Ganhos para a tecnologia brasileira

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UM MOVIMENTO MAIS PROFUNDO NA TERRA UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO T h os logia ----- ...... ile1ra O RECÉM-CAIADO NUPUTEC VAI BUSCAR O MERECIDO RETORNO AO INVESTIMENTO PAUUSTA EM PESQUISA

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Pesquisa FAPESP - Ed. 53

Transcript of Ganhos para a tecnologia brasileira

UM MOVIMENTO MAIS PROFUNDO NA TERRA

UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

• T

h os logia

----- ...... ile1ra O RECÉM-CAIADO NUPUTEC VAI BUSCAR O MERECIDO RETORNO AO INVESTIMENTO PAUUSTA EM PESQUISA

NUPLITEC Núcleo de Patenteamento

e Licenciamento de Tecnologia

8 FAPESP cria o Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia para a proteção da propriedade intelectual dos inventos resultantes de pesquisas por ela financiadas

20 Pesquisadores do IAG/USP descobriram que as correntes de convecção no interior da Terra são mais profundas do que se supunha e incluem o manto inferior

Capa e ilustração: Hélio de Almeida

32 Os cientistas alertam para o risco

de recrudescimento da transmissão da doença de Chagas no Brasil, por

meio de espécies silvestres do barbeiro

EDITORIAL

MEMORIAS

OPINIÃO

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOL0GICA

CIÊNCIA

TECNOLOGIA

HUMANIDADES

LIVRO

LANÇAMENTOS

ARTE FINAL

5 6 7

8 20 42

50 56 57 58

42 Os valores-limite de financiamento aos projetos do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas aumentaram 50%

46 A Opto Eletrônica, empresa de São Carlos, desenvolveu, para a Companhia Vale do Rio Doce, medidores de distância a laser que garantem maior precisão do local de parada dos vagões de minério

50 Livro resgata a história do planejamento urbano no Brasil, ao reunir 329 imagens de plantas e vistas de cidades brasileiras, entre o século XVI e o início do XIX

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 1000 • 3

.:IAPESP

PESQUISA FAPESP É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL

DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PROF. DR. CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ PRESIDENTE

PROF. DR. PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU ALAIN FLORENT STEMPFER

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO

FLÀVIO FAVA DE MORAES JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA MAURÍCIO PRATES DE CAMPOS FILHO

MOHAMED KHEDER ZEYN PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO

RICARDO RENZO BRENTANI VAHAN AGOPYAN

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO PROF. DR FRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

PROF. DR. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENG LER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PROF. DR. JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

EQUIPE RESPONSÁVEL

CONSELHO EDITORIAL PROF. DR. FRANCISCO ROMEU LANDI

PROF. DR. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER PROF. DR. JOSÉ FERNANDO PEREZ

EDITORA CHEFE MARILUCE MOURA

EDITORA ADJUNTA MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CI~NCIA)

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) MÁRIO LEITE FERNANDES (TEXTO)

DIAGRAMAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA TÁNIA MARIA DOS SANTOS

COLABORADORES ANA MARIA FlORI CLAUDIA IZIQUE

DÉBORA GUTERMAN EDUARDO STOPATO

EVANILDO DA SILVEIRA LUCAS ECHIMENCO MARGARETH LEMOS

MAURO BELLESA RENATA SARAIVA

ULISSES CAPOZOLI WAGNER DE OLIVEIRA

FOTOLITOS E IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN

TIRAGEM: 22.000 EXEMPLARES

FAPESP RUA PIO XI, N" I SOO, CEP 05468-90 I ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL (O- l i ) 838-4000 - FAX: (O- li) 838-411 7

ESTE INFORMATIVO ESTÁ DISPONÍVEL NA HOME-PAGE DA FAPESP:

http:l/www.fapesp.br e-mail: [email protected]

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

4 · MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

Pesquisa FAPESP no exterior

Recientemente recibimos, em ca­lidad de donación, un ejemplar de la revista Pesquisa FAPESP. Después de evaluarla, llegamos a la conclusión que la misma es de sumo interés para los especialistas que nos visitan, pues su temática esta enmarcada entre las de nuestro Centro de Información.

La Biblioteca de Ciencia y Tecno­logia está interesada en recibir la in­formación más relevante en las temá­ticas científicos-técnicas; por este motivo pedimos que evalúe la po­sibilidad de hacérnosla llegar de for­ma sistematica. Nuestro Instituto le agradeceria tal empefi.o.

ESTH ER PONTE

Biblioteca Nacional de Ciencia y Técnica Academia de Ciencias de Cuba

Havana, Cuba

Quiero felicitados por la magni­fica revista que he recebido, sus ma­terias muy completas, objetivas y precisas. Por esto mismo, solicito a Ud. la posibilidad de enviaria em castellano o en ingles, pues en vostro idioma se confunde y se pueden dis­torsionar las informaciones. Quedo muy agradecido por la gentileza y comprensión.

PABLO E . B ECKER

Santiago, Chile

A revista Pesquisa FAPESP deverá estar disponível na Internet, em inglês e espanhol, nos próximos meses. A edi­ção impressa da revista nesses dois idio­mas está ainda sendo estudada.

Pesquisa FAPESP no Brasil

O Laboratório de Biogeoquímica Ambiental da Universidade Federal de Rondônia desenvolve trabalhos de monitoramento da contamina­ção por mercúrio e outros metais pesados na bacia do rio Madeira, Es­tado de Rondônia, e conta com uma

equipe de professores pesquisado­res, alunos de graduação e pós-gra­duação, bolsistas e não bolsistas, e graduandos colaboradores das pes­quisas. São pesquisadores de diver­sas áreas do conhecimento e seria de extremo interesse termos à disposi­ção os exemplares da revista Pesqui­sa FAPESP regularmente.

P RISCILA AND~A SALVIONI G AL!

Universidade Federal de Rondônia Porto Velho, RO

Suplemento SOO anos

Gostaria de parabenizar os auto­res do documento SOO anos de Ciên­cia e Tecnologia no Brasil. De fato, é uma história emocionante e deve ter emocionado, igualmente, seus res­ponsáveis, à medida que iam regis­trando os nomes daqueles que fize­ram ciência e tecnologia de maneira maiúscula entre nós.

Entretanto, embora seu nome te­nha sido citado no destaque a Rocha e Silva, o nome de André Dreyfus não foi lembrado no lugar apropria­do. Quando se fala em Theodosius Dobzhansky- merecidamente cita­do entre os estrangeiros- o nome de Dreyfus está omitido, quando deve­ria vir em primeiro lugar, pois foi quem, de fato, constituiu a célula original da genética entre nós. Seus melhores alunos e continuadores como Pavan, Brito da Cunha, Frei­re-Maia e Rosina de Barros, aí estão citados porque seus primeiros mo­mentos na pesquisa científica ti­nham Dreyfus na vanguarda.

O lugar de André Dreyfus deve ser incluído, forçosamente, como destaque, dado seu pioneirismo, no Brasil, na área de genética e na for­mação dos mais ilustres geneticistas brasileiros. Aliás, aqueles merecida­mente citados no artigo.

P ROF. DR. JosE CARLOS BARBERIO

Prof. Titular aposentado/USP São Paulo, SP

EDITORIAL

Das patentes aos recursos para inovação

Apoiar a pesquisa em ciência e tecnologia não é só financiá-la

Aproteção à p_:oprie.dade intelectua~ de in­ventos que tem ongem em pesqmsas que financia vem preocupando a FAPESP há

algum tempo. Natural, porque se o registro de qualquer patente- a forma por excelência de pro­teção a essa propriedade - implica despesas, seu licenciamento e a concessão do direito de uso pro­duzem receitas. E tratam-se de receitas de forma alguma desprezíveis para os responsáveis diretos pelos inventos que geraram paten-tes, para as instituições ou empre-sas que as detêm e, pensando-se em escala, para o país de onde saiu -- -

Não fosse isso, a capa desta edição poderia ter sido a reportagem sobre uma nova descoberta no campo dos movimentos das placas tectônicas, ou se­ja, que esses movimentos podem ser muito mais pro­fundos do que se pensava. Uma equipe de pesqui­sadores paulistas concluiu que eles podem ocorrer a uma profundidade, pelo menos no Brasil, de até 700 quilômetros, contra os 100 ou 200 quilôme­tros que estavam estabelecidos, até então, como li-

mite dessa fascinante inquietação interior da Terra.

Em área muito diversa e de inte-resse capital para a saúde pública, a

o pedido de registro. Em outras pa-lavras, uma atitude de descaso para : "O descaso

epidemiologia, falamos sobre resul­tados recentes de uma pesquisa que constatou a existência de duas dife­rentes linhagens de Trypanosoma cru­zi, uma historicamente associada à doença de Chagas em seres humanos, e outra que tem animais silvestres como hospedeiros. A matéria tam­bém traz o alerta de vários pesqui­sadores para os riscos de recrudes­cimento da transmissão da doença, a

com a proteção à propriedade inte-lectual costuma corresponder a 1

uma injustificável perda de receitas I

e divisas para todas as partes que

para com a

propriedade

bancam o risco do investimento em pesquisa científica e tecnológica.

intelectual

As preocupações da FAPESP com o tema ganharam forma mais consistente em dezembro do ano

causa perda

de receitas"

passado, quando ela promoveu um seminário com especialistas do país e do exterior para debater a questão das patentes em profundi-dade. E tornaram-se mais objetivas com uma nova iniciativa: a criação do Núcleo de Patentea­mento e Licenciamento de Tecnologia, o Nuplitec, aprovada pelo Conselho Superior da Fundação em sua reunião de 1 O de maio passado. Agora em fase de implantação, o Nuplitec é tema da repor­tagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP.

Dada a relevância do tema para a pesquisa bra­sileira, a escolha não poderia ser outra. O Brasil, enquanto responde por 1 o/o da produção científi­ca mundial, considerando-se os artigos científicos publicados e indexados pelo Institute for Scienti­fic Information (ISI), aparece com uma modestís­sima participação de 0,05% no total de patentes concedidas pelo Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO), no período de 1980 a 1998. Portanto, iniciativas concretas para alterar esse quadro pífio têm que ser valorizadas.

despeito do sucesso das campanhas · de erradicação do barbeiro, trans­missor do mal de Chagas.

Notícia importante no campo da tecnologia é o aumento da ordem de 50% nos limi­tes de financiamento oferecidos pela FAPESP para projetos apoiados no âmbito de seu Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). Merece destaque também os medidores de distância a laser desenvolvidos por uma pequena companhia paulista para a Vale do Rio Doce que, à maneira de um radar sofisticado (valendo-se de si­nais luminosos, em vez de ondas de rádio), indicam com precisão o local mais adequado para os vagões do trem carregado de minério de ferro pararem e suas caçambas serem viradas para o descarrega­mento do material. O sistema já está sendo utilizado na estrada de ferro da empresa, no Espírito Santo.

Por fim, não poderíamos deixar de destacar a matéria sobre um belo livro que mostra, com 329 imagens, um percurso do planejamento urbano no Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Boa leitura!

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 1000 • 5

Pioneiro incompreendido e injustiçado Ele inventou o telégrafo e a telefonia sem fio, mas o Brasil recusou suas descobertas

Era o ano de 1893. Em São Paulo, o padre gaúcho Roberto Landell de Moura (1861- 1928), então um simples vigário em Campinas, faz uma demonstração de um invento seu, que permitia, segundo ele, a uma pessoa falar com outra a muitos quilômetros de distância, sem necessidade de

fio, mas utilizando-se de ondas de rádio. Poucos acreditaram. Mas de fato, da avenida Paulista, ele realiza, com sucesso, a experiência, comunicando-se com o Alto de Santana, a cerca de oito quilômetros. Era a primeira vez no mundo que se fazia tal experimento. Afinal, o italiano Guglielmo Marconi, que ficou como o inventor do rádio, só realizaria sua transmissão radiotelegráfica mais de um ano depois. Ninguém deu importância à façanha do padre, que ganharia a fama de feiticeiro. Seu laboratório

6 • MAIO OE 2000 • PESQUISA FAPESP

Patente do telégrafo sem fio, obtida nos Estados Unidos, em 1904

Landell de Moura previu a transmissão de imagens

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Réplica do transmissor de

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r • erwot.meoto secundirio G e G" • Condensadores fcLimp.CS.

em Campinas foi destruído por fanáticos e somente em 1900 ele conseguiu obter no Brasil a patente de seu invento. De novo, desinteresse geral. E Landell de Moura foi para os Estados Unidos. Ali, obteve as patentes de três inventos: a telefonia sem fio, a telegrafia sem fio e o transmissor de ondas. Foi notícia no New York Herald e industriais norte-americanos tentaram adquirir os direitos dos aparelhos. O padre recusou. Os benefícios deveriam ser do Brasil. Mas aqui, mais uma vez, ninguém o apoiou.

OPINIÃO

EVARISTO MARZABAL NEVES

A (ignorada) função social do Genoma O impacto do projeto da X. fastidiosa atinge os agronegócios

Aceitando convite da diretoria científica, no lançamento do Projeto Genoma FAPESP (14/10/97), fiz uma apresentação sobre a

importância econômica da citricultura brasileira. No momento, justificava-se tal apresentação, pois se iniciava o maior projeto científico já realizado no Brasil, cujo desafio era o seqüenciamento genéti­co da bactéria Xylella fastidiosa, fitopatógeno res­ponsável pela clorose variegada dos citros (CVC).

Pouco mais de dois anos ( 06/011 2000), os pesquisadores fechavam o genoma do primeiro fitopatóge­no já seqüenciado no mundo e, em

cola, superando as barreiras não-tarifárias (técni­cas e fitossanitárias, principalmente) e valorização social da terra; na sustentação e manejo ambien­tal correto; na captação de divisas e substituição competitiva de importação; na formação de capi­tal, de renda e agregação de valor regionais; na ati­vação dos elos da cadeia produtiva; tributos, taxas e impostos recolhidos e distribuídos nos municí­pios; na dinâmica e desenvolvimento regional de

outros setores da economia. A compreensão do feito tem

efeito retardado com os ganhos so­ciais que estão por vir. Para explicar

21/02, os laboratórios e cientistas receberam do Estado de São Paulo o reconhecimento público da rele­vância do trabalho concluído.

"É de suma a função social dos projetas Genoma FAPESP (Xylella fastidiosa), Geno­ma Funcional e Genoma Xantho­monas (cancro cítrico) para a so­ciedade, tenho usado o expediente de começar formulando a seguinte questão: supondo que o país tenha perdido a guerra no conhecimento científico, controle e combate às pragas e doenças (onde se incluem

importância A mídia exultou o feito, mas ex­

plorou timidamente suas extensões e contribuições sociais no tempo, o que pode não ter chamado a aten­ção da população, não familiariza­da com pesquisa científica, muito menos com o termo genoma, e an­siosa por soluções imediatas.

mensurar os

efeitos do

projeto na

agricultura"

Para se medir os efeitos da relação social benefício-custo é preciso ir mais além do que a glorificação do feito no ambiente acadêmico. O que o torna no­tório é medir, no tempo, seus impactos alocativos e distributivos se espalhando socialmente, senão o povo fica sem saber por que investir milhões de dólares no mapeamento de uma bactéria.

O seqüenciamento é o passo inicial para a enorme contribuição que a pesquisa científica presta à agricultura brasileira, visando à produção e ganhos sociais de produtividade e a abertura de um sem-número de perspectivas para a preven­ção, controle ambiental e monitoramento correto de pragas e moléstias.

Ademais, é de suma importância antever e mensurar, a posteriori, os impactos diretos e indi­retos na geração de emprego e ativação do merca­do de trabalho; na ocupação racional da área agrí-

· a CVC e o cancro cítrico) na citri­cultura, e que não houvesse mais ne­nhum pé de laranja, quais os efeitos alocativos e distributivos que im­pactariam a economia do país?

Talvez seja por aí que se abre o caminho da difu­são, da adoção de tecnologias e transferência de ciên­cia da microesfera científica para a macroesfera do conhecimento popular. Atinge-se a percepção de um universo que aprenderá a esperar e passará a enten­der o quanto o país perderia na biossegurança, na alocação doméstica de fatores produtivos e divisas externas sem os resultados da pesquisa científica.

Nesta direção, "com o poeta indo onde o povo está': certamente, colher-se-ão os frutos do tremendo impacto social dos projetas Genoma na agricultu­ra, nos agronegócios e na sociedade brasileira. ·

EVARISTO MARzABAL NEVES, professor titular da ESALQ! USP (Piracicaba, SP).

PESQUISA FAPESP • MAIO DE 1000 • 7

CAPA

PATENTES

• A pesq!JISa queva1a~

mercauo FAPESP cria Nuplitec para apoiar inventos e licenciamentos

CLAUDIA IZIQUE

FAPESP está implantando o Núcleo de atenteamento e Licenciamento de Tec-nologia (Nuplitec) para a proteção da propriedade intelectual dos inventos re­sultantes de projetos por ela financia­

dos e, sobretudo, para o seu respectivo licenciamen­to. "A patente é a forma mais definitiva de proteção da propriedade intelectual, mas, em si, ela é um item de despesa. O que importa é o licenciamento e o di­reito de uso", enfatiza José Fernando Perez, diretor científico da Fundação.

O Nuplitec vai conferir ao patenteamento o cará­ter de um negócio, buscando ativamente o mercado para o invento. ''A patente e o licenciamento serão pro­cessos simultâneos': explica Perez. O Núcleo será mo­bilizado tão logo o pesquisador e o assessor da Fun­dação responsável pelo acompanhamento do projeto considerem que o invento é original e tem potencial de mercado. A FAPESP distribuirá aos pesquisadores um roteiro de avaliação do projeto, com o objetivo de apoiar a decisão dos interessados de patentear um in­vento. O questionário inclui perguntas relativas à via­bilidade técnica, maturidade do projeto, potencial de mercado, necessidade de protótipo, custos e controle do uso da patente (ver box).

Para confirmar a originalidade de seu projeto, os pes­quisadores poderão consultar o Derwent, do Institut for Scientific Information, (dii.derwent.com) um dos maiores bancos de patentes do mundo, disponível des-

8 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

de dezembro para as universidades e instituições de pes­quisas paulistas. Esse banco de dados também estará acessível às empresas que participam dos programas Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) e Parceria para Inovação Tecnológica (PITE). As infor­mações sobre patentes já registradas podem ainda ser obtidas no banco de dados do Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO), da IBM ou nos arquivos do Instituto Nacional de Propriedade Indus­trial (INPI), que reúnem mais de 20 milhões de docu­mentos sobre patentes concedidas desde 1920, ainda não disponíveis em meio eletrônico.

Os quesitos originalidade e potencial de mercado serão confirmados pela Coordenação de Tecnologia, responsável pelo gerenciamento do Nuplitec, e asses­sores ad hoc. "Se os pareceres forem favoráveis, o Núcleo auxiliará os inventores a redigir o relatório e fará o depósito de patente no Brasil, por meio do INPI

e/ou uma patente provisória no exterior, para asse­gurar o registro", diz Edgar Dutra Zanotto, coorde­nador-adjunto da diretoria científica da Fundação. A FAPESP está formalizando convênio com o INPI para facilitar o registro de patentes.

uando houver necessidade de constru­ção de um protótipo do invento, o Nu­plitec poderá buscar apoio de centros de pesquisa especializados, afirma Za­notto. Esse parceiro técnico será res­

ponsável pela confecção do produto, observando a possibilidade de produção em escala, custo e dispo­nibilidade do material a ser utilizado e a possibilida­de real de controle do uso da patente.

O próximo passo é buscar, junto com o pesquisa­dor, as empresas interessadas na aquisição ou licen­ciamento do invento. Se dentro de um prazo de 12

~ meses a nova tecnolo­gia for negociada com sucesso, o Nuplitec contratará escritório especializado para dar forma final à patente e depositá-la definitiva­mente no Brasil e/ou nos países onde hou­ver potencial de mer­cado. Neste caso, a FA­PESP ficará com a titularidade da paten­te, compartilhando proporcionalmente os rendimentos líquidos do invento com o pes­quisador e a universi­dade ou instituição de pesquisa, na forma prevista na Lei de Pa­tentes. ''A FAPESP as­sume o risco e com­partilha os benefícios", resume Perez. "Temos escala para justificar o custo da operação."

Esgotado o perío­do de um ano, se o in­vento não despertar o interesse do mercado, o Nuplitec se retira da negociação para o li­cenciamento e os in­ventores devem conti­nuar o processo de patenteamento por

conta própria. A FAPESP seguirá à frente do projeto apenas em casos excepcionais, de tecnologias muito inovadoras e promissoras. "Só vamos bancar o que tiver mercado", sublinha Zanotto.

O Nuplitec terá uma estrutura enxuta. Além da Coordenação de Tecnologia, farão parte do Núcleo um profissional com experiência em marketing e co­mércio de tecnologia, um analista de patentes, res­ponsável pela redação para o depósito inicial, e dois estagiários, estudantes de Direito que se especiali­zarão em propriedade industrial e contratos de li­cenciamento.

O Núcleo crescerá junto com a demanda, estima­da em mais de uma centena de patentes por ano, no Estado de São Paulo. "O sucesso do projeto será me­dido por dois indicadores: o da cultura de proteção da propriedade intelectual e o do retorno do licencia­mento': afirma Perez. Ele aposta na capacidade da

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 1000 • 9

FAPESP de mobilizar pesquisadores e no seu potencial de avaliação dos projetos. "Já come­çamos a avaliar propos­ta de patente e licenci­amento de um projeto e nos surpreendemos com a qualidade de análise feita pelos as­sessores da Fundação. Há detalhes técnicos e de consistência do in­vento que demonstram a nossa capacidade de avaliação", adianta.

O processo de im­plantação do Núcleo está apenas se inici­ando. Os formulários encaminhados pela Fundação aos pesqui­sadores e assessores estão sendo alterados para incluir questões que pretendem levar os interessados a ob­servar a originalidade e o potencial de mer­cado do seu invento. "Estaremos alerta pa­ra realizar essa pros­pecção de inventos': diz o diretor-cientí­fico da FAPESP.

FAPESP assume riscos, diz Perez (acima); e banca o que tiver mercado, completa Zanotto (à esq.)

bro do ano passado. No encontro, cinco es­pecialistas do Brasil, Estados Unidos e Is­rael relataram as estra­tégias de diferentes instituições de pesqui­sas, analisaram as difi­culdades da proteção à propriedade intelectual no Brasil e indicaram os melhores caminhos para que as instituições assumissem uma posi­ção de defesa dos tra­balhos de seus pesqui­sadores. Concluíram

que, sem uma política clara e eficaz de proteção à propriedade intelec­tual, será praticamente impossível para as instituições avançarem nos

Perez espera que, além da cultura de proteção de inventos, o Nuplitec estimule o desen­volvimento de competências na área de propriedade intelectual, gerando, por exemplo, a implementação de cursos de pós-graduação de Direito nesta área.

Ele adianta, ainda, que a FAPESP não pre­tende restringir a atuação do Núcleo aos projetos desenvolvidos por universidades ou instituições de pesquisa. Também po­derão contar com o apoio do Nuplitec os

projetos de inovação tecnológica desenvolvidos por pequenas empresas e os projetos elaborados em par­ceria entre empresas, universidades e institutos de pesquisas. "Neste caso, a titularidade do invento será das empresas e da FAPESP", ressalva Perez.

A idéia de estimular a patente e o licenciamento de inventos surgiu no workshop Propriedade Intelec­tual e Patentes, promovido pela FAPESP, em dezem-

I O • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

acordos de licenciamento com as empresas. Desse debate, nasceu o projeto do Nuplitec, que foi aprovado pelo Conselho Superior da Fundação, no dia 10 de maio deste ano.

Em defesa da tecnologia nacional

O registro de patentes é uma forma indi­reta de avaliar o potencial de inovação tecno­lógica de um país. No Brasil, mais de uma centena de escritórios de advocacia são espe­cializados no registro de patentes. Isso sem fa­lar nos departamentos específicos mantidos pelas grandes universidades, como USP e Uni­

camp, pelos institutos de pesquisa e fomento, como o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ou por fundações e empresas, como a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Petrobras. Ainda assim, o número de depósitos anuais de patentes no INPI variou entre 11.000 e 17.000, na última década. O número de patentes ex­pedidas, no mesmo período, oscilou de 2.500 a 4.000, sendo que 80% eram de titularidade estran­geira. A situação é mais grave quando se constata que a participação brasileira correspondeu a 0,05% do total de patentes concedidas pelo USPTO, nos Estados Unidos, entre 1980 e 1998. Esse percentual foi similar ao obtido por países como a Irlanda e o México, e inferior ao da África do Sul, Israel e Co­réia, que têm estágio de desenvolvimento científico comparável ao do Brasil. "Estamos atrasados", cons-

tata Perez. ''A FAPESP, através do Nuplitec, quer criar uma cultura que valorize a proteção da propriedade intelectual e investir no retorno que resultará de seu licenciamento."

É bem verdade que, nos países desenvolvidos, as empresas são as principais responsáveis pela geração de patentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 3% das patentes são depositadas por universida­des ou instituições de pesquisa. No Brasil, essa pro­porção é muito menor. E pior: pesquisadores e insti­tuições inúmeras vezes perdem a oportunidade de buscar mercado para inventos com potencial de apli­cação industrial, abrindo mão de direitos que pode­riam resultar num expressivo retorno econômico.

A dificuldade dos pesquisadores brasileiros se deve, em grande parte, a problemas operacionais, tais como a falta de informação, descuido, inexistên­cia ou despreparo dos escritórios especializados em patentes nas universidade e institutos de pesquisa e ao alto custo do depósito de patentes internacionais.

Para superar essa dificuldade algumas insti­tuições adotaram medidas para a proteção dos inventos gerados nas atividades de pes­quisa. A Fiocruz, do Rio de Janeiro, foi das primeiras a adotar, na década de 80, uma re­

gulamentação interna de proteção à propriedade in­telectual dos inventos. "Os pesquisadores publicavam tudo e a instituição não tinha qualquer controle sobre proteção intelectual. E a novidade é o requisito básico de qualquer invento", conta Maria Celeste Emerick, coordenadora de Gestão Tecnológica da Fiocruz.

Essa iniciativa foi o primeiro passo para a criação de uma nova cultura de proteção entre os seus pes­quisadores. "Começamos a fazer palestras, falar so­bre patentes e suas vantagens e colocamos à disposi­ção de nossos técnicos o Banco de Patentes do INPI." Hoje, a busca de informações é uma rotina para os pesquisadores. ''Aprendemos a fazer patentes. Mes­mo que a instituição contrate um escritório especia­lizado para o seu registro, é preciso que o pesqui­sador esteja atento e informado e saiba redigir o documento de patentes", diz Maria Celeste.

Há dez anos, a Fiocruz criou um escritório para o registro de patentes, ao mesmo tempo em que desco­briu a importância de estar atenta ao comportamen­to e à organização do mercado, para poder avaliar corretamente a potencialidade comercial dos seus inventos. A Fiocruz tem, hoje, 15 patentes concedi­das no exterior, em três países diferentes, nenhuma delas ainda licenciadas. No Brasil, das 12 patentes concedidas, já estão licenciadas o ZIGZAIDS, um jogo educativo sobre Aids, dirigido a adolescentes; uma vela à base de plantas que afasta o mosquito Ae­des aegypti; um kit com antígeno contra a doença de

NUPLITEC Núcleo de Patenteamento

e Licenciamento de Tecnologia

Quando patentear um invento

Muitas invenções nunca são patenteadas. Outras são retidas até que se completem ou até que o mercado esteja pronto para recebê-las. Só algumas são processadas rapidamente . Portanto, várias questões devem ser respondidas antes que uma tecnologia seja patenteada.Aqui estão elas:

Originalidade e viabilidade técnica • O invento é original no nível internacional? • Foi efetuada uma busca de patentes? • Há um protótipo para demonstração?

Maturidade do invento

• A tecnologia não é prematura, dado o mercado atual? • Os possíveis interessados perceberão a sua utilidade? • O invento está pronto para produção em escala ou

terá que ser desenvolvido pelo licenciado? • Quem deverá investir mais para torná-lo fabricável?

Mercado potencial • Alguém precisa de tal invento? • Há produtos similares no mercado? • Em caso positivo, esta invenção é mais barata, melhor

que os similares ou apresenta vantagens sobre eles? • Quem são os possíveis clientes para o invento? • Quais são os diferentes mercados para o invento? • Há estimativa de mercado atual e futuro?

Licenciamento

• O protótipo pode ser usado para facilitar o licenciamento?

• O inventor está interessado em demonstrar o invento aos potenciais licenciadores?

Custos • Será necessária patente internacional? • O faturamento previsto cobrirá os custos

de patenteamento?

Dificultadores • Será possível impor e controlar o uso da patente? • Necessita de aprovação ou certificação

governamental?

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • li

a sua dificuldade em construir protótipos. "Tínhamos vários in­teressados no licen­ciamento da sonda, mas a borracha usa­da no protótipo era cara porque só é pro­duzida na Malásia. Percebemos que es­távamos apenas no meio do caminho e

que era preciso mves­tir também no desen­

volvimento do produto, pensando em grande escala."

Maria Celeste Emerick (acima) conta que a Fiocruz tem 12 patentes concedidas no Brasil.

A solução foi buscar apoio do Centro Federal de Educação Tecno­lógica ( Cefet) para desenvolver o protótipo com viabilidade comer­

A Petrobras tem 643 , diz Marta Jacob (ao /ado)

Chagas; e um bioinseticida cujo desenvolvimento exigiu da empresa investimentos de US$ 1 milhão, e que já está sendo reescalonado para o mercado.

Mas foi prospectando o mercado para uma sonda nasofaringe que a Fiocruz constatou outro problema:

cial. O primeiro projeto a ser desenvolvido pelo novo parceiro será o protótipo de uma cadeira anti-reflu­xo. O Cefet será responsável pelo estudo de viabilida­de econômica do projeto e análise dos custos do ma­terial e demais aspectos de mercado. Só depois desses

INPI:em busca do tempo perdido

José Graça Aranha, que há me­nos de um ano ocupa o cargo de presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), tem pela frente um grande desa­fio: recuperar a credibilidade e re­organizar os serviços de atendi­mento aos usuários do órgão. "O INPI estava nas páginas policiais, sem rumo, sem uma missão ou política definidas", ele afirma.

Quando ele assumiu o cargo, em junho do ano passado, 40 mil processos de registro de patente e 240 mil pedidos de registro de marcas se acumulavam nas estan­tes. "A desmotivação dos funcio­nários contribuía para o atraso", diz. Mas ele atribui a morosidade do Instituto a problemas geren­ciais e administrativos e à "forma como era vista a questão das pa­tentes': Ele conta, por exemplo, que determinados processos con-

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siderados "sensíveis" eram esque­cidos. Outros tantos dependiam de parecer do Serviço Nacional de Informações (SNI), já extinto. "Encontramos processo de ·1985, sem solução."

Inspirado em modelos organi­zacionais adotados pelos mais de 30 institutos de propriedade inte­lectual de diversos países, que ele conheceu enquanto trabalhou na Organização Mundial da Proprie­dade Industrial, em Genebra, na Suíça, Graça Aranha reviu práti­cas, métodos e sistema de classifi­cação do INPI brasileiros de tal forma a torná-los compatíveis com aqueles adotados no exterior. "E os processos começaram a se mover." Hoje, o número de pro­cessos de patentes atrasados caiu para menos de 30 mil e os de pe­dido de registro de marcas para algo em torno de 170 mil. A meta

é acelerar o exame dos processos, reduzindo o período de tramita­ção dos processos dos atuais e in­termináveis dez anos para quatro anos, seguindo o padrão da grande maioria dos institutos es­trangeiros.

Há, no entanto, outros pro­blemas a serem resolvidos como, por exemplo, o da falta de pes­soal. Desde 1995, pelo menos 30% dos funcionários do órgão se aposentaram e o Instituto im­plantou, a partir de 1997, política de terceirização de mão-de-obra, por meio da qual o INPI empre­ga 295 pessoas. Os funcionários fixos somam, hoje, 560. A tercei­rização, no entanto, está sendo contestada pelo Ministério Públi­co. "Temos que buscar uma saída definitiva para esse problema." O modelo por ele desejado é trans­formar o INPI numa agência exe­cutiva, com independência finan­ceira e um plano de cargos e salários próprios, conforme pre-

resultados, será possível partir para a identificação das empresas eventualmente interessadas no produ­to. "Os investimentos no desenvolvimento do produ­to são quase iguais ou maiores que os investimentos em pesquisa': constata Maria Celeste. "E esse é, hoje, o nosso maior gargalo."

D o lado das grandes empresas, a situação é diferente. A Petrobras, por exemplo, com um faturamento anual de US$ 20 bilhões, é a campeã de registras de pa­tentes. A empresa coleciona um total de

643 patentes concedidas no Brasil e 1.498 no exterior em pelo menos dez países. A Petrobras tem a titula­ridade das patentes. "Somos o maior gerador de tec­nologia no país", garante Marta Metello Jacob, consultora técnica do Setor de Comercialização de Tecnologia e Pro­priedade Industrial.

O Setor de Comercialização de Tec­nologia funciona há 30 anos e a empresa já tem bem desenvolvida uma cultura de proteção aos seus esforços de ino­vação tecnológica. O desenvolvi­mento das pesquisas pode ser

visto no artigo 239 da Lei no 9279, sobre a Pro­priedade Industrial.

Responsabilidade - Ele credita à ineficiência his­tórica do INPI uma par­te da responsabilidade pela falta de uma cultura de proteção à proprieda-

acompanhado pelo Setor por meio da Intranet. "Pa­dronizamos os procedimentos para o envio do relató­rio do que a invenção representa em termos de me­lhoria de custo ou tempo de trabalho", detalha a consultora. Esses relatórios servem de base para a fun­damentação do documento de depósito da patente que é elaborado pelo Setor de Comercialização, tam­bém responsável pela confirmação da originalidade do projeto. "Trabalhamos com 80% de certeza", ela diz.

São depositadas patentes de inovações tecnológi­cas que já estão em operação nos diversos centros de operações da empresa. "Fazemos isso para evitar que outras empresas usem a nossa tecnologia sem pagar ou desenvolvam projetos semelhantes e nos impe­çam de continuar usando o nosso", explica Marta Metello Jacob.

Mais que isso, o depósito de patentes no exterior tem o objetivo de divulgar a imagem da Petrobras e

do Brasil no exterior. "Faz mais efeito do que pa­

Graça Aranha sonha com a independência financeira do INPI

gar uma página inteira de anúncio no The New York Time': ela afirma. "Funcio­na como uma espécie de marketíng da empresa e do Brasil no exterior." •

aposta na imen­sa capacidade de inovação tecno­lógica do país. E exemplifica: em 1997, os países em desenvolvi­mento registra­ram 6 mil pedi-

de intelectual no país. "Os pes­quisadores preferem publicar os inventos para aferir produtividade a patenteá-los", constata. Esse mesmo descuido pode ser obser­vado no desinteresse das empresas em registrar marcas. "Do total de empresas registradas nas Juntas Comerciais, apenas 15% procu­ram o registro do INPI."

Registra, ainda, que o banco de dados da entidade, que reúne cerca de 20 milhões de documen­tos de patentes, desde 1920, tem média muito baixa de consulta, algo em torno de mil por ano. Es­ses dados não estão disponíveis

em meio eletrônico, mas espalha­dos por uma área de 5 mil metros quadrados, o que certamente de­sestimula a consulta. "O INPI de Cuba, país que não tem qualquer capacidade de investimento, tam­bém acumula 20 milhões de do­cumentos de patentes, não infor­matizados, e recebe o dobro de consultas;' ele compara. Ressalva que o Instituto cubano é mais en­xuto e organizado que o brasilei­ro: as pastas com documento ocupam área muito menor, de 600 metros quadrados.

dos de patentes, sendo que metade era tecnologia gerada no Brasil.

Admite que a posição relativa do país no mundo desenvolvido é diferente. No ranking das paten­tes concedidas nos Estados Uni­dos em 1996, o Brasil é líder da quarta divisão, ao lado de Porto Rico, Gana e Zimbábue. "E por não se tratar de um campeonato de futebol, o líder da quarta divi­são não é promovido, automati­camente, para a terceira," ironiza. O INPI, ele diz, tem que colabo­rar para mudar esse quadro. "Precisamos recuperar o tempo perdido."

Apesar das dificuldades dos pesquisadores, Graça Aranha

PESQUISA FAPESP · MAIO OE 2000 • 13

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

JORNALISMO CIENTÍFICO

A imprensa entre a ciência e a ética

Congresso debate a qualidade da divulgação dos trabalhos científicos

N um cenário de transição en­tre um mundo dominado

por chips e computadores para ou­tro em que reinarão os genes e o DNA, a Associação Brasileira de Jor­nalismo Científico (ABJC), que con­grega jornalistas da área de todos os estados brasileiros, realizou, em Flo­rianópolis, entre os dias 2 e 5 de maio, o 6° Congresso Brasileiro de Jornalismo Científico. Com o tema geral O jornalismo científico diante da ética na Ciência e na imprensa, o evento teve como objetivo a troca de

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experiências profissionais e a apre­sentação de trabalhos de jornalismo e divulgação científica, em diversos minicursos, mesas-redondas, confe­rências e painéis.

A modernidade, a separação en­tre ciência e ética e fundamentação do conhecimento foram temas de­batidos pelos professores de jorna­lismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Eduardo Meditsch e Orlando Tambosi. Para Meditsch, o jornalismo é uma forma de conhecimento diferente da ciên­cia, porque é voltado para um públi­co abrangente e revela o fato em si mesmo. "Os cientistas, por sua vez, dirigem sua produção para a comu­nidade científica e abstraem aspec­tos de diferentes fatos", afirmou. "No entanto, o jornalismo também deve

ser visto como uma forma de co­nhecimento, porque oferece um ân­gulo a mais para a compreensão da realidade." E é exatamente por isso que essa atividade, tal qual a do cien­tista, deve ser regida pela ética. Dois outros professores de jornalismo da UFSC, Francisco Karam e Nilson Lage, defenderam a idéia de que ca­da profissão tem que ser gerida por um código de ética diferenciado, pois cada uma desenvolve um traba­lho diferente.

O código de ética do jornalismo, no entanto, é ineficaz, segundo ava­liação de jornalista José Hamilton Ribeiro, presidente da ABJC. "Com ou sem código de ética a imprensa vive da mesma maneira", declarou. "Cada empresa de comunicação tem seu próprio código. Cada uma de-

senvolve seu produto de acordo com seus interesses e critérios de censura:' O professor Karam, da UFSC, acres­centou que é preciso que os objetivos da mídia sejam objeto de discussão nos meios de comunicação. Segun­do o professor, existem centenas de processos contra jornalistas por pu­blicarem informações erradas, mas não há um fórum dentro da catego­ria para debater isso. O jornalista Sérgio Murilo de Andrade, secretá­rio-geral da Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais (Fenaj), dis­se que o código de ética é bom, mas é lido por poucos jornalistas e ensinado em poucas escolas.

Cobertura especializada - Ou­tro ponto debatido no Congres­so foi a qualificação dos jorna­listas. O presidente da ABJC e André Singer, editor da revista Superinteressante, concordaram que o jornalismo caminha para a especialização e que os profis­sionais terão que conhecer mais as áreas que pretendem seguir. Para Ribeiro, o jornalismo cien­tífico e a ciência feitos no Brasil estão, em geral, abaixo das ex­pectativas. Ele disse que, para melhorar o jornalismo, "só fa­zendo jornalismo': ou seja, o profissional deve trabalhar mui­to, errar até acertar. ''A ciência pode avançar com investimen­tos e mudança de postura dos pesquisadores", explicou. "Hoje,

bertas de genes que causam doenças, quando na verdade é muito mais que isto. Mas a cura das doenças e a imortalidade são o que as pessoas querem saber e por isso o projeto é apresentado dessa maneira:'

André Singer foi mais ameno e falou sobre a atuação da revista Su­perinteressante, da qual é o editor. "A Superinteressante não é uma revista científica, mas uma publicação que trata de ciência e tecnologia e ajuda na criação de uma cultura científica no Brasil", explicou. "Na revista, que

os cientistas brasileiros não são comprometidos com a socieda­ Ribeiro: jornalismo caminha para a especialização

de e não se vêem na obrigação de divulgar seus trabalhos. Já os jornalistas, penso que eles devem es­tudar e trabalhar mais."

A apresentadora da TV Cultura de São Paulo e professora de telejor­nalismo, Mônica Teixeira, seguiu o mesmo caminho de Ribeiro e criti­cou o jornalismo brasileiro. "Há uma cultura no país que quer ver coisas ruins e a imprensa mostra isso", disse. "Com o jornalismo cien­tífico não é diferente. Um exemplo é o caso do projeto genoma humano, que é mostrado apenas como desco-

está entre as dez mais lidas do país, buscamos mostrar a beleza e o fascí­nio da ciência, para prender a aten­ção do leitor. Infelizmente esse as­pecto nem sempre é bem visto pelos pesquisadores, que não gostam de ver seus trabalhos 'simplificados'."

Complexo de inferioridade - A bra­sileira Andrea Kauffmann não é jor­nalista, mas também trabalha com divulgação científica. Ela é editora sênior da Nature e uma das respon­sáveis pela escolha dos artigos de

cientistas do mundo todo que terão o privilégio de serem publicados nas páginas da prestigiosa revista ingle­sa. Em sua palestra, Andrea disse que a Nature é a revista mais rigoro­sa na escolha dos artigos científicos e por isso a publicação de um arti­go em suas páginas traz prestígio e reconhecimento para o autor. Ela explicou que os critérios para publi­cação são científicos e não jornalís­ticos e que todos os editores da re­vista são cientistas, inclusive ela, que é bióloga.

Quanto ao fato de pesquisa­dores brasileiros publicarem tão pouco na Nature, Andrea acre­dita que isso se deve a um certo complexo de inferioridade de­les. "Complexo que não deveria existir", garantiu. "Competência o pesquisador brasileiro tem; o que ele não tem é a infra-estru­tura, recursos. Talvez por isso ache que seu trabalho é de pior quali­dade. Não é. Para publicar, tem de enviar os artigos. E os brasilei­ros têm condições de fazer isso."

O painel de encerramento do Congresso apresentou os pro­jetas de divulgação científica de duas fundações de amparo à pes­quisa, a de São Paulo, FAPESP, e a de Minas Gerais, Fapemig. Ma­riluce Moura, gerente de comu­nicação da FAPESP, apresentou o case de divulgação na impren­sa do seqüenciamento do geno­ma da Xylella fastidiosa, pes­quisa desenvolvida por cerca de 200 cientistas financiados pela Fundação e um marco da ciên­cia brasileira. Liliane Nogueira,

da Fapemig, mostrou o projeto Mi­nas Faz Ciência, cujo carro-chefe são programas de dois minutos vei­culados pela TV Educativa de Mi­nas Gerais.

O encerramento do Congresso com as fundações serviu para mos­trar que já existe uma produção cien­tífica de qualidade e de resultados no Brasil, assim como a consciência da importância da divulgação desse tipo de trabalho, tanto por parte dos pes­quisadores como dos jornalistas. •

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • IS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AVALIAÇÃO DE PROJETOS

FAPESP procura novos assessores Pesquisadores com experiência podem se inscrever pela Internet

AFAPESP está ampliando o nú­mero de assessores que avaliam

e acompanham, até a conclusão, os projetos de pesquisa que lhe são en­viados. Nos últimos anos, além de ter registrado um extraordinário cresci­mento na demanda de solicitações dentro de suas linhas regulares de fo­mento, a Fundação implantou uma série de novos programas especiais, cujos projetos dependem da análise de dois assessores para serem apro­vados ou denegados. Em 1999, por exemplo, foram encaminhados 12.475 pedidos de financiamento, entre bolsas, auxílios tradicionais, em suas diversas modalidades, e auxílios a projetos de pesquisa dos vários pro­gramas especiais da instituição, so­brecarregando de trabalho os 9.244 assessores já relacionados pela Fun­dação. Por isso, o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, enten­de que é necessário expandir o nú­mero de assessores. A participação está aberta para todo pesquisador que tenha experiência documentada em pesquisa. "O pesquisador pode propor seu próprio nome ou o de um colega para nosso quadro de asses­sores", explica Perez. As inscrições podem ser realizadas pela Internet na página www. watson.fapesp. br.

Análise pelos pares - O sistema ado­tado pela FAPESP para avaliação de projetos é a análise pelos pares, ou se­ja, um cientista analisa a solicitação de pesquisa de outro cientista da mesma área de conhecimento. Esse critério é adotado nas mais importantes agên­cias de fomento do mundo.

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Os pesquisadores que fazem essas análises tornam-se assessores ad hoc da FAPESP, ou seja, não mantêm com ela qualquer vínculo formal e funcionam como seus assessores para a finalidade específica da avaliação de projetos. Os pareceres sobre o mérito desses proje­tas são encaminhados às coordenações de área da diretoria científica da Fun­dação (uma para cada grande área do conhecimento) que, considerando os vários aspectos abordados, os conso­lidam em recomendações de aprova­ção ou denegação das solicitações de financiamento. "Todas as decisões es­tão, portanto, vinculadas simultanea­mente aos pareceres dos assessores e às normas da FAPESP': afirma Perez. Os assessores também acompanham o projeto durante todo o tempo da pesquisa, até o relatório final.

Prestar assessoria ad hoc para a FAPESP é uma atividade não remu­nerada. "O não pagamento é uma pra­xe internacional, funciona em geral como contrapartida ao financiamen­to que o assessor já recebeu ou po­derá receber para suas próprias pes­quisas': explica Perez. Isso vale para· a maioria dos assessores, que é de São Paulo, mas não pode se estender para os especialistas de outros estados e do exterior que também prestam a mesma assessoria, porque le­galmente os financiamen­tos da Fundação só po­dem ser concedidos aos pesquisadores basea­dos em São Pau­lo. A assessoria dos demais é um ato de coo­peração habitual para a comunidade científica.

"O importante no trabalho do assessor é ele avaliar a im­portância científica do proje-

to e a metodologia utilizada, a compe­tência da equipe e o orçamento apre­sentado. Verificar a relação custo-bene­fício e o risco da pesquisa dar certo ou não. Resumindo, é preciso ponderar os benefícios, os custos, a relevância e a viabilidade do estudo", explica Perez.

Sigilo e confiança - O processo de avaliação e acompanhamento dos pro­jetas tem outro quesito importante: o sigilo. O assessor se compromete a não revelar o conteúdo do projeto, que deve ser tratado como confiden­cial. Ele não pode revelar sua identi­dade, nem para o interessado, nem para terceiros. Tudo porque o suces­so do sistema depende da confiança que se deposita no assessor e do sigi­lo que também a FAPESP se compro­mete a exercer. E para dar garantias nesse sentido, a Fundação toma algu­mas providências, como evitar a in­dicação de um assessor da mesma instituição do solicitante.

Outra preocupação é evitar a es­colha de um assessor que tenha algu­ma ligação especial com o solicitante que dificulte ou mesmo impeça um parecer isento, ou seja, que interpo­nha um potencial conflito de interes­ses. E para isso, a FAPESP envia a cada assessor, junto com o projeto a ser analisado, uma carta com os cri­térios a serem observados antes mes­mo do início da avaliação (ver box). Se ele concluir que sua posição em relação ao solicitante efetivamente configura algum conflito de interes­ses, deve devolver o projeto.

A indicação do assessor específico para cada solicitação é feita pelo co­ordenador de cada área do conheci­mento científico. Por exemplo, em Ciências Biológicas existem sub-áre­as de botânica, genética, farmacolo­gia e mais dez campos de atuação. Junto aos coordenadores de área nm­cionam os coordenadores adjuntos, prestando assessoria interna para a área científica da FAPESP.

Critérios de avaliação - Para o pro­fessor Francisco Bezerra Coutinho,

Isenção e credibilidade Para preservar a credibilida­

de de seus procedimentos de ava­liação e evitar constrangimentos, a FAPESP envia a cada assessor ad hoc uma lista de critérios a ser observada antes da análise do pro­jeto. A lista contém os seguintes itens que, se respondidos afirma­tivamente, representam potencial conflito de interesses, deixando ao assessor toda a liberdade de recusar a análise: 1) participação atual ou anterior

no projeto;

coordenador-adjunto da área de Ciên­cias Exatas da FAPESP, na maior par­te das vezes, é muito difícil para o coordenador escolher um assessor. "Às vezes, um bom cientista é um as­sessor limitado, que responde laconi­camente o parecer", avalia. "Existem bons cientistas que não são bons as­sessores", concorda Rogério Meneg­hini, coordenador-adjunto da área de Ciências Biológicas. Para ele, a cultura de assessoria ainda é pouco desenvol-

2) colaboração regular em ativi­dades de pesquisa ou publica­ção com um dos pesquisadores solicitantes, nos últimos anos;

3) relação orientador-orientan­do com o solicitante;

4) interesse comercial do asses­sor na pesquisa proposta;

5) relação familiar do assessor com um dos proponentes; ou

6) qualquer relação anterior com o solicitante que possa ser per­cebida como impeditiva para um parecer isento.

vida no Brasil. "Os pareceres são mui­to diferentes nos Estados Unidos e na Europa. Lá, eles são mais abrangentes e mais proflmdos, e gasta-se mais tem­po nas análises", afirma Meneghini. "Aqui, as respostas são curtas, mas, na média, os pareceres são muito bons." Ele credita esse descompasso à maior competitividade existente no exterior, exigindo avaliações mais rigorosas.

Alguns solicitantes se valem do direito garantido pela FAPESP de re­correr de uma decisão negativa, por meio de um pedido de reconsidera­ção fundamentado na discussão das objeções levantadas pelo assessor ad hoc. Nesses casos, a FAPESP reenvia o projeto ao mesmo assessor, pode en­viá-lo a um segundo "e até a um ter­ceiro, para uma arbitragem final, quando os dois primeiros pareceres são diferentes e opostos': diz Paula Monteiro, coordenadora-adjunta da área de Ciências Humanas.

Dentre as áreas que necessitam de um maior número de assessores estão a de engenharia e de saúde, segmen­tos com maior número de pedidos. Em todas, existem solicitantes que ten­tam saber quem é assessor de seu pro­jeto. "Eles tentam adivinhar, mas, nor­malmente, erram", afirma Coutinho. Por isso, é importante ter uma maior diversidade de assessores ajudando a garantir o sigilo e a isenção que cerca a aprovação dos projetas. •

PESQUISA FAPESP • MAIO OE 2000 17

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATÉGIAS

concentram em áreas como ensino em escola pública e enfermagem, onde os salários não são altos. Elas representam apenas 28o/o dos oito milhões de empregos em profissões consideradas bem pagas, com renda anual superior a US$ 40 mil, de acordo com Ruzena Bajcsy,

Presidente da SPBC e ministro: cumprimentos efusivos

da Fundação Nacional de Ciências (National Science Foundation). A proporção de mulheres parece ter estabilizado nas diversas áreas profissionais, com exceção do direito

Fundos setoriais em debate

A comunidade científica paulista recebeu bem a visita do Ministro da Ciência e Tecnologia (MCT), Ronaldo Sardenberg, à FAPESP, no dia 16 de maio. Ele esclareceu uma série de pontos dos projetos dos fundos setoriais para pesquisa, encaminhados ao Congresso Nacional pelo governo federal. Na platéia do auditório da Fundação estavam a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Glaci Zancan, diretores de 28 sociedades científicas ligadas à SBPC e diversos representantes de institutos de pesquisa e universidades. Mesmo os mais críticos ao encaminhamento da política científica e tecnológica do governo elogiaram a atitude do ministro em dialogar com os pesquisadores. Sardenberg falou da necessidade e da importância dos fundos como uma das soluções

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para suprir os recursos para pesquisa do MCT, além de expandir a interação entre a comunidade acadêmica e o setor produtivo (veja entrevista do ministro na edição 52 de PESQUISA FAPESP). Os fundos previstos são de informática, telecomunicações, energia, recursos hídricos, mineral, transporte e espacial. Estão em estudo os fundos de saúde, agronegócios e aeronáutica. O ministro também esclareceu que a perspectiva dos fundos incorpora o conjunto da ciência, tanto em aplicações tecnológicas como básicas. Agora é esperar a aprovação dos primeiros fundos, que devem agrupar um total de R$ 1,2 bilhão no próximo ano.

Homens, mulheres e o trabalho

As mulheres ocupam mais da metade dos 21 milhões de empregos profissionais nos Estados Unidos. Mas ganham relativamente menos que os homens, já que suas atividades se

e da medicina. O percentual de mulheres nas atividades ligadas à matemática e ciências da computação, profissões com prestígio e salários em alta, caíu nos anos 90. Essas áreas, além de serem disputadíssimas pelos homens, se caracterizam por uma jornada extensa de trabalho, o que conflita com as responsabilidade familiares tipicamente femininas, de acordo com a pesquisa. Nas áreas acadêmicas ( college and university faculties), a participação das mulheres

estabilizou no final dos anos 90. Mas elas estão sub-representadas em algumas especialidades médicas bem pagas, como cardiologia e cirurgia ortopédica, por exemplo. Tendem a trabalhar menos horas que os homens e a ocupar posições financeiramente menos gratificantes. Virgínia Valian, psicóloga do Hunter College, atribui essa relativa desvantagem das mulheres no mercado à percepção de que os homens são mais adequados para trabalhos importantes. Desde a infância, ela analisa, homens e mulheres desenvolvem "esquemas de gênero" (gender schemas), um conjunto de expectativas subconscientes do papel dos sexos que incluem desde as funções de cada um dentro de casa até a competência profissional. Esse "esquema", transposto ao mercado de trabalho, coloca as mulheres em desvan­tagem, até mesmo quando seu desempenho e credenciais são iguais às dos homens.

Ciência e tecnologia ganham ministério

O primeiro-ministro reeleito da Espanha, José Maria Azna anunciou a criação de um novo Ministério da Ciência e Tecnologia para responder à necessidade de pesquisa, inovação e à 'revolução tecnológica', informa a Nature. O novo ministério será responsável pela política de pesquisa básica e aplicada, tecnologia da informação e telecomunicações. Compreenderá também aquelas atividades de pesquisa que estavam espalhadas pelos outros ministérios, além de incorporar o Conselho Superior de Pesquisa Científica do país. A política do ministério em relação à pesquisa básica e aplicada seguirá as 'linhas de ação' estratégicas definidas no Plano Nacional de Pesquisa 2000-04. O governo pretende utilizar esse plano para identificar as áreas de pesquisa em que a Espanha pode ser mais competitiva. A nova ministra será Ana Birulés, economista e, desde 1997,

diretora geral da gigante de telecomunicações Retevisión. Ela era anteriormente vice-presidente do Departamento de Indústria do governo regional da Catalunha. O Ministério da Educação e Cultura, que era responsável, até então, por ciência e educação superior, será liderado por Pilar dei Castillo, presidente do Centro de Investigação Sociológica, do governo, desde 1996.0 governo acredita que a situação

social e econômica da Espanha faz deste o momento certo para tentar elevar o apoio à pesquisa ao nível dos países mais desenvolvidos. Atingir esse objetivo vai exigir estreita colaboração com o setor privado - uma das primeiras tarefas do ministério será criar um fundo de pesquisa biomédica em conjunto com a indústria farmacêutica.

A Aids e a segurança nacional

O governo Clinton declarou a Aids uma ameaça potencial à segurança nacional e vai destinar US$ 245 milhões, no ano fiscal de 2001, para combater a doença em outros países. O Conselho de Segurança Nacional, que normalmente trata de ameaças de guerra e terrorismo, terá a responsabilidade de traçar uma estratégia internacional para a Aids, diz a Nature. A decisão se pauta num relatório divulgado no ano passado, que concluiu que a doença poderia causar instabilidade política na África, Ásia e nos países da antiga União Soviética.

Ásia, África e a globalização

A Associação Latino Americana de Estudos de Ásia e África ( ALADAA) promove o seu X Congresso, entre os dias 26 e 29 de outubro, na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, em torno do tema Cultura, Poder e Tecnologia: África e Ásia face à Globalização. Estarão em pautas questões como Estado, democracia,

pluripartidarismo e conflitos atuais; mudanças tecnológicas, trabalho e sindicato, cooperação internacional entre os três continentes, história africana e asiática, além de arte, literatura, cultura e religião. Os interessados devem procurar a secretaria do Congresso: Universidade Cândido Mendes- Centro de Estudos Afro-Asiáticos­Telefone (OXX21) 516-7157 ou (OXX21) 518-3129 e-mail: [email protected] site ALADAA: http:/www. colmex.mx/centros/ ceaa/aladaa/default.htm

Congresso debate a Bioética

As pesquisas de novas drogas e tecnologias, os cuidados com a saúde, as condições de atenção à saúde das comunidades e a repercussão ambiental do desenvolvimento humano serão temas de debate do III Congresso Brasileiro de Bioética e o I Congresso de Bioética

do Conesul, ambos promovidos Sociedade Brasileira de Bioética, e que se realizará em julho, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). O encontro reunirá profissionais de Saúde, Ciências Humanas, Direito e de outras áreas de conhecimento. Estão programados, ainda, cursos pré-congresso, com vagas limitadas e que exigem inscrição antecipada, e encontros informais com especialistas em Bioética. Os interessados devem procurar a Secretaria Executiva do Congresso. Fone/fax (OXX51) 311 7350 ou pelo e-mail Imgrings@pro. via- rs.com. br

Prêmio para cientistas

Em comemoração aos 100 anos da Fio cruz, que aconteceu em 25 de maio, foi lançado no Rio de Janeiro, no dia 16 de março, o Prêmio Fundação Oswaldo Cruz - Grupo EMS Sigma Pharma de Ciência e Tecnologia em Saúde. Dividido em sete categorias, o prêmio será concedido a pesquisadores e médicos com trabalhos científicos relevantes nas áreas de produtos naturais, biologia molecular, vetores de doenças endêmicas, doenças parasitárias e infecciosas, hipertensão, transplantes de órgãos sólidos e saúde pública. Os interessados poderão ter acesso ao regulamento e edital através do site www.fiocruz.br/vppqe, ou pelo e-mail [email protected]. O prazo de inscrição vai até 14 de julho.

PESQUI SA FAPESP · MAIO DE 2000 • 19

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Plumas de material mais quente originam-se provavelmente na camada 0", no limite entre o manto inferior e o núcleo externo. Migram pelo manto e nem sempre chegam à crosta.

As plumas causam extenso vulcanisno quando atingem a superfície.

As correntes de convecção podem afastar duas placas e gerar plumas, que assim chegam à superfície.

MANTO INFERIOR

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Em conseqüência da proximidade com o núcleo externo e do aumento de temperatura de cerca de 1.000 graus, a camada O" apresenta uma composição heterogênea, diferente das rochas do manto.

À medida que mergulha, a placa ganha calor, perde consistência e se confunde com o manto.

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O núcleo externo tem movimento turbulento, com velocidades de centímetros por minuto.

O manto, por se deformar muito lentamente, apresenta velocidades de convecção de apenas alguns centímetros por ano.

As placas podem encontrar resistência do manto inferior e movimentar-se quase horizontalmente.

wana, ao se fracionar, deu origem às atuais África, América do Sul e Antártica (ver ilustração acima).

O ponto dé partida de Wegener para esta­belecer a teoria das placas tectônicas foi a semelhança entre as costas do Brasil e da África Ocidental, que ele viu como peças que se encaixam num enorme

quebra-cabeça. Wegener pensou que os continentes se deslocavam à deriva, flutuando como enormes balsas rochosas sobre uma camada de rochas fundidas, que seria o manto. Comprovou-se a idéia de deslocamen­to dos continentes, mesmo o manto sendo sólido e não fundido (as rochas do manto apenas se compor­tam de maneira pastosa, quando vistas numa escala de milhões de anos). Desde essa época, pesquisadores de todo o mundo mapeiam as trajetórias das diversas placas, mas somente nas últimas décadas é que as cor-

22 • HAlO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

rentes de convecção no interior da Terra, ligadas dire­tamente à movimentação das placas, começaram a ser detectadas, por meio da tomografia sísmica, técnica que mapeia as estruturas do interior do planeta atra­vessadas pelas ondas geradas em terremotos.

A equipe da USP investigou uma área que forma um retângulo de 1. 700 quilômetros de comprimento por 1.000 quilômetros de largura, mergulhando a 1.400 quilômetros de profundidade, na Bacia do Para­ná e arredores (ver mapa da pág. 24). A primeira fase do trabalho, restrita a um retângulo de 800 quilôme­tros por 400 quilômetros, terminou em 1995. Foi bem-sucedida a ponto de justificar a etapa atual, que começou em julho de 1997 e deve estar concluída em julho próximo.

Nesse projeto, Estrutura da Crosta e Manto Supe­rior no Sudeste do Brasil, com um financiamento de R$ 173,4 mil da FAPESP, Assumpção conduziu os le-

Escudo do /

PLACA SUL-AMERICANA

Cráton do Congo

Brasil Central ~

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embora não tão intensa quanto Tristão da Cunha

vantamentos de campo e a interpretação de dados com a participação do geofísico alemão Martin Schimmel, que faz pós-doutoramento na USP. No Brasil, os dados coletados durante o projeto têm sido utilizados tam­bém em outras pesquisas pela Universidade de Brasília, pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) e pelo Observatório Nacional do Rio de Janeiro.

No início, os pesquisadores da USP e de Carnegie, mais diretamente envolvidos com esse trabalho, utili­zaram como fontes de dados as ondas de choque libe­radas por terremotos, as ondas P (longitudinais, que chegam primeiro à superfície) e S (transversais), das diferentes regiões do planeta. Publicada na revista Na­ture de 4 de novembro de 1995, essa pesquisa prelimi­nar revelou, entre os municípios de São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e Franca, no interior de São Pau­lo, a existência de uma estrutura interpretada como um antigo conduto vulcânico no manto, causado por

uma pluma. Deduzidas a partir de estudos em com­putador e em escala reduzida de laboratório, as plu­mas são colunas de rocha quente que se originam a grandes profundidades no manto, sobem à superfície e causam extenso vulcanismo. Nos últimos anos, as plumas estão sendo finalmente detectadas, como a que dá origem à Ilha da Islândia no Atlântico Norte. Segundo Assumpção, esse material vindo do interior da Terra pode perfurar a crosta, como enormes projé­teis, e teve um papel importante no processo de rup­tura do supercontinente Gondwana.

O pedaço de pluma fóssil- não mais ativa, portan­to- do interior paulista situa-se entre 200 e 700 qui­lômetros de profundidade e tem a largura aproximada de 300 quilômetros. A temperatura dessa estrutura, de acordo com os dados obtidos, está em torno de 1.700 graus Celsius, pelo menos 200 graus Celsius acima da região a seu redor. Segundo Assumpção, essa estrutu-

PESQUISA FAPESP · MAIO OE 1000 • 23

ra já esteve no meio do oceano Atlântico, associada ao arquipélago de Tristão da Cunha, território do Reino Unido, de origem vulcânica, no meio do Atlântico Sul.

Em seguida, a ruptura do Gondwana, que origi­nou os atuais territórios da África e América do Sul, fez nascer o Oceano Atlântico, há 130 milhões de anos. Evidentemente, as placas tectônicas ainda não se aquietaram. Ainda hoje, no assoalho marinho, onde a crosta é menos espessa, o deslocamento das placas produz fraturas por onde brota material quente do manto. Esse é o mecanismo responsável pela Cordi­lheira Mesa-Oceânica ou Dorsal Atlântica, de que o arquipélago Tristão da Cunha é parte. Trata-se de uma área em que as plumas ainda se encontram ativas - o chamado hot spot ou ponto quente.

Os dados obtidos na Bacia do Paraná indicam que um pedaço da pluma, a coluna de material quente do manto, desviou-se para oeste e, desse modo, acompa­nhou o movimento da Placa Sul-Americana, estando hoje inativa e, portanto, fóssil. Na avaliação dos pes-

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quisadores, apenas essa descoberta já traz uma impor­tante contribuição ao estudo da dinâmica de placas. O Brasil localiza-se bem no centro da Placa Sul-Ame­ricana, que se afasta para oeste à velocidade de 1,5 centímetro ao ano. Como a própria Placa Africana desloca-se para o leste à mesma velocidade, os dois continentes se distanciam entre si à velocidade total de três centímetros ao ano.

Seguindo para oeste, em conseqüência da mo­vimentação do manto, a pluma do interior paulista manteve-se sob a Bacia do Paraná até hoje. Pouco antes da ruptura do Gond­wana, havia sido responsável por extensos

derrames de rocha vulcânica (os basaltos), que cobri­ram a superfície por mais de mil quilômetros, a par­tir do ponto de origem. Desse modo, os pesquisado­res explicam uma característica geológica da Bacia do Paraná, os derrames de basalto. O basalto, rocha vul­cânica de cor escura, ao se transformar em solo ao

longo de milhões de anos, deu origem aos solos ver­melhos e férteis do Paraná e parte do interior paulis­ta, que ajudam a manter uma das mais produtivas agriculturas do país.

No estudo mais recente, Assumpção e Schimmel delimitaram melhor a coluna de material quente, o pedaço de pluma fóssil, por meio de 38 estações sis­mográficas distribuídas ao longo da área de estudo, que se estende de Brasília até parte do Paraná. Tive­ram, para isso, de viajar cerca de 20 mil quilômetros nos três anos que a pesquisa já toma. A cada dois meses, os pesquisadores ou os técnicos viajavam até as estações para coletar os dados que eram armaze­nados pelos sismógrafos computadorizados. Instala­dos em pequenos abrigos normalmente dentro de fazendas, os sensores registravam as vibrações do solo detectando diariamente terremotos ocorridos no mundo todo. De vez em quando, gravavam tam­bém os pequenos tremores, de baixa intensidade, verificados no Brasil.

A velocidade com que as ondas de choque de sis­mos chegam às estações depende da temperatura e das rochas que atravessam. Assim, os pesquisadores traçaram um perfil da litosfera (a crosta mais uma pequena parte rígida do manto superior) e do man­to até uma profundidade de 1.400 quilômetros. Ima­gens feitas em computador permitiram também a visualização da pluma, contida no manto (acima).

Uma das conseqüências da dinâmica de placas é a formação de montanhas, como acontece no oeste da América do Sul, onde ficam os Andes. Essa cadeia montanhosa, que segue do Chile à Colômbia, origina­se do choque da Placa Sul-Americana com outra pla­ca tectônica, a Placa de Nazca, localizada sob o Ocea­no Pacífico. O choque faz com que a placa mais pesada (Nazca) mergulhe sob a placa mais leve (Amé­rica do Sul), que navega em direção oposta. O choque das placas amassa e torna mais espessa a borda da pla­ca mais leve. No caso das placas Sul-Americana e de Nazca, o espessamento da borda ocidental da Placa

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Sul-Americana resultou na estrutura dos Andes, um pro­cesso ainda ativo, e res­ponsável pelos freqüentes terremotos e vulcões dos paí­ses andinos como o Equador e a Colômbia.

O avanço técnico dos de­tectores, ao longo dos anos 90, permitiu o salto qualita­tivo na coleta de dados e o refinamento do modelo de placas tectônicas proposto por Wegener. Com investiga­ções cada vez mais profun­das no manto, foi possível saber, por exemplo, que nos processos de subducção -como é chamado o mergu­lho de uma placa sob a outra - a destruição da placa em mergulho só acontece a grandes profundidades, às vezes a mais de 1.000 ou 2.000 quilômetros.

" á está superado o modelo anterior, que supunha a placa em mergulho se dissolvendo a profundidades de apenas 700 quilômetros': comenta Schirnmel.

"Em vez disso, ao mergulhar, mantém-se intacta, sem se dissolver:' Embora constituída pelo mesmo material do manto, a placa é mais fria, mais rígida e mais pesa­da - portanto, afunda mais facilmente. Os novos re­cursos tecnológicos permitiram saber também que uma placa pode mudar sua inclinação e, de um mer­gulho quase vertical, passar a um movimento hori­zontal. "O que se sabe hoje, com segurança, é que os sismos profundos, que ocorrem até 700 quilômetros abaixo da Placa Sul-Americana, estão ligados ao mer­gulho da Placa de Nazca", diz Assumpção. "É provável também que a placa continue mergulhando a maiores profundidades." A tomografia indicou um bloco de rochas mais frias a aproximadamente 1.300 quilôme­tros abaixo da região Sudeste do Brasil, numa faixa que se estende de Brasília a Curitiba, que parece ser um pedaço da Placa de Nazca.

A descoberta da pluma sob a Bacia do Paraná surpreendeu. Os pesquisadores pretendiam estudar a região para uma comparação com outras áreas consideradas geologicamente muito antigas, como algumas regiões do Canadá. O interesse era descobrir como a litosfera terrestre foi formada nessas áreas co­nhecidas como crátons, um termo que define as pro-

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víncias geológicas que sofreram pouca ou nenhuma deformação desde o pré-Cambriano, há pelo menos 600 milhões de anos.

Outro objetivo do trabalho era determinar a es­pessura da crosta e da placa litosférica no Sudeste, até então desconhecida, e investigar a possibilidade de que elas pudessem conter blocos tão antigos quanto o do cráton São Francisco, na bacia do Rio São Francisco, em Minas Gerais. O cráton São Fran­cisco, com aproximadamente 3 bilhões de anos, é uma das estruturas mais antigas do planeta. Agora, o trabalho da USP definiu a espessura do cráton, que se estende da superfície a até cerca de 300 quilôme­tros de profundidade. Revelou também a existência da pluma fóssil evidenciando o arraste da crosta pelo manto superior.

Para Assumpção, ainda é cedo para avaliar se a descoberta da pluma fóssil pode auxiliar em traba­lhos como a previsão de sismos, especialmente na borda de atrito das placas. A contribuição imediata, a seu ver, é mostrar que o manto superior se desloca com a crosta e assim conhecer os esforços a que está submetida uma placa, mesmo em sua porção interior. Nessas áreas também podem ocorrer sismos fre­qüentes. "Uma razão para os sismos pode ser a con­centração de tensões devido a variações de espessura

da litosfera", explica. É o que pode estar acontecendo em uma faixa com tremores de terra constantes que corta o Estado de Goiás no sentido sudoeste-nordes­te. A região apresenta um comportamento seme­lhante ao da região central dos Estados Unidos, onde está satisfatoriamente estabelecida a relação entre sismos e menor espessura da litosfera.

O s pesquisadores da USP acreditam que a descoberta da estrutura das plumas, as­sociada à compreensão das grandes pro­fundidades de mergulho das placas, pos­sa levar a um interesse maior na

investigação da reg~ao de cantata entre a base do manto e o núcleo líquido da Terra (a esfera líquida do centro da Terra tem, em seu interior, um núcleo sóli­do). Essa região limítrofe é a camada D" (lê-se D duas linhas), situada a aproximadamente 2.700 quilôme­tros da superfície. É uma área de reações físicas e quí­micas bastante complexas entre o núcleo líquido e o manto pastoso, cuja forma lembra os dentes irregula­res de uma serra de disco.

Os geofísicos estimam que nessa região esteja loca­lizado o mecanismo básico das correntes de convec­ção, o mesmo tipo de força que faz a água fervendo circular de baixo para cima em uma panela. "Tudo

que desce tem que subir", argumenta Schimmel para estabelecer a relação entre o mergulho de placas for­mado por material frio e as correntes ascendentes de material a elevadas temperaturas. Segundo a teoria em vigor, o calor do núcleo da Terra resulta da enor­me energia gr-avitacional que deu origem ao planeta há 4,6 bilhões de anos, com a importante contribui­ção adicional da radioatividade natural. Quando a Terra se formou, o calor era tanto que derreteu tudo. O ferro, mais pesado, foi para o centro, onde está até hoje. Pode ser que, nos próximos anos, também essas idéias consagradas sejam revistas, a partir do que ago­ra se sabe a respeito da movimentação das placas tec­tônicas e da convecção no manto. •

PERFIL:

• MARCELO SOUSA DE ASSUMPÇÃO tem 49 anos. Fez a graduação em Física pelo Instituto de Física da Uni­versidade de São Paulo (USP) e o doutorado em Geo­física na Universidade de Edinburg, na Escócia. É professor do Instituto Astronômico e Geofísico des­de 1974. Projeto: Estrutura da Crosta e Manto Superior no Su­deste do Brasil Investimento: R$ 173.478,14

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CIÊNCIA

AMBIENTE '

Uma ameaça à qualidade da água Biólogas encontram 20 espécies de algas que contaminam represas

Quando, no verão de 1996, mais de 40 pacientes de uma clínica

de hemodiálise morreram em Carua­ru, no Estado de Pernambuco, levou­se algum tempo para se descobrir a causa do problema. A água que abas­tecia a clínica, soube-se depois de mui­tos testes, continha toxinas produzidas pelas cianofíceas. Esses organismos são também conhecidos como ciano­bactérias ou algas azuis, um grupo de seres vivos muito antigo, que está na Terra há pelo menos 2,5 bilhões de anos e é considerado um elo de liga­ção entre as bactérias verdadeiras e as algas, com características de ambos.

Em condições normais, as ciano­bactérias e os demais organismos aquáticos convivem de modo equili­brado em lagos e reservatórios. Não há dominância de uma determinada espécie em detrimento de outra. Mas, quando há algum tipo de interferên­cia, que enriquece a água com nitro­gênio e fósforo, a chamada eutrofiza­ção, algumas espécies passam a ser dominantes: multiplicam-se de forma excessiva e dão origem ao fenômeno chamado floração, ou bloom. Essas fio­rações formam uma densa massa na superfície da água, que altera o equi­líbrio ecológico e cria problemas.

Algumas espécies de cianobacté­rias produzem toxinas e as suas flora­ções podem causar mortandade de pei­xes e de outros animais ou até mesmo de seres humanos, como ocorreu em Caruaru. As cianobactérias ocorrem nos mais diversos tipos de ambientes

Lagoa com cianobactérias na zona sul de São Paulo: acúmulo de esgotos

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aquáticos e terrestres. Em lagos e re­presas, as espécies planctônicas, isto é, aquelas que vivem soltas na massa d'água, são as que freqüentemente causam florações.

A eutrofização é um fenômeno ca­da vez mais freqüente. Pode ser con­seqüência de despejos de esgotos, do­méstico ou industrial, de adubação das lavouras, de piscicultura e da cria­ção de animais como bois e porcos nas proximidades da água. Um passo muito importante para a compreen­são desse problema foi dado pelo

de São Paulo, aparece também na re­presa Billings. Ocorre em conjunto com espécies do gênero Microcystis, formando fi orações. Os testes para de­terminar se a alga é tóxica ou não ainda estão em andamento.

Outra espécie nova é a Coelos­phaerium evidenter-marginatum, en­contrada num lago eutrófico no Par­que Estadual das Fontes do Ipiranga, zona sul da cidade de São Paulo. Um trabalho sobre essa espécie, que não é tóxica, já foi publicado na revista ale­mã Algological Studies. A terceira es-

No Brasil, há poucos especialistas nes­sa área específica. Normalmente, di­zem as pesquisadoras, os laborató­rios que fazem testes de toxicidade não têm especialistas para identificar as cianobactérias. Vem daí o interesse em desenvolver trabalhos em con­junto para, no futuro, ter um banco de dados com informações precisas sobre as espécies brasileiras.

Patrim ônio genético- A bióloga Ma­ria Teresa de Paiva Azevedo, que tra­balhou com Célia no projeto, é a res-

r-----------------. o ponsável pelo Banco de ~ Cultura de Cianobacté-~ rias, criado no Laborató­~ rio de Cultura de Algas ~ do Instituto de Botânica. ~ < "' < ~

Nesse banco, são manti­das culturas isoladas de

~ material recolhido da na-" 'Z tureza. "Podemos garantir :1 § que em cada tubo de en-~ saio depositado no Ban­~ co de Cultura existe ape­s ~ <

nas uma única espécie, com o mesmo patrimô­nio genético", diz ela.

A Sphaerocavum, comum em reservatórios, e . .. . .. uma Coelosphaerium, não-tóxica: espécies novas A área do Estado de

São Paulo foi o foco

projeto Cyanophyceae!Cyanobacteria Planctônicas do Estado de São Paulo, realizado entre 1997 e 1999, que contou com um financiamento da FAPESP de R$ 32,9 mil, mais US$ 47,9 mil. Coordenado pela bióloga Célia Leite Sant' Anna, pesquisadora do Instituto de Botânica da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, o projeto identificou 20 espécies po­tencialmente tóxicas de cianobacté­rias encontradas no Brasil, sendo 13 no Estado de São Paulo. O projeto descobriu ainda três espécies novas para a ciência, uma delas colocada num gênero novo.

A equipe do Instituto de Botânica deu o nome de Sphaerocavum, que significa "esfera oca", ao novo gênero que descobriu. O nome sugerido para a espécie é Sphaerocavum brasiliensis, encontrada em lagos urbanos eutró­ficos na cidade de São Paulo e em Montevidéu, no Uruguai. No Estado

pécie nova descrita é a Microcystis panniformis, encontrada em várias represas do Estado, como a Billings, Guarapiranga, Barra Bonita e Ameri­cana. Os testes sobre a toxicidade ain­da estão em andamento.

Identificação - O projeto tinha dois objetivos fundamentais. Um deles era conhecer a biodiversidade das ciano­bactérias planctônicas (as que flutuam na água) do Estado de São Paulo. O outro era detalhar o desenvolvimento, a variabilidade morfológica e a distri­buição geográfica das espécies poten­cialmente tóxicas no Brasil. "Esses re­sultados poderão subsidiar, de forma mais prática e segura, os programas de monitoramento de florações de cianobactérias", afirma Célia.

Segundo ela, a taxonomia das cia­nobactérias é bastante complexa e exige observações das diferentes eta­pas do desenvolvimento das espécies.

principal deste projeto, mas as biólogas examinaram tam­bém amostras de cianobactérias po­tencialmente tóxicas provenientes de outros Estados. Normalmente, essas amostras são enviadas por técnicos das companhias de saneamento. Trata-se de um intercâmbio habitual, especi­almente quando há dúvidas com re­lação à identificação das algas.

O intercâmbio mais freqüente das pesquisadoras do Instituto de Botâ­nica, porém, é com técnicos da Ce­tesb e da Sabesp, os órgãos do gover­no paulista ligados à preservação do meio ambiente e ao abastecimento público, respectivamente. "Nosso in­tercâmbio funciona há mais de dez anos", diz a bióloga Marta Condé Lamparelli, gerente da divisão de análises hidrobiológicas da Cetesb.

Manual ilustrado - As pesquisadoras pretendem preparar um manual ilus­trado, descrevendo as espécies de cia-

PESQUISA FAPESP · MAIO DE lOOO • 29

Espalhadas pelo Brasil O caso de Caruaru é o mais

sério verificado até agora com relação aos efeitos das algas tóxi­cas. Mas não é o único. Em 1990, uma floração da cianobactéria Anabaena solitaria, na represa de Guarapiranga, que abastece um terço da cidade de São Paulo, provocou forte cheiro de inseti­cida na água que chegava às ca­sas. Imediatamente, registrou-se um aumento nos casos de der­matites, diarréias e vômitos, es­pecialmente em crianças.

Na Lagoa da Barra, no Rio de Janeiro, uma floração de Synecho­cystis aquatilis f. salina causou mortandade de peixes. Prolifera­ções de Microcystis aeruginosa em um lago na cidade paulista de Araras mataram pombos e, num lago do Jardim Zoológico de São Paulo, foram responsá­veis pela morte de vários patos.

Técnicos da Cetesb informam que o controle da água destina­da ao abastecimento é feito colo­cando-se algicidas, como sulfato de cobre ou peróxido de hidra­gênio, nas represas. Nem sempre resolve, pois a morte das algas acaba por liberar suas toxinas na água. "A solução ideal é evitar que o corpo d'água seja eutrofizado': dizem as biólogas Marta Condé Lamparelli e Maria do Carmo Carvalho, dessa empresa. Ou seja, impedir que os mananciais se­jam contaminados por esgotos ou outras fontes de poluição.

Atualmente, grupos interna­cionais de pesquisadores priori­zam o estudo de uma espécie extremamente agressiva e com­petitiva, a Cylindrospermopsis raciborkii, que se alastrou rapi­damente em represas e lagos brasileiros.

Uma das espécies tóxicas mais comuns no Brasil é Anabaena spi­roides. Geralmente, forma flora-

30 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

ções em corpos d'água eutrofiza­dos. Outras espécies do mesmo gê­nero, A. solitaria e A. planctonica, também estão entre as mais co­nhecidas algas produtoras de toxi­nas. Contudo, não são as mais bem distribuídas no Brasil. A honra ca­be à Microcystis aeruginosa, espé­cie bastante competitiva e encon­trada com facilidade em nossas

Célia e Maria Teresa: perigo crescente

represas, cuja toxina causa amor­te de peixes e animais de criação, como gado bovino e patos.

A explicação para a presença cada vez maior das algas tóxicas está na eutrofização. "Temos ob­servado que a distribuição das espécies potencialmente tóxicas está aumentando rapidamente à medida que aumenta o número de represas eutrofizadas no Esta­do': afirma Célia.

nobactérias potencialmente tóxicas. Esse manual poderá ser utilizado por técnicos da Sabesp, da Cetesb e das empresas de saneamento de outros Estados. Além disso, os resultados da pesquisa, sobre mais de 80 espécies de cianobactérias planctônicas, serão repassados ao Biota-FAPESP, o progra­ma que mapeia a fauna e a flora do Estado de São Paulo.

O próximo passo das pesquisa­doras é definir as linhagens tóxicas no Banco de Cultura de Cianobacté­rias. Para isso, já começaram a mon­

tar um laboratório no Instituto de Botâni­ca. No isolamento e identificação das toxi­nas, contarão com a colaboração de outra pesquisadora do Ins­tituto, Luciana Retz de Carvalho, doutora em Fitoquímica pelo Ins­tituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). •

PERFIS:

• CÉLIA LEITE SANT' ANNA

formou-se em Ciên­cias Biológicas pelo Instituto de Biociên­cias da Universidade de São Paulo (USP), onde também fez mes­trado e doutorado. Pes­quisadora do Instituto de Botânica desde 1976, assumiu este ano a di­reção da Divisão de Fi-

totaxonomia do Instituto. • MARIA TERESA DE PAIVA A ZEVE ­

DO formou-se em Biologia nas Faculdades Brás Cubas, em Mogi das Cruzes, e fez o doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Desde 1986 é pesquisadora do Instituto de Botânica. Projeto: Cyanophyceae/Cyanobac­teria Planctônicas do Estado de São Paulo Investimento: R$ 32.911,00, mais US$ 47.907

mesmo tempo, ser reconhecido. Con­ta, para isso, com mecanismos tão sutis que às vezes parece um convida­do. "O T. cruzi só sobrevive se encon­trar uma célula, penetrar e ficar lá': explica o médico Walter Colli, do Instituto de Química da USP, que es­tuda a relação entre o parasita e a célula hospedeira desde os anos 70. Segundo ele, descobrindo como o protozoário entra na célula e como sobrevive dentro dela, seria possível identificar as vias metabólicas que per­mitiriam o desenvolvimento de drogas inibidoras dos processos de reconhe­cimento, de adesão ou de invasão, de ambos os lados, e assim causar amor­te do Trypanosoma.

Cada vez mais perto -O laboratório de Bioquí­mica de Parasitas, co-di­rigido por Colli e pela bióloga Maria Júlia Man­so Alves, descobriu uma nova família de molé­culas chamadas GIPLs ou glicoinositolfosfolipí­deos. Existem na mem­brana do parasita em grandes quantidades e são similares às chama­das âncoras, que inse­rem proteínas nas membranas celulares. Conhecendo a composição da mem­brana do parasita, pode ficar mais fácil entender as reações químicas que ocorrem quando uma célula, o pro­tozoário, encontra outra, do corpo humano.

Júlia conta que está muito perto de desvendar os mecanismos de adesão e de penetração utilizados pelo para­sita, como resultado do projeto Trypa­nosoma cruzi: Interação Parasita-Hos­pedeiro, que contou com R$ 480 mil, concedidos pela FAPESP ao laborató­rio dos dois pesquisadores nos últi­mos quatro anos. Não é a primeira vez que esse laboratório da USP contri­bui no combate à doença de Chagas.

Nos anos 80, Júlia descobriu uma família de glicoproteínas que deno­minou Tc-85, também associada à en­trada do parasita na célula. Recente-

mente, identificou, em um dos mem­bros da família da Tc-85, um trecho específico que poderia ser bloqueado para inibir a adesão celular. Em outros termos, Júlia sabe agora que existe um receptor na célula hospedeira quere­conhece uma molécula do T. cruzi e deixa que o parasita se instale no or­ganismo. Ela espera em um ano fina­lizar o trabalho a que se dedica, o mapeamento fino da Tc-85.

Vacina de DNA - Aos poucos, as pe­ças do intrincado quebra-cabeÇ,a da doença de Chagas vão se encaixando. Na Unifesp, o grupo da bioquímica Nobuko Yoshida conseguiu avançar

na identificação e caracterização d.e moléculas envolvidas na sinalização celular na relação parasita-hospedei­ro. Uma delas, presente em formas específicas do T. cruzi encontradas no barbeiro, é a gp82, uma glicopro­teína (proteína que contém açúcar) que parece participar do processo de entrada do parasita na célula.

Esse é um dos resultados do pro­jeto Aspectos da Imunobiologia do Try­panosoma cruzi: Interação com Célu­las do Hospedeiro Mamífero e Indução da Resposta Imune, que começou no ano passado e segue até 2003, com um financiamento de R$ 350 mil, mais US$ 300 mil, da FAPESP.

O grupo de Nobuko conseguiu também demonstrar que a imuniza­ção com DNA é capaz de conferir re­sistência contra o T. cruzi e levar à

destruição do parasita. Além da pro­dução de anticorpos específicos, essa imunização estimula as células do sistema imune a produzir interferon­gama, uma substância que desempe­nha um papel importante no contro­le da infecção. A equipe espera que esses estudos ajudem a viabilizar uma vacina que melhore o prognós­tico da doença e evite que os doentes desenvolvam sua forma mais grave.

Mas o desenvolvimento de vaci­nas e de medicamentos não depende apenas dos achados científicos. Es­barra também, segundo os pesquisa­dores, no desinteresse da indústria farmacêutica em produzir e comer­

cializar medicamentos que seriam dirigidos basicamente para po­pulações muito pobres, de países subdesenvol­vidos. O raciocínio pre­dominante é que, em relação a outras doen­ças, como a malária e a dengue, a doença de Chagas não justifica al­tos investimentos com a produção de novos quimioterápicos.

Municípios infestados -Resta, portanto, o ca­minho mais prático: o

controle permanente dos barbeiros, considerado "a melhor vacina': "A ex­periência acumulada desde a década de 1950 demonstra que a transmis­são da doença de Chagas pode ser in­terrompida por meio do uso adequa­do de inseticidas, aliado à melhora habitacional e à educação", observa Liléia Diotaiuti, diretora do Labora­tório de Triatomíneos e Epidemiolo­gia da Doença de Chagas, do Instituto René Rachou, de Belo Horizonte (MG).

Mesmo assim, o controle do bar­beiro não pode ter data para acabar, alerta a pesquisadora. Segundo ela, esse trabalho deve considerar duas si­tuações epidemiológicas distintas. A primeira envolve espécies nativas de barbeiros, originárias de ambientes silvestres - caatinga, mata úmida e cerrado, por exemplo-, que apresen-

PESQUI SA FAPESP • MAIO DE 1000 • 33

CIÊNCIA

DOENÇA DE CHAGAS

Portas ainda abertas ao barbeiro

Espécies silvestres não são combatidas, mas transmitem o parasita

H á razões de sobra para se in­quietar em relação à doença

de Chagas, um mal ainda incurável, típico dos países subdesenvolvidos, que atinge de 4 a 5 milhões de pes­soas no Brasil e de 16 a 18 milhões em toda a América Latina. Já se avançou bastante, é verdade. Campanhas rea­lizadas desde os anos 80 pela Funda­ção Nacional de Saúde (Funasa) re­duziram em 90% a propagação da doença no Brasil, por meio do con­trole das populações de barbeiros, os insetos transmissores do proto­zoário causador da doença de Cha­gas, o Trypanosoma cruzi. Agora está prevista para 2001 a erradicação to­tal dos barbeiros domiciliados.

Não é o bastante. Avessos à eufo­ria que cresce à medida que se apro­xima o aparente fim da transmissão da doença de Chagas em alguns paí­ses, como no Uruguai, Chile, Argen­tina e no Brasil, os cientistas reconhe­cem o sucesso da campanha, a forma mais rápida e mais barata de contro­le epidemiológico. Mas alertam: o abandono progressivo do combate ao barbeiro deixa a porta aberta para a doença voltar e o inseto novamente infestar as casas. Outra razão para preocupação é que espécies silvestres do barbeiro, capazes de transmitir o parasita- e que não foram elimina­das pelos agentes da Funasa -, estão chegando mais próximas das casas.

Em fevereiro deste ano, num con­gresso na London School of Hygiene and Tropical Medicine, em Londres, os biólogos Bianca Zingales, do Insti­tuto de Química da Universidade de São Paulo (USP), e Marcelo Briones,

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da Universidade Federal de São Pau­lo (Unifesp ), comunicaram que de fato são duas, e não apenas uma, as linhagens de Trypanosoma cruzi que causam a doença. Uma linhagem - a mais agressiva- está associada a hu­manos, e a outra, a animais silvestres (ver box). Por um lado, essa conclu­são agrava a situação, ao indicar que há um inimigo que até agora tinha se

ocultado à sombra de outro. Por ou­tro, responde a uma pergunta que sempre havia intrigado os cientistas: como uma única espécie, o T cruzi, poderia provocar manifestações tão diferentes da doença?

Descrita em 1909 pelo médico sani­tarista mineiro Carlos Ribeiro Justinia­no Chagas (1879-1934), que nomeou o parasita em homenagem ao médico paulista Oswaldo Cruz (1872-1917), a doença de Chagas apresenta uma fa­se aguda, com febre alta, aumento do baço e até alterações cardíacas. Depois, dá uma trégua- de até 30 anos. Entre 60% e 70% dos infectados não apre-

sentam sintomas. De 20% a 30% dos doentes desenvolvem a forma cardía­ca, com risco de morte súbita; de 8% a 10% sofrem dilatação do esôfago ou intestino; e 3% apresentam complica­ções no sistema nervoso. A única droga atualmente disponível, o benzonida­zol, é extremamente tóxica e resolve somente as complicações na fase aguda da doença.

Para fechar o cerco do combate ao T cruzi não basta, portanto, eliminar o barbeiro. É preciso conhecer melhor o parasita e seus mecanismos de inte­ração com o organismo e, ainda, in­sistir no desenvolvimento de novas drogas. Não é fácil. Os próprios pes­quisadores reconhecem que o T cruzi é "um inimigo perigoso e inteligente': que consegue invadir as células do hospedeiro sem enfrentar resistência. Pior: é acolhido e protegido no inte­rior da célula, onde se multiplica.

Para penetrar nos tecidos do or­ganismo humano, o parasita precisa reconhecer a superfície da célula e, ao

Bianca: linhagens explicam os sintomas diferentes

Briones: comparações entre Colli: estudo do intrigante Júlia: descobrindo como o parasita entra na célula os ancestrais do tripanossoma comportamento do T. cruzi

tam grande capacidade de adaptação ao ambiente construído pelo ho­mem. Essas espécies, que já vivem em torno das casas, estão sempre tentan­do a colonização de novos espaços.

Desse modo, podem instalar novos focos de transmissão.

A segunda situação diz respeito às áreas infestadas pelo Triatoma infes­tans, uma das espécies de barbeiro

adaptadas às casas. O T. infestans ori­ginou-se provavelmente na região andina de Cochabamba, na Bolívia, de onde se dispersou para o Peru, Chile, Paraguai, Argentina, Uruguai e

Genes revelam nova linhagem

Bianca Zingales e Marcelo Brio­nes trabalharam intensamente, du­rante a década de 90, pesquisando as diferenças biológicas, bioquímicas e filogenéticas (relativas à história evolutiva das espécies) entre as ce­pas ou linhagens de Trypanosoma cruzi. Por fim, concluíram que a do­ença de Chagas poderia mesmo ter origens diferentes. Já havia uma sus­peita da existência de grupos dife­rentes de T. cruzi, mas foram eles que verificaram o que outros pes­quisadores haviam tentado antes.

Nos anos 80, o professor inglês Michael Miles, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, deu-lhes uma pista, ao analisar poucas cepas de T. cruzi e sugerir que pode­riam ser divididas em dois grupos. Em 1993, coube a um estudante de doutoramento, Ricardo Peres do Sou­to, então com 26 anos, pós-graduan­do do Instituto de Química da USP, orientado de Bianca, mudar a dire­ção dos fatos. Ao analisar 16 cepas por meio de PCR (reação em cadeia de polimerase), Souto obtinha ape-

34 • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

nas dois padrões de amplificação de uma região do gene do RNA ribos­sômico, um material considerado fi­dedigno para estudos filogenéticos.

"O seqüenciamento desses genes permite estabelecer a história das es­pécies': ensina Bianca. Era o passo que faltava. Ricardo Souto confirmava, assim, a hipótese de Miles, o primei­ro a sugerir a presença dos dois gru­pos. Em 1996, estudos realizados com a Fiocruz e a Universidade da Califór­nia, de Los Angeles, estabeleceram definitivamente a presença das duas linhagens ftlogenéticas, por meio da análise de uma amostra maior, de 90 cepas, isoladas de barbeiros, huma­nos e animais silvestres, originárias de cinco países da América do Sul.

Esses resultados provêm de dois projetas, o Genoma de Trypanosoma cruzi: Cariótipo Molecular, Mapea­mento de Genes e Disrupção Gênica e Linhagens Filogenéticas de Trypano­soma cruzi: Caracterização Epide­miológica, Evolutiva e Bioquímica, que contaram, respectivamente, com financiamentos de R$ 26,8 mil

e R$ 58 mil, da FAPESP. Desde mar­ço de 1998, Bianca e Briones- com a ajuda de dois especialistas da Fun­daç?.o Oswaldo Cruz (Fiocruz), José Rodrigues Coura e Octavio Fernan­des - analisaram desta vez cerca de 300 cepas provenientes de 12 Esta­dos brasileiros.

O que se observou é que uma li­nhagem está associada a humanos, e a outra, a animais silvestres. Cada uma delas está associada, respectiva­mente, aos dois ciclos da doença, um doméstico e outro silvestre. A liga­ção entre os dois se dá quando bar­beiros silvestres se domiciliam e trazem o parasita para dentro das casas.

"Nos pacientes de zonas endê­micas havia uma elevada predomi­nância de uma linhagem, a T. cruzi 2, com uma alta incidência de doen­ça cardíaca", relata Bianca. "Por ou­tro lado, pacientes da Amazônia, que não é uma região endêmica, tinham T. cruzi de uma linhagem mais branda, a T. cruzi 1." A análise de ce­pas de países como Colômbia, Vene­zuela, Bolívia e México confirmou a

Brasil. Fora de seu ambiente natural, vive exclusivamente em casas e man­tém uma relação muito próxima com o homem e os animais domésticos.

Sua equipe acompanha também a ocorrência de outras espécies de bar­beiro pelo país. "Sabemos hoje que existe transmissão humana da doen­ça de Chagas no sertão do Ceará, por meio do Triatoma brasiliensis': diz Liléia. "Verificamos também a infesta­ção pelo Triatoma pseudomaculata na periferia da cidade de Sobral, a se­gunda maior cidade do Ceará."

Os especialistas re­comendam: o controle do transmissor deve ser feito inclusive em áreas onde há casos re­centes, como na Ama­zônia. Aos 70 anos, 42 dos quais dedicados à

associação das duas li­nhagens.

O quadro se tornou ainda mais claro no ano

epidemiologia da doença de Chagas, o médico José Rodrigues Coura, di­retor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, conta que na região Norte, em conseqüência do desmatamento, barbeiros do tipo sil­vestre estão migrando para as casas e colocam em risco a saúde de seus moradores.

Para dimensionar o risco de adap­tação dos barbeiros ao domicílio, Cou­ra construiu casinhas de madeira co­bertas de palha no Médio e Alto Rio Negro. Deixava as casas desabitadas,

voltava um tempo depois e encontrava barbeiros silvestres. Seu trabalho mos­trou que o foco potencial é a comuni­dade de piaçaveiros, fabricantes de cor­das com fibras vegetais, já atacados pelo barbeiro silvestre. E, lembre-se, apenas um inseto pode criar uma colônia nu­ma casa, já que cada fêmea pode pôr em torno de 400 ovos ao longo da vida.

Coura não se tranqüiliza. "Se não forem erradicados os focos remanes­centes, nos Estados da Bahia, Tocan­tins, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul, onde ain­

da existem mais de 100 mu­nicípios infestados pelo bar­beiro, a doença pode voltar, como aconteceu com a den­gue e com a malária': diz. Em outras palavras, pode-se perder o que já se fez nas áreas controladas. •

passado, por meio de um Os transmissores: estudo na Mata Atlântica associa os tatus e os ...

tral comum entre 88 milhões e 40 milhões de anos atrás. Segundo ele, um ancestral de T cruzi teria se espalhado amplamente há 250 milhões de anos, quan­do todos os continen­tes estavam ligados.

estudo realizado na Mata Atlântica: todas as 26 amostras de T cruzi cole­tadas de tatus e micos-le­ões-dourados infectados eram de uma mesma li­nhagem, a mesma en­contrada em cepas hu­manas, enquanto 85% dos gambás estavam in­fectados com a linhagem relacionada ao ciclo sil­vestre. Já os barbeiros, com cepas de T cruzi das duas linhagens. ... micos-leões-dourados à linhgem de T. cruzi que infecta as pessoas

Quando as Améri­cas se separaram, entre 170 e 100 milhões de anos atrás, as duas li­nhagens de T cruzi também se distancia­ram: uma, a T cruzi 1, permaneceu na Améri­ca do Sul, infectando predominantemente marsupiais, e outra, na América do Norte, O resultado era claro:

havia uma associação preferencial da linhagem T cruzi 1 com uma de­terminada classe de mamíferos, os gambás (marsupiais muito primiti­vos), enquanto a outra, a T cruzi 2, estava associada com primatas, ma­míferos placentários- e ambas esta­vam presentes no ciclo silvestre. Mais: as duas linhagens apresenta­vam características epidemiológicas

diferentes. Uma associada à doença e muito mais virulenta. A outra, causando a forma indeterminada da doença.

Foi ainda mais fascinante o que veio depois. Marcelo Briones, após seqüenciar genes de RNA ribossô­mico de tripanossomas, teceu a his­tória evolutiva das duas espécies e concluiu: ambas tiveram um ances-

convivendo com os mamíferos pla­centários. Entre cinco e dois milhões de anos, as duas Américas voltaram a ficar unidas, pelo istmo do Panamá. Resultado: ocorreu uma monumen­tal movimentação de animais de um lugar para o outro. Com a invasão de animais placentários vindos do norte, chega a linhagem T cruzi 2 do parasita, e ambas se misturam.

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • 35

CIÊNCIA

Tartaruga-de-pente: em risco, no litoral de Pernambuco

cerca de 300 mil anos após o Big Bang, quando era cerca de mil vezes menor e mais quente que hoje. É o resultado de dez dias de observações realizadas pelo telescópio do projeto Boomerang (Balloon Obser­vations of Millimetric Extra­galactic Radiation and Geo­physics), entre o final de 1998 e o início de 1999, em um ba­lão ao redor da Antártida. O telescópio do Boomerang re­gistrou pela primeira vez, em alta resolução, a chamada ra­diação cósmica de microon­das, comprovada em 1991 pe­lo satélite Cobe, dos Estados Unidos. As imagens revelam centenas de regiões com vari­ações mínimas, da ordem de 100 milionésimos de grau Cel­sius, na temperatura de micro­ondas. Os padrões complexos dessa organização confirmam as previsões de que as ondas de som podem viajar desde os primórclios do universo e criar estruturas que evoluíram até se tornarem aglomerados de ga­láxias ou superaglomerados. Os resultados, publicados na Nature de 27 de abril, coroam o trabalho de 36 equipes de 16 universidades do Canadá, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. •

Os homens e as tartarugas

Um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) estima que cerca de 50 tartarugas marinhas acabem morrendo, todo ano, em con­seqüência da ação dos pesca­dores e dos próprios pesqui­sadores. Já na lista de animais em risco de extinção, esses répteis podem ser presos em redes de arrasto e trazidos para a terra, junto com os pei­xes e outros animais. Por essa razão, os especialistas do Grupo de Estudos de Sirê­nios, Cetáceos e Quelônios ( GESCQ) da UFPE procuram convencer os pescadores para que deixem de usar essas re­des. Já há um avanço: os pes­cadores tornam-se importan­tes auxiliares na descrição dos hábitos de cada espécie. No litoral de Pernambuco a equi­pe encontrou até mesmo tar­tarugas gigantes (Dermochely cariaceia), além da tartaruga­verde ( Chelonia mydas), a ca­beçuda (Careta careta) e atar­taruga-de-pente (Eretmochely imbricata). O grupo de estu­dos, que há dois anos acom­panha o ciclo reprodutivo das tartarugas, verificou também

que a ação humana, mesmo quando bem-intencionada, pode prejudicar o desenvol­vimento das tartarugas: ao reorganizar os ninhos, para melhorar as condições de so­brevivência dos embriões, os pesquisadores notaram que a própria manipulação reduz a eclosão dos ovos. •

Flagrantes da infância do universo

Pode parecer efusivamente alegórica, mas a imagem abai­xo deixou exultantes os cos­mólogos do mundo inteiro. Ela indica, em detalhes, as estru­turas que formavam o uni­verso há 14 bilhões de anos,

Imagem do Boomerang: o universo como há 14 bilhões de anos

Novo medicamento a partir do boldo

Um tipo de boldo comum no Brasil, da espécie Verno­nia condensata e conhecido como alumã, é a mais nova esperança para a criação de um novo analgésico e antiin­flamatório . Uma pesquisa feita na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) comprovou em testes em tubos de ensaio e com animais de laboratório as propriedades medicinais da planta. O estudo mostrou que o uso da planta, além de não ter apresentado qual­quer efeito tóxico, não afeta a mucosa do estômago e ini­be a formação de úlceras, um dos efeitos colaterais mais comuns dos analgésicos. •

A recontagem dos genes

Quantos genes, afinal, tem o ser humano? Nos últimos anos, o cálculos indicavam que poderia ter entre 64 mil e 120 mil. Mas, de acordo com estudos divulgados em maio na revista Nature Genetics, o total pode variar agora de 30 mil a 34 mil genes. Ainda não é conclusivo. Outra pes­quisa, na mesma publicação, sugeriu que o DNA humano teria mesmo ao redor de 120 mil genes. As diferenças se devem, provavelmente, à téc­nica empregada, com base nos fragmentos de DNA chamados ESTs (etiquetas de seqüências expressas). Pen­sava-se que houvesse uma relação direta entre o núme­ro de ESTs e o de genes. Pode não ser assim, pois se acumu­lam as evidências de que um único gene pode ongmar mais de uma EST. •

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 31

CIÊNCIA

ÉTICA

Salvar, uma decisão dramática Público e futuros administradores aceitam a seleção de pacientes

Dois homens, feridos nwn desas­tre de automóvel, chegam a wn

pronto-socorro de um hospital pú­blico, na periferia de São Paulo. Um tem 25 anos. O outro, 65 anos. Só há uma vaga para internação. Qual deles deve ser atendido? A pergunta foi fei­ta a dois grupos. Um representava o público em geral. O segundo, estu­dantes de administração hospitalar. Os resultados foram bem diferentes.

O público em geral optou pelo homem de 65 anos. O mais velho, determinaram essas pessoas, teria mais necessidade do tratamento que uma pessoa mais nova. Os estudan­tes deram prioridade ao homem de 25 anos. Seu argumento foi o de que as despesas feitas pelo hospital, nes­se caso, teriam um benefício bem maior. Esse tipo de reação ganhou força com o tempo de aprendizado dos alunos. Entre os estudantes do primeiro ano, a proporção a favor do homem de 25 anos foi de 51,5%. Entre os estudantes do quarto e últi­mo ano, chegou a 92%.

"Um dos fatos mais relevantes desse trabalho é a opção dos estu­dantes de administração hospitalar pela alternativa que dê menos gastos ao hospital", diz Paulo Antônio de Carvalho Fortes, professor de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da pesquisa. "Mas uma das conclusões mais importantes é o próprio fato de os usuários do siste­ma público de saúde aceitarem que é preciso haver critérios para definir quem terá prioridade no atendi­mento", acrescentou.

36 • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

A pesquisa, chamada O Dilema de Decidir Quem Deve Viver, realizada com o apoio da FAPESP, colheu os depoimentos, numa de suas etapas, de 400 pessoas, homens e mulheres, que acompanharam parturientes atendidas no Hospital Público de Di­adema, um dos municípios mais po­bres da área metropolitana de São Paulo. A área foi escolhida porque a pesquisa queria ouvir pessoas caren­tes e sem outra opção de atendimen­to a não ser uma unidade do serviço público de saúde.

Em outra etapa, foram ouvidos 64 alunos do primeiro ano e 25 do quar­to e último ano de um curso de gra­duação em administração hospitalar de São Paulo. A instituição na qual se realiza o curso pediu sigilo em torno do seu nome, em troca da autoriza-

ção para a realização da pesquisa en­tre seus alunos. Nos dois casos, foram apresentadas 15 opções, nas quais os entrevistados deveriam escolher entre um e outro caso como tendo preferên­cia para o atendimento (ver tabela) .

É a primeira vez que se realiza uma pesquisa desse tipo no Brasil. "Há pesquisas semelhantes na Aus­trália, na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas envolvendo apenas situ­ações de terapia intensiva, transplan­tes e novas tecnologias': informa. "Em países como a França ou a Inglaterra, essa pesquisa nem poderia ser realiza­da, pois para um cidadão desses paí­ses é inconcebível que não haja vaga para um tratamento e tenha que ser feita uma escolha': diz. "Na França, nos últimos anos, houve apenas um caso de não-atendimento, considera-

do como om1ssao de socorro a um paciente e o responsável está preso:'

No Brasil, afirma o professor, as carências do sistema público de saú­de são tão grandes que a população se conformou com a existência de desigualdades no acesso ao trata­mento médico. Um sinal disso é a proporção relativamente pequena, de 5%, de pessoas que se recusaram a responder na íntegra ao questioná­rio. Nas pesquisas inglesas e austra­lianas, as recusas variaram entre 30% e 40%. "O baixo índice de recusa é mais um indicador de que nossa so­ciedade admite a necessidade de ha­ver critérios sociais para escolhas deste tipo", declara Fortes.

Uma característica das respostas do público em geral foi a preferência constante pelas pessoas socialmente mais carentes. A preferência pelo idoso de 65 anos com relação ao adulto de 25 anos é um exemplo dis­so, de acordo com Fortes. Outro exemplo foi o fato de o público em geral ter optado pelo socorro a uma criança de 1 ano, em confronto com

uma criança de 7 anos. Mais uma vez, os estudantes de administração hospitalar tiveram reação contrária. Os estudantes de primeiro ano pre­feriram a criança de 7 anos na pro­porção de 60%. No quarto ano, o ín­dice pulou para 71%.

Outra diferença surgiu no caso de duas pessoas, uma fumante e ou­tra não-fumante, atendidas com uma crise de bronquite. Cerca da metade das pessoas entrevistadas entre o público em geral optou pelo atendi­mento ao fumante, provavelmente entendendo que fumar não deve ser considerado como fato r de discri­minação negativa. Entre os estudan­tes, 84% dos alunos do último ano fizeram a opção pelo não-fumante. Os alcoólatras, porém, tiveram conde­nação geral. Para o público, pessoas com esse vício "procuram a doen­ça". Já um caso envolvendo uma mu­lher com HIV positivo, doente de pneumonia, provocou compaixão entre os entrevistados do público em geral. Ela foi considerada vítima de uma situação.

Opções claras - Outras preferências que ficaram muito claras foram as do atendimento a uma mulher casada, com relação a uma mulher solteira; a uma mãe de três filhos, com relação à mãe de um filho; a uma mulher com relação a um homem; a uma mulher com hepatite, com relação a uma al­coólatra. No caso das entrevistas com estudantes, um dos objetivos foi o de avaliar até que ponto os alunos do úl­timo ano absorveram os valores pas­sados pelo curso. Em alguns casos, houve mesmo inversão de valores en­tre os dois grupos. Por exemplo, no primeiro ano, a preferência de aten­dimento, com 75%, foi para um ho­mem empregado que sofrera uma crise cardíaca. No último ano, a prefe­rência passou a ser para um homem desempregado, com 64%.

De acordo com Fortes, os médicos costumam dizer que, quando coloca­dos diante de uma decisão desse tipo, se guiam por critérios exclusivamen­te técnicos. Mas é inegável que crité­rios sociais e médico-sociais também são levados em conta. Por isso, ele pre-

Dilemas apresentados a usuários do Hospital Público de Diadema e a alunos de curso de administração hospitalar em São Paulo

OPÇÃO I OPÇÃO 2 CAUSA CRITÉRIO ESCOLHAS DOS ALUNOS DO ATENDIMENTO ENVOLVIDO I0 ANO 4° ANO

Criança de I ano Criança de 7 anos Acidente de carro Idade I· 60% I -71%

Criança de 7 anos Homem de 65 anos Acidente de carro Idade I- 82,9% I- 100%

Homem de 25 anos Homem de 65 anos Acidente de carro Idade 1-51,5% I- 92%

Mulher Homem Acidente de carro Sexo I- 76,5% I -72%

Mulher com 3 Mulher com I Broncopneumonia Responsabilidade social I- 96,8% I- 92% filhos menores filho menor

Mulher casada Mulher solteira Broncopneumonia Responsabilidade social I- 70% I- 64%

Homem empregado Homem desempregado Crise cardíaca Condição econômica I- 75% 2-64%

Mulher com renda familiar Mulher com renda familiar Crise de diabetes Condição econômica I- 82,8% I- 56% de R$ 500,00 de R$ 3.000,00

Professor de colégio Trabalhador na construção Crise cardíaca Mérito social I- 50% I -72% estadual de 40 anos civil de 40 anos

Trabalhador na construção Padre católico Enfarte do miocárdio Mérito social I- 92% I- 100% civil com 2 filhos menores

Operário metalúrgico Pastor evangélico Enfarte do miocárdio Mérito social I -76% I- 68% sem filhos

Homem fumante Homem não-fumante Crise de bronquite Estilo de vida I- 59,4% 2-84%

Mulher de 25 anos Mulher de 25 anos Pneumonia Estilo de vida I- 54,6% 2-84% e HIV positivo e diabética

Mulher de 40 anos com hepatite Mulher de 40 anos e alcoólatra Problemas hepáticos Estilo de vida I- 92,2% I- 64%

Homem de outra cidade Homem residente na cidade Acidente de carro Vínculo da clientela I- 53,1% 2-72%

Fonte: Paulo Antonio Fortes, Fac. Saúde Pública - USP

PESQUISA FAPESP • MAIO OE 1000 • 37

tende realizar o mesmo levanta­mento também com médicos e outros profissionais da saúde. "Só assim será possível tirar conclusões sobre as motivações dos médicos ao tomar decisões que vão além de critérios técni­cos", afirma.

Fortes diz que é contra a idéia de que devam existir cri­térios que não sejam técnicos para definir prioridades no atendimento. Mas admite que diante das dificuldades para o atendimento universal, no sis­tema de saúde brasileiro, isso se transforma numa utopia. En­tão, afirma, se for necessária a existência também de critérios sociais ou médico-sociais, "eles precisam ser fruto de um deba­te e do consenso na sociedade".

Duas linhas - Para o professor, há duas linhas bem nítidas de critérios para as opções na cul­

Fortes: "critérios devem ser consenso na sociedade" tura brasileira. Uma é a que chama de ética utilitarista, que procura tomar decisões com base no custo-benefício. A outra tende a privi­legiar os menos favorecidos. "O bali­zamento nessa situação de diversida­de ética deve ser dado pela garantia de respeito à dignidade humana", de­clara. "Para isso, deve ser obedecida a regra de que cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, não somente como um meio para a satisfação de interesses de terceiros, da ciência, de cientistas ou de interes­ses industriais e comerciais."

Os critérios técnicos alegados pelos médicos, em geral, se funda­mentam no que é apresentado como uma objetividade científica. Entre eles estão a eficácia clínica; a possi­bilidade de ações preventivas; a vul­nerabilidade da doença à tecnologia existente; o tempo necessário para o tratamento; a gravidade da doença; e a situação de emergência.

Os critérios não-técnicos, por sua vez, nem sempre são apresenta­dos com tanta clareza. "São utiliza­dos critérios médico-sociais, como cooperação, idade, sexo, progresso

38 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

da ciência, qualidade do benefício, custo-eficácia, custo-benefício, força de trabalho potencialmente afeta­da e recuperada, potencial de vida, qualidade ajustada de anos de vida e ambiente de suporte para a conti­nuidade do tratamento", diz Fortes. A eles se unem critérios sociais, ce>­mo condições familiares, utilidade social, barreiras para o acesso à con­tinuidade do tratamento, mérito so­cial, responsabilidade social, nível de renda e produtividade.

Posições diferentes- Não se pode di­zer que os médicos adotem uma po­sição ou outra com relação a dilemas éticos capazes de ultrapassar questões técnicas. Isso depende da postura ge­ral do hospital em que trabalha e da própria posição individual. Fortes cita, como exemplo, o Instituto da Criança, quando lá trabalhava, em meados dos anos 80. Mesmo se rece­besse um paciente enviado por enga­no por outro hospital ou de outro município, a criança era sempre considerada responsabilidade do

~ hospital. "Ela só saía, se fosse o ~ caso, com um encaminhamen­~ to negociado e pactuado com

outro hospital", afirma. Outro ponto sublinhado

por Fortes é o fato de o Brasil, em termos internacionais, não estar tão ruim assim quanto à disponibilidade de leitos hos­pitalares. A proporção reco­mendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de quatro leitos por 1.000 habi­tantes. O Brasil tem 3,2. Logi­camente, estamos muito longe de países como a França, com 9,2 leitos por 1.000 habitantes, e Alemanha, com 8,3. Mas o principal problema brasileiro, segundo o professor, é a exis­tência de enormes disparidades

o • o • •

regwna1s e miCrorregwnais. Fortes chama a atenção

para tentativas de introdução no Brasil de um procedimento introduzido nos Estados Uni­dos, o managed care (cuidados administrados), no qual o mé­

dico é obrigado a se submeter a nor­mas de controle administrativo que acabam por limitar sua autonomia no que se refere às decisões sobre as necessidades no tratamento de uma pessoa. Fortes destaca que o Conse­lho Regional de Medicina de São Paulo vem reagindo contra essas ten­tativas. "O sistema está avançando muito nos Estados Unidos, mas en­frenta resistências em muitos setores e o Congresso an1ericano pretende ins­tituir regras a respeito': declara. •

PERFIL:

• PAULO ANTONIO DE CARVALHO

FoRTES, tem 49 anos e leciona no Departamento de Prática de Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pú­blica da Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Pediatria e doutor em Saúde Pública. Faz par­te do Conselho Nacional de Ética na Pesquisa (Conep). Projeto: O Dilema de Decidir Quem Deve Viver Investimento: R$ 5.700,00

CIÊNCIA

SAÚDE PÚBLICA

Guerra à osteoporose Estudo alerta sobre os riscos do baixo consumo de cálcio

A té o final deste ano, num uni­verso de 16 milhões de mulhe­

res brasileiras com mais de 55 anos de idade, 4,5 milhões poderão desenvolver a osteoporose, uma doença mais comum em ido­sos, caracterizada pela diminui­ção de 20% a 25% da densida­de óssea, expondo os ossos a um risco maior de fraturas. Preo­cupada em encontrar meios de reduzir esse problema, uma equipe do Núcleo de Investiga­ção em Nutrição do Instituto

da FAPESP -, a nutricionista Doris Lucia Martini Lei pretendia levantar dados para fortalecer os programas preventivos. O ponto de partida é que a prevenção da doença deve ser feita ainda na infância e adolescência, quan­do convém consumir mais cálcio. O tra­balho contou também com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimen­to Científico e Tecnológico (CNPq).

tionário preliminar sobre alimenta­ção, atividade física e conhecimento so­bre prevenção da doença. Desses, 242 responderam a perguntas específicas, que indicaram o consumo de cálcio.

O resultado indicou que predomi­na a desinformação acerca do com­bate à osteoporose. Na maior parte dos casos, a atividade física é orienta­da por razões estéticas, não pela pre­ocupação com a saúde. E mais: é pra­ticamente o mesmo nas três escolas o nível de desinformação dos adoles­centes a respeito da importância do cálcio na nutrição durante o cresci­mento. "Os pais dos alunos das esco­

las particulares possuem uma maior escolaridade, mas essa

i? característica não implica uma ~ alimentação mais adequada", § comenta Doris. Face aos dados ~ apurados, a equipe do Institu-

to de Saúde preparou folhetos com explicações sobre a impor­tância do cálcio e as medidas de prevenção da osteoporose.

de Saúde do Estado de São Paulo, da Secretaria de Estado

Osso normal (à esquerda) e descalcificado: dieta adequada na adolescência pode prevenir problemas na velhice

A pesquisadora conta que há também fatores inevitáveis que ampliam o risco de perda

da Saúde de São Paulo, fez uma pesquisa com 442 jovens de 14 a 19 anos, quando o consumo de cálcio torna-se ainda mais premente, por causa da formação da massa óssea.

As conclusões são preocupantes: apenas uma pequena parcela do gru­po estudado (cerca de 10%) tem uma alimentação adequada em relação ao consumo de cálcio. A ingestão média desse mineral é de apenas dois terços do recomendado para que se possa prevenir a osteoporose. Na adoles­cência, o mínimo sugerido é de 1.300 miligramas de cálcio por dia, o equi­valente, entre outras possibilidades, a dois copos grandes de leite (um pela manhã e um à noite), duas fatias de queijo e um iogurte ou uma taça de pudim de leite. Também é importan­te tomar sol, para o organismo pro­duzir vitamina D, que ajuda na absorção de cálcio dos alimentos.

Por meio dessa pesquisa- O Papel do Cálcio na Prevenção da Osteoporose, com um financiamento de R$ 9,2 mil

Doris entregou questionários a 860 alunos de três escolas do ensino mé­dio da cidade de São Paulo, duas par­ticulares e uma pública. Como a parti­cipação era voluntária, 442 alunbs (52% do total) responderam ao ques-

Doris: mais leite, queijo, sol e exercícios físicos

de massa óssea, como a raça (brancos e amarelos são mais suscetí­veis), a constituição física (quanto maior a densidade óssea, mais im­provável será o desenvolvimento da os­teoporose) e o sexo (as mulheres, após a menopausa, ficam mais expostas ao problema), além de heranças genéticas. Por outro lado, a ingestão adequada de cálcio e o abandono da vida seden-tária são fatores controláveis. •

PERFIL:

• DORIS LUCIA MARTIN! LEI, 48 anos, graduada em Nutrição, com mes­trado e doutorado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) . É pesquisado­ra do Núcleo de Investigação em Nutrição do Instituto de Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Projeto: O Papel do Cálcio na Pre­venção da Osteoporose Investimento: R$ 9.210,00

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 1000 • 39

CIÊNCIA

GENOMA

Cerco progressivo ao amarelinho Tabaco, proteínas e cola são fontes de estudo sobre a Xylella

Os pesquisadores do Projeto Genoma Funcional estão

anunciando três novas contribuições científicas para a elucidação dos me­canismos de patogenicidade da bacté­ria Xylella fastidiosa, agente causador da Clorose Variegada dos Citros (CVC), o popular amarelinho. Depois de concluído o seqüenciamento dos genes desse microrganismo, 21 gru­pos de cientistas estão debruçados sobre o resultado do genoma Xylella para entender o funcionamento da bactéria e, posteriormente, elaborar estratégias para livrar os laranjais brasileiros da praga da CVC.

A primeira novidade resolve um dos problemas do estudo da Xylella que é a falta de um modelo experimental de planta para estudos da doença. O professor Sílvio Lopes, do Laboratório de Biologia Molecular da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp ), concluiu um estudo junto com sua equipe indi­cando uma variedade de tabaco (Nico­tiana tabaccum) que poderá ser usada como modelo experimental. Quando inoculado artificialmente com a bac­téria Xylella, o tabaco permite uma rápida colonização, pelo patógeno, de seu sistema vascular e expressa os sin­tomas nas folhas em pouco tempo.

Outro estudo é um banco de dados com as proteínas sintetizadas pela Xy­lella, disponibilizado pelo Laboratório de Química de Proteínas da Universi­dade Estadual de Campinas (Unicamp ). Segundo o pesquisador Marcus Bus­tamante Smolka, um mapa com 816 proteínas da bactéria recebe os últi­mos preparativos para estar disponí­vel em breve na Internet, servindo ou-

40 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

tras instituições que trabalham no Pro­grama Genoma Funcional.

O terceiro estudo identificou uma goma produzida pela bactéria que per­mite a ela se fixar no xilema (sistema vascular da planta) e no aparelho suga­dor dos insetos que transmitem a doen­ça. "A Xylella vive em locais muito turbu­lentos e a cola assegura a sobrevivência dela", explica Felipe Rodrigues da Sil­va, pesquisador do Centro de Biolo-

gia Molecular e Engenharia Genética da Unicamp. "Detectamos que a bac­téria faz esse tipo de cola e consegui­mos induzi-la a produzir tal substância em laboratório. Agora, estamos anali­sando a bioquímica dessa cola- cha­mada de fastidiana- que é um polissaca­rídeo, um tipo de açúcar:' No futuro, o estudo dessa cola e das proteínas da Xy­lella poderá contribuir para a elabora­ção de um bactericida ou de uma outra estratégia para eliminar o amarelinho.

Laranjeira não dá - Todas as novas descobertas estão disponíveis para o

trabalho dos outros laboratórios, nu­ma integração que tem sido uma ca­racterística do Programa Genoma da FAPESP. No tabaco, por exemplo, será possível testar a função dos diversos genes que, aparentemente, estão en­volvidos na capacidade de a Xylella colonizar e causar doença em laran­jeiras. O estudo, que identificou essa planta como modelo experimental, foi recentemente aceito para publicação

pela revista Plant Disease, da Socie­dade Americana de Fitopatologia.

As laranjeiras demoram muito tempo para manifestar os sintomas e nem todas se infectam quando ino­culadas artificialmente com o pató­geno. "Às vezes, inoculamos dez plan­tas e apenas três ou cinco apresentam sintomas depois de três meses a um ano, inviabilizando seu emprego nas pesquisas", afirma Lopes. "Com as plantas de tabaco, que foram inocu­ladas, aconteceu o contrário. Todas expressaram sintomas nas folhas em no máximo 60 dias após as inocula-

ções."Vale lembrar que o tabaco foi a única espécie vegetal que apresentou alta suscetibilidade à Xylella dentre as mais de 20 espécies pesquisadas:'

Outra novidade do Projeto Geno­ma Funcional é a reestruturação dos estudos em quatro subáreas. ''A divi­são visa a acelerar o desenvolvimento do projeto e aumentar o intercâmbio entre os grupos", explica o professor Jesus Aparecido Ferro, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, um dos dois coordenadores do projeto, junto com Ana Cláudia Rasera, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).

A decisão de reestruturar o Ge­noma Funcional partiu de uma su­gestão do comitê de assessores ex­ternos que analisou o andamento do programa e indicou uma nova orga­nização para os estudos. O parecer foi acatado pela diretoria científica da FAPESP, que chamou todo o gru­po para uma reunião no dia 27 de abril último, quando as novas estra­tégias foram anunciadas e discuti­das. Assim, ficou definido que cada subárea terá um subcoordenador e dois assessores externos. Esses sub­coordenadores mais os coordenado-

res do projeto vão se reunir mensal­mente e analisar as metas dos traba­lhos acertadas no mês anterior. To­dos os participantes terão uma nova ferramenta para se comunicar. No site www.lbm.fcav.unesp.br os pes­quisadores farão relatórios atualiza­dos todos os meses com o curso das pesquisas. "Cada grupo dirá o que deu certo e o que não deu. As tenta­tivas negativas são importantes para que não haja repetições de procedi­mentos e nem tempo gasto inutil­mente", afirma o professor Ferro.

A dança dos grupos - As subáreas es­tão divididas em quatro grupos: cres­cimento, transformação, DNA-array

proteoma e fisiologia. O primeiro vai estabelecer método de crescimento da bactéria Xyllela em cultura a ser usado por todos os pesquisadores do projeto. Esse grupo é coordenado por Márcio Rodrigues Lambais, do De­partamento de Ciência do Solo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq) da USP. O grupo de transformação desenvolve técni­cas de manipulação genética para obter um sistema que faça a transfe­rência e o desligamento dos genes da bactéria. A coordenação é de Suely Lopes Gomes, do Departamento de

Bioquímica do Instituto de Química da USP, e de Marilis do Valle, do De­partamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

No grupo de DNA-array proteo­ma estão sendo identificados quais genes são responsáveis pela infecção na planta e quais geram a doença. Nessa subárea também estão aloja­dos os grupos que identificam e ana­lisam todas as proteínas sintetizadas pela Xylella. A coordenação é de José Camillo Novello, do Departamento de Bioquímica da Unicamp, e de Re­gina Costa de Oliveira, do Núcleo Integrado de Biotecnologia da Uni­versidade de Mogi das Cruzes. Na úl-

Ferro: reorganização acelera o projeto. Ao lado, xilema da folha de tabaco com a presença, no centro, da Xylel/a . Na página anterior, à esquerda, planta de tabaco normal e, à direita, infectada

tima subárea, a de fisiologia, estão reunidos grupos de estudo sobre a ecologia, fisiologia, bioquímica e epi­demiologia da bactéria, sob a coorde­nação de Luis Eduardo Aranha Ca­margo, da Esalq-USP.

A reorganização dos estudos do Programa Genoma Funcional repre­senta mais que uma estratégia na ba­talha para derrotar o amarelinho. É uma contribuição que gera conheci­mento para esse novo modo operati­vo e coletivo de estudo, ainda inédito como programa de pesquisa da ciên­cia brasileira. •

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 1000 • 41

TECNOLOGIA

PEQUENAS EMPRESAS

Aumentam recursos para inovação FAPESP amplia em 50% o limite de financiamento do PIPE

M uitas novidades marcaram a divulgação do sétimo edital

do Programa de Inovação Tecnológi­ca em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, no mês de maio. A mais im­portante é o aumento de 50% nos va­lores-limite de financiamento, em com­paração com os seis últimos editais. Agora, na primeira fase, a empresa po­de receber até R$ 75 mil (antes, o valor era de R$ 50 mil), para a elaboração de pesquisa de viabilidade técnica do projeto. Na segunda fase, quando o projeto é efetivamente desenvolvido, o teta passa a ser de R$ 300 mil (con­tra R$ 200 mil anteriores), disponibi­lizados num período de dois anos.

Outra mudança refere-se à ado­ção da exigência de um Plano de Ne­gócios que deverá ser elaborado pela empresa, mostrando os caminhos da viabilidade econômica do resultado da pesquisa. Será um relatório com o detalhamento do mercado a ser atin­gido pelo produto ou sistema e as possíveis formas de comercialização. Para elaborar esse documento, as empresas podem contar com a orien­tação do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Se-

42 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

brae) de São Paulo, conforme acordo entre esse órgão e a FAPESP.

este ano, está progra­mado o investimento total de R$ 1 O milhões para o PIPE. A partir do sétimo

edital também passa a valer a possibilidade de o responsável técnico, também chamado de coordenador da pesqui­sa, requerer uma bolsa da FAPESP, desde que ele não pertença ao qua­dro de funcionários da

Inovação Tecnológica

O aumento do teta dos investimentos é uma forma de ampliar a participação da fun­dação no ambiente empresarial. "Essa de­cisão visa a dar maior oportunidade aos pro-

empresa nem seJa um dos sócios.

O PIPE atende projetas de pesqui­sa- com conteúdo de inovação tecno­lógica- de empresas sediadas no Esta­do de São Paulo com, no máximo, 100 funcionários. O programa recebeu, até o sexto edital, 330 inscrições de em­presas que se candidataram à aprova­ção de seus projetas. Dessas solicita­ções, até o início de maio, 11 O foram aprovadas para a primeira fase, sen­do que 44 estavam na segunda fase.

Total de recursos- Dentre as empre­sas com projetas aprovados estão re­presentantes de 29 cidades paulistas. A capital lidera com 31 projetas, vindo a seguir Campinas, com 22, São José dos Campos, 19, e São Carlos, 8. So­mando os projetas da primeira e se­gunda fase, a FAPESP investiu, a fun­do perdido, R$ 8,6 milhões e US$ 2,4 milhões desde o final de 1997. Para

jetas mais caros. Não queremos perder bons

projetas de tecnologia de ponta que, normalmente, são os que exigem va­lores maiores", afirma o professor Francisco Antônio Bezerra Couti­nho, coordenador-adjunto da área de ciências exatas da FAPESP. O finan­ciamento é utilizado pela empresa na compra de equipamentos, material de consumo e em serviços de tercei­ros, inclusive de consultarias.

"O aumento da verba reflete o sucesso do PIPE, que se tornou mais ambicioso e mais ousado. "Quere­mos atrair mais empresas com po­tencial de desenvolvimento tecnoló­gico", afirma José Fernando Perez, diretor científico da fundação. "Esta­mos seguindo o que a maior agência de fomento dos Estados Unidos, a National Science Foundation (NSF), fez há um ano, aumentando em 100% o auxílio às pequenas empre­sas." Naquele país, um projeto apro-

vado na primeira fase recebe um va­lor de até US$ 100 mil e, na segunda, até US$ 400 mil. "Se a NSF fez isso é porque a inovação tecnológica nas pequenas empresas tem que ser, também aqui, estimulada", afirma Perez. "Queremos contribuir para fa­vorecer a percepção da importância da incorporação do conhecimento tecnológico ao produto."

Uma das intenções do PIPE é, jus­tamente, ampliar a fronteira de pes­quisa para fora do meio acadêmico. A tendência mundial é concentrar a maior parte das investigações cientí­ficas e tecnológicas em ambiente em­presarial. "Dessa forma, o subsídio

que fornecemos por meio do PIPE é totalmente aceitável, inclusive do ponto de vista da Organização Mun­dial do Comércio", analisa Perez. A OMC, vez por outra, implica com subsídios dados por diversos gover­nos, alegando que isso tira a compe­titividade de mercado.

Outro aspecto do PIPE é criar es­paço dentro das empresas para pes­quisadores de todas as áreas. Embora não seja exigida a presença de profis­sionais do ambiente acadêmico para dirigir o projeto, é possível o envolvi­mento de pesquisadores aposentados, recém-graduados ou em afastamento sabático, observada a dedicação mí-

Avaliação do projeto "O fundamental de um pro­

jeto é que ele contenha uma boa idéia e uma apresentação corre­ta, demonstrando que o coorde­nador e pesquisador principal sabe executar o trabalho", afirma o professor Coutinho. Esse prin­cípio é que deve nortear a análise posterior à entrega das solicita­ções na FAPESP. Porém, a meto­dologia de análise dos projetos obedece aos mesmos parâmetros das bolsas de estudo e os outros diversos programas da funda­ção. O projeto é encaminhado a, no mínimo, dois assessores exter­nos, no caso do PIPE (veja maté­ria na página 16), para análise do conteúdo e sua viabilidade.

Os assessores, na avaliação do projeto, conferem particu-

lar importância nos seguintes itens:

Objetivos: se bem definidos e compatíveis com o prazo pro­posto. Metodologia: se bem escrita e adequada aos objetivos pro­postos. Inovação tecnológica: se pro­duzirá inovação com impacto comercial ou social.

• Competência e experiência prévia do pesquisador e equi­pe: se suficientes para garan­tir a plena viabilidade do pro­jeto.

• Capacidade de a empresa de­senvolver ou negociar a inova­ção decorrente do projeto.

• Justificativa do orçamento apresentado.

nima de 20 horas semanais para a execução dos trabalhos.

Cronogramas semestrais - O pes­quisador responsável deve cuidar da preparação técnica da solicitação à fundação, acompanhar toda a execu­ção dos trabalhos e fazer os relatórios técnicos parciais e final do projeto. A partir deste edital, além dos relatórios anuais, as empresas terão que apre­sentar relatórios sintetizados e crono­gramas semestrais de desembolso. Com essa medida, a empresa estabe­lece metas para uma etapa de seis meses atreladas aos gastos que serão necessários nesse período. Ela só rece­berá o financiamento da etapa seguin­te se demonstrar ter gasto o combi­nado no semestre anterior.

O sétimo edital marca a data-limi­te para entrega de propostas para o dia 30 de junho. A divulgação ocor­reu no mês de maio por meio de anúncio veiculado em 12 jornais do Estado de São Paulo, abrangendo pe­riódicos diários da cidade de São Paulo, região do ABC, Bauru, Cam­pinas, São José dos Campos, São José do Rio Preto, Araraquara, Ribeirão Preto e São Carlos.

Dentre as novidades futuras do PIPE, ainda em estudo, está a possi­bilidade de financiar a fase 3, quando o produto entra em linha de produ­ção. "Estamos preocupados em via­bilizar os projetos bem-sucedidos. Pa­ra isso, estamos estudando a criação, com outras entidades e órgãos de fi­nanciamento, de fundos específicos para implementar a fabricação de produtos desenvolvidos dentro do PIPE", informa Perez. •

PESQUISA FAPESP HAlO DE 2000 • 43

TECNOLOGIA

QUÍM ICA

Análise automática e robotizada

Estação de trabalho acelera exame químico de várias substâncias

Esqueça a figura tradicional do técnico de laboratório especia­

lizado em análises de alimentos e ou­tras substâncias, sempre às voltas com pipetas, tubos de ensaio, béqueres e bi­cos de bunsen. Já está disponível para os profissionais do setor a Estação de Trabalho Espectrofotométrica, um analisador químico totalmente auto­mático e robotizado, capaz de quan­tificar, por exemplo, a presença de elo-

reto, ferro, nitrito, sulfato e sílica na água, ou detectar cianeto, sulfeto, fos­fato e amônia em efluentes domésti­cos ou industriais. Permite ainda me­dir a concentração de cálcio e fósforo em rações ou cálcio, magnésio e fósfo­ro em plantas, além de muitas outras aplicações. Tudo realizado em menor tempo que os métodos tradicionais.

A estação foi desenvolvida pela Femto, uma empresa sediada na capi­tal paulista, sob a coordenação do físi­co Lídio Kazuo Takayama. O projeto Estação de Trabalho Espectrofotométri­ca teve o apoio da FAPESP dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), por meio de um financiamento total de

R$ 114 mil, distribuídos em duas fa­ses. Até o mês de abril, a Femto havia vendido duas estações. Uma para a Fundação do Meio Ambiente de Goiás (Femago) e outra para o Labo­ratório de Referência Animal do Mi­nistério da Agricultura (LARA). São dois exemplos que demonstram ser amplo o campo de ação da estação. Ela serve às indústrias, órgãos de pro­teção ambiental, institutos de pesquisa e empresas diversas que fazem análise de alimentos, de solos e de plantas ou atuem na área de tratamento de água.

A utilização da estação de traba­lho informatizada e robotizada exer­ce uma série de vantagens em relação aos métodos manuais. A primeira é

Por dentro da Estação de Trabalho Espectrofotométrica

A substância a ser analisada é inserida nos tubos de ensaio do carrossel de amostras após a digestâo (preparo do material). Tanto a amostra como os reagentes são aspirados pela bomba peristáltica.

As válvulas V2 e VJ, que ficam em cima dos braços do carrossel dos reagentes, e as VS e V6, sobre as amostras, gerenciam o trabalho de aspiração e, posteriormente, da injeção. Os volumes pré-programados dos reagentes e da amostra são armazenados dentro das bobinas 8 I e 82.

Depois, os dois conteúdos são injetados, pela bomba peristáltica, para a bobina 83, onde ocorre a reação entre amostra e reagente.

Em seguida, o material é levado à cu beta de fluxo do espectrofotômetro representada pela letra À,

que seleciona o comprimento de onda do parâmetro (por exemplo, cálcio, ferro, cloretos) a ser analisado e indica a sua concentração. O carregador que pode ser, por exemplo, água destilada, serve para transportar a amostra e os reagentes.

As válvulas VI e V4 evitam a sobrepressão ou vácuo na tubulação quando a bomba peristáltica estiver ligada.

44 • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

CARREGADOR

6 Carrossel dos reagentes Carrossel das amostras

Descarte

uma redução de custos operacionais e gerenciais. A automatização traz uma série de benefícios, como au­mento na velocidade do processa­mento, controle de qualidade quase em tempo real, redução de erros, au­mento da segurança, redução de des­carte de produtos químicos e melho­ra na comunicação e serviços.

A análise laboratorial utilizan­do espectrofotômetro não-automa­tizado ainda é largamente utilizada. Mas as estações robotizadas com bom suporte de software terão um papel importante, sobretudo nos laboratórios que trabalham com grandes quantidades de análises.

Ações rápidas - A Femto iniciou suas atividades com o desenvolvi­mento e fabricação de espectro­fotômetros de luz visível e de ul­travioleta. Posteriormente, foi a primeira a fabricar no Brasil o es­pectrofotômetro de infravermelho, que não necessita de reagentes. A empresa, desde a sua fundação em 1989, direciona suas ações para al­cançar o mesmo patamar de de­senvolvimento tecnológico de suas correspondentes estrangeiras. As ações da empresa se concentram no desenvolvimento do produto, na montagem e no controle de qualida­de, deixando a fabricação dos com­ponentes dos equipamentos para ou­tras indústrias, de forma terceirizada.

A estrutura organizacional da Femto é familiar, formada pela asso­ciação do coordenador do projeto, Lí­dio Takayama, com mais dois irmãos, Francisco e Mary. Uma das funções dos três é sempre acompanhar as prin­cipais novidades acadêmicas e em­presariais no Brasil e no exterior.

A idéia da estação espectrofoto­métrica automatizada persegue Lídio desde o início da década de 80. Com a invenção do sistema Flow Injection Analysis (FIA), análise por injeção em fluxo, a análise laboratorial de com­ponentes de alimentos ou de efluen­tes (resíduos domésticos ou liberados pela produção industrial) ganhou em eficiência em comparação com os mé­todos tradicionais de manipulação.

Economia de tempo - Na técnica FIA, a amostra objeto da análise é colocada em um tubo contendo reagente e de­pois redirecionada para um detector. Entretanto, restava um problema que deixava Lídio Takayama incomoda­do. Os aparatos montados para pro­ceder à análise não eram facilmente

Takayama: mesmo nível

das indústrias similares

mais avançadas do exterior

/ intercambiados em operações envol­vendo diversos tipos de reagentes e de amostras. Assim, se, após uina operação para detectar a presença de sulfato, fosse necessário analisar a presença de cloreto, seria obrigatório a remontagem do aparelho com no­va configuração. O processo todo se tornava trabalhoso. Daí que, desde a concepção da estação de trabalho, a função do operador se limita a fazer uma nova programação no compu­tador do aparelho, quando houver necessidade de outra reação química. Isso representa uma grande econo­mia de tempo e de produtos em rela­ção a espectrofotômetros anteriores.

Lídio Takayama conta que uma análise de demanda química de oxi­gênio (DQO), fundamental para análises ambientais, que normal­mente leva mais de 3 horas utilizan­do técnicas convencionais, ficou

pronta em apenas 12 minutos na nova máquina.

Até setembro deste ano, quando termina a fase 2 do projeto, deverão estar concluídos novos testes, como o de detecção de carbono orgânico to­tal (TCO) em efluentes, para deter­minar a presença de gorduras em fa-

relos de soja ou de trigo e medir o nível de proteínas em alimentos em geral, por meio da presença de nitrogênio. O tempo estimado para toda essa análise é menor que 15 minutos.

Embora ainda não totalmente finalizada, a estação de trabalho da Femto começa a ganhar os pri­meiros concorrentes em países como França e Canadá. No entan­to, as perspectivas comerciais da empresa brasileira são bem atraentes. As especificações e ca­racterísticas da máquina a man­tém num patamar altamente competitivo, com preços mais bai­xos em relação aos estrangeiros.

Novos negócios - Como o aparelho é útil a vários ramos da atividade industrial, Lídio estima vender até 6 unidades neste ano, aumentando, depois, as vendas para 10 ou 12 unidades anuais. O preço médio de

cada unidade será de R$ 35 mil, um valor superior ao previsto inicialmen­te, mas muito abaixo do preço dos concorrentes.

Para atender às novas demandas, a Femto contratou recentemente um novo funcionário e estuda contratar outros dois. Lídio ressaltou ainda que "sem o envolvimento da FAPESP te­ria sido muito mais difícil financiar o projeto, dado o atual custo dos juros no Brasil". •

PERFIL:

• L!DIO KAzuo TAKAYAMA, 51 anos, formou-se em Física na Universi­dade de São Paulo (USP). Fez pós­graduação no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Projeto: Estação de Trabalho Espec­trofotométrica Investimento: R$ 114.741,00

PESQUISA FAPESP · MAIO OE 1000 • 45

TECNOLOGIA

ENGENHARIA ELÉTRICA

Luz laser pára o trem de minério

Equipamento de pequena empresa controla vagões da Vale do Rio Doce

Cinco pequenas caixas de cor laranja instaladas ao longo dos

trilhos da linha férrea da Companhia Vale do Rio Doce, no Estado do Es­pírito Santo, fazem parte do mais novo sistema para o posicionamento exato das caçambas que devem ser viradas para o descarregamento do minério de ferro. As caixas são medi­dores de distância a laser que garan­tem maior precisão do local de para­da dos vagões e substituem o homem em um trabalho inóspito proporcionado pelo eleva- ~ do grau de material parti­culado em suspensão exis­tente no local. Com isso, a Vale é a única companhia do gênero no mundo a adotar tal sistema.

bricação em série deve começar até o final deste ano. Segundo o coordena­dor do projeto, o engenheiro Mário Antônio Stefani, a solicitação da Vale fez a Opto modificar o formato in­dustrial previamente imaginado para o aparelho. O medidor foi adaptado para ganhar resistência física e funcio-

O medidor a laser fica instalado rente aos trilhos com blindagem especial para evitar poeira

A inovação foi desen­volvida pela Opto Eletrô­nica, uma empresa de São Carlos que obteve financi­amento da FAPESP, dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). No total, serão investidos R$ 23,2

.__ _________ ____J e água de chuva

mil até o mês de setembro, quando esse projeto - chamado Medidor de Distância a Laser com Alcance de 20 metros para Uso Industrial- será fi­nalizado.

Esse medidor funciona como um radar, informando a distância entre o emissor e o alvo. A diferença é que, em vez de ondas de rádio, o equipa­mento usa· um sinal luminoso pro­duzido por um feixe de laser. O pri­meiro protótipo do medidor ficou pronto em novembro de 1998 e a fa-

46 • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

nar em ambiente hostil como é o transporte de minério. Por isso, a cai­xa recebeu uma blindagem especial de aço, sendo ainda selada contra água da chuva.

"Os principais obstáculos que im­pediam o bom funcionamento do sensor laser estão sendo superados': afirma Stefani. Como exemplo havia o excesso de pó presente no ambien­te, motivado pela movimentação do minério existente nos vagões. Cada vagão tem capacidade para carregar

até 90 toneladas. As nuvens de poei­ra, a princípio, interferiam na leitura do laser, que revelou alta "sensibilida­de" para ultrapassar aquelas mais densas. "Fizemos todas as adequa­ções necessárias para o sensor laser funcionar em plenas condições nesse ambiente hostil", informa Stefani.

Essa versão terá muita utilidade em outras aplicações, tais como aferir a posição e a largura de lingotes de aço em siderúrgicas, verificar o volume de grãos e granulados em geral, em silos, caminhões e vagões, e medir comprimentos e larguras de madeira em serranas.

Está prevista a confecção de um medidor portátil que poderá ampliar o uso desse aparelho, nos mercados de construção civil e arquitetura. Esse equipamento portátil também poderá ser usado como sensor de po­sicionamento de robôs em linhas de montagens industriais.

O desafio apresentado à Opto pela Vale do Rio Doce era vencer os limites do raio de ação encontrado em outros tipos de medidores exis­tentes no mercado, que alcançam no máximo 50 centímetros. Nas insta-

lações da Vale, os vagões carregados circulam normalmente a cerca de dois metros do local onde é possível insta­lar um medidor. A distância, no en­tanto, pode chegar até 7 metros. O aparelho fica conectado a um braço hidráulico, que arrasta o vagão, mo­vido por um motor de 800 cv, equi­valente à força de dez motores 1.0 de carros populares. Entre os requisitos estabelecidos pelo cliente da Opto es­tavam precisão centimétrica, tempo de resposta do sensor laser de no má­ximo um vigésimo de segundo e fei­xe de laser com potência máxima de cinco miliwatts. "O limite de potência é imposição de normas internacionais de segurança", diz Stefani.

ponentes são mais eficientes, mais baratos e ocupam menos espaço que os gases e os espelhos utilizados na técnica hélio-neônio. "Foi mais ou menos como passar da válvula para o transistor", compara Castro.

Assim, de uma hora para outra o laser fabricado pela Opto não era mais páreo para o novo concorrente. E medidas extremas e rápidas foram tomadas, como a adoção do novo componente. Foi uma decisão corre­ta e o crescimento da empresa foi grande e rápido. A Opto começou o ano de 2000 com 100 funcionários e

sões. A primeira é a básica, dedicada à pesquisa e desenvolvimento. A se­gunda cuida da fabricação dos im­plementas laser e componentes óp­ticos de precisão. E a terceira está voltada para a produção de filmes finos utilizados em refletores de "luz fria", outro nicho de mercado mui­to promissor. Nessa área, a Opto já é o maior fabricante nacional de refletores odontológicos. "Expor­tamos 45% da nossa produção", re­força Castro.

Produtos desse tipo inauguram com freqüência novos segmentos in­

dustriais, o que significa ~ o dizer criação de empregos

mais qualificados. Na Opto, os funcionários têm perfis que vão de técnicos de grau médio a engenheiros, mes­tres e doutores, além de 20 vendedores fixos. "Nesse setor não é possível manter vendedores genéricos", ex­plica Castro. As especifica­ções e aplicações exigem o conhecimento de inúme­ros detalhes que somente quem se especializa conse­gue entender.

Rápido crescimento - De­safios inesperados marca­ram a história da Opto Ele­trônica. Nascida em 1985, a empresa era a única a fabri­car no Brasil emissores de raios laser de hélio-neônio, um tipo de produto em franco crescimento, naque­les tempos, nos Estados Unidos. Tratava-se de um equipamento incorporado a múltiplas aplicações nas áreas médicas e afins, tais como fotocoaguladores,

Stefani, à direita, e o engenheiro Soares, da Opto, na área da Vale

É, justamente, o cami­nho que a Opto quer seguir, incorporando conhecimen­to a seus produtos. •

bisturis movidos a laser, entre outros. Não era um produto de venda direta ao consumidor. A Opto fazia o emis­sor de laser e não o produto final.

Com o tempo, a empresa percebeu que faltava no mercado brasileiro pro­dutos finais com plena utilização do laser. "No Brasil, na época, não havia quase aplicativos': lembra Jarbas Caia­do de Castro, um dos sócios da em­presa. Foi assim que a Opto passou a desenvolver equipamentos completos com venda direta ao consumidor, che­gando a um total de 100 tipos de pro­dutos à base de laser. A empresa cres­ceu muito até o final da década de 80, saltando de 6 para 70 funcionários.

Mas, em 1989, foi lançado, nos Estados Unidos, um novo tipo de emissor laser, desta vez acionado por diodos semicondutores. Esses com-

um faturamento anual da ordem de R$ 13 milhões. Hoje, a linha de pro­dutos da Opto vai de microscópios oftalmológicos de altíssima defini­ção a fotocoaguladores a laser para cirurgias de retina, além de sistemas de precisão de imagens do olho, tor­nando possível executar a coagula­ção de microfissuras nesse órgão. Acrescente-se a isso outros inúmeros equipamentos de uso industrial.

"Fomos os pioneiros na produção de equipamentos de laser industriais no Brasil': reforça Castro. "Estamos num segmento que movimenta anu­almente, no mundo, mais deUS$ 100 milhões. Esperamos crescer pelo me­nos 20% este ano", afirma.

Reflexos da luz -A Opto tem seis só­cios e está estruturada em três divi-

PERFIS:

• MÁRIO ANTONIO STEFANI, enge­nheiro mecânico e eletrônico gra­duado na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP). Fez mestrado e doutorado no Instituto de Física de São Carlos (USP) . • JARBAS CAIADO DE CASTRO, físico graduado no Instituto de Física de São Carlos (USP), onde também fez mestrado e é, atualmente, pro­fessor titular. Doutorou-se no Mas­sachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Projeto: Medidor de Distância a La­ser com Alcance de 20 metros para Uso Industrial. Investimento: R$ 233.221,00

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • 47

TECNOLOGIA

ODONTOLOGIA

No tamanho da boca brasileira

Dentistas têm novas moldeiras de arcadas dentárias

Em setembro deste ano, uma no­va geração de moldeiras de ar­

cadas dentárias estará disponível pa­ra os cerca de 150 mil dentistas que trabalham no país. Os novos produ­tos são o resultado de 20 anos de pesquisas do professor Artêmio Luiz Zanetti, titular da Clínica de Prótese Parcial Removível da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP). Há dois anos, ele se associou com a empresa Tec­com, que produz instrumentos para a área médica, com o objetivo de le­var em frente o projeto Desenvolvi­mento da Moldeira de Transferência - Técnica Zanetti, que faz parte do Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da FAPESP.

A concretização do trabalho teve início em 1977, quando o professor Zanetti constatou a dificuldade dos alunos em obter boas reproduções (modelos) de arcadas dentárias. "Com isso, resolvi realizar um estu­do das dimensões dos arcos dentá­rios do biótipo brasileiro ao tomar como base 400 arcadas, sendo 200 superiores e 200 inferiores, obtidas de 100 alunos da FOUSP e 100 da Universidade São Francis­co, de Bragança Paulista, on­de também lecionava", re­lata Zanetti.

A coleta da estrutura da arcada se faz com a moldei­ra carregada com uma mas­sa maleável, que serve para a gravação da base dentária quando da necessidade de

Zanetti: número de consultas diminui

uma dentadura. Logo em seguida a massa se solidifica e serve como pa­râmetro para os trabalhos protéticos. Em 1980, com base nesse trabalho, Za­netti estudou sete tipos de moldeiras -cinco importados e dois nacionais­utilizados na prática odontológica. A conclusão indicou a incompatibida­de das dimensões das moldeiras com os arcos dentários estudados.

Sem recursos - "Nenhuma delas servia", lembra o professor, recém-

manufaturar um dente ou As moldeiras serão vendidas em kits com até 16 peças

48 • MAIO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

aposentado, referindo-se ao estudo comparativo que realizou com as sete moldeiras. "Constatei que os dentistas tinham à mão uma ferra­menta inadequada", acrescentou. Zanetti não possuía os recursos para aproveitar industrialmente suas ob­servações. Com o tempo, desenvol­veu uma técnica, com a qual o den­tista pode realizar, numa única sessão, todo o trabalho que normal­mente leva o paciente a várias visitas ao consultório.

O uso do articulador é um dos principais segredos do método do professor da USP. "Após concluir a faculdade, o profissional deixa de lado o articulador, uma ferramenta indispensável para a captação das medidas dos pacientes", afirma Za­netti. De acordo com uma pesquisa feita pela Teccom, dos 150 mil den­tistas que trabalham no Brasil, ape­nas 16 mil usam o articulador. Esse aparelho mede a posição dos maxi­lares do paciente e as características de sua oclusão, ou seja, a maneira como ele fecha a boca. Assim, as no­vas moldeiras vão ajudar a todos, dentistas e pacientes. •

PERFIL:

• ARTÊMIO Lurz ZANETTI, 70 anos, formou-se em Odontologia na USP. Aposentou-se no ano passado e, atualmente, é professor da Universida­de da Cidade de São Paulo (Unicid) e da Universida­de Camilo Castelo Branco (Unicastelo), Campus IX, de Campinas. Projeto: Desenvolvimento da Moldeira de Transferência -Técnica Zanetti Investimento: R$ 194.000,00 da FAPESP e R$ 96.250,00 da empresa

TECNOLOGIA

Led's: polímeros geram luz a partir da corrente elétrica

A vanguarda em pontos luminosos

Não há aparelho eletrônico sem aquelas pequeninas lu­zes brilhantes e coloridas que possuem funções variadas co­mo avisar que o rádio ou o monitor do computador es­tão ligados ou, ainda, que o celular está recebendo liga­ções. Esses dispositivos lumi­nosos nos comunicam o que está. ocorrendo e nos ajudam a entender esses equipamen­tos cada vez mais engenho­sos. São conhecidos como LED's (Light Emitting Diodes ou Diodos emissores de luz). A última palavra entre esses dispositivos eletroópticos são os OLED's, chamados de or­gânicos, produzidos com po­límeros (um tipo de plástico) com propriedades elétricas que geram luz, quando da passagem de corrente elétri­ca. Os leds comuns são com­postos por semicondutores inorgânicos como silício e gálio. Os Oleds são mais lu­minosos, oferecem mais co­res, consomem menos ener­gia e custam dez vezes menos. Tecnologia de ponta domi-

nada por países como Esta­dos Unidos, Inglaterra, Japão e Alemanha, que agora está disponível no Brasil. O inedi­tismo brasileiro é da empresa Optanica, de Recife, instalada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica do Esta­do de Pernambuco (Incuba­tep). A inovação foi desen­volvida nos laboratório de Física da Universidade Fede­ral de Pernambuco (UFPE). Em 1998, a tecnologia foi transferida para a empresa. A pesquisa foi liderada pelo pesquisador Antônio Vaz, hoje um dos dois sócios da Optanica. A empresa vai fa­bricar, inicialmente, brindes como chaveiros e cartões que emitem luz. No próximo ano, a previsão é iniciar a produ­ção de displays com a tecno­logia OLED para calculado­ras e celulares. •

Uma patente para o suco de cana

Essa ninguém esperava. Uma nova tecnologia de extração da garapa foi patenteada nos Estados Unidos. A empresa Jucana Juice, de Woodland

Hills, na Califórnia, pediu o registro pioneiro de um novo método de processamento de suco de cana-de-açúcar que resulta em um líquido con­centrado do produto. Sem explicar como funciona esse processo, a empresa, confor­me notícia vinculada no site Bevtech, pretende também vender a garapa misturada a outros sucos, refrigerantes, chás e bebidas alcoólicas. Um dos sócios da empresa, Tho­mas Remby, diz esperar um novo mercado para produto­res de cana nos Estados Uni­dos e em outros países. Ele afirma que o novo método produz um suave suco de co­loração amarela e delicado aroma, além de um preço atrativo. •

Um jeito rápido de tirar água de coco

Quem tentou ou viu alguém retirar água de um coco sabe da dificuldade em perfurar a grossa camada de casca ex­terior que envolve o fruto. Imagine essa dificuldade em nível industrial com milha­res de unidades por dia para

Simples e compacta, capaz de processar 1.800 cocos/h

processar. Pensando nisso, o pesquisador Fernando Abreu da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária -Embrapa Agroindústria Tro­pical, de Fortaleza, Ceará, desenvolveu uma máquina que quebra o coco com mais rapidez. Num país tão pro­pício ao plantio e ao consu­mo dos produtos do coco, como é o Brasil, essa máqui­na é muito bem-vinda. Ela proporciona agilidade in­dustrial na extração da água a ser embalada. A máquina processa 1.800 frutos por hora, quebrando-os ao meio, e 500 litros de água/h. "A im­portância da máquina está no fato de o consumo de água de coco, no país, crescer 20% ao ano", afirma Abreu. A pesquisa, iniciada em 1997, já resultou na venda de seis máquinas e ganhou o primeiro lugar na área de processamento de alimentos na exposição Ruraltech, que aconteceu em Londrina, no último mês de abril. A má­quina é produzida pela Ce­mag S/A, de Fortaleza. Cada unidade custa R$ 11 mil, sendo que 30% desse valor são de royalties destinados à Embrapa. Esse retorno pro­piciou a elaboração de novas pesquisas do grupo de Fer­nando Abreu, agora na área de técnicas de conservação da água após a extração. "Controlando a temperatu­ra da água, em refrigerado­res, conseguimos um perío­do de armazenagem de 60 dias sem perda de qualidade e sem a necessidade de con­servantes" anuncia Abreu. A pesquisa teve financiamen­to da Finep e do Sindicato dos Produtores de Frutas do Ceará. •

PESQUISA FAPESP • HAlO DE 2000 • 49

HUMANIDADES

HISTORIA

Imagens do passado colonial

Livro de Nestor Goulart reúne vistas e plantas de cidades do Brasil antigo

Quarenta anos de pesquisa em arquivos brasileiros, portu­

gueses e holandeses acabam de re­sultar em uma verdadeira pérola editorial da história do urbanismo brasileiro. O livro Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial (Edusp/Im­prensa Oficial, 414 págs. R$ 80,00), do arquiteto e historiador Nestor Goulart Reis, reúne 329 imagens de

em arquivos de todo o território na­cional e ainda no exterior, esses dese­nhos fazem parte de um conjunto de mais de mil plantas com as quais Reis, auxiliado por uma equipe de 20 pes­soas do Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preser­vação (LAP) da FAU/USP, desco­briu, no decorrer dos últimos 40 anos, a força que o planejamento urbano teve no Brasil Colonial. A pesquisa do LAP pode ser vista também em CD-ROM e em um kit educacional de 35 pôsteres que está percorrendo escolas públicas de todo o país.

Os desenhos - alguns feitos em aquarela - podem ser considerados

po, transformando-as em espelhos dos burgos medievais europeus. So­bretudo no litoral, onde era preciso resguardar-se da invasão de povos 1mm1gos.

Já no século XVII, conta o pes­quisador, começa-se a agregar um planejamento de ruas em forma de xadrez para reforçar a segurança e o controle militar, diante do cresci­mento populacional da colônia. "A partir do século XVII e no decorrer do XVIII, a população colonial pas­sou de 300 mil para 3 milhões de ha­bitantes, a grande maioria vivendo em centros urbanos desenvolvidos em decorrência do ciclo do ouro, e

Vista da parte sul da cidade de São Paulo em 1821 : poucas casas, uma cena bem distante da futura metrópole superpovoada

plantas e vistas de cidades como Sal­vador, Rio de Janeiro, Recife, Cana­néia, São Paulo e muitas outras, en­tre o século XVI e o início do XIX. O livro, que contou com o apoio da FAPESP, pode ser encontrado na Fundação de Pesquisa Ambiental (Fupam) da Faculdade de Arquite­tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).

Completamente desconhecidos do público por estarem dispersos

50 • MAIO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

verdadeiras expressões artísticas de seus autores. E que autores são es­ses? Na maior parte das vezes, enge­nheiros militares enviados por Por­tugal para garantir a segurança da colônia. Daí o fato de o nascimento de Salvador, em 1549, por exemplo, ter se dado com a presença de um mestre de fortificações. A preocupa­ção com a segurança fez de portas e muros elementos muito comuns nas urbes brasileiras daquele tem-

não só em Minas Gerais", narra Reis. "Era preciso racionalizar a defesa militar, daí a presença quase cons­tante do planejamento simétrico de ruas, em forma de xadrez." Esse tipo de concepção era tão presente, que até o quilombo do Rio Vermelho, lo­calizado em um bairro de Salvador, foi planejado dessa maneira. "Além disso, o planejamento urbano era completo, então havia áreas das ci­dades destinadas a comportar, por

~ exemplo, a que determina-o ~ va que todas as janelas e lí portas deviam ter a mesma 5 ;;: altura e outra segundo a .. .,; qual as ruas não podiam re-i ceber nomes em tu pi:' Uma 1.s rápida olhadela no livro de "" : Reis já permite ver que cida-~ des como Recife e Salvador ~ tinham muito das portu­~ guesas, como Porto e Lisboa. :i o

~ Fazendo escola - Os cursos ;;;;

de urbanismo ministrados hoje no Brasil quase nada herdaram do planejamento urbano colonial, mas mui­tos engenheiros militares daquele tempo - alguns portugueses, outros fran­ceses, alemães ou italianos - fizeram escola por aqui. Foi o caso do português Jo­sé Fernandes Pinto Alpoim,

"Fiuvius Grandis": desenho de Frans Post, de 1639, mostra a fortaleza dos Reis Magos, em Natal que, além de ter construí­

Área do Morgado de Santa Bárbara, em Salvador: desenho de 1764-1785

exemplo, os índios - está certo que longe das habitações dos portugue­ses", explica. "Não existiam, assim, moradores de rua; estes começaram a existir no final do século XIX."

A intensidade da vida urbana na­quele tempo também se expressava por meio de espaços culturais. "Vila Bela, capital do Mato Grosso em meados do século XVIII, tinha uma casa de ópera em que eram encena-

dos de 80 a 90 espetáculos teatrais por ano", diz o pesquisador. "E as igrejas eram espaços para músicos e compositores." A partir de 1750, conforme diz Reis, Portugal decidiu marcar enfaticamente sua presença na América. A arquitetura serviu­lhe para deixar claro que o território português além-mar era bastante diferente do espanhol. "Havia nor­mas de planejamento, como, por

do o Palácio dos Governa­dores do Rio de Janeiro e o de Ouro Preto, fez um pla­no simétrico para a cidade de Mariana, em Minas Ge­rais, em 17 46. "Ele reativou as aulas militares no Rio de Janeiro, escrevendo ma­nuais de artilharia e de ar­quitetura e foi a partir de seus cursos que se forma­ram a Academia Militar de Agulhas Negras e a Escola Politécnica do Rio de Ja­neiro", afirma Reis.

O italiano Antônio José Landi, juntamente com outros astrônomos, geógrafos e engenheiros estrangeiros, integrou a

expedição portuguesa responsável pelo reconhecimento da bacia ama­zônica no século XVIII, que colabo­raria para as melhores delimitações entre os territórios portugueses e os espanhóis naquela região. Segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), aquelas terras pertenciam aos espa­nhóis, mas há tempo os portugueses vinham ocupando a porção ociden­tal da linha. Até que, em 1750, o Tra-

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • 51

"Dezenho por ldea da Cidade de São Paulo", a partir do Morro do Chá: 1765-1775

tado de Madri definiu que aquelas terras passariam a pertencer oficial­mente ao reino portugês. A missão não obteve sucesso, devido à ausên­cia dos castelhanos em um encontro marcado na povoação de Mariuá, no coração da baía amazônica. Porém, Landi resolveu ficar em Belém do Pará, onde morou até o fim da vida. Lá, ele construiu o Palácio dos Gover­nadores, a Igreja de Sant' Ana e a Cape­la de São João Batista, tendo contri-

buído para a formação de uma men­talidade arquitetônica iluminista na região. Alguns brasileiros aprendizes dos estrangeiros também tiveram se­guidores, como José Antônio Caldas.

Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial apresenta as repre­sentações de nossos centros urbanos de acordo com a ordem cronológica em que esses se desenvolveram na história. Assim, primeiro vêem-se as plantas e vistas das cidades dos Esta-

dos nordestinos - Bahia, Alagoas, Sergipe, Ceará, etc. Depois, as do Sudeste, seguidas pelas do Sul, Brasil Central e finalmen­te do Norte. A intensa e longa pesquisa da equipe de Nestor Goulart Reis contou com o apoio im­prescindível da FAPESP e do CNPq. "Em 1974, a FA­PESP chegou a nos dar uma câmara fotográfica profissional que permitia fazer reproduções em cha­pas planas de 4 x 5 pole­gadas, com altíssima reso­lução", conta. "Além das inúmeras viagens que tive­mos de fazer, devido à dis­persão dos documentos."

Para o pesquisador, a grande contribuição que Imagens de Vilas e Cidades

do Brasil Colonial tem a oferecer à historiografia nacional é introduzir as fontes iconográficas e o planeja­mento urbano como documentos. "Quando estudamos a história do Egito ou da Grécia, sempre levamos em conta a história da arte e da ar­quitetura daqueles povos", diz. "No Brasil, até então, a história só vinha sendo contada por documentos es­critos, principalmente pela herança burocrática portuguesa': continua.

Para ele, que descobre sem-

L5~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ ~ preumupectonowada r: g vez que coloca uma lupa

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~==~~~==~~~~ sobre os desenhos, o que ~ temos pela frente, a partir ~ da pesquisa, é uma nova õ forma de ver a história do 8 " Brasil. Que seja assim. • s 8 ::>

~ PERFIL: g

~----------------------------------jl""·---j ~ • NESTOR GOULART REIS FI-

~ LHO, 69 anos, é graduado em ~ Ciências Sociais pela Facul-, § :; dade de Filosofia, Letras e 2.

Espaço urbano habitado: figuras representando usos e costumes no Brasil, na Índia e em Macau: 1779

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§ Ciências Humanas da USP e :: u em Arquitetura e Urbanis­

mo pela FAU/USP, onde é professor titular de História da Arquitetura e Estética.

HUMANIDADES

ANTROPOLOGIA

A lente de Jean Rouch Vídeo recupera a vida e a obra do antropólogo francês

Aciência, ~o contrário do q~e s: convencwna pensar, nao e

avessa ao imaginário. Jean Rouch que o diga. Aclamado como precursor do cinema-verdade, o antropólogo que buscava, com o olho da câmera, ver além do olhar humano, tem sua má­quina direcionada para si.

Sob coordenação de Sylvia Caiu­by Novaes, o projeto Jean Rouch no Brasil. Subvertendo Fronteiras: Cine­ma e Antropologia, dos alunos de pós-graduação em Antropologia So­cial da USP Ana Lúcia Ferraz, Edgar Teodoro da Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman, é um vídeo que suscita a discussão sobre o uso da imagem na ciência social.

jetos de estudo, mas como sujeitos de uma realidade", comenta. Assim, nada de representação ou cortes.

A visita de Rouch ao Brasil im­pulsionou o trabalho do grupo, antes restrito à discussão. Como partici­pante da 3a Mostra Internacional do Filme Etnográfico, no Cinusp, Rouch reafirmou a importância do cinema como meio de registrar as culturas em via de transformação ou desapa-

Sylvia. Mais uma vez, aparece a rele­vância da oralidade, que, unida às técnicas do plano e som direto por ele implementadas, contribuiu para o nascimento da Nouvelle Vague francesa, que pode ser vista na filmo­grafia de Godard.

Rouch formou-se em engenharia civil no início dos anos 40. Assim que a França foi invadida, durante a 2a Guerra Mundial, ele foi trabalhar na África.

Primeiro, na Nigéria, onde, en­tre a construção de uma ponte e outra, filmou os curtas Les Magi­ciens de Wanzerbe, em 1948, sobre os ritos mágicos, e Circoncision,

um ano depois, sobre um rito de circuncisão de crianças de Hombori, uma aldeia do Mali.

Mas foi no Senegal que, ao ver os ne­gros, que com ele construíam uma ponte, ini-

o o

Ciarem um n-tual ao som de uma trovoada, fez seu filme preferido, Les Maitres Fous,

O documentário, feito a partir de cenas de filmes, entrevistas com o antropólogo e imagens de sua vi­sita ao Brasil, em 1996, recebeu um auxílio para edição da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no valor total de R$ 64 mil.

Rouch na África: usando o candomblé para discutir o colonialismo

em que usou o candomblé pa­ra discutir o co­lonialismo.

"Numa primeira abordagem, Rouch mostra o quanto há de cons­

. trução no que fala um antropólogo e um cineasta e, num segundo mo­mento, usa o cinema para provocar uma reflexão da realidade que, para ele, só é entendida se reconstruída", observa Sylvia.

Não se trata, porém, de uma cri­ação ficcional restrita ao entreteni­mento. A ficção poderia ser usada, desde que como um subsídio à pes­quisa. Por isso, lembra Sylvia, "Rouch propõe a antropologia compartilha­da, em que os personagens não de­veriam ser vistos somente como ob-

recimento. A partir da imagem o antropologista fazia análises estrutu­rais e teóricas .

Seu principal campo de estudo, a África dos anos 50, em processo de li­berdade tardia, é formada por socie­dades da oralidade. Assim, seria o ci­nema a sua representante e não a linguagem escrita, a tese etnológica. "Ele propõe a antropologia visual, compartilhada, para romper as amarras do colonialismo': diz Sylvia.

É a discussão iniciada por Vertov e Flaherty. "Precisava-se criar uma linguagem própria do cinema, disso­ciada da teatral e da literária': afirma

Na década de 60, Rouch, estimu­lado por Edgar Morin, filmou Chro­nique d'un été. O sociólogo propôs a ele que voltasse seu olhar para a própria cultura, a cultura parisien­se. As filmagens, feitas no verão, com a cidade deserta, questionam, por meio de entrevistas, o ideal de felicidade.

Hoje, Rouch, aos 83 anos, conti­nua filmando por Paris. Inveja Ma­noel de Oliveira, cineasta português quase dez anos mais velho do que ele, por estar também em atividade. E começa a ver alguma graça em fil-mes vtswnários. •

PESQUISA FAPESP • HAlO DE 2000 • 53

HUMANIDADES

Mesa de invenções: kits de Física feitos pelo professor da USP Fuad Daher Saad, que quer trazer a ciência para o real

EDUCAÇÃO

Professores de volta à sala de aula Pró-Ciências revê métodos tradicionais de ensino de ciências

Foi há muito tempo, nos tempos do colégio, mas você, com cer­

teza, ainda não se esqueceu da terrí­vel sensação de mal-estar e desespe­ro: o professor preenche todo o espaço da lousa com fórmulas mate­máticas; alguém levanta o braço e pergunta: "Tio, para que serve isso tudo?" E a resposta: "No futuro, na universidade, você vai saber o por­quê". Para não fazer o aluno esperar tanto tempo foi idealizado o Progra­ma de Apoio ao Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio em Matemática e Ciências, o Pró-Ciên­cias, fruto de um convênio entre Ca-

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pes/SEMTC/Secretaria de Estado da Educação e a FAPESP. O projeto, coordenado pela professora MarHia Sposito, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), foi iniciado em 1996 e realizará, de 1 a 3 de junho (na Fundação Universi­tária para o Vestibular, Fuvest, na rua Alvarenga, 1.945/51, Cidade Univer­sitária), a sua II Mostra de Projetos, apresentando ao público os resulta­dos de 52 pesquisas.

"O Pró-Ciências quer investigar novas metodologias de ensino por meio de projetos inovadores que re­pensem a formação dos professores, melhorando o domínio que esses têm dos conteúdos curriculares, pelo contato com os avanços produzidos dentro do espaço universitário", ex­plica Marília. Convidados por um edital da FAPESP, professores das grandes universidades paulistas en-

viaram propostas de cursos para um comitê científico. Os aprovados con­tataram as delegacias de ensino de sua região e estruturaram um pro­grama de aulas para seus colegas da rede pública de ensino. Transforma­dos em alunos, os mestres puderam, então, a partir da apresentação de novas técnicas didáticas, reavaliar como ensinavam seus pupilos.

"Foi uma boa interação entre universidade e comunidade, aproxi­mando os acadêmicos do cotidiano dos professores da rede pública, com programas voltados para a reposição do conteúdo científico precariamen­te absorvido por esses últimos em sua formação universitária", afirma Marília Sposito. "Para o professor universitário, por sua vez, foi um ba­nho de realidade, pois muitos dentre eles não avaliavam o grau de dificul­dade que seus colegas do ensino mé-

dia enfrentavam para dominar os conteúdos e as próprias condições de trabalho", completa a coordenadora do Pró-Ciências.

Um dos entusiastas do Programa Pró-Ciências é o professor Fuad Da­her Saad, do Instituto de Física da USP, coordenador do projeto De­monstrações em Física. "É preciso re­tomar uma visão crítica do ensino e só passar aos alunos o que faça senti­do, que esteja ligado ao real e que ele possa entender por meio da ex­perimentação efetiva e não ape­nas com fórmulas jogadas numa lousa", avisa Saad. Para tanto, em suas aulas, o físico ensinou os professores a usar a criatividade e, com pouco dinheiro, inventar demonstrações das equações e conceitos da Física. Com garra­fas plásticas de refrigerante, ca­nudos, arames, papel usado, vi­dros, etc., Saad desenvolveu kits (descritos em apostilas para os professores repetirem em sala de aula) de experiências que mos­tram fenômenos como eletrici­dade, vácuo, vapor, magnetismo e conceitos de óptica. "Só dessa forma poderemos despertar o interesse pela ciência nos jovens

biente artificial: é melhor dar ao alu­no a capacidade de observar o real, de analisar o grande laboratório que é a natureza, sem custos e de uma ri­queza imensa", defende.

A professora Maria do Carmo Ca­lijuri, do Departamento de Hidráulica de Saneamento da Escola de Enge­nharia de São Carlos (USP), igual­mente foi buscar soluções no meio ambiente. Coordenadora do projeto Educação Ambiental: a Bacia Hidra-

Resposta positiva - ''A avaliação que temos do Programa Pró-Ciências é das mais animadoras, se levarmos em conta a resposta positiva dos professores do ensino médio partici­pantes e pelo grande número de pe­didos para participar de novos cur­sos que recebemos", conta Marília Sposito. "Mas creio que faltou ousa­dia e pensar melhor a concepção de novos métodos e a relação entre pro­fessor-aluno, na medida em que fica­

mos mais voltados para a repo­sição de conteúdos, uma tarefa que monopolizou boa parte dos nossos esforços", reflete a do­cente. Outro ponto que preocu­pa a coordenadora é a restrição dos projetas a áreas específicas do Estado de São Paulo. "Não temos abrangência total e a oferta de cursos concentrou-se em regiões próximas às univer­sidades que ofereciam as aulas, deixando de lado áreas muito carentes, como o Vale do Ribei­ra, muito fracamente atendi­do", revela.

Marília: professores ganharam um banho de realidade

e, ao mesmo tempo, inserir a universidade na comunidade, articulando a competência aca­dêmica com a rede pública, uma troca boa em ambos os senti­dos", avalia.

"Por isso, adverte Marília, é preciso que o Pró-Ciências tenha apoio para uma nova etapa que permita ao programa atender essas regiões e a demanda por mais cursos." Apesar das obser­vações, a coordenadora é otimis­ta sobre os resultados. ''A reper­

Outra defensora dessa interface é a professora Reiko Isuyama, do Insti­tuto de Química da USP, coordena­dora da pesquisa Capacitação em Serviço de Professores de Química do Ensino Médio, também parte do Pró­Ciências. "Isso nos coloca em conta­to com o real e podemos ajudar os professores mostrando a eles que a habilidade de decorar fórmulas é algo sem sentido, pois o importante no ensino das ciências é deixar claro para o aluno que devemos compre­ender a realidade que nos cerca", diz. Em seu projeto, Reiko combate um clichê de longa data. "Não é necessá­rio ter um laboratório caro para aprender Química, pois é um am-

gráfica como Método de Abordagem e Ensino, integrante do Pró-Ciências, Maria do Carmo levou os professores da rede pública para conhecer de per­to sistemas ecológicos e diferentes ecossistemas a fim de que, no futuro, eles conduzissem experiências sobre qualidade de água, etc., em campo com seus alunos. "Eles aprenderam a se posicionar como parte do meio ambiente e não como meros especta­dores, o que tocou as suas sensibilida­des para o problema da preservação dos ecossistemas", conta. "Certamen­te, isso será passado para os jovens, num efeito multiplicador fundamen­tal e que prova a importância de tra­zer a comunidade mais para perto do que se está desenvolvendo nos meios universitários': afirma.

cussão na rede pública foi das mais favoráveis, aproximamos universida­de e comunidade efetivamente e o ponto forte foi, sem dúvida, a inven­tividade dos pesquisadores em criar materiais e experimentos adequados às exigências e carências dos profes­sores da rede pública de ensino mé­dio': afirma a coordenadora.

Marília também espera bons re­sultados da II Mostra de Projetas do Programa Pró-Ciências. "Ela permitirá, como na sua edição an­terior, uma troca intensa entre os vários pesquisadores, permitindo que se conheçam melhor e divul­guem suas experimentações naqui­lo que elas possuem de melhor, for­malizando o caráter inovador do programa", explica. •

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • 55

LIVROS- .·

MARIANGELA ALVES DE LIMA

Um novo papel para o ator Estudo analisa as novas atribuições do intérprete teatral

Por dois séculos a historiografia do teatro ocidental marcou a origem do seu objeto de estudo no momento em que o atar despe o

traje sacerdotal e torna-se porta-voz da consciên­cia crítica disseminada nas composições trágicas e cômicas. Submetia-se à autoridade de Aristóteles situando no passado o cortejo dionisíaco e elegen­do como objeto privilegiado para a reflexão a arte imiscuída na esfera da vida profana da cidade.

É diversa a função que a pólis contemporânea reserva ao intérprete. Por essa razão, torna-se insuficiente a serenidade de uma postura fenomenológica. Pre­so à engrenagem de uma máquina de representação análoga às máquinas de produção de bens de consumo, o intérprete estaria agora destinado a produzir signos-mercadoria. Não pode intuir um devir ou expressar as diferenças porque sacrificou seu corpo singular à repetição.

Corpo do Ato r, livro de Caio Cé­sar Souza Camargo Próchno, (Edi­toraAnnablume/FAPESP) detém-se nessa posição contingente do intér­prete (é o modo de produção capi­talista que a determina) e reivindica uma outra atribuição para o atar contemporâneo. Dando ao assunto um tratamen­to ensaístico, adota uma postura judicativa ao ana­lisar a inserção do atar no sistema capitalista: "Tal seguidor dos favores mercantis esquece e renega as advertências, os gritos e poesias do deus Dioni­so. Talvez não se pudesse considerá-lo um verda­deiro atar, mais parece um mercenário, não mere­ce as investidas do deus-metamorfose, seduziu-se pelo deus-mercadoria, internalizou a barbárie do valor de troca:' (pág. 51).

Para mitigar esse mal-estar histórico, o autor invoca, como o fizeram Nietzsche e outros teóri­cos deste século, a presença mítica de Dioniso. Um inventário dessas poéticas contido no livro as faz convergir para a reivindicação de um teatro sagra-

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do, onde oficia um intérprete-sacerdote. A cara­puça, na verdade, assenta melhor a uns do que a outros. Não dá certo, por exemplo, associar Sta­nislavski e Brecht a um teatro "onde o grito de Dioniso se anuncia desde um tempo imemorial, proveniente de um fundo sem-fundo a contrapor abertamente esse tempo espacializado de produ­ção de quinquilharias ... " (pág. 36).

Não é isento de riscos o clamor pela origem sa­grada. O livro tangencia várias vezes a negação da

história, ao opor às contradições deste tempo um chamamento míti­co alicerçado na pré-história. A im­pressão é de que os gravíssimos pro­blemas de alienação do atar seriam solucionados por uma conversão sincera a uma divindade arcaica.

Bem mais pragmáticos, os atares entrevistados para o livro indicam estratégias para um trânsito razoa­velmente gratificante entre a dualida­de do "simulacro" e da "metamorfo­se': São atares capazes de preservar uma subjetividade que ultrapassa as injunções do mercado de trabalho. E não o fazem sustentados por uma profissão de fé, mas, antes, pelo reco-nhecimento e exploração astuta das

brechas onde é possível enraizar representações ino­vadoras ou realizar prospecções sob velhos e desgas­tados códigos. Ainda não "internalizaram a barbá­rie" e são por isso antagonistas explícitos, além de alternativas viáveis, para a representação narcísica.

O livro desdobra outras questões. A imagem do simulacro é a do corpo "belo, asseado, muscu­loso, sem rugas." Quem a cultua não desejará ver outra coisa no teatro. Quem a produz se recusará à fragilidade e à operosidade. Estarão assim, pú­blico e intérpretes, presos a um círculo anatemati­zado com o rótulo de "prostituição mercenária.

M ARIANGELA ALVES DE LIMA é crítica de teatro.

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f ilosofia da ciência

mario bunge FÍSICA E

FILOSOFIA

Física e Filosofia

Este novo título da prestigiosa Coleção Debates, da Editora Perspectiva, traz uma coletânea de artigos do físico teórico e filósofo da ciência Mario Bunge. Ao longo dos dez densos artigos que compõem este livro, o professor de Lógica e Metafísica da Mc'Gill University,

do Canadá, discute os temas mais delicados da Física, em especial a microfísica. Bunge disseca as questões mais espinhosas com um texto saboroso que mistura teoria e crítica filosófica.

Força e Luz

Um lançamento da Editora Unesp dos mais interessantes. O professor de História Social e pesquisador do Centro de História da Ciência, da USP, Gilda Magalhães, analisa como se deu a relação entre a introdução da eletricidade e a modernização

do Brasil da República Velha. Os resultados são surpreendentes, com respostas a várias indagações contemporâneas, como o porquê de a instalação da eletricidade não ter tido o sucesso de outros países, o que, segundo o autor, é uma das fontes de nosso atraso tecnológico até os dias atuais. Leitura fascinante.

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Psicanálise lacaniana

O tema desta edição da Iluminuras (dentro da coleção Leituras Psicanalíticas) é dos mais árduos, mas Márcio Peter de Souza Leite (diretor geral da Escola Brasileira de Psicanálise) consegue superar, com seu texto claro, que o leitor se perca em meio às divagações

de Lacan. O detalhe importante é que o autor dispôs-se a enfrentar uma platéia de kleinianos para falar, com sucesso, das teorias lacanianas sem que os dois mundos colidissem. Indicado para aqueles que gostariam de adentrar esse universo movediço e complexo, guiados pela mão segura de um especialista.

REVISTAS

Bioplanet

A revista científica chilena (com o subtítulo "Biotecnologia para sus negocias", que pode ser encontrada pelo site www.bioplanet.net) chega ao seu terceiro número, com destaque para uma análise detalhada do estado dos estudos biotecnológicos

no Japão, em que se percebe como a mesma agressividade empresarial nipônica é transferida para esse campo científico. Ainda nesta mesma edição, um artigo sobre os peixes transgênicos e de como a modificação da estrutura genética de salmões pode incrementar o seu crescimento e os benefícios comerciais.

Science

O volume 288 (número 5467), de 5 de maio, da celebrada revista científica traz uma boa surpresa para os cientistas brasileiros. Na seção "News Focus", página 801, deste número, há um longo artigo, assinado por Michael Hagmann, intitulado

carinhosamente de "A Genome Cinderella Story", que trata do bem-sucedido Projeto Genoma Xylella, iniciado em 1997 pela FAPESP. A reportagem conta como foi a escolha da Xylella fastidiosa, a formação da rede ONSA, um consórcio de laboratórios que realizou o seqüenciamento, e o sucesso dos resultados.

História

Eis o primeiro número do segundo ano desta publicação quadrimestral da Imprensa Oficial do Estado em parceria com o Arquivo do Estado (informações sobre assinaturas à Rua Voluntários da Pátria, 596, São Paulo, CEP 02010-000, fone 011 6221-2306). Entre

os vários artigos: uma descrição do funcionamento e dos serviços do Arquivo do Estado; uma matéria sobre os percalços do historiador e suas escolhas profissionais; a apresentação de pesquisas sobre antigas revistas, entre essas a Revista do Brasil, A Cigarra e A Revista Feminina.

PESQUISA FAPESP · MAIO DE 2000 • 57

PAULO CARUSO

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