Fusca Na Igreja

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DANIEL CAMARGOS O barulho da chuva no telhado de zinco serve como trilha para o ambien- te desolado. Paredes apenas com o re- boco precisam de pintura. Escadas em cimento grosseiro aguardam revesti- mento. O único luxo são os detalhes em gesso, que ornam a estrutura inter- na, que, por sua vez, se ergue até a torre. À direita de quem entra pela porta prin- cipal da Igreja de São Tarcísio, no bairro Nova Cintra, região Oeste de Belo Hori- zonte, repousa solitário um Volkswagen Fusca 1977, azul claro. “Pode escrever aí que é um Fusca azul-calcinha inteiro”, ordena com hu- mor o pároco, padre Rogério Eustáquio Fernandes. Indagado se não seria me- lhor dizer que o Fusca é azul-claro, pa- ra combinar com o manto de Nossa Se- nhora ou, quem sabe, para fazer uma harmonia com os vitrais azulados e com os detalhes do acabamento exter- no – ainda por serem concluídos – de ladrilhos brancos, além das grades e de- talhes no mesmo tom, o sacerdote in- siste, já sem disfarçar o riso: “É azul-cal- cinha mesmo”. Pois o Fusca azul-calcinha está esta- cionado dentro da igreja desde julho, e só sairá de lá em 16 de dezembro, da- ta da festa que encerra a novena de Natal e que marca o sorteio de uma ação entre amigos, cujo grande prê- mio será o mais que abençoado be- souro. A renda, como geralmente ocorre em outras paróquias, será re- vertida para a reforma do templo. Pa- dre Rogério explica que já faz dois anos que assumiu a igreja e que, des- de então, as obras são uma rotina. Difícil calcular o que falta para dei- xar o templo pronto, mas o padre sabe que a renda do Fusca, avaliado em R$ 3,5 mil, é pouca. “Se conseguir tirar R$ 5 mil com a rifa está ótimo”, afirma, qua- se rezando. A jogada, ou melhor, a esta- cionada do Fusca com a traseira virada para o altar, foi um golpe de marketing do padre, que, além do seminário, fez um curso técnico de publicidade. Aos interessados, cada bilhete custa R$ 5. A diferença das rifas tradicionais é que o número não acompanhará o sorteio da loteria. O padre explica que todos os ca- nhotos serão postos na urna e o vence- dor será sorteado no ápice da festa. MOTOR Equipado com motor 1.3, o modelo (versão L) do Volkswagen ocu- pa o espaço relativo a três bancos, que foram reposicionados nas laterais, co- mo se estivessem de castigo. Estacio- nado com precisão, o carro fica entre os dois últimos quadros da via-sacra, o sepultamento e a ressurreição de Cristo. Um motorista pouco ousado não se atreveria a passar o Fusca – com 1,54m de largura – pela estreita porta principal da igreja. “Eu calculei tudo. Ali passa até uma caminhonete (Che- vrolet) S-10”, esnoba o religioso. Po- rém, quando perguntado pelos fiéis sobre quem pôs o Fusca ali, ele respon- de: “Foram os anjos de Nossa Senhora”. Indagado se o pneu não esvazia, o pa- dre emenda de primeira: “Não abaixa, porque é de Deus”. Quem vai à igreja pela primeira vez, estranha a cena. “Perguntam assim: Meu Deus, como o padre Rogério pôs o Fusca ali. Outros acham que o carro é meu e que estaciono na frente do altar. Tem também quem fique bravo e fala que igreja é lugar de rezar”, conta o pa- dre. Mas toda a ‘falação’ é considerada positiva, pois, segundo o pároco, busca uma causa maior, que é a melhoria do templo e o sorteio do Fusca mais aben- çoado da cidade. VEÍ CULOS ESTADO DE MINAS Q U A R T A - F E I R A , 2 2 D E N O V E M B R O D E 2 0 0 6 RIFA Fusca da salvação Ação entre amigos promovida pela Paróquia de São Tarcísio, no Bairro Nova Cintra, oferece como prêmio um Fusca, que fica dentro da igreja para atrair participantes Com a singular cor azul-calcinha, Fusca aguarda, desde julho, em frente ao altar o sorteio da rifa, que será em 16 de dezembro e terá renda destinada para a reforma do templo CRISTINA HORTA / EM c m y k c m y k CYAN MAGENTA AMARELO PRETO CYAN MAGENTA AMARELO PRETO pg.00

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DANIEL CAMARGOS

O barulho da chuva no telhado dezinco serve como trilha para o ambien-te desolado. Paredes apenas com o re-boco precisam de pintura. Escadas emcimento grosseiro aguardam revesti-mento. O único luxo são os detalhesem gesso, que ornam a estrutura inter-na, que, por sua vez, se ergue até a torre.À direita de quem entra pela porta prin-cipal da Igreja de São Tarcísio, no bairroNova Cintra, região Oeste de Belo Hori-zonte, repousa solitário um VolkswagenFusca 1977, azul claro.

“Pode escrever aí que é um Fuscaazul-calcinha inteiro”, ordena com hu-mor o pároco, padre Rogério EustáquioFernandes. Indagado se não seria me-lhor dizer que o Fusca é azul-claro, pa-ra combinar com o manto de Nossa Se-nhora ou, quem sabe, para fazer umaharmonia com os vitrais azulados ecom os detalhes do acabamento exter-no – ainda por serem concluídos – deladrilhos brancos, além das grades e de-talhes no mesmo tom, o sacerdote in-siste, já sem disfarçar o riso: “É azul-cal-cinha mesmo”.

Pois o Fusca azul-calcinha está esta-cionado dentro da igreja desde julho,e só sairá de lá em 16 de dezembro, da-

ta da festa que encerra a novena deNatal e que marca o sorteio de umaação entre amigos, cujo grande prê-mio será o mais que abençoado be-souro. A renda, como geralmenteocorre em outras paróquias, será re-vertida para a reforma do templo. Pa-dre Rogério explica que já faz doisanos que assumiu a igreja e que, des-de então, as obras são uma rotina.

Difícil calcular o que falta para dei-xar o templo pronto, mas o padre sabeque a renda do Fusca, avaliado em R$3,5 mil, é pouca. “Se conseguir tirar R$ 5mil com a rifa está ótimo”, afirma, qua-se rezando. A jogada, ou melhor, a esta-cionada do Fusca com a traseira viradapara o altar, foi um golpe de marketingdo padre, que, além do seminário, fezum curso técnico de publicidade. Aosinteressados, cada bilhete custa R$ 5. Adiferença das rifas tradicionais é que onúmero não acompanhará o sorteio daloteria. O padre explica que todos os ca-nhotos serão postos na urna e o vence-dor será sorteado no ápice da festa.

MOTOR Equipado com motor 1.3, omodelo (versão L) do Volkswagen ocu-pa o espaço relativo a três bancos, queforam reposicionados nas laterais, co-mo se estivessem de castigo. Estacio-nado com precisão, o carro fica entreos dois últimos quadros da via-sacra,o sepultamento e a ressurreição deCristo. Um motorista pouco ousadonão se atreveria a passar o Fusca – com1,54m de largura – pela estreita portaprincipal da igreja. “Eu calculei tudo.Ali passa até uma caminhonete (Che-vrolet) S-10”, esnoba o religioso. Po-rém, quando perguntado pelos fiéissobre quem pôs o Fusca ali, ele respon-de: “Foram os anjos de Nossa Senhora”.Indagado se o pneu não esvazia, o pa-dre emenda de primeira: “Não abaixa,porque é de Deus”.

Quem vai à igreja pela primeira vez,estranha a cena. “Perguntam assim:Meu Deus, como o padre Rogério pôs oFusca ali. Outros acham que o carro émeu e que estaciono na frente do altar.Tem também quem fique bravo e falaque igreja é lugar de rezar”, conta o pa-dre. Mas toda a ‘falação’ é consideradapositiva, pois, segundo o pároco, buscauma causa maior, que é a melhoria dotemplo e o sorteio do Fusca mais aben-çoado da cidade.

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Fusca da salvação

Ação entre amigos promovida pela Paróquia de São Tarcísio, no Bairro Nova Cintra,oferece como prêmio um Fusca, que fica dentro da igreja para atrair participantes

Com a singular cor azul-calcinha, Fusca

aguarda, desde julho,em frente ao altar o

sorteio da rifa, que seráem 16 de dezembro eterá renda destinada

para a reforma do templo

CRISTINA HORTA / EM

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