GÊNERO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO … · importantes do que Oliveira (2006) chama...
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GÊNERO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA:
APONTAMENTOS A PARTIR DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA
Ana Paula da Silva Santos – PUC/RJ
Rita de Cassia de Oliveira e Silva – PUC/RJ
Introdução
Nos dias atuais, pensar em educação escolar nos remeter a refletir sobre as novas
demandas do mundo contemporâneo: a construção de identidades abertas à diversidade cultural,
o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na sociedade, a valorização da
cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e estereótipos limitadores de uma
educação mais igualitária e menos excludente. (MOREIRA & CÂMARA, 2008)
Estas questões, colocadas hoje pelos movimentos sociais, pelas políticas públicas e pela
produção acadêmica, nos posicionam de modo específico diante de sujeitos históricos que
foram marginalizados e que tentam afirmar suas identidades lutando por seus direitos e
resistindo a relações assimétricas de poder. Neste sentido, a questão da diferença torna-se o
grande desafio a enfrentar por parte dos/das professores/as no espaço escolar.
Candau (2008), nos convida a pensar que não há educação que não esteja imersa nos
processos culturais do contexto em que se situa. Relata ainda que atualmente, o caráter
homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais forte, assim como a consciência da
necessidade da sua ruptura em favor da construção de práticas educativas que valorizem,
questionem e problematizem a questão da diferença.
Desta maneira, convivemos como uma forte tensão entre propostas pedagógicas
monoculturais e padronizadas e perspectivas que denunciam este caráter hegemônico e buscam
a construção de práticas educativas que levem em conta o fortalecimento e empoderamento das
diversas identidades, que valorizem os diversos conhecimentos e saberes e que articulem
igualdade e diferença.
Neste sentido, a Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar
uma interação mais ampla entre aos indivíduos também pode ser responsável por reproduzir
visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpo, atitudes
e comportamentos que colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados
historicamente.
As questões de gênero assumem, portanto, um campo importante de discussão nas aulas,
pois a Educação Física ainda é dotada de práticas culturais que reproduzem os estereótipos de
gênero e normatiza modos de ser e agir dentro de um padrão de identidade masculina, branca e
de classe média. Os critérios de seleção de conteúdos, a organização dos espaços destinados às
vivências e as posturas e linguagens adotadas são exemplos do cotidiano escolar onde as
diferenças entre meninos e meninas se mostram mais explícitas (SARAIVA 2005; NEIRA e
NUNES, 2006).
Assim, não podemos deixar de pensar no papel da formação de professores/as de
Educação Física na reflexão e superação de tal fato.
Tendo presente esta problemática, este artigo tem por objetivo abordar como as questões
de gênero são evidenciadas e/ou silenciadas na formação de professores/as de Educação Física.
Para tanto, a partir da perspectiva intercultural crítica, recorremos a entrevistas com
professores/as e alunos/as e observações das aulas de um curso de licenciatura em Educação
Física de uma universidade pública do Rio de Janeiro.
Neste contexto, organizamos o presente artigo em três momentos. Em um primeiro
momento, o artigo discute o conceito de gênero e a formação de professores/as de Educação
Física, levantando possibilidades e tensões na sua articulação. No segundo, a partir de alguns
resultados de pesquisa, destaca evidências e/ou silêncios relacionados às questões de gênero
presentes nas aulas de um curso de licenciatura em Educação Física. Em seguida, dentro de
uma perspectiva intercultural crítica, reflete sobre algumas possibilidades na formação de
professores que permitam vislumbrar práticas pedagógicas democráticas e igualitárias entre os
gêneros.
O conceito de gênero e as implicações na formação de professores de Educação Física
No presente artigo, consideramos o conceito de gênero a partir de Scott (1995, p.72)
como “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”.
A partir desta perspectiva, comportamentos, atitudes ou traços da personalidade são
construídos em uma dada cultura e em um determinado momento histórico, definindo
características femininas e masculinas e diferenciando-as umas das outras conforme o papel
que desempenham na sociedade. Entender gênero como construto cultural leva a reflexão que
as representações de homens e mulheres são diversas e plurais, não apenas entre as sociedades
ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade.
Assim, argumentos de que a desigualdade entre homens e mulheres é baseada nas
diferenças biológicas devem ser contestadas, pois essas diferenças são sempre construídas
culturalmente, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento, elas são instáveis e,
portanto, passíveis de transformação historicamente. Os gêneros se fazem e se refazem
continuamente ao longo da existência, que são socialmente produzidos, portanto são
dependentes da história e das circunstâncias (LOURO, 2003).
Esse processo de construção de gênero se desenvolve no decorrer da vida através das
mais diversas instâncias: família, escola, igreja, entre outros, onde através de práticas sociais
nos transformamos em homens ou mulheres. Certas noções percebidas no ambiente escolar que
indicam que as meninas devem ser frágeis e estudiosas e que, provavelmente, os meninos serão
brutos e bagunceiros estão muito arraigadas na nossa cultura e, com isso, lidamos com elas
constantemente em nossas escolas. Essas noções acabam por se naturalizarem de tal modo que
se tornam quase imperceptíveis e são construídas sem que os sujeitos se deem conta desse
processo.
Sendo assim, diversos modos de lidar com o masculino e o feminino foram construídos
por diferentes grupos sociais ao longo do tempo. A maneira de se comportar, as formas de
vestimentas, a linguagem utilizada, o tempo para o lazer. Essas concepções foram e são
aprendidas e interiorizadas de forma naturalizada através de muitas instituições e práticas. A
escola é parte fundamental neste processo.
Segundo Louro (2003, p.57):
Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se
sucumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam
distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também,
internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de
classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela
sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças,
católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os
pobres e ela imediatamente separou meninos de meninas.
A naturalização parece estar tão fortemente construída a ponto de nos impedir de notar
que, no interior das escolas, meninos e meninas se movimentem, circulem e se agrupem de
forma distinta. Tais fatos indicam certa “ordem natural das coisas”, porém um longo processo
de aprendizado vai determinar o “lugar de cada um”. Louro (2003) afirma que dispositivos e
práticas da cultura escolar que permeiam o processo ensino-aprendizado e penetram nos sujeitos
acabam por constituírem suas identidades escolarizadas. Nesse sentido, “gestos, movimentos,
sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se
partes de seus corpos” (LOURO, 2003, p. 61).
É fundamental destacar que as distinções presentes na escola em relação às construções
das filas para a entrada e saída das salas de aula, o modo de sentar e andar, a linguagem, o
currículo, os conteúdos escolares operam na lógica de uma norma hegemônica masculina,
branca, heterossexual e cristã, desta maneira, determinam visões baseadas nas diferenças entre
os gêneros, onde qualquer um que se afaste da norma seja considerado um “sujeito diferente”
(LOURO, 2011).
Desta forma, as marcas da escolarização se inscrevem nos corpos dos sujeitos, através
de múltiplos e discretos mecanismos separando meninos de meninas, homens de mulheres.
Para Louro (2003), dentre as áreas escolares, é na Educação Física que a constituição
das identidades de gênero se torna mais explícita e evidente. Mesmo que os/as professores/as
venham trabalhar em regime de coeducação1, a aula de Educação Física parece ser a área onde
as resistências ao trabalho integrado persistem e se renovam.
Altmann, Ayoub & Amaral (2011), ao pesquisarem a prática docente em uma escola,
analisam como o gênero perpassa o cotidiano das aulas de Educação Física, especialmente em
se tratando de planejamento de aulas e seleção de conteúdos. Essas autoras apontam que as
questões de gênero não são consensuais entre os professores de Educação Física analisados em
sua pesquisa: se por um lado alguns professores defendem as vantagens e a importância de se
trabalhar com turmas mistas, outros ainda defendem a separação, reafirmando a ideia, muito
recorrente na área da educação, de que trabalhar com grupos “homogêneos” facilitaria o
desenvolvimento das aulas, diminuindo conflitos e tensões provenientes da diversidade das
relações.
Isto posto, ressaltamos a importância da reflexão sobre as questões de gênero na
formação de professores de Educação Física.
Evidências e/ou silêncios relacionados às questões de gênero presentes nas aulas de um
curso de licenciatura em Educação Física
Procuramos, ao realizar as entrevistas com professores/as e observações das aulas das
disciplinas do curso de licenciatura em Educação Física escolhido, refletir sobre aspectos
importantes do que Oliveira (2006) chama de “O Trabalho do Antropólogo”: olhar, ouvir e
escrever.
1 Coeducação, segundo Auad (2006) refere-se uma política propositiva e implementadora de modos de pensar e
transformar as relações de gênero na escola.
No que diz respeito ao olhar, Oliveira (2006) argumenta que esta etapa da pesquisa de
campo está no que o autor chama de “domesticação teórica do olhar”, ou seja, a partir do
momento que o pesquisador se encontra preparado/a para a investigação empírica, o objeto para
o qual dirige seu olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual
for o objeto de pesquisa, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina
formadora de nosso modo de enxergar a realidade. Sendo assim, o autor chama atenção para a
preparação conceitual prévia do pesquisador, porém devemos também estar atentos/as para não
cairmos em sistemas de interpretação fechados, que não permitam olhar para outros pontos e
questões.
A observação permite que o observador chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos,
um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha
presencialmente as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de
mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações.
Foram observadas por dois semestres as aulas de cinco disciplinas: Educação Física e
ludicidade, Educação Física na Educação Infantil, Educação Física no Ensino Fundamental,
Educação Física e sociedade e História da Educação Física.
Dentre as cinco disciplinas observadas, “Educação Física e Ludicidade” vem a ser a
única disciplina que trata especificamente das questões de gênero, por iniciativa da docente,
não sendo esta temática especificada em sua ementa e/ou programa.
Estas questões não só eclodem a todo tempo nas aulas práticas, como também são
provocadas pela docente, no sentido de fomentar as discussões. A partir desta premissa, diversas
atividades foram propostas no sentido de diminuir a supremacia masculina nas aulas de
Educação Física, sempre favorecendo a reflexão e discussões do tema.
Em uma das aulas, foi sugerido pela professora um jogo de futebol diferente: a atividade
seria desenvolvida em dupla, ou seja, em duplas mistas, os/as estudantes deveriam estar de
mãos dadas e o jogo de futebol se desenvolveria de forma convencional, com o objetivo de
fazer gols. Algumas alunas pareciam ser arrastadas pelos meninos que corriam velozmente
objetivando ganhar o jogo. Após o término da atividade, no momento da discussão, algumas
alunas comentaram sobre a velocidade excessiva utilizada pelos alunos. Uma aluna questionou
a realização da atividade, colocando em pauta a existência de atividades específicas para os
diferentes gêneros.
“Mas também né? Geralmente os meninos têm mais habilidade com os pés” (Rosana).
Parece-nos que todos concordavam com a fala da aluna uma vez que nenhum
comentário foi feito acerca da mesma. Todavia, algumas alunas disseram se sentir felizes, pois
nunca tinham feito um gol em um jogo de futebol. A partir desta aula começamos a refletir
acerca da qualidade da participação dos estudantes nas aulas. Preconizada pela professora, a
realização de aulas em que todos pudessem participar, independente de alguma deficiência
apresentada, habilidade motora ou gênero, não garantia a qualidade da participação dos
discentes nas aulas, pelo menos, as discussões não caminhavam neste sentido.
Em uma das aulas alguns jogos populares foram apresentados à turma através de um
circuito com diversas estações: cordas, taco, elástico (pular), petecas, bambolês, raquetes e
bolas de tênis, bolas de gude, mini-cones e amarelinha. Mais uma vez as questões de gênero se
apresentaram e na verdade, conforme sinaliza a professora posteriormente, a atividade tinha
esta discussão como objetivo.
Os alunos do gênero masculino tentavam inicialmente, no momento da troca de
atividade do circuito, não realizar as atividades consideradas por eles, “brincadeiras de
meninas”, ou seja, burlavam as regras do circuito e não participavam de atividades como peteca,
amarelinha e elástico. Alguns verbalizavam suas opiniões.
“Peteca é brincadeira de menina professora!” (Willian).
“Mas elástico é uma brincadeira de meninas!” (Pablo).
Após a intervenção da professora, que sinalizou que a definição de “brincadeiras de
meninos e brincadeiras de meninas” vem a ser uma construção social e cultural, todos e todas
participaram de todas as atividades do circuito, sendo que alguns alunos ainda generificaram
algumas atividades, como é o caso do elástico, onde os alunos criaram competições onde
verificavam quem realizava o salto mais alto e mais veloz.
Conforme sinaliza Silva (2012), a escola e principalmente a Educação Física, através de
seus conteúdos, como a ginástica e o esporte, atuam como agentes generificadores das práticas
escolares uma vez que, de acordo com o autor, as influências dos métodos ginásticos, como o
sueco e o alemão, na Educação Física brasileira, preconizavam diferentes exercícios para
homens e mulheres. Já o esporte reforça a ideia de uma Educação Física voltada para o mundo
masculino e heterossexual, onde qualidades como virilidade, força e agilidade são ligadas ao
universo masculino, mantendo uma distância segura do universo feminino.
Ora, se nas competições esportivas de alto nível as categorias são divididas por gênero,
por que não dividir alunos e alunas nas aulas de Educação Física, se essas preconizam o esporte
como conteúdo principal? Esta parece ser a proposta transformadora hoje em voga para a
Educação Física escolar: refletir sobre a apropriação de diversos temas como conteúdos a serem
ministrados nas aulas desta disciplina escolar, conteúdos como as danças, lutas, ginásticas e até
mesmo os jogos populares, excluindo e até mesmo demonizando a aplicação do conteúdo
esporte nas aulas. Porém, ao observar as aulas do curso nos parece que a discussão necessita
ganhar outros contornos, uma vez que mesmo na aplicação de um conteúdo outro (os jogos
populares), os alunos do gênero masculino, generificam as atividades consideradas por eles,
femininas.
Zuzzi e Knijnik (2010) abordam algumas reflexões sobre a história da Educação Física
a partir das relações de gênero. Afirmam que esta disciplina foi marcada historicamente pelo
higienismo2 e militarismo3, o que contribuiu para reforçar matrizes de gênero existentes em
nossa sociedade e cultura. Tais matrizes representam as imagens vinculadas do que é próprio e
aceito pela sociedade para cada sexo e, segundo os referidos autores, podem ser identificadas
no processo educativo. Nesse sentido, as aulas de Educação Física fortalecem as desigualdades
construídas histórico-socialmente entre os gêneros, na medida em que organizam turmas
distintas, onde meninos e meninas são educados separadamente e de forma diferenciada.
Para os autores citados, os professores e professoras de Educação Física devem estar
atentos para não fortalecer legados sexistas contados na história da disciplina, pois essa,
especialmente no contexto escolar deve oferecer uma variabilidade de oportunidades e
vivências onde sejam valorizadas as diferenças entre meninos e meninas sem que estas
representem desigualdades.
Nas aulas onde ocorria a leitura dos textos e apresentação de vídeos, as identidades de
gênero eram a temática principal. Principalmente, nas aulas onde os vídeos eram passados,
sempre ocorriam discussões não apenas sobre gênero, mas também sobre outros aspectos como
classe social, bullying, habilidades físicas, entre outros.
2 A Educação Física Higienista, predominante até 1930, focalizava em primeiro plano a questão da saúde. Para tal
concepção, a Educação Física tinha um papel fundamental na formação de homens e mulheres sadios, fortes e
dispostos à ação (JÚNIOR, 2003).
3 A Educação Física Militarista, predominante entre 1930 3 1945, tinha como objetivo principal a obtenção de uma
juventude capaz de suportar o combate, a luta e a guerra. Para tal concepção, a educação Física deveria ser rígida
a tal ponto de formar cidadãos defensores da pátria (JÚNIOR, 2003).
Ao assistirem o vídeo For The Birds, da Pixar, os discentes foram convidados pela
professora, a exporem suas impressões sobre o filme. A temática central do mesmo são
episódios de exclusão por conta da diferença.
Dois alunos defendem que as brincadeiras que enfatizam as diferenças e os apelidos não
podem ser sempre consideradas como bullying e acreditam que a interferência do adulto nestas
questões faria com que as crianças perdessem a autonomia.
“Chamar o gordinho de gordinho é uma brincadeira saudável, a gente não tem que
ficar interferindo em tudo, senão a criança perde a autonomia” (Ezequiel).
Uma aluna defende que nestes casos, a interferência do professor é primordial, pois o
bullying causa sofrimento à pessoa discriminada.
“Eu sempre fui vítima de apelidos, de brincadeiras porque sou mulher, eu era baixinha
e eu sofria muito, o professor tem que intervir sim!” (Mariana).
A professora direciona a discussão alertando que qualquer brincadeira que enfatize as
diferenças pode se tornar um sofrimento para quem está sendo discriminado e que se faz
necessário estar atento a toda atitude que hierarquize os indivíduos.
O episódio sugere que os alunos que consideram as atitudes discriminatórias
“brincadeiras saudáveis” não enxergam o preconceito implícito nas mesmas. A discriminação
tem muitas nuances e normalmente se apresenta de forma disfarçada, velada. As relações entre
“nós” e os “outros” estão carregadas de ambiguidade. Acabamos incluindo no “nós” todos os
grupos e indivíduos que apresentam hábitos de vida, valores, estilos, visões de mundo
semelhantes aos nossos. Incluímos nos “outros” os que se confrontam com a nossa maneira de
nos situar no mundo, por características diferentes (CANDAU, 2005).
Perspectiva intercultural crítica: reflexões na formação de professores de Educação
Física
Daolio (2004) acredita ser a cultura o principal conceito para o campo da Educação
Física uma vez que todas as manifestações corporais humanas são geradas na dinâmica cultural,
expressando-se diversificadamente e com significados próprios no contexto de grupos culturais
específicos. O autor adiciona ainda que o profissional de Educação Física não atua sobre o
corpo ou com o movimento em si, ele trata do ser humano nas suas manifestações culturais
relacionadas ao corpo e ao movimento humano, definidas historicamente como jogo, esporte,
dança, luta e ginástica. Desta forma, o que definiria se uma ação corporal merece trato
pedagógico pela Educação Física é a consideração e análise desta expressão na dinâmica
cultural própria do contexto onde se realiza.
Defendemos a necessidade da problematização do conceito de cultura no campo da
Educação Física, concordando com Neira & Nunes (2006). Os autores discutem que o
movimento corporal confere a especificidade da Educação Física, porém, não se trata de um
movimento institucionalizado, reproduzido, estereotipado e acabado. Trata-se do movimento
humano com sentido e significado, atrelado ao contexto sócio-histórico-cultural em que é
produzido. Desta forma o movimento representa e expressa uma cultura, sendo
intencionalmente comunicativo e ocorre no interior de uma manifestação cultural.
Desta forma, entendemos a perspectiva intercultural crítica como norteadora para a
realização de uma educação que contemple todos os atores sociais e a mesma pode oferecer
subsídios para a prática de uma Educação Física mais igualitária, onde os diferentes conteúdos
possam ser contemplados e experimentados pelos demais discentes, permitindo assim a
realização de aulas onde a diferença cultural possa ser valorizada e contemplada.
Sendo a formação inicial de educadores um momento crucial para que os futuros
docentes possam despertar para as questões da diversidade, da diferença e acerca das relações
de poder existentes na nossa sociedade, esta etapa de formação necessita acompanhar as
transformações que ocorrem no mundo hodierno e a educação intercultural oferece discursos e
estratégias que contemplem estas temáticas.
Basei e Leães Filho (2008) entendem que pensar a formação de professores abrangendo
uma perspectiva intercultural seria um passo importante para romper com a premissa de
homogeneidade do ensino, possibilitando a compreensão dos alunos acerca de sua cultura de
origem, criando estratégias para a prática pedagógica que visem atender aos interesses de todos
os grupos presentes na escola. Nessa perspectiva ainda, a formação possibilitaria uma reflexão
sobre a complexidade da sociedade atual e de questões nela presentes, tais como: a diversidade
cultural, a desigualdade social, o processo de globalização, suas causas e consequências para a
vida dos/as discentes, entre outras questões.
Segundo Candau (2010), a educação intercultural é confrontada com as visões
diferencialistas que visam processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas.
Procura superar a versão essencialista das mesmas e parte da afirmação de que na nossa
sociedade, os processos de hibridização cultural são intensos e geradores da construção de
identidades móveis, abertas e em permanente construção. É ainda consciente dos mecanismos
de poder que permeiam as relações culturais e não desvincula as questões da diferença e da
desigualdade presentes na realidade contemporânea.
Para Oliveira & Daolio (2011), a educação intercultural trata-se de um movimento em
prol do aprender com o diferente e com ele produzir de forma coletiva. Não para descartá-lo,
nem para supervalorizar determinada cultura, inferiorizá-lo ou subjugá-lo, mas para a
efetivação de um diálogo igualitário, no qual diferentes vozes sejam ouvidas. Adicionam que a
possibilidade de enfrentamento das desigualdades de oportunidades, estereótipos, preconceitos
e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos escolares, dado pela perspectiva intercultural de
educação, aponta para outro tipo de relação social escolar: o compartilhar democrático, pautado
pelo diálogo mútuo entre diferentes perspectivas.
Deste modo, a abordagem intercultural que adotamos se torna fundamental para
construção de relações igualitárias e desprovidas de preconceitos no que se refere às relações
de gênero na escola, na medida em que favorece a integração e o reconhecimento cultural entre
os diferentes sujeitos, no caso do presente estudo, entre meninos e meninas, homens e mulheres.
Algumas Considerações
A partir das aulas observadas e entrevistas realizadas podemos perceber que apenas uma
disciplina apresenta como tema central a discussão de questões concernentes à temática de
gênero, porém em todas as outras disciplinas constatamos que esta temática se apresenta de
forma transversal, estando presente nas falas de discentes e docentes. Cabe observar que na
maioria das vezes, tratar desta temática depende da iniciativa e da sensibilidade do professor,
não sendo contemplada nas ementas e programas das disciplinas oferecidas pelo curso.
A cultura começa a ser vista como aspecto a ser discutido e analisado, mas as discussões
necessitam ser ampliadas, trazendo a mesma como tema central do curso, pois a centralidade
do tema cultura permite a reflexão acerca das diferenças. A partir desta discussão o “outro”
pode ser incluído na categoria “nós”, superando as relações hierarquizadas entre os diferentes
grupos culturais.
Longe de propor métodos e estratégias que tenham a pretensão de garantir a efetivação
de uma formação mais dialógica e humana, defendemos a educação intercultural no sentido de
oferecer pistas para se refletir e dialogar sobre os diferentes grupos culturais e sobre a
contribuição de diferentes saberes, aspectos que podem contribuir para o processo de formação,
não só profissional, mas para a formação enquanto indivíduo constituído de distintos
marcadores identitários, enquanto ator social que apresenta um papel ativo no desenvolvimento
da sociedade. Todavia, a educação intercultural não pode se limitar às relações interpessoais, é
necessário trabalhá-la e desenvolvê-la como um processo político e social.
Não propomos que a Educação Física deva cair num relativismo extremo, assumindo a
sua “menos valia” enquanto disciplina escolar. Não podemos perder de vista que a Educação
Física se consolidou ao longo dos anos através de tradições e procedimentos, dotados de
eficácia simbólica. Foram as técnicas de movimento, quase sempre esportivas, ensinadas de
formas fixas e engessadas que caracterizaram a Educação Física durante muito tempo
(DAOLIO, 2010).
Propomos, ancoradas nas leituras de autores que refletem sobre as diferenças culturais
(CANDAU, 2005, 2010) e sobre a Educação Física a partir deste olhar (DAOLIO, 2010;
NEIRA & NUNES, 2006) que os elementos da cultura corporal sejam relativizados nas aulas
de Educação Física, tendo como ponto de partida as culturas discentes e o contexto social no
qual estes atores estejam inseridos.
Uma prática intercultural caminha em direção a um ensino que considera
verdadeiramente a vida dos estudantes, abrindo espaço não só para a diversidade de gênero,
mas para a diversidade de etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea.
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