiando-se nas ideias de Flusser, Galeno ressalta que

a própria etimologia grega biblos, cujo signi�cado é ‘casca interior’ ou ‘miolo do papiro’, é reveladora do caráter de esconderijos, mistérios, abismos e da sede insaciável de não se tornarem suportes canônicos ou meros arquivos nas bibliotecas. (GALENO, 2005, p. 101).

Da mesma maneira, textos �ccionais de Clarice continham seus mistérios e artifícios nos dramas das personagens e nas experiências vividas por elas. Não por acaso é comum falar em “ªuxo de consciência” quando o assunto é a produção literária da autora. A narrativa em si, portanto, leva a vários caminhos, os quais contêm diversos signi�cados. Não é diferente com a crônica, que conduz a reªexões, mesmo que seus objetos pareçam simples.

Livro_Clarice Lispector.indd 209 28/10/2015 15:08:44

Page 210: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

210

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Os livros são esculturas móveis que olhamos, tocamos e escutamos seus gritos barulhentos para que não encerremos o corpo e a vida numa comunicação linear. E devem ser escritos numa linguagem, na qual perturbem os sentidos dos homens e abram portas para a vida, lembra Antonin Artaud. A raiz da palavra livro, que vem de liber, palavra latina que signi�ca ‘livre’, indica esse caráter liberador. Suas narrativas gritam para que toquemos a textura da vida e para que cultivemos os jardins da realidade e da liberdade. (p. 101).

A intenção de Alex Galeno é nos despertar a consciência de que o universo contido em um livro é o ambiente que permite ao homem, seja ele autor ou leitor, ser livre, de modo que suas experiências se encontrem na leitura à medida que se associam aos fatos relatados na narrativa. Assim, um romance, um conto ou uma crônica são terrenos profundos nos quais o entrelaçamento das palavras ganha sentido à medida que são apropriados por um sujeito que se perturba e tem seus sentidos atingidos. Como diz Galeno,

O texto deverá ser percebido como algo tátil, exuberante e como uma rede comunicativa de múltiplos sentidos. Textos tecidos que, pela mobilidade conectiva de seus escritores se transformam em fantasias e vestimentas para os dançarinos leitores. (2005, p. 102).

Livro_Clarice Lispector.indd 210 28/10/2015 15:08:44

Page 211: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

211

Vivian Resende Jatobá

Isto é, nos interessa que o texto compreenda essa rede comunicativa de que o autor fala. A�nal, um relato, por mais breve que seja, trata do enunciado de alguém que procura interlocução. Uma vez que o leitor encontra o autor que generosamente oferece seu texto, portanto, ele passa a compartilhar essa rede de signi�cados que é o texto, no qual estão tecidas palavras e os caminhos oferecidos por elas. O próprio Alex Galeno ressalta que, segundo Georges Bataille, “literatura é comunicação” (BATAILLE, 1989, p. 10 apud GALENO, 2005, p. 102) e diz ainda que

A imaginação de cada um deverá agir como agulhas de costura ou máquinas num imenso tear literário. Neste tear, os costureiros não poderão prescindir da força interior e devem deixar que “chova na imaginação”, como nos lembra Dante em A Divina Comédia. Chover na imaginação para que surjam textos germinais para a cultura. Uma imaginação de forças oníricas (Bachelard) assemelhando-se a uma terra que necessita de água para o sustento de suas espécies. (GALENO, 2005, p. 103).

Quando falamos em experiência estética, portanto, estamos nos referindo à possibilidade de encontrar, em um tecido amplo como a literatura, experiências que não se esgotem em si mesmas. A�nal, o escritor oferece seu relato para que sua vivência passe adiante. Não lhe interessa transmitir um fato tal qual aconteceu, pois, mais do que testemunha, ele é um sujeito sobre o qual agiu uma impressão gerada.

Livro_Clarice Lispector.indd 211 28/10/2015 15:08:44

Page 212: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

212

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Motivado, portanto, pelo êxtase vivido em determinada situação, ele utiliza as palavras para colocar-se ao alcance de outrem, de modo que não apenas o autor dance com as palavras, mas também o leitor, quando se encanta com elas ao encontrá-las no ambiente lúdico da escrita literária, no qual as experiências se transformam à medida que dialogam com a imaginação.

As considerações de Alex Galeno incluem a prática do jornalismo, cuja tarefa não deixa de ser centrada também em uma narrativa. O problema dessa prática está no fato de que se têm feito relatos super�ciais, uma vez que não são mais transmitidas experiências, mas sim informações, de modo curto e breve, sem que o leitor possa mergulhar em uma rede de sentidos. A velocidade exigida pelos meios de comunicação, portanto, tem feito com que uma notícia seja transmitida friamente, de modo que o sujeito não dance com as palavras, como se poderia fazer. A cultura jornalística de hoje não admite a liberdade de se levar emoção ao texto e assim se fala em um “atro�amento dos sentidos e dos dilaceramentos contemporâneos de um sujeito incapaz de produzir revoltas e esperanças” (GALENO, 2005, p. 105). É por isso que

O escritor argentino [Ernesto Sábato] nos convoca a romper com essa velocidade e com a comunicação tagarela ou ventríloqua da existência para tocar na vida: ‘A serenidade, uma certa lentidão, é tão importante na vida do homem como o suceder das estações e das plantas, ou o nascimento das crianças’. (p. 106).

Livro_Clarice Lispector.indd 212 28/10/2015 15:08:44

Page 213: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

213

Vivian Resende Jatobá

Assim, jornalismo e literatura se têm distinguido pelo uso ou pela privação da liberdade. A crônica, vivendo nesse terreno entre os dois limites, continua sendo o gênero híbrido que funciona como o “oásis lúdico” de que havia falado Antonio Dimas. Ela, apesar de sua periodicidade, permite-se a liberdade do �âneur que contempla o cotidiano e reªete sobre suas experiências antes de passá-las adiante. O cronista não é o jornalista tagarela que soma a maior quantidade possível informações super�ciais para suprir a demanda do jornal, mas sim o sujeito que tem o privilégio de deglutir as paisagens, perceber os comportamentos e os gestos, além de olhar carinhosamente para o cenário que o cerca a �m de extrair de cada elemento a sua essência. Muitas vezes o jornalista, centrado na urgência de presenciar uma informação, ignora o que o cronista se permite contemplar. Não falta ao cronista a serenidade necessária para perceber as coisas e seus signi�cados. Nisso está a diferença entre os dois: a urgência do circunstancial deixa escapar a sutil relevância do essencial. No decorrer de sua vida, o jornalista acumulará a experiência de ter vivido a velocidade da apuração da notícia, enquanto o cronista guardará doces lembranças de uma conversa presenciada, de uma reªexão aproveitada e de uma situação inusitada.

Nas palavras de Alex Galeno (p. 107-108), “ser diário não signi�ca estar preso ao presente e à mera reprodução enfadonha dos dias”. Essa reprodução impensada, que torna os textos enfadonhos, é típica do jornalista que deseja lançar ao jornal informações breves e secas, que di�cilmente despertam o interesse do leitor a não ser pela sua função de levar ao conhecimento dele algum fato recente.

Livro_Clarice Lispector.indd 213 28/10/2015 15:08:44

Page 214: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

214

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Por sua vez, o cronista, com sua liberdade e sem a necessidade de cobrir fatos com urgência, não ousará transformar experiências em informações, mas sim buscar em cada fato menor uma fonte de experiência. Ele explora, portanto, por meio do uso da imaginação e das possibilidades que ela lhe permite, a função poética que está ao seu alcance. Partirá do cotidiano, mesmo cenário que o jornalista tem diante de si, mas não passará pelos mesmos ângulos, tampouco fará a passagem rápida de cenas e personagens. Ele usará o espaço doméstico, dará atenção especial aos diálogos mais sem importância, colocará seus personagens sob um ângulo que capte suas expressões e sua espontaneidade. Não estará preocupado com a quantidade de depoimentos coletados, mas com a profundidade deles e com a presença de gestos e de afetos que escapariam a um observador menos atento. Não fará cortes abruptos, mas delicadamente pode mudar de cena ou insistir nela, se for sua vontade.

A produtividade do �âneur não está na quantidade de situações presenciadas, mas na intensidade delas. Assim, mesmo a banalidade de algumas basta se houver sensibilidade su�ciente que as transforme em retratos simbólicos de nossa vida.

Pela capacidade de explorar a imaginação e de se lançar sobre eventos aparentemente irrisórios, o fazer poético do cronista deve ser mais valorizado, uma vez que na sua tarefa há a relevância de fornecer retratos mais cuidadosos do cotidiano. Antoine Compagnon diz que, para Aristóteles, o gênero lírico não era literário, pois

não era �ctício nem imitativo – uma vez que, nele, o poeta se expressava em primeira pessoa – vindo a ser,

Livro_Clarice Lispector.indd 214 28/10/2015 15:08:44

Page 215: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

215

Vivian Resende Jatobá

consequentemente, e por muito tempo, julgado um gênero menor. (COMPAGNON, 2012, p. 32).

O mesmo aconteceu com a crônica, que dialoga com realidade e é periódica. No entanto, sabemos de seu potencial literário e devemos rea�rmá-lo, já que nela se percebe um tratamento poético da vida, vista de perto mais profunda e sensivelmente mesmo que nela esteja contida a expressão do cronista em primeira pessoa.

Até certo momento, era conferido o valor literário apenas a obras �ctícias. Inicialmente, o fato de dialogar com a realidade anulava a literariedade de qualquer produto. Entretanto, felizmente passou-se a considerar também o valor estético de uma obra, fosse ela �cção ou não, o que abre brechas para que hoje possamos contemplar a crônica como gênero literário. Compagnon assinala que

A tradição literária é o sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre em movimento, recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradição como totalidade (e modi�ca, ao mesmo tempo, o sentido e o valor de cada obra pertencente à tradição). (COMPAGNON, 2012, p. 34).

O rearranjo da tradição existe e permite, portanto, que não permaneçamos conservadores, considerando literários apenas os produtos nos quais há �cção. Dessa maneira, não apenas a representação do real, isto é, a mimesis se torna ingrediente essencial

Livro_Clarice Lispector.indd 215 28/10/2015 15:08:44

Page 216: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

216

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

para que se possa falar em literatura. Assim, mesmo que um autor fale de si, podemos considerar o seu relato como literário se nele houver um uso da linguagem que não se reduza à objetividade jornalística ou à função referencial. A literatura contempla produtos nos quais haja subjetividade e expressividade su�cientes para encantar o leitor. Isso não falta à produção cronística de Clarice Lispector. Mesmo que a própria autora se valorizasse muito mais como �ccionista, seu papel na imprensa não é menos importante, pois é por meio dele que o contato com o leitor se torna mais fácil, como vimos no capítulo anterior.

O que se pretende sublinhar aqui é a presença da experiência estética nos relatos de Clarice. Ainda que haja uma resistência que considere a crônica como um “gênero menor”, seja em virtude de sua periodicidade, de sua aparente simplicidade ou da coincidência da �gura do autor com a de narrador e personagem, não se tira dela o seu potencial. De 1967 a 1973, Clarice enriqueceu o jornal com o retrato do que viu, ouviu e sentiu. Não deixou de fazer literatura em momento algum, a�nal, segundo Compagnon,

a literatura, ou a arte em geral, renova a sensibilidade linguística dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habituais e automáticas da sua percepção. (p. 40-41).

Tais “formas habituais e automáticas” da percepção não constam no que é ressigni�cado pelo cronista-poeta que vive uma experiência estética. Sua função é fornecer uma visão que fuja do automatismo, e

Livro_Clarice Lispector.indd 216 28/10/2015 15:08:44

Page 217: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

217

Vivian Resende Jatobá

assim contemple de outro ângulo mesmo as paisagens mais comuns. Inseridos em um dia a dia que pouco tempo disponibiliza para a reªexão, os indivíduos não se dão conta do que há na essência dos objetos pelos quais são rodeados. O sujeito que faz literatura, por sua vez, coloca em palavras as coisas sobre as quais lança um olhar preocupado não com a sua superfície, mas com a essência. Não interessa ao escritor, esteja ele fazendo crônica, conto ou romance, falar apenas descritivamente. Embora ele possa recorrer à descrição, seu trabalho não se esgota nela. A ele convém fugir do hábito de ignorar a rotina e seus objetos, pois são eles que fornecem um material do qual se depreende uma rede de signi�cados.

Em “Por não estarem distraídos”, texto de 12 de dezembro de 1970, Clarice nos conduz a um curioso pensamento por meio do qual podemos pensar a arte do cronista. Com uma “levíssima embriaguez”, as coisas acontecem natural e facilmente entre duas pessoas sobre as quais tudo o que sabemos são os gestos:

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta; eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas, as águas são uma beleza de escuras

Livro_Clarice Lispector.indd 217 28/10/2015 15:08:44

Page 218: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

218

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

– e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca �cando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! (LISPECTOR, 1999, p. 325).

É com distração que tudo acontece entre os seres cujos gestos são retratados no texto. Certa levíssima embriaguez é responsável pela espontaneidade de sua conversa e de sua risada, que por sua vez são cercadas de carros e pessoas. Trata-se, a�nal, de uma cena sem a ocorrência de qualquer situação excepcional. A embriaguez de que se fala, ainda que seja levíssima, opõe-se a uma sobriedade que não seria capaz de gerar os mesmos efeitos. É dessa maneira que age o cronista: não lhe é recomendada a sobriedade que leva à objetividade e à descrição seca, mas sim uma leve embriaguez que lhe desperte o olhar mais atento para os gestos que acontecem espontaneamente e nos quais se percebe certo simbolismo. Distraidamente, a atenção do cronista está voltada para qualquer objeto ou situação que se preencha de signi�cado. Sem essa distração, porém, torna-se impossível criar um retrato sublime como o que se viu.

Quando a atenção é sóbria e busca ver detalhes com a obrigação de se perceber algo, nada de espontâneo ou belo acontece:

Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava

Livro_Clarice Lispector.indd 218 28/10/2015 15:08:44

Page 219: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

219

Vivian Resende Jatobá

ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam mais bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que já eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone �nalmente toca, o deserto da espera já cortou os �os. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. (LISPECTOR, 1999, p. 325).

A rigidez, como se vê, não permite a ocorrência das coisas desejadas. A exigência inibe a manifestação que se pretende ver e, uma vez que não se está distraído, nada acontece. Não há espontaneidade, há apenas uma expectativa em torno do que não acontece. Essa sisudez não é característica do cronista. Ele só percebe as coisas porque não tem a pretensão de ver grandes cenas ou de presenciar o excepcional. Ele tem a sabedoria de não buscar o essencial com desespero, mas de vê-lo no que não parece promissor. Assim, sua atenção está distraidamente voltada para cenários simples, nos quais somos surpreendidos pela ocorrência de um gesto relevante, apesar de sutil. Essa serenidade do cronista se reªete na sua produção e no valor literário que ela adquire, a�nal retratará sem sisudez o que for colocado ao alcance do autor. Essa postura basta

Livro_Clarice Lispector.indd 219 28/10/2015 15:08:44

Page 220: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

220

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

para gerar encantamento naquele que lê, diferente do que acontece com a notícia. Esta é fria porque parte do olhar desesperado do jornalista que tenta surpreender fatos, cobrir situações sempre com sobriedade. Faltam-lhe a serenidade e o olhar carinhoso.

Experiências estéticas derivam de posturas adequadas. Não é preciso pressa, apesar do prazo de entrega do texto. A produção do cronista sairá naturalmente se ele não se afobar, a�nal é preciso estar distraído para surpreender cenas que germinem bons textos. Só uma levíssima embriaguez é capaz de fertilizar a inspiração de um bom cronista. Clarice soube fazê-lo porque, apesar de tudo, considerava--se amadora.

Também em “Escrever as entrelinhas” ela fala da necessidade de estar distraído para escrever e perceber as coisas:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. (p. 385, grifo da autora).

Pescar o que não é palavra já é ressigni�car verbalmente o que se deseja exprimir. Esse é o modo de escrever, de acordo com Clarice e, para ela, estar distraído é uma necessidade, pois talvez assim se consiga brincar de pensar mais naturalmente, e pescar também com

Livro_Clarice Lispector.indd 220 28/10/2015 15:08:44

Page 221: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

221

Vivian Resende Jatobá

menos di�culdade. Assim, com distração, a naturalidade dada à expressividade da autora é o que garante a ªuidez do texto. É daí que deriva o fato de ser a crônica um texto tão agradável e de Clarice encontrar-se tão acessível ao leitor por meio dela e do contato que ela favorece.

Apesar do desconcerto por acreditar que lhe fazia falta o uso da máscara permitido pela �cção, Clarice não se perde na crônica. Ela consegue, por outro lado e embora não acredite, entrar em harmonia com as palavras porque faz exatamente o que lhe cabe: ªanar, verbo que o dicionário Houaiss (2009) de�ne como “andar à toa, sem rumo; vagar”. O exercício do �âneur, então, escapa à sisudez e se aproxima da distração necessária para surpreender cenas que as palavras se encarregam de registrar.

Como a autora sempre esteve em contato consigo mesma, sensibilidade era algo que não lhe fazia falta. Ela tinha e usava a seu favor, independentemente de estar ou não em terreno �ccional, e tal ingrediente era o essencial e o bastante para compor retratos que falassem do dia a dia com certa singularidade. É o que acontece em vários textos, e em “As pontes de Londres”, que destacamos agora.

Todas as vezes que penso em Londres revejo suas pontes. Achei muito natural estar na Inglaterra, mas agora quando penso que lá estive meu coração se enche de gratidão. Vi em Londres uma terra estranha e viva, cinzenta – tudo o que é cinzento misteriosamente vibra para mim, como se fosse a

Livro_Clarice Lispector.indd 221 28/10/2015 15:08:44

Page 222: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

222

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

reunião de todas as cores amansadas. (LISPECTOR, 1999, p. 388).

Mesmo achando “muito natural” ter feito passagem pela Inglaterra, Clarice fará um relato destacando a paisagem, as características dos transeuntes e da atmosfera local. Nada meramente descritivo, claro, mas repleto de signi�cados. Atraída pelo cinzento, vendo nele cores amansadas, basta-lhe usar palavras para transformar um passeio pela cidade em uma experiência que não se esgota na descrição. Nem tudo em Londres é bonito aos olhos de Clarice, mas tem o seu valor, pois a autora ainda assim ressalta a existência de certa simpatia mesmo onde há feiura. Ao alcance de seus olhos, portanto, não está apenas a visibilidade do que é feio ou bonito, mas também a percepção do que vai além disso: “estive em contato com a feiura dos ingleses, que é uma das coisas que mais atrai na Inglaterra. É uma feiura tão peculiar, tão bela – e isso não são meras palavras” (p. 388). A visão de Clarice não é meramente descritiva como suas palavras não são meramente palavras. Carregam-se sentidos muito mais profundos do que se imagina, mesmo que se trate apenas de um relato sobre uma conhecida cidade. O detalhe é que, com a autoria de Clarice, não seria “apenas” um relato.

Nas ruas o povo usa roupas tão malfeitas que terminam se tornando um estilo belo. E agasalham mesmo. Vejo uma criança de capotão escuro e meias grosseiras e capuz enterrado abaixo das orelhas, com o rosto vívido e magro, olhos espertos e cara vermelha

Livro_Clarice Lispector.indd 222 28/10/2015 15:08:44

Page 223: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

223

Vivian Resende Jatobá

– e aquela entonação pura das vozes inglesas, interrogativas e orgulhosas. (LISPECTOR, 1999, p. 388-389).

Clarice ressigni�ca até as roupas, que de malfeitas se tornam belas. Não conta nenhuma experiência sua vivida na cidade, apenas o que viu – e isso basta para preencher o texto, pois, mesmo como espectadora, Clarice é de uma atenção singular que reveste tudo de novos signi�cados. Mais adiante, ela diz:

No teatro em Londres uma coisa essencial se passa. É de tremer de frio e de emoção: o ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra. Em poucas horas ele dá a cada um aquilo importante que se perde na vida diária. (p. 389).

Somos levados a crer que Clarice exerce a função do ator inglês, com a mesma responsabilidade de dar ao outro “aquilo de importante que se perde na vida diária”, pois seu olhar, que se volta para onde não costumamos dar atenção, serve de veículo para o leitor, con�gurando-se como meio pelo qual é possível notar mais do que o visível. É o seu olhar que, assim como a postura do ator inglês, encarrega-se de dar novos signi�cados e representar de novos modos mesmo as mais ín�mas situações.

A rainha é suave, os jornais têm um jeito provinciano, e quando os ingleses e inglesas são bonitos, passam

Livro_Clarice Lispector.indd 223 28/10/2015 15:08:44

Page 224: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

224

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

logo a ter uma extraordinária beleza. E a criança inglesa é sempre linda, e quando abre a boca para falar, aí é que �ca lindíssima.

Tudo isso se chama saudade: procuro recuperar Londres na memória, nessas notas. E assim �ca apenas anotado, com a maior rapidez, antes que o sentimento passe. (p. 389).

A cronista vê beleza e, se não vê, a descobre mesmo onde não há, pois brinca de pensar e como consequência encontra o insuspeitado. Tudo isso acontece em virtude do sentimento, que permanece vivo enquanto se escreve e precisa ser aproveitado porque pode ser breve. Não interessa se o texto fará a composição do jornal do dia seguinte ou se será eternizado como clássico: a autora não abre mão de preenchê-lo com sensações e com a sinceridade de levar adiante algo que se viu e que se percebeu.

Sobre a prevalência do que se sente em relação ao que se vê, a pesquisadora Alessandra M. Pires (2011, p. 218) diz que “Em A descoberta do mundo reinam os sentidos, ao contrário da matéria e das questões empíricas”. O privilégio que se dá à expressão dos sentidos, a�nal, é o que dá aos textos da antologia a possibilidade de se renovarem adquirindo novos sentidos, uma vez que eles surgem da habilidade que a escritora tem de atribuir novos signi�cados a ocorrências cotidianas. Segundo Pires (p. 223), “as di�culdades do aspecto denotativo do cotidiano se desfazem no terreno conotativo da literatura, cuja ‘lógica’ admite e inclusive privilegia ambiguidades”.

Livro_Clarice Lispector.indd 224 28/10/2015 15:08:44

Page 225: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

225

Vivian Resende Jatobá

Isto é, felizmente a literatura dá a liberdade necessária para que certas di�culdades sejam transformadas, de modo que conotativamente tenta-se explicar aquilo que denotativamente �cara nebuloso. Dessa maneira, é por meio da conotação que se revelam os signi�cados percebidos pela sensibilidade da autora.

A vivência, matéria-prima empregada por Clarice na produção cronística, também se encontra no texto “O grupo”, de 1973, o qual relata o reencontro com algumas colegas do tempo de faculdade e as impressões que decorreram dele:

Reencontro alegre porque gostávamos umas das outras, porque a comida estava boa e tínhamos fome. Melancólico porque a vida trabalhara muito em nós, e ali estávamos sorridentes, �rmes. E melancólico também porque nenhuma de nós terminara sendo advogada. (LISPECTOR, 1999, p. 451).

O mais interessante vem a seguir:

Saí da casa de minha amiga para um sol de três horas da tarde, e num bairro que raramente frequento, Urca. O que mais acresceu a minha perdição. Estranhei tudo. E, por me estranhar, vi-me por um instante como sou. Gostei ou não? Simplesmente aceitei. Tomei um táxi que me deixaria em casa, e reªeti sem amargura: muita coisa inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar de

Livro_Clarice Lispector.indd 225 28/10/2015 15:08:44

Page 226: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

226

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer. (p. 451).

É do estranhamento que nasce a percepção de Clarice sobre si mesma. Ela se vê, ainda que por um instante, como é. Pode-se dizer que experimenta esteticamente uma sensação, ainda que breve, e a aceita. Acrescenta sobretudo o que mais nos chama atenção ao dizer que o táxi a transportava de um ponto útil a outro: assim como o táxi, podemos pensar, há situações que nos transportam de um lugar a outro, de um ponto útil a outro. Podemos falar que a função do táxi se assemelha à da sensibilidade da autora, que tem a função de levá-la de um lugar a outro, isto é, do banal ao sublime em situações nas quais pode ou não haver utilidade.

O que Clarice Lispector faz é “Dar-se en�m”, como no título da crônica que fala do prazer que há em “abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente perdendo” (LISPECTOR, 1999, p. 420). Sua postura de compartilhar o que sente revela, naturalmente, certa parte de si, mas sobretudo conduz o leitor ao encontro com sentimentos que poucas vezes são percebidos. A função da autora é “deixar escorrer” nas palavras o que ela nota por meio de um olhar que não deseja ver o que está exposto, mas captar, mais profundamente, o que se esconde em cada situação.

Ela se surpreende com a ªuência de seu pensamento. “E de súbito o sobressalto: ah, abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!” (p. 420). São suas mãos e seu coração que se abrem o bastante não apenas para captar o tátil e o sensível, mas também para compartilhar o

Livro_Clarice Lispector.indd 226 28/10/2015 15:08:44

Page 227: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

227

Vivian Resende Jatobá

sentido com o leitor, privilegiado por ser contemplado com a doação da autora. Clarice doa a si mesma a própria pele e ao seu leitor oferta o coração. Isso basta para que ele se sinta agraciado e note a intensi�cação de sua capacidade de sentir.

Clarice não se permite a avareza, tampouco mede o “vazio- -pleno” que oferece ao leitor. De acordo com ela, “sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com esse vazio-pleno: gastá-lo” (p. 420). Agindo assim, com a disposição de compartilhar sensações, ela abre portas para o acolhimento de quem a lê.

Além de deixar o olhar sensível e o coração e as mãos abertas, Clarice Lispector ªana com ouvidos atentos: interessa-lhe o que os taxistas têm a dizer. Ela questiona: “Será que uma pessoa é chofer de táxi por vocação?” (p. 458) e continua: “às vezes acho que é, tão à vontade que eles de um modo geral estão”. O taxista – ou chofer, como ela chama –, a�nal, também tem seu coração aberto e se torna pessoal à medida que fala. Deixa sua vida ao alcance de Clarice, que, sendo ouvinte, exerce função semelhante à dos leitores que acompanham sua crônica.

O chofer de táxi é aquele que a transporta de um ponto útil a outro, como se disse no texto “O grupo”, e, sendo assim, também ele é um �âneur, e também por seu intermédio é possível entrar em contato com a realidade ao tomar conhecimento da vida das pessoas, de seus dramas e de suas histórias. A passageira Clarice diz que “o mais engraçado é que, com chofer, não sai conversa de pateta.” (p. 458). Não mesmo, a�nal levar alguém de um ponto a outro não é patético: é transcendental. O chofer, nada avarento, ao se oferecer, põe Clarice em contato com a vida, com outras histórias,

Livro_Clarice Lispector.indd 227 28/10/2015 15:08:44

Page 228: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

228

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

e lhe permite que também a passageira fale, compartilhe. Assim, as conversas do táxi não se reduzem ao tempo de viagem. Na verdade, os assuntos se despertam durante um trajeto entre dois pontos, mas sempre estiveram adormecidos. Apenas era preciso que se encontrasse alguém sem avareza, que despejasse histórias para outro ser com ouvidos despertos. Depois da viagem, as histórias se gravam na mente e se reproduzem em outras conversas, em outras crônicas.

Cronista e taxista, em contato, vivem uma experiência enriquecedora. As palavras de ambos, compartilhadas com a disposição de quem pode ouvir sem pressa e falar com vontade, despertam o su�ciente para que se criem narrativas que ganham espaço posteriormente no papel e, por que não dizer, também em imagem e som. O que nos interessa é sublinhar que mesmo a aparente banalidade de um trajeto pode se transformar em algo sublime caso se converta em narrativa. Essa possibilidade existe porque se dá atenção ao outro, o que é su�ciente para que enriqueçamos nossas próprias experiências. Clarice divide a sua dor com taxistas, uma vez que “sai, por causa de minha mão, muita conversa de incêndio” (LISPECTOR, 1999, p. 458) e percebe que “todos já se queimaram um pouco, ou pelo menos os seus conhecidos” (p. 458). Há, dessa maneira, o encontro de suas experiências e a troca delas à medida que se entra em contato com o outro. Podemos dizer que, juntos, cronista e chofer se põem a brincar de pensar.

O privilégio dado à emoção decorrente das situações cotidianas, que temos percebido nos textos de Clarice Lispector, também são objeto de análise de Silviano Santiago, no texto “A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança”. Para ele, a

Livro_Clarice Lispector.indd 228 28/10/2015 15:08:44

Page 229: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

229

Vivian Resende Jatobá

autora inaugurou uma nova tendência ao se afastar de um vínculo histórico que era característico da literatura brasileira oitocentista. O ensaísta cita Antonio Candido, para quem Clarice Lispector “procura criar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação” (CANDIDO, 1943 apud SANTIAGO, 2008, p. 232). Tal declaração con�rma o que sabemos a respeito da autora e de seu poder de trans�gurar situações por meio de sua expressividade característica. Sempre foi uma tendência sua explorar a profundidade inesgotável da matéria humana, de modo que na crônica esse apelo frequente aos sentidos também aparece, ainda que as considerações de Silviano Santiago e de Antonio Candido se re�ram à produção estritamente �ccional da autora.

Santiago assinala que Lispector, como Guimarães Rosa, se aproximava de Ernst Bloch, para quem, segundo Fredric Jameson,

o real �losofar começa em casa, bem abaixo das abstrações o�ciais da tradição metafísica, na própria experiência vivida e nos menores detalhes, no corpo e em suas sensações, nas próprias fontes da palavra enquanto esta vem a ser. (JAMESON, 1985 apud SANTIAGO, 2008, p. 235).

Tal constatação rea�rma o que vínhamos falando acerca da experiência estética, cujo ponto de partida pode ser uma simples situação doméstica, um passeio ou um olhar sobre um personagem da vida real.

Livro_Clarice Lispector.indd 229 28/10/2015 15:08:44

Page 230: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

230

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

O poder desencadeador de um pequeno fato ordinário também é valorizado e notado por Silviano Santiago ao contemplar a obra clariceana. Ainda que o autor re�ra-se a exemplos da �cção da autora, sabemos e nos esforçamos por demonstrar que esse poder também aparece na crônica, como ilustramos em “Perdoando Deus”, por exemplo. Santiago diz que “o acontecimento em Clarice transforma o personagem, fortalecendo o indivíduo. Ele cria um antes e um depois” (SANTIAGO, 2008, p. 237), isto é, a ocorrência de um fato pode bastar para transformar um personagem caso este fato seja trans�gurável, sendo possível que se extraia dele algum signi�cado profundo, capaz de modi�car não só a personagem como também o indivíduo leitor. Dessa maneira, cria-se um antes e um depois em virtude do potencial de ressigni�cação de tal acontecimento: o depois se difere do antes em virtude da transformação realizada pela experiência. Segundo Santiago (2008, p. 236),

O microrrelato do acontecimento desconstruído dramatiza uma propensão do ‘instante-já’, das coisas, das circunstâncias cotidianas. Graças a essa propensão, o ser humano se coloca em plena, concreta e instantânea experiência das virtudes utópicas: o bem, o amor, a luz, a alegria. A vida.

Dessa maneira, tal desconstrução do acontecimento consiste em experiência estética. A seguir, o autor ressalta que

Livro_Clarice Lispector.indd 230 28/10/2015 15:08:44

Page 231: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

231

Vivian Resende Jatobá

Se o acontecimento, no seu sentido tradicional, é de difícil interpretação, o acontecimento desconstruído é de difícil apreensão. O esforço da narrativa �ccional de Clarice é o de surpreender com minúcia de detalhes o acontecimento desconstruído. Ele é um quase nada que escapa e ganha corpo, é esculpido matreiramente pelos dedos da linguagem. (p. 236).

Depreende-se que a atividade de Clarice consiste na apreensão, ainda que difícil, de uma experiência ressigni�cada. Isso porque os acontecimentos ordinários se sucedem rapidamente, mas a habilidade da autora está em lançar sobre eles o seu olhar subjetivo tão logo eles ocorram. Portanto, mesmo aquilo que se coloca na crônica, que tem a brevidade como característica, tem seu conteúdo repleto de ressigni�cações e interpretações dadas pela autora. Assim é que se dá corpo ao “quase nada” e que se permite um olhar renovado sobre a experiência, que ganha novos contornos à medida que se torna apropriada pela linguagem. Como disse Clarice (1999, p. 433), “não se faz uma frase. A frase nasce” e seu nascimento deriva de uma sensibilidade voltada para os objetos oferecidos pela vida cotidiana.

Ainda nas palavras de Silviano Santiago (2008, p. 237), “o ‘sol da atenção’ transforma a experiência subjetiva num ‘caroço seco e germinativo’, potencializando-a”, o que nos permite inferir que a atenção que Clarice lança sobre a experiência é iluminada, de modo que o objeto que estava à sombra se clari�que e se apresente de outro modo depois da intervenção de um sujeito. O caroço de que

Livro_Clarice Lispector.indd 231 28/10/2015 15:08:44

Page 232: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

232

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

fala Santiago é germinativo por poder dar à luz uma transformação operada pela atenção sensível de quem lhe lançou um olhar.

Não é do interesse de Clarice Lispector narrar fatos tais quais acontecem. Se fosse, certamente ela não teria escolhido trilhar o caminho da literatura. A possibilidade de explorar e descobrir sentidos nos fatos é que, de�nitivamente, exerce sobre a autora alguma atração e a motiva a escrever. Se Clarice era um personagem e se sentia à vontade diante da possibilidade de inventar, pouco lhe custaria lançar-se sobre os objetos que eram colocados ao seu alcance. Assim, nenhuma experiência é vazia em si mesma, mas sim um poço de sentidos que se despertam, se acrescentam e se colocam à disposição de quem desejar vê-los. Como disse Jorge de Sá,

Quando narramos apenas o que todos podem ver, ou quando simplesmente fazemos referência a seres e objetos cuja existência é tão palpável que qualquer pessoa pode comprová-la, torna-se impossível alcançar o plano da poesia. O cronista-poeta sabe disso, motivo pelo qual ele usa palavras para construir o seu mundo, mas o que ele passa ao leitor não está nas palavras em si, está no que elas signi�cam e no que elas possuem de faunos e sereias, que só existem na conªuência do real com o irreal. Porque o sentido da poesia – e, por extensão, da crônica, que tem um suporte poético – está na ultrapassagem do que é, para alcançar aquilo que poderia ser. (SÁ, 2005, p. 49-50).

Livro_Clarice Lispector.indd 232 28/10/2015 15:08:44

Page 233: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

233

Vivian Resende Jatobá

Isto é, o autor reitera que a crônica passa pelo terreno poético e é isso que a enriquece. As experiências de um autor são sempre lançadas no jornal ou no livro depois de passarem por um �ltro que lhes garante a literariedade, de modo que elas possam ser ressigni�cadas e apropriadas posteriormente pelo público. O plano da poesia, por onde passa a crônica, exige do autor a sensibilidade necessária para que seu relato não se reduza à mera descrição, mas que permita que a sua obra (seja ela poesia, �cção ou crônica), se ampli�que alcançando novos signi�cados.

Tudo o que a crônica sinaliza é con�rmado em Água Viva, romance em que se escreve com o coração aberto. Os sentimentos são visíveis porque a narradora os faz transbordar, e então somos colocados em contato com toda a sensibilidade percebida nos instantes que compõem a vida e a obra de Clarice Lispector.

Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra. Não quero perguntar por que, pode-se perguntar sempre porque e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim. (LISPECTOR, 1998c, p. 14).

Livro_Clarice Lispector.indd 233 28/10/2015 15:08:44

Page 234: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

234

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Por meio desse trecho, percebemos a intenção clariceana de fotografar o instante, isto é, de registrá-lo em forma de palavras que con�gurem uma imagem. Ainda que não se trate de um instante extraordinário, ele lhe interessa porque basta a sua existência para que se desperte a vontade de pintá-lo com palavras, que, por sua vez, não são usadas de outra maneira senão profundamente. O que convém a Clarice é a criação, a trans�guração e ressigni�cação do que está ao alcance de seu olhar. Interessa-lhe poder enxergar as coisas com mais sensibilidade do que aquela permitida pelo uso exclusivo da visão.

O que fornece matéria-prima para a fotogra�a é o instante, isto é, a brevidade de um acontecimento sobre o qual é possível reªetir e no qual se encontram dissolvidos signi�cados que cabe a nós descobrir. No texto “Sobre importâncias”, Manoel de Barros conta que

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com �ta métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. (BARROS, 2010, p. 407).

Tal abordagem nos serve para que se perceba o encantamento gerado pelo que é pequeno. Ao cronista, ao poeta e a quem tem sensibilidade, não importa que as coisas sejam, denotativamente,

Livro_Clarice Lispector.indd 234 28/10/2015 15:08:44

Page 235: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

235

Vivian Resende Jatobá

pequenas ou grandes. Importa, na verdade, que efeito elas provocam ou, nas palavras do poeta, que encantamento elas produzem. Encontramos o encantamento no olhar de Clarice Lispector, que se volta para o caminho traçado de um ponto a outro, que percebe um signi�cado na conversa com um �lho ou no comportamento de um transeunte. O encantamento deriva, assim, do signi�cado atribuído às sensações que vivemos ou aos instantes que presenciamos. Em virtude disso se pode falar em trans�guração, como é dito em Água Viva:

Trans�guro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justi�cável enquanto dura a minha vida. E depois? depois tudo o que vivi será de um pobre supérªuo. (LISPECTOR, 1998c, p. 22).

Claramente, o que salta aos nossos olhos é seu interesse de perceber a realidade sob outro ponto de vista. Quanto mais Clarice se envolve com o real, mais tem necessidade de transformá-lo. Não por acaso ela tratou a si mesma como personagem no episódio da véspera de sua morte. Podemos dizer que a autora se alimenta de acréscimos porque o que existe é insu�ciente: há sempre a necessidade de perceber as coisas de outro ângulo, e de usar a sua sensibilidade para ressigni�car a aparente banalidade de certas situações. Clarice Lispector permanentemente se ocupa da transformação do que quer

Livro_Clarice Lispector.indd 235 28/10/2015 15:08:44

Page 236: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

236

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

que seja. É por isso que o temor de se dar a conhecer se revela tão recorrente no início de sua atividade como cronista. Aos poucos, entretanto, ela aprende a dar à sua coluna o tratamento que dá à realidade: o da trans�guração. É em virtude disso que se pode falar em experiência estética, pois a autora explora a possibilidade de dar ao que quer que seja um viés poético.

O que permite que Clarice encontre e experimente a poética de cada situação é a liberdade de que ela não abre mão:

Vou te fazer uma con�ssão: estou um pouco assustada. É que não sei aonde me levará esta minha liberdade. Não é arbitrária nem libertina. Mas estou solta. (p. 33).

Com o tom confessional, a autora nos con�rma que a liberdade a leva a um destino desconhecido. É nesse desconhecido que se encontram novas possibilidades para a realidade, pois o terreno fertilizado pela liberdade é aquele onde se encontram experiências ressigni�cadas, traduzidas em palavras que nos conduzem a imagens e a um contato mais profundo conosco.

É por isso que encontramos em Água Viva o seguinte trecho, do qual concluímos que a Clarice interessa ressigni�car inclusive a si mesma:

À duração de minha existência dou uma signi�cação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o

Livro_Clarice Lispector.indd 236 28/10/2015 15:08:44

Page 237: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

237

Vivian Resende Jatobá

futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios. (LISPECTOR, 1998c, p. 22),

Podemos dizer que em sua obra cabem não uma, mas várias descobertas do mundo, uma vez que nada é de�nitivo e tudo está sujeito a uma nova apropriação e interpretação. O jogo que Clarice Lispector faz a torna um enigma permanente, que não dá resposta às perguntas, mas que levanta novas questões em um ciclo incessante.

No ensaio “A criatura viva”, John Dewey (2010, p. 75) diz que “a carreira e o destino de um ser vivo estão ligados a seus intercâmbios com o meio, não externamente, mas sim de uma maneira mais íntima”. Dessa maneira, as experiências de que um cronista parte são uma referência para seu texto desde que tenham gerado no autor uma sensação mais íntima, que lhe sensibilize o bastante para transformar o banal em sublime. Assim, se falamos da exposição da intimidade da autora neste trabalho, não nos limitamos ao fato de que Clarice dá a conhecer a sua realidade de mãe, escritora e dona de casa, mas expandimos nossa visão para alcançar o que ela diz dos efeitos gerados por suas experiências ou por seus “intercâmbios com o meio”. Não se pode falar em experiência estética se não houver uma subjetividade que nos coloque em contato com o sentimento de quem produziu a obra, que posteriormente também gera sentidos em quem a recebe.

Livro_Clarice Lispector.indd 237 28/10/2015 15:08:44

Page 238: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 238 28/10/2015 15:08:44

Page 239: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

239

VII. Considerações �nais

A descoberta do mundo, corpus de nossa análise, é o espaço no qual atua a liberdade de uma autora que dá à realidade a sua

impressão, seja de encantamento ou de repulsa. A coletânea consiste, sobretudo, na sobreposição do que é sentido em relação ao que é visto.

No decorrer deste estudo, ressaltamos a intimidade da autora que não desejava a exposição e percebemos a presença da sua subjetividade não só ao falar de si, mas também ao lançar seu olhar sobre a paisagem circundante, seja ela referente ao espaço doméstico ou ao urbano, nos quais a cena mais banal lhe chamava a atenção.

Livro_Clarice Lispector.indd 239 28/10/2015 15:08:44

Page 240: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

240

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Clarice Lispector exerceu, por meio de sua crônica, o exercício da comunicação mais subjetiva, que parte das sensações do eu em direção ao mundo. Seus textos nascem da fruição de momentos simples, sejam diálogos com pessoas próximas ou lembranças trazidas da infância no nordeste brasileiro, por exemplo. Trata-se da presença de um sujeito que, apesar da inibição, oferece ao leitor a sua sensibilidade e conversa com ele, acolhe-o e torna-o seu cúmplice, fazendo dele não apenas receptor, mas interlocutor, a�nal as sensações descritas por quem escreve não raras vezes alcançam quem lê de modo a gerar identi�cação. A solidão da autora encontra a do leitor, e juntos eles fazem da impressão de um a compreensão do outro, isto é, à medida que Clarice compartilha suas vivências e expõe que sensações as ocorrências cotidianas lhe provocam, o leitor a compreende, além de sentir-se compreendido. Nesse sentido, a comunicação também implica troca de afetos por meio da interlocução.

Ao falarmos de experiência estética neste trabalho, falamos de atribuição de signi�cados aos ªagrantes do cotidiano, contemplamos o olhar carinhoso que a escritora direciona para os cenários que a cercam e nos certi�camos de que há um envolvimento do eu com o mundo, de modo que o primeiro percebe o segundo não apenas por meio de um olhar descritivo, que visualiza as super�cialidades, mas sim por meio de uma curiosidade que busca as profundidades, os sentidos e as essências. Não basta a Clarice descrever um passeio pela Avenida Copacabana, pois nada haveria de literário nele se houvesse mera transcrição do caminhar e das cenas vistas. É preciso lançar-se sobre o mundo com o olhar de quem se sente a mãe de Deus e,

Livro_Clarice Lispector.indd 240 28/10/2015 15:08:44

Page 241: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

241

Vivian Resende Jatobá

ao pisar um rato morto, percebe que amar não é tão fácil quanto se pensa. Clarice Lispector trabalha, a�nal, com as possibilidades de percepção, que aprofunda os sentidos e que busca o que há por dentro dos contornos que de�nem um objeto.

Falamos em descobertas de si e do mundo porque ao nosso alcance está a possibilidade de perceber Clarice Lispector falando tanto de si mesma – ao revelar-se insegura na tarefa de escrever crônicas, por exemplo –, quanto do mundo, ao relacionar-se com ele, e buscando a essência de cada acontecimento, por mais trivial que pareça. Suas descobertas, a�nal, não são apenas visíveis, mas se encarregam da busca curiosa de sentidos, revelados naquilo que o cotidiano tem de mais despretensioso. E, ao proceder descobrindo, ela é também descoberta pelo leitor que tem interesse por seus textos.

Apesar de todos os descobrimentos que listamos e de termos entrado em contato com histórias que dizem respeito à realidade da escritora, sabemos que ela desejava conservar-se um enigma. Na literatura, a�nal, nem todas as respostas são dadas e, se não há mimesis, o terreno deixa de ser literário. Vimos que algumas das crônicas aparecem também em livros de contos da escritora, o que con�rma a intenção de não con�rmar ao leitor se as histórias são �ctícias ou não, mas sim de fazê-lo apenas experimentar sensações semelhantes. O que Clarice Lispector deseja comunicar não é o que aconteceu consigo, mas sim que impressões lhe afetaram, que situações lhe despertaram prazer a ponto de serem convertidas em textos. Suas crônicas são, portanto, resultado de um prazer estético vivido (ou criado) por uma autora e compartilhados com o leitor, que, por sua vez, também atribui novos signi�cados aos textos recebidos.

Livro_Clarice Lispector.indd 241 28/10/2015 15:08:44

Page 242: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

242

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

Os efeitos conseguidos por Clarice são consequência da sensibilidade que trans�gura aquilo que pertence ao mundo, seja em um espaço privado (como o doméstico) ou público. Tal trans�guração ocorre com o emprego de lirismo, intensi�cador de toda a subjetividade. Em virtude disso, ressaltamos que a autora não se interessa por fazer retratos sociais do país, mas sim por ªagrar cenas banais e encontrar nelas qualquer coisa de sublime. O que ela faz, portanto, é perceber o signi�cado de experiências, que fazem com que o mundo, mesmo que já exista aos olhos de todos, seja descoberto de outra maneira por quem dedicar a ele olhares mais atenciosos, com mais generosidade e sutileza.

Dessa maneira, o fato de nos dedicarmos à crônica como objeto de estudo não serve apenas para destacar características que lhe são próprias, mas sobretudo para percebermos que ela existe para dar sobre o mundo um depoimento que não fale somente de suas crueldades, mas que revele sua porção de poesia. Clarice Lispector fez isso partindo de seu envolvimento com o mundo, mesmo que para isso tivesse que, parcialmente, dar-se a conhecer, revelando algumas angústias e tratando de cenas cujo cenário eram sua casa.

Se falamos de intimidade, é porque é inevitável que a autora esteja presente no texto ao imprimir percepções tão subjetivas quanto as que transparecem neles. Se Clarice tinha a sensação de estar vendendo a alma, isso ocorre em virtude da subjetividade, que transparecia nos relatos que ela enriquecia com lirismo e emotividade. A expressividade de sua crônica, a�nal, decorre da presença da própria autora, que, ainda que se pretenda um enigma, não consegue evitar que transpareça a sua sensibilidade.

Livro_Clarice Lispector.indd 242 28/10/2015 15:08:44

Page 243: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

243

Vivian Resende Jatobá

Este trabalho fez um resgate do estudo da crônica, levantando características dela e encontrando-as na produção clariceana. Esta, por sua vez, nos revela outras características próprias da autora, que, curiosa, desperta também a nossa curiosidade, cumplicidade e envolvimento. Passamos a ser todos guiados pelo olhar carinhoso, somos levados a atribuir signi�cados às nossas experiências e a acreditar que o mundo deve ser olhado com uma sensibilidade que nos leve à sua percepção, e não com a preguiça que nos limita ao seu mero reconhecimento.

A partir daqui, outros caminhos podem ser trilhados e se colocam à disposição para serem descobertos. Podemos falar da �cção de Clarice e dos mistérios que elas escondem nas entrelinhas, todos eles cuidadosamente camuªados pela sensibilidade de uma autora enigmática. Podemos, ainda, fora do universo clariceano, nos dedicar à relação autor-leitor que se sugere nos textos de cronistas como Rubem Braga, por exemplo. Outra opção é nos aliarmos ao fértil campo da Experiência Estética e empregarmos seu estudo na compreensão de outros fenômenos, que digam respeito à literatura e/ou aos diálogos que ela permite com outras áreas do conhecimento. E podemos, sem dúvida, manter nossa atenção voltada para o extenso campo da Comunicação, que, em suas diversas manifestações, nos permite falar de subjetividade e produção de sentidos.

Este trabalho começou com um convite à descoberta e termina com vários outros, que se multiplicam à medida que nosso olhar volta sua atenção para os fenômenos que nos cercam, sejam eles de natureza literária, comunicacional ou híbrida.

Livro_Clarice Lispector.indd 243 28/10/2015 15:08:45

Page 244: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Livro_Clarice Lispector.indd 244 28/10/2015 15:08:45

Page 245: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

245

Vivian Resende Jatobá

Referências

AGAMBEM, Giorgio. Genius. In: ______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: ______.Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

ANGIOLILLO, Francesca. Clarice jornalista: o ofício paralelo. Cadernos de literatura brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 17 e 18, dez. 2004.

ARAÚJO, Marta Milene Gomes. Clarice Lispector e seu papel como cronista: da futilidade das páginas femininas à epifania do texto literário. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura)–Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2011.

ASSIS, Machado de. O nascimento da crônica. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 27-28.

BARROS, Manoel de. Sobre Importâncias. In: ______. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. p.407.

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Livro_Clarice Lispector.indd 245 28/10/2015 15:08:45

Page 246: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

246

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.120-136.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.197-221.

CAMPOS, Paulo Mendes. Ser Brotinho. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p.91-93.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: Para Gostar de ler. Rio de Janeiro: Ática, 1995. p. 5-13.

CASTELLO, José. A senhora do vazio. In: ______. Inventário das Sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.17-35.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

DEWEY, John. A criatura viva. In: ______. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 59-84.

DEWEY, John. Ter uma experiência. In: ______. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 109-141.

Livro_Clarice Lispector.indd 246 28/10/2015 15:08:45

Page 247: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

247

Vivian Resende Jatobá

DIMAS, Antonio. Ambiguidade da crônica: literatura ou jornalismo? Littera, Rio de Janeiro, Grifo edições, p. 46-51, 1974.

DINES, Alberto. Disponível em: <http://claricelispector.com.br/Download_Alberto_Dines_IMS.pdf>. Acesso em: 1º out. 2012.

EQUIPE IMS. Água viva ou A hora da estrela. Cadernos de literatura brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 17 e 18, p. 6-8, dez. 2004.

FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. MOTTA, Manuel de Barros da. (Org.) Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 141-157.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: MOTTA, Manuel de Barros da. (Org.). Estética – literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p.164-198.

FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In ______. Edição Brasileira Standart das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XII.

GALENO, Alex. Palavras que tecem e livros que ensinam a dançar. In: Jornalismo e Literatura: A sedução da palavra. GALENO, Alex; CASTRO, Gustavo. (Org.). São Paulo: Escrituras, 2005. p. 99-108.

Livro_Clarice Lispector.indd 247 28/10/2015 15:08:45

Page 248: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

248

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

GUIMARÃES, Cesar; LEAL, Bruno Souza; MENDONÇA, Carlos Camargos. (Org.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pequenas crises: experiência estética nos mundos cotidianos. In: GUIMARÃES, Cesar; LEAL, Bruno Souza; MENDONÇA, Carlos Camargos. (Orgs.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: UFMG, 2006 p. 50-63.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

KLÔH, Suzana de Sá. Clarice Lispector e o narrar-se. 2009. 137 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

LEAL, Bruno Souza. A poesia que a gente vive, talvez. In: LEAL, Bruno Souza; GUIMARÃES, Cesar; MENDONÇA, Carlos Camargos. (Org.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.79-87.

LEJEUNE, Philippe; NORONHA, Jovita Maria Gerheim. (Org.) O pacto autobiográ�co: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

Livro_Clarice Lispector.indd 248 28/10/2015 15:08:45

Page 249: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

249

Vivian Resende Jatobá

LEMINSKI, Paulo. Contranarciso. In: ______. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 32.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998c.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

LISPECTOR, Clarice; NUNES, Aparecida Maria. (Org.). Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

LOPES, Denilson. Da estética da comunicação a uma poética do cotidiano. In:

LOPES, Denilson. O sublime no banal. In: ______. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Universidade de Brasília, Finatec, 2007. p. 37-49.

Livro_Clarice Lispector.indd 249 28/10/2015 15:08:45

Page 250: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

250

Clarice Lispector e a descoberta do mundo

MEDEL, Manuel Ángel Vázquez. Discurso literário e discurso jornalístico: convergências e divergências. In: CASTRO, Gustavo; GALENO, Alex. (Org.). Jornalismo e Literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2005. p.15-28.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biogra�a. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

NUNES, Aparecida Maria. Jogo de disfarces: Clarice Lispector e o ofício de escrever colunas femininas. Editora Rocco, jan. 2006. Disponível em: <http://claricelispector.com.br/Download_Clarice_jornalista_por_Aparecida_Maria.pdf>. Acesso em: 1º out. 2012.

PIRES, Alessandra M. A descoberta do mundo em Clarice Lispector: Lucidez que leva ao inferno. In: NAMORATO, Luciana; FERREIRA, César. (Org.). A palavra segundo Clarice Lispector: aproximações críticas. Lima: Vicerrectorado Acadêmico Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2011. p. 217-228.

POLISTCHUK, Ilana; TRINTA, Aluizio Ramos. Teorias da Comunicação: O pensamento e a prática da Comunicação Social. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 2005.

SÁ, Sérgio de. Rodrigo Lacerda e a arquitetura da generosidade. In: CHIARELI, Stefania; DEALTRY, Giovanna; VIDAL, Paloma.

Livro_Clarice Lispector.indd 250 28/10/2015 15:08:45

Page 251: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

251

Vivian Resende Jatobá

(Org.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. p. 137-148.

SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança. In: ______. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 231-240.

SIBILIA, Paula. O eu real e os abalos da �cção. In: ______. O show do eu: A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p.195-232.

SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: �guras da escrita. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.

WERNECK, Humberto. A arte da conversa. Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, n. 2, set. 2011. Entrevista concedida a Felipe Kryminice, Monique Cellarius e Yasmin Taketani.

WILDE, Oscar. Êe artist as critic: Critical writings of Oscar Wilde. Chicago: Richard Ellmann, 1969.

WILLIAMS, Claire. Clarice ‘Entre-vistas’. In ______. (Org.). Clarice Lispector: entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p.7-12.

ZAMBRANO, María. A secreta vida do coração. In: ______. A metáfora do coração e outros escritos. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

Livro_Clarice Lispector.indd 251 28/10/2015 15:08:45

Page 252: Fundação Universidade de Brasília...Fundação Universidade de Brasília Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres.Ana Valéria

Este livro foi composto em Adobe Caslon Pro

no formato 148x210 mm e impresso no sistema OFF-SET sobre

Papel offset 75 g/m², com capa em papel Cartão Supremo 250g/m²

Livro_Clarice Lispector.indd 252 28/10/2015 15:08:45