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GARCILASO E CAMÕES “Mas se o sereno Céu me concedera qualquer quieto, humilde e doce estado, onde com minhas Musas só vivera, sem ver-me em terra alheia degradado; e ali outrem ninguém me conhecera” (Oitava I) “Cantara-nos aquele que tão claro o fez o fogo da árvore Febeia, a qual ele, em estilo grande e raro louvando, o cristalino rio enfreia; tangera-nos na frauta Sannazaro, ora nos montes, ora pela aldeia; passara celebrando o Tejo ufano o brando e doce Lasso castelhano.” (Oitava I) “Já nas éclogas, o canto alia à função catártica a construção activa de um refúgio, quando, desprotegidos no meio da natureza harmónica com que se não identificam, os pastores procuram na Poesia uma ordem artifical, humanamente manuseável e significativa. Por fim nas odes [... procura-se] um mundo idealizado a que confere valor universal “ “Na écloga, habitualmente definida como “diálogo entre pastores”, a criação de uma situação de raiz dramática e, portanto, a movimentação de personagens, obriga o poeta a outrar- se. NO entanto, as éclogas camonianas não se afastam, nos seus traços essenciais, de outros poemas das Rimas em que o lirismo predomina, como sejam as elegias, em que, por tradição mesmo, é configurada uma situação de confessionalismo pessoal [...] O

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GARCILASO E CAMÕES

“Mas se o sereno Céu me concedera

qualquer quieto, humilde e doce estado,

onde com minhas Musas só vivera,

sem ver-me em terra alheia degradado;

e ali outrem ninguém me conhecera” (Oitava I)

“Cantara-nos aquele que tão claro

o fez o fogo da árvore Febeia,

a qual ele, em estilo grande e raro

louvando, o cristalino rio enfreia;

tangera-nos na frauta Sannazaro,

ora nos montes, ora pela aldeia;

passara celebrando o Tejo ufano

o brando e doce Lasso castelhano.” (Oitava I)

“Já nas éclogas, o canto alia à função catártica a construção activa de um refúgio, quando, desprotegidos no meio da natureza harmónica com que se não identificam, os pastores procuram na Poesia uma ordem artifical, humanamente manuseável e significativa. Por fim nas odes [... procura-se] um mundo idealizado a que confere valor universal “

“Na écloga, habitualmente definida como “diálogo entre pastores”, a criação de uma situação de raiz dramática e, portanto, a movimentação de personagens, obriga o poeta a outrar-se. NO entanto, as éclogas camonianas não se afastam, nos seus traços essenciais, de outros poemas das Rimas em que o lirismo predomina, como sejam as elegias, em que, por tradição mesmo, é configurada uma situação de confessionalismo pessoal [...] O distanciamento do autor, pressuposto pela estrutura dramática, não [é] respeitado. [...] Não se opera a separação nítida, tão frequente noutros poetas, entre o pastor indeciso e aquele assume a condição de senex, ordenando a progressão do discurso e dando respostas às atribulações e perplexidades dos amigos.”

Na compreensão deste processo, tornam-se fundamentais as reflexões, mais desenvolvidas nas éclogas, em que se conclui ser o Tempo produto da vivência individual e ter, portanto, um significado puramente psicológico. É que, ao negar a exterioridade do tempo em relação ao

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sujeito, o Poeta retira-lhe qualquer valor referencial que, em última análise, poderia vir a constituir fonte de segurança, porque independentemente das vicissitudes sofridas pelo sujeito.

O apagamento do mundo exterior é total.”

“Não é possível reduzir a complexidade à justaposição de imagens simples e monolíticas, como sejam a de um Camões renascentista alternando com um Camões maneirista, de um Camões espiritual que encontraria a sua complementaridade num Camões sensualista, do Camões angustiado das canções oposto ao Camões luminoso das odes. Como qualquer artista, Camões é feito das contradições humanas que se não adaptam a simplificações esquemáticas.

(Maria do Céu Fraga)

“Transforma-se o amador na coisa amada”. Este primeiro verso é, como se sabe, ou se sabe pouco, do próprio Petrarca. [E o poema é uma glosa]

“Quer dizer, “a pintura” da alma, a amada – como – pintura, a “pura semi-deia” e um fraco substituto, cujo efeito, em vez de permitir a confusão da amada e do amante instaurando o puro Amor, ironicamente se manifesta como exacerbação suprema de um Desejo que de si mesmo se endereça ao Real, se é que o não postula. É impossível deixar de concluir que estamos em presença de uma nítida impugnação do que, habitualmente, se entende por ideal platónico. [É] falsamente platónico.”

“Narcisista e masoquista, pois o sofrimento é integrado ao amor e lido como positivo, por provir da Amada. [....] Contra essa “fraqueza” vai o Amador resistir, revestindo-se da formosura da Amada, em suma, contentando-se com a sua essência ideal? É o que seria legítimo esperar, se Camões fosse inequívoco poeta platónico da tradição. Ora, em vez disso, o que nos é descrito é a Beleza sensível e com tão voluntária nitidez que Camões não esquece “as sobrancelhas pretas”

[Verso de Camões: Engano com palavras o desejo[

“Pensamos que é concretamente a maneira própria de Camões superar o petrarquismo, e, ao mesmo tempo, o platonismo que nele se crê implicado [...] Por isso o Poeta servir-se-á das mesmas imagens, e quase do mesmo espelho, para dizer outra coisa.”

“[A distinção entre] o Camões idealista e o Camões sensulista [...] carece de justificação [...]. Não há Camões algum diverso do que os poemas são.

Como o movimento interno que lhes da vida, esses poemas não desenham um Camões, ora místico ora sensual, ora “platónico” ora realista, mas uma consciência poética (e sem dúvida “humana”) na qual os opostos se combatem e se amam numa dialéctica sem vencedor.”

“Camões associa a Natureza inteira aos seus amores ou aos seus anátemas endereçados ao Destino adverso. Estamos longe da serenidade de Petrarca e dos jardins de Marcílio Ficino.”

Óscar Lópes

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“Ruptura da unidade ontológica do sujeito [...] A alteração do papel desempenhado pelo neoplatonismo, que deixa de funcionar como motivo equilibrante, tem por sucedâneo a abertura de fracturas insanáveis na intimidade do sujeito [que fica] num ensimesmamento depressivo, [...] a uoluptas dolendi.”

“Qualquer um destes tópicos é perspectivado sob um olhar que da mostras de um desengano de tal forma profund, que, pela sua intensidade, não encontra paralelo, de forma alguma, na poesia de Petrarca. Esta tendência tem a sua correspondente na obra de poetas de outras Literaturas, que não a Portuguesa, durante o período maneirista. Recordem-se, a este propósito, os sintomas da crise do ditado bembesco patente na obra de um Della Casa ou de um Minturno.”

“Os momentos de felicidade ilustrados pela poesia camoniana ou são breves e passageiros, ou são enganadores, ou se projectam num outro universo supra-sensível [...] Tal lucidez decorre de um esforço de racionalização do mundo que o circunda que tem por instrumento a própria palavra poética”

“Donde resulta que a dor tende a ser literariamente representada como realidade e a felicidade como falácia [...] Na écloca de Camões o problema que se coloca é o do cancelamento de um passado onde se insere uma efectiva afeição, consignada através da palavra que a divulgou publicamente, o que corresponde, em termos psicanalíticos, à impossibilidade de remoção de um sentimento de culpa [...] As reminiscências dantescas que, nesta fase do diálogo se mostram mais vivas, [são] de proveniência pétrea [...] “Ó duro apartamento! Ó vida triste!”

[Trata-se de auto-aniquilamento do] profundo conhecedor do amargo sabor da vida [...] O canto que canta é um mero desafogo incapaz de sublimar todos os seus males”

[Estrutura rítmica] Constituído por un maior número de versos por estrofe, vinte, e por un maior número de decassíalbos – ABC BAC- C DEeDFGHHGFFII [...] Gacilaso de la Vega segui-o na quarta canção, “El aspereza de mis males quiero”

“A análise de questões que se prendem com a dilucidação das implicações do amor sensual e do amor espiritualizado, dos apelos da materialidade ou da vontade de ascese até ao divino, da fragilidade humana ou da coragem heróica, da rendição aos fados ou da determinação afirmativa, ou, num outro nível de lugar ocupado pelos padrões tradicionais ou pelas opções italianizantes, tem vindo a fornecer um contributo fundamental “

[Temos em Camões] o fascínio por un narcisismo deformante, por um lado, e, por outro, uma sensibilidade exacerbada a quento de fragmentario se encerra na experiência do amante.”

Rita Marnoto

“Está exilado; mas o desterro não é só afastamento no espaço, é separação irremediável – o Tempo é irreversível- “do bem que noutro tempo possuía” [...], viver gostosamente entregue às próprias mágoas”

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“Na ausência o amor afina-se (tema do dolce stil nuovo e quatrocentista) [na subtil operação de] referir à Ideia o que primerio se referia à beleza transitória da mulher. Na própria perduração subjectiva das imagens, progressivamente depuradas[...]: “E amor é afeito de alma e sempre dura.”

JACINTO DO PRADO COELHO.

“Acentuemo-lo: tudo isto é hábil – mas feito, parece, com ingredientes literários comuns. Seria fácil encontrar muitas reminiscências de leituras de Virgílio, Petrarca, Sannazzaro, Bembo, B. Tasso, Garcilaso, em todos estes versos. Mais fácil seria, porventura, surpreender qualquer pormenor que denunciasse a forma particular de sensibilidade do Poeta ou dos seus pares da faixa atlântica.”

Hernâni Cidade

[Antecedentes] “Entre Sá de Miranda e Camões situam-se diversos poetas de mérido – reconhecido ou desconhecido - , e todos eles, directa ou indirectamente, sacrificam às novas musas, ainda quando as velhas continuam a merecer-lhe a devoção. São eles, Bernardim Ribeiro, que constitui grupo geraciona com Sá de Miranda, ambos nascidos em 1481-1482; um outro grupo, mais jovem duas décadas do que este, é um par de sangue real: o 1º duque de Aveiro, D. Jõao de Lencastre, neto do rei D. João II, eo infante D. Luís, filho do rei D. Manuel I; um terceiro grupo geracional, mais novo outra década que o segundo, é o de Cristóvão Falcão (¿) e de Francisco Sá de Meneses, presumivelmente mais velho, este último grupo, dez anos do que Camões. Nascidos entre 1520 e 1530, e pertencentes assim à geração de Camões, são Jorge de Montemor, Pedro de Andrade Caminha, D. Manuel de Portugal, André Falcão de Resende, António Ferreira e Diogo Bernardes”

“A canção ocupa lugar privilegiado nas obras de Garcilaso de la Vega e de Juan Boscán, publicadas postumamente em 1543 [...] Mais próximo do que os outros jovens nascidos na década de 20, do impacto castelhano daquelas obras. Montemor terá aderido ao cânon daquelas [...] E os homens que, em 1543, já estão na meida-idade e até terão feito já a sua viagem de Itália, como Sá de Miranda, considerariam o prestígio moral da poesia petrarquiana mais importante do que a efusão sentimental e contesanesca das canções de Garcilaso. [...] Camões usou de tudo quanto lhe convinha, [...e] entre Petrarca e Garcilaso [...] Camões teceria, e teceu a sua obra [...]

Dada, porém, a correlação entre as literaturas portuguesas e castelhanas, no século XVI, vejamos mais de perto o que em Espanha efectivamente se passa quanto à forma canção “italiana” ateá ao tempo de Camões, sem nos limitarmos a Boscán e Garcilaso, ou à menção de Jorge de Montemor.

Com Boscán e Garcilaso, outro dos introdutores das formas italianizantes é uma grande figura da vida pública e de escritor, Diego Hurtado de Mendoza (1503-1575), neto do marquês de Santillana, da mesma idade de Garcilaso, e, em Portugal, do duque de Aveiro e do infante d. Luís, os imediatos seguidores de Sá de Miranda. Na sua obras, Mendoza tem cinco canções, com Garcilaso. Gaspar Gil Polo (1516-1591), homem da idade de Francisco de Sá de Meneses, e continuador da Diana de Montemor, com a sua Diana Enamorada (1564). tem ao

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todo cinco canções também. Gutierre de Cetina (1520-1556?), curiosa figura de poeta e soldado, que combateu na Itália e morreu no México, tradutor de Petrarca, tem dez canções (como o Camões “canónico”. Jorge de Montemor, que é da idade de Cetina (e, em Portugal, da de Pedro de Andrade Caminha e D. Manuel de Portugal, tem doze canções. Gregório Silvestre (1520-1569), outro português também castelhanizado e músico, como Montemor, terá apenas quatro, no fim da sua obra, porque tomou o partido dos tradionalistas. Hernando de Acuña (1520?-1580), homem presumivelmente da idade de Camões, tem na sua obra duas canções apenas”

Jorge de Sena

“Em Camões, a entidade feminina não só se revela intangível como se vai distanciando cada vez mais (Intro, 373)

Embora o petrarquismo de Camões seja muitas vezes identificado com o recurso a determinados tópicos ou estilemas centrados na descrição da mulhes o nos efeitos que o amor provoca no poeta, o rasto do autor do Canzionere no poeta lusitano traduz-se sobretudo na observância do princípio da imitatio vitae, que faz da poesia lírica um desafogo de espírito e uma intensa descoberta interior (Intro, 375)

“Ora, para este nome [Dinamene], Faria e Sousa aponta o passo de Hesíodo acima referido e acrescenta que em Garcilaso, Écloga II, aparece Diname “que corresponde a Dinamene”. Mas a verdade é que, ainda quando a palavra castelhana fosse, de facto, uma corruptela, é evidente que não podia ser dessa forma errada que Camões colheu a sua.” (Maria Helena Rocha, 398)

“São ainda notáveis estes dois tercetos de um soneto a uma esperança (e dor) de um não sei o quê, relativamente frequente em Camões: “Mas conquanto não pode haver desgosto / onde esperança farta, lá me esconde / Amor um mal que não se vê: / que dias há que na alma me tem um posto / um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como e doí não sei porquê... (Óscar Lópes, 401)

“A Écloga dos Faunos prende-se, inequivocamente, às narrativas ovidianas das Metamorfoses. Antes de mais, pela própria filiação no tema “perseguição e fuga das ninfas”, que na literatura europeia modena encontra a sua matriz nas Metamorfoses e, em particular, na narrativa da perseguição da ninfa Dafne por Aplo, que chega a Camões passando pelos Salices de Sannazaro e pela poesia de Garcialso de la Vega.