GADAMER E A LEITURA HEIDEGGERIANA DE ARISTÓTELES

8
Gustavo Silvano Batista - Programa de Pós-graduação em Filosofia - UFPI GADAMER E A LEITURA HEIDEGGERIANA DE ARISTÓTELES Gustavo Silvano Batista Resumo: A retomada realizada por Gadamer da ética de Aristóteles, como modelo para a hermenêutica filosófica, tem como principal referência a interpretação heideggeriana desenvolvida acerca do livro sexto da Ética a Nicômaco. Esta interpretação influenciou decisivamente no tratamento gadameriano da questão da compreensão, entendida como uma noção eminentemente prática. Contudo, tal reabilitação também pode ser caracterizada como um dos momentos de distanciamento entre Gadamer e Heidegger, já que, para muitos intérpretes, como Richard Bernstein e Paulo Cesar Duque-Estrada, é nessa releitura que Gadamer faz de Aristóteles que, ao contrário da leitura de Heidegger, o caráter dialógico da hermenêutica filosófica encontra sua principal referência. Neste sentido, Gadamer assume principalmente o caráter ontológico da leitura heideggeriana de Aristóteles, aliada ao caráter dialógico elemento salientado por Gadamer, que, em Heidegger parece não haver espaço. Deste modo, pretendemos discutir, a partir da perspectiva de Gadamer, a retomada de Aristóteles, realizada em Verdade e Método, como modelo para a construção de uma outra ontologia da compreensão e sua relação de contraponto com a interpretação de Heidegger, conforme realizada no curso Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles. Palavras-chave: Gadamer, Aristóteles, Heidegger, hermenêutica, mutualidade Abstract: Gadamer’s rehabilitation on Aristotle’s ethics – as model to philosophical hermeneutics has as main reference Heidegger’s interpretation on Ethics’ book six. This interpretation decisively influenced on Gadamerian treatment about the question of undestanding, read as eminently practical. However, such rehabilitation can also be characterized as one of moments where we can see a detachment between Gadamer and Heidegger, because to many interpreters as Richard Bernstein and Paulo Cesar Duque- Estrada, is this rereading that Gadamer does that, unlike the reading of Heidegger, the dialogical character of philosophical hermeneutics is its main reference. In this sense, Gadamer essentially assumes the ontological trace of Heideggerian reading of Aristotle, linked to dialogical character pointed out for Gadamer that, in Heidegger, doesn’t seem to have space. In this way, we want discussing, on Gadamer’s perspective, the rehabilitation of Aristotle, as realized in Truth and Method, like a model for construction of another ontology of understanding and its relation of counterpoint with Heidegger’s interpretation, as was made in Phenomenological Interpretation of Aristotle. Keywords: Gadamer, Aristotle, Heidegger, hermeneutics, mutuality.

description

Filosofia

Transcript of GADAMER E A LEITURA HEIDEGGERIANA DE ARISTÓTELES

  • Gustavo Silvano Batista - Programa de Ps-graduao em Filosofia - UFPI

    GADAMER E A LEITURA HEIDEGGERIANA DE ARISTTELES

    Gustavo Silvano Batista

    Resumo:

    A retomada realizada por Gadamer da tica de Aristteles, como modelo para a

    hermenutica filosfica, tem como principal referncia a interpretao heideggeriana

    desenvolvida acerca do livro sexto da tica a Nicmaco. Esta interpretao influenciou

    decisivamente no tratamento gadameriano da questo da compreenso, entendida como

    uma noo eminentemente prtica. Contudo, tal reabilitao tambm pode ser

    caracterizada como um dos momentos de distanciamento entre Gadamer e Heidegger, j

    que, para muitos intrpretes, como Richard Bernstein e Paulo Cesar Duque-Estrada,

    nessa releitura que Gadamer faz de Aristteles que, ao contrrio da leitura de Heidegger,

    o carter dialgico da hermenutica filosfica encontra sua principal referncia. Neste

    sentido, Gadamer assume principalmente o carter ontolgico da leitura heideggeriana

    de Aristteles, aliada ao carter dialgico elemento salientado por Gadamer, que, em Heidegger parece no haver espao. Deste modo, pretendemos discutir, a partir da

    perspectiva de Gadamer, a retomada de Aristteles, realizada em Verdade e Mtodo,

    como modelo para a construo de uma outra ontologia da compreenso e sua relao

    de contraponto com a interpretao de Heidegger, conforme realizada no curso

    Interpretaes Fenomenolgicas de Aristteles.

    Palavras-chave: Gadamer, Aristteles, Heidegger, hermenutica, mutualidade

    Abstract:

    Gadamers rehabilitation on Aristotles ethics as model to philosophical hermeneutics has as main reference Heideggers interpretation on Ethics book six. This interpretation decisively influenced on Gadamerian treatment about the question of

    undestanding, read as eminently practical. However, such rehabilitation can also be

    characterized as one of moments where we can see a detachment between Gadamer and

    Heidegger, because to many interpreters as Richard Bernstein and Paulo Cesar Duque-

    Estrada, is this rereading that Gadamer does that, unlike the reading of Heidegger, the

    dialogical character of philosophical hermeneutics is its main reference. In this sense,

    Gadamer essentially assumes the ontological trace of Heideggerian reading of

    Aristotle, linked to dialogical character pointed out for Gadamer that, in Heidegger, doesnt seem to have space. In this way, we want discussing, on Gadamers perspective, the rehabilitation of Aristotle, as realized in Truth and Method, like a model for

    construction of another ontology of understanding and its relation of counterpoint with

    Heideggers interpretation, as was made in Phenomenological Interpretation of Aristotle.

    Keywords: Gadamer, Aristotle, Heidegger, hermeneutics, mutuality.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 1 9

    Este texto tem como principal inspirao uma passagem da tese de doutorado de

    Paulo Cesar Duque-Estrada, Gadamers Rehabilitation of Practical Philosophy An

    Overview, que diz o seguinte:

    A mutualidade , neste contexto, a palavra-chave que nos leva ao cerne da diferena entre

    Gadamer e Heidegger: enquanto a estrutura original da compreenso leva Heidegger a um

    constante e renovado esforo em chegar fonte originria da linguagem (a linguagem

    silenciosa do ser); ela [a estrutura original da compreenso] leva Gadamer a abraar um

    ideal de engajamento com o processo efetivo da compreenso que se d na linguagem

    familiar do mundo no qual vivemos. Mas, neste nvel, a compreenso essencialmente

    compreenso mtua que se d atravs da experincia bsica (Erfahrung) de co-participao

    em uma vida comunitria que, continuamente, preservada e projetada em novas

    possibilidades de ser. por isso que Gadamer retorna a Aristteles para construir uma

    outra ontologia da compreenso que, ao contrrio de Heidegger, no faz violncia

    estrutura dialgica da Phronesis (DUQUE-ESTRADA, 1993, p. 164).

    Esta passagem mostrou-se para ns como uma oportunidade de tratar da

    retomada da phronesis, virtude prpria vida prtica, tal como foi tratada por Gadamer,

    pretendendo entender o distanciamento desta anlise daquela realizada por Heidegger

    nos anos 20, tal como encontramos nas Interpretaes fenomenolgicas de Aristteles.

    Nosso interesse apontar, a partir desta relao de violncia/ no-violncia

    estrutura dialgica da phronesis, - em concordncia com a tese de Duque-Estrada , um

    dos muitos aspectos de incompatibilidade entre os projetos filosficos de Gadamer e

    Heidegger, tese que no mbito das discusses sempre tem um carter polmico.

    Neste sentido, partimos de um dos conceitos que salientam tal distanciamento: a

    noo de mutualidade; esta noo, fundamental ao pensamento de Gadamer, ressalta o

    trao dialgico e prtico presente fundamentalmente em todo o projeto da hermenutica

    filosfica. Alis, de acordo com o prprio Gadamer, no possvel compreendermos

    seu projeto sem levarmos em conta a sua pretenso prtica toda vez que nos

    perguntamos como se d o compreender.

    Assim, a filosofia de Gadamer caracterizada por ser uma ontologia

    estreitamente vinculada prxis, ou seja, surge da prxis e volta-se prxis. A

    mutualidade, portanto, a noo que expressa a concretizao do compreender no

    processar da vida comunitria, que se d como experincia bsica de relao com o

    outro. Conforme afirma Richard J. Bernstein:

    A condio bsica para toda compreenso necessita testar e colocar em risco as prprias

    convices e preconceitos no e atravs de um encontro com o que radicalmente outro ou estranho. Isto necessita imaginao e sensibilidade hermenutica para compreender o

    outro em seu sentido mais forte possvel. Somente buscando aprender do outro,

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 0

    somente pela totalidade do compreender de suas reivindicaes pode-se ter um encontro

    crtico. Um dilogo engajado e crtico necessita abertura de si mesmo a todo o poder do que

    o outro diz. Tal abertura no indica concordncia, mas sim um confronto dialgico (BERNSTEIN, 1992, p. 4).

    Entretanto, pensar as conseqncias ticas da retomada de Aristteles, conforme

    realizada por Gadamer, no pode prescindir da releitura decisiva de Heidegger.

    Gadamer sempre ressalta sua dvida com o grande pensador do sculo XX, seu

    professor, pois graas a seus cursos ele conseguiu vislumbrar novas possibilidades para

    seu pensamento. Ainda recordando-se do seminrio sobre Aristteles, Gadamer lembra

    da distino entre os saberes techne e phronesis, referindo-se s atribuies de cada

    virtude, em que a primeira pode ser esquecida e a segunda no. Para explicar melhor o

    saber da phronesis, saber sem lethe [esquecimento], Heidegger teria dito, j no final da

    aula, conforme o relato de Gadamer, o seguinte:

    Meus senhores, eis ai a conscincia moral! - e foi embora. De maneira dramtica e violenta,

    com certeza. Haveria efetivamente algumas coisas a dizer sobre a diferena entre o conceito

    de conscincia moral e o conceito aristotlico de phronesis. Todavia, por meio dessa tese

    provocadora, as pessoas foram incontornavelmente impelidas para diante das prprias

    questes - mesmo se elas devessem aprender por fim a controlar reconhecimentos por

    demais violentos do prprio questionamento e a empreender diferenciaes (GADAMER,

    2007, p.15).

    Aluno e herdeiro de Heidegger, Gadamer percebe uma ligao entre seu

    pensamento e a leitura heideggeriana de Aristteles. Na tentativa de elucidar a condio

    do dasein [ser-a] enquanto ser-no-mundo que Heidegger encontra motivos para retornar

    a tica de Aristteles. Esta perspectiva pode ser confirmada posteriormente em Ser e

    Tempo, pois nesta obra, ao perguntar-se novamente acerca da esquecida questo do ser,

    Heidegger retira de Aristteles um dos elementos de crtica ao pensamento ocidental.

    Cito Heidegger:

    A prpria compreenso ontolgica do ser-a que, de incio predomina e que, ainda hoje, no

    foi superada em seus fundamentos e explicitao, encobre o fenmeno originrio da

    verdade. Da mesma forma, no se pode desconsiderar que, para os gregos, os primeiros a

    edificar essa compreenso ontolgica e a torn-la predominante, a compreenso originria

    da verdade, embora pr-ontolgica, mantinha-se viva e at se formava contra o seu

    encobrimento na ontologia ao menos em Aristteles (HEIDEGGER, 2000, p. 294-295)1.

    1 Na passagem citada Heidegger aponta, como nota de rodap, o livro VI da tica a Nicmaco e o livro

    IX da Metafsica, captulo 10.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 1

    Esta passagem de Ser e Tempo, que confirma a perspectiva ontolgica j

    presente nos cursos anteriores sobre Aristteles, indica um momento decisivo para o

    pensamento de Gadamer, ou seja, o entendimento do compreender como um modo de

    ser, distanciando-se do carter metodolgico deste conceito. Conforme afirma o prprio

    Gadamer:

    Embora eu tenha contornado a inteno filosfica de Heidegger, quer dizer, a retomada do

    problema do ser, torna-se no obstante claro que somente uma viva tematizao da existncia humana enquanto ser-no-mundo revela as implicaes plenas do Verstehen como possibilidade e estrutura da existncia (GADAMER, 1998, p. 12).

    Todavia, como indica Duque-Estrada, tambm h limites nesta mesma herana;

    h um momento de distino entre Gadamer e Heidegger, pois Gadamer assume o

    carter ontolgico ressaltado por Heidegger, mas no deixa de fazer justia ao cunho

    tico inerente ao compreender e, por conseguinte, no devidamente explorado por

    Heidegger. Como afirma Duque-Estrada:

    [O carter polmico visto numa perspectiva gadameriana da reapropriao que Heidegger fez de Aristteles] no repousa no fato de Heidegger ler de uma forma

    ontolgica o que, em Aristteles, diz respeito a uma questo de ordem prtica; mas, antes,

    no fato de que, em tal leitura, a natureza essencialmente dialgica da phronesis, enquanto

    estado racional que rege o domnio prtico, transformada em um carter no

    comunicativo daquilo que Heidegger chama das Gewissen (conscincia moral). Em outras

    palavras, Gadamer aceita o carter ontolgico da leitura heideggeriana de Aristteles, mas

    rejeita a transformao que a leitura heideggeriana opera sobre o conceito de phronesis

    (DUQUE-ESTRADA, 1993, p. 163).

    Na passagem da tese de Duque-Estrada citada no incio do texto, apontado um

    tratamento no violento realizado por Gadamer quando se trata da estrutura da

    phronesis; tal perspectiva , portanto, confirmada nesta ltima citao. Sendo assim, na

    perspectiva de Gadamer, a estrutura bsica desta virtude mantida, medida que

    ressaltado seu cunho dialgico. Na viso de Duque-Estrada, em Heidegger, ao contrrio,

    ressaltado o carter ontolgico (e no dialgico) da phronesis, elemento de violncia

    estrutura da mesma. Esse aspecto lembrado pelo prprio Gadamer no prefcio escrito

    por ele para as Interpretaes fenomenolgicas de Aristteles, intitulado Um escrito

    teolgico da juventude de Heidegger. Diz Gadamer:

    Na minha leitura do programa reencontrado o que surpreende que no manuscrito de

    Heidegger no tanto a phronesis que vem em primeiro plano, mas antes a virtude da vida

    teortica, a Sophia. Isto significa que o que ocupava o jovem Heidegger naquela poca era,

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 2

    mais que a atualidade da filosofia prtica, seu significado para a ontologia aristotlica, para

    a Metafsica (HEIDEGGER, 1992a, p. 12).

    Esse comentrio de Gadamer aponta a preocupao ontolgica do prprio

    Heidegger que confirmada pela seguinte passagem do texto de Heidegger: A

    interpretao deste tratado permite compreender que as virtudes dianoticas, caso se

    faz, provisoriamente, abstrao da problemtica especificamente tica, so as diferentes

    modalidades segundo as quais se pode chegar a uma autntica guarda do ser

    (HEIDEGGER, 1992a, p. 37).

    Partindo da herana de Heidegger, o projeto de Gadamer toma um outro rumo,

    pois, no que diz respeito recuperao da phronesis aristotlica, realizada uma anlise

    de nossa atual conjuntura onde se encontra um domnio (pblico) marcado pela

    supervalorizao da techne em detrimento da phronesis. Gadamer toma as distines

    aristotlicas entre razo prtica, razo terica e habilidade tcnica como caminho para

    dois objetivos: em um primeiro momento, pretende recuperar a esfera prtica (prxis)

    novamente em consonncia com os outros domnios; como segundo momento,

    Gadamer pretende realizar uma anlise do domnio da tecnocincia e de possveis

    alternativas tico-polticas de manuteno da vida prtica em tal domnio. Tais objetivos

    encontram-se j presentes na formulao de Gadamer acerca do compreender em sua

    dimenso prtica:

    Com efeito, o problema posto pela hermenutica pode ser definido pela seguinte questo:

    que sentido se deve dar ao fato de que uma nica e mesma mensagem transmitida pela

    tradio seja, no obstante, apreendida sempre de maneira diferente, isto , em relao

    situao histrica concreta daquele que a recebe? No plano lgico, o problema do

    compreender se apresentar, portanto, como o de uma aplicao particular de algo geral (a

    mensagem auto-idntica) a uma situao concreta e particular. Ora, certo que a tica de

    Aristteles no se interessa pelo problema hermenutico e menos ainda pela sua dimenso

    histrica, mas sim pelo exato papel que deve assumir a razo em todo comportamento

    tico; e aqui que esse papel da razo e do saber revela analogias surpreendentes com o

    papel do saber histrico (GADAMER, 1998, p. 47).

    A correlao estabelecida por Gadamer entre a pergunta fundamental de sua

    filosofia (como possvel a compreenso?) e a investigao aristotlica acerca da

    questo tica encontra-se no cerne da hermenutica filosfica, pois, de acordo com o

    prprio Gadamer, em ambas reflexes esto sempre operantes tipos de conhecimento

    muito prximos. A razo hermenutica , a partir desse pressuposto, uma razo tica, ou

    seja, sempre est referida ao outro. Assim,

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 3

    tal conhecimento, que prprio tanto da descrio tica de Aristteles como tambm da

    hermenutica gadameriana, no identificado como algo vinculado produo de

    conhecimento cientfico, mas como um saber que , essencialmente, condio e resultado

    do viver humano em seu modo mais elementar de comportar-se no mundo (BATISTA, 2007, p. 49).

    Desta forma, Gadamer pretende preservar a estrutura original da phronesis em

    seu pensamento, pois, tanto na hermenutica filosfica como na tica, a questo se

    pode haver algo como um conhecimento filosfico do ser tico do homem e qual tipo de

    conhecimento (isto , logos) desempenha no ser tico do homem (GADAMER, 2005,

    p. 412).

    Por esta razo, pensar o modo de ser da compreenso significa pensar a atuao

    da phronesis na esfera do ser-no-mundo-com-os-outros. Diz Bernstein: o que Gadamer

    enfatiza acerca da phronesis que esta uma forma de razo que produz uma espcie

    de know-how tico no qual tanto o que universal como o que particular so co-

    determinados. (...) A compreenso uma forma de phronesis (BERNSTEIN, 1982, p.

    828).

    A identificao entre compreenso e phronesis , assim, um momento entre

    muitos de aproximao e distanciamento entre Gadamer e Heidegger. Ou seja, graas

    leitura de Heidegger, na qual salientada a dimenso ontolgica da tica de

    Aristteles, como elemento preparatrio para o justo tratamento da questo do ser,

    Gadamer pde desenvolver uma ontologia que no deve, ou melhor, no pode afastar-

    se da prxis (DUQUE-ESTRADA, 1997, p. 31).

    Contudo, Gadamer, mesmo reconhecendo na abordagem heideggeriana

    elementos essenciais necessrios a uma ontologia hermenutica, realiza um

    deslocamento da apropriao heideggeriana, resituando-a no domnio da vida em

    comum (BATISTA, 2007, p. 51). Neste domnio, a relao com o outro encontra-se

    como um dos aspectos mais decisivos. Afirma Gadamer:

    Compreender o outro, como fenmeno original, no o simples conhecimento tcnico do

    psiclogo ou a experincia diria que possuem, igualmente, o malicioso, o astucioso. A compreenso do outro supe o engajar-se numa causa justa e, atravs desta, a descoberta de

    um vnculo com o outro. Esse vnculo se concretiza no fenmeno do conselho moral. Como se diz, bom conselho s se d e s se recebe entre amigos. Isso para enfatizar que a relao que se estabelece entre duas pessoas no a de duas coisas que nada tm a ver uma

    com a outra, mas que a compreenso para empregarmos uma idia com a qual j estamos habituados uma questo de pertencimento. Segundo Aristteles, a compreenso d lugar a dois fenmenos correlativos que so os seguintes: o esprito de discernimento da

    situao em que o outro se encontra, e a tolerncia ou indulgncia dele resultante. Ora, mas

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 4

    que o discernimento seno a virtude de saber julgar imparcialmente a situao do outro?

    (GADAMER, 1998, p. 56).

    Nessa passagem, Gadamer ressalta o carter comunitrio e poltico do saber

    tico assumido por sua reflexo filosfica. tarefa da hermenutica estar atenta ao

    pertencimento comunidade tica, pois, tambm aqui se torna claro que o homem que

    compreende no sabe nem julga a partir de um simples estar postado frente ao outro

    sem ser afetado, mas a partir de uma pertena especfica que o une ao outro, de modo

    que afetado com ele e pensa com ele (GADAMER, 2005, p. 425).

    Sendo assim, Gadamer sustenta em seu pensamento a dimenso dialgica e

    comunitria prpria estrutura da phronesis, lembrando que tal posicionamento tem

    conseqncias prticas (tico-polticas) em todo momento em que nos indagamos

    acerca do acontecimento compreensivo, que, por conseguinte, comum a todos.

    Referncias bibliogrficas

    BATISTA, Gustavo Silvano. Hermenutica e Prxis em Gadamer. Rio de Janeiro, 2007.

    96p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    BERNSTEIN, Richard. Beyond Objectivism and Relativism: Science, Hermeneutics and

    Praxis. Oxford: Basil Blackwell, 1983.

    BERNSTEIN, Richard. From Hermeneutics to Praxis. Review of Metaphysics 35, p.

    823-845, 1982.

    BERNSTEIN, Richard. Philosophical Profiles: Essays in a Pragmatic Mode.

    Cambridge: Polity Press, 1986.

    BERNSTEIN, Richard. The New Constellation: the ethical-political horizons of

    modernity/ postmodernity. Cambridge/ Massachusetts: The MIT Press, 1992.

    CREMASCHI, Sergio. Tendncias neoaristotlicas na tica atual. In OLIVEIRA,

    Manfredo A (org.). Correntes Fundamentais da tica Contempornea.

    Petrpolis: Vozes, 2000, p. 9-30.

    DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Limites da Herana Heideggeriana: a Prxis na

    Hermenutica de Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, Lisboa, v. 56, p.

    509-520, 2000.

    DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Gadamers Rehabilitation of Practical Philosophy An Overview. Boston, 1993. 180p. Tese (Doutorado em Filosofia) Departamento de Filosofia, Boston College.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 1 2 0 1 4 p . 1 1 8 - 1 2 5 1 2 5

    DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. The Double Move of Philosophical Hermeneutics.

    tudes Phnomnologiques, Bruxelles, n. 26, p. 19-31, 1997.

    GADAMER, Hans-Georg. A Razo na poca da Cincia. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1983.

    GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em Retrospectiva Heidegger em retrospectiva. Vol. 1, 2. Edio. Trad. de Marco Antnio Casanova. Petrpolis:

    Vozes, 2007.

    GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Conscincia Histrica. Rio de Janeiro: Ed.

    FGV, 1998.

    GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo I. 5 edio. Petrpolis: Vozes, 2003.

    HEIDEGGER, Martin. Interprtations Phnomnologiques dAristote. Trad. de Jean-Franois Courtine. Paris: Editions Trans-Europ-Repress, 1992a.

    HEIDEGGER, Martin. Phenomenological Interpretations with Respect to Aristotle:

    Indication of the Hermeneutical Situation. Trad. de Michael Baur. In Man and

    World, 25, p. 355-393, 1992b.

    HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. de Mrcia S Cavalcante. 9. Edio, Parte I

    e II. Petrpolis: Vozes, 2000.

    OLIVEIRA, Ana Cristina de Abreu. O problema da possibilidade de uma tica em

    Heidegger. Rio de Janeiro, 1995. 90 p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    ROHDEN, Luiz. Hermenutica Filosfica. So Leopoldo: Unisinos, 2002.

    ROHDEN, Luiz. Hermenutica Filosfica como Filosofia Prtica. Filosofia Unisinos,

    So Leopoldo, v. 2, n. 3, p. 193-211, jul-dez/2001.

    TAMINIAUX, Jacques. Heidegger and the Project of Fundamental Ontology.

    Translated and edited by Michael Gendre. Albany: SUNY Press, 1991.