FURET Dicionário Crítico da Revolução Francesa 882-895

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! '.·.'!.oo , o ~- .. SOBERANIA FURET, François (org.). Oicionário Critico da Revolução Franceso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.pp.882-895 SOBERANIA KEITH MICHAEL BAKER N ão há necessidade de insistir em que o princípio da soberania nacional está no próprio âmago da Revolução Francesa. Que esse princípio tenha sido criado _ e posto em prática - pela transferência da soberania absoluta do rei à nação é um truísrno que merece ser repetido. E explorado. Na Revolução Francesa, muito devia depender das dificuldades conceituais e políticas que comportava o fato de que se reivindicava para a nação lima idéia de soberania elaborada em nome da monarquia absoluta, no curso dos dois séculos que se tinham seguido às desordens das guerras de religião, guerras que haviam suscitado em Bodin a primeira formulação moderna dessa idéia * * * Como as doutrinas de "monarcômacos" que ele contesta, a teoria da soberania de Bodin apóia-se nas premissas conceituais de uma tradição constitucional ambígua. Durante séculos, os teóricos constitucionais franceses haviam insistido no fato de que ° monarca estava investido da plenitudo potestatis, como imperador em seu domínio próprio; mas também haviam sublinhado que esse poder absoluto era limitado pela l~i divina e natural, pelo costume e procedimentos legais, assim como pela constituição do reino. No debate suscitado de maneira tão aguda Pelas guerras de Religião, não se tratava de saber se existiam ou não limites ao poder monárquipo, mas se, tendo em vista tais limites, 00 monarca devia prestar contas diante de uma outra potência hl!- mana. Foi o medo da anarquia, conseqüência necessária, segundo ele. da doutrina de resistência legítima dos "monarcôrnacos'', que incitou Bôdin a sustentar que, para preservar a ordem social, cumpria que se exercesse urna vontade soberana suprema. Para ser suprema. afirmava ele, essa vontade deve necessariamente ser unitária. E para ser unitária. impõe-se necessariamente que seja perpétua. indivisível (portanto inalienável) e absoluta; em conseqüência independente do julgamento ou do comando de outrem: o soberano não pode ser submetido a julgamento diante da lei; leis an- teriores não podem atã-lo no livre exercício da vontade Iegislativa _ atributo su- premo do poder soberano, de que Bcdin reencontrou o princípio profundamente ins- crito na máxima legal tradicional dos reis de França: pois tal é nosso gosto. Como "poder absoluto e perpétuo de uma República", a soberania. tal como a considerava Bodin, podia teoricamente ser exercida por um príncipe. uma classe 882 r I I I i I I, \ , 0 i1 i' i ;.~. dominante, ou o povo inteiro. Mas o objetivo dos Six livres de Ia République consis- tia em mostrar que ela só podia ser efetiva numa verdadeira monarquia. Um poder soberano coletivo - de todos ou somente de alguns - nunca disporia da unidade indispensável à autoridade do soberano. Essa unidade de vontade só poderia cumprir- se na pessoa de um "príncipe alçado acima de todos os súditos, cuja majestade não suporta divisão". Recusando. embora. aos súditos o direito de restringir o exercício da soberania, fixando-lhe limites, Bodin, no entanto, estava longe de negar a existência de tais limites. Lugares-tenentes de Deus na terra, os príncipes são submetidos à lei divina. Detentores de um poder constitucionalmente estabelecido. eles são submetidos às leis fundamentais que regem a sucessão do trono e a inalienabilidade do domínio monárquico. Também são, no exercício legítimo de sua soberania, submetidos ao direito natural, aos princípios que exigem que se respeite acima de tudo a liberdade e a propriedade dos súditos numa ordem social particularista. É próprio, com efeito. da natureza essencial da sociedade ser composta por uma multiplicidade de ordens e de estados, de comunidades e corporações, de províncias e de regiões: é a hipótese fundamental de Bodin, como dos teóricos da soberania monárquica. A soberania que define o bem público existe precisamente para es- tabelecer a ordem e a unidade numa rnultiplicidade de ordens e de estados. Sem ela, eles não poderiam ser mantidos. Essa função de ordem numa sociedade concebida como um agregado de corpos discordantes é fundamental na teoria da monarquia absoluta. Em outras palavras, o Poder Legislativo real - direito de legislar ou de modificar arbitrariamente as leis - é bem a marca da soberania, mas só se concebe seu exercício nos limites de uma concepção relativamente estreita da função gover- namental, destinada a manter a organização legítima dos homens e das coisas no interior de uma ordem sociaJ constituída. Nesse sentido, o Estado é uma entidade passiva - realidade social a preservar e a manter em boa ordem - mais que a ex- pressão atuante de uma vontade legislativa suprema. Quanto ao governo, cabe-lhe essencialmente uma função judiciária: dar a cada um o que lhe é devido numa rnulti- plicidade de corporações, de ordens e de estados, cujos direitos, responsabilidades e privilégios se inscrevem na ordem tradicional das coisas. * ** Os primeiros teóricos da monarquia absoluta inflectem, portanto. a tradição constitucional francesa, mas não livram. entretanto, a doutrina da soberania de seus pressupostos religiosos, filosóficos e jurídicos. A monarquia absoluta continua enquis- tada no interior de uma ordem metafísica, constitucional e jurídica que ela tem por função fazer respeitar; a soberania permanece fundamentalmente limitada pelos pressupostos dessa ordem. Com o reinado de Luís XIV. no entanto, o poder soberano começou a fugir da ordem jurídica que, teoricamente. ele estava destinado a preser- var, Sem contestar de qualquer modo essa ordem, ele passou a apartar-se dela. Em termos modernos, o Estado (enquanto transmissor atuante do poder) começou a se diferenciar da sociedade. 883

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FURET, François (org.). Oicionário Critico da Revolução Franceso. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1989.pp.882-895

SOBERANIAKEITH MICHAEL BAKER

Não há necessidade de insistir em que o princípio da soberania nacional está nopróprio âmago da Revolução Francesa. Que esse princípio tenha sido criado _

e posto em prática - pela transferência da soberania absoluta do rei à nação é umtruísrno que merece ser repetido. E explorado.

Na Revolução Francesa, muito devia depender das dificuldades conceituais epolíticas que comportava o fato de que se reivindicava para a nação lima idéia desoberania elaborada em nome da monarquia absoluta, no curso dos dois séculos quese tinham seguido às desordens das guerras de religião, guerras que haviam suscitadoem Bodin a primeira formulação moderna dessa idéia

* * *Como as doutrinas de "monarcômacos" que ele contesta, a teoria da soberania

de Bodin apóia-se nas premissas conceituais de uma tradição constitucional ambígua.Durante séculos, os teóricos constitucionais franceses haviam insistido no fato de que°monarca estava investido da plenitudo potestatis, como imperador em seu domíniopróprio; mas também haviam sublinhado que esse poder absoluto era limitado pela l~idivina e natural, pelo costume e procedimentos legais, assim como pela constituiçãodo reino. No debate suscitado de maneira tão aguda Pelas guerras de Religião, não setratava de saber se existiam ou não limites ao poder monárquipo, mas se, tendo emvista tais limites, 00 monarca devia prestar contas diante de uma outra potência hl!-mana. Foi o medo da anarquia, conseqüência necessária, segundo ele. da doutrina deresistência legítima dos "monarcôrnacos'', que incitou Bôdin a sustentar que, parapreservar a ordem social, cumpria que se exercesse urna vontade soberana suprema.Para ser suprema. afirmava ele, essa vontade deve necessariamente ser unitária. Epara ser unitária. impõe-se necessariamente que seja perpétua. indivisível (portantoinalienável) e absoluta; em conseqüência independente do julgamento ou do comandode outrem: o soberano não pode ser submetido a julgamento diante da lei; leis an-teriores não podem atã-lo no livre exercício da vontade Iegislativa _ atributo su-premo do poder soberano, de que Bcdin reencontrou o princípio profundamente ins-crito na máxima legal tradicional dos reis de França: pois tal é nosso gosto.

Como "poder absoluto e perpétuo de uma República", a soberania. tal como aconsiderava Bodin, podia teoricamente ser exercida por um príncipe. uma classe

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dominante, ou o povo inteiro. Mas o objetivo dos Six livres de Ia République consis-tia em mostrar que ela só podia ser efetiva numa verdadeira monarquia. Um podersoberano coletivo - de todos ou somente de alguns - nunca disporia da unidadeindispensável à autoridade do soberano. Essa unidade de vontade só poderia cumprir-se na pessoa de um "príncipe alçado acima de todos os súditos, cuja majestade nãosuporta divisão". Recusando. embora. aos súditos o direito de restringir o exercício dasoberania, fixando-lhe limites, Bodin, no entanto, estava longe de negar a existênciade tais limites. Lugares-tenentes de Deus na terra, os príncipes são submetidos à leidivina. Detentores de um poder constitucionalmente estabelecido. eles são submetidosàs leis fundamentais que regem a sucessão do trono e a inalienabilidade do domíniomonárquico. Também são, no exercício legítimo de sua soberania, submetidos aodireito natural, aos princípios que exigem que se respeite acima de tudo a liberdade ea propriedade dos súditos numa ordem social particularista.

É próprio, com efeito. da natureza essencial da sociedade ser composta por umamultiplicidade de ordens e de estados, de comunidades e corporações, de provínciase de regiões: é a hipótese fundamental de Bodin, como dos teóricos da soberaniamonárquica. A soberania que define o bem público existe precisamente para es-tabelecer a ordem e a unidade numa rnultiplicidade de ordens e de estados. Sem ela,eles não poderiam ser mantidos. Essa função de ordem numa sociedade concebidacomo um agregado de corpos discordantes é fundamental na teoria da monarquiaabsoluta. Em outras palavras, o Poder Legislativo real - direito de legislar ou demodificar arbitrariamente as leis - é bem a marca da soberania, mas só se concebeseu exercício nos limites de uma concepção relativamente estreita da função gover-namental, destinada a manter a organização legítima dos homens e das coisas nointerior de uma ordem sociaJ constituída. Nesse sentido, o Estado é uma entidadepassiva - realidade social a preservar e a manter em boa ordem - mais que a ex-pressão atuante de uma vontade legislativa suprema. Quanto ao governo, cabe-lheessencialmente uma função judiciária: dar a cada um o que lhe é devido numa rnulti-plicidade de corporações, de ordens e de estados, cujos direitos, responsabilidades eprivilégios se inscrevem na ordem tradicional das coisas.

* * *Os primeiros teóricos da monarquia absoluta inflectem, portanto. a tradição

constitucional francesa, mas não livram. entretanto, a doutrina da soberania de seuspressupostos religiosos, filosóficos e jurídicos. A monarquia absoluta continua enquis-tada no interior de uma ordem metafísica, constitucional e jurídica que ela tem porfunção fazer respeitar; a soberania permanece fundamentalmente limitada pelospressupostos dessa ordem. Com o reinado de Luís XIV. no entanto, o poder soberanocomeçou a fugir da ordem jurídica que, teoricamente. ele estava destinado a preser-var, Sem contestar de qualquer modo essa ordem, ele passou a apartar-se dela. Emtermos modernos, o Estado (enquanto transmissor atuante do poder) começou a sediferenciar da sociedade.

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Bossuet ilustra perfeitamente esse processo. A Poli tique tirée des propresparoles de I' Ecriture Sainte constitui um contraste notável com Bodin, dando ascostas para a tradição constitucional francesa. Na defesa que faz Bossuet da monar-quia absoluta, a história bíblica toma o lugar da história da monarquia francesa comocampo de eleição do debate político; a autoridade das Escrituras substitui o pre-cedente constitucional, e a razão abstrata, os títulos jurídicos. Desligadas, assim, datradição constitucional, as pretensões a uma soberania monárquica só podiam crescer.Por um lado, Bossuet radicalizava o caráter sagrado do poder monárquico e, emconseqüência, sua independência com relação ao mundo social constituído. Não eramais possível contentar-se em dizer que os reis eram os lugares-tenentes de Deus:"Eles são deuses, e participam de alguma maneira da independência divina." Poroutro lado, Bossuet acentuava o fato de que a ordem social e a unidade política sóexistiam através da pessoa cio princípe e só emanavam de sua vontade. "Uma mul-tidão de homens toma-se uma pessoa, quando eles são representados por um sóhomem, ou uma só pessoa", afirmara Hobbes no Leviatã. Para ele, por outro lado, opovo s6 se toma um no ato de sujeição ao soberano. O rei é soberano porque o Es-tado existe apenas em sua pessoa individual e por intermédio dela; ele é a únicapessoa verdadeiramente pública; é a única vontade verdadeiramente pública: "opríncipe ... é uma personagem pública, todo o Estado está nele, a vontade de todo opovo está encerrada na dele" ...

A essa inflexão corresponderam modificações nas representações solenes damonarquia. -t.s cerimônias das recepções ao monarca faziam do rei um elementonuma ordem jurídica complexa e acentuavam as definições mútuas da coroa e doreino, limites constitucionais do poder real. Abandonando tais cerimônias por rituaisde corte, Luís XIV p-roclamava a existência de um nov~Jspaço político, que emanavamais diretamente da pessoa do rei. De um rei represêntante e caução dos princípiosjurídicos da ordem social (de que permanecia um dos elementos), o acento se deslo-.çou para um rei de quem decorria a ordem social como de sua verdadeira fonte. O reijá não entrava mais em suas cidades para ali celebrar as obrigações mútuas do monar-ca e de seus súditos. Daquele momento em diante, ordens provindas da corte eramenviadas a todo o reino para que se cantassem Te Deuns solenes em honra dos êxitosmilitares do rei.

Mas precisamente esses êxitos só se haviam tomado possíveis graças à ca-pacidade aumentada da coroa de mobilizar os recursos sociais ao serviço do Estado.Por meio da institucionalização dos intendentes nas províncias, como da dos minis-tros e de suas repartições em Versalhes; pela transformação do que até então haviamsido exigências fiscais extraordinárias em obrigações recorrentes da vida social or-ganizada; por meio da introdução de novos mecanismos de tributação que minavamos privilégios locais e pessoais; por meio da substituição das práticas locais de partici-pação pelo comando centralizado, <;> governo judiciário começou a abrir lugar aogoverno administrativo. No próprio âmago desse novo sistema administrativo, há oelo fundamental entre a guerra e o bem-estar social, entre a imposição e a possibili-dade de tributar. Da mesma maneira que a receita do imposto dependia da capacidade

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que tinha a população de pagar, a organização da guerra dependia da capacidade quetinha a administração de produzir a prosperidade. Para mobilizar os recursos sociais,o govemo estava também obrigado a elevá-Ios ao máximo.

Assim, a função dos intendentes e de seus agentes não se limitou mais a extrairos recursos de suas localidades; tiveram também de fazê-los frutificar, melhorando aprodutividade agrícola, estimulando o comércio e a indústria, incentivando a cons-trução de estradas e canais: em resumo, tiveram de elevar ao máximo a prosperidadee o bem-estar social. Por um deslocamento típico dos objetivos, essa relação entre osfins e os meios se inverteu no curso do século XVIII. A riqueza nacional deixou deser um meio para a guerra e tomou-se um fim em si mesmo. Disso resultou umanova ética administrativa que começava a colocar no centro do governo não mais afunção judiciária primordial de preservar o Estado, entidade passiva, mas a autoridadeadministrativa soberana inclinada para o interesse comum. Nesse contexto, tambémmudou a definição da soberania como Poder Legislativo ativo. Em nome de umaconcepção eudemonista do bem geral, elaborada progressivamente pelo I1uminismo,o soberano podia recompor a sociedade tradicional em função das necessidades, emesmo transformar um reino estruturado pelos princípios da hierarquia, do privilégio~ do particularismo numa comunidade integrada de cidadãos úteis. O poder soberanoDão sustentava mais simplesmente a ordem social do interior; ele atuava do exteriorsobre a sociedade.

No curso do século XVIII, esses desenvolvimentos, portadores de profundascontradições na cultura política do Antigo Regime, exprimiram-se em múltiplosconflitos entre a nova elite administrativa dos ministros e dos intendentes e a elitejudiciária mais antiga dos funcionários. Eles contribuíram para a emergência de umdiscurso de oposição à monarquia absoluta, em que o absolutismo era assimilado aoarbitrário, e a administração monárquica ao "despotismo ministerial".

Como iria a ordem social, em tais circunstâncias, reassimilar o poder soberano?Para esse problema - que dominou a vida política do Antigo Regime durante suasúltimas décadas - diversas formas de discurso político propuseram soluções. A pri-meira, e mais difundida, apelava para os recursos conceituais de uma tradição consti-tucional francesa, pouco a pouco apagada desde o século XVI, e reafirmava as pre-tensões da "nação" de tornar-se um corpo histórico dotado de uma identidade políticae de direitos coletivos. Na década de 1750 e nas seguintes, a monarquia absoluta foimais uma vez convocada ao pretório do debate histórico, jurídico e constitucional. Oarsenal histórico dos "direitos da nação", reaberto de início por Le Paige, oferecia asprincipais armas ideológicas que serviram às contestações parlamentares sempre maisradicais das décadas de 1750 e 1760, aos panfletos anti-Maupeou do início da décadade 1770, e à propaganda antiministerial do período pré-revolucionário. Esse discurso,que evoluiu para uma justificação mais política do papel dos magistrados, símbolo doconsentimento da nação no domínio legislativo, devia finalmente resultar na exigênciados Estados-Gerais como única e mais alta expressão institucional da vontade nacio-

-.nal. A soberania era considerada ao mesmo tempo algo que emanava do corpo danação; seu exercício era conferido por contrato mútuo entre o rei e a nação a um

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monarca, que o exercia submetendo-se às prescrições desse contrato, o qual incluía oprincípio de consentimento à legislação, podendo o monarca ser denunciado pelanação, caso não respeitasse os termos desse contrato. Essa concepção essencialmentenegativa, defensiva, da soberania da nação ia, infalivelmente, deslocar o locus dajdentidade política (e, portanto, da soberania) do rei para a nação, A reafirmação danação como ator histórico e político já aparecia, de maneira flagrante, na literaturapanfletária que precedeu a reunião dos Estados-Gerais.

Rousseau, bem entendido, .falava uma linguagem muito diferente. Pondo delado os fatos históricos e os títulos jurídicos, ele dissolvia a sociedade tradicional dasordens e dos estados numa:m,ultiplicidade de indivíduos, para reconstituí-la anali-ticamente numa comunidade política de cidadãos iguais diante da lei. Para Rousseau,como para Hobbes, essa transformação da multiplicidade em unidade só podia serexecutada por uma submissão absoluta e irrevogáve) de cada indivíduo a uma pessoaúnica. Mas Rousseau - não encontrando nenhum "meio termo suportável entre amais austera democracia e o hobbismo mais perfeito" - situava essa pessoa não napessoa natural de um monarca, mas na pessoa coletiva do corpo de cidadãos em suaintegridade. Daí a forma do contrato social, no qual cada indivíduo se dá a todos,agindo simultaneamente como membro do todo para receber todos os outros.

O Contrato Social transferiu, portanto, a soberania elaborada pelos teóricos damonarquia absoluta - com todos os seus atributos - da pessoa natural do rei para apessoa coletiva, abstrata, do povo. Na doutrina de Rousseau, como na dos teóricosmonárquicos, a soberania é indivisível e inalienável: ela não pode ser nem delegada,nem representada, sem destruir a unidade da pessoa de que é consubstancial. Dissodecorre uma rejeição teórica da representação, não menos enfática do que o repúdioda monarquia absoluta. Uma vez conferido a úrn monarca, ou confiado a representan-tes, afirmava Rousseau, O. poder soberano é imediatamente partiCUlarizado; não existemais como vontade geral, mas como vontade Particular. Cumpre também acentuarque, na doutrina de Rousseau, assim como na dos teóricos monárquicos, a autoridadesoberana, embora sendo absoluta no sentido de que não pode ser limitada por outrasvontades ou leis prévias, tem limites. 1\.vontade geral - para continuar a ser umavontade geral verdadeira, livre de qualquer particularidade _ <leve ser geral em seuobjeto como em sua fonte, "a partir de todos para aplicar-se a todos"..' Na realidade, Rousseau reunificava assim poder soberano e ordem social,reivindicando a soberania para o corpo do povo, enquanto pessoa coletiva, abstrata. Acriação da vontade geral era o ato que constituía a verdadeira ordem social; suamanutenção, como verdadeira vontade geral, era a condição de uma existência socialperene; sua destruição implicava a destruição simultânea da ordem social. No dis-~urso político de Rousseau, a soberania e a sociedade tomavam,se novamente con-substanciais.

A partir dessa perspectiva, é muito esclarecedor comparar os argumentos deRousseau aos que apresentavam os fisiocratas e seus discípulos, que esconjuravam acrescente disjunção entre o poder soberano e a ordem social, procurando transformaro exercício do poder soberano em regra da natureza. Eles aspiravam substituir uma

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sociedade constituída juridicamente (compreendamos, artificialmente) em ordens eestados, pela ordem natural de uma sociedade fundada nos princípios do individua-lismo possuidor, expressão das relações verdadeiras entre os homens e com ouniverso natural. A partir de um Estado - poder político, que atuava sobre a so-ciedade corporativa, eles tentavam atingir um Estado - transmissor administrativo,cuja autoridade decorreria da sociedade civil moderna, constituída em sociedade deindivíduos prósperos, cujos interesses ele articularia ea cujas necessidades serviria. Aintrodução da representação por meio da criação das assembléias provinciais tomou-se a chave da transformação do governo, antecipada por personagens como Turgot,Dupont de Nemours, Condorcet, Le Trosne e, finalmente, Calonne. Ao invés deforçar um corpo passivo e inanimado, seria muito mais fácil "pôr em movimento umcorpo vivo", fazendo nascer a representação dos interesses sociais em presença nasassembléias provinciais. Nem a nação corporativa, cara ao constitucionalismo par-lamentar, com seus direitos histórica e juridicamente constituídos, nem o povo sobe-rano de Rousseau, constituído em pessoa coletiva e abstrata, a nação que concebiamdeveria ser uma sociedade dinâmica de possuidores que trabalhasse para o bem-estarindividual sob a direção salutar de uma administração esclarecida e racional, portantoem perfeita harmonia com as necessidades sociais. Em última instância, isso impli-cava que a vontade soberana se transformasse em expressão racional das necessidadessociais. A teoria fisiocrata objetivava dissolver o poder na sociedade em nome doin teresse social. .

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Para dizê-Ia com a maior simplicidade possível, a soberania nacional nasceu nomomento em que a Revolução Francesa transfere o poder soberano da coroa para anação. Mas que nação? A do constitucionalismo parlamentar? A dos fisiocratas? Eque soberania? A soberania nacional residual da teoria parlamentar, compreendidaessencialmente como fonte última e limite da autoridade monárquica? A soberaniapopular direta da teoria rousseauísta, compreendida como vontade imediatamenteportadora de toda verdadeira ordem social? A soberania transformada da teoriafisiocrata, no sentido de expressão racional dos interesses sociais?

Na realidade, reencontraremos cada um desses discursos concorrentes no grandedebate suscitado pelo governo em 5 de julho de 1788, na discussão pública sobre asformas a serem seguidas para a convocação dos Estados-Gerais. Depois, todos con-vergirão na formulação mais poderosa e mais marcante da doutrina da soberanianacional, o panfleto de Sieyês Qu' est-ce que le Tiers Etat? O texto de Sieyês seapropria da nação histórica, desembaraça-a das armadilhas constitucionalistas e lheconfere a soberania do povo, imediata e ativa, da teoria rousseauísta. No fundo, eletransforma a nação em puro ser político. Bossuet oferecera uma visão metafísica dosreis, que Sieyês substitui por uma visão puramente secular - mas não menosmetafísica - das nações, primeiras ocupantes de uma ordem natural última, não co-nhecendo entraves no exercício majestoso de sua vontade soberana. "Deve-se conce-ber as nações na terra como indivíduos fora do laço social ou, como se diz, no estado

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da natureza (...). Existindo apenas na ordem natural, sua vontade, para ex.ercer todo oseu efeito, só necessita ser portadora dos atributos naturais de uma vontade." Por umainversão espetacular, a nação, criada no curso dos séculos pelos esforços constantesdo Estado monãrquico, se lhe tornava agora rnetafisicamente prévia. Não foi menosradical a ameaça que a lógica de Qu' est-ce que le Tiers Etat? representou para asrelações internacionais do que a subversão que introduziu na ordem institucional damonarquia francesa. Adotada essa lógica, a história da humanidade não devia mais sediferenciar da lógica de autodeterminação nacional. .

Se, como ser coletivo, a nação pertence a uma ordem natural, anterior a todahistória, seus verdadeiros membros são os indivíduos ainda virgens de títulos históri-~9s, os h~mens do Tiers Etat, ainda não desqualificados pela acumulação históricados privilégios. A nação de Sieyes, como o povo de Rouseau, é uma associação deçidadãos individuais iguais diante da lei. Mas qual é a natureza dessa associação?Traço surpreendente do Tiers Etat: enquanto confere à nação numerosos atributos dopovo de Rousseau, em particular a unidade e a universalidade de uma associação decidadãos iguais ligados por uma vontade comum, ele não insiste em absoluto numcontrato social que seria a base lógica de seu ser coletivo. Nesse panfleto, Sieyêspostula a existência inicial de um "número mais ou menos considerável de indivíduosisolados que querem reunir-se." Essa primeira etapa na formação da sociedadepolítica é, portanto, caracterizada pelo exercício das vontades individuais: "A asso-ciação é obra delas; elas estão na origem de todo poder." Mas não se cogita de umcontrato social para especificar a natureza e as condições do ato de associação. Essajendêncía a naturalizar a sociedade política de preferência a sublinhar suas origenscontratuais se fortalece ainda quando Sieyes, no início do Tiers Etat, recorre a umalinguagem mais próxima dos fisiocratas que de Rousseau, caracterizando a naçãocorno organização social e econômica, fungada na ordem natural, e sustentada pelaprodução e distribuição de recursos indispensáveis às necessidades humanas

Há um motivo muito bom para essa gritante elisão do argumento central doContrato Social. Em Qu' est ce que le Tias Etat? Sieyês não objetiva afirmar a ar-tificialidade ou a fragilidade de um ser moral criado por contrato, mas a realidadeessencial da nação e de sua vontade comum: "a vontade nacional( ... ) só necessita desua realidade para ser sempre legal; ela é a origem de toda legalidade". Na teoria deRousseau, o povo deixa de existir como ser coletivo, abstrato, cada vez que a vontadegeral deixa de operar. Mas Sieyês inverte essa lógica. A ameaça da dissolução daassociação, por meio do desaparecimento da vontade geral, simplesmente não apareceem seu texto. Ele não sustenta que o despotismo e o privilégio destruíram a nação,substituindo vontades particulares a uma vontade geral. Também não afirma que osfranceses deixaram (ou deixariam) de ser uma nação concordando com formas derepresentação. Rejeita simplesmente essas formas corno ilegítimas, pois incompatíveiscom a realidade da identidade nacional. "Uma nação não pode decidir que ela nãoserá a nação." De ser fictício, a nação tomou-se realidade primordial.

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Qu' est ce que Ie Tiers Etat? constituía uma obra-prima de retórica política.Mas Sieyês era incapaz de controlar todos os significados de seu panfleto. Como todoescrito dessa ordem, ele dizia mais - e menos - do que seu autor queria. À medidaque seu levedo começava a fermentar no discurso político francês, ele devia terprolongamentos que Sieyês não havia previsto. O princípio de soberania nacional iriaadquirir uma crescente expressão explícita nas ações revolucionárias, tais como acriação da Assembléia Nacional, o juramento do leu de Paume, a noite do 4 deAgosto, a Declaração dos Direitos do Homem, e os primeiros debates da Assembléia,que enunciavam os fundamentos de uma constituição que se elaborou sobre a afir-mação de que "a soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Elapertence à Nação". Mas a execução prática desse princípio diferiu radicalmente daque defendia o autor do Tiers Etat, de uma maneira que já revelava as dificuldadesque os revolucionários iriam encontrar para transferir a soberania da coroa à nação.

Corno deveria a nação exercer a soberania recentemente proclamada? Aí está oâmago dos debates constitucionais do fim do mês de agosto e do mês de setembro de1789. A rejeição das propostas de Mounier e dos "Monarquianos" a favor do vetomonárquico absoluto e do equilíbrio dos poderes significava uma recusa radical dapretensão deles de que a nação fosse a fonte residual da soberania, em vez de ser oseu agente ativo. A partir daí, a soberania devia ser compreendida corno direta e ime-diatamente inerente à nação. Mas como o exercício direto e imediato de uma vontadesoberana unitária seria garantido numa vasta sociedade em que a democracia diretaera impossível? Como a indivisibilidade e a inalienabilidade da soberania da naçãoseriam sustentadas diante da necessidade de representação? Sieyês sustentou, no cursodos debates, que a vontade nacional só se podia exprimir numa assembléia represen-tativa; só numa tal assembléia seria possível formular, mediante a discussão entre osdeputados da nação inteira, uma vontade comum libertada dos interesses parciais deuma multiplicidade de circunscrições eleitorais: reformulação, em termos de represen-tação, da exigência rousseauísta de que a vontade geral fosse geral em sua fonte egeral em seu objeto. Não obstante os argumentos anteriores do Tiers Etat, isso signi-ficava que a vontade geral não podia ser considerada uma vontade positiva indepen-dente e antecedente que se transmitiria, das assembléias primárias até a AssembléiaNacional, por meio da representação. Pelo contrário, Sieyês passava a afirmar quesimplesmente não havia vontade comum fora da Assembléia Nacional: a nação só erauna na pessoa coletiva de seu corpo representativo unitário. Daí o absurdo, de acordocom essa perspectiva de sustentar um veto suspensivo,

Aceitando o veto suspensivo, no entanto, a Assembléia Constituinte optava poruma visão muito diversa da operação da soberania nacional, uma visão que partia dahipótese de uma vontade geral que existia como vontade anterior positiva inerente aocorpo da nação inteira. Ora, a partir do momento em que a soberania é consideradainerente ao corpo da nação, surge, ao mesmo tempo, o perigo permanente de seudesvio pela Assembléia representativa - eventualidade de uma vontade real da nação

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substituída por uma vontade particular. Donde a função constitucional do rei, esseoutro "representante" da nação, no exercício do veto suspensivo. Cabe-lhe suspender,até que a nação se tenha efetivamente exprimido, a aceitação de- todo ato do Corpolegislativo suspeito de ser não conforme à vontade geral da nação.

O veto suspensivo era apenas a primeira das tentativas feitas pela Revoluçãopara reconciliar a inalienabilidade da soberania nacional com a prática da represen-tação. Foi, bem entendido, o que causou a destruição da monarquia, nova revoluçãomotivada pelo sentimento de que o próprio veto se transformara, nas mãos de LuísXVI, em instrumento de frustração da vontade geral. No lugar da pessoa representa-tiva do rei, cuja ação devia 'garantir a expressão da vontade geral, a insurreição de 10de agosto instalou o próprio povo, encarregado da vigilância direta e constante dosdeputados. A soberania popular substituiu a soberania nacional. .

Tal como a exprimiram os sans-culottes, a soberania popular implicava váriascoisas. Acima de tudo, ela significava que cumpria compreender o poder soberano,"imprescritível, inalienável, indelegável" como inerente, direta e imediatamente, aocorpo. de cidadãos reunidos permanentemente nas seções. Ali encontrava o povo, namaterialidade de sua existência e na positividade de sua vontade, sua unidade fora doalcance das distinções facciosas entre cidadãos ativos e passivos, e sua vontade de-simpedida dos constrangimentos impostos pelos sistemas tortuosos d1S eleições indi-retas. No âmago do discurso sans-culotte, discerne-se a ambigüidade .undarnental dossignificados políticos e sociais do termo povo, O povo-soberano é o povo-corpopolítico, corpo total dos cidadãos ligados pela unanimidade de sua vontade comum.Mas é também o povo-corpo social, o povo dos trabalhadores, aqueles cuja existênciacomum se define pela materialidade de suas relações com a natureza física e pelocaráter imediato de suas necessidades, Cada membro, cada seção, pode então falarpelo conjunto. Esta relação COmum à natureza serve também para definir o povo. Ossans-culottes dirigem contra o rico e o ocioso a lógica que Sieyês utilizara contra osprivilegiados: ª nação soberana, que tem seu fundamento no trabalho, compõe-seexclusivamente daqueles que se empenhavam, de modo ativo e útil, nesse trabalho."E uma verdade evidente é que a Nação é sans-culoues, e que o pequeno númerodaqueles que detêm em suas mãos todas as riquezas não são a Nação; que eles nãopassam de privilegiados que estão chegando ao fim de seu privilégio", diz, em setern-

'. bro de 1793, a seção do Observatório.Essa concepção da coberania popular inalienável teve conseqüências graves. A

exigência de que os atos legislativos fossem submetidos à sanção popular direta an-tes da aceitação não foi a menor. A política revolucionária sentiu, de imediato, seusefeitos, pois os deputados à Assembléia Nacional tomavam-se mandatários em vezde representantes. Como lhes lembravam as inúmeras petições vindas das seções, eleseram enviados à Assembléia não para decidir em nome do povo, mas para assumirsua vontade soberana. Donde o direito do povo de interpelar, de controlar e de cen-surar as decisões da Assembléia; de convocar deputados individuais para que prestas-sem contas, cada vez que isso parecia necessário; de revogar, expulsar, condenar esubstituir à vontade os mandatários desleais. Donde, enfim, seu direito de insurreição:

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o de impor a vontade popular a uma Assembléia dividida, como em 10 de agosto de1792; ou de purgar o corpo representativo dos deputados refratários e restaurar aunidade que devia necessariamente refletir essa vontade, como quando 'das jornadasde 31 de maio a 2 de junho de 1793.

Tendo essas reivindicações como justificação, a ação insurrecional do povo deParis levava assim a seu ponto crítico o problema revolucionário da inalienabilidadeda soberania nacional. Pode-se justificar o movimento insurrecional como últimarecusa de um povo unitário a deixar que traidores mandatários usurpem sua ina-lienável vontade soberana. Pode-se denunciá-Ia como a pretensão ilegal de umasimples parte do povo de exercer o poder da nação inteira. Nos dois casos, oproblema permanece o mesmo: como eliminar a necessidade do recurso à insurreiçãopor meios constitucionais? Foi o problema colocado à Convenção por Condorcet, aoapresentar a Constituição girondina no início de 1793, e também por Hérault deSéchelles com a Constituição Montanhesa, após as jornadas de 31 de maio a 2 dejunho.

A Constituição Girondina oferecia uma solução tão complexa quanto completa,objetivando submeter as ações do Corpo legislativo ao julgamento refletido do povointeiro reunido em assembléias primárias. Mas essa tentativa de tornar a insurreiçãoinútil, fazendo da revolução uma instituição permanente e pacífica, não alcançouêxito junto à Convenção. Para Saint-Just, os mecanismos destinados a produzir avontade geral eram demasiado marcados pelo racionalisrno de Condorcet. Robespi-erre, por sua vez, condenou o recurso constante às assembléias primárias: fatigar opovo com formalidades democráticas equivalia a conspirar para minar essa soberaniapopular.

O projeto de Constituição Montanhesa de 1793 previa garantir o exercício dasoberania popular de maneira menos complexa. Pois ele especificava os procedimen-tos segundo os quais os projetos de lei seriam submetidos ao referendum popular, apedido de várias assembléias primárias. Recomendava igualmente a criação de umjúri nacional (eleito ao mesmo tempo e da mesma maneira que a Assembléia legisla-tiva) encarregado de determinar, por meio de estatuto, se procediam as acusações dedeslealdade e de exercício abusivo do mandato por parte de deputados. A Convençãoadotou, restringindo-as, as disposições relativas ao referendum popular sobre a legis-lação, mas recuou diante do projeto de júri nacional. Ele teria reduzido e mesmoinibido a ação da Assembléia legislativa, introduzindo no exercício da soberania umaconfusão tão perigosa quanto o veto suspensivo, tão desacreditado. Como então"garantir o povo contra a opressão do Corpo legislativo"? Encarregado de reconside-rar o problema, o Comitê de Salvação Pública apresentou uma variante dasexigências sans-culoues: cada deputado seria julgado, no fim de cada sessão, pelasassembléias primárias que o haviam eleito; um deputado cujos atos tivessem sidodesaprovados não seria mais elegível; não poderia ter acesso a outra função pública.Mas essa proposição foi, também ela, denunciada, como uma ameaça à integridade dasoberania popular. Ela podia permitir ao inimigo intrigante da nação ser absolvidohonrosamente e fazer com que o amigo virtuoso dela fosse condenado. Teriam a

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Gironda, a Vendéia condenado seus pérfidos deputados? A Convenção, uma vezpurgada, julgou que não, e recusou a uma parte do povo, qualquer que ela fosse, odireito de "privar a nação inteira de um representante que ela estima". Fora da insur-reição, não parecia mais haver maneira de sair do labirinto qLle constituía a questão deuma soberania popular inalienável. Os bonvericionais consolaram-se dessa derrotateórica com uma sentença prática: "O povo está sempre presente."

O povo está sempre presente. Mas o povo está em todo lugar? E todo mundo épovo? Citando com inquietação a Vendéia, o debate da Convenção sobre o júrinacional já designava um outro problema crucial, próprio ao conceito de soberanianacional/popular. A concepção da soberania nacional defendida por Sieyês exigiaapenas que os diversos interesses se transfonnassem em vontade unitária por deli-beração da Assembléia Nacional. Mas a noção de soberania que a Constituinte ado-tara, aceitando o veto suspensivo - fortalecida pelos sans-culottes e Sua visão dosdeputados como mandatários -, ia mais longe do que isso. Ela implicava que aunidade da Assembléia emanava diretamente da unidade do corpo da nação/povo. Avontade da nação soberana devia ser tão unitária quanto era inalienãvel: o corpo dopovo devia encarnar a mesma unidade que procurava impor a seus deputados; sim-plesmente, não se podia tolerar diferenças em seu seio.

De acordo com essa lógica, <I. unidade é a condição da soberania; a nação éunânime ou não é nada. Donde a aversão permanente, em todo o curso do períodorevolucionário, por qualquer forma de atividade política que ameaçasse a unidade davontade soberana, enunciando explicitamente vontades particulares ou interessesparciais. Donde a tendência constante a concretizar a unidade por meio da exclusão.Desde o início, a Revolução constituiu a nação soberana, dela extirpando uma aristo-cracia privilegiada. Mas a lógica de uma vontade unitária, fortaleci da pela guerra epela divisão interna, ampliou' pouco a pouco a categoria de "aristocracia", restrin-gindo, ao mesmo tempo, seu contraponto, a "Nação" ou o "povo". Denúncias, expur-gos, apelos à justiça revolucionária contra os inimigos da nação prolongaram inde-finidamente a lista de suspeitos.

No entanto, exigindo uma lei dos suspeitos, os sans-culottes pediam, de fato,que a Convenção expurgasse o povo de todos os elementos de desunião - exatamentecomo o povo, ele próprio, havia, antes, expurgado a Convenção. Cada um dos par-ceiros devia impor a unidade ao outro, cada vez que ela se enfraquecia. Foi a lógicafundamental do Terror. Ninguém o exprimiu melhor do que Robespierre. Em 10 demaio de 1793, ele afirmava que "o povo é bom, e que seus delegados são cor-ruptíveis; que é na virtude e na soberania do povo que cumpre buscar um preserva-tivo contra os vícios e o despotismo do governo". Mas esse preservativo contra aschagas do governo devia ser, ele próprio, preservado pelo governo. Foi o argumentodecisivo em favor do Terror. Em 25 de dezembro de 1793, e, depois, em 17 de fe-vereiro de 1794, Robespierre afirmava que o governo popular encontrava seu apoioprincipal nessa virtude mediante a qual as vontades individuais se identificavam coma vontade geral. Um governo sem virtude republicana podia revigorar-se no povo,mas, desde que essa virtude viesse a perder-se no povo, era a própria liberdade que

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perecia. Era, portanto, imperativo para a Convenção, seus comitês e seus agentessustentar e fortalecer a virtude política do povo. Mediante o terror, que "não é outracoisa senão a justiça pronta, severa, inflexível(. ..) uma emanação da virtude", procu-rava-se clara e imperativamente eliminar a dissidência e a desordem.

Mas como fazer a triagem entre o povo e os seus inimigos quando a "aristocra-cia se constituiu em sociedades populares e o orgulho contra-revolucionário ocultasob andrajos seus complôs e seus punhais"? O medo da diferença é, nesse caso, le-vado ao ponto em que toda ação política é considerada à expressão verdadeira oupotencial de uma vontade subversiva e imoral, e em que se tomava impossível cir-cunscrever o Terror.

* * *Até então inimaginada e inimaginável, a experiência polftíca do Terror suscitou

uma crítica sistemática do conceito de soberania. Sieyês, cuja obra havia talvez colo-cado mais do que qualquer outra a soberania nacional no centro do discurso revolu-cionário, figurava agora entre os primeiros a denunciar suas implicações exageradas.Seu discurso de 2 Tennidor do ano III fazia novamente da representação uma apli-cação racional aos negócios políticos do princípio da divisão do trabalho, fundamentoda sociedade moderna. Sieyês sustentava agora que, reclamando a soberania usurpadapor seus reis, o povo francês fora contaminado pelo vírus do poder ilimitado, absolutoe arbitrário: "as pessoas pareciam dizer-se, com uma espécie de orgulho patriótico,que, se a soberania dos grandes reis é tão poderosa, tão terrível, a soberania de umgrande povo deve ser coisa ainda muito superior". Mas, na realidade, criando a so-ciedade política, os indivíduos não haviam transferido todos os seus direitos àcomunidade, assim como não lhe haviam conferido a sorna de seus poderes indivi-duais; pelo contrário, haviam retido esses direitos, só pondo em comum o pouco depoder necessário à sua manutenção. A política também não consistia no exercíciounitário de uma vontade arbitrária: "Nada é arbitrário na natureza moral e social,assim como não o é na natureza física." A concentração do poder soberano, e não suaalienação, tomou-se o grande obstáculo político; a limitação do poder, sua diferen-ciação, sua colocação ao serviço dos interesses e das necessidades sociais tornaram-se o objetivo principal do fato social. Recapitulando assim os temas fisiocráticos deseu pensamento .inicial, Sieyes reafirmava a prioridade de um discurso do social,fundamentado na noção da distribuição diferencial da razão, dos interesses e dasfunções na sociedade civil moderna.

Mensagem captada, antes de ninguém, por Benjamin Constant, cujos escritosconferiram ao liberalismo francês sua forma clássica. Para Constam, a chave doTerror está na confusão feita entre a liberdade dos antigos (o exercício coletivo davontade soberana) e a liberdade dos modernos (a segurança dos pequenos confortosprivados), e cujos principais responsáveis são os grandes admiradores da virtudepolítica clássica, Rousseau e Mably. Extraviados por sua idéia irrealizável de que ospovos modernos poderiam recuperar a soberania coletiva de que gozavam os antigos,

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os revolucionários se viram inevitavelmente enredados "na vertigem inexplicável aque se chamou o reinado do Terror". Essa reflexão liberal sobre o Terror contém doisargumentos decisivos: uma crítica do princípio de soberania popular, fundada nateoria da vontade geral; uma afirmação da separação essencial a ser mantida entre oEstado e a sociedade. Constant não nega que é desejável que o governo legítimodependa da vontade geral, compreendida no sentido amplo do consentimento comumdos governados, mas rejeita, na realidade, uma visão da vontade geral que leve aoexercício de um poder soberano ilimitado. O erro mais grave dos partidários da so-berania coletiva consistira, segundo ele, em dirigir os seus ataques contra aqueles quemantinham o poder absoluto, e não contra esse mesmo poder. Em vez de buscar

. destruí-lo, só haviam pensado em transferi-lo ao povo inteiro: "Era um flagelo, eles otiveram na conta de uma conquista e com ele presentearam a sociedade inteira." Elestinham razão quando sustentavam que nenhum indivíduo ou grupo tem o direito desujeitar o resto à sua vontade particular; mas erravam ao sugerir que a sociedadeinteira exercesse uma soberania ilimitada sobre os seus membros.

Segundo Constant, Rousseau sentira o perigo do poder monstruoso que haviainvocado em nome do povo, e é por isso que ele havia declarado que a soberania nãopoderia ser nem alienada, nem delegada, nem representada - isso significava, no

. fundo, declarar que ela não podia nunca ser exercida. Procurando substituir a tiraniada vontade geral por uma noção de autoridade política limitada, Constant era assimlevíldo a contestar a própria linguagem do voluntarismo político. Voltando ao dis-curso fisiocrático, ele sustentava q~e a sociedade não se constitui pelo exercício davontade, mas se apóia nas relações naturais entre os homens; as leis nada mais são do<lu~a declaração de tais relações sociais naturais. Se assim é, legislar pelo livre exer-çfçio.de uma vontade soberana. - marca da doutrina da soberania, de Bodin à Revo-lução Francesa - ~alTeta um mal-entendido fundamental sobre a natureza própriada ordem social. "A lei não está à disposição do legislador. Ela não é sua obraespontânea. O legislador é para a ordem social o que o físico é para a natureza": emoutras palavras, um observador e não um criador de leis.

O Terror revelou, portanto, ajirania inerente a toda noção de voluntarismopolíttc:O,uma tirania que não pode ser esconjurada a não ser mediante o estabeleci-mento de uma separação absoluta entre o Estado e a sociedade civil, uma fronteirasagrada que protege essa parte da existência humana que deve ficar fora do alcancede todo poder político. Onde os revolucionários sonhavam com uma ordem social queseria a expressão transparente da vontade humana, Constant insistia na obscuridadeessencial e impermeabilidade da sociedade civil para o Estado.

Com essa defesa de uma necessária linha de demarcação entre a sociedade e oEstado, a doutrina da soberania voltava a seu ponto de partida. Os primeiros teóricosabsolutistas haviam acentuado a necessidade de uma autoridade soberana unitária quemantivesse a sociedade a partir do interior, uma autoridade que, embora suprema, eraigualmente limitada pela natureza da ordem social, da qual ela era, a um tempo, acondição e a expressão essencial. O crescimento do Estado administrativo ativo per-turbara esse sentido da soberania consubstancial à ordem social, e levara a que se

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reclamasse para a sociedade um poder soberano que parecia, por isso, dever ameaçá-Ia do exterior, em vez de sustentá-Ia do interior.

Amalgamando as mais radicais dessas teses e a teoria da vontade geral, osrevolucionários haviam tentado reabsorver a soberania na sociedade, localizando oseu exercício inalienável no corpo unitário da nação/povo. Mas o esforço deles parapreencher essas condições de unidade e de inalienabilidade havia alimentado a lógicado Terror, transformando uma teoria da liberdade coletiva na prática do despotismo.A distinção moderna entre o Estado e a sociedade - e a insistência liberal em suanecessária separação - foram a resposta histórica a tal experiência.

ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

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REMISSÕES

Antigo RegimeAssembléias reVOlucionáriasConstamConstituiçãoDemocracia

EleiçõesFisiocratasNaçãoRobespierreRousseau

Sans-eu/ollesSieyesSufrágioTerror

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