Genero, Cultura Visual e Performance

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estudos de literatura brasileira contemporânea, n.38, jul./dez. 2011, p. 237 Ana Gabriela Macedo e Francesca Rayner (orgs.) – Género, cultura visual e performance: antologia crítica V. N Famalicão: Ed. Húmus e Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2011. Edma Cristina de Góis* A publicação de Género, cultura visual e performance: antologia crítica neste ano de 2011 traz o mérito de disponibilizar a investigadores e professores, em língua portuguesa, textos considerados imprescindíveis para quem tra- balha com estudos de gênero, feminismos e artes. O caderno dá seguimento ao projeto iniciado em 2009, com a publicação de Estética e teorias da arte organizado por Vítor Moura e que se propõe a lançar no mercado textos até então não traduzidos para o português. Este volume, dedicado especial- mente à cultura visual, apresenta artigos sobre artes visuais e questões de gênero, a retórica do corpo, os estudos performativos e a crítica feminista. Não à toa, o artigo que abre a publicação, “Olhar feminista. Olhar o feminismo”, de Rosemary Betterton, aparece como espinha dorsal que aglutina os demais textos. A reexão de Betterton, originalmente publicada em 2003 com o título Feminist viewing: viewing feminism, lembra o próprio feminismo olhando ao redor de si ou, em outras palavras, como o feminismo (assim, no singular, conforme o texto) inuenciou nossas práticas de visionamento no século XXI. Trata-se de um exercício interessante para qualquer investigador/a que trabalhe no âmbito dos feminismos e dos estudos de gênero. Na prática, numa colocação aparentemente simplista, Betterton lança a questão de quem somos antes mesmo de respondermos o que é o objeto que observamos. Sugere que nossa localização na sociedade, nosso modo de ver, ler e interpretar o mundo diz, parcialmente, o que vemos e condiciona assim o próprio fazer feminista. Ela lembra oportunamente a citação da crítica de arte Griselda Pollock que anteriormente já havia levantado a questão: “O que estou a ver e o que procuro? Que conhecimento deseja o meu olhar? Quem sou eu quando observo algo?” (Betterton, 2011, p. 18). A autora, para dar seguimento à proposição de Pollock, põe lado a lado o pensamento de uma de suas alunas e o da crítica de arte sobre a obra de Toulouse-Lautrec. Enquanto a jovem estudante defende as pinturas de Lautrec como a validação de sua própria identidade lésbica, Pollock des- creve uma economia visual dependente de três olhares, os do artista mas- culino, e do voyeur masculino heterossexual, e o da crítica feminista que * Jornalista e doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected] 237-240

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Genero, Cultura Visual e Performance

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  • estudos de literatura brasileira contempornea, n.38, jul./dez. 2011, p. 237

    Ana Gabriela Macedo e Francesca Rayner (orgs.) Gnero, cultura visual e performance: antologia crtica

    V. N Famalico: Ed. Hmus e Centro de Estudos Humansticos da Universidade do Minho, 2011.

    Edma Cristina de Gis*

    A publicao de Gnero, cultura visual e performance: antologia crtica neste ano de 2011 traz o mrito de disponibilizar a investigadores e professores, em lngua portuguesa, textos considerados imprescindveis para quem tra-balha com estudos de gnero, feminismos e artes. O caderno d seguimento ao projeto iniciado em 2009, com a publicao de Esttica e teorias da arte organizado por Vtor Moura e que se prope a lanar no mercado textos at ento no traduzidos para o portugus. Este volume, dedicado especial-mente cultura visual, apresenta artigos sobre artes visuais e questes de gnero, a retrica do corpo, os estudos performativos e a crtica feminista.

    No toa, o artigo que abre a publicao, Olhar feminista. Olhar o feminismo, de Rosemary Betterton, aparece como espinha dorsal que aglutina os demais textos. A refl exo de Betterton, originalmente publicada em 2003 com o ttulo Feminist viewing: viewing feminism, lembra o prprio feminismo olhando ao redor de si ou, em outras palavras, como o feminismo (assim, no singular, conforme o texto) infl uenciou nossas prticas de visionamento no sculo XXI. Trata-se de um exerccio interessante para qualquer investigador/a que trabalhe no mbito dos feminismos e dos estudos de gnero. Na prtica, numa colocao aparentemente simplista, Betterton lana a questo de quem somos antes mesmo de respondermos o que o objeto que observamos. Sugere que nossa localizao na sociedade, nosso modo de ver, ler e interpretar o mundo diz, parcialmente, o que vemos e condiciona assim o prprio fazer feminista. Ela lembra oportunamente a citao da crtica de arte Griselda Pollock que anteriormente j havia levantado a questo: O que estou a ver e o que procuro? Que conhecimento deseja o meu olhar? Quem sou eu quando observo algo? (Betterton, 2011, p. 18).

    A autora, para dar seguimento proposio de Pollock, pe lado a lado o pensamento de uma de suas alunas e o da crtica de arte sobre a obra de Toulouse-Lautrec. Enquanto a jovem estudante defende as pinturas de Lautrec como a validao de sua prpria identidade lsbica, Pollock des-creve uma economia visual dependente de trs olhares, os do artista mas-culino, e do voyeur masculino heterossexual, e o da crtica feminista que

    * Jornalista e doutoranda em Literatura na Universidade de Braslia (UnB). E-mail: [email protected]

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    o recusa. Betterton no quer dizer com isso que uma pode ser correta e outra no. Ela compara os dois olhares com o objetivo de apontar sugestes possveis, mas radicadas em posicionamentos e conhecimentos diferentes. Mesmo dentro de uma matriz feminista possvel mais de uma interpreta-o para um fato social ou uma obra de arte. A questo posta est ento no modo como os signifi cados so construdos e para quem.

    Para a teorizao da cultural visual, uma dvida como esta muda o foco tradicional de preocupaes da histria da arte. Ao se questionar sobre os produtores e seus textos, o modelo de leitura d ateno inscrio das mulheres e outros grupos sociais, fazendo-nos questionar as relaes de poder do texto autorizado e suas interpretaes, repensando teorias e prti-cas, o papel de professores e alunos. Mais: mostra como a cultura visual valoriza o que antes era posto de lado. A noo de cultura visual levanta, pois, uma questo chave que esteve at certo ponto ausente da crtica da arte feminista produzida recentemente: como teorizar os afectos, a identi-fi cao e o investimento em imagens feitas por mulheres e outros grupos sociais? (id., p. 20).

    Em relao performance, a novidade a traduo de Marvin Carlson, em texto acerca do conceito de performance. O artigo funciona como um passo inicial no assunto, ao mesmo tempo em que, para no iniciados no tema, avana ao problematizar a popularizao do termo e sua presena em um leque de disciplinas. O que performance?1 abre a discusso recon-hecendo a popularizao da performance como algo recente e a variedade de usos que so feitos do conceito, das artes literatura, sem com isso, no entanto, conseguir traduzir com facilidade do que afi nal trata a atividade.

    Mais que um apanhado de opinies, passando por Mary Strine, Beverly Long, Mary Hopkins e Erik MacDonald (boas indicaes bibliogrfi cas), Carlson mostra um percurso pouco comum para a anlise da performance. Em vez de optar em falar das infl uncias que teriam criado a performance, como a dana e o teatro, ele tenta mostrar como os estudos perfomativos enriqueceram o que tem sido tradicionalmente chamado de arte perfor-mativa.

    Carlson tambm separar o joio do trigo: ato performativo, performance e comportamento reconstrudo, esse ltimo termo cunhado por Richard Schechner. Um dos aspectos mais importantes que a teorizao sobre a nova categoriza terminou por gerar uma nova dinmica sobre estudos so-bre o teatro, para citar exemplo. A conscincia da representao de papis sociais (bem destacado pelos tericos da sociologia) em dado momento da vida cotidiana, abre brecha para pensarmos que nossas vidas so estrutu-radas conforme comportamentos continuados e socialmente aceitos. Dessa

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    1 Traduo a partir do texto What is performance? (Bial, 2004, p. 68-72).

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    forma, potencialmente vivemos em performance, pelo menos quando temos conscincia desse fato. Ao contrrio dos atos performativos, que so prati-cados sem a devida conscincia de si.

    Por fi m, uma interessante colocao que anuncia o encerramento da refl exo de Carlson, trata da arte performativa moderna, que muito faz lembrar as performances contemporneas de Hanna Wilker, Orlan e Carolee Schneermann. Quase por defi nio, os seus participantes no baseiam o seu trabalho em personagens previamente criadas por outros artistas, mas nos seus prprios corpos, nas suas autobiografi as, nas suas experincias especfi cas numa dada cultura ou no mundo, que se tornam performativos pelo facto de os praticantes terem conscincia deles e por os exibirem perante o pblico (Carlson, 2011, p. 29).

    O tema dos atos performativos reaparece no artigo de Judith Butler2, autora que, embora bastante conhecida e lida no Brasil, tem poucos traba-lhos traduzidos para o portugus. Butler refere-se aos atos para falar sobre a constituio do gnero. Este seria, portanto, uma identidade instituda atravs da repetio estilizada de atos. Ela acrescenta ainda que, o gnero, formado pela estilizao do corpo. Os gestos corporais, os movimentos e as encenaes, nesse entendimento, do a iluso de um eu permanente-mente defi nido pelo gnero. Assim, atos, gnero e corpo esto co-relacio-nados.

    Se a base da identidade de gnero est na repetio e estilizao dos atos performativos, as possibilidades de rupturas de gnero esto na rela-o arbitrria entre esses atos, ou seja, na quebra ou na inaugurao de uma repetio dissonante. Se pensarmos na literatura, algumas transgresses, em termos de representaes, estaro naquelas em que aparecem compor-tamentos dissonantes, promovendo a quebra dessa repetio de atos que estabelecem os homens, as mulheres, os transexuais etc.

    Neste artigo, o desafi o de Butler analisar de que modo o gnero cons-titudo atravs de atos corporais especfi cos, e que possibilidades existem para ocorrer uma mudana cultural a partir desses atos. Enquanto Merleau-Ponty diz que o corpo uma ideia histrica, Butler acrescenta que esse mes-mo corpo no uma materialidade idntica a si prpria, mas sim uma ma-terialidade que, minimamente, traduz signifi cado, e a maneira como o faz fundamentalmente dramtica. Ela diz: Por dramtico quero dizer que o corpo no apenas matria, mas uma contnua e incessante materializao de possibilidades. No somos simplesmente um corpo, mas, num sentido verdadeiramente essencial, fazemos o nosso corpo, e fazemo-lo diferente-mente tanto dos nossos contemporneos como dos nossos antecessores e

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    2 Actos performativos e constituio de gnero: um ensaio sobre a fenomenologia e teoria feminista, traduo a partir do texto Performative acts and gender constitution, an essay in phenomenology and feminist theory (Bial, 2004, p. 154-66).

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    sucessores (Butler, 2011, p. 72). Ainda concordando com Merleau-Ponty e Beauvoir, o corpo uma situao histrica, mas tambm uma maneira de representar, dramatizar e reproduzir uma situao histrica.

    Assim, a clebre e repetida frase de Beauvoir, de que no se nasce mu-lher, mas toca numa questo crucial do estado histrico salientado por Bu-tler. A afi rmao reconhece que ser do sexo feminino uma faticidade sem signifi cado, mas ser mulher obrigar o corpo a aceitar e se adaptar a uma ideia histrica, a uma situao na qual est submerso. Ser mulher induzir o corpo a tornar-se um signo cultural, a materializar-se em obedincia a uma possibilidade historicamente delimitada, e faz-lo como um projecto corporal continuado sustentado e repetido (Butler, 2011, p. 73).

    O texto que encerra a publicao, A cultura de massas como mulher: o outro do modernismo, de Andreas Huyssen, apresenta outra face das questes de gnero ao tratar da cultura de massas3 e sua associao com a mulher. Assim como a mulher associada a uma leitora de literatura in-ferior, subjetiva, emocional e passiva, segundo os termos de Huyssen. Enquanto isso, os homens continuam associados cultura autntica, arte de elite. A importncia dessa refl exo atravessa uma das questes funda-mentais da literatura: a produo da mulher escritora, cujo objetivo literrio pode ser semelhante ao de um autor homem. Ou seja, a associao da cul-tura de massa mulher e a desvalorizao dessa mulher como consumi-dora, ao apontar potenciais gostos femininos, fala para alm da recepo, fala na produo e na insero das mulheres no campo literrio.

    O autor recupera ainda a importncia do teatro para que as mulheres pudessem se manifestar, uma vez que na sociedade burguesa, poucos espa-os permitiam seu lugar nas artes. No entanto, como o teatro era visto como mero exerccio de imitao e reproduo, ou seja, no original e produtivo, prerrogativas masculinas, era permitido s mulheres. Andreas Huyssen outro autor que vale a pena conferir nesta publicao. Dele tambm, mas publicado apenas em espanhol, o Modernismo despus de la posmodernidad, organizado por Nstor Garca Canclini, e que saiu em maro deste ano pela editora espanhola Gedisa.

    O que Gnero, cultura visual e performance faz lanar mais munio para que o dilogo entre autores/as diversos fomente as discusses em torno dos gneros, das artes e de uma gama de assuntos que bordejam essas duas reas. Servir como uma arena de polmicas e abrir espao para que tex-tos basilares sejam lidos em lngua portuguesa so partes de um caminho necessrio em tempos em que a outridade nossa melhor matria de refl exo.

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    3 Andreas Huyssen usa o termo cultura de massas referindo-se a folhetins em srie, revistas popula-res e familiares, material de bibliotecas pblicas, best-sellers de fi co.

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