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GÊNERO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA: APONTAMENTOS A PARTIR DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA Ana Paula da Silva Santos PUC/RJ Rita de Cassia de Oliveira e Silva PUC/RJ Introdução Nos dias atuais, pensar em educação escolar nos remeter a refletir sobre as novas demandas do mundo contemporâneo: a construção de identidades abertas à diversidade cultural, o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na sociedade, a valorização da cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e estereótipos limitadores de uma educação mais igualitária e menos excludente. (MOREIRA & CÂMARA, 2008) Estas questões, colocadas hoje pelos movimentos sociais, pelas políticas públicas e pela produção acadêmica, nos posicionam de modo específico diante de sujeitos históricos que foram marginalizados e que tentam afirmar suas identidades lutando por seus direitos e resistindo a relações assimétricas de poder. Neste sentido, a questão da diferença torna-se o grande desafio a enfrentar por parte dos/das professores/as no espaço escolar. Candau (2008), nos convida a pensar que não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. Relata ainda que atualmente, o caráter homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais forte, assim como a consciência da necessidade da sua ruptura em favor da construção de práticas educativas que valorizem, questionem e problematizem a questão da diferença. Desta maneira, convivemos como uma forte tensão entre propostas pedagógicas monoculturais e padronizadas e perspectivas que denunciam este caráter hegemônico e buscam a construção de práticas educativas que levem em conta o fortalecimento e empoderamento das diversas identidades, que valorizem os diversos conhecimentos e saberes e que articulem igualdade e diferença. Neste sentido, a Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar uma interação mais ampla entre aos indivíduos também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpo, atitudes e comportamentos que colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados historicamente. As questões de gênero assumem, portanto, um campo importante de discussão nas aulas, pois a Educação Física ainda é dotada de práticas culturais que reproduzem os estereótipos de

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GÊNERO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA:

APONTAMENTOS A PARTIR DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA

Ana Paula da Silva Santos – PUC/RJ

Rita de Cassia de Oliveira e Silva – PUC/RJ

Introdução

Nos dias atuais, pensar em educação escolar nos remeter a refletir sobre as novas

demandas do mundo contemporâneo: a construção de identidades abertas à diversidade cultural,

o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na sociedade, a valorização da

cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e estereótipos limitadores de uma

educação mais igualitária e menos excludente. (MOREIRA & CÂMARA, 2008)

Estas questões, colocadas hoje pelos movimentos sociais, pelas políticas públicas e pela

produção acadêmica, nos posicionam de modo específico diante de sujeitos históricos que

foram marginalizados e que tentam afirmar suas identidades lutando por seus direitos e

resistindo a relações assimétricas de poder. Neste sentido, a questão da diferença torna-se o

grande desafio a enfrentar por parte dos/das professores/as no espaço escolar.

Candau (2008), nos convida a pensar que não há educação que não esteja imersa nos

processos culturais do contexto em que se situa. Relata ainda que atualmente, o caráter

homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais forte, assim como a consciência da

necessidade da sua ruptura em favor da construção de práticas educativas que valorizem,

questionem e problematizem a questão da diferença.

Desta maneira, convivemos como uma forte tensão entre propostas pedagógicas

monoculturais e padronizadas e perspectivas que denunciam este caráter hegemônico e buscam

a construção de práticas educativas que levem em conta o fortalecimento e empoderamento das

diversas identidades, que valorizem os diversos conhecimentos e saberes e que articulem

igualdade e diferença.

Neste sentido, a Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar

uma interação mais ampla entre aos indivíduos também pode ser responsável por reproduzir

visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpo, atitudes

e comportamentos que colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados

historicamente.

As questões de gênero assumem, portanto, um campo importante de discussão nas aulas,

pois a Educação Física ainda é dotada de práticas culturais que reproduzem os estereótipos de

gênero e normatiza modos de ser e agir dentro de um padrão de identidade masculina, branca e

de classe média. Os critérios de seleção de conteúdos, a organização dos espaços destinados às

vivências e as posturas e linguagens adotadas são exemplos do cotidiano escolar onde as

diferenças entre meninos e meninas se mostram mais explícitas (SARAIVA 2005; NEIRA e

NUNES, 2006).

Assim, não podemos deixar de pensar no papel da formação de professores/as de

Educação Física na reflexão e superação de tal fato.

Tendo presente esta problemática, este artigo tem por objetivo abordar como as questões

de gênero são evidenciadas e/ou silenciadas na formação de professores/as de Educação Física.

Para tanto, a partir da perspectiva intercultural crítica, recorremos a entrevistas com

professores/as e alunos/as e observações das aulas de um curso de licenciatura em Educação

Física de uma universidade pública do Rio de Janeiro.

Neste contexto, organizamos o presente artigo em três momentos. Em um primeiro

momento, o artigo discute o conceito de gênero e a formação de professores/as de Educação

Física, levantando possibilidades e tensões na sua articulação. No segundo, a partir de alguns

resultados de pesquisa, destaca evidências e/ou silêncios relacionados às questões de gênero

presentes nas aulas de um curso de licenciatura em Educação Física. Em seguida, dentro de

uma perspectiva intercultural crítica, reflete sobre algumas possibilidades na formação de

professores que permitam vislumbrar práticas pedagógicas democráticas e igualitárias entre os

gêneros.

O conceito de gênero e as implicações na formação de professores de Educação Física

No presente artigo, consideramos o conceito de gênero a partir de Scott (1995, p.72)

como “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”.

A partir desta perspectiva, comportamentos, atitudes ou traços da personalidade são

construídos em uma dada cultura e em um determinado momento histórico, definindo

características femininas e masculinas e diferenciando-as umas das outras conforme o papel

que desempenham na sociedade. Entender gênero como construto cultural leva a reflexão que

as representações de homens e mulheres são diversas e plurais, não apenas entre as sociedades

ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade.

Assim, argumentos de que a desigualdade entre homens e mulheres é baseada nas

diferenças biológicas devem ser contestadas, pois essas diferenças são sempre construídas

culturalmente, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento, elas são instáveis e,

portanto, passíveis de transformação historicamente. Os gêneros se fazem e se refazem

continuamente ao longo da existência, que são socialmente produzidos, portanto são

dependentes da história e das circunstâncias (LOURO, 2003).

Esse processo de construção de gênero se desenvolve no decorrer da vida através das

mais diversas instâncias: família, escola, igreja, entre outros, onde através de práticas sociais

nos transformamos em homens ou mulheres. Certas noções percebidas no ambiente escolar que

indicam que as meninas devem ser frágeis e estudiosas e que, provavelmente, os meninos serão

brutos e bagunceiros estão muito arraigadas na nossa cultura e, com isso, lidamos com elas

constantemente em nossas escolas. Essas noções acabam por se naturalizarem de tal modo que

se tornam quase imperceptíveis e são construídas sem que os sujeitos se deem conta desse

processo.

Sendo assim, diversos modos de lidar com o masculino e o feminino foram construídos

por diferentes grupos sociais ao longo do tempo. A maneira de se comportar, as formas de

vestimentas, a linguagem utilizada, o tempo para o lazer. Essas concepções foram e são

aprendidas e interiorizadas de forma naturalizada através de muitas instituições e práticas. A

escola é parte fundamental neste processo.

Segundo Louro (2003, p.57):

Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se

sucumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam

distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também,

internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de

classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela

sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças,

católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os

pobres e ela imediatamente separou meninos de meninas.

A naturalização parece estar tão fortemente construída a ponto de nos impedir de notar

que, no interior das escolas, meninos e meninas se movimentem, circulem e se agrupem de

forma distinta. Tais fatos indicam certa “ordem natural das coisas”, porém um longo processo

de aprendizado vai determinar o “lugar de cada um”. Louro (2003) afirma que dispositivos e

práticas da cultura escolar que permeiam o processo ensino-aprendizado e penetram nos sujeitos

acabam por constituírem suas identidades escolarizadas. Nesse sentido, “gestos, movimentos,

sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se

partes de seus corpos” (LOURO, 2003, p. 61).

É fundamental destacar que as distinções presentes na escola em relação às construções

das filas para a entrada e saída das salas de aula, o modo de sentar e andar, a linguagem, o

currículo, os conteúdos escolares operam na lógica de uma norma hegemônica masculina,

branca, heterossexual e cristã, desta maneira, determinam visões baseadas nas diferenças entre

os gêneros, onde qualquer um que se afaste da norma seja considerado um “sujeito diferente”

(LOURO, 2011).

Desta forma, as marcas da escolarização se inscrevem nos corpos dos sujeitos, através

de múltiplos e discretos mecanismos separando meninos de meninas, homens de mulheres.

Para Louro (2003), dentre as áreas escolares, é na Educação Física que a constituição

das identidades de gênero se torna mais explícita e evidente. Mesmo que os/as professores/as

venham trabalhar em regime de coeducação1, a aula de Educação Física parece ser a área onde

as resistências ao trabalho integrado persistem e se renovam.

Altmann, Ayoub & Amaral (2011), ao pesquisarem a prática docente em uma escola,

analisam como o gênero perpassa o cotidiano das aulas de Educação Física, especialmente em

se tratando de planejamento de aulas e seleção de conteúdos. Essas autoras apontam que as

questões de gênero não são consensuais entre os professores de Educação Física analisados em

sua pesquisa: se por um lado alguns professores defendem as vantagens e a importância de se

trabalhar com turmas mistas, outros ainda defendem a separação, reafirmando a ideia, muito

recorrente na área da educação, de que trabalhar com grupos “homogêneos” facilitaria o

desenvolvimento das aulas, diminuindo conflitos e tensões provenientes da diversidade das

relações.

Isto posto, ressaltamos a importância da reflexão sobre as questões de gênero na

formação de professores de Educação Física.

Evidências e/ou silêncios relacionados às questões de gênero presentes nas aulas de um

curso de licenciatura em Educação Física

Procuramos, ao realizar as entrevistas com professores/as e observações das aulas das

disciplinas do curso de licenciatura em Educação Física escolhido, refletir sobre aspectos

importantes do que Oliveira (2006) chama de “O Trabalho do Antropólogo”: olhar, ouvir e

escrever.

1 Coeducação, segundo Auad (2006) refere-se uma política propositiva e implementadora de modos de pensar e

transformar as relações de gênero na escola.

No que diz respeito ao olhar, Oliveira (2006) argumenta que esta etapa da pesquisa de

campo está no que o autor chama de “domesticação teórica do olhar”, ou seja, a partir do

momento que o pesquisador se encontra preparado/a para a investigação empírica, o objeto para

o qual dirige seu olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual

for o objeto de pesquisa, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina

formadora de nosso modo de enxergar a realidade. Sendo assim, o autor chama atenção para a

preparação conceitual prévia do pesquisador, porém devemos também estar atentos/as para não

cairmos em sistemas de interpretação fechados, que não permitam olhar para outros pontos e

questões.

A observação permite que o observador chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos,

um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha

presencialmente as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de

mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações.

Foram observadas por dois semestres as aulas de cinco disciplinas: Educação Física e

ludicidade, Educação Física na Educação Infantil, Educação Física no Ensino Fundamental,

Educação Física e sociedade e História da Educação Física.

Dentre as cinco disciplinas observadas, “Educação Física e Ludicidade” vem a ser a

única disciplina que trata especificamente das questões de gênero, por iniciativa da docente,

não sendo esta temática especificada em sua ementa e/ou programa.

Estas questões não só eclodem a todo tempo nas aulas práticas, como também são

provocadas pela docente, no sentido de fomentar as discussões. A partir desta premissa, diversas

atividades foram propostas no sentido de diminuir a supremacia masculina nas aulas de

Educação Física, sempre favorecendo a reflexão e discussões do tema.

Em uma das aulas, foi sugerido pela professora um jogo de futebol diferente: a atividade

seria desenvolvida em dupla, ou seja, em duplas mistas, os/as estudantes deveriam estar de

mãos dadas e o jogo de futebol se desenvolveria de forma convencional, com o objetivo de

fazer gols. Algumas alunas pareciam ser arrastadas pelos meninos que corriam velozmente

objetivando ganhar o jogo. Após o término da atividade, no momento da discussão, algumas

alunas comentaram sobre a velocidade excessiva utilizada pelos alunos. Uma aluna questionou

a realização da atividade, colocando em pauta a existência de atividades específicas para os

diferentes gêneros.

“Mas também né? Geralmente os meninos têm mais habilidade com os pés” (Rosana).

Parece-nos que todos concordavam com a fala da aluna uma vez que nenhum

comentário foi feito acerca da mesma. Todavia, algumas alunas disseram se sentir felizes, pois

nunca tinham feito um gol em um jogo de futebol. A partir desta aula começamos a refletir

acerca da qualidade da participação dos estudantes nas aulas. Preconizada pela professora, a

realização de aulas em que todos pudessem participar, independente de alguma deficiência

apresentada, habilidade motora ou gênero, não garantia a qualidade da participação dos

discentes nas aulas, pelo menos, as discussões não caminhavam neste sentido.

Em uma das aulas alguns jogos populares foram apresentados à turma através de um

circuito com diversas estações: cordas, taco, elástico (pular), petecas, bambolês, raquetes e

bolas de tênis, bolas de gude, mini-cones e amarelinha. Mais uma vez as questões de gênero se

apresentaram e na verdade, conforme sinaliza a professora posteriormente, a atividade tinha

esta discussão como objetivo.

Os alunos do gênero masculino tentavam inicialmente, no momento da troca de

atividade do circuito, não realizar as atividades consideradas por eles, “brincadeiras de

meninas”, ou seja, burlavam as regras do circuito e não participavam de atividades como peteca,

amarelinha e elástico. Alguns verbalizavam suas opiniões.

“Peteca é brincadeira de menina professora!” (Willian).

“Mas elástico é uma brincadeira de meninas!” (Pablo).

Após a intervenção da professora, que sinalizou que a definição de “brincadeiras de

meninos e brincadeiras de meninas” vem a ser uma construção social e cultural, todos e todas

participaram de todas as atividades do circuito, sendo que alguns alunos ainda generificaram

algumas atividades, como é o caso do elástico, onde os alunos criaram competições onde

verificavam quem realizava o salto mais alto e mais veloz.

Conforme sinaliza Silva (2012), a escola e principalmente a Educação Física, através de

seus conteúdos, como a ginástica e o esporte, atuam como agentes generificadores das práticas

escolares uma vez que, de acordo com o autor, as influências dos métodos ginásticos, como o

sueco e o alemão, na Educação Física brasileira, preconizavam diferentes exercícios para

homens e mulheres. Já o esporte reforça a ideia de uma Educação Física voltada para o mundo

masculino e heterossexual, onde qualidades como virilidade, força e agilidade são ligadas ao

universo masculino, mantendo uma distância segura do universo feminino.

Ora, se nas competições esportivas de alto nível as categorias são divididas por gênero,

por que não dividir alunos e alunas nas aulas de Educação Física, se essas preconizam o esporte

como conteúdo principal? Esta parece ser a proposta transformadora hoje em voga para a

Educação Física escolar: refletir sobre a apropriação de diversos temas como conteúdos a serem

ministrados nas aulas desta disciplina escolar, conteúdos como as danças, lutas, ginásticas e até

mesmo os jogos populares, excluindo e até mesmo demonizando a aplicação do conteúdo

esporte nas aulas. Porém, ao observar as aulas do curso nos parece que a discussão necessita

ganhar outros contornos, uma vez que mesmo na aplicação de um conteúdo outro (os jogos

populares), os alunos do gênero masculino, generificam as atividades consideradas por eles,

femininas.

Zuzzi e Knijnik (2010) abordam algumas reflexões sobre a história da Educação Física

a partir das relações de gênero. Afirmam que esta disciplina foi marcada historicamente pelo

higienismo2 e militarismo3, o que contribuiu para reforçar matrizes de gênero existentes em

nossa sociedade e cultura. Tais matrizes representam as imagens vinculadas do que é próprio e

aceito pela sociedade para cada sexo e, segundo os referidos autores, podem ser identificadas

no processo educativo. Nesse sentido, as aulas de Educação Física fortalecem as desigualdades

construídas histórico-socialmente entre os gêneros, na medida em que organizam turmas

distintas, onde meninos e meninas são educados separadamente e de forma diferenciada.

Para os autores citados, os professores e professoras de Educação Física devem estar

atentos para não fortalecer legados sexistas contados na história da disciplina, pois essa,

especialmente no contexto escolar deve oferecer uma variabilidade de oportunidades e

vivências onde sejam valorizadas as diferenças entre meninos e meninas sem que estas

representem desigualdades.

Nas aulas onde ocorria a leitura dos textos e apresentação de vídeos, as identidades de

gênero eram a temática principal. Principalmente, nas aulas onde os vídeos eram passados,

sempre ocorriam discussões não apenas sobre gênero, mas também sobre outros aspectos como

classe social, bullying, habilidades físicas, entre outros.

2 A Educação Física Higienista, predominante até 1930, focalizava em primeiro plano a questão da saúde. Para tal

concepção, a Educação Física tinha um papel fundamental na formação de homens e mulheres sadios, fortes e

dispostos à ação (JÚNIOR, 2003).

3 A Educação Física Militarista, predominante entre 1930 3 1945, tinha como objetivo principal a obtenção de uma

juventude capaz de suportar o combate, a luta e a guerra. Para tal concepção, a educação Física deveria ser rígida

a tal ponto de formar cidadãos defensores da pátria (JÚNIOR, 2003).

Ao assistirem o vídeo For The Birds, da Pixar, os discentes foram convidados pela

professora, a exporem suas impressões sobre o filme. A temática central do mesmo são

episódios de exclusão por conta da diferença.

Dois alunos defendem que as brincadeiras que enfatizam as diferenças e os apelidos não

podem ser sempre consideradas como bullying e acreditam que a interferência do adulto nestas

questões faria com que as crianças perdessem a autonomia.

“Chamar o gordinho de gordinho é uma brincadeira saudável, a gente não tem que

ficar interferindo em tudo, senão a criança perde a autonomia” (Ezequiel).

Uma aluna defende que nestes casos, a interferência do professor é primordial, pois o

bullying causa sofrimento à pessoa discriminada.

“Eu sempre fui vítima de apelidos, de brincadeiras porque sou mulher, eu era baixinha

e eu sofria muito, o professor tem que intervir sim!” (Mariana).

A professora direciona a discussão alertando que qualquer brincadeira que enfatize as

diferenças pode se tornar um sofrimento para quem está sendo discriminado e que se faz

necessário estar atento a toda atitude que hierarquize os indivíduos.

O episódio sugere que os alunos que consideram as atitudes discriminatórias

“brincadeiras saudáveis” não enxergam o preconceito implícito nas mesmas. A discriminação

tem muitas nuances e normalmente se apresenta de forma disfarçada, velada. As relações entre

“nós” e os “outros” estão carregadas de ambiguidade. Acabamos incluindo no “nós” todos os

grupos e indivíduos que apresentam hábitos de vida, valores, estilos, visões de mundo

semelhantes aos nossos. Incluímos nos “outros” os que se confrontam com a nossa maneira de

nos situar no mundo, por características diferentes (CANDAU, 2005).

Perspectiva intercultural crítica: reflexões na formação de professores de Educação

Física

Daolio (2004) acredita ser a cultura o principal conceito para o campo da Educação

Física uma vez que todas as manifestações corporais humanas são geradas na dinâmica cultural,

expressando-se diversificadamente e com significados próprios no contexto de grupos culturais

específicos. O autor adiciona ainda que o profissional de Educação Física não atua sobre o

corpo ou com o movimento em si, ele trata do ser humano nas suas manifestações culturais

relacionadas ao corpo e ao movimento humano, definidas historicamente como jogo, esporte,

dança, luta e ginástica. Desta forma, o que definiria se uma ação corporal merece trato

pedagógico pela Educação Física é a consideração e análise desta expressão na dinâmica

cultural própria do contexto onde se realiza.

Defendemos a necessidade da problematização do conceito de cultura no campo da

Educação Física, concordando com Neira & Nunes (2006). Os autores discutem que o

movimento corporal confere a especificidade da Educação Física, porém, não se trata de um

movimento institucionalizado, reproduzido, estereotipado e acabado. Trata-se do movimento

humano com sentido e significado, atrelado ao contexto sócio-histórico-cultural em que é

produzido. Desta forma o movimento representa e expressa uma cultura, sendo

intencionalmente comunicativo e ocorre no interior de uma manifestação cultural.

Desta forma, entendemos a perspectiva intercultural crítica como norteadora para a

realização de uma educação que contemple todos os atores sociais e a mesma pode oferecer

subsídios para a prática de uma Educação Física mais igualitária, onde os diferentes conteúdos

possam ser contemplados e experimentados pelos demais discentes, permitindo assim a

realização de aulas onde a diferença cultural possa ser valorizada e contemplada.

Sendo a formação inicial de educadores um momento crucial para que os futuros

docentes possam despertar para as questões da diversidade, da diferença e acerca das relações

de poder existentes na nossa sociedade, esta etapa de formação necessita acompanhar as

transformações que ocorrem no mundo hodierno e a educação intercultural oferece discursos e

estratégias que contemplem estas temáticas.

Basei e Leães Filho (2008) entendem que pensar a formação de professores abrangendo

uma perspectiva intercultural seria um passo importante para romper com a premissa de

homogeneidade do ensino, possibilitando a compreensão dos alunos acerca de sua cultura de

origem, criando estratégias para a prática pedagógica que visem atender aos interesses de todos

os grupos presentes na escola. Nessa perspectiva ainda, a formação possibilitaria uma reflexão

sobre a complexidade da sociedade atual e de questões nela presentes, tais como: a diversidade

cultural, a desigualdade social, o processo de globalização, suas causas e consequências para a

vida dos/as discentes, entre outras questões.

Segundo Candau (2010), a educação intercultural é confrontada com as visões

diferencialistas que visam processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas.

Procura superar a versão essencialista das mesmas e parte da afirmação de que na nossa

sociedade, os processos de hibridização cultural são intensos e geradores da construção de

identidades móveis, abertas e em permanente construção. É ainda consciente dos mecanismos

de poder que permeiam as relações culturais e não desvincula as questões da diferença e da

desigualdade presentes na realidade contemporânea.

Para Oliveira & Daolio (2011), a educação intercultural trata-se de um movimento em

prol do aprender com o diferente e com ele produzir de forma coletiva. Não para descartá-lo,

nem para supervalorizar determinada cultura, inferiorizá-lo ou subjugá-lo, mas para a

efetivação de um diálogo igualitário, no qual diferentes vozes sejam ouvidas. Adicionam que a

possibilidade de enfrentamento das desigualdades de oportunidades, estereótipos, preconceitos

e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos escolares, dado pela perspectiva intercultural de

educação, aponta para outro tipo de relação social escolar: o compartilhar democrático, pautado

pelo diálogo mútuo entre diferentes perspectivas.

Deste modo, a abordagem intercultural que adotamos se torna fundamental para

construção de relações igualitárias e desprovidas de preconceitos no que se refere às relações

de gênero na escola, na medida em que favorece a integração e o reconhecimento cultural entre

os diferentes sujeitos, no caso do presente estudo, entre meninos e meninas, homens e mulheres.

Algumas Considerações

A partir das aulas observadas e entrevistas realizadas podemos perceber que apenas uma

disciplina apresenta como tema central a discussão de questões concernentes à temática de

gênero, porém em todas as outras disciplinas constatamos que esta temática se apresenta de

forma transversal, estando presente nas falas de discentes e docentes. Cabe observar que na

maioria das vezes, tratar desta temática depende da iniciativa e da sensibilidade do professor,

não sendo contemplada nas ementas e programas das disciplinas oferecidas pelo curso.

A cultura começa a ser vista como aspecto a ser discutido e analisado, mas as discussões

necessitam ser ampliadas, trazendo a mesma como tema central do curso, pois a centralidade

do tema cultura permite a reflexão acerca das diferenças. A partir desta discussão o “outro”

pode ser incluído na categoria “nós”, superando as relações hierarquizadas entre os diferentes

grupos culturais.

Longe de propor métodos e estratégias que tenham a pretensão de garantir a efetivação

de uma formação mais dialógica e humana, defendemos a educação intercultural no sentido de

oferecer pistas para se refletir e dialogar sobre os diferentes grupos culturais e sobre a

contribuição de diferentes saberes, aspectos que podem contribuir para o processo de formação,

não só profissional, mas para a formação enquanto indivíduo constituído de distintos

marcadores identitários, enquanto ator social que apresenta um papel ativo no desenvolvimento

da sociedade. Todavia, a educação intercultural não pode se limitar às relações interpessoais, é

necessário trabalhá-la e desenvolvê-la como um processo político e social.

Não propomos que a Educação Física deva cair num relativismo extremo, assumindo a

sua “menos valia” enquanto disciplina escolar. Não podemos perder de vista que a Educação

Física se consolidou ao longo dos anos através de tradições e procedimentos, dotados de

eficácia simbólica. Foram as técnicas de movimento, quase sempre esportivas, ensinadas de

formas fixas e engessadas que caracterizaram a Educação Física durante muito tempo

(DAOLIO, 2010).

Propomos, ancoradas nas leituras de autores que refletem sobre as diferenças culturais

(CANDAU, 2005, 2010) e sobre a Educação Física a partir deste olhar (DAOLIO, 2010;

NEIRA & NUNES, 2006) que os elementos da cultura corporal sejam relativizados nas aulas

de Educação Física, tendo como ponto de partida as culturas discentes e o contexto social no

qual estes atores estejam inseridos.

Uma prática intercultural caminha em direção a um ensino que considera

verdadeiramente a vida dos estudantes, abrindo espaço não só para a diversidade de gênero,

mas para a diversidade de etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea.

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