Gabriel, Paulo - União Soviética - Capitalismo de Estado Ou Socialismo

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União Soviética - Capitalismo de Estado ou Socialismo? Artigo do companheiro Paulo Gabriel, do Centro do Socialismo, que se sustentando nos fatos históricos nos mostra longe de qualquer desvios idealistas, questões importantes no que concerne ao modo de produção econômico da URSS, e a falsidade em que se sustenta discursos como os de que "a URSS não era socialista, foi somente um capitalismo de Estado". Referendado nos fatos, o artigo nos mostra o problema do jargão de "capitalismo de Estado na URSS", e a presença do socialismo e da construção socialista na União Soviética. Introdução Quando se fala na vida dos trabalhadores da União Soviética, é comum dizer que eles eram assalariados e que não dispunham livremente de sua força de trabalho e de seus meios de produção. Desta simples constatação elabora-se um grande corpo teórico que apresenta o socialismo soviético como uma espécie de capitalismo de Estado – os trabalhadores ainda eram subjugados por uma classe proprietária que surrupiava o trabalho excedente (a mais- valia) destes, com a devida diferença que nos países capitalistas clássicos os proprietários são donos individuais de empresas privadas, enquanto que no dito capitalismo de Estado soviético os proprietários são donos coletivos de empresas estatais. Neste sentido, estouram para todos os lados condenações de que os trabalhadores soviéticos não eram livres, viviam oprimidos por um Estado aterrorizante e totalitário, muitas vezes chega-se aos extremo de dizer que a União Soviética criou sua gigantesca economia sob a deficiente e largamente improdutiva forma econômica do escravismo. Porém uma pesquisa um pouco mais aprofundada em relação ao modo que a economia soviética funcionava na prática basta para desestabilizar boa parte deste corpo teórico que, ao longo das décadas, foi fundado muito mais em suposições, no “ouvi dizer que” do que em fatos concretos – sobretudo com a agudização da Guerra Fria e, conseqüentemente, com o fortalecimento da guerra de informações e sua expressão ideológica que foi a demonização do comunismo. O presente artigo visa contribuir para uma visão crítica do modelo de socialismo implantado pelos soviéticos, apresentando uma contraposição à ideia hegemônica de capitalismo de Estado que segue por duas vias fundamentais: a) as formas econômicas dominantes na União Soviética do período de Stalin eram as que estavam sob o controle direto dos trabalhadores, e não as estatais; b) as empresas sob o comando estatal não se assemelhavam às empresas capitalistas, já que os trabalhadores possuíam inúmeras formas de pressão, de crítica e de censura aos diretores e gestores. Assim, será abordado na primeira parte do artigo as vastas organizações de produtores-proprietários que existiam na URSS e, na segunda, o olhar deverá voltar-se à vida nas empresas estatais. As Associações de Produtores-Proprietários Durante a década de 1930 na União Soviética, havia pelo menos quatro formas de associações de produtores-proprietários: os incops ou cooperativas industriais; os kolkhozes ou fazendas coletivas; as associações de pescadores; e as associações de produtores artísticos e intelectuais. Cada uma delas funcionava sob a direção coletiva dos trabalhadores, recebendo

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Artigo do companheiro Paulo Gabriel, do Centro do Socialismo, que se sustentando nos fatos históricos nos mostra longe de qualquer desvios idealistas, questões importantes no que concerne ao modo de produção econômico da URSS, e a falsidade em que se sustenta discursos como os de que "a URSS não era socialista, foi somente um capitalismo de Estado". Referendado nos fatos, o artigo nos mostra o problema do jargão de "capitalismo de Estado na URSS", e a presença do socialismo e da construção socialista na União Soviética.

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  • Unio Sovitica - Capitalismo de Estado ou

    Socialismo? Artigo do companheiro Paulo Gabriel, do Centro do Socialismo, que se sustentando nos

    fatos histricos nos mostra longe de qualquer desvios idealistas, questes importantes no

    que concerne ao modo de produo econmico da URSS, e a falsidade em que se sustenta

    discursos como os de que "a URSS no era socialista, foi somente um capitalismo de

    Estado". Referendado nos fatos, o artigo nos mostra o problema do jargo de "capitalismo

    de Estado na URSS", e a presena do socialismo e da construo socialista na Unio

    Sovitica.

    Introduo

    Quando se fala na vida dos trabalhadores da Unio Sovitica, comum dizer que eles eram

    assalariados e que no dispunham livremente de sua fora de trabalho e de seus meios de

    produo. Desta simples constatao elabora-se um grande corpo terico que apresenta o

    socialismo sovitico como uma espcie de capitalismo de Estado os trabalhadores ainda

    eram subjugados por uma classe proprietria que surrupiava o trabalho excedente (a mais-

    valia) destes, com a devida diferena que nos pases capitalistas clssicos os proprietrios so

    donos individuais de empresas privadas, enquanto que no dito capitalismo de Estado sovitico

    os proprietrios so donos coletivos de empresas estatais.

    Neste sentido, estouram para todos os lados condenaes de que os trabalhadores soviticos

    no eram livres, viviam oprimidos por um Estado aterrorizante e totalitrio, muitas vezes

    chega-se aos extremo de dizer que a Unio Sovitica criou sua gigantesca economia sob a

    deficiente e largamente improdutiva forma econmica do escravismo. Porm uma pesquisa

    um pouco mais aprofundada em relao ao modo que a economia sovitica funcionava na

    prtica basta para desestabilizar boa parte deste corpo terico que, ao longo das dcadas, foi

    fundado muito mais em suposies, no ouvi dizer que do que em fatos concretos

    sobretudo com a agudizao da Guerra Fria e, conseqentemente, com o fortalecimento da

    guerra de informaes e sua expresso ideolgica que foi a demonizao do comunismo.

    O presente artigo visa contribuir para uma viso crtica do modelo de socialismo implantado

    pelos soviticos, apresentando uma contraposio ideia hegemnica de capitalismo de

    Estado que segue por duas vias fundamentais: a) as formas econmicas dominantes na Unio

    Sovitica do perodo de Stalin eram as que estavam sob o controle direto dos trabalhadores, e

    no as estatais; b) as empresas sob o comando estatal no se assemelhavam s empresas

    capitalistas, j que os trabalhadores possuam inmeras formas de presso, de crtica e de

    censura aos diretores e gestores. Assim, ser abordado na primeira parte do artigo as vastas

    organizaes de produtores-proprietrios que existiam na URSS e, na segunda, o olhar dever

    voltar-se vida nas empresas estatais.

    As Associaes de Produtores-Proprietrios

    Durante a dcada de 1930 na Unio Sovitica, havia pelo menos quatro formas de associaes

    de produtores-proprietrios: os incops ou cooperativas industriais; os kolkhozes ou fazendas

    coletivas; as associaes de pescadores; e as associaes de produtores artsticos e

    intelectuais. Cada uma delas funcionava sob a direo coletiva dos trabalhadores, recebendo

  • do Estado apenas assistncia tcnica tanto em forma de meios de produo como tratores

    para os kolkhozes, por exemplo, como em forma de crditos financeiros ou de auxlio com os

    mais variados problemas administrativos. Outro papel do Estado era o de vigilncia. Caso uma

    dessas associaes se tornasse improdutiva, o Estado deveria investigar o porque, punir os

    responsveis (caso houvesse algum) e garantir que a improdutividade no prosseguisse e o

    padro de vida dos trabalhadores no deteriorasse.

    Sob a perspectiva do total da populao economicamente ativa [1], as associaes de

    produtores-proprietrios aglutinavam quase 50% desta, sendo, portanto, a principal forma de

    organizao econmica da Unio Sovitica. Dos cerca de 70.000.000 de indivduos que

    compunham a populao economicamente ativa da nao, 33.000.000 pertenciam s

    cooperativas com 30.000.000 s nos kolkhozes, enquanto que os incops e as associaes de

    pescadores concentravam 3.000.000 e 300.000 trabalhadores, respectivamente (no h dados

    gerais disponveis para as associaes de artistas e intelectuais). No entanto, isto no quer

    dizer que o resto da populao era empregada por empresas estatais, j que havia uma cifra

    bastante significativa de 15.000.000 de trabalhadores independentes. De acordo com Sidney e

    Beatrice Webb, tais trabalhadores se dividiam entre os urbanos e os agrcolas. Nas cidades,

    afirma o casal Webb, existem inumerveis costureiras e lavadeiras; coxeiros de droschkys[2]

    e engraxates; trabalhadores avulsos de toda a espcie; jornalistas 'franco-atiradores' e

    literatos; artistas no-assalariados e cientistas. Nas vastas zonas rurais entre o Bltico e o

    Pacfico, os camponeses independentes ainda constituem uns 6.000.000 de lares, abrangendo

    talvez uns 12.000.000 de adultos, isso sem falarmos dos pescadores independentes, dos

    caadores, dos que se dedicam prospeco de minrios e de muitos outros, alm dos

    nmades que vo de uma pastagem a outra.[3]

    O resto da populao econmica ativa era empregada nas empresas estatais, atingindo o

    total de 22.000.000 de trabalhadores. Destes, 18.000.000 eram sindicalizados. Porm a

    questo dos sindicatos e da vida das pessoas que trabalhavam para o Estado ser discutida

    apenas no prximo tpico. Por enquanto nos preocuparemos com as cooperativas.

    Abordaremos cada uma de suas quatro formas principais de maneira breve, focando,

    sobretudo, em suas origens e no funcionamento de seus sistemas de auto-governo.

    Incops ou cooperativas industriais

    Esta forma de organizao bastante antiga na Rssia, pelo menos em suas formas mais

    simplrias. No sculo XIX, o 'fabricante' tpico, escreve o casal Webb, no era o capitalista

    empreendedor nem artfice assalariado, mas o operrio manual, isolado, trabalhando, s ou

    num grupo de famlia, a madeira, o ferro, a l, o linho, o osso ou o couro, que transformava

    em utilidades domsticas, as quais vendia para sua subsistncia[4]. Estes trabalhadores

    costumavam reunir-se em associaes chamadas de artels, baseadas na administrao e

    responsabilidade coletivas. Durante o czarismo, estas organizaes no eram reconhecidas

    pela lei, no entanto, no costumavam sofrer intervenes governamentais. Para se ter uma

    ideia da importncia econmica dos artels na Rssia imperial, no ano de 1914, estas oficinas

    autnomas representavam uma produo total avaliada em 2,4 bilhes de rublos, o que era

    igual metade dos 4,8 bilhes de rublos produzidos pela indstria privada. Por outro lado,

    os artels desta poca j vinham perdendo paulatinamente sua independncia para o cada vez

    mais poderoso capital privado industrial, que passou a fornecer as matrias-primas s

    cooperativas em troca de trabalho mal pago e fortemente explorado. O resultado foi uma

    queda brusca do padro de vida dos operrios que trabalhavam neste ramo.

    Com a vitria da Revoluo de Outubro, os bolcheviques passaram a estimular as associaes

  • livres dos trabalhadores que foram pouco a pouco se reerguendo, agora sob o nome de Incops.

    O governo sovitico passou a consider-las como uma boa alternativa indstria estatal,

    sobretudo na produo e conserto de artigos domsticos (moblia, sapatos, equipamentos de

    cozinha roupas, brinquedos, vasos de cermica, etc.), portanto uma srie de medidas foram

    adotadas para estimular seu crescimento, entre elas: a disponibilizao de tcnicos do Estado

    para auxiliarem os Incops a se organizarem de acordo com as mais modernas fomas de

    produo e a concesso de crditos a baixssimo custo. A expanso destes estabelecimentos

    acelerou-se ainda mais a partir de 1928, com o incio do primeiro

    Plano Quinquenal ocorrendo ainda um importante desdobramento da diversificao produtiva

    o qual atingiu setores como extrao de madeira, metalurgia, explorao de poos

    carbonferos e minas de chumbo.

    A expanso das cooperativas industriais foi tamanha neste perodo que no ano de 1932 seus

    rendimentos j ultrapassavam e muito o nvel de 1914, alcanando a marca de 6,23 bilhes de

    rublos, ou seja, houve uma valorizao de cerca de 260% em relao ao fim da era czarista.

    Por fim, antes de abordarmos um pouco da organizao administrativa das Incops, cabe

    salientar tambm que as cooperativas possuam mais de 1.000 lojas e mais de 1.000 postos de

    venda nos centros urbanos soviticos, o que indica que no somente eram responsveis pela

    produo como tambm por parte da venda dos artigos produzidos.

    A administrao das Incops adotava um modelo organizacional semelhante aos sovietes, aos

    sindicatos e s outras tantas organizaes polticas da URSS, possuindo um rgo executivo

    (o presidium) formado por um presidente e cerca de meia dzia de outros membros.

    O presidium era eleito a cada ano por todos os cooperativados maiores de 18 anos e as

    decises eram tomadas em reunies com todos os membros, as quais ocorriam em um

    intervalo de poucas semanas. Havia tambm o comit de reviso, que tinha entre seus

    objetivos examinar as contas e decidir as disputas que eventualmente surgissem nas Incops.

    Assim como o presidium, seus membros eram escolhidos pelo voto dos associados e, alm

    disso, era obrigatrio por lei que trabalhadores de outras cooperativas fizessem parte dele.

    Acima das estruturas de cada Incop havia os Conselhos Regionais, responsveis pela

    superintendncia do exame das contas de cada cooperativa da regio o que inclui o envio de

    auditores competentes para as associaes necessitadas. Os conselhos eram formados por

    representantes de cada uma das sociedades autnomas da regio, todos eleitos por voto

    direto dos membros.

    Chegamos ento instncia superior das oficinas autnomas, o Conselho Geral das

    Cooperativas Industriais. semelhana das estruturas regionais, o Conselho Geral apenas

    um rgo de superintendncia, sem pretenses executivas. De acordo com o decreto de 23 de

    julho de 1932, do Comit Executivo Central e do Sovnarkom[5] da URSS, reserva-se ao

    conselho o trabalho de organizao e planificao da contabilidade, da direo e das

    perspectivas, assim como a representao das incops nas organizaes governamentais (com

    relao a crditos, fundos de abastecimento, proteo das leis estatais, concesses

    s incops)[6]. O Conselho Geral tambm administrado por um conselho executivo

    (presidium) composto por um presidente e mais alguns delegados. A eleio para

    o presidium ocorre no Congresso Geral das Incops, composto por delegados das vrias regies

    do pas. O modo que o presidium opera em relao sua base descrito, de acordo com os

    Webb, da seguinte maneira: (...) em 1933 e 1934, o conselho executivo convidou a irem a

    Moscou periodicamente, para consulta, os dirigentes da maior parte das incops[7].

    Kolkhozes ou fazendas coletivas

  • As fazendas coletivas surgem logo aps o xito da Revoluo de Outubro, atravs da

    associao voluntria dos camponeses. No entanto, seus nmeros eram bastante reduzidos se

    comparados s formas tradicionais de produo agrcola. No ano de 1927, havia cerca de

    21.000 kolkhozes funcionando no pas, o que no correspondia nem a 1/3 das terras

    cultivadas. s a partir do ano de 1928, com a implementao do primeiro

    Plano Quinquenal que as fazendas coletivas iniciam sua rpida expanso at se tornarem o

    principal meio de produo do campo sovitico. Este processo de coletivizao das terras ,

    sem dvida alguma, um dos mais complexos e conflituosos acontecimentos da histria

    sovitica. Entre seus resultados podemos salientar a mecanizao da agricultura, o

    aumento significativo da produtividade e a eliminao dos ciclos de fome que assolaram o

    imprio russo por incontveis sculos. Porm o custo humano foi alto, j que os kulaks[8] e

    parte dos camponeses independentes ofereceram uma feroz resistncia coletivizao e o

    frgil aparato do governo sovitico no campo foi incapaz de aplicar as diretrizes centrais com

    eficincia, causando um caos completo. Por um lado, a forte propaganda do governo acerca

    das vantagens das cooperativas causou um crescimento enorme dos kolkhozes, superando e

    muito as estimativas do Plano. Isto gerou um desfalque entre o prometido e o efetivamente

    cumprido, j que as aes descontroladas do governo no campo geraram mais cooperativas do

    que os crditos e as maquinarias destinadas pelo Plano conseguiam suprir. Por outro lado, a

    resistncia dos kulaks (motivada pela expropriao de suas terras) e de parte dos camponeses

    independentes (sobretudo por causa do fracasso inicial de muita fazendas coletivas que

    ficaram sem mquinas e crditos) gerou um forte freio aos kolkhozes, principalmente aps

    os kulaks tomarem medidas de extermnio dos gados, destruio de colheitas e assassinato

    dos membros do Partido e do governo que trabalhavam na coletivizao.

    Esta grande guerra civil causou danos enormes base produtiva da agricultura sovitica. Para

    completar o quadro, houve uma grande seca nos anos de 1930, 1931 e 1932. O resultado foi

    uma fome terrvel que vitimou milhes de soviticos, em sua maioria ucranianos. No entanto,

    a resistncia dos kulaks foi pouco a pouco sendo derrotada e os investimentos cada vez

    maiores nos kolkhozes permitiram o equilbrio entre o crescimento das cooperativas e a

    disponibilidade de recursos. Esta situao permitiu um enorme aumento da produtividade[9] e

    a conseqente superao da fome j pelos idos de 1933. E no s isso, a generalizao

    dos kolkhozes na URSS trouxe consigo um aumento considervel nos rendimentos dos

    camponeses[10].

    A exemplo das incops, as decises nas fazendas coletivas soviticas eram tomadas

    nas reunies dos membros maiores de 18 anos, que aconteciam pelo menos uma vez ao ano.

    Nestas reunies elegia-se a junta administrativa (pravlenie) e seu presidente. Seguindo a

    descrio dos Webb, nesse rgo [pravlenie], na atmosfera da discusso cotidiana entre

    todos os membros, sujeita a relatrio e debate peridico na reunio de associados, que so

    tomadas todas as decises necessrias: Quais as culturas a fazer e em que trechos da

    fazenda; quando devem ser executadas as diversas operaes da aradura, semeadura, limpa e

    colheita; quais os membros a designar para cada uma das inmeras tarefas, e todas as mil e

    uma providncias detalhadas que necessariamente exige at a menor das empresas

    coletivas[11]. interessante notar tambm que, por lei, determinado que as propostas

    acerca da forma que sero investidas as receitas dos kolkhozes sejam discutidas e aprovadas

    em reunies as quais compaream a maioria absoluta dos associados. Esta maioria definida

    como dois teros do total.

    Apesar da base administrativa dos kolkhozes ser bastante semelhante dos incops, a

    organizao em nvel nacional dos produtores-proprietrios da agricultura se encontrava, em

  • meados da dcada de 1930, em fase rudimentar. A razo foi a grave crise gerada pela

    acirrada luta de classes no campo no incio do processo de coletivizao e a conseqente

    escassez alimentar. Esta situao alarmante exigiu aes centralizadoras do governo que

    culminaram na submisso de todas as 240.000 fazendas coletivas da nao ao Comissariado do

    Povo para a Agricultura, contrastando com a organizao autnoma das incops. Porm, j

    nesta poca, inciava-se o processo de separao da organizao superior das fazendas

    coletivas em relao mquina estatal sovitica. Em fevereiro de 1933, convocou-se uma

    grande reunio em Moscou dos brigadeiros de choque das fazenda coletivas (udarniki). Nela,

    compareceram mais de 1.500 orientadores locais de administraes de fazendas coletivas das

    mais variada regies da URSS. Com o sucesso desta iniciativa, no fim de 1934 foi convocado o

    Segundo Congresso Geral dos Udarniki de Kolkhozes, o qual aprovou uma Constituio modelo

    para todos os kolkhozes, marcando o incio da formao de uma organizao nacional das

    fazendas coletivas independente do poder estatal.

    Associaes de pescadores

    Antes de 1929, a pesca na URSS era um conjunto desorganizado de pescaria individual em

    praias e rios. Quase no havia pesca em alto-mar. E no havia maneiras eficientes de se

    conservar a pesca. Com o advento do Primeiro Plano Quinquenal o governo sovitico investiu

    pesado na pesca criando grandes empresas estatais que, entre outras coisas, adotaram a

    pesca em alto-mar em grande escala, desenvolveram frigorficos e indstrias para enlatar os

    peixes e distribu-los. Em apenas cinco anos de trabalho, esta nova indstria alcanou a

    marca de 500.000 toneladas de pescado recolhido, superando em duas vezes o total

    apanhando por todos os pescadores no ano de 1921. Tamanho avano contribuiu tambm para

    o crescimento dos velhos pescadores individuais, que passaram a ter acesso a tcnicas mais

    modernas e a investimentos mais slidos de capital. O resultado foi a rpida expanso destes

    e a conseqente unio em cooperativas auto-governadas, bastante semelhantes

    aos kolkhozes.

    A administrao funciona da mesma forma, tendo como base as reunies regulares dos

    membros maiores de 18 anos onde as aes da associao so discutidas e os planos para o

    futuro desenvolvidos em conjunto. Mas estes kolkhozes de pescadores possuem sua prpria

    organizao geral, o Congresso Geral de Kolkhozes de Pescadores, criado em 1931. L, as

    cerca de 1.500 cooperativas elegem delegados mais ou menos em proporo ao nmero de

    associados de cada uma. Por sua vez, os delegados elegem a Junta Executiva que ento

    nomeia um presidium de cinco membros. possvel observar a proximidade desta composio

    com as dos incops, no entanto, ela possui caractersticas prprias, como apresentado neste

    trecho da obra dos Webb:

    O trao caracterstico desta federao parece ser a considervel autonomia mantida pelas

    diversas kolkhozes de pescaria, assim como a deliberada limitao das funes confiadas aos

    seus delegados, que pouco mais podem fazer do que vender no mercado, suprir equipamento

    a preos de atacado e proporcionar instrues e recomendaes tcnicas[12].

    Associaes de produtores artsticos e intelectuais

    Aqui as informaes so mais difceis de serem encontradas, ainda mais porque um trabalho

    complicado diferenciar quais destas associaes existiam fora da federao de incops.

    Portanto, possvel deduzir que era aplicado o mesmo modelo de administrao baseado nas

    reunies peridicas dos membros, nas discusses e nas votaes para a tomada das decises.

    A razo para a escolha da apresentao desta forma de associao de produtores-

  • proprietrios no se deve tanto questo da liberdade de auto-governo dos trabalhadores e

    sua eficincia real, mas sim ao carter singular dela o de unir sob o auto-governo formas de

    produo intelectuais. um inusitado tipo de coletivizao da intelligentsia. Vejamos alguns

    exemplos:

    (...) os artistas (principalmente pintores, escultores e arquitetos) possuam, em 1931, uma

    associao de uns 1.500 membros, chamada Khudozhnik (O Artista). Essa sociedade prov aos

    seus membros determinada acomodao em estdios coletivos, tem a seu servio uma

    pequena porm eficiente fbrica de tintas, organiza exposies para a venda de seus

    trabalhos e at lhes abre crdito quando eles se acham, anormalmente, sem recursos![13].

    Seguindo este mesmo modelo, fotgrafos possuam suas prprias oficinas, produtores de

    trabalhos artsticos em madeira e laca tambm. At jornalistas e escritores possuam

    associaes cooperativas profissionais deste tipo, alm das sociedades de publicidade que

    serviam para expor ao pblico seus trabalhos literrios. Por fim, h inclusive cooperativas de

    cientistas publicando teses sobre fsica e biologia.

    As Empresas Estatais e os Sindicatos

    Assim como nos pases capitalistas, o sindicato era a principal forma de organizao da classe

    trabalhadora sovitica, pelo menos de parte dela. Isto porque os trabalhadores das

    associaes de produtores-proprietrios possuam poder direto sobre seu prprio trabalho e

    seus meios de produo, no necessitando de qualquer organizao sindical para represent-

    los. Portanto, apenas aqueles que trabalhavam para as empresas estatais eram sindicalizados.

    Ou seja, cerca de 18.000.000 de soviticos de acordo com os dados de 1934. importante

    frisar que os sindicatos da URSS no funcionavam da mesma forma que os seus pares

    capitalistas, tendo muito mais atribuies que estes, e no s isso, eles no se pautavam

    pelos conflitos entre exploradores/explorados e entre trabalho manual e intelectual. Disto

    resulta uma estrutura que abarcava todos que trabalhavam em determinada empresa ou

    setor, isto , cada sindicato englobava em seus membros desde o jovem aprendiz at o

    diretor da fbrica ou da empresa.

    Desta maneira, o sindicato servia como um aglutinador dos interesses de todos os

    trabalhadores das empresas e como uma espcie de parlamento para as discusses cotidianas

    acerca das virtudes e dos problemas no local de trabalho, alm das questes relativas aos

    bnus de produtividade, s metas e ao Plano Geral. Portanto, os sindicatos eram, talvez, a

    mais importante instituio que existia dentro das empresas estatais, pois influenciava

    decises que iam desde problemas individuais at problemas relativos ao modo como se geria

    a economia nacional. De certa forma podemos dizer que as empresas estatais estavam

    fundidas aos sindicatos e que no funcionariam devidamente sem a existncia deles.

    As funes dos sindicatos

    Como j foi dito anteriormente, os sindicatos soviticos tinham muito mais atribuies que os

    do resto do mundo, sendo responsveis inclusive pelo funcionamento adequado das empresas

    estatais. Esto entre suas funes: (...) alm dos salrios em dinheiro, as unies sindicais

    visam proteger os seus membros contra os acidentes no servio e interessam-se pelo conforto

    e salubridade de seus locais de trabalho; discutem e fazem sugestes a respeito das tarefas

    atribudas fbrica; orientam os trabalhos dos tribunais populares onde so julgadas as

    pequenas faltas cometidas pelos seus membros, verificam a quantidade de alimentos e outras

  • utilidades que na 'cooperativa da fbrica' (inclusive as novas granjas de fbrica), podem ser

    adquiridas pelos operrios; administram os fundos de assistncia aos doentes, acidentados e

    pensionistas, por meio de um comit eleito pela fbrica; mantm um 'bureau jurdico' para a

    defesa dos direitos de seus membros; providenciam sobre o alojamento do pessoal; instalam

    clubes destinados recreao e educao dos seus associados; interessam-se

    pela organizao de locais de frias; promovem viagens e fornecem entradas para o teatro e

    para pera a seus membros[14].

    Para alm de todas estas j vastas funes, os sindicatos soviticos tm tambm papel

    fundamental na administrao da empresa e da fbrica. A base desta administrao so os

    comits sindicais de fbrica (fabkom) ou de instituio (mestkom). Neles ocorrem reunies

    entre os diretores, gerentes e os mais variados tipos de empregados que trabalham nas

    respectivas empresas. Vejamos um exemplo prtico do funcionamento de um mestkom, de

    acordo com uma enfermeira estadunidense que trabalhou em um hospital em Leningrado:

    As reunies ordinrias destes sindicatos podem tornar-se movimentadas, com uma pitoresca

    lavadeira de leno vermelho na presidncia, secretariada por uma doutora graduada pela

    Sorbonne, e comits incluindo at o tolerante e bem humorado diretor da instituio, que

    pode ter sido famoso especialista h quinze anos passados, um inflamvel e jovem mdico,

    que divide seu entusiasmo entre o comunismo e as pesquisas mdicas, um sonolento

    encarregado do fogo, cujas botas altas rescendem a couro mal curtido e vrias filas de

    murmurantes e impassveis enfermeiras e arrumadeiras. As reunies prolongam-se pela noite

    adentro, pois que nelas se discute e decide grande parte da minuciosa administrao do

    hospital ou clnica. Complicados detalhes tcnicos tm que ser vagarosamente expostos em

    linguagem simples, sobrecarregando frequentemente a pacincia dos mdicos vivazes,

    porm, quando a sesso termina, em geral j se chegou a uma compreenso bastante clara

    da situao, com a cooperao inteligente dos diferentes grupos do pessoal. Estas reunies

    sindicais so uma verdadeira escola de democracia[15].

    Estrutura da administrao sindical

    A base da estrutura administrativa dos sindicatos soviticos eram os j

    mencionados fabkom e mestkom, os quais possuam de cinco a cinqenta membros eleitos,

    dependendo do tamanho da empresa. Estes membros formavam o plenum do comit e

    elegiam anualmente um presidente e um secretrio, os quais, geralmente, devotavam todo o

    seu tempo ao trabalho sindical. Elegiam tambm, em instituies maiores, um presidium de

    seis a doze membros que era responsvel pelos mais variados sub-comits, como, por

    exemplo: os para proteo e cuidado com a sade dos trabalhadores; os de assuntos culturais;

    os de remunerao e litgio salarial; os de produo e melhoramento produtivo; os de exame

    de contas; os de finanas, entre outros que variavam de repartio para repartio. Como j

    foi dito acima, os fabkom e os mestkom eram responsveis pela administrao das empresas e

    tomavam as mais varadas decises atravs de reunies com todos os empregados do local,

    independente de suas funes. Alm disso, os comits eram responsveis pela organizao das

    brigadas de choque, que eram grupos especiais de trabalhadores excepcionalmente dedicados

    que entravam em competio socialista com outras fbricas, reparties ou instituies.

    Um degrau acima na estrutura administrativa, encontrava-se os Conselhos Regionais dos

    Sindicatos ou Conselhos Sindicais de Repblica (no caso das repblicas federativas menores

    que no possussem provncias). Eles representavam todos os estabelecimentos que numa

    determinada rea pertenciam a determinado sindicato, sendo esta rea um oblast (espcie de

    provncia da Repblica Russa) ou mesmo uma cidade grande como Leningrado ou Moscou.

  • Desta maneira, todas as instituies hospitalares de Moscou tinham seus empregados

    sindicalizados que, por sua vez, se reuniam em um Conselho Regional do Sindicato hospitalar

    de Moscou. Este conselho era eleito por um comcio de delegados que representavam

    os mestkom de todos os hospitais da cidade. Assim como nos comits sindicais, elegia-se para

    o conselho um presidente, um secretrio e um presidium de meia dzia de membros. A

    principal funo destes rgos era a de estabelecer relaes com os demais sindicatos da

    regio e, consequentemente, servir como uma forma de integrao dos trabalhos de

    diferentes empresas do mesmo setor em uma mesma regio.

    Cada sindicato possua ainda seu rgo central que abrangia todos os estabelecimentos da

    URSS desde o Bltico at o Pacfico, este era o Congresso Geral de cada Sindicato. Ele era

    constitudo por delegados escolhidos pelos Conselhos Regionais ou de Repblica e s se reunia

    de dois em dois anos, possuindo, portanto, um presidente, um secretrio e um presidium que

    desempenhavam a suprema administrao do sindicato. As principais atribuies desta

    entidade eram, de acordo com o Relatrio do 9 Congresso Geral dos Sindicatos, as questes

    de remuneraes e de fixao de tarifas e categorias: na organizao do trabalho e da

    produo; na construo de habitaes; a melhoria das condies de trabalho e de vida de

    seus filiados[16].

    Por fim, chegamos ao mais alto posto da hierarquia sindical sovitica, o Congresso Geral dos

    Sindicatos, que rene todos os sindicatos de todas as categorias e regies da URSS. Ele era

    formado por mais ou menos 2.000 delegados eleitos pelos diversos congressos de cada

    sindicato, em proporo ao nmero de sindicalizados. O congresso geral se reunia de dois em

    dois anos para discusses gerais e para a eleio do Comit Central Nacional dos Sindicatos

    (AUCCTU), do presidente, do secretrio e do presidium. Vejamos a opinio de um pesquisador

    dos EUA que participou de um destes congressos em 1926:

    Penetremos num congresso de trabalhadores russos; por exemplo, no mais recente deles, o

    7 congresso geral do AUCCTU. Notaremos a presena de cerca de 1.500 delegados. No so,

    como em muitos outros pases, todos os representantes dos comits centrais dos sindicatos

    nacionais. Na verdade, foram todos eleitos em congressos provinciais e dois teros deles so

    de homens e mulheres vindos da provncias. Cerca de uma sexta parte veio diretamente do

    torno mecnico, do tear e do arado. Apenas outra sexta parte de funcionrios das

    categorias mais elevadas dos sindicatos nacionais, escolhidos nos congressos provinciais.

    Esto representadas cerca de 33 nacionalidades e h entre os delegados quase uma centena

    de mulheres[17].

    A mais importante funo do Comit Central Nacional dos Sindicatos, de acordo com os Webb,

    centralizar e superintender as negociaes coletivas entre os representantes centrais dos

    vrios sindicatos e os comits e funcionrios representando o Sovnarkom (ou gabinete) dos

    Comissrios do Povo, o Gosplan[18] e os diversos trustes e outras empresas estatais,

    especialmente na liquidao anual do Plano Geral e no seu contnuo ajuste de detalhes[19].

    O AUCCTU era a autoridade suprema dos sindicatos, o governo central sindical, responsvel

    por todas as questes relativas ao trabalho nas empresas estatais. Inclusive, no ano de 1933,

    por decreto do Comit Central do Partido Comunista e do Comit Executivo Central do

    Congresso Geral dos Sovietes, foram abolidos os cargos de comissrio do povo para os

    Negcios do Trabalho da URSS, concentrando assim, todas as atribuies do ministrio do

    trabalho na prpria direo sindical.

    As Convenes Coletivas

  • As convenes coletivas na URSS eram nada mais nada menos do que as negociaes coletivas

    entre os sindicatos, o Sovnarkom, o Gosplan e quaisquer outros rgos ou instituies estatais

    envolvidas no desenvolvimento do Plano Geral da economia nacional. Como

    vimos anteriormente a principal funo do AUCCTU justamente superintender tais

    convenes em nome dos trabalhadores soviticos. No entanto, isto no quer dizer que o

    AUCCTU concentre todos os poderes em sua mo, distanciando-se da base sindical. Isto

    porque as convenes coletivas so discusses prolongadas e altamente complexas entre o

    AUCCTU e os comits centrais de todos os sindicatos soviticos, de um lado, e do outro os

    representantes do Sovnarkom, do Gosplan, entre outros organismos estatais. Nestas reunies,

    que ocorrem no incio de cada ano, discute-se o Plano Geral em seus pormenores, buscando

    estabelecer pontos que sejam favorveis sociedade como um todo, ou seja, o governo e os

    trabalhadores buscam trabalhar em conjunto para o desenvolvimento da nao, sem a

    oposio antagnica que normalmente ocorre em sociedades capitalistas. Para resumir tais

    convenes coletivas, citamos um trecho dos Webb:

    O que surge da discusso a distribuio especfica de todo o produto lquido da indstria

    da comunidade, a qual se chega pelo acordo quanto natureza e totalidade das quantias a

    serem destinadas a determinados fins de interesse comum[20].

    Tal distribuio especfica de todo o produto lquido da indstria influi em todos os campos

    possveis da nao. Decide-se quanto ser destinado para a expanso das indstrias, para a

    melhoria das condies de trabalho, para a sade e educao pblicas, para a defesa

    nacional, para a administrao da justia, para as pesquisas cientficas, entre tantos outros

    setores que fazem parte do dia a dia do funcionamento de um pas.

    O poder dos trabalhadores nas empresas estatais

    Aps a apresentao das estruturas e funes sindicais que, por si s, j nos do uma ideia do

    poder que os trabalhadores possuam dentro das empresas estatais soviticas lembremos

    o mestkom do hospital de Leningrado em que at mesmo as arrumadeiras que l trabalhavam

    participavam das reunies que decidiam as questes administrativas da clnica, alis, uma

    simples lavadeira era presidente do comit sindical; recordemos tambm o papel dos

    sindicatos na planificao socialista e sua conseqente influncia nos rumos da economia e do

    prprio desenvolvimento social da nao seguiremos para uma esfera mais prtica: a do dia

    a dia no local de trabalho. Aqui o objetivo apresentar alguns casos representativos do poder

    dos trabalhadores dentro das empresas estatais, no apenas organizaes sindicais e o modo

    como elas deveriam funcionar.

    Um primeiro e interessante caso o de V. R. Balkan, operrio que tornou-se inspetor do

    trabalho em sua fbrica em Moscou. Balkan e um membro do sindicato local investigaram um

    acidente ocorrido na fbrica no ano de 1937 e chegaram a concluso de que a causa fora o

    teste imprprio de materiais. Ento os dois multaram em uma centena de rublos o chefe da

    oficina de produo o que equivalia ao pagamento de vrios dias de trabalho e colocaram

    uma advertncia no registro do contramestre. Um livro contando esta histria foi publicado

    como guia para outros funcionrios sindicais, o que encorajou aes semelhantes de muitos

    outros trabalhadores[21].

    Outra situao, ocorrida em junho de 1935, demonstra a fora dos comits sindicais de

    fbrica. O fabkom da oficina txtil Svobodnyi Proletarii advertiu o diretor de l, deixando

    claro que se ele no resolvesse o problema de habitao dos trabalhadores, seria investigado

    por sua conduta. De acordo com Thurston, isto no era uma ameaa vazia, j que a

  • freqncia a qual os diretores eram presos por abuso de poder era bastante alta[22]. Em um

    caso semelhante que aconteceu na indstria txtil tambm, o Conselho Sindical Regional

    do oblast de Sverdlovsk, reunido em Dezembro de 1937, resolveu proibir categoricamente que

    os diretores de oficinas txteis permitissem a hora extra em violao da lei (ou seja, a no

    paga e no voluntria). Os presidentes dos fabkom deveriam monitorar as reclamaes feitas

    pelos operrios neste sentido[23]. Em fevereiro de 1938, o comit central do sindicato de

    mquinas-ferramenta ordenou ao novo diretor de uma fbrica a corrigir perigos que afetavam

    as condies de trabalho por l. Os problemas teriam de ser resolvidos at Dezembro. O

    comit tambm ordenou ao novo chefe de toda a indstria de mquinas-ferramenta que ele

    cumprisse um acordo sobre segurana assinado em Janeiro de 1938, ou o caso seria levado aos

    rgos competentes[24].

    Para completar o quadro, cabe a citao de alguns estrangeiros que vivenciaram a vida dentro

    das fbricas e o poder dos trabalhadores aplicados na prtica. O primeiro deles Walter

    Reuther, que trabalhou em uma fbrica de automveis na URSS na dcada de 1930. Vejamos o

    que ele diz de sua experincia no pas dos sovietes:

    "Aqui no h chefes para amedrontar os trabalhadores. Ningum para for-los a um ritmo

    de trabalho extenuante. Aqui os trabalhadores esto no controle. At o superintendente da

    fbrica no tinha mais direitos nestas reunies do que um operrio qualquer. J presenciei

    muitas vezes quando o superintendente falou por tempo demais. Os trabalhadores no recinto

    decidiram que ele havia tomado muito tempo e a palavra foi para um operrio que falou

    sobre seus problemas e apresentou sugestes. Imagine isso na Ford ou Briggs. Isto o que

    chamam l fora de 'ditadura implacvel na Rssia'. Eu lhes falo... Em todos os pases que j

    estivemos, jamais encontramos uma to genuna democracia proletria...[25].

    A outra citao da obra Red Medicine de Sir Arthur Newsholme. Em sua visita pela URSS, em

    1932, ele se depara com um financista de Wall Street que visitava as fbricas soviticas.

    Assim ele nos conta o caso:

    Desta discusso ns passamos para outra com um financista americano de Wall Street. Ele

    pde fazer uma minuciosa investigao da nova siderrgica em Magnitogorsk, a leste dos

    Urais, e de outras grandes novas fbricas. () O homem de Wall Street estava maravilhado

    com o desenvolvimento industrial que ele havia visto, assim como estvamos com os avanos

    no sistema pblico de sade. Ele estava impressionado, entre outras coisas, pela liberdade a

    qual era permitido aos trabalhadores criticar a gesto geral das fbricas assim como seus

    companheiros de ofcio. Ele falou particularmente dos 'jornais de parede' aos quais nos

    referiremos novamente. O americano defendeu que o futuro do 'Sovietismo' dependia

    largamente na manuteno desta liberdade de crtica individual.[26]

    Concluso

    Vivemos ainda no perodo da reao ps-revolucionria, da Santa Aliana do sculo XXI, em

    que as foras anti-comunistas detm o monoplio da informao e do controle social. A

    hegemonia da maior potncia capitalista ainda incontestvel apesar dos vrios sinais de

    seu esgotamento. Neste sentido, a ideologia hegemnica a ideologia do capital, do

    individualismo exacerbado, da propriedade e dos monoplios privados e, sobretudo, da

    explorao do homem pelo homem. Por isso somos bombardeados massivamente todos os dias

    por ideias que classificam o atual estado das coisas como natural e sem alternativa, a

    sociedade classista e portanto a sociedade dos privilgios seria o fim da histria. E ns,

  • seres humanos, seramos absolutamente incapazes de tomar as rdeas da histria em nossas

    mos e construir o futuro de forma diferente, de forma mais justa.

    Dentro desta perspectiva, a ideologia hegemnica tende a demonizar todas as formas

    possveis e imaginveis de contestao do status quo. Logo, a primeira experincia socialista

    do mundo , talvez, o alvo principal desta demonologia, pois ela no apenas contestou a

    hegemonia capitalista como tambm apresentou um modelo de sociedade que no se pautava

    pela anarquia produtiva, pela explorao do homem pelo homem e pelo egosmo mesquinho.

    A economia planificada surgiu na dcada de 1930 como uma vigorosa arma nas mos dos

    oprimidos, lanando uma nao semi-feudal e devastada pela guerra total ao posto de

    superpotncia mundial. Como disse Churchill certa vez, Stalin pegou uma nao que se

    baseava no arado de madeira e levou-a a era da energia nuclear. Aqui no se trata de

    vangloriar Stalin ou no, mas sim de reconhecer os avanos gigantescos que o socialismo

    trouxe Unio Sovitica. O desemprego foi eliminado, assim como a misria e a fome. Um

    eficiente, moderno e universal sistema de sade pblica gratuito foi implantado, a educao

    pblica gratuita tambm foi generalizada e o analfabetismo foi eliminado, mas no s isso,

    ela permitiu que camponeses como Yuri Gagarin se tornassem astronautas, cientistas,

    mdicos, ministros, etc.

    No cabe aqui a apresentao de todas as vitrias da Revoluo de Outubro, de todas suas

    virtudes e gloriosas conquistas. O ponto fundamental tratado por ns relaciona-se ao poder

    dos trabalhadores dentro da sociedade sovitica. Como dito antes, a ideologia dominante

    busca transformar a alternativa do socialismo em algo monstruoso e, portanto, impossvel de

    ser posto em prtica. Desta base ideolgica constri-se todo um corpo terico que aponta a

    Unio Sovitica como um terrvel exemplo de capitalismo de Estado, em que o Estado

    concentrava todo o poder e mandava e desmandava na populao da forma que bem

    entendia, chegando ao extremo de escravizar os indivduos em prol da ganncia de uma

    burocracia sdica e cruel.

    O argumento central desta teoria que os trabalhadores eram explorados na URSS da mesma

    forma que o eram no mundo capitalista, ou de uma maneira at pior. A mais-valia era

    extrada deles e concentrada pela dita burocracia ou nomenklatura, fato que certamente

    colocaria a URSS no hall das sociedades capitalistas. No entanto, um exame mais aprofundado

    da realidade material no pas dos sovietes coloca em cheque todo esta construo terica.

    Como falar de explorao do trabalho se a maioria esmagadora dos trabalhadores ou eram

    produtores-proprietrios ou trabalhavam para si mesmos? E mesmo a minoria que trabalhava

    para o Estado possua uma srie de mecanismos institucionais que garantiam poderes de

    crtica e at de demisso ou encarceramento de superiores que abusassem de suas posies.

    Sem contar que, como demonstrado anteriormente, a classe trabalhadora participava

    efetivamente da criao do Plano Geral da economia nacional, podendo decidir onde o

    trabalho excedente dela seria investido e como seria investido.

    Isto est bem longe de representar a espoliao dos trabalhadores por parte de uma elite

    burocrtica. O que o quadro geral de nossa apresentao demonstra um ntido Estado

    Proletrio, em que os trabalhadores possuem uma vasta representatividade e poder,

    influenciando nos rumos da nao e criando formas interessantssimas de auto-governo. Nas

    palavras de Robert Thurston, Os trabalhadores tornaram-se instrutores e inspetores e

    serviram em tribunais populares, em comisses de taxas e conflitos, entre outros rgos

    similares. Nestes papis, eles possuam autoridade sobre seus pares e, algumas vezes, sobre

    seus superiores tambm. Eles podiam impor sanes prprias ou iniciar processos nas cortes

    regulares. Tais aes eram exerccios de poder normalmente associados ao Estado.

  • Trabalhadores que exerciam funes oficiais podiam sentir que o Estado era deles de alguma

    forma, porque era mesmo; eles faziam parte dele. Trabalhadores que no faziam parte

    diretamente de instituies com responsabilidades estatais podiam apelar a tais rgos,

    serem ouvidos e, normalmente, receberem uma resposta razovel[27].

    Portanto, apresentar a Unio Sovitica como uma espcie de capitalismo de Estado , no

    mnimo, uma incongruncia forte em relao aos dados empricos. necessrio um estudo

    mais consistente desse gigantesco experimento socialista, deixando de lado as velhas cadeias

    ideolgicas geradas pela propaganda dos monoplios privados em prol de um conhecimento

    mais slido desta revoluo que , sem dvida alguma, um dos mais influentes

    acontecimentos da histria da humanidade. Quem sabe assim, poderemos conceber formas

    de organizao social que finalmente derrubaro a hegemonia do capitalismo monopolista e

    financeiro, colocando um fim sociedade dos privilgios.

    - Paulo Gabriel, Fonte: Centro do Socialismo (blog parceiro)

    Referncias Bibliogrficas e Notas

    [1] Os dados apresentados foram todos retirados da obra URSS, Uma Nova Civilizao de

    Sidney e Beatrice Webb, e representam os anos de 1934 e 1935, sendo que os nmeros

    relativos ao ltimo so apenas os dos trabalhadores independentes. possvel que no ano

    anterior houvesse mais deles.

    [2] Droschky pequena carruagem baixa, de quatro rodas, usada na Rssia. (Nota do tradutor

    da obra URSS, Uma Nova Civilizao de Sidney e Beatrice Webb.

    [3] WEBB, Sidney e Beatrice. URSS, Uma Nova Civilizao. Rio de Janeiro, Editora Calvino,

    1945. p. 387.

    [4] Idem, p. 288.

    [5] Sovnarkom Conselho dos Comissrios do Povo ou Ministros. Era o mais alto rgo do

    poder executivo sovitico.

    [6] WEBB, Sidney e Beatrice, Op. cit., p. 297.

    [7] Idem, p. 298.

    [8] Kulaks Camponeses mdios ou ricos que se utilizavam de trabalho assalariado para lavrar

    suas terras.

    [9] Alguns dados relativos produtividade da agricultura coletivizada (retirados de Stalin

    Um Novo Olhar de Ludo Martens, pp. 122-123): Em 1928, produziu-se 71,7 milhes de

    toneladas de cereais. Em 1930, 83,5 milhes de toneladas. J os anos de 1931 e 1932 foram

    ruins, caindo para 69,5 e 69,9 milhes de toneladas, respectivamente. Em 1933, a produo

    alcanou 89,8 milhes de toneladas. J no ano de 1937, atingiu a marca recorde de 120,9

    milhes de toneladas.

    [10] A receita mdia por famlia, nas regies cerealistas, era de 600,2 quilos de cereais e

    108 rublos, em 1932. Em 1937, era de 1.741,7 quilos de cereais e 376 rublos. (retirado

    http://www.centrodosocialismo.com.br/2013/02/uniao-sovietica-capitalismo-de-estado.html
  • de Stalin Um Novo Olhar de Ludo Martens, p. 121).

    [11] WEBB, Sidney e Beatrice, Op. cit., p. 352.

    [12] Idem, p. 371.

    [13] Idem, p. 384.

    [14] Idem, pp. 229-230.

    [15] HAINES, Anne J., Health Work in Soviet Russia, Vanguard Press, 1928, p. 33.

    [16] WEBB, Sidney e Beatrice, Op. cit., p. 257.

    [17] Soviet Trade Unions de Robert W. Dunn, 1927, p. 162. Citado em: WEBB, Sidney e

    Beatrice, Op. cit., p. 258.

    [18] Gosplan Espcie de Ministrio do Planejamento responsvel pela criao dos

    Planos Quinquenais que regiam a economia sovitica.

    [19] WEBB, Sidney e Beatrice, Op. cit., p. 259.

    [20] Idem, p. 244.

    [21] THURSTON, Robert W., Life and Terror in Stalin's Russia,1934-1941. London and New

    Haven: Yale University Press, 1996. A histria do operrio Balkan contada na pgina 192. Ela

    foi traduzida e elaborada por mim de uma outra forma, porm sem modificar o significado.

    [22] Idem, p. 190.

    [23] Ibidem.

    [24] Ibidem.

    [25] Retirado de: http://clogic.eserver.org/1-2/furr.html Segue a fonte apresentada por

    Furr: Phillip Bonosky, Brother Bill McKie: Building the Union at Ford [New York: International

    Publishers, 1953]. A traduo ao portugus de minha autoria.

    [26] Retirado de: http://www.marxists.org/archive/newsholme/1933/red-

    medicine/ch02.htm A traduo ao portugus de minha autora.

    [27] THURSTON, Robert, Op. cit., p. 192.

    http://clogic.eserver.org/1-2/furr.htmlhttp://www.marxists.org/archive/newsholme/1933/red-medicine/ch02.htmhttp://www.marxists.org/archive/newsholme/1933/red-medicine/ch02.htm