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    GNERO E COMBATE POBREZA:PROGRAMA BOLSA FAMLIA

    SILVANA APARECIDA MARIANOUniversidade Federal de Uberlndia

    CSSIA MARIA CARLOTOUniversidade Estadual de Londrina

    Copyright2009 byRevista Estudos Feministas.

    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    Os programas brasileiros de transferncia condicionada de renda veem as mulherescomo foco prioritrio, e at objeto, de suas intervenes com vistas ao combate pobreza.

    A mulher, a partir de seus papis na esfera domstica ou de reproduo, tem sido, portanto,a interlocutora principal dessas aes, tanto como titular do benefcio quanto nocumprimento das condicionalidades impostas. O Programa Bolsa Famlia (PBF) um exemploparadigmtico dessa poltica. Diante desse contexto, estudiosas feministas tm insistido

    que a categoria gnero no pode ser prescindida das anlises sociolgicas acerca dasaes estatais, que tm por foco a famlia. Essa categoria de anlise contribui para acompreenso da instrumentalizao dos papis femininos nessas polticas.

    A implantao do PBF, de acordo com suas regras de seletividade e exigncias decondicionalidades, bem como com as dimenses assumidas ao incluir mais de 11 milhesde famlias, expressa, em certa medida, a extenso da pobreza no Brasil. Do mesmo modo,a composio do pblico beneficirio ilustra o quadro de desigualdades persistente na

    Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: A poltica de assistncia social brasileira orienta-se pela perspectiva de aes decombate pobreza, com prioridade aos programas de transferncia condicionada de renda.

    Esses so programas que priorizam o repasse de renda s mulheres e envolvem-nas em umarede de obrigaes e condicionalidades, a exemplo do Programa Bolsa Famlia. A prticaencerrada no Programa Bolsa Famlia coloca em evidncia algumas contradies entre asaes estatais e as demandas feministas, notadamente no que diz respeito problematizaoacerca da maternidade. Esse , ento, um ponto central para o dilogo entre o feminismo e as

    polticas sociais estatais de combate.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: Programa Bolsa Famlia; combate pobreza; maternidade; gnero; feminismo.

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    histria da sociedade brasileira. De acordo com dados doRetrato das desigualdades degnero e raa,podemos, mais uma vez, constatar que a pobreza brasileira tem sexo e cor.1

    A presena mais notvel de mulheres negras entre as pessoas pobres reflexo de umprocesso histrico de (re)produo de desigualdades sociais. Essas desigualdades tmcomo eixos estruturantes os marcadores sociais como gnero e raaetnia, os quais orientama construo da cidadania e a efetivao de direitos no Ocidente. Portanto, sexo e cor sotambm definidores das desigualdades sociais.

    Esse processo interfere diretamente na relao entre as mulheres, brancas e negras,e o Estado. Um ponto de ilustrao a esse respeito o modo como os grupos de mulheresesto sujeitos a obrigaes impostas pelo Estado e geram efeitos para o tempo e o trabalhofemininos.2Tais obrigaes se expressam no cumprimento de atividades e responsabilidadesestipuladas pelas polticas sociais, com destaque para as polticas de desenvolvimento e,mais recentemente, para as de combate pobreza. O Estado cobra das mulheres pobres

    a execuo de tarefas relacionadas ao cuidado de crianas, adolescentes, idosos, doentese pessoas com deficincia. Igualmente, convoca as mulheres para a participao ematividades extras, como, por exemplo, grupos de gerao de trabalho e renda (com duvidosapotencialidade para a melhoria do bem-estar) e grupos de aes educativas, sendo estas,via de regra, relacionadas s tarefas reprodutivas. Ao faz-lo, o Estado est gerando, paraas mulheres pobres, responsabilidades ou sobrecarga de obrigaes relacionadas reproduo social. Consideramos esse tipo de ocupao do trabalho e do tempo dasmulheres um dos fatores vinculados desigualdade, entre homens e mulheres e entreestratos sociais, pois disponibiliza menos as mulheres para o trabalho remunerado. Essefator deve ser colocado em evidncia quando nos dedicamos a investigar o modo deincluso das mulheres nas aes estatais, a exemplo do PBF, uma vez que esse programaopera instituindo condicionalidades nas reas de educao, sade e atividadescomplementares, como os grupos socioeducativos.

    A principal questo que norteia nossa reflexo neste trabalho, em particular, compreender o modo como o PBF, em uma estratgia de combate pobreza, desenvolvemecanismos que reforam a tradicional associao da mulher com a maternidade e astarefas pertencentes clssica esfera reprodutiva.

    O PBF, dada sua extenso em nmero de famlias beneficirias no pas e suacapacidade de exercer influncias nas relaes entre os indivduos envolvidos nas aesestatais, torna-se um importante objeto de anlise de pesquisas preocupadas em refletir omodo como o Estado incorpora padres de relaes de gnero e concepes de famlia ede mulher em seus programas que se dirigem ao mbito das relaes de cuidado.

    A reflexo aqui desenvolvida se inspira em pesquisa qualitat iva realizada emLondrina, PR, a fim de trazer questes sobre as relaes entre gnero e polticas de combate pobreza de forma geral. Londrina um municpio com avanado processo deimplantao do novo sistema de gesto da Poltica Nacional de Assistncia Social, o queinclui aes de acompanhamento s famlias beneficirias do Programa Bolsa Famlia.

    Mulher e papis de gnero no Programa Bolsa FamliaMulher e papis de gnero no Programa Bolsa FamliaMulher e papis de gnero no Programa Bolsa FamliaMulher e papis de gnero no Programa Bolsa FamliaMulher e papis de gnero no Programa Bolsa Famlia

    A poltica de assistncia social brasileira orienta-se pela perspectiva das polticasde combate pobreza. Desde a dcada de 1990 tm recebido destaque os programasfocalizados de transferncia de renda. Os principais deles so o Benefcio de Prestao

    1Luana PINHEIRO et al., 2008.2Henrietta MOORE, 1996.

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    Continuada (BPC) e o PBF, sendo o primeiro sem e o segundo com condicionalidades. Astransferncias condicionadas de renda priorizam o repasse de renda s mulheres eenvolvem-nas em uma rede de obrigaes com as aes estatais. Desse modo, referimo-nos a polticas e programas com claro marcador de gnero e, a partir de perspectivasfeministas, os interpelamos acerca da condio de cidadania das mulheres usurias.

    Ao cruzarmos as demandas por cidadania com a problemtica da pobreza e, demodo mais amplo, com a persistente situao de desigualdade brasileira, devemos tomarsexo e gnero, assim como cor e raa, como dimenses indispensveis de anlise acercadas polticas sociais. Gnero e raa devem, portanto, ser mobilizados como categorias deanlise. Nesse sentido, o Retrato das desigualdades de gnero e raa traz relevantecontribuio ao apresentar dados macrossociais desagregados por sexo e cor e raa quenos permitem captar as interconexes desses dois marcadores sociais na (re)produo dasdesigualdades. Os dados sobre renda explicitam, de modo mais cabal, o quadro de

    discriminao contra mulheres e negros e, ainda, a dupla discriminao sofrida pelasmulheres negras.3

    Esses dados so exemplos que demonstram parte da problemtica relacionada cidadania das mulheres, em especial das mulheres negras. Devemos, ainda, tomar emconsiderao que a diviso sexual do trabalho, as responsabilidades com as tarefas dereproduo, sobretudo quanto s atribuies domsticas, e a quase interdio dos espaosde poder s mulheres, notadamente as negras, so fatores que contribuem para obstar aconquista das mulheres no campo da cidadania.4

    Conforme observao de Lena Lavinas e Marcelo Nicoll,5ainda que as condiesde pobreza no sejam determinadas pela questo de gnero, os dados nos revelam queesse um marcador que influencia as situaes das famlias pobres quando analisamos,por exemplo, o fenmeno da chefia familiar feminina entre famlias pobres, grupo no qualesse fenmeno mais expressivo se comparado s famlias com maior renda. Nesse caso,

    articula-se uma vulnerabilidade adicional.6

    No Brasil, 22,3% das famlias eram chefiadas por mulheres em 1993. No ano de 2007essa proporo aumentou para 33%.7Tratando-se de Londrina e comparando-se as famliaschefiadas por mulheres, sem o critrio de renda, observa-se que, em 1991, as mulheresrespondiam por 20,42% das famlias e, em 2000, esse nmero saltou para 27,53%, o querepresenta um crescimento de 34,81%.8

    Se nos perguntarmos em qual estrato de renda a chefia familiar feminina est maispresente, perceberemos diferenciais significativos entre as famlias com rendimento familiarpor pessoa de at salrio mnimo e as famlias com renda superior a 2 salrios mnimos.No primeiro estrato social, as famlias chefiadas por mulheres cresceram de 25,57% para37,7%, o que representa um aumento de 47,43%. No segundo estrato social, as famlias

    3PINHEIRO et al., 2008, p. 33.4Maria Lygia Quartim de MORAES, 2003.5Lena LAVINAS e Marcelo NICOLL, 2006.6Adotamos a referncia de Mary Garcia CASTRO (2002), que compreende a vulnerabilidade social como oresultado negativo da relao entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simblicos dos atores, sejameles indivduos ou grupos, e o acesso estrutura de oportunidades sociais, econmicas, culturais que provmdo Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para odesempenho e a mobilidade social dos atores. Esse enfoque faz referncia a trs elementos de conformaode situaes de vulnerabilidade de indivduos, famlias ou comunidades: recursos materiais ou simblicos,tambm chamados de ativos (Carlos Henrique FILGUEIRA, 2001); estruturas de oportunidades dadas pelomercado, pelo Estado e pela sociedade; e estratgias de uso dos ativos.7PINHEIRO et al., 2008.8IBGE, 2000.

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    chefiadas por mulheres cresceram de 17,54% para 25,54%, o que representa um aumentode 45,61%. O crescimento entre os dois estratos de renda quase equivalente, com osnmeros um pouco mais elevados entre as famlias pobres.

    Comparando-se as famlias desses dois estratos de renda, percebe-se que a chefiafamiliar feminina concentra-se justamente entre os grupos sociais mais vulnerveis e aindalhes acrescenta um grau a mais de vulnerabilidade por serem, muitas vezes, famliasmonoparentais. coerente com esses dados a suposio de que no universo de famliaspobres chefiadas por mulheres exista uma ocorrncia maior entre aquelas chefiadas pormulheres negras, pois existem mais famlias negras em situao de pobreza e misria. Aesse respeito serve de comparativo o dado segundo o qual 11,7% dos domiclios urbanosem favelas so chefiados por mulheres brancas, enquanto 26% deles so chefiados pormulheres negras.9Esse fenmeno revela a importncia da incorporao da perspectiva degnero, bem como do quesito cor e raa, nos programas de enfrentamento pobreza e de

    desenvolvimento social.Ao ser includa no PBF, a mulher tomada como representante do grupo familiar, vale

    dizer, o grupo familiar materializado simbolicamente pela presena da mulher. Esta, porsua vez, percebida to somente por meio de seus papis femininos, que vinculam,sobretudo, o ser mulher ao ser me, com uma identidade centrada na figura de cuidadora,especialmente das crianas e dos adolescentes, dadas as preocupaes do PBF comesses grupos de idade. O papel social de cuidadora pode at, em algumas situaes, serdesempenhado por outra mulher, como, por exemplo, a av ou tia da criana ou doadolescente. Contudo, seguir sendo um papel feminino. Logo, o cuidado preserva, nombito do PBF, seu carter vinculado aos papis de gnero. Assim, tanto a maternidade(relacionada procriao e/ou ao papel social de me) quanto a maternagem (o cuidadoda criana e do adolescente desempenhado por outra mulher, geralmente com vnculo deparentesco, porm sem se designar como sua me) so funes focalizadas pelo PBF.

    De acordo com observaes e entrevistas realizadas no estudo de caso, em umafamlia beneficiria do PBF a mulher-me ou aquela que eventualmente a substitui nafuno de maternagem tem como responsabilidade, entre outras: a) a realizao doCadastro nico para incluso da famlia no programa; b) a atualizao do referido cadastrosempre que ocorre alguma modificao na situao familiar (por exemplo, mudana deendereo, alterao no nmero de pessoas no domiclio, oscilao nos rendimentos); c) orecebimento do recurso repassado pelo programa; d) a aplicao do recurso de modo abeneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) o controle sobre crianas e adolescentes,tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) a participao emreunies e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsveispela execuo e pelo acompanhamento do programa.

    Ao analisar o Programa Bolsa Escola, antecessor do PBF, Carin Klein10observou que

    Ao pagar um valor determinado, definido como salrio, pretende-se que a me sinta

    [...] a dignidade de seu trabalho e a importncia de investir na construo de um futuromelhor para os seus filhos. Como importantes argumentos apresentados na cartilha 100perguntas e respostas que voc precisa saber sobre o Bolsa-Escola , encontramosque atravs do Programa que se investe tambm na valorizao da mulher aotorn-la a provedora do ncleo familiar, contribuindo, assim, para que ela assuma umpapel ativo na vida da famlia e no controle da educao de seus/suas filhos/as.Buarque considera que o benefcio da Bolsa-Escola, pago me para que ela cuide

    9PINHEIRO et al., 2008.10Carin KLEIN, 2005, p. 37.

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    da educao de seu/sua filho/a, representa um Emprego Social, pois garanteestabilidade econmica e social para toda a famlia.

    Carin Klein11chama ateno na atuao desses programas que atuam paraconverter em termos equivalentes categorias como mulher e me. A estratgia de inclusoe de interpelao das mulheres supe a seguinte operao ideolgica: mulher = me oufamlia = me. Essa estratgia relaciona-se ao processo de revalorizao da famlia. Diantedos novos desenhos das polticas sociais voltadas para o combate pobreza e dirigidass famlias, uma antiga questo feminista deve ser retomada: qual o lugar das mulheresna famlia e na relao com o Estado? Nesse aspecto, as contribuies feministas atualizamo debate sobre os riscos da cristalizao dos papis sociais de gnero que aprisionam asmulheres nas tarefas relacionadas ao cuidado, maternagem e, de modo mais geral, reproduo social.

    As atividades reprodutivas das mulheres pobres aparecem como recurso aditivo dosprogramas de combate pobreza, de modo a tornar mais eficientes os impactos produzidospela transferncia condicionada de renda. As contrapartidas do PBF, relacionadas sadee educao,12exigidas notadamente das mulheres, facilitam a ao da poltica natarefa de mobilizar as mulheres para o cumprimento das obrigaes, as quais soprimordialmente consideradas femininas.

    Ocorre no PBF uma estratgia semelhante encontrada em aes estatais junto sorganizaes populares de mulheres, pelo menos desde a dcada de 1980. Nessas aesso fomentadas as demandas que focalizam as necessidades das mulheres, como ocaso dos tradicionais projetos de gerao de renda com trabalhos manuais. 13 Essasdemandas correspondem s necessidades prticas, visando minimizar as dificuldadesdas mulheres dentro do padro das relaes de gnero, sem atacar diretamente a questoda subordinao feminina e sem alterar, portanto, o padro das relaes sociais de gnero.14

    As necessidades das mulheres, nesses casos, so interpretadas em relao situao de

    pobreza, sem levar em considerao a situao de subordinao feminina.No caso de aes como o PBF, as preocupaes quanto pobreza so dirigidas

    famlia. O prprio direito ao recurso transferido tipificado em termos de benefcio famlia,e no a indivduos. Como consequncia, as demandas feministas por ateno prioritria situao das mulheres vo se transformando em familismos, que, no processo de traduopoltico-cultural, substituram a demanda por empoderamento das mulheres por demandasque visam ao fortalecimento das famlias.15A defesa da famlia como foco de preocupao uma caracterstica constitutiva de polticas de combate pobreza como o PBF. Na medidaem que a defesa da famlia operacionalizada com foco nas funes femininas, logoessas polticas familistasreforam a associao da mulher maternidade.

    O que nos interessa destacar para os objetivos da anlise aqui proposta que,mesmo com revises tericas a respeito da subordinao feminina, a maternidade seguesendo um ponto de debate e de preocupao entre as feministas, especialmente nascircunstncias atuais de polticas familistas.

    11KLEIN, 2005.12De acordo com orientaes do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MS), ao entrarno Programa, a famlia se compromete a cumprir as condicionalidadesdo Bolsa Famlia nas reas de sadee educao, que so: manter as crianas e adolescentes em idade escolar freqentando a escola; ecumprir os cuidados bsicos em sade, que seguir o calendrio de vacinao para as crianas entre 0 e6 anos, e a agenda pr e ps-natal para as gestantes e mes em amamentao (2009, grifo nosso).13Silvana Aparecida MARIANO, 2001 e 2008.14Leda Maria Vieira MACHADO, 1999.15Sonia ALVAREZ, 2000.

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    A famlia , entre outros aspectos, o lugar social e simblico16em que a diferena,especialmente a diferena sexual, assumida como base e, ao mesmo tempo, construdacomo tal. Chiara Saraceno comenta que no se trata apenas da necessidade fisiolgicada reproduo e muito menos de legitimar a sexualidade, na famlia o reconhecimento deque a humanidade tem dois sexos torna-se princpio organizativo social global e a estruturaque organiza as relaes sociais e os destinos individuais. A autora comenta que

    Lugar em que os dois sexos se encontram e convivem, a famlia tambm o espaohistrico e simblico no qual e a partir do qual se desenvolve a diviso do trabalho, dosespaos, das competncias, dos valores, dos destinos pessoais de homens e mulheres,ainda que isso assuma formas diversas nas vrias sociedades. , antes de mais nada, emnvel da famlia que o fato de se pertencer a um determinado sexo se transforma emdestino pessoal, implcita ou explicitamente regulamentado e que se situa numahierarquia de valores, poder, responsabilidade.

    17

    A gerncia do recurso para beneficiar a famlia, principalmente as crianas, temsido citada por diferentes autores e gestores dos programas de combate pobreza, nosdiferentes escales, desde o mbito federal at o municipal, e nesse sentido que temrecado sobre a mulher a preferncia pela titularidade do benefcio. As mulheres, na suagrande maioria, realmente utilizam o benefcio para melhoria das condies de vida dafamlia, em particular das crianas, nos quesitos alimentao, vesturio, compra de materialescolar, mobilirio para a casa e material de construo para melhoria das condiesfsicas da casa.

    A famlia moderna, como famlia dos sentimentos e da educao,18nasce em tornodas figuras da me e da criana, no s porque o espao que as circunscreve , cada vezmais, exclusivamente o domstico-familiar, mas porque se trata exatamente de duas figurasinterdependentes. a mulher identificada como me, no s no sentido biolgico, mastambm em termos afetivos e educativos, que exprime antes de tudo esta nova ateno e

    responsabilidade familiar para com as crianas.Chiara Saraceno19observa que o programa educativo e moral que est no centro

    da famlia moderna diz respeito me como educadora e como sujeito a educar naprpria autntica e natural vocao.

    Quanto utilizao dos recursos para uso em benefcio exclusivo dos filhos, a autoraafirma, tendo por base a realidade europeia, que neste caso no difere da brasileira, quemais frequentemente a mulher-me renuncia naturalmente a consumos individuais a favordos consumos dos outros membros da famlia, o marido ou os filhos. E sempre ela que petodo o dinheiro no caixa comum, no caso de trabalhar, enquanto o marido e, eventualmente,os filhos descontam uma parte para si.20A autora afirma, com base em uma pesquisainglesa feita por Pahl, o quanto pode ser difcil, para uma mulher, distinguir entre despesasfamiliares e despesas para si, mesmo quando o dinheiro gasto ganho por ela. O uso derecursos por parte da mulher constitui-se em um bom indicador, embora no nico, das

    dinmicas de poder e controle dentro da faml ia.Os discursos sobre feminilidade e maternidade apropriados pelo PBF com o intuitode potencializar o desempenho de suas aes no combate pobreza reforam o lugar

    16Chiara SARACENO, 1997.17SARACENO, 1997, p. 14.18SARACENO, 1997, p. 194.19SARACENO, 1997.20SARACENO, 1997, p. 195.

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    social tradicionalmente destinado s mulheres: a casa, a famlia, o cuidado, o privado, areproduo. preciso que o programa se questione sobre o peso de cada uma dessascategorias para a subordinao e a autonomia das mulheres.

    Consideraes finaisConsideraes finaisConsideraes finaisConsideraes finaisConsideraes finais

    A pesquisa qualitativa do estudo de caso em Londrina e as reflexes suscitadas nospossibilitaram apreender como uma poltica de combate pobreza pode atuar parareforar lugares sociais marcados pelos papis tradicionais de gnero e, ao faz-lo, encontrasrias dificuldades para se viabilizar como um programa de reduo das desigualdades.

    A experincia coloca em evidncia obstculos que so gerados pelo uso acrtico detradies sociais e culturais, que, na realidade, atuam de modo a favorecer a (re)produodas desigualdades. Os papis de gnero, ao mesmo tempo binrios e complementares,

    simbolizam essas tradies incorporadas pelo PBF. Consideramos que o PBF teria maiscontribuies a oferecer na luta pela reduo das desigualdades se viesse a incorporarconcepes mais crticas acerca dos papis de gnero.

    Perante a poltica de assistncia social, a famlia identificada pela figura damulher, e no pela do homem. E a mulher, por sua vez, considerada com base nasfunes maternas, o que fixa e essencializa o sujeito mulher, vinculando-o maternidade.Consideramos, luz de influncias feministas a partir de autoras como, por exemplo, JoanScott,21Judith Butler,22Chantal Mouffe23 e Nancy Fraser,24que os processos de fixao eessencializao de identidades, de homens e mulheres, constituem-se em srios obstculospara uma sociedade democrtica, a qual exige a construo de sujeitos plurais eidentidades contingentes. Consideramos, ainda, que a fixao de papis sexuais, a exemplodo aprisionamento das mulheres s tarefas reprodutivas, contribui para o reforo da lgicabinria de classificao e para a (re)produo da subordinao feminina.25

    O modo como o Programa Bolsa Famlia atua em Londrina cria mecanismos que

    minimizam a responsabilidade dos homens e produzem a responsabilizao das mulherescom o cuidado de crianas e adolescentes. Ao faz-lo, contribui para a cristalizao dospapis de gnero.

    Referncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficas

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    Gender and Poverty Fight: the Family Donation ProgramGender and Poverty Fight: the Family Donation ProgramGender and Poverty Fight: the Family Donation ProgramGender and Poverty Fight: the Family Donation ProgramGender and Poverty Fight: the Family Donation ProgramAbstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: The Brazilian social assistance policy is guided by the perspective of poverty fightefforts, which prioritize the conditioned income transfer. These programs privilege the incometransfer to women and involve them in a net of obligations and conditions, as it is done in the

    Family Donation Program. The practice within Family Donation Program highlights somecontradictions between the State actions and the feminist demands, especially those concerningthe motherhood problem. This is thus a core question for the dialogue between the feminism andthe social policies sponsored by the State.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Family Donation Program; Poverty Fight; Motherhood; Gender; Feminism.