Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico ... 2013-04 (891-938... · 895 RDS V...

48
RDS V (2013), 4, 891-938 Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português DR.ª MARISA VAZ Sumário: I. Introdução. II. Garantias flutuantes no mundo: 1. Floating Charge – Inglaterra e manifestações na América e na Ásia: 1.1. Inglaterra; 1.2. Macau; 1.3. Brasil; 2. Floating Lien – Article 9 Uniform Commercial Code (UCC) – EUA; 3. Soluções de ordenamentos jurídicos próximos ao português; 3.1. Gage sans Dépossession e Nantissement des Fonds de Commerce – França; 3.2. Prenda sin Desplazamiento – Espanha; 3.3. Privilegio Conven- zionale e Penhor Rotativo – Itália. III. Garantias flutuantes em Portugal: 1. Universo de bens como objecto da garantia: 1.1. Princípio da especialidade; 1.2. Universalidades, coisas compostas, coisas complexas: 1.2.1. Penhor de estabelecimento comercial; 1.3. Objecto fungível, futuro e consumível: 1.3.1. Penhor de valores mobiliários; 1.4. Apreciação crítica; 2. Manuten- ção da posse no exercício da actividade do devedor: 2.1. Penhor civil; 2.2. Penhor mercantil; 2.3. Penhor bancário; 2.4. Apreciação crítica; 3. Garantia flutuante e dinâmica da constituição do direito real de garantia: 3.1. Direito real de garantia: 3.1.1. Em geral – os direitos reais; 3.1.2. Em particular – os direitos reais de garantia; 3.2. Garantia flutuante; 3.3. Apreciação crítica. IV. Conclusão. I. Introdução What would happen if all security rights were suddenly abolished? 1 Equacionar a hipótese do desaparecimento do sistema de garantias poderá suscitar no espírito do jurista e do leitor um sem número de perplexidades, de infindável resolução. No entanto, tomámos a liberdade de iniciar o tema que nos propomos analisar com a questão supra identificada, não para lhe dar resposta directa, mas para reflectir sobre a relevância das garantias no Direito e na comunidade de relações jurídicas, sociais e económicas, e sobre a necessidade de adaptação do sistema de garantias à constante evolução do referido mundo de relações. 1 Questão formulada por R. M. Goode no âmbito de uma conferência a advogados e bancários a que faz referência no seu artigo “The Changing Nature of Security Rights”, in Emerging Financial Markets and Secured Transactions, 1998, 1.

Transcript of Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico ... 2013-04 (891-938... · 895 RDS V...

  • RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    dR.ª MaRisa vaz

    sumário: I. Introdução. II. Garantias flutuantes no mundo: 1. Floating Charge – Inglaterra e manifestações na América e na Ásia: 1.1. Inglaterra; 1.2. Macau; 1.3. Brasil; 2. Floating Lien – Article 9 Uniform Commercial Code (UCC) – EUA; 3. Soluções de ordenamentos jurídicos próximos ao português; 3.1. Gage sans Dépossession e Nantissement des Fonds de Commerce – França; 3.2. Prenda sin Desplazamiento – Espanha; 3.3. Privilegio Conven-zionale e Penhor Rotativo – Itália. III. Garantias flutuantes em Portugal: 1. Universo de bens como objecto da garantia: 1.1. Princípio da especialidade; 1.2. Universalidades, coisas compostas, coisas complexas: 1.2.1. Penhor de estabelecimento comercial; 1.3. Objecto fungível, futuro e consumível: 1.3.1. Penhor de valores mobiliários; 1.4. Apreciação crítica; 2. Manuten-ção da posse no exercício da actividade do devedor: 2.1. Penhor civil; 2.2. Penhor mercantil; 2.3. Penhor bancário; 2.4. Apreciação crítica; 3. Garantia flutuante e dinâmica da constituição do direito real de garantia: 3.1. Direito real de garantia: 3.1.1. Em geral – os direitos reais; 3.1.2. Em particular – os direitos reais de garantia; 3.2. Garantia flutuante; 3.3. Apreciação crítica. IV. Conclusão.

    i. Introdução

    “What would happen if all security rights were suddenly abolished?1” equacionar a hipótese do desaparecimento do sistema de garantias poderá suscitar no espírito do jurista e do leitor um sem número de perplexidades, de infindável resolução. no entanto, tomámos a liberdade de iniciar o tema que nos propomos analisar com a questão supra identificada, não para lhe dar resposta directa, mas para reflectir sobre a relevância das garantias no direito e na comunidade de relações jurídicas, sociais e económicas, e sobre a necessidade de adaptação do sistema de garantias à constante evolução do referido mundo de relações.

    1 Questão formulada por R. M. Goode no âmbito de uma conferência a advogados e bancários a que faz referência no seu artigo “The Changing Nature of Security Rights”, in Emerging Financial Markets and Secured Transactions, 1998, 1.

  • 892

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    o tema das Garantias Flutuantes apresenta escasso desenvolvimento no direito Português, ao contrário do que acontece noutros ordenamentos jurídi‑cos estrangeiros que têm apresentado diferentes soluções para a problemática da conciliação do sistema de garantias mobiliárias com a evolução do mercado e das relações jurídicas subjacentes.

    em termos muito gerais, o problema a que se tentará dar uma resposta satis‑fatória prende‑se com a possibilidade de constituição de uma garantia sobre bens móveis de natureza circulante, como é o caso de matérias‑primas, produtos inter‑médios na cadeia produtiva, produtos finais, os denominados stocks e produtos de inventário, que constituem a fonte de geração de riqueza dos devedores e, como tal, instrumento essencial para o desenvolvimento da actividade do devedor.

    atendendo a que o penhor constitui a garantia que mais se adequa à figura em estudo tendo em consideração o seu objecto, identificam‑se, à partida, um con‑junto de problemas relacionados com as características da garantia real prevista nos artigos 666.º e seguintes do código civil (cc), nomeadamente a possibilidade de constituição de penhor sobre um conjunto de bens em constante alteração, os obs‑táculos criados pela necessidade de desapossamento dos bens garantidos, a própria dinâmica da constituição do direito real, que é estranha à dilação existente entre a constituição da garantia e a determinação dos bens que responderão pela dívida.

    com o presente trabalho, pretendemos, num primeiro momento, olhar para os sistemas jurídicos estrangeiros, identificando as respostas apresentadas para os problemas levantados e, num segundo momento, equacionar a validade de uma garantia flutuante no sistema jurídico português, tomando como ponto de referência o regime do penhor e as suas diferentes modalidades e abordando a disciplina dos direitos reais de garantia, em confronto com as soluções apresentadas nos ordenamentos jurídicos mais próximos.

    ii. Garantias flutuantes no mundo

    1. Floating Charge – Inglaterra e manifestações na América e na Ásia

    1.1. Inglaterra

    originária da segunda metade do século XiX, a floating charge constituiu uma resposta da equity inglesa ao problema da rigidez no seio do sistema jurídico das garantias e aos constantes desenvolvimentos do tráfego comercial2.

    2 cf. R. M. Goode, “The English Floating Charge”, in Lectures on the Common Law, vol. 2, Klumer Law and taxation Publishers, 1989, 54‑55; enrico Gabrielle e G. andrea danese, “Le Garanzie

  • 893

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    Face às características dos três tipos de garantias reais consensuais existentes no ordenamento jurídico inglês – pledge, mortgage e charge3 –, facilmente se chegou à conclusão da inadequação do regime das referidas garantias para casos em que, pela natureza das coisas, os bens susceptíveis de constituir objecto de garantia não pudessem deixar de estar na posse do devedor para garantir a continuação da sua actividade (e, portanto, a continuação da geração de riqueza e dos recursos necessários para prover ao cumprimento das suas obrigações), e apresentassem uma natureza circulante e não estática que implicasse uma constante alteração do património dado em garantia4.

    a floating charge surgiu, então, em resultado do esforço da praxis comercial e da jurisprudência dos tribunais ingleses. destaque‑se, a este respeito, o caso Re Panama, New Zealand and Australian Royal Mail Co. (1870), em que se reconheceu ao devedor a liberdade de dispor do complexo de bens garantidos até ao momento da consolidação da garantia sobre todos os bens da empresa, e o caso Re Yorkshire

    sui Beni dell’Impresa: Profili della Floating Charge nel Diritto Inglese”, in Banca Borsa e Titoli de Credito, Rivista di Dottrina e Guirisprudenza, anno Lviii, fasc. v, Parte Prima, set.‑out., 1995, 632‑639.3 até então, o sistema de garantias inglês era caracterizado por quatro tipos de garantias convencionais: contractual lien, pledge, mortgage e charge. no entanto, apenas as três últimas constituíam um direito real sobre os bens dados em garantia, razão pela qual nos deteremos na análise das referidas garantias. o pledge era uma garantia possessória (uma vez que implicava a traditio dos bens dados em garantia do devedor para o credor) que atribuía ao credor o dever de conservar os bens até ao cumprimento da obrigação e, em caso de incumprimento, o direito de alienar os bens garantidos para satisfazer o seu crédito. Por seu turno, a mortgage implicava a transmissão da propriedade do bem garantido para o credor, com o acordo, expresso ou tácito, de se proceder à retransmissão da propriedade para o devedor em caso de cumprimento da obrigação. Por fim, diferentemente das duas garantias referidas, a charge, prescindindo da traditio ou da transmissão da propriedade, constituía um acordo entre o devedor e o credor pelo qual o segundo adquiria uma preferência na satisfação do crédito em caso de incumprimento do devedor, em relação aos restantes credores quirografários. esta garantia apenas poderia ser constituída (attached) sobre bens determinados ou determináveis, existentes no património do devedor, e impunha, sobre o devedor, o dever de não dispor dos bens nem de os onerar, sem o prévio consentimento do credor. cf. R. M. Goode, “The English Floating Charge”, op. cit., 52‑54; Gian Bruno Bruni, “La Garanzia ‘Fluttuante’ nell’Esperienza Guiridica Inglese e Italiana”, in Banca Borsa e Titoli de Credito, Rivista di Dottrina e Guirisprudenza, anno XLiX, fasc. v, Parte Prima, novembre‑dicembre, 1986, 692‑693; Michael G. Bridge, “The English Law of Real Security”, in European Review of Private Law, vol. 10, n.º 4, 2002, 486‑487; Joana Forte Pereira dias, “Mecanismos Convencionais da Garantia do Crédito: Contributo para o Estudo da Garantia ‘Rotativa’ mobiliária no Ordenamento Jurídico Português”, dissertação de Mestrado em ciências Jurídicas sob a orientação do senhor Professor doutor antónio Menezes cordeiro, Faculdade de direito de Lisboa, 2005, 64.4 Bens como matérias‑primas, maquinaria, outros bens de produção, bens de inventário, e outros bens circulantes, bem como todo o património do devedor, não poderiam ser dados em garantia sem implicar a paralisação da actividade do devedor e, consequente e inevitavelmente, a sua insolvência.

  • 894

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    Woolcombers Association (1903), no qual se reconheceu definitivamente a figura, definindo‑se as suas características essenciais e típicas: (i) trata‑se de uma garan‑tia sobre um conjunto ou sobre todos os bens da empresa presentes e futuros; (ii) conjunto ou totalidade que, “in the ordinary course of business of the company”, se encontram em constante alteração; (iii) e, até a um certo momento determinado pelas partes, a empresa pode continuar a desenvolver a sua actividade nos termos normais, tanto quanto ao conjunto de bens diz respeito5, característica esta que, em Jurisprudência posterior6, se considerou como “the hall mark of a floating charge and serves to distinguish it from a fixed charge”7.

    Passando para a dinâmica da garantia, saliente‑se que o fenómeno da flutuação do direito real8 sobre os bens garantidos é caracterizado por dois momentos distintos: o primeiro, em que os bens são livremente dispostos pelo devedor, sem quaisquer ónus, e em que os bens adquiridos passam a estar sob uma “auréola de realidade” que paira sobre os bens identificados no contrato de constituição de garantia e que caibam no âmbito da actividade do devedor; o segundo, a crystallisation dos bens exis‑tentes no património do devedor, que corresponde ao momento da consolidação da garantia (ao attachment, à constituição efectiva do direito real sobre os bens) e que está dependente da verificação de determinado evento, como o incumprimento, a cessação da actividade do devedor, a nomeação de um administrative receiver9 ou

    5 Re Yorkshire Woolcombers Association (1903) 2 CH. 284,at 295, apud stephen atherton e Rizwaan Jameel Mokal, “Charges over Chattels – Issues in the Fixed/Floating Jurisprudence”, disponível em www.ssrn.com, 1.6 caso Agnew v Commissioners of Inland Revenue [2001] 2 AC 710 (“Brumark”), caso Re Cosslett (Contractors) Limited [1998] Ch 495, 510C-D, caso Brumark [2001] 2 AC 710, 721H-722A, [19], caso Smith administrator of Cosslett (Contractors) v Bridgend County Borough Council [2002] 1 AC 336, 353, [41], apud stephen atherton e Rizwaan Jameel Mokal, op. cit., 2.7 e. P. ellinger, e. Lomnicka e R. J. a. Hooley, “Ellinger’s Modern Banking Law”, Fourth edition, 2006, 783: “Thus it is degree of control which the charge obtains over the revolving property, or its corollary, the freedom the chargor retains to deal with the property and remove it from the charge, that is the main determinant whether the charge is fixed or floating”. sobre a dificuldade de distinção das duas figuras, cf. Rizwaan Jameel Mokal, “The Floating Charge – an Elegy”, in Commercial Law and Commercial Practice, 2003, disponível em www.ssrn.com, 12‑14.8 ilustrado por R. M. Goode com recurso à seguinte imagem: “(…) During this period the charge hovers like a cloud over all the assets for the time being owned by the company which are within the description in the charge. If the chill winds of insolvency blow, and the company’s management powers are withdrawn, the could crystallizes into rain and ice which descend upon and freeze the collection of assets then held or later acquired by the debtor company (…)”, R. M. Goode, “The English Floating Charge”, op. cit., 55.9 Pessoa nomeada pelo credor para administrar a empresa devedora até ao pagamento final da dívida. cf. enrico Gabrielle e G. andrea danese, op. cit., 652.

  • 895

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    qualquer outro evento determinado pelas partes10. no momento da consolidação, a floating charge transforma‑se em fixed charge, concorrendo para a satisfação do crédito com preferência sobre os credores comuns.

    trata‑se de um sistema sem paralelo no ordenamento jurídico português, conforme teremos oportunidade de verificar.

    no que à preferência diz respeito, verifica‑se que uma das limitações da con‑sagração desta garantia está relacionada com o seu grau de satisfação no confronto com outros credores garantidos11. atendendo a que, num primeiro momento, os bens dados em garantia não se encontram onerados, podendo ser transmitidos no curso normal do comércio, a constituição de uma fixed charge durante esse período e sobre esses bens prevalecerá sobre a floating charge, independentemente da data da sua constituição. Prevalecerão, igualmente, os créditos detidos por credores privilegiados, independentemente também da data de constituição da garantia e da cristalização da floating charge12. verificando‑se um conflito entre duas garantias flutuantes, prevalecerá aquela cujo registo de constituição tenha data anterior.

    atendendo à fragilidade da preferência desta garantia, é comum a inclusão de cláusulas negative pledges nos contratos de garantia, constituindo‑se o devedor na obrigação de não dar em garantia outros direitos reais de que seja titular, a partir da celebração do contrato13.

    Por fim, importa fazer uma breve referência à forma e ao registo. a floating charge é uma garantia não formal sujeita a registo, o que bem se compreende pelo facto de não implicar um desapossamento ou um controlo efectivo por parte do credor sobre os bens dados em garantia. não se trata de um registo constitutivo mas de uma mera condição de oponibilidade a terceiros14. o registo é feito no Company Registry, mediante acto escrito do qual resulte a vontade de constituição de uma floating charge e com a descrição dos bens compreendidos na classe dos bens garan‑tidos. no caso dos bens que se encontrem sujeitos a outras obrigações registais,

    10 a cristalização poderá ocorrer de forma automática ou semi‑automática. no primeiro caso, a cristalização ocorre assim que se verificar um dos eventos determinados pelas partes no contrato de garantia, sem necessidade da prática de qualquer acto por parte do credor. no segundo caso, é necessária a notificação do devedor com indicação de que a garantia se cristalizou nos bens existentes no seu património. cf. Michael G. Bridge, op. cit., 492.11 Havendo quem defenda a fragilidade desta garantia e a sua eventual exclusão no cômputo das garantias, Rizwaan Jameel Mokal, “The Floating Charge – an Elegy”, op. cit., 1 ss.12 artigo 176za do insolvency act 1986; enrico Gabrielli e G. andrea danese, op. cit., 658; Michael G. Bridge, op. cit., 494 e 495.13 cf. Michael G. Bridge, op. cit., 492‑493; e. P. ellinger, e. Lomnicka e R. J. a. Hooley, op. cit., pp.783‑784. Para um estudo compararístico sobre as cláusulas negative pledges, antónio Menezes cordeiro, “Negative Pledge: um estudo comparatístico”, in O Direito, ano 142.º (2010), iii, 497‑538.14 sealey, “Company Law and commercial reality”, London, 31 ss, apud Gian Bruno Bruni, op. cit., 699, nota 44.

  • 896

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    deverão as partes igualmente proceder ao registo nos respectivos Registos Públicos (é o caso dos aviões, barcos, direitos de propriedade intelectual e bens imóveis)15.

    ainda que inúmeros países dos vários continentes tenham adoptado a figura em análise ou garantias com características muito semelhantes16, destacaremos dois ordenamentos jurídicos que nos são próximos, histórica e afectivamente: Macau e Brasil.

    1.2. Macau

    o código comercial de Macau (ccM)17 adoptou a figura da garantia flu‑tuante e regulou‑a nos seus artigos 928.º a 941.º, em termos muito semelhantes à floating charge.

    nos termos do n.º 1 do artigo 928.º do ccM, “garantia flutuante é aquela que versa sobre todos ou parte dos bens, exceptuados os imóveis, que estejam ou venham a estar afectados ao exercício de uma empresa, e cujos efeitos ficam suspensos até ao momento em que, verificado o fundamento previsto na lei ou no contrato, o credor provoque a consolidação da garantia”, sendo permitido ao devedor que disponha e onere os bens que cabem no âmbito do exercício da sua actividade, podendo as partes estabelecer restrições aos referidos poderes (artigo 933.º do ccM).

    Prevê‑se a constituição de uma garantia mobiliária apenas para garantir obri‑gações contraídas no exercício do comércio (artigo 929.º do ccM), exigindo‑se a forma escrita para a sua constituição (artigo 928.º, n.º 2 e artigo 930.º, n.º 1, ambos do ccM)18, com as menções obrigatórias previstas no artigo 932.º 19 do ccM e a inscrição no registo comercial ou no registo competente (de acordo

    15 Michael G. Bridge, op. cit., 499.16 de que são exemplo escócia, República checa, Rússia, Japão, sri Lanka, Índia, Malásia, cf. George L. Fretton, “Mixed Sistems: Scotland”, in Emerging Financial Market Transactions, 1998, 286‑289; Barbara adamkova, “Protection of Creditors by the English Fixed and Floating Charge as Compared to the Czech Encumbering Charge over Business”, ceU e td collection, 2010; alexei zevrev, “Securities Issues under Russian Law”, in Emerging Financial Market Transactions, 1998, 298‑299; Masao Yanaga, “The Japanese Approach”, in Emerging Financial Market Transactions, 1998, 334‑337; sonali abeyratne, ”Enforcing Security in India, Sri Lankan and Malaysia”, in Emerging Financial Market Transactions, 1998, 346‑347, 349, 358.17 aprovado pelo decreto‑Lei n.º 48/99/M, de 3 de agosto de 1999, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2000, de 27 de abril de 2000, e pela Lei n.º 16/2009, de 10 de agosto de 2009. 18 com reconhecimento presencial de assinaturas, salvo se outra forma for exigida de acordo com a natureza dos bens.19 o referido preceito prevê a necessidade de inclusão dos seguintes elementos no acto escrito, sob pena de nulidade: identificação do empresário e do credor; identificação da empresa ou da parte da empresa sobre a qual incide; montante da dívida ou elementos que permitam a sua determinação; lugar e data de pagamento.

  • 897

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    com o tipo de bem), para que se produzam os seus efeitos (artigo 930.º, n.º 2, do ccM). a oponi bilidade a terceiros está dependente do registo da notificação da consolidação prevista no artigo 934.º do ccM (equivalente à crystallisation da floa-ting charge e um dos aspectos particulares do regime) no mesmo registo comercial (artigo 930.º, n.º 3, do ccM).

    a consolidação concretiza‑se no momento em que a garantia deixa de recair sobre parte ou o conjunto dos bens do património do devedor, assumindo a fun‑ção de penhor ou de hipoteca relativamente a cada bem que, naquele momento, esteja compreendido no acervo de bens do devedor (artigo 936.º do ccM), e pode ter subjacentes os seguintes fundamentos: pagamento não pontual das pres‑tações [artigo 923.º, n.º 1, al. c), do ccM]; dissolução ou liquidação do empresário comercial ou pessoa colectiva; verificação de qualquer dos motivos de declaração de insolvência do empresário; cessação do exercício da empresa por parte do garante, salvo nos casos de transmissão da empresa. verificada a consolidação de uma garantia flutuante, os restantes credores podem proceder à consolidação das suas garantias, nos termos do artigo 939.º do ccM.

    no que à preferência diz respeito, refira‑se que a concorrência entre garantias flutuantes se resolve pela prioridade da respectiva inscrição no registo comercial, e não pela prioridade da respectiva consolidação (artigo 940.º do ccM).

    1.3. Brasil

    o direito Brasileiro prevê, igualmente, uma forma de garantia flutuante na Lei das sociedades anônimas, aprovada pela Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

    as debêntures são valores mobiliários representativos de uma fracção de um empréstimo, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 6385, de 7 de dezembro de 197620, emitidos por sociedades anónimas, que têm a sua origem na celebração de um contrato de mútuo entre a entidade emissora e os debenturistas e que confere a estes últimos um direito de crédito sobre a primeira nos termos e condições definidas na escritura de emissão21.

    nos termos do artigo 58.º da Lei das sociedades anônimas, podem identifi‑car‑se quatro espécies de debêntures: as debêntures com garantia real, com garantia flutuante, sem preferência ou subordinadas.

    nos termos do § 1.º do mencionado preceito, as debêntures flutuantes asseguram a constituição de um privilégio geral sobre o activo da sociedade emissora, não impedindo a negociação dos bens que compõem o referido activo. está prevista

    20 Regula o Mercado de valores Mobiliários e criou a comissão de valores Mobiliários.21 associação nacional das instituições de Mercado Financeiro, “Debêntures”, estudos especiais, Produtos de captação, 2008.

  • 898

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    a possibilidade de criação de cláusulas de inalienabilidade no § 5.º: “a obrigação de não alienar ou onerar bem imóvel ou outro bem sujeito a registro de propriedade, assumida pela companhia na escritura de emissão, é oponível a terceiros, desde que averbada no com-petente registro”22.

    nos termos do § 3.º, “as debêntures com garantia flutuante de nova emissão são preferidas pelas de emissão ou emissões anteriores, e a prioridade se estabelece pela data da inscrição da escritura de emissão; mas dentro da mesma emissão, as séries concorrem em igualdade”, ocupando o quinto lugar na lista de credores com preferência (artigo 83.º, v da Lei n.º 11.101/200523).

    2. Floating Lien – Article 9 Uniform Commercial Code (UCC) – EUA

    o article 9.º do UCC24 consagrou um regime das garantias mobiliárias em termos globais, cabendo na sua regulamentação todos os contratos em que se determine uma função de garantia adstrita a certos bens móveis, havendo quem o considere como a lei geral das garantias mobiliárias25.

    ao contrário da solução identificada pelo ordenamento jurídico inglês, o legislador norte‑americano considerou a compatibilidade entre a constituição de uma garantia sobre bens determinados ou determináveis, equivalente à fixed charge inglesa, protegendo os interesses dos credores, e a permissão concedida ao devedor para dispor dos bens no decurso da sua actividade sem interferência do credor26, evitando dessa forma as desvantagens da consagração de uma garantia com as características da floating charge, que “ fails to give the chargee adequate control over assets covered by the charge”27.

    22 colocando a questão sobre a extensão da cláusula a todo o património, implicando uma exclusão da liberdade de disposição dos activos e respondendo afirmativamente, décio alexandre várzea correia, “O floating charge no contexto da harmonização do direito”, in Estudos sobre Incumprimento do Contrato, coordenação de Maria olinda Garcia, 2011, 232.23 Regula a Lei de Falências e de Recuperação de empresas Brasileira.24 “(…) Modelo mais inovador no Direito Comparado relativamente às garantias das obrigações”, Luís Manuel teles de Menezes Leitão, “O Artigo 9 do Uniform Commercial Code e a sua Aptidão como Modelo de Uniformização do Sistema de Garantias”, in Boletim da Faculdade de direito de coimbra, n.º 85, 2009, 679.25 Luís Rojo ajuria, “Las garantias mobiliárias (Fundamentos del Derecho de Garantías Mobiliarias a la luz de la experiencia de los Estados Unidos de América), in Anuario de Derecho Civil, t.42, n.º 3 ( Julio‑septiembre 1989), 1989, 727 ss.26 R.M. Goode, “The English Floating Charge”, op. cit., 59 e 60.27 G. Gilmore, “Security Interests in Personal Property” (Boston and toronto, 1965), para. 11.7, apud e. P. ellinger, e. Lomnicka e R. J. a. Hooley, op. cit., 783.

  • 899

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    a referida compatibilidade vem vertida nas secções 20428 e 20529 do article 9.º do Ucc, as quais prevêem, respectivamente, a possibilidade de constituição de uma garantia sobre bens ou direitos futuros e a permissão concedida ao devedor de usar e dispor dos bens dados em garantia.

    desta forma, o ordenamento jurídico norte‑americano prevê a possibilidade de o objecto original da garantia (bens certos e determinados) ser alterado com o decurso do tempo e de acordo com as necessidades da actividade desenvolvida pelo devedor, sem necessidade de celebração de novas garantias ou de alteração dos security agreements. a garantia consolidar‑se‑á sobre os bens ou direitos que forem sendo adquiridos pelo devedor30, desde que respeitados os requisitos previstos na secção 20331. a garantia considerar‑se‑á, também, e automaticamente, perfeita quando for feito o registo do financing statement, com a indicação da descrição dos bens ou direitos que se devem enquadrar na classe objecto da actividade do devedor e com a indicação das partes32.

    3. Soluções de ordenamentos jurídicos próximos ao português

    3.1. Gage sans Dépossession e Nantissement des Fonds de Commerce – França

    em 2006, o legislador francês, confrontado com o problema da rigidez do sistema de garantias mobiliárias face à realidade económica, introduziu uma reforma significativa no âmbito do direito das Garantias, optando por generalizar o penhor sem desapossamento.33

    28 cf. Ucc § 9‑204 (1): “Except as otherwise provided in subsection (2), a security agreement may create or provide for a security interest in after-acquired collateral”.29 cf. Ucc § 9‑205 (1): “A security interest is not invalid or fraudulent against creditors solely because of either of the following: (a) The debtor has the right or ability to do one or more of the following: (i) Use, commingle, or dispose of all or part of the collateral, including returned or repossessed goods; (ii) Collect, compromise, enforce, or otherwise deal with collateral; (iii) Accept the return of collateral or make repossessions; (iv) Use, commingle, or dispose of the proceeds; (b) The secured party fails to require the debtor to account for proceeds or replace collateral.30 Peter Winship, “Selected Security Interest in the United States”, in Emerging Financial Markets and a Secured Transactions, 1998, 271.31 Ucc 203 (1): “A security interest attaches to collateral when it becomes enforceable against the debtor with respect to the collateral, unless an agreement expressly postpones the time of attachment.”32 Peter Winship, ibidem.33 em 2006, com a entrada em vigor da Ordonnance n.º 2006-346 du 23 mars 2006, o Code Civil sofreu alterações significativas ao nível das garantias mobiliárias, eliminando a tensão existente entre um código civil que se mantinha fiel à tradição romanística do penhor com desapossamento e as sucessivas criações de garantias mobiliárias especiais não possessórias que, pela grande aplicabilidade prática, contribuíam para um constante desvanecimento da regra geral. o Code Civil operou uma

  • 900

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    Pese embora não afaste o “gage avec dépossesion”, o qual continua a caber no âmbito dos seus artigos 2333.º e 2337.º34, o Code Civil consagra, nos seus arti‑gos 2336.º a 2338.º, duas normas essenciais para a compreensão das alterações introduzidas em 2006: a primeira traduz‑se na exigência única e simples de um documento que contenha a indicação da data da constituição da garantia, a quan‑tidade de bens garantidos, bem como a sua espécie e a sua natureza, para que a garantia se considere perfeita, eliminando, dessa forma, a traditio como elemento constitutivo do “gage”; a segunda, constante nos dois artigos seguintes, consagra a possibilidade de proceder ao registo do “gage” como forma de oponibilidade dos efeitos da garantia a terceiros.

    desta forma, o legislador francês determinou que a traditio já não constitui uma condição de validade do gage, mas sim, meramente, da sua oponibilidade a tercei‑ros, e que essa mesma oponibilidade é assegurada quer pelo desapossamento, quer pela publicidade registal agora permitida35. no que diz respeito à sua constituição, o contrato de gage deixou de ser um contrato real para passar a ser consensual36.

    Permite‑se, igualmente, o gage de bens futuros (artigo 2333.º do Code Civil), bem como a possibilidade de alienação de bens fungíveis, com a condição de os subs‑tituir pela mesma quantidade de coisas equivalentes (artigo 2342.º do Code Civil)37.

    no que diz respeito ao gage commercial, ao qual se aplica o regime geral do gage commun, saliente‑se a criação de uma nova garantia, denominada gage de stocks38, prevista no artigo L. 527 do Code de Commerce. Permite‑se a constituição de uma garantia sobre “les stocks de matières premières et approvisionnements, les produits

    generalização do gage sans dépossession, alterando todo o regime comum do gage consagrado nos artigos 2333.º a 2350.º do Code, e clarificou a terminologia no âmbito das garantias pignoratícias, atribuindo a qualificação de gage às garantias constituídas sobre bens móveis corpóreos e de nantissement às garantias sobre bens móveis incorpóreos. cf. christian Gavalda e Jean stoufflet, “Droit Bancaire – Institution – Comptes – Opérations – Services”, 8ème édition, 2010, 593; Francesca Fiorentini, “La Riforma Francese delle Garanzie nella Prospettiva Comparatistica”, in Europa e diritto privato, Rivista trimestral, n.º 3, 2006, 1171‑1173.34 artigo 2333.º do Code Civil: “Le gage est une convention par laquelle le constituant accorde à un créancier le droit de se faire payer par préférence à ses autres créanciers sur un bien mobilier ou unensemble de biens mobiliers corporels, présents ou futurs” (…); artigo 2337.º do Code Civil: “Le gage est opposable aux tiers par la publicité qui en est faite. Il l’est également par la dépossession entre les mains du créancier ou d’un tiers convenu du bien qui en fait l’object. (…)”.35 christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 593‑594 e 595.36 christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 596; Francesca Fiorentini, op. cit., 1174.37 admitindo a substituição dos bens sem a constituição de uma nova garantia, christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 594; v. stéphane torck, “Les garanties réelles mobilières après l’Ordonnance du 23 mars 2006 relative aux sûretés”, in Revue de Droit Bancaire et Financier, Juill.‑août 2006, 39. admitindo um género de penhor rotativo, Francesca Fiorentini, op. cit., 1176.38 sobre o gage des stocks, Francesca Fiorentini, op. cit., 1177‑1178; christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 596.

  • 901

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    intermédiaires, résiduels et finis ainsi que les marchandises appartenant au débiteur et estimés en nature et en valeur à la date du dernier inventaire” (à excepção dos bens sujeitos a reserva de propriedade) pertencentes a uma pessoa colectiva de direito privado ou a uma pessoa singular no desenvolvimento da sua actividade profissional (L. 527‑1 e 3 do Code de Commerce).

    a sua validade está dependente do respeito pelos requisitos formais previstos no artigo L. 527‑1 do Code de Commerce, devendo o acto constitutivo do gage ser formulado por escrito com as seguintes menções: denominação de “acte de gage dês stocks”; designação das partes; menção da submissão dos actos aos artigos L. 527‑1 a 11 do Code de Commerce; nome da seguradora que assume o risco em caso de incêndio ou de destruição; designação do crédito garantido; descrição que permita identificar os bens presentes e futuros dados em garantia, a sua natureza, qualidade, quantidade e valor, bem como a indicação do lugar de conservação; e a duração do penhor. encontra‑se, igualmente, dependente da inscrição do gage num registo público (L. 527‑4 do Code de Commerce).

    salientem‑se dois aspectos relevantes do regime: (i) sub‑rogação real do objecto da garantia, prevista no artigo L. 527‑5 do Code de Commerce, ao longo da vigência do gage, podendo o credor fiscalizar o estado dos bens dados em garantia a qualquer momento; (ii) obrigação que recai sobre o devedor de manter um conjunto de bens à disposição do credor e de não contribuir para a diminuição do seu valor (em caso de diminuição da garantia em 20% do seu valor, o credor pode exigir que o devedor restabeleça o valor total da garantia ou que o indem‑nize pela perda, ou, em caso de incumprimento, a restituição total da garantia e o recurso à via judicial, nos termos gerais – L. 527‑7 e 10 do Code de Commerce).

    Por fim, resta fazer uma breve referência aos nantissements, que podem ser definidos como o vínculo de garantia sobre um bem móvel incorpóreo, ou um conjunto de bens móveis incorpóreos, presentes ou futuros39, como é o caso dos nantissements de créance, nantissements de compte, nantissements d’espèces, nantissements de valeurs mobilières et d’instruments financiers e nantissements de fonds de commerce40.

    39 Francesca Fiorentini, op. cit., 1178.40 no caso do nantissement de fonds de commerce, e atendendo à comum comparação com a floating charge, refira‑se, apenas, que se trata de uma garantia formal e sujeita a registo, constituída sobre “l’enseigne et le nom commercial, le droit au bail, la clientèle et l’achalandage, le mobilier commercial, le matériel ou l’outillage servant à l’exploitation du fonds, les brevets d’invention, les licences, les marques, les dessins et modèles industriels, et généralement les droits de propriété intellectuelle qui y sont attachés” (L. 142‑2 do Code de Commerce), excluindo‑se as mercadorias, atendendo à susceptibilidade de criação de conflitos entre o credor garantido e terceiros adquirentes. esta exclusão bem se compreende atendendo à consagração da modalidade de gage de stocks. também neste caso, a lei não exige o desapossamento para a validade e eficácia da garantia, podendo o devedor desenvolver a sua actividade comercial. o registo é feito na secretaria do tribunal de comércio do lugar onde o estabelecimento é

  • 902

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    3.2. Prenda sin Desplazamiento – Espanha

    o legislador espanhol, por sua vez, face à rigidez do regime da prenda previsto nos artigos 1863.º e seguintes do cc espanhol, optou pela criação de um diploma especial que colmatasse as lacunas reveladas pelo regime comum da hipoteca e do penhor no confronto com a realidade económica: a Ley de 16 de diciembre de 1954 de la Hipoteca Mobiliária y de la Prenda sin Desplazamiento de Posesión41 (Ley).

    a hipoteca mobiliária e a prenda sin desplazamiento são duas garantias reais sobre bens móveis susceptíveis de alienação (art. 1.º da Ley) que diferem quanto à natu‑reza e qualidade do seu objecto42. ambas se constituem por escritura pública43 e exigem o registo público44. em qualquer um dos casos, o devedor poderá alienar os bens garantidos, desde que, para tanto, tenha o consentimento do credor, nos termos do artigo 4.º da Ley. no que diz respeito à preferência, regem para ambas as normas dos artigos 1922.º, n.º 245, e 1926.º, n.º 146 do cc espanhol (artigo 10.º da Ley).

    explorado pelo devedor. ao credor, é atribuída protecção em caso de alienação da totalidade do fonds de commerce, nos termos dos artigos L.143‑1 ss. do Code de Commerce, consubstanciando um verdadeiro droit de suite. a figura acabada de explanar apresenta contornos semelhantes ao nosso penhor de estabelecimento comercial, a que faremos referência.41 com as alterações introduzidas pela Ley n.º 1/2000, de 7 de enero, Ley n.º 22/2003, de 9 de julio, Ley n.º 41/2007, de 7 de diciembre, e Ley n.º 13/2009, de 3 de noviembre.42 nos termos do artigo 12.º da Ley, apenas podem ser sujeitos a hipoteca mobiliária o estabelecimento comercial; automóveis ou outros veículos a motor, bem como veículos eléctricos ou vagões de comboio de propriedade particular; aeronaves; maquinaria industrial; a propriedade intelectual e industrial. Por seu turno, a prenda sem desapossamento pode ser constituída sobre outros bens móveis identificados nos artigos 52 a 54 da Ley, com exclusão dos bens sujeitos a hipoteca imobiliária, como sejam produtos e produções agrícolas; animais, suas crias e produtos; máquinas e utensílios utilizados nas produções; outras máquinas e bens móveis identificáveis; matérias‑primas e mercadorias armazenadas; colecções de objectos de valor artístico e histórico, como quadros, esculturas, porcelanas ou livros; créditos ou outros direitos que correspondam a titulares de contratos, licenças, concessões ou subvenções administrativas sempre que a lei ou título constitutivo autorizem a sua alienação a terceiros. no entanto, poderão ser objecto quer de hipoteca mobiliária quer de prenda sin desplazamiento contas correntes e letras de câmbio, nos termos do artigo 7.º da Ley.43 artigo 3.º da Ley. Refira‑se que a prenda sin desplazamiento também pode ser constituída por ”póliza intervenida por Agente de Cambio y Bolsa o Corredor de Comercio colegiado”, quando se trate de operações bancárias ou qualquer um dos pressupostos do artigo 93.º do Código de Comercio (referente aos Agentes Mediadores del Comercio).44 artigos 67.º ss. da Ley: a publicidade é feita mediante inscrição no Diario de Hipoteca y de Prenda sin desplazamiento de posesión e nas Inscripciones de Hipoteca Mobiliaria e Inscripciones de Prenda sin desplazamiento de posesión, bem como em registos especiais, atendendo à natureza dos bens.45 trata‑se da equiparação à prenda civil, para efeitos de preferência.46 estabelece como limite o valor dos bens necessário à satisfação do crédito.

  • 903

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    no que à prenda sin deplazamiento em particular diz respeito, esta pode ser definida como “una garantia que recae sobre cosas muebles no susceptibles de hipoteca mobiliária, ‘por su imperfecta identificación registral’, que han de permanecer situadas en un lugar determinado, en poder de su dueño y en concepto de depósito, de tal modo que, incumplida la obligación asegurada, el Acreedor puede proceder a su venta y cobrarse com su precio”47.

    a sua validade está dependente da inserção no contrato de garantia dos seguintes elementos, de acordo com o disposto no artigo 57.º da Ley: (i) des‑crição dos bens objecto da garantia na escritura ou na póliza, no que toca à sua natureza, quantidade, qualidade, estado e demais circunstâncias que permitam individualizá‑los ou identificá‑los; (ii) determinação do status loci, i.e., do local onde permanecerão os bens; (iii) obrigação do devedor de conservar os bens e de os manter disponíveis para que o credor possa exercer o seu direito de fisca‑lização (previsto igualmente no artigo 63.º da Ley); (iv) referência aos seguros necessários.

    nos termos do artigo 59.º da Ley, o devedor é considerado depositário dos bens para todos os efeitos legais, não obstante a possibilidade de dispor dos mes‑mos com o consentimento do credor, sem prejuízo do seu valor. sobre ele recai, igualmente, o dever de não alterar o status loci dos bens garantidos (artigo 60.º). a violação dos deveres impostos ao devedor implicará para o credor o direito de exigir a devolução da quantidade adequada ou da venda imediata dos bens, sem prejuízo das responsabilidades civil e criminal que recairão sobre o devedor (artigo 59.º e 62.º da Ley).

    em resumo, a solução encontrada pelo legislador espanhol foi a de per‑mitir o penhor de complexos de bens, desde que devidamente identificados e mantidos num local determinado previamente pelas partes, os quais poderão ser alienados pelo devedor mediante consentimento do credor e no âmbito dos deveres de custódia e conservação inerentes à posição de depositário do devedor, encontrando‑se a garantia sujeita a forma pública e a registo. são todas estas características que permitem a qualificação da prenda sin desplazamiento como direito real de garantia48.

    47 c. López Beltrán de Heredia, “La Hipoteca mobiliária y la Prenda sin desplazamiento de la posesión, in vv.aa., “Derechos reales y Derecho immobiliario registral”, coord. por a. M. López y Lópes y v. L. Montés Penadés, 1994, 758, apud José Luís Garcia‑Pita y Lastres, “La Hipoteca mobiliária y la Prenda sin desplazamiento, en el Derecho mercantil”, in Tratado de Garantías en la Contratación Mercantil, Tomo II – GarantíasReales, vol. i – Garantías Mobiliarias”, 1996, 309.48 Para uma análise individual de cada uma das características enunciadas e percepção das divergências doutrinárias, vide José Luís Garcia‑Pita y Lastres, op. cit., 308‑331.

  • 904

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    3.3. Privilegio Convenzionale e Penhor Rotativo – Itália

    no que diz respeito às garantias mobiliárias e, em particular, às garantias sobre bens da empresa, o sistema jurídico italiano, tal como é típico dos ordenamentos jurídicos continentais, apresenta‑se como fragmentário e sectorial e caracteriza‑se por uma “irrazionale proliferatione dei privilegi”, não tendo almejado uma reorgani‑zação global da disciplina das garantias mobiliárias49.

    saliente‑se, a título de exemplo, a criação de um privilégio convencional pelo artigo 46.º do Testo Único Bancario50, que apresentou uma mudança de perspectiva no que diz respeito às características essenciais do pegno, introduzindo um modelo geral de garantia mobiliária sem desapossamento51, com pressupostos muito específicos e um campo de aplicação restrito, o que não permite a sua extensão a outros casos semelhantes nem a consideração genérica da existência de uma disciplina de garantias mobiliárias própria do direito italiano.

    a atribuição do referido privilégio está sujeita a condições particulares, no que toca ao objecto, aos sujeitos e às formalidades. Foi criado com o objectivo de atribuir um incentivo à concessão de crédito a médio‑longo prazo por parte de entidades bancárias a empresas, tomando as primeiras como garantia bens resultantes da actividade produtiva da empresa, tais como matérias‑primas, pro‑dutos intermédios, stock, produtos finais, bens adquiridos com o financiamento, e créditos, também futuros, derivados da venda dos bens anteriormente identi‑ficados52. sob pena de nulidade, o privilégio deve resultar de acto escrito, onde sejam exactamente descritos os bens objecto de garantia, os sujeitos e as condições gerais do financiamento, e encontra‑se sujeito a registo por transcrição, para ser oponível a terceiros (n.os 2 e 3).

    49 a técnica utilizada pelo legislador de criar modelos legais episódicos de garantias sobre bens da empresa revelou‑se ineficiente para estimular a concessão de crédito às empresas e levou a uma “irrazionale proliferatione dei privilegi (…) virtù dei quali, spesso senza apprezzabili ragioni, a taluni creditori risulta attribuita una posizione poziore dando luodo ad ingiustificare disparità di trattamento tra i diversi settori produttii”, Paolo Piscitello, “Constituzione in Pegno di Beni dell’Impresa e Spossessamento”, in Banca BorsaTitoli di Credito, Rivista Bimestrale di Dottrina e Giurisprudenza, vol. Liv, nuova serie, Marzo‑aprile 2001, (2), 160; Francesco Giorgianni e carlo‑Maria tardivo, “Manuale di Diritto Bancario”, 2.ª ed., 2009, 625.50 aprovado pelo Decreto Legislativo 1.º settembre 1993, n.º 385, com a última redacção introduzida pela Legge 18 maggio 2012, n.º 62.51 “Si tratta, in sostanza, di una garanzia convenzionale non possessoria di valenza generale per i finanziamenti a médio ed a lungo termine che há perduto ogni carattere di eccezionalità e contempera la tutela del finanziatore com l’esigenza di utilizzare i beni vincolati per la continuazione del ciclo produtivo”, Paolo Piscitello, op. cit., 162.52 artigo 46.º.

  • 905

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    Por outro lado, a doutrina e jurisprudência italianas equacionaram um modelo de garantia mobiliária que desse resposta às exigências do mercado53, atenuando o desapossamento e estabelecendo a possibilidade de transferência do direito real sobre determinados bens, valores ou direitos para outros bens, valores ou direitos, sem dar lugar a um efeito novatório do contrato de garantia54.

    no que ao desapossamento diz respeito, foram encontradas alternativas através da elaboração doutrinária tendentes a tornar mais flexível a exigência do referido pressuposto, prevista no artigo 2786.º do Codice Civile55, nomeadamente técnicas de desapossamento atenuado, como a admissibilidade de situações de composse que exigem uma intervenção conjunta do devedor e do credor ou outras formas que restrinjam o poder do devedor de dispor autonomamente dos bens.56

    Relativamente à necessária substituição dos bens em resultado da natureza e da dinâmica do mercado, encontrou a doutrina a solução (admitida posteriormente pela jurisprudência) na denominada garantia flutuante ou rotativa, i.e., “ forma di garanzia reale che consente la substituibilità e mutabilità nel tempo del suo oggetto senza comportare, ad ogni mutamento, la rinnovazione del compimento dele modalità richieste per la constituzione del vincolo o per il sorgere del diritto di prelazione, ovvero senza che tale mutamento dia luodo alle condizioni di revocabilità dell’operazione económica in tal modo posta in essere”57.

    através do mecanismo da sub‑rogação real, os bens dados em garantia são substituídos por outros, assumindo estes a posição inicial dos primeiros, no que ao vínculo real diz respeito. esta possibilidade encontra sustentação no facto de o interesse protegido pela garantia não estar directamente relacionado com a res mas com a sua utilidade real, que consiste no valor económico representado pela coisa58.

    53 Laura Prosperetti, “Eccesso e riduzione di garanzia nel pegno rotativo d’instumenti finanziari”, in Diritto della Banca e del Mercato Finanziario, Milano, a. 20, n. 3 (Luglio‑settembre 2005), Parte Prima, 359.54 enrico Gabrielli, “Il Pegno “Anomalo”, 1990, 181.55 Art. 2786 ConstituzioneIl pegno si constituisce com la consegna al creditor de la cosa o del documento che conferisce l’exclusiva disponibilità della cosa. La cosa o il documento possono essere anche consegnati a un terzo designato dalle parti e possono essere poste in custodia di entrambe, in modo che il constituente sia nell’impossibilità di disporne senza la cooperation del creditore.56 Paolo Piscitello, op. cit., 170; Laura Prosperetti, op. cit., 362.57 Laura Prosperetti, op. cit., 363. sobre o penhor rotativo, ver também enrico Gabrielli, op. cit., 181 ss.58 enrico Gabrielli, op. cit., 189.

  • 906

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    trata‑se, portanto, de uma garantia convencional, que resulta da autonomia das partes59, e que se traduz na celebração de pactos de rotatividade, mediante acto escrito, onde se especifique com clareza o momento da constituição do direito real60 e onde se determinem limites objectivos à substituição dos bens (valor limite ou pré‑determinado)61.

    com esta pequena análise, pudemos identificar algumas das diversas filosofias dos sistemas de garantias mobiliárias, o que nos permitirá ter uma visão global da problemática enunciada e uma melhor compreensão das soluções identificadas no nosso ordenamento jurídico.

    iii. Garantias flutuantes em Portugal

    dos vários sistemas analisados, podemos retirar um conjunto de características típicas das garantias flutuantes, mais ou menos variáveis de acordo com o regime de garantias de cada país, e que servirão de ponto de partida para o estudo da figura à luz do direito Português. são elas: (i) constituição de uma garantia sobre a totalidade ou parte do complexo de bens móveis de natureza circulante que constituem o objecto da actividade produtiva do devedor, presentes ou futuros; (ii) a manutenção da posse dos bens no devedor para o desenvolvimento normal da sua actividade; (iii) dilação temporal entre a constituição do direito de garan‑tia e a sua consolidação no bem ou sub‑rogação dos novos bens adquiridos pelo devedor no direito real dos bens primitivos.

    atendendo ao objecto da garantia (bens móveis), o penhor de coisas apre‑senta‑se como a garantia real prevista na lei que melhor se adequa à figura agora em estudo, razão pela qual analisaremos o seu regime e equacionaremos a admis‑sibilidade de uma garantia com as características da garantia flutuante no nosso ordenamento jurídico.

    1. Universo de bens como objecto da garantia

    o objecto das garantias flutuantes é constituído, em regra, pela totalidade ou por complexos de bens, circulantes por natureza e, portanto, fungíveis, cujo valor

    59 “Aquilo que é reconhecido à autonomia privada é, de facto, a possibilidade de fixar um objecto da garantia, em que as partes não se limitem a individualizar de modo específico e exclusivo uma coisa móvel, mas de contemplar a possibilidade da sua alteração sem prejuízo da continuidade da garantia”, Joana Fortes Pereira dias, op. cit., 95.60 Laura Prosperetti, op. cit., 364.61 Joana Fortes Pereira dias, op. cit., 96.

  • 907

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    individual se perde no seu conjunto62, que apresentam as seguintes características: (i) são produzidos e vendidos em grandes quantidades para outros revendedores ou consumidores finais; (ii) apresentam um diminuto valor quando considerados na sua individualidade; (iii) não apresentam características individualizadoras, podendo ser trocados por bens do mesmo género, sem qualquer afectação do con‑junto63; (iv) correspondem ao produto da actividade de empresas que se dedicam em especial à produção, compra e venda de materiais para revenda; (v) constituem a fonte de rendimento directo das empresas e traduzem a sua capacidade produtiva.

    Face a estas características, facilmente nos deparemos com alguns problemas no que toca ao quid garantístico.

    em primeiro lugar, admitir uma garantia como a floating charge, em que se torna possível onerar todo o património do devedor, significa permitir que um único credor faça da garantia geral do património, prevista nos artigos 601.º e 602.º do cc, uma garantia especial das obrigações, tornando‑se monopolista dos bens do devedor. tal possibilidade, para além de contrariar em absoluto o nosso sistema de garantias, conduziria a uma situação de incapacidade do devedor de celebrar negócios jurídicos com outros credores que, conhecedores da oneração de todo o património, excluiriam à partida o devedor pela certeza manifesta de insatisfação do crédito em caso de incumprimento; ou, caso contrário, a uma violação flagrante do princípio da igualdade dos credores, colocando os credores quirografários numa posição desvantajosa à partida, por, em rigor, desaparecer a garantia geral do cumprimento.

    em segundo lugar, na hipótese possível em que sejam dados em garantia complexos de bens móveis, confrontamo‑nos à partida com o suposto obstáculo constituído pelo princípio da especialidade, atendendo ao facto de o objecto da garantia poder consistir numa pluralidade de bens, presentes ou futuros e de natureza fungível.

    abordaremos de seguida esta problemática.

    1.1. Princípio da especialidade

    determina o n.º 1 do artigo 666.º do cc que “o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.

    62 nomeadamente bens compreendidos, no giro comercial, no stock das empresas, como matérias‑primas, bens de inventário intermédios ou finais, mercadorias e outros bens com as mesmas características e que, por norma, circulam no mercado.63 Hugo Ramos alves, “Do Penhor”, 2010, 185‑186.

  • 908

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    o princípio da especialidade decorre da norma atrás enunciada e é identifi‑cado por parte da doutrina64 como princípio geral de direitos reais. traduz‑se na exigência de que o direito real incida sobre coisa certa, determinada e actual e sobre coisa única e individualizada. apenas poderão constituir objecto de penhor as coisas corpóreas que cumpram os requisitos enunciados, excluindo‑se, à partida, coisas genéricas, futuras ou integradas em coisas simples.

    a expressão que tem suscitado dúvidas e controvérsias na doutrina relativa‑mente ao objecto do penhor é a seguinte: “certa coisa móvel”. o vocábulo “certa” é entendido por alguns autores como sendo manifestação da necessidade de determinação do objecto do penhor, impossibilitando, portanto, a constituição dessa garantia sobre complexos de bens ou de direitos65, ao passo que outros entendem que o termo foi utilizado pelo legislador como determinante e não adjectivo, tendo, portanto, o sentido de “identificável” ao invés de determinado na sua quantidade e qualidade66.

    ainda que não se considere um argumento decisivo nesta matéria, de facto a letra da lei não parece indicar no sentido da exigência da determinação do objecto do penhor no momento da sua constituição. “Certa coisa móvel” parece indicar no sentido da necessidade de o bem objecto de penhor não ser “abstracto”, mas concreto, não no sentido de determinado mas no sentido de apreensível, identi‑ficável ou susceptível de determinação (artigo 280.º do cc).

    Por esta razão, questiona‑se a possibilidade de universalidades de facto e de direito ou complexos de coisas, presentes ou futuras e fungíveis constituírem objecto de penhor67.

    analisemos, então, o conteúdo do princípio da especialidade, através da aná‑lise dos diferentes tipos de objecto e de casos de penhor já admitidos entre nós.

    1.2. Universalidades, coisas compostas, coisas complexas

    determina o artigo 206.º do cc, nos seus n.os 1 e 2 que “é havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma

    64 Manuel Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, sumários das Lições ao curso de 1966‑1967, 1967, 12‑13 (nota 1); c. a. da Mota Pinto, “Direitos Reais”, prelacções ao 4.º ano Jurídico de 1970‑71, recolhidas por Álvaro Moreira carlos Fraga, 2010, 98‑103; a. santos Justo, “Direitos Reais”, 3.ª ed., 2011, 28‑29; José alberto c. vieira, “Direitos Reais”, 2008, 214‑225; Luís Manuel teles de Menezes Leitão, “Direitos Reais”, 2009, 25‑27. 65 ver antunes varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. ii, Reimpressão da 7.ª ed., 2003, 528; almeida costa, “Direito das Obrigações”, 12.ª ed., 2009, 923.66 Hugo Ramos alves, op. cit., 10867 veja‑se, a este propósito, José alberto c. vieira, op. cit., 217‑225.

  • 909

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    pessoa, têm um destino unitário” e que “as coisas singulares que constituem a universalidade podem ser objecto de relações jurídicas próprias”.

    não são unânimes na doutrina a denominação e o entendimento conferidos a realidades de coisas que formam um conjunto unitário, passíveis de objecto de relações jurídicas68: entre (i) universalidade, entendida como “complexo de coisas jurí-dicas, pertencentes ao mesmo sujeito e tendentes ao mesmo fim, que a ordem jurídica reconhece e trata como formando uma coisa só”69, (ii) coisa complexa, resultante da combinação de várias coisas, passível de distinção entre coisa composta (correspondente às coisas ex cohaerentibus do direito Romano, portanto coisas que perdem autonomia no conjunto formado) e colectiva (identificada com as coisas ex distantibus, em que cada elemento mantém a sua função própria no conjunto)70, e (iii) coisa composta, “que engloba várias coisas simples, pertencentes à mesma pessoa e com um destino unitário”, absorvendo as coisas ex distantibus e as universalidades de facto71.

    independentemente da terminologia adoptada, a questão que no âmbito do presente trabalho se coloca é a de saber se as denominadas coisas complexas podem ser objecto de penhor, consideradas na sua unidade, ou se, pelo contrário, deverão ser consideradas como objecto da garantia todas as coisas simples compreendidas na coisa complexa.

    contrapõem‑se duas teorias a respeito da questão: a teoria unitária, cujos defensores consideram que as coisas complexas poderiam ser objecto de relações jurídicas próprias, distintas das relações que incidiriam sobre cada uma das coisas simples compreendidas no conjunto, uma vez que o direito entenderia o complexo de bens como uma unidade jurídica72; e a teoria atomista, em que se defende que, para o direito, apenas cada elemento unitariamente considerado tem relevância jurídica e não o seu conjunto73.

    a favor da primeira tese, os seus defensores destacam o teor literal do artigo 206.º do cc, que “declarando que é havida ‘como coisa composta’ a pluralidade

    68 a este propósito, ver antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil, I Parte Geral”, tomo ii, coisas, Reimpressão da 2.ª ed. de 2002, 2009, 162‑166. apresentando uma crítica à redacção do artigo 206.º do cc, José alberto c. vieira, op. cit., 217‑225.69 inocêncio Galvão telles, “Da Universalidades”, estudo de direito Privado, dissertação de doutoramento em direito (ciências Histórico‑Jurídicas) na Universidade de Lisboa, 1940, 173.70 José de oliveira ascensão, “Direito Civil – Teoria Geral”, vol. i, 1997, 340‑347.71 antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil…”, op. cit., 166. 72 neste sentido, Pires de Lima e antunes varela, “Código Civil Anotado”, vol. i, 1982, 200; c.a. Mota Pinto, op. cit., 99; José de oliveira ascensão, “Direito Civil – Teoria Geral”, op. cit., 346; Manuel Henrique Mesquita, op. cit., 37‑38. Parece seguir o mesmo entendimento, antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil…”, op. cit., 166, para quem “as coisas compostas podem ser objecto de actos jurídicos unitários, para comodidade do titular e da comunidade; todavia, implicam direitos autónomos sobre as coisas componentes, podendo haver especialidades”.73 José alberto c. vieira, op. cit., 223.

  • 910

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    de coisas móveis com um destino unitário, não pode ter outro significado senão o de permitir que os conjuntos de bens nestas condições figurem como objecto único de relações jurídicas (cfr. a noção de coisa formulada no n.º 1 do art. 202.º)”74, bem como o interesse, para certos efeitos, no tratamento de pluralidades de coisas simples como uma coisa única, e a compatibilidade com o princípio da especialidade75.

    em sentido contrário, argumenta‑se a insusceptibilidade de dupla atribuição jurídica sobre uma pluralidade de coisas e cada bem considerado76, no sentido de que “este conjunto não se sobrepõe ou acresce às coisas que o integram, nem constitui objecto de um direito unitário, vindo apenas a ser considerado para efeitos práticos que se ligam à possibilidade de dispor, através de uma única declaração negocial, de todos os direitos reais (de propriedade, nomeadamente) relativos às coisas simples que o compõem”77.

    Quanto a nós, parece‑nos que a teoria unitária é aquela que mais se adequa à intenção do legislador e à dinâmica das relações jurídicas. Para lá da consideração da coisa composta ou da universalidade como coisa, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 202.º do cc, e portanto, objecto de relações jurídicas, não nos parece que a redacção do n.º 2 do artigo 206.º do cc vise excluir a possibilidade de constituição de relações jurídicas sobre coisas compostas, determinando que apenas as coisas simples que a compõem podem ser objecto de relações jurídicas e que a utilização da unidade tem apenas o fito de facilitar a indicação de uma pluralidade de coisas simples nas relações jurídicas. Pelo contrário, da conjugação dos n.os 1 e 2 do referido preceito resulta que, ao permitir que coisas complexas pudessem constituir objecto de relações jurídicas, o legislador pretendeu escla‑recer que a individualidade da coisa singular pertencente ao complexo não se perde no conjunto, podendo, em determinadas circunstâncias ser ela própria e isoladamente objecto de outras relações. não se identificam, portanto, quaisquer óbices à susceptibilidade de uma coisa ser objecto de relações jurídicas distintas,

    74 Pires de Lima e antunes varela, op. cit., 200.75 c.a. Mota Pinto, op. cit., 99.76 chamando a atenção para a evolução do conceito de “coisa composta”, que indica entendimento contrário à tese unitária, e criticando a coisificação da universalidade de facto, José alberto c. vieira, op. cit., 218‑221.77 o mesmo autor contrapõe a necessidade evidenciada por c.a. Mota Pinto, op. cit., 99, no que diz respeito à acção de reivindicação, dizendo que, pese embora a alínea a) do n.º 1 do artigo 471.º do código de Processo civil (correspondente à alínea a) do n.º 1 do artigo 556.º do novo cPc, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) admita a formulação de um pedido genérico relativamente a uma universalidade de facto, se trata apenas de uma “projecção meramente linguística”, encontrando‑se o reivindicante ou o possuidor esbulhado sujeitos ao ónus de determinar cada uma das coisas que se incluem na universalidade, o que “elucida bem a inexistência de uma direito unitário sobre o conjunto”, op. cit., 224.

  • 911

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    ora na sua singularidade, ora no complexo que integra, desde que não se gerem situações de incompatibilidade.

    Poderemos, então, concluir que o direito identifica a universalidade como um ser, um quid jurídico, com as suas especificidades, e não meramente uma ideia, atribuindo‑lhe, por isso, susceptibilidade de constituir objecto de relações jurídicas.

    vejamos um exemplo de penhor admissível no nosso ordenamento, em que se constitui, como objecto de garantia, um complexo de bens e direitos, ainda que a doutrina divirja quanto à sua qualificação jurídica.

    1.2.1. Penhor de estabelecimento comercial

    o estabelecimento comercial é uma realidade cuja noção e natureza jurídicas têm vindo a ser objecto da mais diversificada doutrina78. no entanto, interes‑sar‑nos‑á, apenas, atender ao estabelecimento comercial como o “conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas devidamente organizado para a prática do comércio”79 ou “conjunto de elementos reunido e organizado pelo empresário para através dele exercer a sua actividade comercial, de produção ou circulação de bens ou prestação de serviços”80.

    independentemente da assunção desta realidade como património autónomo, universalidade, coisa imaterial, unidade jurídica ou esfera jurídica de imputação81, o que é facto é que dela conseguimos retirar o seguinte: trata‑se de uma coisa complexa, constituída por bens de diferente natureza (corpórea e incorpórea) e por direitos, funcionalmente organizada e orientada para a actividade comercial, destacando‑se a constante mutação dos elementos compreendidos no estabeleci‑mento comercial (nomeadamente mercadorias e matérias‑primas), i.e., conceito de coisa composta.

    78 orlando de carvalho, “Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial – I – O Problema da Empresa como Objecto de Negócios”, dissertação de doutoramento em ciências Jurídicas pela Facul‑dade de direito da Universidade de coimbra, 1967; Barbosa de Magalhães, “Do Estabelecimento Comercial – Estudo de Direito Privado”, 2.ª ed., 1964; Menezes cordeiro, “Manual de Direito Comer-cial”, 2.ª ed., 2007, 286‑312; Miguel J. a. Pupo correia, “Direito Comercial, Direito da Empresa”, 10.ª ed., revista e actualizada, 2007, 50‑74; a. Ferrer correia, “Lições de Direito Comercial”, 1973, 117‑145; Filipe cassiano dos santos, “Direito Comercial Português”, vol. i, 2007, 283‑300; José de oliveira ascensão, “Direito Comercial”, Parte Geral, vol. i, 1988, 491‑507; Pedro Pais de vascon‑celos, “Direito Comercial”, vol. i, Parte Geral, Contratos Mercantis, Títulos de Crédito, 2011, 100‑106. 79 Barbosa de Magalhães, op. cit., 13. 80 Miguel J. a. Pupo correia, op. cit., 50.81 a. Ferrer correia, op. cit., 122‑132; Miguel J. a. Pupo correia, op. cit., 56‑60; Rui Lopes dos santos, “Penhor de Estabelecimento Comercial – à luz do Direito Português”, Relatório elaborado para o seminário de Mestrado de direito civil ii, com o tema “Garantias das obrigações”, orientado pelos Professores doutores Menezes Leitão e Januário Gomes, Faculdade de direito de Lisboa, 2002, 5.

  • 912

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    Questiona‑se, na doutrina, a par da noção e da natureza desta realidade, a possibilidade de o estabelecimento constituir objecto de penhor, enquanto garantia real. actualmente, é maioritariamente aceite pela doutrina a possibili‑dade de constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial82. Funda‑se, essencialmente, nos seguintes argumentos: (i) qualificação do estabelecimento comercial como coisa em sentido amplo, abrangendo coisas corpóreas e incorpó‑reas; (ii) inadmissibilidade de uma interpretação restritiva do n.º 1 do artigo 666.º do cc, admitindo‑se o penhor sobre universalidades; (iii) inadequação do regime rígido do penhor à dinâmica e à função sócio‑económica do estabeleci‑mento comercial; (iv) admissibilidade da penhora de estabelecimento comercial (artigo 862‑a do código de Processo civil8384); (v) a admissibilidade do penhor do estabelecimento individual de responsabilidade limitada (n.º 1 do artigo 21.º do decreto‑Lei n.º 248/86, de 25 de agosto); (vi) possibilidade de transmissão do estabelecimento comercial (argumento maiori ad minus); (vii) admissibilidade da figura em ordenamentos jurídicos próximos do português, como é o caso do francês e do espanhol.

    destaque‑se o entendimento de Menezes cordeiro, seguido também por Rui Lopes dos santos, segundo o qual o penhor de estabelecimento comercial confi‑gura um penhor global sobre o conjunto de bens e de direitos compreendidos no estabelecimento comercial, podendo este “continuar a funcionar normalmente, numa situação fundamental para o bom decurso da operação”85.

    82 antónio Menezes cordeiro, “Manual de Direito Comercial”, op. cit.,p. 305‑306; Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, 5.ª ed., 2006, 171‑172; Rui Pinto duarte, “Curso de Direitos Reais”, 2002, 220‑222, e “O Penhor de Estabelecimento Comercial”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. iii, direito das obrigações, 2007, 63‑77; Luís Manuel teles de Menezes Leitão, “Garantias das Obrigações”, 2.ª ed., 2008, 305‑306; L. Miguel Pestana de vasconcelos, “Direito das Garantias”, 2010, 260‑263; Rui Lopes dos santos, op. cit., 42‑56. em sentido contrário, antunes varela e almeida costa defendem a insusceptibilidade da constituição de penhor sobre universalidades, com fundamento na exigência de que o objecto do penhor seja uma coisa certa, cf. antunes varela, op. cit., 528; almeida costa, “Direito das Obrigações”, op. cit., 923. esta tese foi igualmente seguida em dois pareceres do conselho consultivo da Procuradoria‑Geral da República, o primeiro datado de 28 de Fevereiro de 1985, publicado no d.R., ii série, de 10 de Maio de 1985, e o segundo de 4 de Junho de 1987 (Parecer n.º 1/86, publicado no BMJ n.º 374, Março‑1988, 35‑42), este último pronunciando‑se sobre a inadmissibilidade de penhora de bens futuros.83 aprovado pelo decreto‑Lei n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto (cPc).84 corresponde ao artigo 782.º do novo cPc.85 no que ao regime aplicável diz respeito, segundo o autor, bem como a maioria da doutrina e a jurisprudência, a possibilidade de não desapossamento efectivo funda‑se na qualificação do penhor de estabelecimento em regra como penhor mercantil, o qual exige apenas uma entrega simbólica, nos termos do artigo 398.º, § único, do ccom, ou na circunstância de ser constituído no âmbito das

  • 913

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    tal como reconhecido noutros ordenamentos jurídicos, nomeadamente no francês com a admissão do gage de nantissements de fonds de commerce, poder‑se‑á, igualmente, reconhecer no nosso ordenamento jurídico a admissibilidade da constituição de penhor sobre uma realidade jurídica e complexa como é o esta‑belecimento comercial86.

    em rigor, a individualização a que se refere o princípio da especialidade apenas tem efectiva concretização no momento da penhora87 e posteriormente na venda, em que são identificados os específicos bens que responderão pelo não cumprimento do devedor. a constituição do direito real opera sobre a realidade complexa, reconhecida juridicamente, mantendo‑se a actividade do devedor e a circulação dos bens enquanto não for efectivada a penhora. esta dinâmica assemelha‑se à das garantias flutuantes.

    admitimos que se possa considerar que a possibilidade de constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial se apresente, face ao direito e aos sujeitos das relações jurídicas, como uma garantia mais segura nas relações jurídicas, atendendo à sua eventual consideração como unidade jurídica ou, simplesmente, à natureza dos bens e direitos que compreende. no entanto, essa realidade não deixa de consubstanciar uma universalidade ou um complexo de bens e direitos, tal como é o caso dos bens corpóreos de natureza circulante que já identificámos. Para todos os efeitos, a equiparação é permitida nos termos do n.º 1 do artigo 206.º do cc e as razões determinantes para a admissibilidade num e noutro caso são idênticas. não identificamos, portanto, motivo para uma disparidade de entendimentos.

    relações bancárias, sendo, então, aplicável o disposto no decreto‑Lei n.º 29 833, de 17 de agosto, conforme teremos oportunidade de verificar. é, igualmente, configurada a aplicação analógica do regime previsto no decreto‑Lei n.º 248/86, de 25 de agosto, que criou o estabelecimento individual de Responsabilidade Limitada, uma vez que nele se prevê expressamente a possibilidade de constituição de penhor sem desapossamento. cf. antónio Menezes cordeiro, ibidem; Rui Lopes dos santos, op. cit., 48; Filipe cassiano dos santos, op. cit., 295‑297. Rui Lopes dos santos, op. cit., 14‑16, coloca algumas reservas quanto à aplicação do regime dos eiRL. cf. acórdão do tRe, de 18 de Junho de 1991, in cJ 16, 3, 1991, 308‑311; acórdão do stJ de 6 de Maio de 1993, processo n.º 043114, disponível em www.dgsi.pt; acórdão do stJ de 29 de dezembro de 2001, in cJ‑stJ, 9, 3, 2001, 125‑128.86 saliente‑se o entendimento de inocêncio Galvão telles, op. cit., 202‑207, para quem, no âmbito do código civil anterior, o obstáculo existente à admissibilidade da constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial se circunscrevia à necessidade de entrega ou tradição real de uma universalidade. sustenta, no entanto, a admissibilidade da figura de iure condendo. 87 nos termos do n.º 1 do artigo 682.º‑a do cPc (n.º 1 do artigo 782.º do novo cPc), “a penhora do estabelecimento comercial faz-se por auto, no qual se relacionam os bens que essencialmente o integram, aplicando-se ainda o disposto para a penhora de créditos, se do estabelecimento fizerem parte bens dessa natureza, incluindo o direito ao arrendamento”.

  • 914

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    1.3. Objecto fungível, futuro e consumível

    conforme já referido supra, o conjunto de bens compreendidos numa garantia flutuante apresenta uma fraca individualização própria, atendendo ao seu carác‑ter fungível88. Para além disso, a constituição de uma garantia flutuante implica admitir, como objecto de penhor, os bens circulantes que venham a fazer parte do património do devedor (bens futuros89). Poderão, igualmente, incluir‑se bens consumíveis90 ou deterioráveis91. o disposto no n.º 1 do artigo 666.º do cc pode‑ria constituir um obstáculo, atendendo à suposta necessidade de determinação dos bens, o que implica que se possa distinguir o referido bem do conjunto de outros bens e torná‑lo o quid individualizado da garantia.

    Quanto à susceptibilidade dos referidos tipos de coisa serem objecto de penhor, Pestana de vasconcelos pronuncia‑se quanto à impossibilidade de “ser objecto de penhor, coisas fungíveis, como o dinheiro, a não ser que por via convencional se estabeleça a individualização (notas de banco numeradas e/ou inseridas num envelope fechado entregue ao credor)”92. o autor aborda a questão no âmbito do penhor irregular93. no entanto, nada refere a propósito da questão por nós analisada.

    88 no caso dos bens fungíveis, como constituem, por norma, os bens objecto de uma garantia flutuante, a determinação ocorre pelo seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objecto de relações jurídicas, nos termos do artigo 207.º do cc. sobre o conceito, vide antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, op. cit., 151‑155. o autor alerta para o facto de, com a referência a “quando constituam objecto de relações jurídicas, (…) apenas in concreto (…) se poderá afirmar se há ou não fungibilidade”, cf. op. cit., 153. ver também Miguel Galvão teles, “ Fungibilidade de Valores Mobiliários e Situações Jurídicas Meramente Categoriais”, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. iv, 2003, 175.89 no que diz respeito a coisas futuras, nos termos definidos no artigo 211.º do cc, verificamos que, no caso em análise, o que se trata realmente é de permitir a substituição dos bens originais por novos bens, não tanto a de admitir a constituição de penhor sobre bens futuros, a priori. no entanto, a questão assume relevância pelo facto de serem bens diferentes, ainda que do mesmo género ou qualidade, os que poderão responder pela dívida. sobre o conceito de coisas futuras, antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito civil”, op. cit., pp.159‑160.90 artigo 208.º do cc. sobre o conceito, antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito civil”, op. cit., pp.155‑156.91 sobre o conceito, antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito civil”, op. cit., 156.92 L. Miguel Pestana de vasconcelos, op. cit., 235.93 Figura caracterizada como “contrato de garantia, qualificado pelas partes como penhor, que tem por objecto bens fungíveis cuja titularidade passa para o credor, obrigando-se este a retransmitir o objecto da garantia, logo que a obrigação for cumprida, ou então, executando-o (…) na eventualidade de incumprimento”, cf. L. Miguel Pestana de vasconcelos, op. cit., 301. sobre a figura, ver também Hugo Ramos alves, op. cit., 185‑239.

  • 915

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    Já vaz serra admitia que “tanto as coisas consumíveis e fungíveis como as não con-sumíveis podem ser objecto de penhor”94.

    vejamos, brevemente e a título de exemplo, um caso de penhor sobre bens de natureza fungível no nosso ordenamento jurídico.

    1.3.1. Penhor de valores mobiliários

    nos termos do n.º 1 do artigo 204.º do código dos valores Mobiliários (cvM)95, podem ser objecto de negociação organizada “valores mobiliários fungíveis, livremente transmissíveis, integralmente liberados e que não estejam sujeitos a penhor ou a qualquer outra situação jurídica que os onere, salvo se respeitados os requisitos previstos nos artigos 35.º e 36.º do Regulamento (CE) n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de Agosto”.

    o número seguinte do mesmo preceito define o conceito de fungibilidade, para efeitos do n.º 1, determinando que “são fungíveis, para efeitos de negociação organizada, os valores mobiliários que pertençam à mesma categoria, obedeçam à mesma forma de representação, estejam objectivamente sujeitos ao mesmo regime fiscal e dos quais não tenham sido destacados direitos diferenciados”. Miguel Galvão teles defende que o termo fungibilidade deve ser interpretado “como acepção de mera categorialidade de valores mobiliários”, atendendo a que “toda a tradição é no sentido de associar a fungibilidade à irrelevância ou à ausência de número de ordem”, correspondendo a tal irrelevância a mera categorialidade, i.e., a falta de individualidade96. considera, igualmente, que a fungibilidade se refere aos títulos, como coisas corpóreas97.

    verificamos, assim, que os valores mobiliários não se destacam na sua singu‑laridade, podendo variar dentro da mesma categoria, dentro da mesma forma de representação e desde que sujeitos ao mesmo regime fiscal.

    estes bens constituem objecto de penhor, alterando a sua forma de constituição de acordo com o tipo de valor mobiliário. no caso dos valores titulados, o penhor constitui‑se mediante entrega do respectivo título ao credor ou a depositário por si indicado (n.º 1 do artigo 101.º, ex ui artigo 103.º, ambos do cvM). tratando‑se de valores mobiliários nominativos, a constituição do penhor efectiva‑se com a declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente (n.º 1 do artigo 102.º, ex ui artigo 103.º, ambos do cvM). no entanto, no que

    94 vaz serra, “Penhor. Penhor de Coisas – Penhor de Direitos”, in separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.os 58 e 59, 1956, p. 64.95 aprovado pelo decreto‑Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, com a última alteração introduzida pelo decreto‑Lei n.º 85/2011, de 29 de Junho.96 Miguel Galvão teles, op. cit., 206.97 Miguel Galvão teles, op. cit., 176.

  • 916

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    diz respeito aos valores escriturais, transmitidos pelo registo na conta do cliente (artigo 80.º, n.º 1, do cvM), o penhor é constituído, nos termos do n.º 1 do artigo 81.º do cvM, “pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indi-cação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário”, podendo sê‑lo na conta do credor quando este tenha direito de voto (n.º 2). neste último caso, temos um claro exemplo no ordena‑mento português de uma típica garantia flutuante, com recurso ao registo para efeitos de publicidade da oneração98.

    1.4. Apreciação crítica

    Face aos entendimentos expostos e à natureza dos bens objecto da garantia que nos propusemos estudar, propendemos para a admissibilidade da constitui‑ção de penhor sobre bens circulantes do devedor, adquiridos no exercício da sua actividade, com as características atrás assinaladas.

    imperativo será verificar qual o papel da res na constituição do penhor, sobretudo no que diz respeito ao credor, i.e., se relevará o bem garantido na sua essencialidade absoluta ou a sua utilidade económica, enquanto valor que traduz para o credor.

    em termos fácticos, quando analisamos conjuntos de bens como matérias‑pri‑mas, stocks, produtos intermédios ou finais, verificamos que os referidos conjuntos são compostos por unidades singulares, susceptíveis de individualização e de venda em separado. agora, no que diz respeito às relações jurídico‑comerciais estabe‑lecidas e às operações económicas que estão inerentes à prestação de garantias, nomeadamente a concessão de crédito, os complexos de bens serão entendidos, não como um conjunto de x unidades de y e x+100 unidades de z, mas como um complexo de bens ao qual é atribuído um valor económico global. Para efectivação da garantia, importará apenas o resultado económico que o conjunto

    98 ainda que a qualificação do penhor de valores mobiliários seja objecto de divergência doutrinária, havendo quem defenda que se trata de um penhor de coisas e outros que se trata de penhor de direitos. defendendo a aplicação do penhor de coisas quer ao penhor de acções tituladas e quer ao penhor de acções escriturais, atendendo à noção de coisa prevista no artigo 202.º do cc, ao princípio da igualdade que vigora entre as acções independentemente da sua forma de representação, e ao facto de o penhor de valores mobiliários carecer de forma de representação, sendo a traditio substituída pelo registo no caso do penhor de acções escriturais, tiago soares da Fonseca, “O Penhor de Acções”, 2005, 41‑42. no sentido contrário, Luís Manuel teles de Menezes Leitão insere o penhor de valores mobiliários no capítulo das garantias especiais sobre créditos, cf. “Garantias das Obrigações”, op. cit., 290. sobre o penhor de valores mobiliários, ver também L. Miguel Pestana de vasconcelos, op. cit., 282‑284.

  • 917

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico português

    de bens trará para o credor em caso de incumprimento, e não cada bem em si individualmente considerado99.

    Para o efeito específico que consiste na garantia da satisfação do crédito do credor pignoratício, parece haver interesse no tratamento, pelo direito, dos refe‑ridos bens como uma coisa única100, uma vez que é na unidade que se revela o valor que constitui o benefício da garantia do credor.

    entendemos, igualmente, que o princípio da especialidade não colidirá com o entendimento explanado, desde que se identifique de forma suficiente, no acto de constituição da garantia, o complexo e o género de bens compreendidos, o local onde se encontrarão e o valor garantido, estabelecendo‑se os critérios para determinar a qualidade ou a quantidade do objecto101. Repare‑se que foi esta a solução encontrada nos ordenamentos jurídicos estrangeiros que adoptaram a figura da floating charge (veja‑se o exemplo do artigo 932.º do código comercial de Macau), bem como nos eUa (secção 9‑110 do article 9 do Ucc), em França (artigo L. 527‑1 do Code de Commerce) e em espanha (artigo 57.º da Ley de 16 de diciembre de 1954 de la Hipoteca Mobiliária y de la Prenda sin Desplazamiento de Posesión). dessa forma, garante‑se a determinação dos bens dados em garantia, que consistem em unidades complexas, identificáveis pelas características dos elementos que as compõem, bem como a concretização do princípio da especialidade.

    saliente‑se a solução apresentada pelo ordenamento jurídico francês, em que se determinou a exigência de o devedor manter uma percentagem obrigatória de bens na sua posse, de forma a evitar o risco do esvaziamento da garantia do credor, no caso de o devedor dispor de todos os bens, sem garantir uma reserva mínima.

    atendendo à natureza circulante dos bens, entendemos que o princípio da especialidade exige ao devedor que mantenha na sua posse um conjunto de bens que garanta o crédito, cujo limite mínimo poderá ser convencionado com o credor. caso contrário, permanece a obrigação de preservar o conjunto corres‑pondente ao montante do crédito, no local dado em conhecimento ao credor.

    no que diz respeito ao estabelecimento comercial, e ainda que se possam colocar obstáculos à sua comparação com mercadorias, matérias‑primas e outros produtos que resultem do desenvolvimento da actividade do devedor, atendendo à sua eventual qualificação como universalidade de direito e ao facto de o primeiro

    99 “La natura di reserva ad rem del vincolo pignoratizio, in quanto diretta a precostituire un’utilità reale, guarda all’oggetto del pegno non nelle sua individualità (…), ma considerandolo nella sua capacita di tradursi in un’utilità: in un valore economicamente quantificabile”, enrico Gabrielli, op. cit., 189. no mesmo sentido, Hugo Ramos alves, op. cit., 116. 100 no seguimento do entendimento de a. c. Mota Pinto, op. cit., 99. 101 neste sentido, Joana Fortes Pereira dias, op. cit., 189 ss., admitindo a indicação suficiente do objecto garantido como forma de determinação em sentido lato.

  • 918

    RDS V (2013), 4, 891-938

    Marisa Vaz

    incluir direitos e outros bens para lá de mercadorias, parece‑nos que não se deverá olhar para as duas realidades de coisas de maneiras distintas, admitindo o penhor de estabelecimento comercial e colocando obstáculos a um penhor sobre mercadorias, matérias‑primas ou produtos finais. trata‑se de complexos de bens (e também de direitos no caso do estabelecimento comercial) que formam um núcleo unitário e autónomo102.

    Já inocêncio Galvão teles manifestava as virtualidades de um penhor sobre universalidades, nomeadamente mercadorias e estabelecimento comercial, que constituem, para os comerciantes, “valor importantíssimo do seu activo comercial”, com vantagens para o credor, referindo que “tôdas as mercadorias que o comerciante, proprietário da universalidade, fôr adquirindo e afectando ao exercício do comércio respectivo durante a subsistência do penhor, a este ficarão automàticamente vinculadas”103.

    verificados os diferentes regimes assinalados e as posições doutrinárias assumi‑das, concluímos que, também neste ponto, não identificamos óbice à constituição de uma garantia sobre bens de natureza flutuante.

    2. Manutenção da posse no exercício da actividade do devedor

    outra das características que mais se evidencia na análise das diferentes mani‑festações de flutuação nos sistemas de garantias estrangeiros é a da manutenção da posse dos bens garantidos no devedor para o desenvolvimento da sua actividade profissional. esta permissão de não desapossamento vem acompanhada de uma autorização concedida ao devedor para livremente dispor dos bens objecto da garantia, tendencialmente sem a intervenção do credor (sobretudo n