Galileu

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O CASO GALILEU APRESENTAÇÃO O caso Galileu fez correr rios de tinta.., por vezes em tom exageradamente caloroso. Em nossos dias está encerrado; mas nem todas as pessoas interessadas têm conhecimento exato dos acontecimentos e da documentação respectivos. Eis por que será sumariamente abordada tal temática nas páginas seguintes. 1. O AMBIENTE RELIGIOSO E CIENTÍFICO DOS SÉCULOS XVI/XVII O Humanismo ou Renascimento do século XVI foi afirmando os valores do homem em termos ora mais, ora menos autônomos. No início do século XVII, os sintomas de mentalidade leiga, mesmo atéia, já eram tantos que começaram a inquietar os ânimos tradicionais. Sem dúvida, a ciência progredira muito no século XVI; já se apoiava em observações precisas, levadas a efeito segundo métodos novos, afastando-se assim das conclusões formuladas de antemão, sem muito contato com a realidade concreta, como eram as conclusões da Filosofia e da Física medievais. Enfim, a ciência, dotada de instrumentos de trabalho cada vez mais esmerados, tendia a se emancipar da Filosofia e de qualquer argumento de autoridade (inclusive da fé). A “vertigem da inteligência” ia-se apoderando de alguns pensadores, que de maneira mais ou menos confessada chegavam a lançar um brado de “morte a Deus”; tal é, por exemplo, a exclamação de Campanella (1568-1639), frade que chegou a abandonar momentaneamente a sua profissão religiosa (mas que acabou tranqüilamente os seus dias no convento de Saint-Honoré em Paris): “Alguns cristãos descobriram a imprensa, Colombo descobriu um novo mundo, Galileu novas estrelas... Acrescentai o uso dos canhões, da bússola, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas invenções maravilhosas. Os pensadores de ontem eram crianças junto a nós! Nós somos livres!” A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de adulto, julgava que, para o futuro, poderia dispensar a “tutela de Deus”. Ao lado dos que nos termos atrás se entusiasmavam por uma ciência quase absoluta, havia os céticos, representados principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que não menos perigosamente corroíam as tradicionais concepções cristãs. Montaigne peregrinava pelos grandes santuários da Europa, mas, como dizia um seu contemporâneo, o Pe. Garasse S. J., “sufocava suavemente, como que com um cordel de seda, o senso religioso”, mediante as suas proposições ambíguas. Diante dessas novas correntes de pensamento, que atitude tomavam as autoridades eclesiásticas? Nos casos de flagrante impiedade e ateísmo, reagiam fortemente, desconfiando da nova ciência, movidas pelo desejo de preservar a verdade e os valores da cultura (daí a sua reação contra Campanella, Tanini, Teófilo de Viau...). Quando, porém, a contestação era habilmente dissimulada por seus autores, parece que os eclesiásticos não avaliavam plenamente a gravidade do perigo; Montaigne, por exemplo, submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos censores eclesiásticos; estes em resposta delicada lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que julgasse dever retocar!... Estas reações são sintomáticas, pois revelam bem um período de transição e incertezas em que os pensadores (tanto os tradicionais como os inovadores) ainda não vêem plenamente o significado de valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar à justa assimilação dos elementos em causa ou à incorporação dos elementos novos na síntese antiga. Ora foi precisamente num ambiente de certa reação contra a fé, reação encabeçada por uma ciência aparente, que viveu Galileo Galilei (15641642). Examinemos agora

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D. Estêvão Bettencourt.

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O CASO GALILEU

APRESENTAÇÃO O caso Galileu fez correr rios de tinta.., por vezes em tom exageradamente caloroso.

Em nossos dias está encerrado; mas nem todas as pessoas interessadas têm conhecimento exato dos acontecimentos e da documentação respectivos. Eis por que será sumariamente abordada tal temática nas páginas seguintes.

1. O AMBIENTE RELIGIOSO E CIENTÍFICO DOS SÉCULOS XVI/XVII O Humanismo ou Renascimento do século XVI foi afirmando os valores do homem em

termos ora mais, ora menos autônomos. No início do século XVII, os sintomas de mentalidade leiga, mesmo atéia, já eram tantos que começaram a inquietar os ânimos tradicionais.

Sem dúvida, a ciência progredira muito no século XVI; já se apoiava em observações precisas, levadas a efeito segundo métodos novos, afastando-se assim das conclusões formuladas de antemão, sem muito contato com a realidade concreta, como eram as conclusões da Filosofia e da Física medievais. Enfim, a ciência, dotada de instrumentos de trabalho cada vez mais esmerados, tendia a se emancipar da Filosofia e de qualquer argumento de autoridade (inclusive da fé). A “vertigem da inteligência” ia-se apoderando de alguns pensadores, que de maneira mais ou menos confessada chegavam a lançar um brado de “morte a Deus”; tal é, por exemplo, a exclamação de Campanella (1568-1639), frade que chegou a abandonar momentaneamente a sua profissão religiosa (mas que acabou tranqüilamente os seus dias no convento de Saint-Honoré em Paris):

“Alguns cristãos descobriram a imprensa, Colombo descobriu um novo mundo, Galileu novas estrelas... Acrescentai o uso dos canhões, da bússola, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas invenções maravilhosas. Os pensadores de ontem eram crianças junto a nós! Nós somos livres!”

A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de adulto, julgava que, para o

futuro, poderia dispensar a “tutela de Deus”. Ao lado dos que nos termos atrás se entusiasmavam por uma ciência quase absoluta,

havia os céticos, representados principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que não menos perigosamente corroíam as tradicionais concepções cristãs. Montaigne peregrinava pelos grandes santuários da Europa, mas, como dizia um seu contemporâneo, o Pe. Garasse S. J., “sufocava suavemente, como que com um cordel de seda, o senso religioso”, mediante as suas proposições ambíguas.

Diante dessas novas correntes de pensamento, que atitude tomavam as autoridades eclesiásticas?

Nos casos de flagrante impiedade e ateísmo, reagiam fortemente, desconfiando da nova ciência, movidas pelo desejo de preservar a verdade e os valores da cultura (daí a sua reação contra Campanella, Tanini, Teófilo de Viau...). Quando, porém, a contestação era habilmente dissimulada por seus autores, parece que os eclesiásticos não avaliavam plenamente a gravidade do perigo; Montaigne, por exemplo, submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos censores eclesiásticos; estes em resposta delicada lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que julgasse dever retocar!...

Estas reações são sintomáticas, pois revelam bem um período de transição e incertezas em que os pensadores (tanto os tradicionais como os inovadores) ainda não vêem plenamente o significado de valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar à justa assimilação dos elementos em causa ou à incorporação dos elementos novos na síntese antiga.

Ora foi precisamente num ambiente de certa reação contra a fé, reação encabeçada

por uma ciência aparente, que viveu Galileo Galilei (15641642). Examinemos agora

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2. O PROCESSO DE GALILEU O sistema geocêntrico de Ptolomeu († 150 d.C.) estivera em vigor durante toda a Idade

Média, quando em 1543 o cônego Nicolau Copérnico publicou o livro "De revolutionibus orbium caelestium", em que sugeria outra concepção: a Terra e os demais planetas giram em torno do sol. A obra foi dedicada ao Papa Paulo II, que a aceitou sem contradição. Os doze Pontífices romanos subseqüentes não se mostraram em absoluto infensos a Copérnico; verdade é que por falta de provas seguras, ninguém atribuía grande verossimilhança à nova teoria. Nicolau Copérnico (1473-1543) foi cônego polonês, que, antes de Galileu, já propusera a teoria heliocêntrica timidamente em 1507 e mais solidamente em 1543.

Quando, porém, Galileu entrou no cenário da história, esta mudou notavelmente de

face. Galileu, depois de ter aderido ao sistema ptolomaico, a partir de 1610 professou as

idéias de Copérnico, baseadas sobre observações de astronomia recém-realizadas. Com isto mereceu numerosos elogios, principalmente por parte de sábios jesuítas (Clavius, Griemberger e outros), que o aplaudiram como "um dos mais célebres e felizes astrônomos do seu tempo". Em março de 1611, tendo ido a Roma (era natural de Pisa), lá foi recebido pelo Papa Paulo V em audiência particular: prelados e príncipes pediram-lhe que lhes explicasse as maravilhas que havia descoberto. O Cardeal Dei Monte em carta ao Grão-Duque de Florença atestava:

"Galileu convenceu cabalmente da veracidade de suas descobertas todos os sábios de

Roma. E, se estivéssemos ainda nos tempos da antiga República Romana, não há dúvida de que, em homenagem às suas obras, lhe mandariam erguer uma estátua no Capitólio" (Favaro, Le Opere di Galilei XI 119).

Até essa época Galileu se mantinha exclusivamente no domínio da astronomia. Era

inevitável, porém, que entrasse no da Teologia. Com efeito, havia quem desconfiasse das teses de Galileu e o quisesse impugnar em nome de textos bíblicos, como Sl 103,4; Js 10,12-14; Ecl 1,4-6. foi o que fez Ludovico delle Colombe.

Galileu defendeu-se em carta a seu discípulo Benedetto Castelli O.S.B., fazendo

considerações escriturísticas que foram posteriormente ratificadas pelos exegetas e até hoje conservam seu pleno valor na Igreja:

"A Sagrada Escritura não pode nem mentir nem se enganar. A veracidade das suas

palavras é absoluta e inatacável. Aqueles, porém, que a explicam e interpretam, podem-se enganar de diversas maneiras; cometer-se-iam funestos e numerosos erros se se quisesse sempre seguir o sentido literal das palavras; chegaríamos a contradições grosseiras, erros, doutrinas ímpias, porque seríamos forçados a dizer que Deus tem pés, mãos, olhos, etc. Em questões de ciências naturais, a Sagrada Escritura deveria ocupar o último lugar. A S. Escritura e a natureza provêm ambas da Palavra de Deus; aquela foi inspirada pelo Espírito Santo, esta executa fielmente as leis estabelecidas por Deus. Mas, ao passo que a Bíblia, acomodando-se à compreensão do comum dos homens, fala em muitos casos, e com razão, conforme as aparências, e usa de termos que não são destinados a exprimir a verdade absoluta, a natureza se conforma rigorosa e invariavelmente às leis que lhe foram dadas; não se pode, pois, em nome da S. Escritura, pôr em dúvida um resultado manifesto adquirido por maduras observações ou por provas suficientes... O Espírito Santo não quis ensinar-nos se o céu está em movimento ou se é imóvel; se tem forma de globo ou forma de disco; se ele ou a terra se move ou permanece em repouso... Já que o Espírito Santo não intencionou instruir-nos a res-peito dessas coisa, porque isto não importava aos seus desígnios, que são a salvação das nossas almas, como se pode, agora, pretender que é necessário sustentar nesses assuntos tal ou tal opinião, que uma é de fé e a outra é errônea? Uma opinião que não diz respeito à salvação da alma, poderá ser herética?" (Favaro, Opere V 279-288).

Por mais sábias que fossem as ponderações de Galileu, a muitos católicos pareciam

naquela época inovações inspiradas pelo princípio do "livre exame da Bíblia" propugnado por Lutero. Foi o que deu novo aspecto ao curso da história, motivando a intervenção do Santo

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Ofício: uma comissão de teólogos, tendo examinado as teses do heliocentrismo de Copérnico, acabou por dar parecer contrário em 24 de fevereiro de 1616; em conseqüência, o Santo Ofício comunicou a Galileu a ordem de "abandonar por inteiro a opinião que pretende que o sol é o centro do mundo e imóvel, e que a terra se move", assim como lhe proibiu "sustentasse essa opinião como quer que fosse, a ensinasse ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena de ser processado pelo S. Ofício" (Favaro, Galilei e l'lnquisizione 62).

O astrônomo aceitou docilmente a intimação. Em conseqüência, aos 5 de março de 1616 a Congregação do índice condenou as

obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até que fossem corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de Galileu. O processo do S. Ofício fora secreto e o sábio astrônomo voltou para Florença a fim de continuar seus estudos, plenamente prestigiado pela Santa Sé.

Terminou assim a primeira fase da história de Galileu. Compreende-se, porém, que, continuando a estudar astronomia, o famoso autor não

podia deixar de se envolver de novo no sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se pronunciar sobre o assunto, passou a defender em termos cautelosos o heliocentrismo; em 1623 chegava a propugná-lo no escrito Il Saggiatore; este opúsculo, ofertado ao novo Papa, Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu (ambos eram poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontífice. O Cardeal Hohenzollern, por essa ocasião, pediu mesmo a Sua Santidade que se pronunciasse em favor do heliocentrismo; Urbano VIII respondeu que esta doutrina jamais fora condenada como herética e que pessoalmente ele nunca a mandaria condenar, embora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de importância, pois sugere que o decreto da Congregação do índice emanado em 1616 era tido como decreto meramente disciplinar, não como decisão doutrinária).

Muito estimulado pelos sucessos, Galileu pôs-se a escrever nova obra em favor do copernicismo: o célebre Diálogo dei due Massimi Sistemi. Tendo-a submetido à censura eclesiástica, esta lhe concedeu o Imperador com a condição de que propusesse o heliocentrismo não como tese certa (os argumentos apresentadas ainda não eram tais que fornecessem certeza), mas como hipótese. Galileu, porém, não o fez; em 1632 publicou o livro como estava, incluindo, além do mais, a aprovação dos censores de Roma e Florença!

Este gesto causou grande agitação em Roma; o sábio deixava naturalmente de gozar da confiança da autoridade eclesiástica.

Chamado perante o Santo Ofício, Galileu respondeu insistentemente que em consciência jamais admitira como certa e definitiva o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia apurar, o processo foi encerrado em junho de 1633: o astrônomo teve então que abjurar publicamente o heliocentrismo e foi condenado a prisão branda, onde, com alguns amigos, continuou a se dedicar aos estudos. Morreu finalmente em Florença aos 8 de janeiro de 1642, tendo recebido em seu leito de marte a bênção do Suma Pontífice. Galileu, tido como réu, foi tratado de maneira que, à luz da praxe vigente na época, era notavelmente benigna (foi detido como prisioneiro em palácios de nobres e embaixadores).

3. COMO ENTENDER? 1. A oposição dos teólogos e do Sumo Pontífice à tese de Galileu não compromete a

infalibilidade do magistério da Igreja, que tem por âmbito tão somente as temas de fé e de Moral. Ora é certa que o caso Galileu versava sobre assuntos de ordem científica, aparentemente associadas à autoridade da S. igreja. Em tal matéria nem o Papa nem os bispos em sua colegialidade têm garantia de infalibilidade.

Pergunta-se, porém: como entender tão drástica reação dos homens da Igreja contra

Galileu, que objetivamente tinha razão? - Na Idade Média e ainda no início da Idade Moderna, a Bíblia era a manual utilizado

para todos os estudos (psalmos discere, aprender os salmos, significava então "aprender a ler"; a alfabetização já era feita com a Bíblia na mão). Era, por conseguinte, à Bíblia que os medievais iam pedir um juízo sobre as suas noções de astronomia. Ora eis que no início do século XVII, depois de alguns inovadores, apareceu Galileu, que defendia uma tese de astronomia em aparente contradição com a Bíblia. Naquela época Galileu só podia apresentar argumentos fracos, ainda sujeitos a discussão científica; apesar de tudo, não cedia às intimações da autoridade, que lhe pedia que apresentasse as suas idéias como simples

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hipóteses. Além disto, Galileu intervinha no terreno da exegese, formulando princípios para a interpretação da Escritura. Ora esse proceder não podia deixar de suscitar suspeita e réplica por parte dos homens da Igreja. Quem lê depoimentos de escritores do século XVII mesmo, pode chegar à conclusão de que, se Galileu tivesse ficado no plano de uma hipótese e não se tivesse explicitamente envolvido em questões de exegese bíblica, não teria provocado a in-tervenção do S. Ofício.

As descobertas da ciência aos poucos deram a ver aos teólogos que a Bíblia não quer

ensinar conhecimentos profanos: passaram então a distinguir e aceitar o que no século XVII parecia monstruoso, isto é, dois planos que não se contradizem mutuamente, mas não interferem um no outro: o plano das ciências naturais e o da Bíblia ou da Teologia.

A fim de ilustrar quão difícil devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séculos

XVII/XVII admitir o heliocentrismo, seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema; a estes, assim como aos católicos, foi custoso compreender que a Bíblia não ensina cosmologia, de modo que durante dois séculos resistiram ao heliocentrismo. Com efeito, Lutero julgava que as idéias de Copérnico eram idéias de louco, que tornavam confusa a astronomia.

Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e

significava a rebordosa das ciências. Kepler (1581-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar

a sua terra, o Wurttemberg, por causa de suas idéias copernicianas. Em 1659, o Superintendente Geral de Wittenberg, Calovius, proclamava altamente que

a razão se deve calar quando a Escritura falou: verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.

Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Estrasburgo

afirmou estar o sistema de Copérnico em contradição com a Sagrada Escritura. Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia) condenou Nils

Celsius por ter defendido o sistema de Copérnico. Ainda no século XVIII a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em

1744 o pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que a teoria do heliocentrimso era abominável invenção do diabo.

4. O ENCERRAMENTO DO CASO 4.1. ANTEDEDENTES Aos 10/11/1979, por ocasião da celebração do primeiro centenário do nascimento de

Albert Einstein, o Papa João Paulo II exprimiu na Pontifícia Academia de Ciências o desejo de que "teólogos, cientistas e historiadores, animados por espírito de sincera colaboração, aprofundassem o exame do caso de Galileu, e no reconhecimento leal dos erros, de qualquer lado que tenham vindo, fizessem desaparecer as desconfianças que tal assunto opunha, em muitos espíritos, a uma concórdia frutuosa entre ciência e fé" (Acta Apostolicae Sedis, 71, 1979, pp. 1464s).

Conseqüentemente, aos 03/07/1981 foi constituída uma Comissão de Estudos

destinados a rever a temática. Os peritos trabalharam durante onze anos e, finalmente, aos 31/10/1992 apresentaram

um conjunto de publicações como resultado de suas investigações. Nesse mesmo dia, realizou-se uma solene sessão da Pontifícia Academia de Ciências. Tomou então a palavra o Cardeal Paul Poupard, encarregado de prestar contas dos trabalhos. Após o quê, o S. Padre proferiu memorável discurso, do qual extrairemos os segmentos mais significativos.

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4.2. O DISCURSO DO CARDEAL PAUL POUPARD Eis alguns trechos que apresentam importantes dados históricos: "2. O Cardeal Roberto Belarmino já expusera, numa carta de 12 de abril de 1615,

dirigida ao Pe. Foscarini, carmelita, as questões suscitadas pelo sistema de Copérnico: a astronomia de Copérnico é verídica no sentido de apoiada por provas reais e comprováveis? Ou fundamenta-se apenas sobre conjeturas e verossimilhanças? E, mais, as teses de Copérnico são compatíveis com os enunciados da S. Escritura? Segundo Belarmino, enquanto não houvesse prova da revolução da Terra em torno do Sol, seria preciso interpretar com grande circunspeção as passagens bíblicas que afirmam a imobilidade da Terra. Se alguma vez a movimentação da Terra viesse a ser demonstrada, então os teólogos deveriam, segundo Belarmino, rever as suas interpretações das passagens bíblicas aparentemente opostas às teorias de Copérnico, de modo a não tratar como falsas as opiniões comprovadamente verdadeiras...

3. Na verdade, Galileu não conseguira provar de modo irrefutável o duplo movimento

da Terra, ou seja, a revolução anual em torno do Sol e o giro cotidiano em torno do eixo dos pólos; ele estava convicto de ter encontrado a prova respectiva nas marés dos oceanos - fenômeno do qual somente Newton devia demonstrar a verdadeira origem. Galileu propôs outro esboço de prova na existência dos ventos alísios, mas ninguém possuía então os conhecimentos indispensáveis para deduzir daí conclusões claras e necessárias.

Foi preciso que decorressem mais de cento e cinqüenta anos ainda para se encontrarem as provas óticas e mecânicas da mobilidade da Terra. Doutro lado, os adversários de Galileu, nem antes nem deP9is dele, nada descobriram que refutasse, de modo convincente, a astronomia de Copérnico. Os fatos se impuseram e, sem demora, deram ocasião a que aparecesse a índole relativa da sentença proferida em 1633. Esta não tinha caráter irreformável. Em 1741, diante da prova ótica da revolução da Terra em torno do Sol, Bento XIV se empenhou para que o Santo Ofício desse o Imprimatur à primeira edição das obras completas de Galileu.

4. Esta reforma implícita da sentença de 1633 se tornou explícita pelo decreto da

Sagrada Congregação do índex que retirou da edição, de 1757, do Catálogo dos Livros Proibidos as obras que favoreciam a teoria heliocêntrica. Todavia, apesar deste decreto, muitos foram aqueles que permaneceram reticentes diante da nova interpretação. Em 1820, o Cônego Settele, professor na Universidade La Sapienza de Roma, dispunha-se a publicar os seus Elementos de Ótica e Astronomia.

Sofreu a recusa do Pé. Anfossi, Mestre do Sagrado Palácio, de lhe conceder o Imprimatur. Este incidente dava a impressão de que a sentença de 1633 ficara irreformada porque irreformável. O autor, injustamente censurado, interpôs apelo ao Papa Pio VII, do qual recebeu em 1822 sentença favorável. Deu-se então um fato decisivo; o Pe. Oliveri, antigo Mestre Geral dos Frades Pregadores e comissário do Santo Ofício, redigiu um relatório fa-vorável à concessão de Inprimatur às obras que expunham a astronomia de Copérnico como uma tese, e não mais apenas como hipótese.

A decisão pontifícia havia de ter sua aplicação prática em 1846, por ocasião da

publicação de novo índex, atualizado, dos Livros Proibidos. É em tal conjuntura histórico-cultural, bem distante do nosso tempo, que os juízes de

Galileu, incapazes de dissociar de uma cosmologia milenária os artigos de fé, julgaram erroneamente que a aceitação da teoria de Copérnico (aliás, não definitivamente comprovada) podia abalar a tradição católica, de modo que era seu dever proibir fosse ensinada. Este erro subjetivo de julgamento, tão claro para nós hoje, levou-os a uma medida disciplinar que muito fez sofrer Galileu. É preciso sinceramente reconhecer esses passos errôneos, como Vós mesmos pedistes, Santo Padre.

Tais são os frutos da pesquisa interdisciplinar que solicitastes à Comissão por Vós

nomeada.

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4.3. O DISCURSO DE JOÃO PAULO II A representação geocêntrica do mundo era comumente admitida na cultura do tempo,

como plenamente concorde com o ensinamento da Bíblia, da qual algumas expressões, tomadas à letra, pareciam constituir afirmações de geocentrismo. O problema que então os teólogos da época se puseram, era o da compatibilidade do heliocentrismo e da Escritura.

Deste modo a ciência nova, com os seus métodos e a liberdade de investigação que

eles supõem, obrigava os teólogos a interrogar-se sobre os seus próprios critérios de interpretação da Escritura. A maioria não o soube fazer.

Paradoxalmente, Galileu, fiel sincero, mostrou-se sobre este ponto mais perspicaz do

que os seus adversários teólogos. Se a Escritura não pode errar, escreve ele a Benedetto Castelli, alguns dos seus intérpretes e comentaristas o podem e de muitas maneiras (Carta de 21/12/1613). Também é conhecida a sua carta a Cristina de Lorena, que é como que um pequeno tratado de hermenêutica bíblica.

A partir do século das Luzes até aos nossos dias, o caso Galileu constituiu uma

espécie de mito, no qual a imagem que se tinha formado dos eventos estava bem longe da realidade. Nesta perspectiva, o caso Galileu era o símbolo da pretendida rejeição, por parte da Igreja, do progresso científico, ou então do obscurantismo dogmático oposto à livre investigação da verdade. Este mito desempenhou um papel cultural considerável; contribuiu para ancorar numerosos cientistas de boa fé à idéia de que havia incompatibilidade, por um lado, entre o espírito da ciência e a sua ética de pesquisa e, por outro, a fé cristã. Uma trágica incompreensão recíproca foi interpretada como o reflexo duma oposição constitutiva entre ciência e fé. Os esclarecimentos fornecidos pelos recentes estudos históricos permitem-nos afirmar que este doloroso mal-entendido já pertence ao passado...

O erro dos teólogos daquela época, quando sustentavam a centralidade da terra, foi

pensar que o nosso conhecimento da estrutura do mundo físico era, de certa maneira, imposto pelo sentido literal da Sagrada Escritura. Recordemos a palavra célebre atribuída a Barônio: Spiritui SaneIo mentem fuisse nos doeere quomodo ad eoelum eatur, non quomodo eoelum gradiatur. "0 propósito do Espírito Santo foi ensinar-nos como devemos ir ao céu, e não como caminha (vai) o céu". (Tradução da Redação).

Na realidade, a Escritura não se ocupa dos pormenores do mundo físico, cujo

conhecimento está confiado à experiência e ao raciocínio humano. Existem dois campos do saber: o que tem a sua fonte na Revelação e aquele que a razão só pode descobrir pelas suas forças. A este último pertencem sobretudo as ciências experimentais e a filosofia. A distinção entre os dois campos do saber não deve ser entendida como uma oposição. Os dois campos não são puramente estranhos um ao outro, mas têm pontos de encontro. As metodologias próprias de cada um permitem pôr em evidência aspectos diferentes da realidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Lendo os discursos de João Paulo II e do Cardeal Poupard, cinco ponderações podem

ocorrer à mente do leitor: 1) O caso Galileu deve-se a mal-entendidos da parte de teólogos, que interpretaram a

S. Escritura como fora óbvio fazer até então, isto é, como se fora redigida segundo um único ou poucos gêneros literários; não podiam levar em conta certos expressionismos dos semitas por falta de conhecimento das línguas e da arqueologia do Próximo Oriente. Mais: tendo a S. Escritura como livro inspirado por Deus, julgavam que era cartilha não só de ensinamentos religiosos, mas também de ciências humanas e naturais. Sendo assim, tomavam ao pé da letra as passagens em que os autores sagrados professam o geocentrismo (único sistema cosmológico aceito na Antigüidade).

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2) O Santo Ofício condenou Galileu, contando, para tanto, com a aprovação dos Papas

Paulo V (1603-21) e Urbano VIII (1623-44). Hoje se reconhece o erro, que outrora não foi percebido (a teoria de Galileu era nova demais e ainda sujeita a reformulações, de modo que não podia ser aceita por todos logo ao ser lançada). O erro não afeta a validade do magistério da Igreja, pois este só é infalível quando define alguma sentença de fé ou de Moral como pertencente ao depósito da Revelação. Ora no caso de Galileu tratava-se de uma proposição de ordem científica relacionada com a interpretação da s. Escritura.

3) Hoje se tem consciência nítida da verdade professada por Barônio: o propósito do

Espírito Santo, que inspirou as Escrituras, não era o de nos ensinar como vai o céu, mas como se vai para o céu. A finalidade da Bíblia é de ordem espiritual ou religiosa, não de ordem científica profana. A S. Escritura se refere ao mundo e à natureza em termos pré-científicos, que não podem ser tidos como errôneos, porque não era intenção dos autores sagrados afirmar algo em matéria de astronomia. Hoje ainda usamos tal linguagem familiar, que, analisada aos olhos da ciência, é errônea, mas que ninguém considera tal porque não pretendemos definir noções de ciências ao falar do "nascer" e do "pôr-do-sol",... do "Oriente (Levante)" e do "Ocidente (Poente)".

4) Em conseqüência, verifica-se que não há oposição entre ciência e fé, como

enfaticamente declara o S. Padre. Os cientistas devem pesquisar livremente, sem que a fé se Ihes oponha, porque esta nada tem a recear da parte daquela; a fé considera o mundo e o homem paralelamente às ciências naturais, mas num plano superior, de modo que não há choque entre as proposições seguras da ciência e os artigos de fé. Qualquer aparente colisão decorre de um mal-entendido (precipitação, parcialidade...) ou do cientista ou do teólogo.

5) Há quem receie que a Igreja, pronunciando-se negativamente a respeito da Bioética

ou de questões éticas relacionadas com a sexualidade (limitação da prole, fecundação artificial, mãe de aluguel...), esteja preparando para si um novo "caso Galileu". - Na verdade, tal não ocorrerá porque a razão da recusa da Igreja é simplesmente a fidelidade á lei natural (valor da vida humana, dignidade da pessoa...), lei natural que é perene ou válida para todos os tempos e lugares. A Igreja não discute teorias científicas; apenas considera os seus aspectos éticos à luz da lei natural, que não é somente a lei de Deus, mas é também a lei da salvaguarda da dignidade humana.

Possam as declarações do Papa João Paulo II contribuir para a dissipação dos equívocos que até nossos dias foram suscitados pelo caso Galileu!

6. OBSERVAÇÃO COMPLEMENTAR Historiadores recentes afirmam que Galileu foi condenado não tanto por causa da sua

teoria heliocêntrica, mas muito mais por causa das suas idéias relativas à constituição da matéria. Como dizem, Galileu professava que, se os acidentes (cor, sabor, quantidade...) do pão e do vinho permanecem após a consagração eucarística, permanece também a substância do pão e do vinho - o que seria contrário à doutrina da transubstanciação proposta pelos teólogos. Com isso Galileu não terá negado a real presença de Cristo na Eucaristia, mas apenas a explicação teológica da mesma.

O fato, porém, é que na reabilitação de Galileu em 1992 não houve menção da doutrina de astrônomo sobre a matéria e seus acidentes, mas apenas se tratou da questão heliocêntrica. A temática da transubstanciação parece não ter tido peso no processo de Galileu.