g. Lebrun, A Mutacao Da Obra de Arte

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discurso, é que ele estima ser normal comportar-se como metrone faze, de tal i ^ b q u e « a interpretação do «justo» valha como norma. E asstm cue o "estado de natureza" perdura, absurdamente, na Republica. Se Hobbes se separa de Platão, não é, pois, absolutamente porque retorna a Protágoras. Muito ao contrário - Que é, com efeito, platom 7 ar» - É antes de tudo,crer-se em medida de contemplar a ousta e decidi, no universal; é, portanto, ainda e sempre, pôr-se, mesmo meonseten,, mente, como Jtron. Assim, o Saber, essa fórmula que os gregos de a dentes» encontraram para suplantar (idealmente) a iscordanci^o de fato no curso dos séculos, senão a mais alta manifestação do homem medida" ("esses fitósofos fabricavam as regras do ien e do mau^ forme àquilo que,pessoalmente,gostavam e não gostavam ). b Protago, • silenciosamente ganhou a partida, graças àqueles mesmos que pensava , tê-lo vencido. Ruptura com Platão, portanto, mas somente porque .-1, havia substituído o "homem-medida" pelo "filósofo-medida A «h»- dia .amais é extinta e a universalidade, realizada, a não ser onde cada MM. abdica da condição de métron e, especialmente, de « « pretensão pessoal, legiferar "no universal" - onde todos consentem em viver na l . n g u y e ,,o Commonweedth tais como foram instituídos isto é tais como - W logo se impõem aos homens. Ao deslocar a realização da verdade Saber para a Instituição, ao fazer permutar a phústs e o « , » « , H. W - realiza assim o mais audacioso salvamento do platomsmo. Mietzsche colocava Hobbes entre aqueles que aviltaram ou d - v , tomaram o conceito d e filósofo". Não seria malevolência de sua .. para com um admirador de Tucídides? - Ainda dessa vez. o l: I. "genealogista" de Nietzsche não o enganou. A mutação da obra de arte Trataremos aqui da mutação da obra de arte: não. porém, da mutação ocorrida neste século das formas de arte, mas da q„e se refere ao s S da expressão "uma obra de arte". E uma mutação conceituai - e talvez tão proiunda que possa estar dando à palavra "arte", sem o percebermos um sentido que ,a não tenha nada que ver com o corrente no século passado Essa mutação, devida a técnicas novas (disco, rádio) e artes no- Z u T Cmema ' KleVÍS20) ' nin 8 uém P re5se "' iu melhor do que Walter Benjamin, em seu ensaio sobre "A obra de atte na era da ua reprodutibilidade técnica».' Partindo de uma indicação de Paul Valéry Benjaminprocura ver, com base em alguns exemplos, como as técnicas «ovas podem chegar a transformar «a própria noção da atte". £ todos os ucemplos que analisa convergem para o que ele designa como o declínio da aura da obra de arte. O que devemos entender por isso? Uma frase de vaiery nos encaminha para esta noção: Reconhecemos a obra de arte pelo fato de ^ nenhuma idéia <,ue ela suscita em nos nenhumato 9ue ela nos sugere pode esgotá-la ou eoncluí-la [...1 e na~o ha lembrança, pensamento ou ação empossa anular-lhe c efeito ou libertar- nos inteiramente do seu poder. 2 A « m designa o fato de que a coisa se dá como enigmática o oastante qUe " enhuma contemplação possa esgotar sua significação. Segundo I aul Vaiery, Piècessur i*an, apud W. Benjamin, op. cie., p. 3.

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discurso, é que ele estima ser normal comportar-se como metrone faze, de tal i ^ b q u e « a interpretação do «justo» valha como norma. E asstm cue o "estado de natureza" perdura, absurdamente, na Republica.

Se Hobbes se separa de Platão, não é, pois, absolutamente porque retorna a Protágoras. Muito ao contrário - Que é, com efeito, platom

7ar» - É antes de tudo,crer-se em medida de contemplar a ousta e decidi, no universal; é, portanto, ainda e sempre, pôr-se, mesmo meonseten,, mente, como Jtron. Assim, o Saber, essa fórmula que os gregos de a dentes» encontraram para suplantar (idealmente) a i s c o r d a n c i ^ o

de fato no curso dos séculos, senão a mais alta manifestação do homem medida" ("esses fitósofos fabricavam as regras do ien e do mau^ forme àquilo que,pessoalmente,gostavam e não gostavam ). b Protago, • silenciosamente ganhou a partida, graças àqueles mesmos que pensava , tê-lo vencido. Ruptura com Platão, portanto, mas somente porque .-1, havia substituído o "homem-medida" pelo "filósofo-medida A « h » -dia .amais é extinta e a universalidade, realizada, a não ser onde cada MM. abdica da condição de métron e, especialmente, de « « pretensãopessoa l , legiferar "no universal" - onde todos consentem em viver na l . n g u y e ,,o Commonweedth tais como foram instituídos isto é tais como - W logo se impõem aos homens. Ao deslocar a realização da verdade Saber para a Instituição, ao fazer permutar a phústs e o « , » « , H. W-realiza assim o mais audacioso salvamento do platomsmo.

Mietzsche colocava Hobbes entre aqueles que aviltaram ou d - v , tomaram o conceito de filósofo". Não seria malevolência de sua .. para com um admirador de Tucídides? - Ainda dessa vez. o l: I.

"genealogista" de Nietzsche não o enganou.

A mutação da obra de arte

Trataremos aqui da mutação da obra de arte: não. porém, da mutação ocorrida neste século das formas de arte, m a s da q„e se refere ao s S da expressão "uma obra de arte". E uma mutação conceituai - e talvez tão proiunda que possa estar dando à palavra "arte", sem o percebermos um sentido que ,a não tenha nada que ver com o corrente no século passado

Essa mutação, devida a técnicas novas (disco, rádio) e artes no-

Z u T C m e m a ' K l e V Í S 2 0 ) ' n i n 8 u é m P r e 5 s e " ' i u melhor do que Walter Benjamin, em seu ensaio sobre "A obra de atte na era da ua reprodutibilidade técnica».' Partindo de uma indicação de Paul Valéry Benjaminprocura ver, com base em alguns exemplos, como as técnicas «ovas podem chegar a transformar «a própria noção da atte". £ todos os ucemplos que analisa convergem para o que ele designa como o declínio da aura da obra de arte. O que devemos entender por isso? Uma frase de vaiery nos encaminha para esta noção:

Reconhecemos a obra de arte pelo fato de ^ nenhuma idéia <,ue ela suscita em nos nenhumato 9ue ela nos sugere pode esgotá-la ou eoncluí-la [...1 e na~o ha lembrança, pensamento ou ação empossa anular-lhe c efeito ou libertar-nos inteiramente do seu poder.2

A « m designa o fato de que a coisa se dá como enigmática o oastante q U e " e n h u m a contemplação possa esgotar sua significação. Segundo

I aul Vaiery, Piècessur i*an, apud W. Benjamin, op. cie., p. 3.

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Benjarnin, "poder-se-ia defini-la como a única aparição duma realidade longínqua, por mais próxima que esteja". Ora, por que o público de hoje se toma cada vez menos atento a esse inesgotável excedente de significado e, por isso mesmo, cada vez menos preocupado com a singularidade e a autenticidade da obra de arte? Há um aforismo de Nietzsche que anuncia, ao longe, a resposta que Benjarnin dará a essa questão. É o seguinte:

Num monumento grego ou cristão, originalmente tudo dnha significação, <• isso por referência a uma ordem superior das coisas: essa atmosfera de sigm' ficaçno inesgotável envolvia o monumento como um véu mágico. A belc-;a entrava acessoriamente no sistema, mas sem prejudicar em sua essência >• sentimento fundamental de uma realidade sublime e inquietante,, consagrai! • pela presença divina e pela magia: a beltra quando muito temperava o horn»

— mas este horror sempre estava pressuposto. — Em que consiste para nós, ago< > a beleza dc um monumento? No que é um belo rosto de mulher sem espirite-numa espécie de máscara.

Nessas linhas, Nietzsche implicitamente distingue duas eras da obra <!• arte: a da veneração e a da beleza pura. A era da veneração encerr.» se ao nascer a estética, enquanto reflexão filosófica e, mais ainchu <•(< quanto ciência. Como bem exprime a frase de Hegel: "Hoje estamu-, muito longe de venerar, como divinas, as obras de arte". Subtraída ;u culto de que era essencialmente instrumento, a obra apenas fica olW< cida ao "prazer puro" — simples objeto de consumo "estético" (pode • mostrar que uma tal figura cultural é inseparável do desenvolvimcrj.. da economia de mercado). É esta a segunda era da obra de arte ••!.< cujo declínio "Walter Benjarnin assinala. Na primeira, é a svtblimidu i que predomina. Na segunda, que se abre no século xvin, é uma reU,.»»> de prazer que mede o valor da obra.

O que Walter Benjarnin acrescenta, e com profundidade, 6 qu • > corte não é, porém, tão nítido. A aura que se concede (ou que se * J> cedia) à obra bela é justamente o sinal de que esta obra, por laici/.nl, que seja, nem por isso se vê clessacralizada. É o que Kant já desa;l>i u . ao definir "o gênio artístico" como a faculdade das Idéias estética: * > que é uma Idéia estética? É "uma representação da imaginação ••[•*•

3. Friedrich Nietzsche, Menschiich-All\umemcklichesy n1: 118 [ed. bras.: Humano, o'<./<•.>

humano, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2.000].

dá muito a pensar, sem que nenhum pensamento determinado, i s ioé nenhum cor.czito^ possa ser-lhe acec uado, e que portarao ner.hu n= In gua pode completamente exprimir 5 tomar inte.igivel33.* E-quanto b r animada por urra Idéia estética, a representação nunca ser! d«:miraca conceitua lmen te: é portanto impossível que um co~entário C:L CR.3 ex-plicação técnica dêem conra òc impacto que a obra procuc em mim.,. E, na medida em que a obra bela é caracterizada por este desafio cie toda compreensão conceptuai exaustiva, pode-se pergunte: se a repre-sentação "estética" não substixi o ár.imc religioso. Sem dúvica» seria possível escrever a história do Belo, no século XK, como sendo ^m substituto do sentimento religioso: o es ter is mo, c culto da genialidade são formas de religiosidade...

Contudo, essa sobrevivência religiosa não basearia ;>ara def in i ra clra Uia no sentido kantiario. Es:a é, simultaneamente, um tema cie en-cantamento e um tema de "simples prazer" - e não é segui o c.ue duas componentes não sejam, alongo termo, divergentes. Ma ideologia da Beleza, observa Walter Benjamim, opunham-se doi= fatores: per íun lado, o valor que se continuava atribuindo à obra encuaoio objeto <ie fascínio, mediação do Absoluto—por outro, a idéis de que a cora ê ama realicace a exibir, e depois, graças ac progresso técnico, a •divulgar — e a divulgar para um público cada vez mais amplo. Hab ermas mostrou bem. no seu livro a Mudwça estrutural da. esferipublica.^ com.c os con-certos abertos a um público pagante, cs museus, as exposições (coisas rue. hoje, nos parecem tão óbvias) foram, no séculc xviir, concuisias podíacas da burguesia. E esta observação vai muite aJémda socic ogia da arte: diz respeito à própria essência da obra de arre. Mão se uinna •»arao mercado como se pintava oara um mecenas. tSao se concebe o entro Beaubourgf como se concebia um castelo de recreação rei.

.\> palavras "pintura", "arquitetura", ''decoração'5 podem permanecer, mas nac se trata mais do mesmo tipo de produção.

Ora, á evidente que tal preocupação (tar.tas vezes ce erigem co-ínutcial) de exibir e divulgar é incompatível com a conservação do íialc 1 'ligioso, com a manutenção ca aura. Como, por exemplo, ovs lordc

1 ) nmauuel Kam Kritik ac- UrtelUkrafi [Crítica d? juízo], $4.;. i tahertn=s, Svukinrvandei dar Ojjzniííchkni? [ec. bras. Mmlur.it est/euc-nr> {a eyjSra pú-

•'<•<• trac.. F. R. fú>the. Rio de Janeiro: Terr.po Brasileiro, 10S4J. [m e . ]

. t t Vrrrc Gücrgts Pcnpiclou. em Faris. f>r E.j

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autenticidade que se prende a uma obra poderá resistir por muito tempo (excetuado o caso dos colecionadores) às reproduções fotográ-ficas aperfeiçoadas? Por que fazer uma peregrinação ao Louvre eu ac Rijksmuseum, quando as edições Skira nos permitem admita? quase tão bem e analisar melhor ainda a Gioconda ou a Renda noturna? — Por quê, dizia-me recentemente uma senhora sensata, ser esmagada pela multi-dão e correr o risco de me roubarem a bolsai, quando posso ver tnelhcr o papa pela televisão? Mesmo levando em conta que João Paulo LI não é uma obra de arte, essa reflexão diz tudo sobre a perda do valor de autenticidade na era da difusão da imagem. A obra não e mais um hic etnunc que se deve visitar no seu antro, experimentar nc- seu ambiente. O modelo do objeto único oferecido num único lugar ("Ame o cite nunca será visto duas vezes") é substituído pelo da partitura music=!v

que pode ser executada por uma infinidade de orquestras, O modelo do "monstro sagrado" que era preciso ver, pelo menos uma vez,, "em carne e osso", no palco, é substituído pelo da imagem íllrcuca, espalhada em mil cópias. Como, nessas condições, poderia continuar funcionando o critério da autenticidade? Mas com isso. acrescenta Walter Benjjamím

"toda a função da arte é subvertida". A ane3 per princípio, não ê mais uma forma da cultura que nos convoca à contemplação e ao recolhi-mento. Isso é sinal da sua degeneresesneia? isso quer dizer que nossa época, "materialista" e "tecnicista", só poderia deixar ecleclir uma arte de diversão, completada por algumas elucubrações de estetas?

Um dos grandes méritos de WaLtet Benjarnin foi prever.:*'-nos contra um diagnóstico tão apressado — já per citar esse texto, tac im -pressionante, de Brecht:

Desde que & oèra de arte se corna mercadoria, esta naeãv (de chra de arte^ja não pode mais ser-lhe aplicada; assim sendo, deventos^ com prudência e pre-caução — mas sem receio — renunciar a noção de ohra de. arte, case áeseje^u? preservar suafunção dentro da própria coisa como tat designada. Trata-se <u-uma fase que épreciso atravessar sem dissimulações; essa vvaaa. não é gr:i nata, da condia a uma transformação fundamente! da objete £ que zpago seu passado a tal ponto que caso a nova nocãc deva reencontrar seu. use. — t porque nãof — não evocará mais quaisquer das temi-anca? vinculadas á ji. , antiga significação.7

7. Bettolt Brecht, apud W. Benjarnin, in op. cic., p. iz.

Eir suma, a arte, como era compreendida por nossos ancestrais,. z cc isâ. que não exLSte mais. Está sendo substituída por outra coisa, que po ie continuar cctn o mesmo nome, mas n i o tem mais nada ar . c c m o a com ela quanro ao referente. Essa observação pode parecer estten.5ta.

''terrorista". Parecerá tim pojco trenós, se a aproximarmosce cutrc teaco que, na década de iSso. profetizava a morte da arte.

£ fato jue a arte não gzfüRte mzL5 es ri satisfação das necessidades zszirimiaL; ?ue outros tempos buscaram nua. c «̂<3 outros povos só encontrarei j. ..L Os t?elos dias da arte gre$a c a Jdide dt Ouro da Baixa Idade A-íetau se l í c j e , a cultura reflexiva da vi d ?. é tal ...1 quz são as formes-ter--: vertais,

as leis, os deveres, os d^eitos, c« mixtmas que vaiem como moci-^s e ;áj»i preponderância. [...] A 5rte e pca n<í.r, cmanto â destinação supuma» roEJ<a

do passado. [,..] Tudo o que ela tinha de autenticamente verdadeira c rd-? sc

perde kpara nas e> em ve{ de a'-frm ar c sita n scessidade m real e crup• 3? xu&s o lugar mais atro, agora é apenas aige: -ehgnào à nossa representarão/

Er.tre o texto de Brechte esse de Eegelhá, pelo menos., uma c.rergiça. Enquanto Brecht admite que uma "arte" inteiramente nova pode sjee-der àquilo que o século xpc chamava de "belas-artes", Hegsl mão mes-tra» a mesma amplidão de espírito. Para ele, a ''arte" é uma fotm.sçãotãc bem determinada de uma vex por todas que, se perecer, nsda pederã substitui-la, Nem por um segundo He gel pensa que está press e ad ido

0 Am de certo ciclo semântico da oalavra "arte"; nem sequer imagina que o termo "obra de arte" poderia designar, no futuro, corneúdzs in-teiramente distintos.

Já o nosso século xx c rr.ais rela invista. Haie se tornou Trivial re-cordar cue c nosso conceito de "cora ee arte" é de formação recente -que a distinção er.tre artista e artesão se impôs apenas no fim do século xvi n - e cue um grego do século rv a .C. diante doDoríforode Fc boleto (•li um monge do século xut diante de uma Virgem górica segui:mente não tinham a sensação de contemplarem uma coisa destinada a p r o o r -cicnar-lfies um prazer esréticc. E isso pela simples razão dfeqits a noção <k "prazer estético" também é uma descoberta recente — assim como a

1 HSgel.Âsthetik(larradu^0),5nSè'-r.:á'ce.a Ifcrkt, Juoiirzumsau<gzh.cX I r,{. { « r Siuttgstt, FrcTnmãim, 1949, V. XJI, a 53 [só. bras.: Cursos de estéucz, tir*cJ JU A. I %'n. l̂ r.ibzEdusp. 1999,0.35.

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própria "estética", enquanto estudo date lezar .3 arte. É Xant q u e , e n 1790, determina o caráter "estético" de ura :òjc:o pe:o lato de ser este capaz de dar-me, quando o percebo, u n n p n ^ r p w , istc é, um p:£2£: independente de qualquer motivação interessada (ideológica, utilitá-ria, erótica ele.). A partir cesse momento, a cère-ae arie encuanto tal ganha um estatuto. A palavra designa ura produto que é destinado a gersr, no receptor, um prazer puro, eu ainda: a. ser ccxrdrnpiadc. Fois as duss coisas dão no mesmo. "Enquanto o desejo", escreve SchiLet. "apreende imediatamente o seu objete, a contemplação afasta o se - e faz dele a sus propriedade autêntica e irrevogável por tão-somente subtraí-lo à pai-xão.''' E acrescenta que a contemplação é "dos eme libzrah Ferhilxiir" {a primeira atitude liberal] do homem para com o mim de./ A qussiac é saber se o que boje entendemos por "obra de arte" ecr.cir.ua essen-cialmente ligado a essa atitude de contemplucãc. ccmo pensavam Iíatil, Schiller ou Hegel.

Se não mais estiver, isso não deverá surpreender ou escandalizar, pois o conceito de obra de arte constituído naquela época estava mar-cado por muitas valorizações implícitas, e até mesmo pet vár iosparus pris. Não é qualquer espécie de obra que suscita essa atração moscada de respeito que se chama contemplação. Acontece tratar-se, por excelên-cia, de uma obra visual: era a partir da escultura e pintura amigas que Winckelmann definia o cânone da beleza - e sabe-se que, para Hegel, a escultura grega representa o momento err. cjue a arte atinge me.he." o sau equilíbrio e realiza melhor o seu conceito. Passado esse apogeu, a arte só poderá declinar. Pois a Estiliza de Hegel á tanto a história da evo-lução da arte como a do seu declínio inevitável: a arte se dirige para o -DOnto em que a sua missãc espiritual será consumada - em que as su: obras não serão mais que objetos oferecidos â curiosidade histórica. - Por cue, segundo Hegel. deve ser assim?

É que Hegel só faz justiça à arte dentro doE limites, afinal cs coruii • tãc estreitos, do seu racionalismo. A tarefa da ' :beía aparência' artística, seguindo ele, é libertar-nos da aparência 3e.ns0ri.sL, impura e grosseira. No quadro de um mestre holandês, não é a e?:a.ta. reprodução dos ::>bj< tes que nos agrada: é que "a magia da cor e ca iluminação'*" ttansfigiir 1

o. F. Schilbr, Lettrts silt l'educador. es:kéaque da ?Aomr*e < Gaita 2« >. F.arií: A f̂c.er, i-, —«cijão bilíngüe [ed. bras.: Carta sobre a educação sstéuca dz irac. P Schw;KV. •s

Suzuki. São Paulo: Iluminuras. 199';].

as porres coisas naturais que sâc representadas; é que a= cenas or>sci ca= tle quermesses e bebedeiras são metamorfose a das nu.tr "demirge ca vida5'; é que s "bela aparência" tcrr.a fascinante c que. r a vida, tios dosava indiferentes. Assim, a representação artística é, às_a ~ane-.ra urra negação sorrateira do sensível: ante nesses eíhos„ ^sensível tcrr.a se aquilo que ele não é. Mas, é claro, é sempre zn:e nessa cIZos cue se efetua essa transmutação; é sempre no sensível que a arte ciirfca o sensível - e, porque a obra de arte se apresenta necessarlsttLsr.ce nnrr.a matéria sensível, ela não pode ser Ko moco de expressãc me: 3 elevado tia verdade". O fato de a obra de arte se cttigir ã avthutu :on=t::_,, para Hegel. tanto a sua essência como a sua li miiaçào.

Esse paradoxo sc me interessa aqui na medida € rn :ue governa a análise que Hegel faz co necessário dec.injc dc "arte". 3 signo desse declin o é o estreitamento progressivo co suporte sensível da obra ce arte. A arte moderna continua, sem c LI vi da, a ser uma figuração sen sível, mas essa figuração precisa cada vez menos de matéria; torna-se mais £ mais ascética. Essa ase esc, observa Hegel. vai crescem o em cada uma cas grandes forrr.as de arte características ca modetr.ittECi: c em rzra. cue se fiberta da "'matéria espacial de três dimensões"* e =e contenta, cora "a aparência criada pelas cores"; a música, que se lõerta de i»:lo suporte material permanente e se contenta cornuina "matéri:- v : : r ; r te:

e eremera: a poesia, finalmente, que reduz ?. sonoridade à pj lavja ai ti-culada. Com ela. diz Hegel, alcançamos o limite da arce - o zc '.::> alcir do qual a obra já não se dirige aos sentidos, mas ao e sp i r i t e .

Essa análise, que acabo de resumir, está eivada de tMecotucehcs inteiectuaítstas. Não deixa, porém, de set sugestiva, se acnitirmos que Hegel está falar, d o, sem o saber, do declínio de certa concepção ca arte -enãc. como acredita, do declhic cia Arte em geral. Hegel nac concebe nutro tipo de arte que não aquela cujas obras se orcoõer: zcrr.c coisas independentes e que nos confrontam - uma arte que cransròtma 05 seus receptores em espectadores. Desde que essa condi-ão não seja mais preen-chida Inteiramente, s obra de arte, segundo ele, começa a faltar à sua missão. Nesse sentido, um texto de Hegel, a propósito da ct fe:en;a entre

vi.sào pictórica e a audição musical, é altamente significativo:

ftr mais que mergulhemos na situação, aos czraueres, nas fcrr-.a: ac urtz í.^átuü ou. us um quadro, crie admiremos, c obra. quz rszs trcKspom ou éjtíevc, isso não adianta nada {«5 bilít nichts).' eis a obras aSoe czatènu&n

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sendo objetos que têm a sua consistência pura si. e nessa relação com elas é sempre uma relação de espetáculo (Anschauen). Ora, na música, essa dis-tinção desaparece [...]- Ao exteriori^ar-se. essa não se torr.a urna objetividade pennaneme no espaço [...] é uma comunicação que. em ve\ de ter um apoio próprio, só éconduzida pelo interior epelo subjetivo.10

Tal é a razão da superioridade que Hegel concede a escultura e à pintura. Mas essa superioridade só funciona, repetimos, relativamente a certc sistema estético. Em outro sistema, seria possível que essa substituição ca contemplação pela comunicação caracterizasse, ao contrário, a obra cie arte enquanto tal... Antes cie deixarmos o século xtx. observemos cue Nietzsche entreviu tal possibilidade, ao falar do "empobrecimento sensual da grande arte". Nossos sentidos, diz, se intelectualizaram; in-dagam «o que isso significa, e não mais o que isso e'.

Disso tudo, o que decorre? Quanto mais o olho e o ouvido se prestam ao pen-samento, mais se aproximam do limite em que termina a sua sensualidade: a alegria, retira-se no cérebro [...] o símbolo toma cada vej mais o lugar da coisa. \Mas Niet?sche acrescenta, imediatamente 'mostrando que está mais perto da estética clássica do que acreditava)'.] e, por esta via, chegamos â barbárie, tão .seguramente quanto por qualquer outra}

Walter Benjarnin, em certa medida, retomou esses temas. Mas a sua in-tenção é inteiramente distinta: longe de anunciar igualmente o declínio cia Arte ou o advento da barbárie, pretende dar exemplos da mutação que a arte sofreu no século xx. Enquanto é de bom tom, na década de 193c, denunciar o cinema como o novo ópio do povo, Benjarnin reconhece que o cinema, contrariamente à pintura, "não convida mais à contemplação", mas evita cuidadosamente ver uma marca de inferioridade nesse traço es-pecífico da neva arte. É verdade que o filme não se deixa olhar à vontade e que penetra no público, em vez de oferecer-se a ele. Mas por cue esse tipo de recepção seria inestético? Em nome de que estética se conferiu até agora esse privilégio desmesurado à contemplação}

Contemplar é deixar a coisa impor-se, mantê-la na sua estran.ieza - e Walter Benjarnin nega que toda relação com. a obra de arte deva cor»~

10. G. "NKT. Hegel, op. cit., v. xiv, pp. 129-30.

it . F. Niecssdhe, op. cit., n'.' 217.

\ A >ni,cação è.a obra de ar:e

lormac-se a sseê modelo. Por que só haveria salvação estática fracas à contemplação? Vocês ncrarão que basta 3ropor esta quesiac na rs. i» dk encontro a preconceitos antiqiiíssimos. Easta pensar nessas quei>as perpé-tuas, contra a rcoidez cia vida moderna, dli a nccivLcace desses ane ;tssiccs barulhentos cue seriam - ao que parece — os meios de informação; roarra todas essas coisas que impediriam oespirire ce recolher-se.

Que esquisito ideal monástico (ou rousseaumarte) é esse, em ncm= co qual tantas espíritasbiliosos se disoõem a lançar o oprob-ric sobre as nossas técnicas? £. principalmente, por que faaer da contempLação : vivido cukrtal oor excelência? Já Aristóteles zombava c;sses oiarzini-cos que acreditam que o artesão produz a sua cbra cem os o Ir.: 3 postes nas idéias.

E. se oergurrarem: c que é então a cbra de arte, se r i o é um oòje: : de cotiten-olsçãc?. eu responderei: por que rão seria um ofot-j j * a»ci I verdade que uma longa tradição apresenta c objete de arte corno o con-trário de um objeto útil - mas não se deve confundir objeto Ú:\T e oh]ttz utiiiiado. Quando utilizamos um instrumento, não o visamos o x o n n cbjeio útti: sinp.esmente nos servimos dele, sem pensar muito - sxem-tando os gestos que eie exige de nós, fazenco-o dar o descrito enlo qu; esperamos dele. Igualmente, quando leio um livro, não :enhc cor scila-cia ce estar dianr- ida jro objeto, assim como não tenho ccnsciènc a clara, quando escrevo, de estar diante da máquina, assim como o pfe-.:sce «xpe-riente não tem consciência clara de "esta: ao piano". Esses insiT„ rr.er.tos (no caso: esses sistemas de signos} apagam-se na sua u tiíi~xação - e s c readquirem sua independência quando deixam de fundeai ÍC.

Ora, a presença específica de uma db ra de arte {tema de tanta 5 medi-tações íiiosóficssj não viria do fato de cue essa obra, antes de -^ais tuoi3

55 dá como u;n guia que se oferece ao usuário? E a suaorigtasüdaoe ca-to lógica não se deve ao t ato ce nós a praticarmos bem dep ressa., otú l t . instrumento que .aos é familiar? A obra :le arte nãc seria, antes de mais nada, algo a tuiíirar? Tome-se o caso (tãc negligenciado) da arruiteinia. É justamente para serem uri i izados-erãc apenas^ãobssicameníe pera serem vistos - que foram construídos os templos, as catedrais pa Ü-cics. Na relação do público com a arquitetura, observa Walter Een an ia , não é a acolhida visual que predomina (excetuando-se 05 tuuris - as que visitamvmonumer.to), mas a acolhida íáxil - e essa "faz-se menos pe.a atenção do que pelo hábito [...]. No âmbito tãttl. nada exisre. deveras,, que corresponda ao que é a contemplação nc àmbiro visual".

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Podemos ir mais adiante e perguntar s<e as próprias artes do visível destinam-se exatamente a oferecer imagens à contemplação. E justo di-zer que vamos ao cinema ou sentamos à frente da televisão para olhar imagens? Mal tenho tempo de ver passar a imagem... De modo que o cinema e a televisão só constituem, verdadeiramente espetáculos para o filmólogo, que faz projetar várias vezes o mesmo filme e o estuda en-quanto um objeto. Mas, para o usuário, as imagens não aparecem enquanto imagens (a não ser que o filme seja enfadonho): ele as vive como veículos de informação. E é por isso que a parte essencial do trabalho fílmico é a montagem, que regula o ritmo segundo o qual é passada a informação.

Trata-se de um novo tratamento da imagem? Mas a noção clássica de imagem não provinha de um recorte arbitrário? Pois não há tantas imagens diante das quais o olho se detenha e pelas quais se deixe en-feitiçar. Sem dúvida, isso pode acontecer: quando olho a fotografia de um parente ou amigo morto; ou, talvez, quando me apaixono pela passa-geira ao meu lado no ônibus; ou, ainda, se temos a ocasião de espiar jogos íntimos pelo buraco da fechadura. Mas hão de convir que tais circunstâncias são excepcionais. A maior parte do tempo, uma imagem nos interessa porque indica alguma coisa que não está na imagem: pelo que nos cleíxa adivinhar, ou pelo que continua a ocultar. Somos muito mais os detetives do sensível que os seus voyeurs, Platão dizia que a contemplação das imagens nos distrai da contemplação das Idéias. Mas, dessa maneira, estabelecia uma homogeneidade enganosa entre a ope-ração perceptiva e o insight intelectual. Admitamos que se contemplem as Idéias; que outra coisa fazer com elas. já que, por princípio, elas são exibidas, eternas e imutáveis, diante do nosso entendimento? Mas, por meio das imagens, limitamo-nos a nos informar e orientar. Contempla-mos as idéias; interpretamos as imagens, e é por isso que as olhamos tão pouco. É também por isso que nada me parece mais contestável do que opor a "civilização da imagem" à do intelecto. Seria melhor dizer que a prática das imagens (cinematográficas ou televisionadas) nos força a um exercício intelectual de outro tipo, a uma compreensão mais concisa, a uma leitura mais rápida e, talvez, a um melhor domínio do alusivo.

"A Arte", dizia Hegel, "não pode servir-se de simples signos; deve dar às significações a presença sensível que lhes cor responde."1'- Mas, a

12, VcrUiungai über iie Ãuheúk [Preieções scbre estética] in IFerke. Frankfurt am IvLain:

Suhr.camp. 1970, v. xiv, p. 272.

33<í .4 invtafãc dc obra de arte

partir dc naoraerto era que o sensível á tratsdo cotr.oun: sistema sjgrí-íicante, percebemos unes vez mais que Keael. ao dizer c que "a Arte* não pede ser, permite-nos entrever a essencia de uma arte quebra, ncon-cebíve! para o pensamento clássico. Quando Hegel vê cotio urn d e f e r i o cia musica o fato ce ela dirigir-se a um receptor e não a uttt espectador, leva-nos, boje. a perguntar se não há uma pintura cue se aproximaria da música,'-' e se a pintura moderna, cesde o impression:srnoy mo é u m exemple njiávelde mutezão da abra de atts.

O impressionismo, como se sabe, efetuou uma neva análise do aío de pintar. Os impressionistas começaram a tomar consciência de cue a reprodução ilusionista era apenas ema mensagem de extersão mune res-trita, cue estava lor.ge cie esgocir os recursos da pintura. Schoperiauer define muito bem o trabalhe do pintor clássico ac dizer que ele oaire de uma dissociação entre um efeito (a afecção sobre a retira) e a suz coosa. '"os objetos exteriores cuja simples sensação faz nascer a p e r c e b i » tio espírito'5). Portanto, o pintar, du ele, é qu em busca produzir o msm* sfeuc no c 1 no pela instauração de uma ccusa inteiramente diversa, a SI ber, pela '"aplicação de manchas coloridas",N e dessa maneira oropotcbita ao espectador a ilusão de que « t á r z p r f } d r . m r J o 2 realidade.

Mas por que tal dispositivo deveria servir apenas para repuriurv? Porque £.5 manchas coloridas não seriam também capazes ce scaertrí II esta, dfoia Pierre Fraiicastel,1- a grance descoberta de que a jâniij--vai tírar partido, depois dos impressionistas. Em vez de dispor ra teia o dup o dos signos formados na reána. dispôe-se nela uma confícuua-a íerenle i a registrada pelo olha humano, "mas que a eioerièncic te~ ve la su g e s t i va por analogia'. Assino, c artista "inventa umacompcsL.-ãc que, nc pjaro intelectual, suscita nc espírito sensações assirtiúiveír às experímer.zadas em presença do mundo'3. Assimiláveis^ não m é i s r g ^ -Inan&r. o que supee uma atitude mnite diferente do público. Eis « i r a

15. t áuetefsai-? rota» que essa comparação. cjue tíege -cria julgacc dfturda, v ü - S C fci-manco espr.rjtisamente nos escr ,:,s de DeSectofare EJudeiaire 'Jato*. e~. Cgag(Jfc que tala do 'vpi:ficado musica! da co-" err. Karíinsk;-. Mais do que j.ra metáfora, iw-c s o sina òe ur.a guinada na corcepção <pe •> pintor d c r r .cu da "obra de nx?° e, simsl urea-trente, c : ÍTAgirário.

l i - AribnrSer open; .iuer,Die WcUnk VFlüeznd ^v r í^g- . svpJomentoa^Uvro íil cna ;5 [ec. bras. 0 -ur-aao corto n-.rcdc erepr^síareção, trad. 3»! Sá Corr ia . Rio ze Janeicr.: ponte, 2cc: j.

r5 P iare r rexas te l . Anec tediníque. Paris: Écirio:e ce -\lintHL, 19* 6. pp. 222-1?

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das razões pelas quais poderia ser superficial, afinal de contas, íalar simplesmente de uma pintura "não representativa". Essa expressão não é tão feliz, porque subentende que a representação pictórica é limitada à reprodução. Mas a própria reprodução era certa mensagem determi-nada e existem muitas outras mensagens pictóricas possíveis.

Mostrar era significar de certa maneira. E o artista, quando tomou consciência disso, não tenta mostrar outra coisa. Um pouco como se ele nos dissesse: "Não lhe pedimos mais a sua presença no espetáculo: pe-dimos que decifre rapidamente uma mensagem. Para quê? Para saber se você ainda se encontra nestas formas e nestes volumes - se a defor-mação que lhe propomos ainda preserva o seu espaço sensorial". Pois a questão cjue essa arte nos propõe diz respeito, antes de mais nada, aos desempenhos possíveis do nosso sistema perceptivo. isso quer dizer que, na origem da incompreensão (tão desculpávei) que a pintura mo-derna suscitou, houve antes de mais nada um erro de regulagem come-tido pelo público. Este queria continuar contemplando um quadro, e tal expectativa só podia ser frustrada. A obra de arte, então, não convidava mais o seu receptor a sonhar com base nela, mas a analisar a sua per-cepção a partir das indicações que ela lhe fornecia. Assim, o olho, que aprendera somente a ser espectador passivo, achava-se em presença di-urna arte cujo objetivo não era mais mostrar o mundo, porém balizar a minha construção do mundo. O olho fora educado para olhar, e proptt

nham-lhe que escutasse. Quer dizer que essa mutação seria sinônimo de intelectualidade t

sofisticação? É exatamente o contrário. Se é verdade, como diz Deleuw , que "o único problema estético é o da inserção da arte na vida ooil diana", parece então que a arte moderna está multiplicando essa capai?. dade de inserção. Ainda que a obra cinematográfica e a obra pictórica atuem diferentemente sobre a nossa sensorialidade, resta que amba-contribuem para fazer-nos penetrar mais e mais no interior do visívr! para fazer-nos explorá-los em novas profundezas; ambas induzem «• seu receptor a reorganizar a sua cinestesia e o seu espaço sensório-ni<> tor. Nesse sentido, a obra de arte funciona como um analisador cap.r/ de nos fazer encontrar as modulações sensoriais do cotidiano - muiur. das quais, sem ela, passariam despercebidas.

Assim, parece-me que mal começamos a medir o alcance da rep<« cussão cultura] dessa mutação da obra de arte. Quanto mais a sensibili dade das gerações (e, com isso, não entendo a "sensibilidade" no senridi

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de Rousseau, mas no sentido dos laboratórios de psicofisiologia) foi educada peja civilização técnica, mais se imporá a evidência ce que essa arte, longe de ser irrealista, é a expressão do nosso novo mundo vivide, o registro dos seus sinais. Isso não se torna patente à medida cue cs homens se habituam, desde a infância, a um meio ambiente que -á não tem muito cue ver com o mundo serena ca " representaçãoPier re Francastel recorda-nos que, ''durante muito tempo, leram-se os textos em voz alta, mesmo a sós. Pode-se pretender que uma sociedade etr que todas as crianças aprendem a ler com os olhos conserve o mesme sistema figurativo da Idade Média e dos Tempos Modernos?* Essa re-flexão é rica de prolongamentos. O que dizer então de uma sociedade em que as crianças, para dar só um exemplo, sentem a velocidade a partir da experiência dos bólidos e dos jatos?

E por isso que, aos que incriminam ou exaltam a pretensa abstra-ção" da arte moderna, devemos responder que a expressão arte abstraia, tomada literalmente, éum contraseiiso. Não há arte que não ressoe for-mas determinadas de recepção sensorial, de motricidade, de controlç sobre as coisas. Foi a mutação excessivamente brutal dessas formas na* últimas gerações que criou - para uso dos filisteus e dos estetas., esses eternos cúmplices - a ilusão ce uma arte que seria desvinculada de toca referência mundana. A arte só é visada como "abstrata" quando ainca não encontrou o seu público, a saber, aqueles que serão capazes de en-contrar nela os seus próprios acontecimentos sensoriais. O esoterismo da arte declinará rapidamente para aqueies cujo "mundo sensível" é cacia vez mais constituído por sinais e menos por imagens - p a r a aqueles cujo sistema perceptivo é modelado pela velocidade numa rodovia ex-pressa, pelo turbilhonamento das luzes riurr a discoteca, pela rajada das imagens televisadas. O que pressentia a arte chamada :cabs trata" é que a mutação de nosso mundo circundar.le seria acompanhada por uma mu-tação do imaginário. Quando Mondrian dizia que pretendia excluir tudo que pudesse sugerir uma forma particular, esta profissão de fé podia ser ju.gada esdrúxula. Ela não pede mais sê-lo para sistemas sensoriais que são acostumados a ritmos que desxroem as formas particulares.

A obra de arte perdeu a sua "aura". Está a ponto de não se ofere-cer mais como um aerólito prestigioso e irredutível mente estranho. Vias esse não é o preço pago pelo fato ce que, sem o percebermos, ela conse-gue investir cada vez mais a nossa vida. afundar-nos no âmago do perce-bido ou do sufcpercebido, em vez de aparentar abrir-nos ou no mundo*

3S*

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Se assim for, nada será mais irônico do que o esoterismo aparente de cerras formas de arte atuais, pois a verdadeira arte "elitista' era a arte produtora de imagens, destinada a um público formado de indivíduos

" l e t r a d o s " , depositários de um imaginário de luxo e convidados a sonhar. O segredo da mutação da obra de arte talvez seja que ela, hoje, começa a nos fazer conquistar o imaginário que está ao alcance de cada um.

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Transgredir a finitude

Foucault descreve em várias ocasiões, e sob vários enfoques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao passar do século xvm para o xix, quando desaparecem os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da representação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o enca-deamento cias naturezas simples, ou o encaixamento das espécies natu-rais. Também era óbvio que a ordem das coisas, já por seu princípio, era passível de clesdobrar-se num quadro. Conhecer era ver, "no sentido cie perceber". E, mercê do bom uso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, da contínua supressão da distância -• aliás pura-mente aparente — entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que se rompe quando emergem, desligados cia Representação, estes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a linguagem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e se dissolve "o campo homogêneo das representações ordenadas".1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do conhecimento-visão: ver será "conservar, da experiên-cia, a maior opacidade corporal" possível e "penetrá-la com um olhar que nunca lhe traz mais que a sua própria claridade".2 O ser humano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Divino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathesis ou a ordem taxionômica. Subme-

* Extraído de Renato Janine Ribeiro (org.), Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985. Tra-

dução: Renato Janine Ribeiro.

1. Michel Foucault, LesMots et Ias choses. Paris: Gatlimard, 1966, p. 255 [As citações são traduzi-

das do francês, diretamente; damos, porém, quando possível, a referência da edição em portu-

guês- neste caso As palavras c as coisas. Lisboa: Portugália Editora, 1968, pp. 318-19 (n.t.)].

2. Id., Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963, p. IX [ed. bras.: Nascimento da clinica. Rio de

Janeiro: Forense, 1977, p. xu].

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