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www.dpu.def.br/esdpu Escola Superior 1 A assimetria de poder entre homens e mulheres e as implicações das discrimi- nações de gênero em aspectos como remu- neração e patrimônio, violência de gênero e ocupação de espaços de poder levam a questionamento sobre as relações de gênero e as necessidades de mudança. O sistema de sexo-gênero, entendido como a constituição simbólica e a interpre- tação sócio-histórica das diferenças ana- tômicas entre os sexos, é o modo essencial (e não contingente) a partir do qual a rea- lidade social se organiza, divide e vive. É constitutivo da vida na sociedade contem- porânea, que se fundamenta em premissas de diferenças entre os sexos muito além das anatômicas. Como diz a célebre frase de Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher. Os seres humanos nascem com características sexuais específicas, e a A contínua construção das diferenças de gênero GÊNERO E DIREITO -এঌ (ওঃএঌ 6কঐঅউএ 'অআঅওএউ 3সংঌউঃ 8উথএ 7উঅওঔঅ অ ( 1 এ partir delas são atribuídos – e ensinados – os conteúdos de gênero. Os gêneros masculino e feminino respondem a construções culturais que se sobrepõem aos sexos biológicos para estabe- lecer uma fronteira entre eles que vai muito além das diferenças fisiológicas. Estas dife- renças, que comportam divisão de papéis, de espaços sociais e de percepções psicoló- gicas entre os gêneros, são persistentemente prejudiciais às mulheres. Como resultado, os sistemas de sexo-gênero historicamente conhecidos, que sofreram grandes mudan- ças com o tempo, colaboraram para a opres- são e a exploração da mulher. Os conteúdos da associação sexo-gênero se alteram con- forme a época histórica. No nosso tempo atual, guarda contornos bem específicos. A perspectiva histórica é fundamental para se compreender o quanto essas catego- Por Nara Rivitti – Defensora Pública Federal de 2ª Categoria em São Paulo – SP Editorial Por Fernando Mauro Barbosa de Oliveira Junior Página 3 Caminhos da Justiça: A Defensoria Pública da União e a Pesquisa de Necessidades Jurídicas Por André Carneiro Leão Página 4 Dignidade trans: visibilidade e cidadania contra a violência sistêmica Por Daniela Lorena León Graça e Pedro Rennó Marinho Página 5 A prisão domiciliar – Um outro enfoque Por Carolina Soares C. Lucena de Castro Página 7 Entrevista Entrevista com Ari Areia e Helena Vieira Página 8 Notas Página 10 https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/35/Jean-Baptiste_Sim%C3%A9on_Chardin_003.jpg

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A assimetria de poder entre homens e mulheres e as implicações das discrimi-nações de gênero em aspectos como remu-neração e patrimônio, violência de gênero e ocupação de espaços de poder levam a questionamento sobre as relações de gênero e as necessidades de mudança.

O sistema de sexo-gênero, entendido como a constituição simbólica e a interpre-tação sócio-histórica das diferenças ana-tômicas entre os sexos, é o modo essencial (e não contingente) a partir do qual a rea-lidade social se organiza, divide e vive. É constitutivo da vida na sociedade contem-porânea, que se fundamenta em premissas de diferenças entre os sexos muito além das anatômicas. Como diz a célebre frase de Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher. Os seres humanos nascem com características sexuais especí1 cas, e a

A contínua construção das diferenças de gênero

GÊNERO E DIREITO

partir delas são atribuídos – e ensinados – os conteúdos de gênero.

Os gêneros masculino e feminino respondem a construções culturais que se sobrepõem aos sexos biológicos para estabe-lecer uma fronteira entre eles que vai muito além das diferenças 1 siológicas. Estas dife-renças, que comportam divisão de papéis, de espaços sociais e de percepções psicoló-gicas entre os gêneros, são persistentemente prejudiciais às mulheres. Como resultado, os sistemas de sexo-gênero historicamente conhecidos, que sofreram grandes mudan-ças com o tempo, colaboraram para a opres-são e a exploração da mulher. Os conteúdos da associação sexo-gênero se alteram con-forme a época histórica. No nosso tempo atual, guarda contornos bem especí1 cos.

A perspectiva histórica é fundamental para se compreender o quanto essas catego-

Por Nara Rivitti – Defensora Pública Federal de 2ª Categoria em São Paulo – SP

EditorialPor Fernando Mauro Barbosa de Oliveira Junior

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Caminhos da Justiça: A Defensoria Pública da União e a Pesquisa de Necessidades JurídicasPor André Carneiro Leão

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Dignidade trans: visibilidade e cidadania contra a violência sistêmicaPor Daniela Lorena León Graça e Pedro Rennó Marinho

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A prisão domiciliar – Um outro enfoquePor Carolina Soares C. Lucena de Castro

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EntrevistaEntrevista com Ari Areia e Helena Vieira

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Notas

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rias são socialmente construídas. Por exem-plo, Laqueur destaca que “o lugar-comum da psicologia contemporânea – de que o homem deseja o sexo e a mulher deseja relacionamentos – é a exata inversão das noções do pré-Iluminismo que, desde a Antiguidade, ligava a amizade aos homens e a sensualidade às mulheres”. 1 Assim, as re-presentações sociais de homens e mulheres mudam conforme as necessidades e valores de cada época.

Apesar da dominação masculina nas sociedades centrais ser muito anterior, é relevante observar que o sistema de sexo-gênero hoje vigente tem suas raízes na Ilus-tração. Durante a Ilustração se preconizava a ideia de que todos os homens nasciam li-vres e iguais e dotados de razão, pensamento que contém potente carga revolucionária, considerada à época. Entretanto, apesar do esforço de revolucionárias como Olympe de Gouges (guilhotinada) e Mary Wollsto-necraft, a Revolução Francesa não estendeu às mulheres a liberdade e a igualdade, que permaneceram adstritas ao universo mascu-lino.

É emblemático na formulação teóri-ca da subordinação feminina contemporâ-nea o livro V de Emílio ou da Educação, de Rousseau, que se dedica à educação das mulheres:

Las doncellas deben ser atentas y laboriosas, pero no basta con esto; desde muy pequeñas deben estar sujetas. (…) Es preciso acostumbrarlas a la sujeción cuanto antes, con el * n de que nunca les sea violenta; a resistir todos sus caprichos, para su-jetarlos a las voluntades ajenas. Si quisieran estar siempre trabajando, sería conveniente obligarlas a que algunas veces holgasen. La disipación, la in-sustancialidad, la inconstancia, son defectos que fácilmente nacen de sus primeros gustos extraviados y siempre cumplidos; para atajar esos excesos, en-señadlas a que se venzan continuamente. En nues-tras desatinadas costumbres, la vida de una mujer

honesta es una perpetua lucha consigo misma. 2

Aos homens, a educação para a liber-dade; às mulheres, a educação para a obedi-ência. Para fundamentar essa distinção, na Ilustração já não era mais possível recorrer unicamente à religião e, como em tantos outros temas, recorreu-se a argumentos da

1 Laqueur, T. Inventando o sexo. Rio de ja-neiro: Relume-Dumará, 2001, p. 15.2 Rousseau, J. J. Emilio o la Educación. Consultado em <http://www.medellin.edu.co/sites/Educativo/repositorio%20de%20recursos/Rousseau_JeanJac-ques-Emilio%20O%20La%20Educacion.pdf>, p. 415.

ordem da natureza.Aprofunda-se a partir da Ilustração

uma visão dicotômica da realidade, do mas-culino associado a elementos como cultura, liberdade, universalidade, mente, razão, en-tendimento, ética da justiça, competitivida-de, lazer, e o feminino associado a elementos como natureza, necessidade, particularida-de, corpo, paixão, sentimentos, ética do cui-dado, caridade, ser. A nascente preocupação com as crianças na época vem atrelada à atribuição às mães das responsabilidades da criação, alterando as relações familiares até então existentes e constituindo a ideia de maternidade tal qual hoje concebida.

O desenvolvimento das democracias ocidentais inaugurou um novo campo so-cial e político de igualdade e liberdade: o campo da cidadania, do qual as mulheres foram excluídas. A adstrição das mulheres ao âmbito doméstico-privado é o mecanis-mo pelo qual a tradição ilustrada e liberal consumou a exclusão das mulheres das pro-messas ilustradas de igualdade e liberdade. Com isso não se ignora que muitas mulhe-res eram parte importante da mão de obra, (mal) remunerada ou escravizada, mas que, apesar de participarem minimamente desse espaço público, não tinham voz ou direitos e acumulavam toda a tarefa reprodutiva doméstica, arcando com o cuidado (não re-munerado) da classe trabalhadora.

Os diferentes trabalhos (no lar e no mercado) não gozam – nem hoje nem nas origens do sistema capitalista - do mesmo reconhecimento social. A valoração hierár-quica, resultado de uma larga tradição pa-triarcal, estabeleceu uma visão da sociedade dividida em duas esferas. A esfera pública, masculina, é centrada nos âmbitos social, político e econômico-mercantil, regida por critérios de êxito, poder, direitos de liber-dade e propriedade universais. Já a esfera privada (doméstica), feminina, é centrada no lar e baseada em laços afetivos e senti-mentais, e desprovida de qualquer ideia de participação social, política ou produtiva. A face visível é sempre a pública-masculina, enquanto a face privada-feminina é invisi-bilizada e não remunerada.

Assim, na construção contemporânea de masculino e feminino, são atribuídos es-paços sociais diferentes a cada um dos gêne-ros, com prejuízo às mulheres.

Essa diferença entre os gêneros é

transformada em uma questão de nature-za, suprimindo-se as construções sociais. A diferente função reprodutiva é posta como elemento central para a determinação dos papéis sociais. A maternidade, dentro do casamento heterossexual, torna-se o desti-no inato das mulheres. Para assegurar que o homem não transmita sua herança senão aos seus próprios descendentes, o adultério feminino é duramente apenado, enquanto o masculino é penalmente irrelevante. Lite-ratura, brinquedos e outras representações sociais – destacam-se, entre as formas mais contemporâneas, a novela e a publicidade - servem para rea1 rmar e naturalizar as dife-renças e desaconselhar o desvio das normas de gênero. As normas penais punem o des-vio. Leis civis retiram direitos das mulheres, criando sua dependência legal do homem.

Apesar de o âmbito doméstico ser feminino, permanece a autoridade mascu-lina, gerando níveis alarmantes de violência doméstica que persistem ainda hoje, mes-mo depois de se por de manifesto as relações de poder que estruturam a família e a sexua-lidade. Todas as tarefas de cuidados são atri-buídas às mulheres, que continuam a arcar de forma desproporcional com os cuidados de crianças e demais dependentes, como 1 -lhos, maridos e irmãos de1 cientes, pais ido-sos, sem qualquer remuneração. Na prática cotidiana da Defensoria Pública constata-se não só esse ônus desigual, mas como isso tem repercussões profundas na vida laboral das mulheres (muitas vezes mais descontí-nuas) e consequentemente na sua condição socioeconômica.

Diversos estudos sobre a masculinida-de também evidenciam como os estereóti-pos de gênero afetam os homens, que, por exemplo, 1 guram em estatísticas criminais de homicídios como agentes e como víti-mas em quantidades muito mais elevadas.

Neste campo, às instituições cabe lu-tar para combater os estereótipos de gêne-ro e suas consequências nefastas, buscando a redução das desigualdades existentes. O direito, que por muito tempo foi um ins-trumento de criação e manutenção das desi-gualdades, deve hoje ser utilizado como um meio de transformação social em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.

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Editorial Por Fernando Mauro Barbosa de Oliveira Junior Diretor da ESDPU, Defensor Público Federal de Categoria Especial

A ESDPU, com o desígnio de provocar a discussão e a difusão de co-nhecimento sobre as relações entre Gê-nero e Direito, direcionou esta 6ª edição do Fórum DPU para esta temática, cujo assunto está na ordem do dia de todos os que laboram com as ciências jurídicas.

A capa do nosso Jornal foi des-tinada à Dra. Nara Rivitti que abordou a histórica desigualdade dos papéis so-ciais atribuídos a mulheres e homens, sugerindo que cabe às Instituições, por meio do Direito, que outrora fora ins-trumento de construção e consolidação desta diferenciação, enfrentar o impacto negativo deste processo para fomentar uma “sociedade mais justa e igualitária”.

Em decorrência de evento de capacitação custeado por esta Escola, o Dr. André Carneiro participou do 7º

Congresso da Associação Brasileira de Sociologia do Direito, que, dentre ou-tros temas, abordou a elaboração de pes-quisas jurídicas sobre necessidades jurí-dicas, de forma a promover a efetividade do acesso à justiça e permitir que a De-fensoria Pública, no mínimo, conheça melhor o destinatário de seus serviços. Para tanto, referência foi feita ao ques-tionário, concebido na Inglaterra, Paths to Justice.

Mantemos a proposta inicial, desde a 1ª edição do Jornal, destacando uma seção para os Grupos de Trabalho da DPU apresentarem suas respectivas re@ exões e propostas. Aqui, o Grupo de Trabalho LGBPTI, por intermédio do Dr. Pedro Rennó e da graduanda Danie-la Lorena, debatem o universo trans e os obstáculos vivenciados por estas pessoas,

indicando algumas ações deste GT. A Dra. Carolina Castro analisa

a alteração legislativa realizada pela Lei nº13.257/2016 (Estatuto da Primeira Infância) que, dentre outros dispositi-vos, altera o CPP. A alteração, segundo a autora, apesar de perpetuar estereótipos sociais, tem o efeito imediato positivo de “evitar a desagregação familiar”.

Por 1 m, o Fórum DPU apre-senta entrevista realizada com Ari Areia, ator, jornalista, militante de direitos hu-manos e ativista LGBT, e Helena Vieira, escritora, transfeminista e pesquisadora em Política, Gênero e Teoria Queer. A partir de um olhar externo à prática da DPU, a entrevista re@ ete os novos e atu-ais dilemas da sociedade que permeiam a comunidade LGBPTI.

Boa leitura!

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Caminhos da Justiça: A Defensoria Pública da União e a Pesquisa de Necessidades Jurídicas

A assistência jurídica, integral e gra-tuita, pode ser considerada uma política pública. Como tal, para ser legítima e e1 -ciente, ela precisa ser devidamente planeja-da, executada e constantemente reavaliada. Tradicionalmente, as políticas públicas em matéria de acesso à justiça são de1 nidas de cima para baixo, isto é, são pensadas e impostas por autoridades representativas do Estado, sem que se dê voz (e se escu-te efetivamente) àqueles que mais precisam: os hipossu1 -cientes.1 Desse modo, não é incomum que os recur-sos, humanos e materiais, sejam destinados de forma desigual entre as diversas re-giões do país, sem critérios racionais bem de1 nidos, não atingindo aqueles que mais precisam. A distribui-ção desses recursos não cos-tuma observar também as peculiares necessidades de grupos diversos de minorias sociais. Indígenas, quilombo-las, mulheres, negros, população LGBTI, imigrantes, população em situação de rua, entre outros, são exemplos de grupos de pessoas que demandam ações especí1 cas e atendimento especializado para a garantia de seus direitos.

As pesquisas sobre necessidades jurídicas, fundadas no método desen-volvido na Inglaterra do Paths to Justice,2 têm proporcionado novas perspectivas na de1 nição das políticas públicas de acesso à justiça. Em linhas gerais, tais pesquisas

1 UPRIMNY, R.; LA ROTA, M. E., et al. En-cuesta nacional de necesidades jurídicas y ac-ceso a la justicia. Disponível em: <http://www.dejusticia.org/f i les/r2_actividades_recursos/$ _name_recurso.618.pdf>. Acesso em: 09/03/16.2 A obra de referência sobre o tema é a de H. Genn. Cf.: GENN, H. Paths to justice: what people do and think about going to law. Oxford: Hart, 1997.

propõem a aplicação de surveys para apurar quais problemas são efetivamente os mais enfrentados pelas pessoas nas diversas regi-ões do país. Com questionários bem estru-turados e com linguagem a mais simples possível (evitando até mesmo qualquer

remissão a termos jurídicos), tais pesqui-sas identi1 cam as situações justicializáveis (justiciable problems) mais comuns em determinada população, assim como o ca-minho percorrido por quem com elas se deparou.3 Reconheceu aquilo como um problema jurídico? Tomou alguma provi-dência? Quem procurou para resolvê-los? Quais estratégias de resolução adotou? Es-sas são algumas perguntas que as pesquisas de necessidades jurídicas pretendem res-ponder.

Os resultados dessas pesquisas de-monstram que, embora com algumas variações em termos de intensidade e quantidade, os problemas jurídicos se re-petem nos diversos países. São situações que envolvem especialmente relações de

3 PLEASENCE, P.; BALMER, N.J.; SANDEFUR, R. L. Paths to Justice: a past, present and future roadmap. London: Centre for Empirical Legal Studies, 2013.

consumo, relações trabalhistas e o direito de família.4 Revelaram também que não são raros os casos em que, por desconhe-cimento ou por desesperança, os titulares de direitos deixam simplesmente de buscar a resolução para seus problemas jurídicos.

Chama a atenção, ademais, a constatação de que, quan-to mais órgãos ou pessoas são necessárias para infor-mar o local exato para a re-solução do problema, maior o índice de desistência e de necessidades jurídicas insa-tisfeitas.

Desde meados dos anos 1990, já foram reali-zadas cerca de 26 pesquisas de escala nacional, em 15 jurisdições distintas. Em-bora pesquisas baseadas nes-se método já tenham sido desenvolvidas em diversos países, como Argentina, Colômbia, Austrália, entre

outros, jamais algo semelhante foi reali-zado no Brasil. É preciso registrar que as pesquisas que se alinham ao método do Path to Justice, por demandar a aplicação de questionários a um grande número de pessoas, em escala nacional, tornam indis-pensável o elevado 1 nanciamento (público ou privado) e a contratação de pro1 ssio-nais diversos para o seu desenvolvimento.

Em fevereiro de 2016, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em parceria com o grupo de pesquisa do Pro-fessor (e Defensor Público) Cléber Fran-cisco Alves promoveu o I Seminário Inter-nacional Necessidades Jurídicas no Brasil, que contou com a presença do Professor Pascoe Pleasance, da University College of

4 Ressalte-se que as pesquisas Sobre necessi-dades jurídicas, tradicionalmente, referem-se apenas a matérias cíveis, isto é, não incluem es-tudos sobre problemas jurídico-criminais.

Por André Carneiro Leão - Defensor Público Federal de 1ª Categoria em Recife – PE

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London, que é um dos responsáveis pelo projeto Paths to Justice na Inglaterra. Na ocasião, a partir do diálogo com institui-ções como a Open Foundation, o IBGE, o IPEA, a FGV, entre outras, foram planta-das as sementes para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre necessidades jurídicas no Brasil.

Com o intuito de expandir as discus-sões em torno do método desenvolvido no Path to Justice, a Escola Superior da Defen-soria Pública da União patrocinou a reali-zação de mesa de debates com o Professor Cléber Francisco Alves no 7º Congresso da Associação Brasileira de Sociologia do Direito, realizado entre os dias 17 e 20 de maio de 2016, em Fortaleza-CE. Na oca-sião, que contou com a participação de Defensores Públicos Federais e Estaduais, evidenciou-se a necessidade de dar conti-nuidade a tais discussões por meio do gru-po de pesquisa de âmbito nacional.

A realização da mesa no Congresso da ABRASD permitiu a capacitação dos

Defensores Públicos Federais na metodo-logia da pesquisa de necessidades jurídicas e o estreitamento de laços institucionais com diversos pesquisadores, que podem com suas pesquisas contribuir para o aper-feiçoamento das atividades da DPU. Além disso, considerando o novo modelo de atu-ação temática da DPU em Grupos de Tra-balho e a proximidade dos temas objetos desses GTs e os dos Grupos de Pesquisas da ABRASD, acredita-se que a participa-ção dos Defensores no referido Congresso pode ensejar o desenvolvimento de pesqui-sas e de convênios com diversas universi-dades do país, permitindo o planejamento de capacitações mais profundas e extensas no futuro.

Com a nova roupagem constitucio-nal, a Defensoria Pública deixou de ser apenas a executora ou mero instrumento de acesso à justiça dos mais necessitados, convertendo-se em instituição autônoma com poder para gerir seu aparato adminis-trativo e orçamentário. Passou a compor,

assim, o quadro de protagonistas na de1 -nição dos meios que permitam o efetivo acesso à justiça e, nesse contexto, é funda-mental que possua mecanismos para aper-feiçoar seus instrumentos de ação.

Enquanto não viabilizada a realização de pesquisa em escala nacional no Brasil, julgamos ser possível realizar adaptações à metodologia de pesquisa do Paths to Justice e aplicar questionários semelhantes para entender a complexidade e a rede de neces-sidades jurídicas de um grupo especí1 co de vulnerabilizados (os grupos assistidos pelos GTs da DPU, sem especial indígenas, qui-lombolas, mulheres, população LGBTI, imigrantes, catadores e população em situ-ação de rua). Tais questionários podem ser aplicados também no âmbito do Projeto “Defensoria para Todos”. Se não servirem para a extração de conclusões cientí1 cas, servirão, ao menos, para conhecermos me-lhor parcela importante de nossos assisti-dos, contribuindo para decisões adminis-trativas melhor fundamentadas.

O Grupo de Trabalho (GT) Identi-dade de Gênero e Cidadania LGBTI bus-ca o avanço da cidadania e a diminuição da violência estrutural. Em outras pala-vras: o Estado Brasileiro de Direito trata as populações em destaque como quase cidadãos, com menos direitos civis, legi-

timando a sua marginalização e aplaudin-do silenciosamente a violência que lhes é imposta diariamente.

Em foco a identidade de gênero, o desa1 o é suplantar a ignorância geral e institucional a respeito. E quando há ig-norância, violência, discriminação e pre-

conceito predominam sem pudor, violan-do a dignidade inerente às pessoas trans que são e existem.

A Organização das Nações Unidas divulgou em dezembro de 2011 o primei-ro relatório global sobre os direitos huma-nos LGBT, em que reconhece que essas

Dignidade trans: visibilidade e cidadania contra a violência sistêmicaPor Daniela Lorena León Graça – Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Amazonas e Pedro Rennó Marinho – Representante do Grupo de Trabalho Identidade de Gênero e Cidadania LGBTI para a Região Norte, Defensor Público Federal de 2ª Categoria em Manaus - AM

Laerte

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pessoas são alvo de abusos de extremistas religiosos, paramilitares, neonazistas, ul-tranacionalistas, dentre outros grupos. Destaca a situação de risco peculiar de mulheres lésbicas e dos/as transexuais.1

Para a presidenta da Associação Na-cional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), Cris Stefanny, os casos de violên-cia são subnoti1 cados. “Grande parte das mulheres trans e travestis não têm acesso à informação e aos meios de comunica-ção. E elas não denunciam. Há poucos dados reais sobre essa violência, que é ve-lada”, a1 rma.2

Em combate à ignorância e adotan-do os conceitos utilizados pela Comissão Inte-ramericana de Direitos Huma-nos (Princípios de Yogyakarta), e s c l a r e c e m o s que identidade de gênero é “vi-vência indivi-dual de gênero tal como cada pessoa se sente profundamente, a qual poderia corresponder ou não com seu sexo desig-nado no momento do nascimento”.3 Pes-soas transexuais seriam aquelas que “[se] sentem e se concebem a si mesmas como pertencentes ao gênero oposto que social e culturalmente se designa a seu sexo bio-lógico e que optam por ter intervenções médica – hormonal, cirúrgica ou ambas – para adequar sua aparência física-bio-lógica à sua realidade psíquica, espiritual 1 MACIEL, W. C. Um panorama da violência ho-mofóbica no Brasil – A homofobia é um proble-ma estrutural no Brasil e atinge jovens, negros e pardos, nas ruas e em suas próprias casas. Carta Capital. Disponível às 21:34 do dia 27/04/2016. <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/um-panorama-da-violencia-homofobica-no-brasil>.2 CAZARRÉ, M. Com 600 mortes em seis anos, Bra-sil é o que mais mata travestis e transexuais. Repór-ter da Agência Brasil. Disponível às 23:34 do dia 20/04/2016 <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direi-tos-humanos/noticia/2015-11/com-600-mortes-em-seis-anos-brasil-e-o-que-mais-mata-travestis-e>.3 [Tradução Livre] Consejo Permanente de la Orga-nizació n de los Estados Americanos. Comisió n de Asuntos Jurí dicos y Polí ticos. OEA/Ser.G CP/CAJP/INF. 166/12 23 abril 2012 Original. españ ol. Pág. 5. Disponível às 18:34, de 28/03/2016 <http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/CP-CAJP-INF_166-12_esp.pdf>.

e social”.4 A Organização Mundial da Saúde –

OMS –, em posição ultrapassada e injus-ti1 cável, considera o transexualismo (sic) como uma doença mental (CID F-64.0). A despatologização da transexualidade é uma das pautas de luta do Grupo de Tra-balho.

Em paralelo à criminalização do fe-minicídio, a população transsexual segue invisível e sujeita à violência estrutural.5 A inclusão da identidade de gênero nos planos escolares gera resistência por seto-res conservadores, que insistem em redu-zir a dignidade trans a suposto debate de

ideologia de gênero. Desnaturam o con-ceito de ideologia, pervertem a identida-de de gênero e amesquinham a dignidade em contexto de diversidade.

A questão do uso de banheiros pú-blicos chegou ao Supremo Tribunal Fe-deral (RE 845.779), estando pendente de julgamento. Por ocasião da primeira sessão de julgamento, o ineditismo da matéria e seu desconhecimento pelos Mi-nistros 1 caram patentes. Urge que todos os operadores do direito possuam forma-ção de direitos fundamentais e humanos em contexto de diversidade.

Destoando da insensibilidade e des-preparo gerais, comuns entre operadores do direito, o Min. Luís Roberto Barro-so, destacou: “os transexuais são uma das minorias mais marginalizadas e estigma-tizadas na sociedade. Para que se tenha

4 Idem nota nº 1. Tradução Livre.5 ROQUE, S. – Observatório sobre Crises alter-nativas. Disponível às 23:34 do dia 26/04/2016<http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/in-dex.php?id=6522&id_l ingua=1&pag=7865>.

uma ideia da gravidade do problema, o Brasil lidera o ranking de violência trans-fóbica, registrando o maior número abso-luto de mortes no cenário mundial. De acordo com informativo divulgado neste ano pelo Projeto de Monitoramento de Homicídios Trans (Trans Murder Mo-nitoring Project), entre janeiro de 2008 e dezembro de 2014, foram registrados 1.731 casos de homicídios de pessoas trans em todo o mundo, sendo que 681 destes dizem respeito ao Brasil (i.e., cer-ca de 40%). Não por acaso, a expectativa de vida desse grupo é de apenas cerca de 30 anos, muito abaixo daquela apontada

pelo IBGE para o bra-sileiro médio, de qua-se 75 anos.” 6

U l t r a p a s s a -da essa introdução inicial à realidade trans, apresentamos algumas iniciativas em curso, buscando sempre propulsionar visibilidade e dar voz às pessoas trans: (1) uso do nome social pelos assistidos da DPU (Resolução nº 108/2015/CSDPU);

(2) viabilização de audiência pública sobre ambulatório trans no Distrito Fe-deral, em parceria com o Dr. Eduardo Queiroz; (3) realização de audiência pú-blica sobre doação de sangue por homens que fazem sexo com homens, em São Paulo, no último dia 9 de maio de 2016, em que se destacou o tratamento das mu-lheres trans como homens pela rede de saúde; (4) projeto em andamento para a promoção da empregabilidade trans.

O GT está à disposição para am-pliar parcerias com os movimentos so-ciais, pessoas afetadas ou ativistas, entes privados ou órgãos públicos, inclusive para maior esclarecimento sobre as inicia-tivas apresentadas ([email protected]).

6 Disponibilização na íntegra dos argumentos do ministro Barroso no julgamento sobre transe-xuais, às 20h do dia 18/04/2016 <http://jota.uol.com.br/leia-a-integra-dos-argumentos-do-minis-tro-barroso-no-julgamento-sobre-transexuais>.

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O que é um ser humano? Partindo desse questionamento, a autora Robin West aponta para a visão de alguns dos teóricos do direito de que o ser humano, mais do que qualquer outra tentativa de de1 nição, está 1 -sicamente separado de todos os outros seres humanos.1 Descrição, essa, que seria ade-quada quando lidamos com o gênero mas-culino, mas que não seria adequada quando pensamos no gênero feminino.

Em razão dessa experiência subjetiva masculina da inevitável separação do resto dos indivíduos, os teóricos liberais descreve-riam uma vida interior do homem animada pelos sentimentos de liberdade e de autono-mia, mas sempre ameaçada pelo perigo de aniquilação por parte desse outro, já que os seres e seus objetivos seriam diferentes e po-deriam entrar em con@ ito.

Assim, construída sobre essas bases, toda a nossa teoria do direito atual seria es-sencial e irreparavelmente masculina, ope-rando sob a lógica do patriarcado, privile-giando interesses e valores compartilhados por homens, enquanto a mulher encontrar-se-ia alijada tanto do processo de produção das leis quanto de sua esfera de proteção.

Por outro lado, para Robin West, a a1 rmação de que somos indivíduos pri-meiro, e o que nos separa é epistemologi-camente anterior ao que nos une, seria falsa em relação às mulheres, tendo em vista que elas não estariam essencial e necessariamente separadas de outros seres humanos. Muito pelo contrário, a vida da mulher seria mar-cada pelo potencial de conexão com o outro, considerando, sobretudo, a experiência pro-porcionada pela gravidez.

Essa visão, sem dúvida, necessita ser analisada conjuntamente com a ideia de que o ser humano é um ser social por natureza, que desenvolve suas formas de percepção e interação com o mundo, e consigo próprio, a partir de valores compartilhados cultural-mente. Portanto, dados biológicos, e aqui inclui-se a experiência subjetiva da gravidez, talvez sejam insu1 cientes para apontar as di-ferenças que marcam a forma de agir e pen-sar de um homem e uma mulher.1 West. R. Gênero y teoria del derecho. 2000. p. 69-70

A prisão domiciliar - Um outro enfoquePor Carolina Soares C. Lucena de Castro – Defensora Pública Federal de 2ª Categoria no Rio de Janeiro

https://revistalibertas.wordpress.com/2015/09/07/homens-e-o-feminismo-reveja-seus-privilegios-parca/

De qualquer forma, tomando como ponto de partida o fato de que homens e mulheres diferenciam-se sobremaneira em suas formas de encararem e se relacionarem com o mundo – sejam por fatores biológi-cos ou culturais – fato é que a produção e a aplicação do Direito estão calcados em uma visão de mundo marcadamente masculina, em que todas as atenções estão voltadas às re-lações estabelecidas no âmbito da esfera pú-blica, relegando-se à esfera privada um papel secundário e sem importância, justamente por ser o papel destinado historicamente à mulher.

Partindo de um olhar diferenciado, a Lei nº 13.257/2016 (Estatuto da Primeira

Infância) introduziu três novos incisos ao artigo 318 do Código de Processo Penal, prevendo a possibilidade de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar à mulher gestante, à mãe que tenha 1 lho me-nor de 12 (doze) anos de idade e ao homem, também no caso de possuir 1 lho menor de 12 (doze) anos de idade, mas desde que comprove ser o único responsável pelos cui-dados da criança, condição, essa, não exigida para a mãe.

Com tal diferenciação de critérios – a serem preenchidos por pais e mães para a obtenção do direito à prisão domiciliar – a lei deixa transparecer uma visão da mulher como principal, quase única, pessoa res-

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EntrevistaEntrevista com Ari Areia – ator, jornalista, militante de direitos humanos e ativista LGBTe Helena Vieira – escritora, transfemista e pesquisadora em Política, Gênero e Teoria Queer.

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1. Em sua opinião, pode ser o direito um instrumento de prote-ção e empoderamento das diferen-tes identidades de gênero? Quais são os maiores desa1 os que o direi-to encontra para se tornar este ins-trumento?

Ari Areia: Enquanto ator, jornalista, militante pelos direitos humanos e ativista LGBT tive uma experiência bastante deslo-cadora quando do processo de montagem do espetáculo mais recente de meu grupo, a peça Histórias Compartilhadas. Trata-se de um do-cumentário cênico sobre homens transexuais. Meu processo de compreensão sobre o uni-verso trans começou com uma entrevista que 1 z em 2013 com João W Nery (primeiro ho-mem transexual brasileiro a fazer modi1 cação cirúrgica no corpo, ainda na época da ditadu-ra). Foi um divisor de águas aquela conversa, vou falar mais sobre ela a seguir. Mas, antes

de mais nada, uma questão a ser entendida, quando entramos nesse campo de discus-são, é a de1 nição de transexualidade. A ho-mossexualidade, de conhecimento geral, diz respeito à afetividade: quando um indivíduo tem direcionado seu afeto a outro do mesmo gênero (um casal de homens, por exemplo, ou um casal de mulheres). A transexualidade diz respeito a outra condição: a da identidade. O procedimento padrão nas maternidades é designar as pessoas como sendo de um gêne-ro (masculino ou feminino), devido ao órgão genital com que nascem (pênis ou vagina). A maioria das pessoas acaba se identi1 cando com o gênero que lhes é atribuído, mas isso não acontece com todo mundo.

O João Nery, por exemplo, conta no seu livro autobiográ1 co Viagem Solitária que, enquanto criança, nunca entendia porque insistiam em lhe por com vestidinhos e lhe darem bonecas. Até que foi crescendo e per-cebendo que havia alguma coisa diferente en-

tre seu corpo e o corpo dos outros meninos. A leitura dos relatos de vida de João Nery é fun-damental para desconstruir as caixinhas tidas como “naturais” e que geram tanta opressão à quem não cabe nelas. Em Fortaleza, ele me perguntou se eu era menos homem do que meu pai, porque eu era gay. Respondi que não. Ele sorriu e perguntou: e eu sou menos homem do que você, por que não tenho pê-nis? O que faz de alguém homem? Beauvoir, quando diz a emblemática frase, “não se nas-ce mulher, torna-se”, está abrindo espaço para uma re@ exão fundamental: o gênero como algo construído socialmente, comportamen-tal, não natural. E esse debate é importante não apenas às artes ou à psicologia, mas tam-bém ao direito. E é nisso que esta entrevista pretende chegar. Acredito que a base da trans-fobia está na falta de repertório, de leitura e de re@ exão sobre a transexualidade. A LGBTfo-bia, de forma geral, se combate como todos os demais preconceitos, com informação.

ponsável pela prole, presumindo o seu con-1 namento ao espaço privado das relações domésticas.

Em que pese a perpetuação desse tipo de visão do mundo – que necessita ser mo-di1 cada – fato é que a lei traz signi1 cativos avanços para contrapor-se à triste realidade vivenciada por milhares de mulheres encar-ceradas, colocadas em presídios sub-huma-nos, privadas do convívio com seus 1 lhos, em razão da prática de crimes – em sua maioria – cometidos sem violência ou grave ameaça.

Ainda que não possa ser considerado um direito subjetivo, o legislador fez uma clara escolha: o interesse dos menores, que nesse caso é o mesmo da mãe, converte-se em importante guia para atuação do (a) ma-gistrado (a), o (a) qual deve ter em mente que esta é uma das raras manifestações le-gislativas penais em que a vida familiar e privada da pessoa acusada é levada em con-sideração, com a dispensa de tratamento es-pecí1 co e humanizador.

Portanto, o ônus argumentativo do (a) julgador (a) para a negativa da conces-

são desse direito à prisão domiciliar torna-se maior e deve ser especí1 co, uma vez que a decretação ou manutenção da prisão pre-ventiva com base em argumentações genéri-cas e abstratas, desprovidas de um olhar mais casuístico, não pode prosperar nessas situa-ções, face à clara ponderação já formulada pelo Estado quando da operacionalização da mudança legislativa.

Recentemente, a Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro teve um pedi-do de prisão domiciliar indeferido, tanto em primeira quanto em segunda instância, no caso de uma mãe de quatro 1 lhos menores de 12 (doze) anos de idade com base no ar-gumento da suposta gravidade abstrata do delito de trá1 co internacional de munições, permanecendo a assistida encarcerada longe dessas crianças enquanto o processo crimi-nal tramita.

Nesse caso concreto, a instrução cri-minal já havia se encerrado, a acusada era primária, com anotações de vínculos em-pregatícios na carteira de trabalho, tendo restado comprovado que a sua liberdade não representaria de forma alguma risco à

aplicação da lei penal. Entretanto, com base no subjetivo argumento de garantia à ordem pública, foi-lhe negada a prisão domiciliar, desprezando-se a gravidade em concreto promovida no seio dessa família com tal de-cisão.

Ainda estamos longe do ideal, que se-ria alcançado se os requisitos a serem preen-chidos por homens e mulheres, pais de 1 lhos menores de 12 anos, para obtenção da pri-são domiciliar, fossem idênticos. Contudo, a mudança legislativa – mesmo contribuindo para reprodução de estereótipos sociais – re-presenta, numa visão imediatista, signi1 ca-tivo avanço ao tentar evitar a desagregação familiar, ocasionada com o encarceramento injusti1 cado de mulheres que são privadas do convívio com seus 1 lhos.

A interpretação da lei, pautada no referencial de dignidade exigida por nossa Constituição, exige que nossos magistra-dos percebam que a mudança legislativa operou uma mudança de foco, permitindo um olhar além da 1 gura do réu, ou ré, para enxergar um ser humano em conexão com demais seres humanos.

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Ora, a Constituição Federal dispõe so-bre direitos fundamentais que são garantidos pelo texto magno, mas nem sempre são asse-gurados na prática, no dia-a-dia. Estou falan-do sobre educação, por exemplo, os dados são subestimados, então nem vale apena citá-los, mas vamos pensar de forma mais prática: quantas travestis dividiram sala de aula com você na universidade? A taxa de evasão escolar entre a população TT é alta. A escola expulsa essas pessoas porque não sabe lidar com elas. É a negação de um direito básico que compli-ca a vida deles e delas completamente. Não é à toa que tantas meninas travestis, expulsas de casa, da escola, acabam parando na explora-ção sexual. E a gente poderia falar aqui sobre diversas outras negações graves de direitos bá-sicos por transfobia.

O maior desa1 o a ser enfrentado é a compreensão sensível sobre a diversidade das condições de manifestação das identidades de gênero humanas e, a partir disso, a atuação sistemática que garanta a todas e todos o que são direitos constitucionais, à educação, à saú-de, à moradia, ao lazer, a existir. Esses ainda são direitos violados, inclusive, pelo Estado.

2. Em sua opinião, quais identi-dades de gênero merecem uma maior atenção do direito?

Helena Vieira: Há, sabemos bem, um processo de vulnerabilização a quais estão submetidas determinadas identidades, mar-cadamente, as identidades de gênero não cisgêneras,1 ou seja, as identidades das pessoas trans, que, ao longo de sua vida ou às vezes muito cedo, perceberam que não se identi1 -cam com o gênero atribuído ao nascer. Ho-1 Pessoa cisgênero é aquela que se sente confor-tável com o gênero atribuído ao nascer. Pessoas transgênero são as que não se sentem confortá-veis e por isso transicionam, mudam de gênero.

mens e mulheres transexuais e travestis. Neste sentido é possível pensar que são identidades que demandam maior atenção do direito, considerando, principalmente, a quantidade de “ negativas” pelas quais essas existências são marcadas: negativas em relação ao nome social, em relação ao processo de reti1 cação de nome e sexo civis, em relação ao acesso à saúde. Além, obviamente, das constantes vio-lências e agressões vividas diariamente.

3. Em que medida, em um de-bate acerca da identidade de gênero, você relaciona a luta pelos direitos das mulheres e a luta LGBT? Há espaço para complementaridade?

Há uma complementaridade inevitável nestas lutas, inicialmente porque os aspectos de gênero presentes nas lutas LGBT envol-vem mulheres ( Mulheres lésbicas, bissexuais e mulheres trans). Há uma tendência, que considero negativa, de buscar isolar as iden-tidades de sua constituição histórica e dos biopoderes que incidem sobre os corpos, entende? Tanto a comunidade LGBT quan-to as mulheres não LGBT estão submetidas ao controle do corpo e da sexualidade que emanam de um ordenamento especí1 co do discurso, dos padrões e das verdades. Ordena-mento esse que, operando nas subjetividades e nas formas de ser e fazer dos sujeitos, clas-si1 ca como anormal ou mantem interditado tudo aquilo que desvia dos padrões hegemô-nicos da masculinidade, da feminilidade, da heterossexualidade e da cisgeneridade. Os movimentos feministas e LGBTs inserem-se, penso eu, em um conjunto maior de lu-tas: as somato-políticas, na medida em que, constituir formas de resistência às violências discursivas, simbólicas 1 sicas e tantas outras que se impõe sobre os corpos e identidades

subalternas é fundamental. Um simples olhar histórico para a condição das mulheres e dos homossexuais, revela, por exemplo, inter-nações compulsórias em sanatórios ( como é possível ver nos relatos do manicômio do Juquery, ou ainda na vida da artista Camile Claudel) constituídas a partir da suposição de que estes sujeitos viviam “contra a natureza”. Não há como separar, radicalmente, a luta pe-los direitos das mulheres e as questões LGBT, principalmente, as questões de identidade de gênero. A noção de gênero, como categoria de análise histórica, é útil para perceber que as noções do que é “ ser homem” e do que é “ ser mulher” possuem centralidade nas rela-ções de poder em nossa sociedade, interrogar tais noções, do ponto de vista epistemológico, promovendo a sua desnaturalização é funda-mental para a ampliação dos direitos das mu-lheres cis e trans, como resgate à autonomia sobre o próprio corpo e à identidade.

4. Há um debate acerca da possibilidade de mulheres transexu-ais serem protegidas pela Lei Maria da Penha. Qual o seu posiciona-mento sobre o tema?

Helena Vieira: Creio que seja abso-lutamente correto, principalmente por-que mulheres transexuais são mulheres, ora. Além da proteção da Lei Maria da Penha, acredito que os crimes de morte contra mulheres trans e travestis, nas con-dições determinadas pela Lei, devam ser entendidos a partir da Lei do Feminícidio. Se partirmos do pressuposto, já bastante estabelecido no campo das ciências sociais e da 1 loso1 a, de que mulheres trans são mulheres, então não há sentido que haja uma distinção na Lei, que impeça que toda uma categoria de mulheres não aces-

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se aquilo que é direito de todas as mulhe-res. O reconhecimento jurídico da identi-dade de gênero não apenas no que tange ao acesso à reti1 cação de nome e sexo, mas também quanto ao reconhecimento amplo da identidade, noutros espaços da legalidade, contribuem na construção de uma cultura jurídica de respeito a estas identidades.

5. A Defensoria Pública da União reconhece o uso do nome social. Você teria alguma sugestão de medidas que possam ser adota-das de forma a garantir o reconhe-cimento da identidade de gênero pela administração pública e, em especial, pela Defensoria Pública da União?

Helena Vieira: O nome social é uma conquista importante da comunidade trans em muitos sentidos, entretanto, re-presenta uma migalha de cidadania, é uma conquista precária, uma vez que o nome civil e o sexo permanecem o mesmo, sem uma Lei que garanta um processo de reti-1 cação uniforme e acessível, o nome social é apenas um paliativo extremamente res-trito. Pessoas trans precisam enfrentar lon-gos processos judiciais e mesmo assim cor-rem o risco de ter um nome “feminino”

e o sexo nos documentos constar como “masculino” ( isso quando os juízes per-mitem reti1 cação do nome, o que não é sempre que ocorre). Numa sociedade que toma a correlação gênero/genital/docu-mentos como a tríada de1 nidora do gêne-ro das pessoas, qualquer “desordem” neste tripé invalida a existência e o reconheci-mento das identidades trans. No âmbito da administração pública, o uso do nome social é, penso eu, a medida mais adequa-da para que usuários do serviço público e funcionários possam ter sua identidade e dignidade respeitadas. Obviamente a mu-dança no processo de reti1 cação do nome e sexo civil não está ao alcance de uma re-partição pública ou da Defensoria Pública da União, entretanto, a compreensão da necessidade desta mudança, pode ser pre-sente em pareceres, publicações e demais peças por vocês produzidas, no sentido de ampliar a discussão e permitir que ela che-gue a lugares e pessoas que não conhecem ainda a demanda.

6. A Defensoria Pública da União tem um Grupo de Trabalho LGBTI. Com quais pautas você acredita que a DPU deva se envol-ver e, em especial, o Grupo de Tra-balho?

Helena Vieira: Fico bastante conten-te em saber que a DPU possui um Grupo de Trabalho LGBTI. Acredito que a o in-gresso dessas discussões dentro dos órgãos públicos, sobretudo aquelas que estão di-retamente ligados às questões de direito são fundamentais. A comunidade LGBT, principalmente as pessoas trans e travestis estão em condição extrema de precarieda-de e vulnerabilidade social, submetidas, não apenas às violências transfóbicas dire-tas, mas também à pobreza, à prostituição, à vida nas ruas e a uma série de problemas de saúde. Quando aspectos tão básicos da vida de uma população são negados, con-sequentemente o acesso à justiça é precá-rio, tanto por falta de informação, quanto por possibilidades objetivas de buscar um advogado e enfrentar um processo. Creio, nesse sentido, que debruçar-se sobre a questão do acesso à justiça por essa popu-lação seja uma demanda central e que cabe a DPU re@ etir acerca. Pra além do acesso à saúde, como já disse em outro momento, a questão da reti1 cação de nome e sexo no registro civil é extremamente importante para as pessoas trans, sem o nome, mui-tas vezes, estamos impedidas até mesmo de alugar imóveis, fechar negócios, en1 m, de levar uma vida minimamente digna e amparada em direitos.

CONTATO: [email protected] www.dpu.def.br EscolaSuperior

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TAS

ORGANIZE-SE

Nos dias 06 e 07 de dezembro, a ESDPU realizará curso de curta duração sobre as Regras Mandela e a prevenção da tortura. Dentre os especialistas con-vidados, estará Juan E. Méndez, Relator Especial da ONU contra a tortura.

O edital de seleção será publicado em breve no site: http://www.dpu.def.br/esdpu

INCENTIVO AO ESTUDO

Este semestre, o programa de idiomas destinou 40 vagas para servidores, sendo 20 vagas para inglês e 20 vagas para espanhol. Puderam participar do processo de seleção servidores lotados em todas as unidades da DPU. Devido à importância de se ampliar a capacidade de atuação pro1 ssional dos servidores e à alta demanda, espera-se que a ESDPU abra novas vagas.

FIQUE POR DENTRO

Este ano, a versão eletrônica da Revista DPU foi registrada no Internacional Stan-dard Serial Number (ISSN). Esse sistema funciona como um parâmetro para o con-trole de qualidade de revistas cientí1 cas, como também, um critério de indexação em base de dados nacionais e internacio-nais.

Ademais, a próxima edição da Revista contará com uma nova estruturação, uma vez que seus artigos serão organizados por tema. Cabe lembrar ainda que a Revista traz uma nova seção voltada para a publi-cação de boas práticas.