Futebol e globalização: identidades sociais, regionalismo ... · identidade nacional (exercício,...

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1 Futebol e globalização: identidades sociais, regionalismo e emoções políticas (1980-2015) Daniel Vinicius Ferreira Universidade Federal do Paraná O futebol é um espaço social peculiar de comportamento político das pessoas em uma sociedade. Ali revelam-se emoções e identidades, extravasam-se sentimentos e ressentimentos de forma singular. Uma das formas que essas emoções e identidades tomam e tomaram forma historicamente, certamente são através das identidades locais, ou poderíamos chamar de regionais. Nessa linha, entende-se o regionalismo, enquanto processo identitário de afirmação local e como um fenômeno recorrente ao longo da história do futebol, seja no âmbito nacional ou internacional, ao longo dos séculos XX e XXI. O objetivo dessa apresentação é problematizar a categoria regionalismo no futebol a partir, sobretudo, do caso paranaense trabalhando suas relações de alteridades historicamente no recorte 1980-2010, no sentido de estabelecer um aporte teórico básico para trabalhar com a questão das identidades locais no período tido como de globalização e descentramento das identidades. A abordagem proposta se dá através da teoria configuracional de Norbert Elias e a partir de análise de algumas fontes provenientes do campo esportivo paranaense, discutindo o processo de formação das identidades sociais a partir do futebol. Concluiu-se por um aporte teórico que faça referência espacial a configuração regional mais ampla e sua configurações interiores de onde emergem formas de identificações sociais no futebol tensionadas e inter-relacionadas, e que se faça também referência a núcleos configuracionais históricos segmentando o período estudado em recortes menores, destacando a mutação configuracional no decorrer do processo histórico. Palavras-chave: sociedade; futebol; identidades; regionalismo; globalização Introdução Não é novidade que o futebol se apresentou historicamente como um espaço muito rico para expressões identitárias. A recorrência de estudos acerca da temática da identidade e sobretudo da identidade nacional a partir do futebol, no Brasil por exemplo, seria das maiores evidências daquela riqueza. Portanto, podemos considerar o futebol como um espaço peculiar e rico para expressões identitárias, inclusive emoções com viés político de determinados grupos e da própria sociedade em que o esporte se inscreve. Nessa linha, há uma forma de expressão identitária social recorrente historicamente e com viés político que nos chama a atenção e é objeto de estudo desse trabalho: chamamos de regionalismo no futebol. A título de exemplo,

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Futebol e globalização: identidades sociais, regionalismo e emoções políticas (1980-2015)

Daniel Vinicius Ferreira Universidade Federal do Paraná

O futebol é um espaço social peculiar de comportamento político das pessoas em uma sociedade. Ali revelam-se emoções e identidades, extravasam-se sentimentos e ressentimentos de forma singular. Uma das formas que essas emoções e identidades tomam e tomaram forma historicamente, certamente são através das identidades locais, ou poderíamos chamar de regionais. Nessa linha, entende-se o regionalismo, enquanto processo identitário de afirmação local e como um fenômeno recorrente ao longo da história do futebol, seja no âmbito nacional ou internacional, ao longo dos séculos XX e XXI. O objetivo dessa apresentação é problematizar a categoria regionalismo no futebol a partir, sobretudo, do caso paranaense trabalhando suas relações de alteridades historicamente no recorte 1980-2010, no sentido de estabelecer um aporte teórico básico para trabalhar com a questão das identidades locais no período tido como de globalização e descentramento das identidades. A abordagem proposta se dá através da teoria configuracional de Norbert Elias e a partir de análise de algumas fontes provenientes do campo esportivo paranaense, discutindo o processo de formação das identidades sociais a partir do futebol. Concluiu-se por um aporte teórico que faça referência espacial a configuração regional mais ampla e sua configurações interiores de onde emergem formas de identificações sociais no futebol tensionadas e inter-relacionadas, e que se faça também referência a núcleos configuracionais históricos segmentando o período estudado em recortes menores, destacando a mutação configuracional no decorrer do processo histórico. Palavras-chave: sociedade; futebol; identidades; regionalismo; globalização

Introdução

Não é novidade que o futebol se apresentou historicamente como um

espaço muito rico para expressões identitárias. A recorrência de estudos acerca da

temática da identidade e sobretudo da identidade nacional a partir do futebol, no

Brasil por exemplo, seria das maiores evidências daquela riqueza. Portanto,

podemos considerar o futebol como um espaço peculiar e rico para expressões

identitárias, inclusive emoções com viés político de determinados grupos e da

própria sociedade em que o esporte se inscreve.

Nessa linha, há uma forma de expressão identitária social recorrente

historicamente e com viés político que nos chama a atenção e é objeto de estudo

desse trabalho: chamamos de regionalismo no futebol. A título de exemplo,

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poderíamos ilustrar de uma forma breve a manifestação do regionalismo no futebol

como, por exemplo, quando torcedores do Sport Club Internacional ou do Grêmio

Foot Ball Porto Alegrense entoam o grito “Ah eu sou gaúcho!” nas arquibancadas

após os êxitos das suas equipes em torneios nacionais ou internacionais, tal qual o

“Arerê ê ê, a praia de paulista é o Tietê ê ê!” frequentemente ouvido entre torcedores

dos chamados grandes clubes do Rio de Janeiro, e outros do resto do Brasil quando

em confronto com os grandes clubes de São Paulo. Poderíamos citar, também, uma

forma mais aguda e estruturada de regionalismo: o recente movimento “anti-misto”

de torcedores de clubes da região nordeste, que militam para que as pessoas que

residem naquela região torçam apenas para os clubes locais (da região), e não para

clubes locais mais um “grande” clube de fora da região (que seria prática comum no

Nordeste), geralmente de Rio de Janeiro ou São Paulo (VASCONCELOS, 2012). E

finalmente, poderíamos ainda citar a histórica relação entre a identidade catalã e a

identidade do F.C. Barcelona.

Enfim, seriam inúmeros os exemplos possíveis no tempo e no espaço que

poderíamos oferecer para ilustrar a recorrência do fenômeno em que as identidades

no futebol se associam a representações de região e de localidade, construindo um

tipo de alteridade “nós-eles”, ainda que na maioria dos casos tenha se revelado

contraditória no seu próprio interior. Dessa forma, acreditamos que o fenômeno do

regionalismo evidencia os limites para pensar o futebol somente a partir da

identidade nacional (exercício, aliás, tradicionalmente recorrente para o campo de

estudos do esporte que se constituiu no Brasil), e evidencia também a pertinência de

abordar o fenômeno das identidades sociais, a partir de um outro ângulo,

considerando-se assim as fraturas existentes historicamente no interior dessas

configurações nacionais e internacionais, e o próprio contexto histórico através do

qual se manifestam essas identidades.

Mais um argumento que nos motiva a abordar o processo histórico a partir

das identidades e emoções políticas, tendo como ponto de partida o regionalismo é

que no recorte 1980-2015 trata-se de um período frequentemente defendido como

sendo de grandes transformações: a globalização. No aspecto das identidades e dos

sentimentos, fala-se em pós-modernidade, um período de existência não de um

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indivíduo unificado, claramente definido em termos de classe, gênero, sexualidade,

etnia, raça (ou o que importa no nosso caso: de sua nacionalidade ou

regionalidade), mas de um indivíduo fragmentado, descentrado face às modificações

contínuas das estruturas sociais num plano global (HALL, 1992:9). No aspecto

econômico, fala-se em reordenamento do capitalismo e frequentemente se veem

retomadas leituras que enfatizam análises de uma gênese dicotômica ou não sobre

este processo, e a pertinência em pensar a região, o local, como palco desses

acontecimentos: a) seja em confronto sempre desigual e impositivo com os centros

(imperialismo); b) ou ainda, seja num confronto em que há uma certa inter-relação,

ainda que desigual com esses centros (glocalização).E dessas duas formas de se

abordar a questão poderíamos desdobrar em análises que pensam na própria

superação da região enquanto periferia do sistema: a) sejam aquelas (talvez já muito

defasadas) de matriz prebischiana que pensam o desenvolvimento do capitalismo

em torno dos elementos centro/periferia não inevitavelmente sempre integrados de

forma desigual (e que por isso sugerem um etapismo de desenvolvimento social nas

margens do capitalismo); b) sejam aquelas que atacam o que seria um falso binômio

“tradicional-moderno” argumentando uma integração sempre necessária no âmago

da relação desigual entre centro e os satélites, para o próprio desenvolvimento do

capitalismo.

Posto isso, a região objeto de nossa análise será a região do Paraná,

partindo de algumas fontes já do início do século XXI, mas buscando problematizar a

questão das identidades locais no período entre 1980-2015. É importante ressaltar

que nossas fontes incluem periódicos de determinados momentos de campanhas

esportivas de alguns clubes, e outras fontes (como a memória) de pessoas e

determinados círculos sociais (como a imprensa, os profissionais e os torcedores)

ligados a esses clubes que estão muito longe de constituir uma totalidade, ou uma

grande aproximação de expressões identitárias e emoções políticas do que seria

uma pretensa representação geral do “futebol paranaense” ou mesmo da “sociedade

paranaense” de forma bem definida no futebol. Há outros atores interagindo nesses

processos, no período, que não são contemplados de forma explícita pelas nossas

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fontes, os quais pretendemos lançar hipóteses de como participavam nesses

momentos e se relacionavam com eles, seguindo a perspectiva elisiana:

...como o exemplo da melodia, que também não consiste em nada além de notas individuais, mas é diferente de sua soma, ou o exemplo da relação entre a palavra e os sons, a frase e as palavras, o livro e as frases. Todos esses exemplos mostram a mesma coisa: a combinação, as relações de unidades de menor magnitude - ou, para usarmos um termo mais exato, extraído da teoria dos conjuntos, as unidades de potência menor - dão origem a uma unidade de potência maior, que não pode ser compreendida quando suas partes são consideradas em isolamento, independentemente de suas relações. (ELIAS, 1996: 9)

Posto isto, este trabalho vai propor uma breve teorização do fenômeno,

tendo como suporte manifestações dele na mídia esportiva, e através de círculos

sociais ligadas a alguns clubes do Paraná em determinados momentos, destacando

que essas expressões ocorrem dentro de um quadro histórico marcado por rupturas.

Ao final faremos um fechamento da discussão

apontando alguns resultados e considerações sobre um

aporte teórico básico para análise do fenômeno das

identidades sociais locais no futebol em meio a

globalização, entre as quais se destaca o regionalismo.

Identidade social e futebol no Paraná (1980-2015):

de algumas experiências às bases de uma teoria

analítica

Na imagem ao lado, observa-se o “tweet” de

Joaquin Teixeira com o respectivo “retweet” do então

candidato à reeleição da presidência do Clube Atlético

Paranaense, Mário Celso Petraglia, em fins de 2015.

Os “tweets” chamam a atenção, para o presente

trabalho, sobretudo porque ambos abordam e fazem

apologias a formas de identidade no futebol: Teixeira afirma que é “viado” (um termo

pejorativo ao homossexualismo) aquele brasileiro que torce para clubes “não

brasileiros”. E Petraglia, faz um gancho, recolocando a situação em termos

regionais. Em síntese argumenta-se: não torcer para clubes do seu país, ou do seu

estado, significaria falta de hombridade, ingratidão, desonra, falta de caráter e

“Print” do tweet de Joaquin

Teixeira e o retweet de Mário

Celso Petraglia

Fonte: acervo do autor

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coragem do indivíduo, termos que convergiriam para caracterizar um “viado” de uma

forma bem definida. Em última análise, o “viado” (ou os “viados”) seriam inclusive

causa política de um menor desenvolvimento da região ou país onde mora do

indivíduo.

Este episódio nos oferece algumas outras questões que merecem ainda ser

destacadas. Joaquin Teixeira é uma destas “celebridades” transitórias das redes

sociais, e o próprio diálogo se desenrola em uma dessas mídias. Ora, um dos pilares

daquilo que se tem como pós-moderno é justamente a tecnologia, como são

exemplos as redes sociais, em constante avanço (FEATHERSTONE, 1996). No

caso específico dessas redes virtuais (facebook, tweetter, instagram, snap, etc.),

acrescente-se que essas se caracterizam justamente pela mudança, pela marca do

efêmero, do fugaz: são “posts”, “tweets”, imagens, que ficam em evidência até que

uma nova atualização (ou um período de tempo, no caso do snap) coloque a antiga

fora de foco.

Fato é que ambos (Petraglia e Teixeira) destacam formas de identidade.

Nosso interesse é desvendar e problematizar o sentido da identidade paranaense

construída por Petraglia, já que o discurso emitido pelo dirigente não é um caso

isolado na região no período, pelo contrário. Com essa abordagem pretendemos

buscar entender o sentido desse discurso da construção de identidades regionais

“paranaenses” no futebol no recorte 1980-2015, adentrar ao debate das emoções

políticas e sobretudo construir as bases teóricas fundamentais para análise das

identidades locais no período da globalização.

Antes de mais nada, nos parece claro duas evidências na construção de

paranidade efetuada por Petraglia.

Primeiro, o dirigente parece estabelecer uma totalidade, para todos os

aqueles que residem no estado do Paraná de serem considerados

incondicionalmente como cidadãos paranaenses. Diante disso, estabelece uma

ligação entre esta condição política e a paixão clubística. Dessa forma, ele parece

fazer uma menção dissimulada aos ideais de projeto de modernidade que inspiraram

a criação dos Estados nacionais (e por consequência as unidades federativas), ou

seja o comprometimento político público com uma ideia identitária considerada

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essência e universalizada a todos os indivíduos que residem num determinado

território geográfico e de contornos administrativos políticos bem demarcados (como

o Brasil, França ou Estados Unidos, por exemplo). O sentido é de que se são

essencialmente paranaenses deveriam todos (dentro daquele ideal) racionalmente

torcer pelos times dos seu “território”, já que isso conotaria um comprometimento e

possibilidade de desenvolvimento de si e de sua comunidade política.

Segundo, o dirigente parece estabelecer um ideal de comprometimento

clubístico (de raiz política) em contraste com o que tem se evidenciado cada vez

mais nos círculos futebolístico na chamada era espetacularizada (PRONI, 2000) do

desporto. Petraglia parece fazer alusão a uma forma de torcer em declínio, ou pelo

menos em menos evidência, uma forma muito comum na História do futebol

tradicionalmente, que Arlei Damo chamou de pertencimento clubístico. Damo

explicou esse sentimento como uma vivência do torcedor que ultrapassa o jogo em

si, constituindo um laço mais duradouro, fazendo parte o dia-dia do indivíduo

(acompanha notícias, discute com amigos, tira sarro do rival), e se dá geralmente a

partir de uma rede de tradição e mais pessoalizada, constituindo “laços de sangue”

que remeteriam a ideais de comprometimento e talvez com raízes na cultura

patriarcal. Entretanto, a partir da década de 50/60 há o surgimento do que os

historiadores chamam de “sociedade do consumo”, e o próprio campo esportivo

também adota princípios do futebol como negócio e produto para consumo. Isso

repercute na própria vivência do futebol, e nas formas de torcer. No plano dos

sentimentos o consumismo é visto cada vez mais como um “estilo de vida”: é preciso

estar sempre consumindo numa realidade fluida para a própria “boa” inserção nessa

realidade: os signos consumidos associam e oferecem status social a pessoa (um

carro, uma roupa, uma viagem, ou um clube de futebol, etc.). Ou seja, no século XXI,

nos círculos mais protagonistas do desporto, é cada vez mais disseminado o ideal

de torcer por um clube não por uma paixão incondicional, mas sobretudo para

associar-se a uma identidade vencedora, marcante, destacada, enfim espetacular.

Condições que os clubes mais ricos do planeta tem mais possibilidade de atingir e

oferecer ao seu público em relação aos outros. Ocorre, conforme já ressaltado, que

discurso de Petraglia não é único nesse sentido na região. Mais ou menos por essa

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época (2011), o clube rival do clube do dirigente na cidade, o Coritiba Foot Ball Club,

lançava uma campanha denominada “Amo minha terra,

torço pelo meu estado!”, que também relacionava a região

de residência do cidadão com o clube que “deveria” torcer.

Outros episódios na região, no mesmo período, também

seguiriam na mesma linha, como por exemplo quando

torcedores locais empunharam uma faixa com os dizeres

“Vergonha” na divisa entre as torcidas, e uma flecha desenhada apontando para o

espaço de torcedores adversários (no entendimento de que a maioria que residiria

em Curitiba, mas não torcia para os clubes locais) numa ocasião de enfrentamento

Coritiba F.C. x S.C. Corinthians. Ainda, na mídia local, o discurso de mesmo viés no

período também foi recorrente, como por exemplo na charge ao lado, publicada em

um dos jornais de maior circulação na região.

Enfim, o que queremos apontar com esses exemplos é que não se trata de

um discurso pontual, por exemplo, apenas na mídia, só entre os dirigentes, ou

apenas entre as torcidas. Mas que supera esses limites, nos parecendo constituir um

discurso de uma comunidade mais integrada e coesa.

Nessa linha, o primeiro elemento que nos parece um dos

principais a ser considerado em nossa base teórica, na análise das identidades

sociais no futebol, seria o que Amaro chamou de Sentimento de Pertencimento

Comunitário, da seguinte forma:

...um sentimento de pertença que os membros possuem, de que os membros se preocupam uns com os outros e com o grupo, e uma fé partilhada de que as necessidades dos membros serão satisfeitas através do compromisso de permanecerem juntos (...) o SPC é composto por quatro elementos: Estatuto de Membro, Ligações Emocionais Partilhadas, Influência, Integração e Satisfação de Necessidades1 (AMARO, 2007 :25).

1 De forma sintética, estatuto de membro significaria um o sentimento de pertença ou de partilhar um

relacionamento pessoal. Já as ligações emocionais partilhadas, seria um sentimento de intimidade resultante do

“compromisso e crença de que os membros partilharam e irão partilhar história, lugares comuns, tempo juntos, e

experiências similares”. Quanto à influência remeteria a um “sentimento de importância mútua, de fazer a

diferença para o grupo e de o grupo ser importante para os seus membros”. Finalmente Integração e Satisfação

de Necessidades, estaria relacionado “ao sentimento de que as necessidades dos membros serão satisfeitas pelos

recursos recebidos pelo seu estatuto de membro no grupo”. Através do sentimento de satisfação das necessidades

individuais, o sentimento de pertença ao grupo é positivamente reforçado e os membros são motivados a manter

o seu envolvimento no grupo

Charge “Los três inimigos”.

Fonte: acervo do autor.

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Posto isso, cabe perguntar a abrangência desse sentimento no interior de

uma configuração, como por exemplo, seria esse SPC disseminado a todo território

geográfico da unidade federativa paranaense no período? Segundo as memórias de

um cronista local, não. Acompanhe-se:

Há bem pouco foi feito uma pesquisa e deu Corinthians. Mas o Corinthians não é Curitiba. “Corinthians do estado é o mais...”: Corinthians é norte! Porque o estado do Paraná, ele é retalhado. A cultura é diferente. Olha, a força do nosso futebol vai num raio de 150 Km. Londrina: quando tem um Atletiba eles fazem [transmitem] Palmeiras e XV de Piracicaba. Eles não fazem o Atletiba, eles não querem essa ligação. Você vai a Maringá é a mesma coisa, é o time de lá (às vezes nem tem!), mas é o futebol de São Paulo. Vai lá no é Sudoeste, em Cascavel, quando não é o Inter é o Grêmio. E nós falamos para 150 (Km), então nós temos que nos defender, criar um biombo pra isso (HIDALGO, 2011).

Por outro lado, crônicas de um jornal de Londrina no ano de 1978, momento

de uma campanha considerada muito surpreendente e positiva do Londrina E.C. no

campeonato brasileiro daquele ano (ficaria em 4º na classificação final), nos

oferecem outra perspectiva. Elas também fazem alusão a formas de identificação

social, emoções políticas no futebol, e um discurso de paranismo, e nos oferece

mais elementos para entendimento dessa questão. Na ocasião, o jornal trazia

discursos que exaltavam também uma forma de identidade social, paranismo, mas

que frequentemente associava a condição de sucesso esportivo e social como pré-

requisito para que ocorresse efetivamente uma identificação maior da população

daquela localidade como paranaenses, numa causa comum e inscritos numa

coletividade local, e não como migrantes de outras partes do Brasil. Ou seja o

londrinense se aceitaria como um paranaense vencedor, não como um paranaense

perdedor. Essa estima de si portanto estabelece uma certa ligação com a ideia de

mérito de si, trazendo de forma dissimulada uma emoção política (a fé na

meritocracia esportiva e por tabela econômica) como associada ao paranismo

londrinense no período. Ainda, foi frequente naquele momento a exaltação do

interior do Brasil, e o Londrina seria um desses símbolos, como o celeiro do

desenvolvimento do país:

Independe do aspecto esportivo do ambiente e das festas que se realizam em toda a região há um aspecto que deve merecer destaque: talvez pela

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primeira vez a alegria, a união, a emotividade não são produzidos por eventos externos, pela vitória de uma equipe paulista, carioca, mineira, ou gaúcha, mas pelo triunfo de um representante da própria região. Não se trata, como aliás se deve frisar sempre, de um tipo de espírito bairrista que se pretende observar, nem de pretender que cada um dos brasileiros que formaram no norte do Paraná reneguem suas origens. Bem pelo contrário. É fundamental que o ser humano tenha amor às suas raízes. Um povo, como um homem, não existe sem história. E o culto ao passado faz parte da própria civilidade e evolução de uma nacionalidade do mesmo modo que a manutenção do amor ao local de origem é demonstrativa de sentimentos que enobrece o homem. Mas é natural que se pretenda ver formar, igualmente, um sentimento paralelo de amor, de gratidão de união, em relação ao local que, não sendo o de nascimento, é o de eleição de milhões de brasileiros que aqui vieram com seus sonhos e puderam realizar, em boa parte, suas aspirações. A união regional, a vibração intensa que se observa, constituem um verdadeiro marco, indicativo de vai se aprofundando a consciência daquilo que se pode chamar povo norte-paranaense. Ademais, do mesmo modo que se verbera aquilo que se chama de colonialismo cultural do Brasil em relação a nações mais adiantadas, notadamente os Estados Unidos, há de se desejar que no sentido regional e mesmo estadual haja igualmente, um espírito paranista. Tal espírito, porém, sabe-se, não se forma por vontade própria. É algo até inconsciente. O paulista vibra com as coisas de seu Estado, assim como o carioca, o gaúcho, o mineiro, naturalmente. Mas na medida em que todos indistintamente se unem na mesma sintonia, em torno de um avante como a propiciada pelas vitórias do Londrina Esporte Clube, isto indica exatamente o surgimento daquele espírito que constitui a grande argamassa que forma a civilização de um Estado, de uma região (FOLHA DE LONDRINA, 1978: 2).

Conforme se vê há um discurso de paranismo em Londrina nessa ocasião.

Entretanto seria precipitado afirmar que constitui um SPC com alguma sintonia com

Curitiba, ou outro SPC, na medida em que o discurso figura em um jornal, e não

possuímos outros relatos fora deste agente do campo midiático no período que nos

possibilitasse afirmar como um discurso e sentimento disseminados. Mas seria

precipitado também considerar esse discurso, ainda que disseminado na

comunidade londrinense e suas adjacências, ou mesmo na condição (absurda) de

abarcar todo o interior do Paraná de uma forma homogênea, formando então um

“SPC paranaense do interior”, como um elemento fundamental para fornecer as

bases teóricas para o entendimento das identidades sociais no futebol período de

uma forma definitiva. Isso porque o entendimento básico do campo esportivo no

recorte 1980-2015 nos revela um período de grandes transformações no interior do

campo esportivo, e para além dele, seja no campo social do território paranaense

brasileiro e mundial, que de forma alguma nos permite considerar um paranismo do

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interior no campo esportivo dos inícios de 1980 seja próximo a um paranismo

curitibano de inícios do século XXI. Há aí dois elementos fundamentais que precisam

ser desenvolvidos, enquanto suporte teórico, para o entendimento das identidades

sociais em um determinado período. Primeiro: o território paranaense como uma

configuração espacialmente ampla e heterogênea, com a possibilidade de existência

em seu interior de figurações menores, espaciais (citadinas, por exemplo)

tensionadas e inter-relacionadas. Segundo: as configurações são temporais,

portanto reuniram diferentes condições históricas na curta e curtíssima duração, que

deram vazão às emoções políticas, dentro de um período maior de média duração

(1980-2015).

Considerações finais

Nesse estágio de pesquisa, podemos emitir algumas considerações acerca

das bases teóricas para análise das identidades sociais no período.

Primeiro: é preciso iniciar com um mapeamento dos contornos desse SPC e

suas próprias contradições internas, construindo uma configuração espacial com

números (bases concretas) e formas culturais básicas (bases mais subjetivas), para

fins de análise. Uma fonte que parece primordial para tal análise, seria partir de

dados de pesquisas sobre números de torcedores de clubes no estado e no país

dentro deste determinado recorte temporal. Outra forma (não excludente com a

anterior) seria a entrevista com personagens do próprio campo esportivo e do campo

social curitibano e interiorano(s) para além do campo esportivo, não só a fim de

colher relatos para saber o universo dessa abrangência de SPC, mas também

entender como se constrói esse discurso, os sentimentos que o sustentam e suas

contradições. Contradições porque, por exemplo, entre os clubes de Curitiba - e

outros mais ao redor do mundo de uma mesma comunidade – existiram e existem,

recorrentemente, fortes rivalidades entre os clubes de uma mesma comunidade, o

que a princípio pareceria paradoxal com uma ideia de unidade entre eles em uma

identidade ou causa em comum.

Essas análises precisam ser feitas em consonância com outros elementos,

ainda no sentido de mapear esse SPC e essa (s) comunidade(s), tais como a)

tamanho populacional da cidade e do estado e suas adjacências; b) como se deu a

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formação e o crescimento da cidade e do estado em termos de migração no período;

c) um breve panorama sobre a relevância econômica, social, cultural e política da

região no país; d) que tipo de ligação, inter-relações ou isolamento cultural existem e

constituem comunidades mais coesas internamente na configuração do território em

que emerge a identidade local (por exemplo, alguns autores falam ser possível

subdividir o Paraná culturalmente em sub-regiões, em comunidades, como a

comunidade curitibana, ou a do norte de Paraná por exemplo). Isto porque são

justamente esses elementos que convergem para a formação e manutenção de um

comunidade do qual emergem os clubes de Curitiba (por exemplo) e um capital não

torcedor destes clubes, cujo discurso de paranismo curitibano faz referência (ainda

que dissimulado) e estabelece relações. Ao mesmo tempo, a compreensão desses

elementos nos servem de embasamento para compreender e situar o sentido do

discurso dos paranismos que se percebe no período, e sobre a inserção e relevância

dessas comunidades num território de provavelmente outras comunidades e

discursos de localidade, no futebol. Ainda nesse exercício de mapeamento, e) qual o

impacto das mídia (s) local (is) ligada a essa (s) comunidade (s) e sua inserção entre

as mídias do país Também, f) que emoções políticas se manifestam nessa

comunidade através dessa identidade social no futebol (como o de modernidade

associado à unidade federativa, ou supostamente de meritocracia, racismo, de

homofobia, entre outros, por exemplo), evidenciando permanências históricas de

cunho político que se associam a expressão de uma identidade local. E ainda, g)

quais os entendimentos da “cultura do torcer” em evidência no período

(pertencimento clubístico ou consumo, por exemplo) nesse local e como a

comunidade reage e se comporta em relação a elas. Enfim, é preciso entender o

território geográfico do estado do Paraná como uma configuração mais ampla, em

cujo interior residem comunidades tensionadas construindo discursos e identidades

motivada por emoções políticas e atravessada por elementos configuracionais em

mutação, consagrando alguns discursos e invisibilizando outros..

2)Outro fator, que precisa ser levado em conta para análise das identidades

sociais em um determinado período, é identificá-lo dentro de um dado recorte

histórico, um núcleo configuracional histórico, conforme se viu. Esse núcleo precisa

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ser construído destacando-se e analisando alguns elementos e agentes

considerados relevantes para o entendimento dessas expressões, e essa

construção precisa ser feita em diálogo com análise das fontes.

Por exemplo, de uma forma geral, o entendimento desse paranismo

curitibano dos inícios do século XXI, certamente passa pelo entendimento do

enfraquecimento do Clube dos 13 como um projeto de desenvolvimento do futebol

brasileiro, do aumento considerável de receitas advindas da TV ligada a grande

distância financeira que se dá no período, na qual os “grandes” clubes do Rio e São

Paulo passam a deter em relação aos clubes de Curitiba devido ao seu capital

torcedor maior. Isso, em tese, permitiria que formassem equipes melhores que as

dos clubes do Paraná e pudessem destacar mais nos campeonatos, sobretudo

quando o torneio nacional passa a adotar o formato dos pontos corridos (2003), o

que não acontecia, por exemplo, na época (1978) em que o Londrina E. C. se

destacou. Ainda, nesse período, a própria exposição social na mídia que aqueles

passam a deter em relação aos clubes de Curitiba e a correlata maior capacidade de

angariar torcedores por esse motivo, inclusive no interior do Paraná, numa

abordagem mais por um ideal de consumismo e de espetacularização, do que por

pertencimento clubístico e tradição, seria outro motivo que poderia explicar o

ressentimento do discurso na comunidade curitibana, tomando forma num

paranismo que exalta ideais de modernidade e formas tradicionais.

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