Gabriela Morais - a senhora de ofiúsa

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A Senhora de Ofisa

gabriela Morais

Apenas Livros

Digitalizao e Arranjo

Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado paraser lido por Deficientes Visuais

Dois adolescentes dos nossos dias mergulham numa excitante aventura passada na Pr-Histria portuguesa, recheada de maravilhoso, fantstico e... real.Esta rea da Histria, cuja imaginao tem tido dificuldade em dar rosto, torna-se prxima, compreensvel e quotidiana.Partindo de actualssimos achados arqueolgicos, a autora d vida aos nossos antepassados mais longnquos, fazendo-nos conviver com os seus objectos, conquistas culturais, possveis costumes e rituais, em cenrios reais de stios arqueolgicos como Lapedo, Escoural, Almendres e guas Frias. Atravs desses nossos avs e avs, leva-nos compreenso das caractersticas individuais e colectivas que formam a nossa identidade milenar.Um texto para todas as idades...A Senhora de Ofisa uma estria da Histria, uma forma inteligente, imaginativa e encantatria de viajar pelo tempo no espao portugus, dando a conhecer o que as mais recentes investigaes ensinam sobre as nossas invulgares e curiosas razes culturais - Maria Teresa Meireles (Professora e investigadora em Literatura oral).

Gabriela Morais

A Senhora de Ofisa

Apenas Livros

Gabriela Morais e Apenas Livros

Ttulo original: A Senhora de Ofisa

Reviso: Lus Filipe Coelho

Av. das Linhas de Torres, 97-3 dto1750-140 Lisboa

Tel./Fax: 217 582 [email protected]

Publicao n 244

1 edio: Outubro de 2007

2000 exemplares

Printed by Publidisa

Paginao - rodap

AOS COMPANHEIROS DE VIAGEM

Parti acompanhada para esta viagem Pr-Histria portuguesa pela Fernanda (Frazo), comigo andarilha da Terra de Ofisa: as suas muitas ideias esto aqui e ajudaram-me a dar o salto; pela Ana Maria (Freitas) e pela Maria Teresa (Meireles), andarilhas igualmente desta terra, com quem, por isso, me cruzei: as boas crticas e melhores sugestes a Seis Cabeas contriburam para concretizar a stima; e pela minha famlia: a minha irm, Manuela (Freitas), para quem a Pr-Histria um bicho-de-sete-cabeas inimaginvel, mas cujo esforo teve resultados aqui includos; o Z (Morais, como eu) e os meus filhos, o Lus e o Miguel, activamente dispostos a ler, a reler e a contribuir com novas ideias, propostas e pequenos (ou grandes) requintes.A todos estes companheiros de viagem agradeo e dedico A Senhora de Ofisa com um enorme gosto.E a todos os outros companheiros de outras viagens, sempre solidrios comigo.

Gabriela Morais

NDICE

I. Nas Casas Pintadas, 5II. A primeira prova, o primeiro segredo. Na tribo de Mnim, 21III. A segunda prova, o segundo segredo. Encontro com Manta, 55IV. A terceira prova, o terceiro segredo. Em Sebas, 81V. A quarta prova, o quarto segredo. Nas Terras do Meio doMundo, 102VI. A quinta prova, o quinto segredo. Do Palcio da MouraEncantada ao Monte Forte, 135VII. A sexta prova, o sexto segredo. Entre o Esporo Rochosoe a Aldeia da Serpente; o baptismo, 162VIII. A stima prova, o stimo segredo. Madalena, Mariana eMa-Ana-Tea, 197Posfcio. A Histria em A Senhora de Ofisa, 243Perodos da Pr-Histria includos nesta obra, 250Lista de imagens, 252

I - Nas Casas Pintadas

Maria no estava nada satisfeita. Tinha vindo passar as frias do Natal a casa da av Ana, de quem at gostava muito, mas esta trocou-lhe as voltas. Combinara ir ao encontro de Marta, naquela manh, para porem as conversas em dia e planearem o Natal, e a av Ana agora queria lev-la a um stio qualquer, ver uma coisa que, segundo dizia, era espectacular e cheia de segredos.Claro que Maria costumava divertir-se sempre com os passeios mirabolantes e aventurosos que fazia com a av, mas j no via a Marta desde as ltimas frias de Agosto e, francamente, apetecia-lhe mais a conversa com a amiga. Alis, tinha urgncia em falar com ela a propsito da distribuio pelos amigos das lembranas que trouxera de Lisboa. A av dizia-lhe muitas vezes para desafiar a Marta a ir tambm, mas as conversas a ter eram s entre as duas, sem ouvidos adultos por perto. E... pensando bem, desta vez, nem isso sugerira. Mesmo depois de ela lhe ter dado parte dos seus planos. Esquecera-se?Mas, na verdade, a imaginao de Marta no condizia com o estilo de coisas que fazia com a av (como tambm no condizia com o de nenhum outro colega seu) nem com as histrias de pasmar, que esta lhe contava a propsito do que iam vendo. Assim, era um desperdcio: nem conversava com a Marta, nem desfrutava das histrias da av Ana.Ainda tentou convenc-la a adiar a ida tal coisa espectacular e secreta, mas a insistncia foi tanta que acabou por ceder, embora muito contrariada.At estranhou a teimosia da av. Tinha de ser naquele dia, 21 de Dezembro, e a uma hora precisa. No era costume a av ser to casmurra. Ainda por cima, frisara com toda a seriedade que tinham de l estar, nesse tal stio, s 8,32 horas! Ser que tinha combinado encontrar-se com mais algum? Mas porqu uma hora to matutina e to pormenorizada ao minuto? Custava-lhe a admitir, mas a av devia estar a ficar com a teimosia dos velhos...E, logo pela manh, a uma hora demasiado inconveniente para quem est de frias, l veio ela cham-la para que se levantasse da cama e se arranjasse depressa.J eram 8 horas quando finalmente saram de casa. O cu estava de um azul ainda plido, o frio era bastante grande, mas os passos da av eram to apressados, que Maria nem o sentia, empenhada em correr a seu lado. E por mais que lhe perguntasse qual a razo de tanta pressa, a av s lhe respondia: Depois vers. surpresa.No acrescentava mais nada, mantendo-se muito calada ao contrrio do que era habitual, e estugava ainda mais o passo. Vou levar-te a casa de Vasco da Gama disse enfim a av Ana, minutos interminveis depois, perto da S de vora e prestes a entrar no Largo do Conde de Vila Flor, dominado pelo majestoso Templo de Diana , ou casa onde se diz que ele viveu. Nos finais do sculo XVI, foi integrada nas instalaes do Tribunal da Inquisio de vora. uma casa cheia de histria! Ah! limitou-se Maria a responder, com imensa vontade de acrescentar que nesse dia no estava muito interessada em nada daquilo.Era ento uma visita a uma espcie de museu, pensou, ainda mais perplexa. Ento, porqu a pressa? E porque tinha de ser logo no seu primeiro dia de frias? E com o pormenor da hora certa ao minuto... Que diabo, o que quer que fosse ver no fugia...!Contudo, como j no havia nada a fazer, no refilou nem fez perguntas. Agora tudo o que menos desejava era apanhar uma lio de histria, mas certamente esta iria ser inevitvel. Felizmente, a av continuou o caminho como anteriormente, sem dizer mais nada e, pelo que tudo indicava, a lio estava adiada, pelo menos por algum tempo (o que j no era mau de todo). entrada do largo, enveredaram por uma rua estreita, esquerda, que tinha exactamente o nome do navegador da ndia e a av dirigiu-se em direco a um grande porto verde.Maria reparou que junto a esse porto estava um rapaz aparentando ter um bom par de anos a mais do que ela. Tinha a pele morena, e os traos fisionmicos denunciavam ser de etnia cigana. A jovem observou-o, ainda mais intrigada quando compreendeu que ele as esperava, pois, mal as viu, Emanuel era este o seu nome apressou-se a cumpriment-las. Ol! J estava com medo que se atrasassem. Est quase na hora. Nem por nada! exclamou a av Ana. No ia querer que tu e a Maria perdessem esta oportunidade. av! Estou cada vez mais baralhada. No me explicas o que se passa? Tu vers na altura prpria. O Emanuel o responsvel por te teres levantado hoje to cedo e no teres ido ao encontro da Marta. E, apesar de estares a pensar que sou uma velha-teimosa-que-estragou-os-teus-planos-para-hoje, no vais arrepender-te de ter vindo. Mas o Emanuel explicar-te- tudo. E melhor do que eu. Vive com a famlia, perto de Monsaraz, e a av dele contou-lhe umas histrias, que quisemos vir confirmar. A av Formiga conta-me lendas daqui que diz esconderem histrias verdadeiras, por muito estranhas e estramblicas que paream. E este o pas das moiras encantadas, as lendas de que mais gosto. Conheces algumas? A av Ana j me prometeu que as iria contar. Eu sei que em Portugal estiveram os Mouros, e por isso... No! Estas lendas no tm a ver com os Mouros, como povo. Tm a ver com mitos, histrias muitssimo mais antigas. Quase do tempo em que no havia tempo. No conheces, por exemplo, a lenda da Quinta do Fidalgo...? comeou a dizer o rapaz, com ar de admirao, mas antes de ele pensar em cont-la, foi logo interrompido pela av Ana: No percas tempo agora. Est quase na hora. Explicas-lhe tudo l dentro.E de imediato, bateu campainha da casa de Vasco da Gama. Pouco depois, uma senhora de meia-idade assomava janela do 1 andar. Uma breve troca de palavras deu a entender que j eram esperados. Enquanto aguardavam que a porta se abrisse, Emanuel estendeu um saco de papel av Ana: A av Formiga manda-lhe isto. Ora a tua av...! Est sempre a dar-me presentes... Tambm quando l vai, no se esquece de os levar. Oh! Que bom! Muito obrigada disse a av Ana, toda contente. - Era desta erva que eu andava procura para o meu ch...Nesse instante, o porto abriu-se. Para maior surpresa de Maria, a av Ana despediu-se: Agora deixo-te com o Emanuel. Tenho coisas para tratar, e vocs no vo precisar de mim nas prximas horas. Manda um beijo meu tua av. Divirtam-se e... boa sorte!Rapidamente, a av Ana afastou-se, e Emanuel esgueirou-se por um corredor empedrado, de paredes altas e abobadadas, iluminado escassamente pela luz do Sol que entrava atravs de um ptio interior, alguns metros mais adiante. Maria seguiu-o, aconchegando mais o casaco, pois ali o frio e a humidade pareciam ter aumentado.A jovem viu Emanuel correr para umas escadas de pedra, ao fundo. Maria seguiu-o e desembocou num claustro de arcaria, assente em pilares de granito. O jardim, com numerosas plantas, tinha um aspecto um pouco arruinado.Esta casa deve estar abandonada desde o tempo de Vasco da Gama, pensou Maria perante o estado de tudo o que os rodeava. Reparou, ainda, que a outra senhora se retirara afinal, pensou, ela no devia fazer parte da histria e que Emanuel entrava na ala esquerda. Aqui, o sol comeava a penetrar, embora ainda palidamente.Maria foi-lhe no encalo e ficou especada, a olhar.Aquilo que estava diante dela era realmente uma beleza. E esqueceu-se do jardim arruinado atrs de si para se sentir dentro de uma casa pintada, coberta de frescos no tecto e nas paredes.No tecto, multiplicavam-se laos e ns, como se o artista que os pintara quisesse prend-los, chamar a sua ateno para o que estava l dentro. Na verdade, Maria sentiu-se impelida a observar cuidadosamente cada desenho muitos e variados , cada cor, cada frase do pintor. Porque ali, embora no estivesse uma histria escrita com letras, estava certamente uma histria (ou muitas histrias) desenhada de outra maneira. E o objectivo do artista cumpria-se inteiramente em Maria, agora puxada por uma fora invisvel, atrada para aquelas paredes, como que enredada em cada pintura por um lao do tecto. Nem o j descolorido dostraos a impedia, pelo contrrio, de quase se colar parede para perceber o que l estava; e de cada vez que olhava, mais desenhos descobria e conseguia decifrar. E no resistiu a puxar pelo bloco e o lpis de carvo que sempre a acompanhavam, para se pr a desenhar o que via.Aqui, lebres ou coelhos, alm, veados, mais adiante, vrios tipos de pssaros, dois galos que se defrontavam, um pavo e at um unicrnio. Era um nunca acabar de desenhos que se adivinhavam terem tido cores ainda mais brilhantes e vivas do que agora apresentavam. E esqueceu-se da av e do desmarcado encontro com Marta, do estranho Emanuel, da senhora que lhes abrira a porta, do jardim arruinado, para apenas olhar e recriar no seu eterno bloco a maravilha que tinha diante de si. Ali estavam contidas histrias de animais, de homens e de seres maravilhosos, como aquela Mulher-Pssaro sua esquerda, com um pequeno lao nos cabelos um toque surpreendente de normalidade numa personagem to estranha , e uma Mulher-Sereia.Estas duas ltimas figuras que se enfrentavam tinham a separ-las uma pequena porta e, como suas fantsticas guardis, pareciam convidar os visitantes a entrar.Maria subiu os degraus de madeira de acesso a essa porta para as observar melhor e com a inteno de aceitar o convite.Contagiada pelo tom de mistrio, pressentido na av e em Emanuel, acerca de uma qualquer histria sobre aquela casa, at pensou que, mal chegasse ao topo dos degraus, a porta se abriria e Vasco da Gama apareceria diante dela.Rindo-se para consigo mesma do seu excesso de imaginao (como os seus amigos lhe diziam constantemente), a verdade que atrada pelas figuras, meio mulheres, meio animais, a enquadrarem a pequena porta, esta adquiria um carcter ainda mais misterioso, e a vontade de a abrir cresceu.Determinada, Maria tentou empurr-la, mas a porta estava fechada e bem fechada. Emanuel, no se pode pedir para abrirem esta porta? Deve haver mais pinturas l dentro... Maria interrompeu a frase, ao ver Emanuel totalmente absorto. Este contemplava um raio de sol, prestes a poisar num ponto da mesma parede sua direita, escassos metros mais adiante; ao mesmo tempo, ele escrevia qualquer coisa num pequeno bloco semelhante ao dela. Antes, porm, de a jovem poder fazer alguma observao... Ssssssssssssss!Foi um rudo sibilino muito breve, mas ele apanhou Maria de surpresa. A princpio, ainda pensou ser Emanuel a mand-la calar; este, porm, estava agora muito quieto e silencioso, parecendo at ter-se esquecido dela.Onde estar a senhora de h pouco? Era bom pedir-lhe para nos abrir esta portinha..., pensou. E dispunha-se a prosseguir a observao das paredes pintadas, julgando ter imaginado aquele rudo, quando: Sssssssssssssssssssssssssssssssssssssss!Agora tinha a certeza. No tinha sido imaginao. O som vinha de onde estava o seu novo companheiro. Que rudo este, Emanuel?Emanuel no lhe respondeu, mas fez-lhe sinal para que se apressasse a ir ter com ele, dizendo: Anda depressa. agora e ainda tenho de te explicar o que se vai passar, para saberes o que temos de fazer. Olha para aqui!O rapaz apontava-lhe a parede sua frente, agora bem destacada do resto do corredor. Estava j toda iluminada pelo Sol, como se este se dirigisse com intencionalidade apenas para aquele local. O som escutado mantinha-se insistente e enchia nessa altura todo o claustro. Subira de tom e parecia sair de vrios pontos de um certo local... da parede pintada.Maria desceu as escadas de madeira prontamente e foi juntar-sea Emanuel. diabos! A pintura est a desfazer-se! exclamou, ao aperceber-se que o desenho se movia, como se estivesse a estalar ou a derreter-se. Vai estragar-se tudo! Mal empregado. Ainda no vi o que estava a pintado e...Emanuel interrompeu-a, dizendo-lhe em voz muito baixa: No faas barulho! Mas olha bem. Repara nas cabeas. Estoa descolar-se. V!Maria, j perto de Emanuel, compreendeu ento que a pintura, em vez de se desfazer, ia ganhando relevo e volume. E gritou, subitamente aterrorizada perante o que via. Cala-te e no tenhas medo sussurrou-lhe Emanuel. Sobretudo, no o mostres! A av Formiga insistiu imenso nisso. Ela no gosta, e capaz de se ir embora rematou, referindo-se figura desenhada na parede.

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Maria olhava-a e no queria acreditar no que via.Diante dos dois jovens, comeara a materializar-se um monstro enorme, de grandes asas bem abertas, cauda afilada e muito comprida, com sete longos pescoos sados de um s corpo, terminados em sete cabeas de serpente.Apesar da recomendao de Emanuel para no ter medo, Maria recuou e colou-se instintivamente parede, tentando passar despercebida. Ao mesmo tempo, olhou em seu redor em busca de um pau ou de qualquer coisa que servisse para se defender de um eventual ataque do monstro.Emanuel, por seu lado, mantinha-se no mesmo stio, de olhos fixos naquele ser que ganhava vida com a luz do Sol. Maria, espantada com a desenvoltura e a naturalidade por ele demonstrada, esforou-se por no dar parte fraca. Assim, respirou fundo para se acalmar e, embora hesitante, aproximou-se do rapaz.O corpo do monstro enchia cada vez mais, a ponto de se assemelhar a um enorme balo, escamudo e ondulante. Com movimentos sacudidos, por entre ssssssss e rudos do estalar da parede, tudo indicava que tentava desesperadamente destacar-se da restante pintura.Maria, hipnotizada, no despregava os olhos da parede movedia. No tenhas medo repetiu-lhe Emanuel. Era disto que eu estava espera. o solstcio de Inverno. A av Formiga tinha razo. Isto tem a ver com as lendas de que me falaste? Explica-me o que se passa pediu Maria. Tens razo. urgente faz-lo. A Bicha de Sete Cabeas no est aqui para nos fazer mal sossegou-a Emanuel. De acordo com a av Formiga, ela a protectora de Portugal. De norte a sul do Pas, so conhecidas as lendas das cobras-moiras, guardis de um grande tesouro que passar a pertencer a quem conseguir desencant-las. Mas para isso necessrio ultrapassar vrias provas, desafios muitas vezes perigosos, lanados pelas prprias cobras. Se, nalguns casos, meia-noite do dia de So Joo que elas aparecem, aqui a Bicha de Sete Cabeas revela-se se algum mortal estiver presente hora exacta do solstcio do Inverno. agora! Por isso, a av Ana insistiu tanto comigo na hora de aqui estarmos. Diz uma lenda de vora que a Bicha vivia dentro de uma cova escavada no centro do Templo de Diana, onde se meteu,

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quando ele foi construdo; na opinio da av Formiga, era da que ela nos protegia e onde guardava o tesouro. Quando este templo caiu em runas, a cidade foi quase destruda, e ela foi-se embora. Diz a mesma lenda que, se continuarmos a desprez-la, no cuidando destas pinturas, vora ser destruda de novo. diabos! Pelo estado arruinado deste jardim e desta pintura, ento... Mas porque dizes que a serpente a nossa protectora? Sempre ouvi dizer mal das cobras... que so ms como o Diabo Surpreendeu-se Maria. Isso foi o que inventaram muito depois. Antes, pelas suas caractersticas, ela era, bem como todas as outras cobras-moiras, uma representante da deusa mais antiga do mundo, a deusa Terra, me e criadora de todas as coisas. Mas por isso mesmo e para a substiturem pela ideia de um deus pai, encantaram-na e transformaram-na em diabo, para que a esquecssemos e a repudissemos. Mas... porqu? No percebo... Acho que tem a ver com a imposio de novos poderes... Mas isso agora no interessa. O que interessa que o seu tesouro foi de facto esquecido. Aprisionaram-na na S, mas ela manteve-se viva at que, cerca do sculo XVI, se refugiou nestas paredes, espera de que um dia soubessem desencant-la e assim se revelasse esse tesouro. De acordo com a av Formiga... Como que a av Formiga sabe dessa histria? E tu, tambm mostras saber coisas que mais ningum conhece. Ou de que as pessoas j se esqueceram, como dizes atalhou Maria. Desde muito pequeno que me interesso por certas histrias do nosso passado. At gosto de as escrever e de reinventar! A minha av sempre quis que eu fosse mais alm do que os livros da escola, e Gerio aconselha-a muito sobre o que ela me deve contar. Gerio!? espantou-se Maria Sim, um gigante que vive escondido numa gruta da nossa aldeia, com a idade da Terra, e vindo desses tempos esquecidos. Mas tu acreditas nessas coisas? perguntou Maria, ainda a querer convencer-se de que tudo no passava de uma partida. Isto no so efeitos especiais como no cinema, feitos por algum aqui desta casa a entrar connosco? Eu j vi Gerio. maior do que as maiores rvores. Talvez por ser mais velho do que elas. Ainda noutro dia, as pessoas da minha aldeia tentaram cerc-lo para o apanhar. Mas a av Formiga

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conseguiu avis-lo. So amigos, e se tu e eu conseguirmos descobrir o tesouro da Bicha de Sete Cabeas, tambm ele passar a confiar em ns. J prometeu. Ns? Mas ele no me conhece... Como que eu entro nesta histria? Como podia ser perigoso vir sozinho, a tua av convenceu a av Formiga de que eras a pessoa ideal para vir comigo. E Gerio concordou. Ah! Por isso, desta vez, a av Ana no sugeriu que Marta viesse... disse Maria, mais para com os seus botes. Irs conhecer Gerio, se tudo nos correr bem continuou Emanuel. A av Formiga aprende muito com ele. Ensina-lhe tambm os segredos das plantas e de outras coisas que conhece desde esse tempo em que nasceu, h milhares de anos. Como a da prenda que deste h bocado av Ana. Agora fiquei a saber de onde vm aqueles frasquinhos e cestos cheios de plantas com que a minha av faz uns chs muito bons... J me ensinou a fazer alguns. E do resultado para certas ms- disposies! A propsito: toma depressa o que est dentro deste frasco, para...Emanuel foi bruscamente interrompido. To entusiasmados estavam com a conversa que quase se tinham esquecido (caso isso fosse possvel) da enorme bicha pintada na parede. Esta, num ltimo esforo e com um safano de fazer tremer tecto e paredes, acabava de saltar para o cho. E foi por um triz que a Bicha de Sete Cabeas no lhes caiu em cima.Rpido, Emanuel deu um salto para trs, puxando Maria; porm, no conseguiu evitar que o pequeno frasco lhe escapasse das mos. Este deu uma pirueta no ar e desfez-se no lajedo em mil fanicos, derramando um lquido verde e transparente. O antiveneno! exclamou Emanuel. Mas a sua voz foi abafada pelo barulho ensurdecedor sado das sete bocarras das sete cabeas da Bicha.O sol, a bater-lhe em cheio em todo o corpo, espelhava-se nas milhentas escamas que a cobriam e tornava ainda mais vivas as suas muitas cores. Sacudindo-se, como quem acorda de um sono profundo de sculos (o que devia ser o caso), a Bicha abria e fechava as duas patas de garras compridssimas e afiadas e batia com fora as amplas asas, fazendo rodopiar o vento em torno de si.

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Cauda e pescoos volteavam tambm no ar e arrastavam nuvens de p e de folhas acumuladas no cho do claustro. Toma, Maria. Bebe isto depressa!No meio da enorme confuso, Emanuel conseguiu retirar do bolso outro frasco igual ao que se tinha partido e entregou-o a Maria, que no despregava os olhos da Bicha. Atordoada, a jovem recebeu o frasco de Emanuel e, quase automaticamente, bebeu-o. Segue tudo o que me vires fazer a partir de agora. Promete-me disse Emanuel, muito srio. Estamos os dois metidos nesta aventura. Se algum de ns no conseguir passar nas provas que ela nos impuser, o encantamento manter-se- e o tesouro continuar escondido. Promete que me acompanhas e que ficars sempre a meu lado, sem desistir s primeiras dificuldades.Perante a histria contada por Emanuel, a curiosidade de Maria tinha crescido. Por outro lado, a segurana evidenciada pelo seu companheiro tambm a tinha acalmado.Assim, predisposta a mergulhar naquela estranha aventura e vendo-o to srio e compenetrado a pedir-lhe tal compromisso, fez-lhe a vontade e disse: Prometo que te acompanharei sempre e que no vou desistir. Os dois juntos desvendaremos o tesouro!Com a promessa feita, Maria pensou ser melhor ento tentar ignorar o medo e passar tambm a desfrutar o espectculo que se lhe oferecia. E, ao fitar a bicha, sentiu que, afinal, quanto mais a olhava, mais se acalmava.A verdade que esta no parecia ameaadora. Pelo contrrio, era quase cmica. As cabeas contorciam-se como que a querer evitar o sol, a bater-lhe em cheio nos catorze olhos. O corpo, com os sete pescoos, tentava desesperadamente desembara-los, todos emaranhados uns nos outros. E este movimento era acompanhado por gritinhos e ssssss de aflio: No te ponhas minha frente, Ssserpentina! dizia umacabea. Afasta-te, Sssesarinha! Deixa-me obssssservar o primeiro raio de sol deste solssssstcccioooo! gritava outra. Hoje a vez da Ssserafina, ou seja, eu! reclamava maisoutra. No, no! Primeiro sou eu, a Csssecilinha! No se de esqueam, que sou eu a mais importante para a compreenso de tudo! Sssou a Viperina! Hoje temos finalmente

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quem nos essscute e vou poder dar lngua berrava a que se encontrava no centro, empurrando violentamente as trs cabeas que lhe ficavam de cada lado. Com uma afilada lngua, toda de fora, dava sapatadas nas outras. Eu, eu, a Cssselessstina! Logo gritou outra, entretanto. Quem julgas tu que s?...Maria, apesar de tudo, encolheu-se mais contra a parede quando reparou que esta cabea comeava a esticar-se na sua direco e a olhava fixamente: Oh! Ah! Tens razo, hoje temos visitas. At que enfim! Celestina, esticando tambm o pescoo, deu um puxo ao restodo corpo e avanou para mais perto de Maria e de Emanuel. Ol! Finalmente vou ter algum a ouvir o meu segredo. Se passar numa prova... Um segredo? Sete, sete segredos! Uma prova? Sete, sete provas! Ora, ora! No somos sssssete, sssssete, temos ssssete ssssegredosss! disse outra, que se virou directamente para os dois observadores. Ol! Eu sou a Cirandinha. Ciranda, cirandinha, vamos todas cirandar, uma volta, duas, trs... sete voltas vamos dar! Cirandinha esganiou-se e estendeu por sua vez o tambm enorme pescoo, quase tocando nos dois amigos, se estes no tivessem dado um salto para trs mesmo a tempo.O corpo do grande animal parara junto deles e olhava-os com os seus catorze olhos. To brilhantes que pareciam ter o Sol l dentro. E como um coro conduzido por Viperina, a cabea central, o monstro comeou uma bizarra lengalenga a vrias vozes:Eu souNs somosA Bicha de Ssssete CabeasSete cabeasSete nomes.Nome meuE ViperinaE o meu, Serpentina.Eu sou a CesarinhaOra essa, a Serafina,Agora eu, Celessstina.E mais eu, a Cecilinha.E ciranda a Cirandinha.

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Ns somos, somosA Bicha das Sete CabeasAs Sete Cabeas da BichaBicha-MoiraMoira-CobraCobra-MoiraMoira EncantadaPintada na CasaCasa Pintada de HistriaEstrias da HistriaDas Sete CabeasCada cabea um segredoCada segredo uma estriaEstrias de solstcioDe Inverno ou de VeroVero, veroRevelar-se o meu segredoSegredos at mais noQue vos irei desvendarSe conseguirem provarE a mim desencantar... Ssssssssccchhht! - Cirandinha interrompeu subitamente o coro das irms. - S o Emanuel, s o Emanuel que vai cirandar! Ela no! Ela nem sequer queria vir - rematou, com ar reprovador, indicando Maria.As sete cabeas pararam a gritaria instantaneamente, com ar ofendido. A que dava pelo nome de Viperina estendeu o pescoo, abriu a boca, mostrou a lngua e fez meno de abocanhar a jovem, paralisada de medo. Estamos aqui os dois vossa disposio - gritou Emanuel, entrepondo-se entre a Bicha e Maria. E virando-se para esta, disse: Mantns a promessa de me seguir?Maria acenou com a cabea, cheia de atrapalhao. No sabemos se merece... duvidou ainda Cesarinha. Pois! Se nem sequer queria vir aqui!... repetiu Serpentina. Esperem!!!! exclamou Maria, j estonteada com tantos gritos e guinchos. No se ofendam, mas o que se est a passar muito estranho para mim e quero que me expliquem...

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No temos nada de te dar explicaes respondeu Viperina. Que acham se a engolirmos, sem mais aquela? perguntou Celessstina. Vem ao jardim da Celessste, girofl, girofl... Isssso! Isssso! entusiasmou-se Serafina. Depois de tanto dormir, acordei com fome! Mas... no o que vamos fazer? estranhou Cirandinha. Esperem - gritou Maria, assustada de novo. Eu no queria vir, mas no sabia que era conhecer-vos o que a av Ana queria! O Emanuel j me contou umas coisas a vosso respeito e eu prometi-lhe... Prometo a vocs tambm que... Ah! Tambm queres desencantar o nosso tesouro? Oh, mas isso muito complicado. Tens de provar... cortou, duvidosa, a que dava pelo nome de Cecilinha. Ouve bem, meu cotumio... Se tens coragem para isso, Vais ter de dar provas disso So provas de compromissoNo so provas dum chourio cantarolou Viperina ao mesmo tempo que estendia at ao cho e aos ps de Maria, a sua compridssima e bifurcada lngua.A jovem recuou, para evitar que lhe tocasse. Tens de lhe tocar ordenou-lhe Emanuel. Foi o que a av Formiga me explicou. O veneno no te faz mal e s conseguirs desvendar tudo se tocares na lngua desta cabea! A av recomendou-me isso com muita preciso. No sei porqu, mas depois veremos.Ao mesmo tempo que dizia isto, Emanuel debruava-se para tocar na lngua estendida de Viperina.Porm, este seu gesto foi subitamente interrompido. Com um barulho cavo, a lngua encolheu-se, e as sete cabeas e os respectivos pescoos comearam novamente a rodopiar no ar. Maria e Emanuel viram-se obrigados a recuar outra vez para evitarem apanhar com todo o peso do seu corpo, a ameaar tombar num equilbrio muito instvel. A Bicha abria e fechava as asas, saltitava ora num p ora noutro, num bailado descontrolado e com a aflio prpria de quem se tinha engasgado. Seguindo os seus movimentos, os dois jovens verificaram que os sete rostos tinham adquirido umas vivas cores vermelhas, bochechas inchadas, prestes a rebentar. Alguns minutos interminveis depois,

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no fim de uma tremenda convulso, viram sair, da boca de Viperina, primeiro, umas pernas e, por fim, um corpo inteiro.Numa cambalhota de mais de trs metros de altura, um recm-chegado inusitado aterrou no cho, aos ps dos dois amigos, que o olharam assombrados: era um rapazinho, aparentemente com cerca de cinco anos e de baixa estatura; tinha o corpo coberto com peles de raposa, atadas cintura por meio de um cinto de couro, apertado com um n, e os ps revestidos com peles de coelho. E um pequeno coelho estava tambm pendurado cinta. Primeira pista e primeira prova guincharam as sete cabeas em unssono. Agora decidam o que fazer a ssseguir.Mas tomem muita ateno: Se entrarem nesta funo Umas vezes, agiro Noutras, nada faro... Nesta, p'ra comear ver, ouvir e calar. Se desta prova passar Quem nela agora entrar, Vai ter de continuar. E nas que ho-de chegar Ter de participar Para ajudar a mudar O que nelas encontrar. Bom senso ir precisar, Estar atento, observar E s depois actuar. Quem a Histria vai mudar Tem de se responsabilizar!Emanuel e Maria olharam um para o outro, sem compreenderem mais esta lengalenga. E Viperina ainda acrescentou com ar de quem os queria empurrar para qualquer lado: X! X! Logo iro ver O que vo ter de fazer A cada passo andado. X! X! Agora voSem mais hesitao Qu' isto j t comeado!Sem terem obtido melhores resultados na compreenso do que a Bicha lhes queria dizer, ambos olharam perplexos para o garoto recm-chegado. E mais perplexos ficaram ao ouvirem-no balbuciar palavras incompreensveis entrecortadas por um choro muito sentido: Mnim c tou gaino! Mnim cac ta na vi! Magoaste-te? De onde vens? Quem s tu? Anda, no chores, ns vamos ajudar-te consolou-o Maria.Mas o rapazinho continuava a chorar e a balbuciar, aterrorizado: Mnim cara ta daqui, Mnim qu da Ma! Emanuel, que vamos fazer? No percebo nada do que ele diz. E est assustadssimo! Vamos lev-lo para casa da av Ana... Espera, Maria atalhou Emanuel, numa ideia sbita. - Se veio de dentro da Bicha... Somos ns que temos de ir com ele e lev-lo de volta ao stio de onde veio. Para dentro da Bicha...!? O tesouro est l dentro? Ento essa a primeira prova...? Prova, prova cantarolou Viperina. Quem prova sou eu! Dois corpinhos bem a jeito... Dois corpos de gente nova! Agora vai tudo a eito. Se querem, querem, se no querem, vou-me embora! Foi por isso que Viperina nos estendeu a lngua!... balbuciou Maria. Gente nova, gente velha Subi, subi, subi, Do soalho at telha, A passagem por aqui P'la passadeira vermelha cantaram as sete cabeas em coro.E Viperina, j recuperada da crise que dera origem quele estranho vomitado, estendeu novamente a lngua diante deles. Foi por isso que trouxeste o frasquinho da av Formiga! Recordou-se Maria. - E no bebeste o antiveneno. Eu bebi-o todo! Se Viperina te morder...

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Mas se algum tiver medo, E no quiser arriscar, L se vai todo o segredo E meu encanto dobrar...Ainda esta nova cantoria no tinha terminado e j Emanuel dava a mo ao pequeno cado aos ps deles que continuava a falar numa lngua incompreensvel e avanava para cima da passadeira. E Maria no hesitou em segui-los.Viperina ergueu a lngua e de imediato Cirandinha tocou-lhe nas costas, empurrando a jovem com fora. Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...Maria chocou desamparada contra os dois rapazes e, ao som da cano de Cirandinha, os trs deslizaram aos baldes, a toda a velocidade, por cima do enorme escorrega vermelho at s profundezas da Bicha

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II - A Primeira Prova, o Primeiro Segredo

Na Tribo de Mnim

ana fechou os olhos com fora. Numa descida alucinante, at ao que julgou ser o estmago da Bicha de Sete Cabeas, sentiu os cabelos a serem repuxados e outros tantos puxes no corpo, a ponto de julgar que a pele lhe estava a ser arrancada.Depois de alguns minutos que pareceram horas aterrou num solo fofo que lhe amorteceu a queda.A medo, abriu os olhos. Afinal estava deitada em cima de um cho de erva alta e abundante. Pssaros gordos e pretos, semelhantes a corvos, esvoaavam em grandes bandos, recortando-se num cu de um azul intenso, como nunca tinha visto. Maria respirou fundo e sentiu a muita humidade do ar a entrar-lhe pelo nariz, bem como um intenso cheiro a terra e a erva molhada. Tentou sentar-se, afastando as ramagens que se emaranhavam em torno dela. O Sol, a subir no horizonte, brilhava, mas no evitava os arrepios de frio, apesar do que agora tinha vestido. Porque, e foi ento que reparou, em vez dos jeans, da camisola de gola alta e do casaco azul-escuro vestidos essa manh, estava embrulhada em pedaos de peles macias, cosidas entre si com tiras finas, passadas por entre buracos grosseiros feitos nas peles. Sacos de pele fofa cobriam-lhe os ps e chegavam-lhe at aos joelhos, atados com tiras de couro. Maria verificou ter agora os cabelos presos atrs, entrelaados com o que deveriam ser pedrinhas a decorar-lhe o penteado.

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Percebeu ento a razo dos puxes sentidos na atribulada viagem. Mas j no se admirava de nada do que lhe acontecia. E antes de pensar em examinar com mais pormenor o seu novo trajo e o que tinha na cabea, lembrou-se de Emanuel e do pequeno desconhecido. Onde estariam?A dimenso e a espessura da erva e dos arbustos sua volta dificultaram-lhe a vista: estava literalmente mergulhada num mar de vegetao. De um pulo, ps-se de p para olhar distncia. A poucos metros mais adiante, nesse mar de erva alta, muito verde, semeado de vrios tons amarelos e castanhos e entrecortado por rvores, viu uma depresso.Correu para l. O garoto sado da goela de Viperina estava debruado sobre um outro vulto, de vestes semelhantes s dela: Emanuel! gritou, reconhecendo-o. Este olhou-a e disse com a voz entaramelada. No consigo levantar-me! Foi mordido pela vbora que se escondia na toca deste coelho que eu vim apanhar disse o rapazinho sem dar mostras de se lembrar da sua queda no claustro das Casas Pintadas e mostrando o coelho pendurado no cinto. Eu tinha acabado de o caar na armadilha que lhe preparei, quando vi chegar o teu amigo. Senti a terra a tremer e o que aconteceu depois foi to rpido e confuso... Que grande susto! Nem deu tempo de o avisar. Depressa, aperta-lhe o brao por cima da ferida ordenou a Maria, enquanto lhe estendia uma tripa comprida.Num dos braos de Emanuel, comeava a formar-se um inchao avermelhado.Maria, tambm ela confusa como o garoto, obedeceu. Agora entendia perfeitamente a lngua dele, mas nem se deteve a esclarecer esse facto.Entretanto, o rapazinho retirou do cinto uma pedra grande e alongada com bordos finos e recortados semelhantes a uma serra e uma ponta bastante afiada. Com ela, fez um golpe em cruz por cima do inchao da ferida e chupou um pouco de sangue.Emanuel fez um esgar de dor. Vou fazer uma padiola. Temos de o levar depressa a Ma. Dito isto, o garoto levou boca um pequeno osso com algunsentalhes feitos com intervalos mais ou menos regulares. Um som curto, mas agudo, ecoou no espao, logo seguido de um som mais longo

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e de outros dois sons curtos. Como resposta, passados poucos segundos, ouviu-se um som semelhante. Vai chegar ajuda. No o deixes mexer-se para o veneno no se espalhar mais depressa e correu para junto de um pinheiro, perto deles. Enquanto comeava a partir alguns troncos, repetia o sinal emitido por aquela espcie de apito e outro lhe respondia, mostrando estar cada vez mais prximo.Maria consolava Emanuel, que gemia, culpando-se por no ter partilhado com ele o contedo do frasquinho que este lhe dera. Foste surpreendida pelos acontecimentos. E eu no podia deixar de vir. Se no conseguir, tu... Tu vais ficar bem... Emanuel, acorda! exclamou a jovem, assustada ao ver o seu companheiro desmaiar, sem conseguir dizer mais nada.O apito de resposta soava agora j muito perto deles. Segundos depois, chegavam um rapaz e uma rapariga. Seriam talvez da mesma idade, ou pouco mais velhos do que Maria. O rapaz trazia um grande embrulho de pele de veado debaixo do brao e ambos sustinham as pontas de uma vara, com um saco fumegante de pele nela pendurado.Dirigiram-se para junto de Maria. Depois de poisarem a vara, o rapaz correu para junto do garoto e, com um instrumento semelhante ao deste, ajudou-o a acabar de partir os troncos. Quanto rapariga, esta debruara-se sobre Emanuel, a observ-lo: Mnim fez bem o primeiro tratamento. Ainda bem que o teu companheiro dorme, porque agora tenho de completar o que Mnim fz. Sou Anhi apresentou-se entretanto. Aquele o Grun.Maria ouviu o falar de Anhi, igual ao de Mnim. Eram palavras curtas, compostas de sons sados da garganta entrecortados por uma espcie de estalidos feitos com a lngua. Mas o que mais estranhou foi compreender tudo perfeitamente, como alis tinha comeado a acontecer com Mnim, a partir do momento em que ali chegara.Atrapalhada e sem saber, por seu lado, como devia apresentar-se, sentiu-se aliviada ao ver que Anhi no estava preocupada com isso, porque absorvida em observar e tratar a ferida de Emanuel.E Maria, confiante pela destreza demonstrada, seguiu-lhe os gestos. Anhi retirara do cinto uma comprida e achatada lmina de slex e colocara-a sobre as brasas fumegantes contidas dentro do saco pendurado na vara. Minutos depois, com uma pequena pele

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de coelho a proteger-lhe as mos, pegou na lmina e aplicou-a na ferida de Emanuel. Este continuava a no dar acordo de si; no entanto, ao toque da lmina de pedra, abriu os olhos e gemeu. Depois, caiu no mesmo torpor.Entretanto, Mnim e Grun enfiavam os troncos limpos da folhagem atravs de uns buracos previamente feitos na pele que este ltimo trouxera. Em poucos minutos, a padiola estava montada. Nela deitaram Emanuel. Arrastaram-no at chegarem a um trilho que se internava pela floresta, mas onde a vegetao mais rasteira facilitava o deslizar da padiola. Antes de Maria pensar em como iria fazer finalmente a sua apresentao e a de Emanuel, Grun perguntou-lhe, olhando o penteado dela, com curiosidade: Vm da tribo da Terra da Grande gua? Isso faz-me lembrar as contas descritas por Cum, quando nos narra histrias antigas. Sim respondeu, agarrando a sugesto sem hesitar. Chamo-me Maria. E este o Emanuel e no pode deixar de sorrir ao ver o esforo de cada um a repetir os nomes deles. Gosto da cor dos teus cabelos, claros como as ervas do tempo mais quente. E do teu penteado... Ajudas-me depois a fazer igual? -perguntou Anhi, cujos cabelos, muito negros, estavam apanhados em carrapito. So lindas as contas que trazes a decorar o cabelo observou Mnim. Umas tm as cores do Sol ao deitar-se, outras, as das ervas molhadas. Gostava de ter umas iguais.Maria levou a mo cabea para oferecer a Mnim o que afinal, pela conversa, percebeu serem conchas. Porm, interrompeu o gesto ao ouvir Anhi: Mnim! Maria ganhou-as na tribo dela. No pode dar-tas sem mais nem menos. Tu ganhars o que te distingue, quando for a altura!Maria reparou ento na tira retorcida de pele de cobra, ao pescoo de Anhi, semelhante pele de escamas coloridas de Viperina: A ti esse colar que te distingue? Este colar e o diadema que uso em festas especiais e que me ser posto quando regressar ao ventre da Me Terra.Maria estranhou esta ltima frase, mas no disse nada.

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Foram-me dados no dia em que Ma, a pessoa mais velha da nossa tribo, me tomou a seu cargo para me transmitir o seu saber. Quando o toque de Mnim indicou algum ferido por uma mordedura de cobra, Ma enviou-me para vos socorrer. Pelos vistos, Mnim tambm aprendeu... Aprendemos todos a fazer os tratamentos mais simples, sempre a serem precisos. Mas, depois, Ma quem faz o curativo. No assim na tua tribo? estranhou Anhi. E as tuas conchas certamente indicam que... Sim, sim respondeu Maria, apressando-se a disfarar a conversa: E tu, Grun? Tambm tens alguma coisa que te distingue?Grun ostentou orgulhoso a cabeleira comprida entrelaada com pequenas tiras de couro, rematadas com uma pata de coelho e um pedao de cauda de raposa: Uso isto. Trato das peles, dos ossos e dos tendes dos animais que caamos. Mas tambm tenho um diadema para as tais ocasies especiais que Anhi mencionou. E o que trazes ao pescoo? Ah! Isto... Isto so os distintivos habituais das grandes caadas em que todos os que tm foras participam e Grun mostrou um colar feito com cerca de dez dentes de veado. Depois de cada caada disse Anhi , uma parte dos dentes e dos cornos guardada como tesouro da tribo; a restante distribuda por cada um, de acordo com o que conseguiu caar. Mas h alguns que se distinguem e fazem da caa a sua actividade principal. Tens de ver o colar e o diadema de Cum... Cum o chefe das caadas esclareceu Grun. E os adornos dele tm muito maior quantidade de dentes, sobretudo de cavalo e de auroque, o grande boi cornudo. Eu quero vir a ser caador como ele! Logo, ao nascer da Grande Lua, Cum vai dar-me o meu primeiro colar de caador exclamou Mnim, orgulhoso. - Vs este coelho? Passei a minha primeira prova! verdade, Mnim, muitos parabns! Cumpriste o que te foi pedido. Ainda por cima, tambm salvaste a vida a... M'nel disse-lhe Anhi a proferir com dificuldade o nome de Emanuel. E por esta proeza, nas celebraes de logo, talvez Cum te d j alguns dentes de veado... disse Grun. Mas, como Cum, vou chegar a caar auroques... E ento merecers o distintivo do caador disse-lhe Anhi, sorrindo.

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Na Terra da Grande gua como ?Uma leve, mas brusca restolhada impediu Maria de dar resposta quela pergunta embaraosa. De imediato, Grun e Anhi calaram-se e orientaram a padiola para fora do trilho, enquanto Mnim lhe fazia um gesto para que os seguisse sem fazer barulho. Pressentindo um perigo qualquer, a jovem acatou a ordem, acompanhando-os para trs de um grande bloco de granito a aflorar esquerda deles.Breves instantes passaram. O rudo da restolhada no s continuava, como at aumentara, a ponto de se perceber que o que quer que fosse estava cada vez mais prximo. Grun ento espreitou sub-repticiamente por entre um recorte da rocha, no que foi imitado por Anhi e Mnim. Por seu lado, Maria cheia de curiosidade no se conteve e espreitou tambm.Foi um espectculo o que viu: um pouco mais adiante, dois ursinhos de plo escuro ora corriam um atrs do outro, ora saltavam e se rebolavam na erva, mordiscando-se; pareciam cachorrinhos a brincar. Divertida, sentiu-se ao mesmo tempo aliviada: animais to engraados e to semelhantes a ursos de pelcia no era caso para sustos. E disps-se a saltar ao encontro deles, na tentativa de pegar um ao colo. Porm, o seu gesto foi interrompido por um forte puxo no brao: No faas isso! A me est certamente por perto quase lhe gritou Anhi.Mas no foi a me ursa que aterrorizou imediatamente Maria e os seus companheiros: por entre a espessa folhagem, uns olhos felinos cintilaram luz do Sol. Pouco depois, o senhor de tais olhos revelou-se ser um grande tigre, de dentes muito compridos, semelhantes a sabres afiados, a sobressarem de potentes maxilares. Ele seguia, atento e manhoso, o movimento das duas crias.Os quatro jovens encolheram-se mais contra a rocha e Maria ps instintivamente a mo sobre a boca de Emanuel, no fosse o amigo voltar a si ou fazer qualquer gemido que atrasse a ateno da fera.Rondando, vigilante, as pequenas presas a brincar, despreocupadas e sem proteco aparente, o tigre-dentes-de-sabre preparava-se para o salto fatal. Contudo, tal como Anhi previra, os pequenos ursos no tinham sido deixados ao abandono e um enorme urso-pardo apareceu. Erguido nas patas traseiras, com mais de 2 metros de altura, soltou um rugido que ecoou pela floresta. Lanou-se ento na direco do tigre e caiu-lhe sobre o dorso com todo o seu peso, de garras e dentes em riste.

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Estamos em frica?!, pensava Maria, atnita, enquanto se iniciava a luta sangrenta entre os dois animais.Todo o espao em redor parecia vibrar, pssaros espavoridos esvoaavam e abandonavam as rvores, que estremeciam perante tal violncia.Por mais de uma vez a vitria pareceu pender em favor do tigre-dentes-de-sabre. Mas a me ursa, embora j muito ferida, no se dava por vencida e enfrentava o seu adversrio, dando tempo a que as suas crias se pusessem a salvo num qualquer esconderijo fora da vista do tigre. E no momento em que os dois contendores no ardor da luta se afastaram para mais longe do trilho por onde os quatro, mais a padiola com Emanuel, deviam continuar o caminho, Grun deu o sinal de partida, sem esperar pelo desfecho.Aproveitando-se assim da concentrao dos dois animais na luta de vida ou de morte, os quatro jovens apressaram-se a fugir, tentando apesar de tudo manter o equilbrio da padiola.Muitos passos corridos depois no sem Maria olhar aflita e repetidas vezes para todos os lados Grun abrandou a velocidade. Anhi e Mnim aconchegaram Emanuel, felizmente ainda desmaiado. A jovem no deixou de estranhar o ar natural dos seus trs companheiros perante os acontecimentos, mas achou melhor no dizer nada.Ento ouviu Grun tocar no pequeno osso pendurado ao peito: sos e salvos, estavam a chegar ao destino, um espao aberto na paisagem, a avistar-se um pouco mais adiante.Nesta clareira de vegetao rasteira, apenas protegida de um dos lados pelo escarpado de uma montanha, estava montado um acampamento onde se viam vultos dispersos de gente. Toda a clareira era banhada pela acentuada curva de um ribeiro de gua muito transparente. Algumas rvores baixas e arbustos espalhavam-se aqui e alm e marginavam o curso de gua. Este era o brao de um rio nascido na montanha que caa em cascatas, vertente abaixo. Num socalco mais saliente, a parede rochosa da montanha formava uma espcie de aba sobre uma pequena enseada e dominava, imponente, todo o espao do acampamento.Nas margens do ribeiro, duas mulheres recolhiam gua para dentro de uns odres de pele, e um homem apanhava seixos arredondados. Trs crianas ajudavam, ao mesmo tempo que se entretinham a atirar pequenas pedras para dentro de gua. Perante o seu saltitar e os remoinhos provocados, riam e batiam palmas.

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Mais adiante, perto de alguns arbustos, uma mulher idosa colhia bagas, folhas e razes e guardava-as dentro de um pequeno saco preso cinta.Ao toque curto do apito, as duas mulheres pararam a sua tarefa de recolher gua e acorreram imediatamente em auxlio do transporte da padiola. Com a curiosidade natural das crianas, estas vieram logo atrs. O homem olhou e continuou a sua faina. S depois, Maria reparou que, apesar do desembarao demonstrado, este se apoiava num tronco, devido falta de uma perna. Aquele Not. Perdeu a perna na caa ao auroque, no ltimo local que habitmos disse-lhe Anhi, seguindo o olhar de Maria. E, diante do seu ar curioso, explicou ainda: Chegmos apenas h poucos sis a este local. O teu companheiro teve sorte em nos encontrarmos agora aqui. Esta a poca de maior corrente do rio e em que a caa e os frutos da terra abundam. Cum, Sim, Pot e Prec partiram para a caa dos animais da montanha, e ns ficmos a organizar as nossas coisas.De facto, medida que atravessavam o ribeiro, Maria observava que, no espao do acampamento, um pequeno grupo de pessoas se ocupava no cumprimento de tarefas especficas.Uma tenda de peles erguia-se, encostada parede rochosa do monte. Junto da entrada, ardia uma enorme fogueira, rodeada de seixos de vrios tamanhos para resguardarem as achas em chamas. Rolos de fumo e cheiro a resina pairavam no ar.Perto da fogueira, um rapaz ia e vinha at um trip, com cerca de dois metros de altura, feito de estacas enterradas no solo e unidas no topo por tiras de couro, onde estava suspenso um odre de pele. Com dois pequenos paus, em cujas pontas se encastravam duas pedras mais ou menos achatadas, retirava do fogo uns seixos em brasa e introduzia-os dentro do saco cheio de gua, comeando assim a fumegar.No muito longe desta armao, estava uma outra, mais baixa, uma espcie de gaiola feita de troncos finos e sob ela ardia uma outra fogueira, muito mais pequena. Uma rapariga, ajoelhada, nela pendurava pedaos de carne. Uma criana seguia atentamente os seus gestos, para depois a imitar. De quando em quando, a jovem atiava o fogo, deitando molhinhos de arbustos secos e um lquido resinoso, contido numa pedra escavada laia de tigela. Uma fumaceira espessa e aromtica erguia-se no ar e lambia a carne para a secar e conservar; para tempos de escassez, como esclareceu Anhi.

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Para a direita de Maria, num socalco pedregoso a algumas dezenas de metros da tenda, um homem munido de uma pedra utilizava-a como um machado e fendia uma salincia da rocha: lascas mais ou menos espessas voavam em torno dele. Perto, uma rapariga sentada noutra rocha entretinha-se a afeioar e a dar contornos nas pequenas lascas, com batimentos regulares. O companheiro vinha de vez em quando ter com ela, trocavam algumas palavras, faziam-se gestos e o bater ia evoluindo ou modificando-se.Mais adiante, no topo aplanado de uma elevao de terra, erguia-se uma armao trapezoidal de troncos grossos. Esta, exposta ao sol, sustinha uma grande pele de veado, bem esticada. Junto, via-se outra pequena fogueira e algumas carcaas de animais de vrios tamanhos. Um homem e uma mulher, mais duas meninas, afadigavam-se de volta delas, limpando-as e raspando-as. Levem-no para o p do fogo ouviu Maria dizer idosa, avistada a recolher plantas beira do ribeiro. Esta enfiara no saco a ltima raiz colhida e, com a faina dada por terminada, vinha ao encontro deles.Maria sentiu os seus olhos fixarem-se nela, mas no chegou a saber se a anci fazia teno de lhe dizer alguma coisa, pois j Mnim a puxava para se dirigirem tenda encostada parede rochosa.Na fogueira grande, uma mulher assava nacos de veado, envolvidos em largas folhas verdes e enfiados em espetos de loureiro; com um beb s costas, vigiava tambm a cozedura de pedaos de coelho colocados em cima de pedras planas, assentes perto do fogo. Cantarolava baixinho e baloiava suavemente o corpo, embalando o beb, todo embrulhado em aconchegantes peles, semelhantes s que todos envergavam.Os portadores da padiola penetraram na tenda. A cerca de dois metros de altura, troncos de rvore sustentavam as peles que formavam o tecto e as paredes laterais. Esses troncos estavam firmemente encaixados em buracos escavados na rocha, e algumas pedras grandes e pesadas mantinham as peles junto do cho.Maria verificou que a tenda era afinal uma espcie de alpendre protector da entrada de uma enorme caverna. E, l dentro, viu que o espao estava bem delimitado, marcando o que se percebia ser utilizado como um grande quarto de dormir. Uma boa parte do solo fora aplanado e cuidadosamente coberto de musgo e folhagem.

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O restante espao, embora mantivesse o solo irregular, estava atapetado de pequenas pedras que chegavam at cerca de trs ou quatro metros do fundo escuro da caverna.No enorme cho fofo de folhas e musgo, deitaram Emanuel e cobriram-no com peles. O calor da grande fogueira, canalizado pela cobertura de peles a proteger a entrada, chegava at ali e criava um ambiente confortvel e protegido do muito frio e humidade l de fora. Venham as duas comigo! disse a velha senhora, j a encaminhar-se para o fundo da caverna. Mar...i... ammm... Mar... Mar tambm vai? perguntou Anhi, admirada e com uma visvel dificuldade em proferir o nome de Maria, optando depois por simplific-lo. Claro! Foi para ver tudo que ela veio seguindo frente delas, a anci desapareceu rapidamente num meandro escuro do fundo da caverna. estranho... O local de Ma interdito a outras pessoas, excepto ela e eu. As suas mezinhas podem dar a vida ou tir-la e no devem ficar expostas aos olhos de qualquer pessoa... Muito menos o seu fabrico. Mas Ma tem sempre coisas inesperadas e sabe bem o que faz. Deve ser da sua muita idade. Cum contou-nos que ela se juntou tribo, ainda antes de ele ter nascido e que, quando era pequeno, o mesmo lhe contavam os mais velhos...Maria estava intrigadssima: para alm do olhar que tinha captado sobre ela (que lhe lembrara qualquer coisa...), a resposta de Ma a Anhi fora ainda mais enigmtica. Sem saber porqu, compreendeu ser alvo de uma ateno bem diferente da que tinha despertado junto de qualquer outro membro da tribo, incluindo Anhi ou Grun. E a prpria Anhi dava mostras de estranheza perante a atitude da anci. Mas o tom categrico desta no permitiu quaisquer objeces e, assim, um pouco a contragosto, pois no queria abandonar Emanuel, predisps-se a seguir Anhi. Ficou mais sossegada no entanto, quando, ao contornar o quarto de dormir, olhou o local onde tinham deixado o amigo e viu a mulher com o beb s costas vir sentar-se perto dele.Depois da curva de um corredor muito comprido e escuro, Maria entrou numa ampla sala escassamente iluminada por alguns pequenos seixos escavados e onde ardiam mechas feitas de musgo mergulhadas num lquido gorduroso. Um odor a plantas misturava-se com o odor a resina queimada, a musgo e com

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um cheiro da humidade do interior da caverna. Viam-se aqui e alm agulhas pontiagudas de gelo, suspensas do tecto. Fios mais ou menos grossos de humidade escorriam pelas paredes rochosas da gruta, cujo tecto, apenas adivinhado, ficava muitos metros acima. Maria, transida de frio, encolheu-se mais debaixo das peles que a cobriam.Ma debruava-se j sobre uma espcie de degrau formado pela parede rochosa do fundo. Nas costas e na cabea tinha uma capa feita de uma pele escamuda cujos reflexos brilhavam luz das candeias. Estas, porm, emitiam to tnue claridade que no deixaram v-la mais em pormenor.Ao longo de todo o topo desse degrau, mesa improvisada de um estranho laboratrio, estavam poisados vrios recipientes de casca de rvore, de osso ou de pedra, contendo inmeras sementes, bagas, folhas ou razes de plantas e lquidos coloridos mais ou menos espessos, mais ou menos transparentes ou gordurosos.Com pequenos instrumentos de osso recortados em forma de colher ou esptula, Ma retirava ora de um, ora de outro recipiente, as pores de plantas achadas convenientes. Depois, mascava-as e deitava-as para dentro de uma pedra escavada laia de vaso onde continuava a tritur-las com o auxlio de uma outra pedra mais pequena e arredondada na extremidade. De seguida, vertia alguns dos lquidos e obtinha uma pasta cremosa. Todos estes gestos eram acompanhados de uma cantilena sussurrada e de um oscilar do corpo, como se danasse sem sair do mesmo stio.A um sinal de Ma, Anhi juntou-se a seu lado, no sem antes ter retirado de um canto mais escuro uma espcie de cachecol comprido. Segurando-o por uma das pontas, p-lo ao pescoo e enrolou-o volta de cada brao. E Maria viu-a apertar a ponta do cachecol para dentro da vasilha de pedra.Antes de poder compreender o que se passava, Ma ordenou-lhe que a acompanhasse at ao mesmo canto escuro da sala. A, Maria viu ento um outro grande recipiente de casca de rvore com uma tampa firmemente atada por meio de fios entranados. Ao abri-lo, Ma mostrou-lhe que o cachecol de Anhi era afinal uma cobra bem viva e muito semelhante quela que via no fundo do cesto. Pega-lhe assim recomendou Ma , faz como Anhi e deita o veneno para dentro daquele outro vaso.Maria, aterrorizada, recuou.

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Ento, Ma ergueu uma das lamparinas que tinha na mo e p-la altura do seu prprio rosto.O que Maria via era devido escassez da luz e ao manto de cobra da velha senhora ou imaginao sua? Ma estava transfigurada na Bicha de Sete Cabeas. E a cabea que a olhava era: Viperina! Bebeste sem pensar o lquido que Emanuel te deu, e agora deves... Isso foi porque... No te culpes nem te desculpes. As coisas so ou no so, e assim tm de ser vistas. Ests aqui trazida por ele, mas agora tens de saber como vais agir e qual o teu passo seguinte e com ar prazenteiro, cantarolou:

Ouve bem, meu cotumio... Se tens coragem para isso, Vais ter de dar provas disso So provas de compromisso Mas eu... Quem s tu? Que terra estranha esta? Quem so estas pessoas? Porque compreendo tudo o que se diz? Que... Compreendes tudo, porque passaste pela lngua de Viperina e foi-te concedida essa possibilidade. Agora o que interessa saber se continuas o caminho comeado, ou no. Tens de saber escolher o que a cada momento preciso fazer. Claro que, se quiseres, podes ir-te embora j e tudo isto no ter passado de um sonho. Mas se escolheres ficar, vers que esta terra e estas pessoas no te sero to estranhas assim. Tens porm, de saber que aqui, de cada gesto, depende a sobrevivncia, e assim acontece contigo e com Emanuel. E da sobrevivncia vai depender o futuro. No s o nosso, mas o de todos. E o teu tambm. A lngua de Viperina... Mas afinal, quem ela? Ou... quem s tu? Primeiro, escolhe o que vais fazer. Quem sou, quem somos, s sabers, medida que fores vendo. Se escolheres continuar... As coisas so ou no so, no ? Prometi a Emanuel acompanh-lo. E uma promessa uma promessa! Cumpri-la-ei!E Maria, sem mais hesitaes, seguiu risca os gestos anteriormente ensinados por Ma. Pegou na cobra e ajudou-a a terminar a poo que curaria Emanuel.

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J junto deste, com a pomada aplicada e a poo bebida, ele retomava as cores do rosto e ganhava foras.Aproveitaram ento uns breves momentos a ss, para Maria lhe contar tudo o que at a vira e ouvira. Tenho pena de no ter comigo o meu bloco para desenhar estas pessoas e esta terra. Devo t-lo perdido... Nem podias trazer! Como eu. Tambm vou tomando notas para as histrias que gosto de contar... Mas so coisas que aqui no existem. E a Bicha de Sete Cabeas sabia disso. Lembras-te do que nos disse, a certa altura:Se entrarem nesta funo Umas vezes, agiro Noutras, nada faro... .. .Nesta, p'ra comear ver, ouvir e calar... completou Maria. Agora comeo a perceber algumas das coisas ditas pela Bicha. Por isso, tambm nos vestiu assim. Acho que estamos em Portugal, mas no tempo do nosso passado, no tempo pr-histrico, e dele que falam certas lendas... Faz-me lembrar muito do que a av Formiga me conta. Em Portugal!? exclamou Maria. Que estranho... H coisas to diferentes! Mas acho que tens razo. A mim tambm me faz lembrar o que li e vi em certos livros de Histria ou programas da Televiso. E ao mesmo tempo... estas pessoas so parecidas connosco, apesar de tudo. Anhi, Grun, Mnim... Simpatizei logo com eles! E o engraado que parecem saber outras coisas, que ns no sabemos. Sobreviver aqui, sem os meios que temos no nosso tempo, obra! J pensaste que s podiam t-lo conseguido com capacidades que ns no temos ou j perdemos? Isso v-se at no modo como se comportam. Qualquer mido com a idade do Mnim, no nosso tempo, no faz as coisas que ele faz... E Anhi e Grun... Ao p deles, sinto-me muito mais mida. Devem viver num ano o que ns vivemos em cinco ou dez! E, j reparaste, Maria, se eles ou outros como eles no tivessem sobrevivido, ns nunca teramos chegado a existir? tambm por isso que a Histria me tem fascinado desde sempre. Saber deles

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tambm saber um pouco mais de ns prprios... e do nosso futuro. E a vida que se leva, numa aldeia como a minha, quase to dura como aqui. Engraado, Ma disse-me que estar aqui tambm determinaria o futuro. No percebo ainda bem como, mas talvez venha a compreender, medida que for vendo...E Maria olhou para Emanuel, com admirao: bem sabia que ele era mais velho do que ela, mas, mesmo assim... A verdade que o que lhe dizia parecia fazer sentido. Na cidade, pessoas como eu e da minha idade esto muito longe de saber ou de dar importncia a certas coisas disse ela por fim, depois de se ter quedado pensativa durante uns momentos. uma sensao estranha... Mas agora, ao v-los ao vivo, comeo a compreender perfeitamente que fazemos parte da mesma cadeia. Nunca tinha pensado nisso! So famlia, no sei explicar... como se fossem nossos pais... ou avs. At o Mnim!Quando finalmente Emanuel se ergueu da cama, os dois repararam ento num saco preso vestimenta dele com uma laada de um cordo de fibra vegetal. E l dentro havia grande quantidade de conchas muito coloridas como as que Maria tinha a decorar o penteado e pedaos de peixe seco embrulhados em algas.Porm, vozes em alvoroo e apitos de instrumentos semelhantes aos de Grun e Mnim no lhes deram tempo para analisar mais nada em pormenor. Precipitando-se para a entrada da gruta, viram gente em correria em direco a um grupo de homens que chegava. Dois deles carregavam com visvel dificuldade uma vara aos ombros, pois nela estava suspenso pelas patas um auroque, o antepassado do boi. Um outro arrastava uma padiola, semelhante de Emanuel, transportando um ferido.E, tal como tinha acontecido chegada deles ao acampamento, a padiola foi conduzida para o interior da caverna, com Ma a comandar as operaes. Maria e Emanuel ainda viram um corpo ensanguentado, mas foram logo distrados por Mnim, encarregado de os levar para junto dos outros recm-chegados. Estes, apesar do frio que fazia, despojados das peles sujas de p, banhavam-se noribeiro.Do local onde estava a pele de veado a secar e para onde fora transportada a vara com o auroque, Grun rapidamente trazia outras peles para eles as vestirem, depois do revigorante banho de rio.

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Ela e Emanuel reconheceram Cum, quando este recolocou ao pescoo o maior colar de todos, enfeitado com inmeros dentes de vrios tipos de animais de grande porte. Era um homem imponente, de ombros e rosto largos, tronco forte, cujas marcas de cicatrizes provocadas por acidentes de caa eram bem visveis. Tinha uma longa barba, j grisalha, e grisalhos eram tambm os cabelos, altura dos ombros e que ele agora penteava para trs com um osso dentado. Com este gesto, tornou evidentes mais cicatrizes, uma na fronte, outra vinda do canto do olho direito at ao queixo; elas acentuavam-lhe ainda mais as rugas fundas do rosto. Maria reparou ento nas semelhanas com Mnim, nos maxilares fortes, nariz largo e sobrancelhas salientes. At a cicatriz na bochecha, embora maior, se assemelhava a uma idntica que agora notava no rosto do seu jovem e novo amigo. Os olhos de Cum tambm no eram muito grandes, mas o olhar vivo era semelhante ao de Mnim e igualmente expressivo. Sejam bem-vindos, gente da Terra da Grande gua. Estes so Sim e Pot. Infelizmente, o nosso irmo Prec no estar connosco para vos receber tambm, devido aos ferimentos provocados pelo auroque que investiu contra ns e o apanhou. Mas vm a tempo de assistir -ttSTIMI passagem deste rapazote, um dos ^'.nossos futuros grandes caadores disse Cum, fazendo uma festa nacabea de Mnim, que acabava de lhemostrar o coelho trazido ainda cinta. H muitas luas que novamos gente das vossas paragens...Apreciamos muito as vossas visitas.Durante as refeies, costumamoscontar ao Grun e aos mais novos as vindas anteriores e o quesabemos sobre a vida na Grande gua. Que novas nos trazemdesta vez?Maria e Emanuel trocaram um rpido olhar entre eles, e este ltimo disse: Trouxemos isto e mostrou o saco das conchas e dos pedaos de pescado preso sua vestimenta. Venham! Mora anuncia-nos que est na altura de nos reunirmos para comer e beber e, assim, todos veremos ao mesmo tempo o vosso presente.

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De facto, a um chamamento feito pela mulher que trazia o beb s costas e que Maria vira a assar a carne, todas as pessoas dispersas pelo acampamento comearam a dirigir-se para junto da grande fogueira.Cum adiantou o passo e trocou breves palavras com ela.Aproveitando a distraco momentnea, sobretudo de Mnim, que corria frente deles, Maria disse baixinho a Emanuel: Viste a cara de Cum quando lhe mostraste o presente? Fez o mesmo ar contente da tua av, ao ver a prenda que lhetrouxe. Por estas e por outras que acho que so parecidos connosco... Pois ! Esta terra no nos to estranha assim, como disse Ma. Eu tambm levei para vora presentes para dar aos meus amigos. Ainda bem que a Bicha de Sete Cabeas se encarregou disso, seno no tnhamos nada para dar; para alm de me parecer uma falta, impedia-nos de ver esta reaco...Mas j Cum se aproximava para os levar para junto de Mora, que desempenhava as funes de anfitri: Sejam bem-vindos! disse-lhes ela. Convido-vos a partilhar da nossa refeio.Mal isto ouviu, Mnim puxou-os para a roda da fogueira, onde, um a um, se iam acomodando todos os membros da tribo.As actividades quotidianas pareciam ter chegado ao fim. E coincidiam com o andar do Sol, a descer no horizonte e a anunciar tambm a aproximao do final do dia.Maria e Emanuel foram ento mostrados a toda a tribo. Um a um, iam dizendo o seu prprio nome, com ar orgulhoso. E de novo houve risos perante a dificuldade em repetir os nomes dos recm-chegados. Engraado segredou Maria , todos tm nomes curtos. E acharam difcil dizer o nosso. O nico nome que no ficmos a saber foi o do beb... Outro av nosso, como tu dizes! riu-se Emanuel. Aguardemos a chegada de Ma e de Anhi disse Mora, enquanto todos se sentavam no cho, volta do fogo.Entretanto Mnim, sentado entre Maria e Emanuel, tentava espreitar para dentro do saco deste. Mnim! repreendeu-o Grun, sentado ao lado de Maria. A partir de hoje, deixars de ser como o beb de Mora. Tens de esperar como todos ns.

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Mnim corou, disfarou e ps-se a brincar com pequenos seixos do cho. Fazia-os saltar no ar e depois apanhava-os um a um. Satisfeito por ter desperto a ateno de Maria para o seu jogo, mostrou-lhe as diversas habilidades que fazia.Maria puxou discretamente o brao de Emanuel: Reconheces?E os dois entreolharam-se, espantados por verificarem a semelhana desta brincadeira de Mnim com o jogo das cinco pedrinhas: Costumava brincar a isto com a av Formiga e os meus amigos! E eu, na praia com a av Ana, quando era pequena! Finalmente, Ma e Anhi apareceram, passados poucos minutos. Aqui, a vida de Prec acabou anunciou Ma. volta da fogueira, todos se calaram. E sempre em silncio, deram lugar a Anhi e a Ma na roda do fogo.Esta, de p e virada para o Sol que comeava a avermelhar o horizonte, ergueu as mos ao cu e iniciou um cntico a que se juntaram Mora e Anhi.No era um cantar triste. Era alegre e ritmado, acompanhado pelo batimento de pedras e o esfregar de pequenos paus uns nos outros, a surgir nas mos de um rapazinho Cri e de Min, uma outra jovem. Por seu lado, Grun, Cum e Mnim fizeram soar tambm os seus pequenos ossos com entalhes e, desta vez, as notas eram harmoniosas e muito semelhantes ao som de flautas. Pouco a pouco, outras vozes se juntaram no mesmo cntico e, um a um, conforme iam cantando, punham-se de p. Quando apenas faltavam eles no coro, incitados por Ma, Maria e Emanuel imitaram-nos. Por fim, todos deram as mos e danaram ao som ritmado das vozes e dos instrumentos musicais. Rodavam volta da fogueira, ora para um lado ora para outro, e cruzavam-se de mo em mo.Maria e Emanuel, apesar de sentirem que o momento era de tristeza para os elementos da tribo, tambm verificaram que entre eles pairava uma grande serenidade. E estranho era o sentimento crescente da ligao estabelecida com todos. Cada nova mo que apertavam parecia celebrar a alegria de um encontro qualquer. Era como se sempre se tivessem conhecido.Quando as vozes e a msica se calaram, a dana parou tambm, e Mora fez sinal para que todos se sentassem. Sem mais demora,

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deu incio refeio, distribuindo o seu quinho de comida a cada um, enfiado no respectivo espeto. Comeou por Cum e pelos outros caadores Sim e Pot , devido ao trabalho extenuante tido naquele dia, segundo os informou Anhi, sentada ao lado de Emanuel. Por sua vez, Pico, o rapaz que Maria tinha visto a meter seixos quentes dentro de um saco, deu aos mais pequenos uma cabea bem limpa e raspada de coelho e, aos mais velhos, a de uma cora. Em todas elas, fumegava um caldo de gua, gordura, folhas carnudas e cogumelos. E, seguindo os gestos dos outros, Emanuel e Maria empurraram para a boca os pedaos slidos da sopa, auxiliados por um pequeno osso arredondado na ponta.Todos comeram em silncio, concentrados no caldo e nos nacos de carne que trincavam. No houve qualquer comentrio morte de Prec, e o saco de Emanuel parecia ter ficado esquecido. A refeio demonstrava ser assim um momento muito especial entre eles. Quando todos terminaram, devolveram a Mora os objectos utilizados. Com gestos naturais mas respeitosos, ela guardou-os a um canto da fogueira, depois de os passar pelo fogo e pela gua contida dentro do oco de uma grande pedra. Ma ps-se ento de p, olhou para o horizonte e elevou a voz acima da algazarra iniciada, sobretudo pelas crianas: Ao nascer da Grande Lua, teremos o corpo de Prec pronto para a celebrao do seu regresso Me Terra. E que este coincida com o renascimento do Sol. Festejaremos ento as passagens de Mnim e do novo membro da tribo que Mora nos concedeu. Que renasam os trs ao mesmo tempo para as suas novas vidas - disse Cum. - E agora recebamos o presente dos nossos dois visitantes vindos da Terra da Grande gua.Emanuel e Maria ergueram-se. Soltaram o saco preso ao trajo de Emanuel e iam a dirigir-se a Cum. Ma, porm, num olhar cmplice que lanou a Maria, sorriu e disse: Mora, a guardi dos nossos lugares de descanso, recebe-o debom grado.O contedo do saco foi depois espalhado no cho em cima de um pedao grande de couro trazido por Grun. Inmeras conchas redondas terminadas em topos mais ou menos espiralados brilharam luz do fogo e do crepsculo avermelhado, a poente. E Maria compreendeu bem o que Mnim lhe dissera sobre as cores das conchas que trazia no cabelo. Havia-as vermelhas e alaranjadas, da cor do cu naquele instante, e verdes, castanhas e amarelas, da cor da terra.

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Os embrulhos de algas continham pequenos peixes, pedaos de baleia e de outros espcimes, j secos. Depois de entregues por Mora a Mia, a jovem que Maria vira a cuidar do fumeiro, as conchas foram distribudas pelos vrios membros da tribo, de acordo com as prprias escolhas. Do mais velho ao mais pequeno, cada um recebeu um conjunto de trs. Mora guardou outras tambm para o seu beb, aconchegando-as no embrulho de peles.Mnim pulava de contente, exibindo nas mos uma concha cor de laranja, outra, verde, e outra, castanho-escura e comparava-as com as de Maria, que ria s gargalhadas, apesar dos puxes de cabelos da resultantes.No final da distribuio, Mora embrulhou cuidadosamente as restantes no pedao de couro que tinha servido para a exposio. Nunca vi a grande gua... Como a Terra da Grande gua? perguntou Mnim. Olha para o ribeiro e tenta imaginar que a sua gua vai muito para alm daquelas rvores, to para alm que deixas de ver terra e s vs a gua, muito azul respondeu Emanuel. E vocs vivem dentro de gua? espantou-se Mnim. Claro que no. A grande gua chega at terra. E h praias e... Ao ver a cara de espanto de Mnim, Maria calou-se, com medode se alargar demasiado a contar como era a costa que conhecia, certamente bem diferente da costa daquele tempo. E h rochas, como aquelas que vemos na montanha interveio Cum, a ouvir a conversa. Hoje deviam ser vocs a contar uma histria da vossa terra... Hoje no h histrias, Mnim! Toca a dormir cortou Mora, pegando nas mos de duas crianas, que logo se aproximaram de Maria, ansiosas por ouvir uma histria. V, escusas de refilar. E o repouso j vai ser demasiado curto. Descansa: sers acordado para as celebraes.Mnim, muito contrariado, acompanhou Mora, no sem antes correr para Maria e Emanuel para lhes saltar ao pescoo. Foi um abrao caloroso e sentido. Um abrao que iria ficar para sempre na memria dos dois jovens recm-chegados tribo de Mnim. Ainda c esto quando acordar? perguntou-lhes o seu novo pequeno amigo. Se nos for permitido... respondeu Maria. No posso esquecer-me que a ti, em primeiro lugar, devo a minha vida. No quero perder a tua festa... se nos deixarem disse Emanuel.

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Claro! Ainda no a altura de partirem declarou Ma. Gostaremos muito que estejam presentes disse Mora, porseu lado. Agora obedece a Mora, Mnim. Mar, vem com Anhi e comigo ordenou Ma. E tu, vem comigo e com Grun pediu Cum, por sua vez, aEmanuel.De regresso sala de Ma, Maria viu o corpo de Prec estendido num degrau da rocha de uma outra parede que, ao contrrio da vez anterior, agora estava iluminada por algumas candeias. O frio e a humidade penetravam atravs das peles, e Maria, por isso, ou pelo ambiente, tremia da cabea aos ps. Nunca at quele dia tinha visto um morto, a no ser no cinema, e isso no era real. Nem sequer vez alguma tinha estado num enterro. Tudo o que dizia respeito morte era para ela tema de adultos, ou melhor, de velhos, e era coisa que nem pensava ou queria pensar. Agora s queria fugir dali. Era muito mais agradvel ter ficado a conversar ou a pentear Anhi, como ela tinha pedido. Ou ter ido com Emanuel e com os outros...Perdida nos seus pensamentos, foi de sbito chamada realidade pela voz de Anhi a cantar. Surpreendida, olhou para ela e viu-a, com a maior das naturalidades, a ajudar Ma de volta docorpo de Prec.Ma, embrulhada de novo na capa de pele de cobra, veio ao seu encontro e ps-lhe uma outra capa sobre os ombros. Com esta pedra tritura esse pedao de rocha que a est disse-lhe e mistura o p assim obtido com um pouco de gua e gordura. Queremos que Prec esteja bonito para o seu reencontro com a Me Terra. E ela o transformar de novo, como transforma as rvores e as flores. E isso lindo, no ? Canta connosco uma cantiga que gostes e oferece-a a Prec, congratulando-te com ele. Sentir-te-s mais contente.Assim, enquanto Anhi auxiliava Ma a limpar e a preparar o corpo de Prec, Maria enchia a vasilha de pedra com uma tinta vermelha muito escura, resultante da mistura que ia fazendo. E surpreendeu-se a si mesma a cantar. Ma e Anhi juntaram as suas vozes dela. S ento Maria reparou que as pusera a cantar uma cano do... sculo XXI! Ou talvez de outro sculo qualquer...Dando por terminada a tarefa, Maria entregou a vasilha a Ma e o corpo foi todo pintado pelas trs. No final, e embora no fosse

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exactamente a mesma cor, pensou que Prec estava agora como se o sangue lhe voltasse a correr nas veias.Vestido por fim com novas peles, Ma decorou-lhe a cabea com um diadema feito de inmeros dentes de auroque, o seu distintivo em vida, e um colar onde se viam ossos de veado perfurados e trabalhados como pequenas esculturas, a lembrar cabeas de animais. Foi ele prprio quem as fez esclareceu Anhi. Tinha um jeito especial para isto.E na mesma padiola em que tinha sido transportado para ali, as trs trouxeram-no para a entrada da gruta, onde Mora reactivava o fogo da fogueira. A Lua cheia comeava a nascer.Cum, Grun e Emanuel tambm chegavam. Este correu para Maria e mostrou-lhe o colar que fizera com as trs conchas de Mnim: Olha! Aprendi a perfur-las como eles fazem. bem complicado: so to pequenas... tive medo de as partir. Mas Grun tem muito jeito e ajudou-me! E isto um entranado de ps de ervas como os que utilizam para os colares ou pulseiras que usam. Preparem-se agora para partir - disse-lhes Ma, ao ver chegar todos os membros adultos da tribo.Um a um, desfilaram diante de Mora. Esta, banhando troncos numa mistura lquida de gordura e resina, acendia-os na fogueira e, assim, transformados em archotes, comeou a distribu-los. Foi s ao dar por concluda esta tarefa que autorizou que acordassem as crianas para, como explicou, elas terem o maior tempo possvel de repouso. Mnim correu, estremunhado at aos seus dois novos amigos, mas quando se lembrou do seu pequeno tesouro das trs conchas coloridas e no o encontrou, comeou a chorar. No chores, Mnim disse-lhe Emanuel. No as perdeste e ser-te-o devolvidas mais bonitas do que eram.Consolado com esta promessa, ps-se ao lado dele e preparou-se para a marcha, j a comear. frente, iam Ma e Anhi, logo seguidas por Grun. Cum, ajudado por Sim e Pot, os outros caadores, transportavam a padiola com o corpo de Prec. Maria e Emanuel repararam noutra padiola levada por Pico e Mia, a jovem do fumeiro, e Toe e Tam, o homem e a rapariga vistos chegada a cortarem e a afeioarem a pedra. Uma pele, atada com uma fita de couro, protegia o carregamento desta padiola. Os restantes membros da tribo iam logo atrs, assim como eles prprios, de mo dada com Mnim. Mora e as

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outras crianas fechavam o cortejo, alumiado pela luz dos archotese pela luz da Lua.Durante algum tempo, caminharam ao longo da margem do ribeiro. Em breve, alcanaram as faldas da montanha, a estender-se bem para alm do acampamento. O caminho, sempre a subir, comeou a tornar-se mais difcil. Mas Grun tocava no seu pedao de osso perfurado, acompanhado pela batida ritmada de pedras feita por outros componentes da procisso. Emanuel pediu, ento, a Mnim que lhe emprestasse o dele e, dando mostras de uma certa mestria nas artes musicais, conseguiu harmonizar-se com os restantes. A verdade que a msica estimulava o andamento e no deixava esmorecer as crianas; ou Not, o homem sem uma perna, que se apoiava na sua bengala de tronco de rvore.A certa altura da caminhada, luz do luar, comeou a vislumbrar-se, num dos socalcos, uma lngua comprida de terra, situada a meia altura da falsia escarpada. A oeste, essa pequena enseada confinava com uma imponente queda d'gua, a despenhar-se do alto do pico da montanha; a leste, uns metros mais abaixo, brilhava uma pequena lagoa. As suas guas brotavam de uma outra nascente, acumulavam-se ali e escoavam-se, mais adiante, pelos meandros mais ou menos abruptos das faldas rochosas da montanha. O seu rudo juntava-se ao fervilhar da cascata e, medida que o grupo se aproximava do local, esse som sobrepunha-se ao batimento rtmico das pedrinhas e msica de Grun e de Emanuel.A subida comeava a ser cada vez mais penosa, e a pouca luz contribua para aumentar as dificuldades. Maria via-se aflita em acompanhar o passo desenvolto dos outros, mesmo o das crianas e o do homem sem uma perna. Envergonhada e quase em pnico, foi salva por Emanuel. Este demonstrava estar muito habituado quelas andanas e veio oferecer-lhe o brao para se apoiar. Por seu lado, Mnim, rindo-se da atrapalhao dela, indicava-lhe com preciso os stios onde devia pr os ps. Mas para Maria o local de destino da procisso parecia-lhe nunca mais chegar. A certa altura, viu a entrada de uma gruta, um pouco mais para a direita, de acesso ainda mais difcil e, assustada, perguntou a Mnim: para ali que vamos? Como...? No! Ela j foi habitada, h muitas luas atrs, segundo as histrias que nos conta Cum. Mas, s vezes, o cho mexe-se muito e modifica a terra. Agora, no podemos l ir.

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um risco escusado. Sobretudo para as crianas disse-lhe Mora. - V, segue por aqui e vers que o local escolhido ainda mais apropriado para Prec ficar. Assim, ele estar connosco at chegar a altura de nos mudarmos para outro stio, seguindo o trilho dos animais que conhecem bem a Me Terra e os seus espaos acolhedores.Com o seu archote, Mora iluminou-lhe um fino caminho de terra at enseada, perto da cascata.A parede saliente e rochosa da montanha formava uma espcie de aba sobre aquela estreita lngua de terra, sobranceira pequena lagoa e dominava a paisagem em seu redor. Dali, avistava-se distncia o fogo ainda vivo da fogueira do acampamento, e Maria reconheceu ser aquele o marco da paisagem que notara sua chegada ao acampamento.No cu, a Lua principiava a declinar. A luz dos archotes concentrou-se por debaixo da aba da parede e os portadores de Prec poisaram a padiola. Com os seus instrumentos de pedra retirados da segunda padiola, comearam a escavar a terra. Mora, um pouco mais adiante e do outro lado da enseada, empilhou algumas achas tambm retiradas da mesma padiola e, com o seu archote, acendeu uma fogueira. E tal como Maria a tinha visto fazer na grande fogueira do acampamento, principiou a assar nacos de carne.Mas aquela segunda padiola era uma verdadeira caixinha de surpresas! Porque, de cima dela, todos os outros membros da tribo vieram retirar inmeros objectos, como colares, diademas ou pulseiras e com eles se enfeitavam para a cerimnia que se iria seguir.Ma e Anhi puseram nos ombros as suas capas de pele de cobra e, na cabea, colocaram um diadema: um entranado de caules de plantas. Este sustinha, sobre a testa de cada uma delas, uma pedra branca e brilhante, escurecida no meio por um crculo, debruado a carvo preto e preenchido com a tinta vermelho-escura preparada por Maria. A velha senhora dirigiu-se ento jovem e ps-lhe nos ombros a capa que, antes, ela j tinha envergado. Na cabea, Ma colocou-lhe ainda uma fita larga, exactamente igual delas, onde se encrustrava uma pedra a brilhar intensamente luz da fogueira. O Olho de Viperina! exclamou Maria, impressionada com a semelhana.Em jeito de profecia, a velha senhora disse-lhe:

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Confio-te este sinal, no s pelo que fizeste at agora, mas pelo que fars daqui em diante. Por ele te reconhecero!Por seu lado, Cum dirigiu-se a Emanuel e ps-lhe tambm na cabea um outro adorno, feito de ossos com pequenos traos incisos, semelhante ao que ele prprio trazia: Foi Prec e Grun que o fizeram esclareceu. Tu e a tua amiga fazem agora parte do grupo.Nesta altura, o local estava j francamente iluminado pela luz da fogueira. E enquanto todos os outros se sentavam volta do fogo, Ma e Anhi vinham acender ramagens de pinheiro. Quando a escavao do tmulo junto parede da montanha e sob a sua aba rochosa foi dada por terminada, ambas colocaram as ramagens ardentes no fundo do poo escavado. Achas que uma rplica da fogueira que utilizam em vida? perguntou Maria a Emanuel, quando os dois observavam com curiosidade a queima das braadas de pinheiro. Talvez. L, na minha aldeia, tambm utilizamos muito a fogueira para nos reunirmos c fora, noite. E roda dela, comemos, contamos histrias, cantamos e tocamos... Adoro fazer isso! L em baixo, no acampamento, vieram-me memria esses momentos. So to parecidos! Quando voltarmos, tens de l ir. Em Lisboa no deves fazer isso! Claro que no! J viste o que seria? E quero imenso ir conhecer a av Formiga e a tua terra. Na cidade aprendemos umas coisas, mas outras, ignoramo-las completamente. Tu mostras estar aqui muito mais vontade do que eu... Aprendi muito cedo a desenvencilhar-me de situaes que vocs, na cidade, nem sonham. Isso traz consigo outros costumes... Tambm os meus antepassados andaram, como a tribo de Mnim, de terra em terra, at h muito menos tempo do que os teus. E l, na minha aldeia, ainda vivemos muito do que a terra d e do contacto com ela. Infelizmente, isso est a desaparecer. Talvez por isso que a av Formiga me conta tantas histrias antigas e me despertou o interesse por elas: para que nunca fiquem esquecidas. Como, afinal, a av Ana faz comigo... Tenho alguns amigos que talvez ainda julguem que os coelhos nascem nos supermercados, assim sem plos e j embalados! Mas, engraado, gosto de estar aqui. ... maravilhoso! E tu tambm sentes que estes so to teus antepassados como meus, apesar de seres de etnia cigana...

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A nica coisa diferente que eu vivo no campo e tu na cidade. Afinal, no somos ambos da mesma terra? riu-se Emanuel. Quando voltarmos... Maria fez uma pausa e depois perguntou: Vamos voltar, no vamos? De certeza que sim. S no sei como. J ests arrependida de teres vindo? Nem penses! Mesmo que no voltssemos... bem... de qualquer modo, acho que valeu a pena!A conversa foi mais uma vez interrompida por Mnim, a pux-los para a roda da fogueira.Um forte cheiro a resina pairava no ar. E o crepitar do fogo juntava-se ao rudo das crianas, a pularem e a baterem as palmas ao som da msica tocada nos pequenos ossos perfurados, aos batimentos de pedras e s vozes dos que cantavam. Maria quase lhe gritou Emanuel. Anhi e os outros esto a cantar uma msica que ns conhecemos!Maria contou-lhe ento o que se passara na caverna. E contagiados, cantaram tambm.A um sinal de Ma, todos se dirigiram a certa altura para o local onde Cum, Grun, Sim e Pot colocavam o corpo de Prec, sobre as ramagens de pinheiro j queimadas: deitado ligeiramente de lado, como se dormisse, com as pernas um pouco flectidas sobre o peito, tinha os ps virados para oeste e a cabea para leste. Alegremo-nos por Prec e por ns, meus irmos e companheiros! rezou Ma. Que te ergas com o Sol para a tua nova vida!Que renasas da Me Terra, como tudo renasce sempre, planta, animal, homem, Sol, Lua e todos os brilhos do cu!A reza, repetida por todos, foi sendo substituda de novo... pela cano de Maria, comeada a entoar por Ma e Anhi.Ao som dos cantares que foram variando , cada um passou em frente do tmulo de Prec e nele depositou a sua oferenda. Quando chegou a vez de Mnim, este entregou o seu coelhinho, caado horas antes. Maria retirou as conchas do cabelo e, ao ver Emanuel atrapalhado por no ter nada para dar, meteu-lhe discretamente algumas delas nas mos. Assim, ambos as colocaram tambm sobre o peito de Prec. Por fim, Mora trouxe um grande espeto carregado de pedaos de carne e um dos embrulhos de algas contendo o naco de baleia dado por Maria e Emanuel; e foi a vez dela de colocar a sua oferenda junto do corpo.

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Depois disto, todos vieram sentar-se de novo volta da fogueira para comerem e festejarem. Ainda o Sol no nascera, quando Cum, Sim e Pot comearam a cobrir o corpo de Prec com terra e pedras. Um montculo arredondado, como um ventre grvido de mulher, ficou a assinalar a presena do tmulo. Em cima dele, Ma depositou as trs conchas que teriam cabido a Prec, resultantes da distribuio do presente de Emanuel e Maria e, ainda, um conjunto de outras pertencentes ao tesouro da tribo. uma por cada membro da tribo, que sempre recordar Prec explicou Grun baixinho a Emanuel. A do beb ser colocada a seguir cerimnia da sua passagem de beb a menino.Depois de as conchas terem sido devidamente espalhadas na terra ao longo de todo o montculo, Cum nele enterrou a haste de uma zagaia a arma de caa de Prec. Os inmeros traos incisos que a decoravam representavam cada presa caada por ele. E a zagaia ficou erguida sobre a campa, a assinalar o local do enterramento.Maria e Emanuel deram ento conta de que Cum, Sim e Pot, acompanhados de Grun, caminharam ao longo do lado esquerdo da parede rochosa para depois desaparecerem da sua vista. Intrigados, viram o tempo a passar, sem que o pequeno grupo voltasse.Na roda da fogueira, Emanuel distraiu-se a jogar s pedrinhas com Mnim e mais algumas crianas. Aqui e alm, conversava-se ou dormitava-se, ao calor agradvel do fogo.Maria entreteve-se a observar Mora e Ma a prepararem uma espcie de ninho forrado com peles de raposa sobre uma rocha beira da gua da lagoa. Um dos lados da rocha, em declive suave at ao cho, parecia formar o assento de um cadeiro. Tambm este foi forrado com uma pele maior, de veado. Queres fazer-me um penteado igual ao teu?Anhi estava junto dela e estendia-lhe um osso dentado, semelhante ao que vira nas mos de Cum. Maria sorriu. Era hbito fazer o mesmo sua amiga Marta, quando esta se queria preparar para uma festa. Soltou-lhe os longos cabelos pretos e fartos: So espectacula... lindos emendou rapidamente e muito parecidos com os cabelos de Emanuel. Condizem com a cor dos teus olhos. Mas quando olho para os teus cabelos da cor do Sol e os teus olhos da cor da gua... invejo-os! respondeu Anhi, um pouco envergonhada.Maria deu uma gargalhada que surpreendeu Anhi. exactamente o que uma amiga minha me costuma dizer explicou, mas sem acrescentar que Marta pintava os dela. Ali, isso parecia-lhe quase uma blasfmia. Olha! No meu cabelo, sobrou uma concha da cor do pr do Sol. Vou p-la aqui atrs, a rematar a trana... Mas assim ficas sem nenhuma! protestou Anhi. E eu tenho as que me couberam na distribuio feita por Mora. Guarda-as para um colar ou uma pulseira. Esta a minha oferta particular! disse Maria, vencendo assim a resistncia dela. Quando regressar minha terra, apanharei outras. Ma disse-me que tm de regressar. Vou ter muitas saudades tuas. Parece que te conheo h sis e luas! Mas talvez um dia nos possamos voltar a encontrar! Ma s vezes diz coisas estranhas, e ela...A chegada de Grun no permitiu que Anhi completasse a frase. E a insistncia dele para que o acompanhassem no lhe deu tempo para esclarecer o que fora dito.Grun chamou igualmente Emanuel e Mnim, e os cinco dirigiram-se para o tal local recndito onde o tinham visto desaparecer antes, acompanhado de Cum, Sim e Pot.A chegados, luz dos archotes empunhados por estes, Maria e Emanuel abriram a boca de espanto: aquele local da parede estava coberto de pinturas a vermelho e preto, com maravilhosos desenhos de um veado, um cavalo e um auroque. Grun, ostentando as mos cheias da tinta de ocre, semelhante feita por Maria, e mascarradas do carvo de pequenas achas retiradas da fogueira, olhava-os orgulhoso, atento reaco. Agora, falta uma homenagem a Prec, ainda mais especial disse Cum. Queremos deixar aqui os vestgios da nossa passagem e assinalar o local onde deixmos ficar o nosso irmo. Gostava que assistissem e... colaborassem!Com um osso oco, banhou-o numa pedra cncava cheia da tinta de ocre e encostou uma mo parede: Observem e faam como eu com um dedo encolhido e o resto da mo espalmado e aberto contra o muro, ps o osso na boca e soprou com fora. Um jacto de tinta vermelha muito escura espalhou-se na parede clara do rochedo e deixou o retrato em negativo de uma mo de quatro dedos. O dedo em falta simbolizava Prec.

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Um a um, todos o imitaram.Mnim, com a aquiescncia de Grun e Cum, auxiliado por um slex pontiagudo, na zona mais macia da parede desenhou ao jeito infantil uns traos grosseiros ondulados ou a direito: Quero contar a Prec o que me aconteceu hoje disse. O dia em que me torno caador! Aqui est o Emanuel, a cobra e o coelho que apanhei.Naqueles