Genero e Os Desafios

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 107 Gênero e os Desafios Epistêmicos para a Teologia e outros Saberes GENDER AND EPISTEMIC CHALLENGES FOR THEOLOGY AND OTHER KNOWLEDGES Resumo Em uma hermenêutica de gênero, o processo de leitura da realidade procura privilegiar os movimentos e momentos de encontro e diálogo entre as experiências de vida de quem procede à leitura e as das pessoas identificadas no processo analítico, em suas sucessivas realidades cotidianas. A concepção das relações sociais de gênero apre- senta-se como um novo paradigma, capaz de não simplesmente visibilizar mulheres e/ou grupos oprimidos, mas de iluminar as descobertas sobre a estruturação das opressões e dos jogos de poder que organizam discursos normativos e estabelecem controles sociais. Mais que um encontro entre histórias de vida, esse jeito de ler a re- alidade quer demarcar uma nova trajetória dos paradigmas de construção dos conhe- cimentos e de decodificação dos discursos, sejam eles teológicos ou oriundos de ou- tras áreas de saber. Palavras-chave GÊNERO COTIDIANO COMPLEXIDADE PODER CÂNTICO DOS CÂNTICOS. Abstract In the gender hermeneutics, the process of reading reality attempts to pri- vilege movements and moments of encounter and dialogue between life experiences of the person who makes such reading and those of the people identified in the analy- tical process, in their successive daily realities. The conception of social relations of gender presents itself as a new paradigm, capable not only of making women or the oppressed groups visible, but also of illuminating the discoveries concerning the structure of oppression and of power games that organize normative discourses and establish social controls. More than an encounter between life histories, this way of reading defines a new path for paradigms that build knowledge and decode discour- ses, whether theological or deriving from other fields of knowledge. Keywords GENDER DAILY- LIFE COMPLEXITY POWER SONGS OF SONGS. TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP, Brasil) [email protected]

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 107

Gênero e os Desafios Epistêmicos para a Teologia e outros SaberesGENDER AND EPISTEMIC CHALLENGES FOR THEOLOGY AND OTHER KNOWLEDGES

Resumo Em uma hermenêutica de gênero, o processo de leitura da realidade procura

privilegiar os movimentos e momentos de encontro e diálogo entre as experiências de

vida de quem procede à leitura e as das pessoas identificadas no processo analítico, em

suas sucessivas realidades cotidianas. A concepção das relações sociais de gênero apre-

senta-se como um novo paradigma, capaz de não simplesmente visibilizar mulheres

e/ou grupos oprimidos, mas de iluminar as descobertas sobre a estruturação das

opressões e dos jogos de poder que organizam discursos normativos e estabelecem

controles sociais. Mais que um encontro entre histórias de vida, esse jeito de ler a re-

alidade quer demarcar uma nova trajetória dos paradigmas de construção dos conhe-

cimentos e de decodificação dos discursos, sejam eles teológicos ou oriundos de ou-

tras áreas de saber.

Palavras-chave GÊNERO – COTIDIANO – COMPLEXIDADE – PODER – CÂNTICO

DOS CÂNTICOS.

Abstract In the gender hermeneutics, the process of reading reality attempts to pri-

vilege movements and moments of encounter and dialogue between life experiences

of the person who makes such reading and those of the people identified in the analy-

tical process, in their successive daily realities. The conception of social relations of

gender presents itself as a new paradigm, capable not only of making women or the

oppressed groups visible, but also of illuminating the discoveries concerning the

structure of oppression and of power games that organize normative discourses and

establish social controls. More than an encounter between life histories, this way of

reading defines a new path for paradigms that build knowledge and decode discour-

ses, whether theological or deriving from other fields of knowledge.

Keywords GENDER – DAILY-LIFE – COMPLEXITY – POWER – SONGS OF SONGS.

TÂNIA MARA VIEIRASAMPAIO

Universidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP, Brasil)

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INTRODUÇÃO

presente reflexão visa identificar aportes das teorias de gê-

nero na perspectiva de instrumentais de análise tanto da

área de conhecimento da teologia e das ciências da reli-

gião quanto de seus desdobramentos para a interlocução

com outras áreas de conhecimento. O propósito é ins-

taurar a discussão sobre os paradigmas que orientam a

socialização do saber acumulado, a produção de conheci-

mentos novos e os parâmetros que definem a relevância

social das pesquisas e das intervenções em realização. Confrontar o pro-

cesso da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão da universidade

à luz da categoria de gênero significa enfrentar alguns dos atuais questiona-

mentos acerca das relações sociais de poder que estruturam o cotidiano de

vida e de produção do conhecimento das pessoas.

A proposta analítica aqui pretendida depende de que a categoria gê-

nero seja compreendida como referencial de análise fundado nas concre-

tas relações sociais de gênero e que se estruturam na realidade relacional

dos seres humanos. Não se trata, portanto, de isolar a mulher como ca-

tegoria específica, mas de exigir que a relação mesma entre homens e mu-

lheres seja o foco da análise. O eixo fundamental é identificar as estru-

turas de poder e controle imbricadas nas relações e sua respectiva pro-

dução e reprodução do saber.1

GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURALÉ importante considerar gênero como uma categoria tanto de aná-

lise quanto histórica. Não há sociedade que não elabore imagens vincu-

ladas ao masculino e ao feminino e em que essas construções não sejam

datadas e contextualizadas.2 As ações humanas não são apenas fruto de

decisões racionais, mas estruturam-se a partir do imaginário social, com

seus simbolismos que subsistem nas culturas. “São produções de sentido

que circulam na sociedade e permitem a regulação dos comportamentos,

de identificação, de distribuição de papéis sociais.”3 Esse complexo me-

canismo de construção de um saber com características de algo natural e

aparência de imutabilidade precisa ser desvelado por uma atitude cientí-

fica de suspeita e superação epistemológica.

O caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo

adverte para a compreensão de que a dimensão de sexo não se restringe

ao aspecto puramente biológico, mas transita nas construções sociais.

Esse dado nos permite não naturalizar processos de caráter histórico, in-

terpondo-se aqui a categoria gênero como algo distinto de sexo.4 A per-

cepção do sexo anatômico de uma criança, logo após o seu nascimento,

1 NUNES, 1995.2 GUEDES, 1995.3 TEVES, 2000, p. 190.4 SCOTT, 1991.

AAAA

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não necessariamente corresponderá ao seu gêne-

ro. As matrizes de gênero desenhadas nas cultu-

ras e nos processos históricos têm força de im-

primir aos corpos algo que transcende sua anato-

mia. Na visão de Heleieth Saffioti, Jo Ann Scott

avança ao dizer que o sexo é o que percebemos do

sexo anatômico de uma genitália de macho ou de

fêmea. A partir daí inicia-se o processo de

socialização desses corpos com as imagens do

masculino e do feminino disponíveis na cultura.

Por exemplo, vestir o corpo masculino de azul e

o corpo feminino de cor-de-rosa é um dos mui-

tos sinais desse processo de construção da iden-

tidade de gênero.5

Gênero apresenta-se como uma possibili-

dade teórica que enfrenta a pergunta pelas rela-

ções sociais de poder e, portanto, é capaz de ar-

ticular não só a confluência das relações de sexo,

mas também étnicas e de classe, que atravessam

as diferentes parcelas da humanidade. O referen-

cial teórico dessa reflexão demarca-se pela ênfase

no poder presente nas relações de gênero e nas

demais relações sociais entre as quais se nomeia

as étnicas e as de classe. Não se pretende homo-

geneizar o corpo acadêmico e sua cotidiana lida

com o saber construído e a ser construído, sob

pena de não se chegar ao nível analítico com sua

exigência de des-construção dos mecanismos que

produzem e reproduzem, de modo sutil, as hie-

rarquizações das diferenças.

O saber, em sua construção e transmissão

teórica, igualmente à realidade, tem por base re-

lações sociais de poder. As relações de gênero, em

ambas as situações, apresentam-se marcadas por

interesses e associações assimétricas que, muitas

vezes, subordinam as mulheres, bem como ou-

tros grupos sociais.

Segundo Jo Ann Scott, na medida em que

gênero constitui uma categoria de análise, é pos-

sível estabelecer analogias com a classe e a raça,

levando em consideração que as desigualdades de

poder organizam-se, no mínimo, segundo esses

três eixos – muito embora não se possa afirmar

uma paridade entre esses três termos e sua apli-

cabilidade analítica aos processos estruturais. Na

visão da autora, a articulação das categorias de

classe, de etnia/raça e de gênero assinala um duplo

compromisso, o da inclusão dos discursos das

pessoas que experimentam a opressão e o da re-

alização de uma análise do sentido e da natureza

dessas opressões.6

Mais do que articulados, classe-etnia-gênero

estão enovelados, segundo Heleieth Saffioti, por-

que, em sua análise, articulação se faz de coisas

distintas e separadas. E classe-etnia-gênero, assim

como exploração-dominação não são distintas e

separadas, mas constituem faces de uma mesma

moeda/realidade, a exemplo da produção-repro-

dução – duas facetas importantes da vida ou as-

pectos de um mesmo fenômeno. Conceber um

separado do outro é pensar no político (domina-

ção) desconectado do econômico (exploração),

quando, de fato, um nunca se desvincula do ou-

tro; ambos acontecem não apenas no espaço pú-

blico, mas também no privado. Analogamente se

pode dizer o mesmo do trinômio classe-etnia-gê-

nero.7

PRODUÇÃO DO SABER E EXERCÍCIO DE PODER

A identificação das questões de poder que

estão em jogo nos processos de construção do

saber, ou na estruturação da realidade, permite

avaliar a relevância de uma análise da produção

acadêmica pelo viés de gênero. Não se trata de

um aspecto de fácil compreensão e possibilidade

de detecção na realidade, uma vez que o poder

encontra-se como que pulverizado. Perceber o

poder como algo molecularmente presente nas vá-

rias esferas sociais, e em sua característica de dis-

persão, dificulta a localização dos mecanismos de

controle e, conseqüentemente, sua des-instala-

ção.8

Compreender o conceito de relações de gê-

nero como instrumento capaz de captar a trama

das relações sociais, bem como as transformações

5 SAFFIOTI, 2000.

6 SCOTT, 1991.7 SAFFIOTI, 2000.8 TEVES, 2000.

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historicamente sofridas por meio dos mais distin-

tos processos sociais, implica admitir que o pro-

cesso de dominação-exploração não presume o

total esmagamento da personagem que figura no

pólo de dominada-explorada. Esse dado é de fun-

damental importância quando desejamos superar

o debate com a sociedade patriarcal, como se suas

estruturas retirassem totalmente, ou absoluta-

mente, o poder das mulheres, das minorias étni-

cas etc. “Homem e mulher jogam, cada um com

seus poderes, o primeiro para preservar sua su-

premacia, a segunda para tornar menos incom-

pleta sua cidadania.”9 Certamente, o acesso ao

poder é desigual, imprimindo essa marca nas re-

lações sociais, sejam elas de gênero, de classe, se-

jam de etnia/raça.

A compreensão dos acontecimentos no

viés das relações sociais de poder converte-se em

uma chave de leitura que capta a multiplicidade

de relações que se entrecruzam e se entredeter-

minam. Admitir a perspectiva de que falar em re-

lações sociais é falar de relações de poder faz aflo-

rar a realidade da existência de grupos sociais em

confronto. O desafio que se instala é o de olhar

a questão de modo mais dialético, dinâmico, pois

a própria condição de subordinação está acompa-

nhada de movimentos de resistência e apropria-

ção desses espaços. Exaltar a participação da mu-

lher, do negro, do empobrecido (em qualquer

coisa), como justificativa de que não há discrimi-

nação, é obscurecer o conflito. Se, de um lado, as-

sumir a conflitividade da relação entre os grupos

sociais ajuda no reconhecimento dos grupos do-

minantes, de outro, a exaltação nega o conflito e

encobre que, entre os próprios grupos sociais,

não há homogeneidade. O protagonismo social/

real limitado para mulheres, negros, indígenas,

empobrecidos precisa ser olhado no interior das

relações sociais de dominação vividas por esses

grupos.

Os estudos mediados pela categoria de gê-

nero evidenciam os processos normativos de

construção do saber, visando a des-naturalização

de processos socialmente construídos e a análise

das relações sociais de poder. Esse procedimento

analítico considera o poder não como uma ins-

tância absoluta e estática, mas como um conjunto

de forças que se move entre/contra/sobre/com

os diversos sujeitos sociais. Portanto, trata-se da

análise das distintas parcelas de poder vividas pe-

los grupos sociais em uma determinada estrutura

social.

Nesse sentido, a concepção de poder de

Foucault tem sido apreciada, e utilizada em mui-

tas reflexões teóricas feministas, por sua perspec-

tiva de considerar que o poder apresenta-se como

constelações dispersas, em parcelas apropriadas

diferentemente pelos grupos sociais e em contra-

posição a uma visão de poder como bloco

homogêneo e único por parte das esferas domi-

nantes.10 “Enfim, precisamos substituir a noção

de que o poder social é unificado, coerente e cen-

tralizado por alguma coisa que esteja próxima do

conceito foucaultiano de poder, entendido como

constelações dispersas de relações desiguais cons-

tituídas pelo discurso nos ‘campos de força’.”11

O processo de visibilização das pessoas

apagadas da história é importante, mas insuficiente.

Seu protagonismo deve ser visto dentro dos limi-

tes das condições sociais. A contradição perpassa

toda a análise, não é absolutamente nítida e uní-

voca. Por exemplo, “as mulheres não sobrevivem

graças exclusivamente aos poderes reconhecida-

mente femininos, mas também mercê da luta que

travam com os homens pela ampliação-modifica-

ção da estrutura do campo de poder”.12

A categoria de gênero pressupõe o enfren-

tamento dos jogos de poder, inserindo a leitura

da realidade e dos processos de produção do sa-

ber em um novo horizonte, não apenas metodo-

lógico, mas epistemológico. Tal fato promove o

diálogo entre pessoas envolvidas em pesquisa/en-

sino/extensão que desejam construir suas ações

9 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In:COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184.

10 GUEDES, 1995; SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gêneroe classe social”. In: COSTA; BRUSCHINI, 1992; e TEVES, 2000.11 SCOTT, 1991, p. 14.12 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In:COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184.

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cotidianas como resposta às exigências e urgên-

cias dos corpos para viver uma vida digna.

Essa nova maneira de compreender o mun-

do e o ser humano coopera para desvelar o poder

dos mecanismos de estruturação do conhecimen-

to e influir nos seus processos de transmissão,

bem como para mudar a estrutura hierárquica de

poder estabelecido. “Produção do saber e exercí-

cio do poder, longe de se constituírem em esferas

estanques e separadas, aparecem historicamente

indissociadas.”13 A correlação entre poder e saber

traz consigo a pergunta sobre o método de cons-

trução do conhecimento e seus pressupostos

básicos.

DEBATE EPISTEMOLÓGICO DECORRENTE DA ANÁLISE DE GÊNERO

Na visão de Ivone Gebara, as epistemolo-

gias tradicionais precisam ser desafiadas não ape-

nas pela agregação de aspectos novos, mas care-

cem de uma revisão de seu núcleo básico. Entre

outras coisas, tal visão implica uma nova antro-

pologia. Exige que os seres humanos tomem po-

sição ante a si mesmos, aos demais seres huma-

nos, aos seres vivos e ao ecossistema. Requer,

dessa maneira, perguntar sobre a percepção de

mundo que se tem a fim de superar dogmatismos

contra os quais propõe o movimento da vida. E

esse, como dinâmica instigadora do que parece

óbvio e definitivo.14 Nas palavras de outros auto-

res que instigam novas perspectivas epistemoló-

gicas, pode-se conferir a afirmação de que “a di-

nâmica da vida é essencialmente processual, e

suas metáforas-guias não podem ser emprestadas

da mecânica, porque precisam provir de proces-

sos vivos. Todos os sistemas vivos são sistemas

aprendentes e desejantes”.15

O processo acadêmico é um espaço impor-

tante, embora não o único, para desencadear no-

vas percepções da vida e dar vazão aos desejos ca-

pazes de construir outros mundos possíveis. No

cerne dessa discussão epistemológica, ganha for-

ça a reflexão analítica de Fritjof Capra sobre es-

tarmos diante de uma crise de percepção. A mu-

dança de percepção e de construção do pensa-

mento parece ao autor um dado irreversível. Em

questão está a necessidade de superar o paradig-

ma dominante, e quase universal, de percepção

do universo e do ser humano como um sistema

mecânico no qual a crença no progresso material

ilimitado anda par e passo com a crença em uma

sociedade em que a mulher é classificada em po-

sição inferior ao homem (o que seguiria uma lei

básica da natureza), bem como a própria natureza

se encontra em posição subalterna ao ser huma-

no.16

A esse modelo de percepção do mundo

apresenta-se a perspectiva de reconhecer a inter-

dependência fundamental de todos os fenôme-

nos e seres vivos do ecossistema. Sua proposta de

acercamento da realidade para a construção do

conhecimento apresenta-se nos seguintes ter-

mos: “do ponto de vista sistêmico as únicas

soluções viáveis são as soluções ‘sustentáveis’

(...). Uma sociedade sustentável é aquela que sa-

tisfaz suas necessidades sem diminuir as perspec-

tivas das gerações futuras”.17 A perspectiva da in-

terdependência introduz uma nova compreensão

do conhecimento e repercute nas posturas éticas.

Segundo Ivone Gebara, a concepção de interde-

pendência no conhecimento “é a experiência mais

básica de todos os seres, anterior à nossa cons-

ciência dela (...). Temos de abrir-nos para expe-

riências mais amplas do que aquelas a que nos ha-

bituamos secularmente. Temos de introduzir nos

processos educacionais a perspectiva de ‘comu-

nhão com’ e não a de conquista da Terra e do

Cosmo”.18

O desejado para esse momento de debate

epistemológico é que se inaugurem tempos e de-

sejos de aprender com a outra pessoa, de sonhar

novos sentidos para a existência, de afirmar a vida

na superação de relações de dominação-explora-

ção de um gênero sobre outro, de uma etnia so-

bre outra, de uma classe sobre outra, de seres hu-

13 NUNES, 1995, p. 10.14 GEBARA, 1997.15 ASSMANN; SUNG, 2000, p. 7.

16 CAPRA, 1996.17 Ibid., p. 24.18 GEBARA, 1997, p. 60-61.

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manos sobre o ecossistema. Urge superar o po-

der no sentido de dominação sobre os outros e

pensá-lo com base em uma mudança do paradig-

ma de hierarquia para o de redes de conexões e

interdependências. Nesse caso, a rede se compõe

da diversidade de fios interdependentes, sem que

as diferenças resultem em processos de desigual-

dades e inferiorização de uns em relação a outros,

como ocorre na concepção hierárquica de poder.

Esse é um convite a repensar e reinventar

nossas relações e referências de percepção do

mundo e do conhecimento. Um convite a des-

construções e construções que desafiam à

interlocução, e não ao dogmatismo. Nesse senti-

do, Ivone Gebara propõe revisitar as epistemolo-

gias de corte patriarcal, androcêntrico e antropo-

cêntrico, inclusive, para inaugurar a possibilidade

de uma episteme por ela denominada de ecofemi-

nista. Tal epistemologia distinta abre-se a pensar

na interdependência e realidade processual na

estruturação do conhecimento, superando pre-

tensas superioridades dos seres humanos.19

A urgente tarefa de enfrentar o debate

epistemológico na academia, tomando por base

uma perspectiva de gênero, foi aqui assumida por

meio de uma abordagem que contempla a discus-

são teórica de gênero e sua articulação com o co-

tidiano, incluindo o do diálogo entre os saberes.

Isso porque o cotidiano é político e se organiza

nos conhecimentos científicos tornados naturais,

vistos muitas vezes como óbvios e sobre os quais

não se reflete, apenas se vive. Nesse sentido, é

mister considerá-lo como elemento estruturador

do acontecer histórico e relacionado com a vida

do ser humano inteiro em seus múltiplos senti-

dos.20 Defronta-se com a necessidade de desna-

turalizar processos construídos historicamente.

A análise, nesse caso, ocupa-se em descre-

ver as relações cotidianas expressas nos movi-

mentos de mulheres e homens no interior da ca-

sa, nos locais de trabalho, nas festividades públi-

cas, nas práticas religiosas... Admite-se o cotidia-

no como espaço significativo das relações sociais

– por nele acontecerem as lutas e transformações

sociais –, não se limitando, portanto, a encará-lo

como mero lugar de repetição.

A opção metodológica de reconhecer a re-

levância dos aspectos do cotidiano para formular

as perguntas à realidade possibilita aproximar-se

dos desejos, anseios, sonhos, ausências e proces-

sos de resistência presentes na construção das ex-

periências de vida das pessoas e de suas comuni-

dades. Ademais, ajuda a clarear que as grandes

questões políticas, econômicas, sociais ou religio-

sas não são as únicas importantes. Na experiência

cotidiana, composta de inúmeros detalhes – cor-

rendo, por isso, o risco de parecer supérflua à

análise –, acontece, de fato, a construção das re-

lações sociais de poder.

A aproximação do cotidiano resulta da busca

de superação da dicotomia entre o concreto das re-

lações humanas e os raciocínios abstratos das for-

mulações dos saberes com base nas articulações

gênero-cotidiano. Isso se explica pelo fato de as re-

lações de poder entre os grupos sociais estarem

presentes na dinâmica movimentação dos corpos,

quando esses afirmam tanto a sua própria existên-

cia no mundo quanto as demais existências que

lhes animam.

A percepção orientadora dessa reflexão é a

de que a assimetria de poderes entre homens e

mulheres reforça processos de inferiorização e

exclusão e oprime todas as pessoas, mulheres e

homens. A superação da fixidez e da binariedade

das matrizes de gênero pode promover uma forte

revisão e desconstrução do caráter normativo das

construções histórico-sociais para os sexos, ques-

tionando, desse modo, as construções androcên-

tricas de controle dos corpos que tendem a natu-

ralizar o que é fruto de construção social e histó-

rica.

Posturas epistemológicas novas são poten-

cialmente possibilitadoras de abertura a sentidos

ainda não descobertos, muito provavelmente

porque a respeito deles nada se indagou ainda.

No horizonte dessa reflexão está a intenção de

romper com mecanismos de controle dos corpos

em suas relações cotidianas, expressas muitas ve-19 Ibid.20 HELLER, 1989.

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zes nos textos e nos sentidos oriundos deles para

a vida.

GÊNERO NO DEBATE ACADÊMICO E IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS

O eixo privilegiado de sentido das relações

sociais de gênero orientador desse ensaio apóia-

se na convicção de que as diversas ciências são sa-

beres construídos e permeados de questões de

poder, portanto, passíveis de serem desconstruí-

dos, reconstruídos e construídos em novas bases

e critérios.

O propósito de mapear as relações sociais

de gênero, na multiplicidade dos movimentos co-

tidianos presentes nos textos normativos das ciên-

cias (igualmente nas produções teológicas), em

consonância com essa perspectiva de abertura de-

les para o mundo de quem se ocupa de sua aná-

lise, já é uma tomada de posição teórico-metodo-

lógica. Essa, por sua vez, incide em uma atitude

de ruptura com as pretensões de neutralidade na

produção do conhecimento ou da hermenêutica.

O marco teórico em que se inscreve a con-

cepção de um sujeito identificado com a escolha

do objeto e do método de trabalho reafirma a

neutralidade como um mito.21 Traz também à

tona o questionamento de uma objetividade pura

para se associar aos estudos que afirmam ser a ob-

jetividade situada a única concebível. Além de da-

tada, sexuada e racificada, ela implica tanto elimi-

nar as dualidades sujeito-objeto, objetividade-

subjetividade, racionalidade-emotividade, públi-

co-privado, pessoal-político etc. quanto questio-

nar o caráter genérico, universal e atemporal das

hermenêuticas e dos conhecimentos.22

A leitura que ora se propõe para os textos

normativos dos saberes, entre eles, a teologia, não

está desprovida de pressuposições e influências

do contexto de quem procede à interpretação;

tampouco o estão as outras leituras com as quais

qualquer estudo estabelece diálogo e confrontos.

O exercício pautado pelo paradigma das relações

sociais de gênero no contexto das experiências

cotidianas promove não apenas a reflexão sobre o

objeto, mas põe em questão a pessoa que inves-

tiga (o sujeito), com suas múltiplas implicações.

Na arte de compreender um texto emerge, simul-

taneamente, a pluralidade de sentidos que lhe é

própria e a mediação para a auto-revelação de

quem empreende a leitura.23 Tal compreensão

não se restringe somente à projeção no texto, im-

plicando, também, expor-se a ele e reconhecer a

existência de textos que não acolhem essa auto-

exposição ou não permitem a revelação de quem

os lê.

Por essa razão, a aproximação pretendida

das produções de saber traz luz não apenas às

surpresas do próprio conhecimento, mas tam-

bém aos impasses de quem o interroga. Revela,

desse modo, a busca de conhecimento de quem

está no processo investigativo, bem como sua

produção de saber, sua subjetividade, sua parcia-

lidade e seletividade, seus traços culturais e histó-

ricos e sua pertença social. É importante retomar

as palavras de Paul Ricouer: “Aquilo de que final-

mente me aproprio é uma proposição de mundo.

Essa proposição não se encontra atrás do texto,

como uma espécie de intenção oculta, mas diante

dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre,

revela. Por conseguinte, compreender é compreen-

der-se diante do texto”.24

Ao analisar a construção do conhecimento,

ainda que seja preciso admitir que todo saber car-

rega limites inerentes ao processo de fixação pelo

ato da escrita, não se pode sucumbir a um pro-

cesso de fixidade interpretativa, particularmente

àquela calcada em estereótipos que descaracteri-

zam determinados grupos sociais. É preciso en-

frentar a fixidade normativa com outra caracte-

rística inerente a um texto teórico: sua riqueza se-

mântica e abertura polissêmica.25 Esse caráter

acompanha a dinâmica e a pluralidade das expe-

riências humanas, sempre que conferem sentido à

sua existência.26 Desse modo, o caminho selecio-

nado é o de estabelecer perguntas novas durante

21 JAPIASSU, 1981.22 SAMPAIO, 1999.

23 RICOEUR, 1977.24 Ibid., p. 57-58.25 RICOEUR, 1977; NUNES, 1995.26 HELLER, 1989.

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o processo analítico para recriar horizontes no-

vos de compreensão.

Com base nesses pressupostos de contex-

tualização da objetividade da tarefa analítica, não

é estranho admitir a subjetividade como parte in-

tegrante do método, resguardando-a da falácia de

uma produção de conhecimento capaz de atingir

concepções totalizantes e absolutas. Segundo

Ivone Gebara,

a questão de gênero nos leva a uma crítica

do universalismo das ciências humanas

(...) as afirmações que diferentes ciências

humanas fizeram sobre vários assuntos,

freqüentemente foram apresentadas

como sendo do “humano”, quando na rea-

lidade elas se referem sobretudo à expe-

riência masculina, aliás muitas vezes limi-

tada ao mundo ocidental. A teoria univer-

sal é uma teoria masculina e centralizada

nos lugares de poder dominante e nas re-

lações sociais ligadas a poderes.27

A dinâmica objetividade-subjetividade rei-

tera a compreensão metodológica de que quem

produz o saber imprime aí seus condicionamen-

tos pessoais e compromissos diante da realidade;

por conseguinte, a escolha do objeto, do método

e das categorias trazem essa marca. Todavia, é

preciso considerar que admitir a subjetividade

não significa assumir uma relativização total de

métodos e resultados. Não se trata, tampouco, de

cada um dizer o que pensa a respeito, nem de le-

gitimar qualquer tipo de interpretação. A subje-

tividade é compreendida como integrante do mé-

todo e integrada ao arcabouço científico que pos-

sibilita a análise e a produção de saber.

A mediação de gênero, nesse sentido, pre-

tende contribuir para problematizar posturas

hermenêuticas que anunciam como verdades aca-

badas aquilo que é transitório. Esse procedimen-

to obscurece a memória da provisoriedade, da

fragilidade e da pluralidade, comuns às experiên-

cias humanas em suas relações e produções de sa-

ber. O instigante texto de Ilya Prigogine, desde o

seu título, explicita esse fato. O fim das certezas –

tempo, caos e as leis da natureza é, em si, um con-

vite interpelativo às ciências para rever sua pro-

clamação de verdades universais irreversíveis.

Nas palavras de seu autor, “assistimos ao surgi-

mento de uma ciência que não mais se limita a si-

tuações simplificadas, idealizadas, mas nos põe

diante da complexidade do mundo real, uma

ciência que permite que se viva a criatividade hu-

mana como a expressão singular de um traço fun-

damental comum a todos os níveis da nature-

za”.28 Interrogando os conceitos fundamentais

da física, Prigogine afirma contundentemente as

noções de instabilidade e caos e propõe uma nova

formulação das leis da natureza “que não mais se

assenta em certezas, como as leis deterministas,

mas avança sobre possibilidades”.29 Avançar sobre

possibilidades constitui um horizonte teórico que

perpassa essa reflexão e seus processos analíticos.

Tempo de possibilidades é o tempo anun-

ciado também à teologia, para que revisite seus

dogmas. Os saberes humanos, construídos em

códigos de linguagem disponíveis, comuns a vá-

rias ciências, também estão sob suspeita; não há

como afirmar senão provisórias e incertas certe-

zas a despeito de toda a objetividade metodoló-

gica. Nesse sentido, busca-se o acercamento às

produções do saber, procurando não apenas as

palavras no discurso, mas os movimentos dos

corpos que se vêem, se tocam, se ouvem e se per-

cebem como construtores de mundos e saberes.

Procura-se ler tais produções, indagando sobre as

linguagens implícitas e os silêncios contidos na

articulação das palavras. Quem sabe intuir e des-

tacar os gingados dos corpos em relações.

GÊNERO E COMPLEXIDADE: DIMENSÕES A SEREM ARTICULADAS

O diálogo de saberes que desafiam proces-

sos de desinstalação provocou uma curiosa pos-

sibilidade de articulação entre a dimensão de gê-

nero e a de complexidade. Isso porque ambas

anunciam possibilidades de inaugurar novas per-

cepções do mundo, das relações e da diversidade

27 GEBARA, 2000, p. 115.

28 PRIGOGINE, 1996, p. 14.29 Ibid., p. 31.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 115

de manifestações da vida. Trata-se da abertura

para uma percepção de interdependência e cone-

xidade das expressões plurais de vida do ecossis-

tema, nas quais se localiza a expressão de vida dos

seres humanos como uma parte, um fio, dessa

grande teia da vida. Não necessariamente o ser

mais importante, nem mesmo o centro da vida,

mas como outro distinto e fundamental. E entre

esses mesmos seres humanos, a universalidade é

um mito. As distinções de gênero/classe/etnia

têm sido historicamente transformadas em pro-

cessos de inferiorização e relações de poder de

subordinação, refletindo-se de modo semelhante

na análise da relação dos seres humanos, em es-

pecial no Ocidente, com o ecossistema.

Nas palavras do Chefe Seattle, líder indíge-

na norte-americano citado na obra de Campbell,

aproximadamente no ano 1852, encontramos um

desafio à ressignificação das relações dos seres

humanos com a natureza: “a terra não pertence

ao homem, o homem pertence à terra. Isto sabe-

mos: todas as coisas estão ligadas como o sangue

que une uma família. Há uma ligação em tudo. O

que acontecer à terra recairá sobre os filhos da

terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele

é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer

ao tecido, fará a si mesmo.”30 Destaque deve ser

dado a essas cosmovisões que aproximam hori-

zontes há tempos vivenciados por nações indíge-

nas e anunciadas atualmente no desafio dos físi-

cos como possibilidade de alcançar uma nova

percepção do mundo e de suas complexas redes

de sentido. Na expressão de Albert Einstein,

os seres humanos são uma parte do todo

que nós chamamos de Universo, uma pe-

quena região no tempo e no espaço. Eles

consideram a si mesmos, suas idéias e

seus sentimentos como separados e à par-

te de todo o resto. É como uma ilusão de

ótica em suas consciências. Essa ilusão é

uma espécie de prisão. Ela nos restringe às

nossas aspirações pessoais e limita nossa

vida afetiva a umas poucas pessoas muito

próximas de nós. Nossa tarefa seria livrar-

nos dessa prisão, tornando acessível nos-

so círculo de compaixão de forma a abra-

çar todas as criaturas vivas e toda a natu-

reza em sua beleza.31

A explicitação das contribuições advindas

das teorias da complexidade e de gênero é funda-

mental entre os caminhos epistêmicos de supera-

ção dos impasses. A primeira pensa o ecossistema

em sua dimensão interdependente e complexa,

no qual o ser humano inclui-se não como supe-

rior, mas como distinto, inaugurando uma nova

percepção que propõe relações de conexidade en-

tre seres vivos diferentes na perspectiva de redes.

A segunda enfatiza as relações sociais assimé-

tricas entre homens e mulheres e a demarcação

da não homogeneidade desses grupos sociais,

agregando-se a ela a constatação das assimetrias

étnicas e de classes sociais.32 Ambas as teorias

têm impulsionado revisões conceituais de muitas

ordens, superando a fragmentaridade de nossas

abordagens epistêmicas.

A teoria de gênero, partindo do questiona-

mento das desigualdades sociais baseadas nas di-

ferenças de ordem biológica, chegou a interrogar

milenares afirmações de inferioridade das mulhe-

res em relação aos homens, de negros em relação

a brancos, do ecossistema em relação a seres hu-

manos, pois tais concepções sustentavam-se na

visão de que, por natureza, inscritas no corpo de

cada um desses seres estava a sua condição de in-

ferioridade. Em decorrência dessa mudança, ins-

talou-se a urgência de uma revisão antropológica

que contemplasse as construções históricas e so-

ciais naturalizadas durante séculos, obscurecendo

os jogos de poder embutidos nessas descrições de

papéis e relações. Soma-se a esse avanço a de-

sinstalação do eixo econômico como exclusivo

para pensar as relações e o poder. Desse modo, as

pessoas puderam perceber-se como seres consti-

tuídos não apenas de necessidades, mas também

de desejos e paixões, com todas as implicações

para as relações humanas, sociais e ecossistêmicas

que isso possa significar.

30 CAMPBELL, 1990, p. 33-36.

31 Albert Einstein apud RUSSEL, 1991.32 SCOTT, 1991; COSTA, 1992; SAMPAIO, 1999.

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116 Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003

O corpo assumido como lugar ímpar da ex-

periência de estar vivo, do sentir-pensar como lu-

gar das relações, das circulações de poder que po-

dem oprimir ou libertar – pensado como um fio

da grande teia da vida – foi decisivo nessa novi-

dade epistêmica. Por conseguinte, tornou-se um

dado relevante para o resgate do trato humano

com o ecossistema. Cabe ressaltar que, em várias

discussões dos saberes, alguns avanços antropo-

lógicos foram alcançados, a exemplo da supera-

ção de concepções de mundo e relações de cará-

ter androcêntrico para afirmar uma perspectiva

antropocêntrica. No entanto, é preciso constatar

que, se tal mudança resolve a descentralização da

matriz cultural masculina como parâmetro para

apontar o humano, ela não altera a percepção de

centralidade do humano no entendimento do

ecossistema em suas relações.

A crise de percepção, que apresenta a inter-

dependência de tudo o que forma o ecossistema

e produz vida, restabelece a necessidade de pensar

os seres humanos como parte dessa grande teia

da vida. Nesse caso, há que se construir media-

ções hermenêuticas que, certamente, terão de ab-

dicar da concepção de centralidade. Seja ela divi-

na, humana, seja cósmica. Nem mais teocêntrica,

nem mais androcêntrica/antropocêntrica, nem

qualquercoisacêntrica!

No marco da provisoriedade, estamos pro-

pondo uma concepção que explode o centro para

dar lugar a uma noção de relações de mútuas in-

terdependências, sem desqualificar o ser humano,

mas ressignificando-o no perceber-se como parte

necessária e com necessidades de toda a comple-

xa e múltipla diversidade do que existe no ecos-

sistema. Historicamente, em nossa relação com a

natureza, estabelecemos processos de destruição

da terra, das águas e dos demais seres vivos. Po-

rém, a observação da dinâmica criativa da própria

natureza, de sua forma autocriativa, poderia con-

tribuir como alternativa ao jeito de elaborar a re-

flexão acadêmica que tem nos guiado. Refiro-me

ao jeito de ler teologicamente, por exemplo, o re-

lato da criação,33 que reforça uma visão mecani-

cista e instrumental do ecossistema para usufruto

dos seres humanos (de alguns seres humanos),

em detrimento da integridade dele. Infere-se,

nessa etapa da reflexão, a necessidade de sentir-

pensar o ecossistema em sua dimensão interde-

pendente e complexa, superando a fragmentari-

dade de nossas abordagens epistêmicas.

Em contraposição a essa hermenêutica da

narrativa bíblica sobre a criação, mencionada ante-

riormente, pode ser interessante a perspectiva de

Capra de que, do ponto de vista sistêmico, as úni-

cas soluções viáveis são as sustentáveis, equivalente

a dizer que é preciso buscar soluções que “satisfa-

çam as necessidades sem destruir as perspectivas

de vida das gerações futuras”.34 Se isso vale não só

para as ações que afetam o cotidiano em suas mi-

crorrelações, vale também para as formulações de

saber que estruturam pensamentos e valores. O

debate epistemológico, desse modo, está instado a

ser identificando em seus pressupostos fundantes.

Portanto, a elucidação de que o conhecimento es-

trutura-se numa determinada percepção do mun-

do, assim como a reflexão epistemológica tem a

função de ajudar a compreender a estrutura do co-

nhecimento, é deveras importante.

Ao falar em epistemologia, não se está tra-

tando de coisas teóricas demais ou abstratas e dis-

tantes dos problemas cotidianos. Isso porque

pensar sobre alegrias e tristezas da vida faz parte

do conhecimento humano e reporta-se a uma

percepção da realidade e de suas múltiplas rela-

ções. Tomando por base a experiência cotidiana é

que conhecemos as coisas e a nós mesmos. Co-

nhecer o próprio conhecimento permite influir

nos processos de construção e transmissão do

conhecimento, podendo alterar a estrutura hie-

rárquica de poder, como a exemplo da subordina-

ção vivida pelas mulheres e pela natureza para in-

troduzir novas formas de sentir-pensar.

GÊNERO E COMPLEXIDADE ARTICULADOS EM BREVE EXERCÍCIO TEOLÓGICO

Os impasses com a sustentabilidade da vida

são muito mais amplos e implicam uma rede in-

33 Gênesis 1.27-31. 34 CAPRA, 1996, p. 25.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 117

trincada de conexões que precisam ser observa-

das. Nesse sentido, o debate epistemológico rea-

lizado até aqui visa à articulação de paradigmas

que, ao interpelar as diversas áreas de saber, o fa-

zem também com a teologia. Sobretudo a iden-

tificação de alguns aspectos relativos à preocupa-

ção com a vida, em suas múltiplas manifestações

no ecossistema, torna-se o foco irradiador do di-

álogo. Os desdobramentos para as áreas de saber

preocupadas com a dignidade de vida das pessoas,

dos demais seres vivos e do ecossistema reforçam

a perspectiva de que, nessa complexa organiza-

ção, a fragmentaridade dos saberes precisa ser

pensada como elemento de aprofundamento do

estudo, e não como encastelamento das ciências.

O debate acerca dos referenciais teóricos e

das possíveis inspirações para construir uma per-

cepção da vida na qual a interdependência dos se-

res coopere no redimensionamento de cada um

nessa grande teia busca assumir a pergunta sobre

as relações de poder assimétricas, de várias or-

dens, para reinventá-las. Por esse motivo, a força

e a beleza do texto de Cântico dos Cânticos ou

Cantares35 pode abrir-se como mediação teológi-

ca tanto para revisitar a própria teologia e os seus

aprisionamentos desse texto quanto para o diálo-

go entre saberes distintos.

O texto de Cantares não será alvo de uma

reflexão exegético-hermenêutica, mas experi-

mentar-se-á um caminho de leitura da narrativa

bíblica em confronto com uma tradição teológica

predominante. O movimento presente na poesia

dos amantes expressa uma dinâmica de dizer o

Bem sobre a vida e se materializa na concretude

dos corpos. A mulher que lidera a maior parte do

discurso faz uma poesia assinalando a beleza de

seu próprio corpo e, depois, começa a desenhar

as belezas do corpo de seu amado com todas as

imagens e linguagens disponíveis na natureza.

[Eu estou morena, porém formosa] Sou

negra e formosa (...)

como as tendas de Quedar, como as cor-

tinas de Salomão.

Não olheis para o eu estar [morena] ne-

gra, [porque] o sol me queimou.

Os filhos de minha mãe se indignaram

contra mim me puseram por guarda de vi-

nhas; a vinha, porém, que me pertence

não a guardei.

Dize-me, ó amado de minha alma: onde

apascentas o teu rebanho,

onde o fazes repousar pelo meio-dia para

que não ande eu vagando junto ao reba-

nho de teus companheiros?36

Cantares, em sua abertura, por meio da

auto-apresentação positiva da mulher, a que nos

convida? Entre outras coisas, a nos olhar no es-

pelho! A dizer o Bem e o belo de nós mesmos.

Nos faz um convite estético! Com qual beleza

nos apresentamos para as relações? Quais as mar-

cas que estão à flor da pele em nosso corpo?

Quais cuidados de si têm sido postergados, tendo

em vista as obrigações impostas pelo trabalho

que beneficia os outros? A despeito das lidas, do

trabalho cotidiano, da relação com seus irmãos,

com os guardas da cidade, que estética de passa-

gem/êxodo/saída/alternativa soa da boca da mu-

lher – a amante e amada de Cantares? Lamentos

e desolações? Ou uma mirada no espelho para di-

zer o Bem, para bem-dizer seu corpo, sua vida, e

abrir-se, então, para dizer o Bem do outro?

O meu amado é para mim um saquitel de

mirra, posto entre os meus seios. Como um

racimo de flores de hena nas vinhas de En-

Gedi é para mim o meu amado.

Como és formoso, amado meu, como és

amável (...).

Qual a macieira entre as árvores do bosque,

tal é meu amado entre os jovens; desejo

muito a sua sombra e debaixo dela me as-

sento; e o seu fruto é doce ao meu paladar.

35 A narrativa bíblica brevemente analisada neste exercício teológico éintitulada Cantares de Salomão, nas traduções adotadas pelas tradiçõesprotestantes, e Cântico dos Cânticos, nas traduções adotadas pelas tra-dições católica romana e ortodoxa. Optamos pela primeira nomencla-tura e os textos citados tomam por base, particularmente, a traduçãorevista e atualizada de João Ferreira de Almeida.

36 Cantares 1.5-7. Os textos entre colchetes correspondem à traduçãoreferida anteriormente como a adotada nesta análise. Contudo, o des-taque à expressão negra e a supressão do adversativo porém correspon-dem a opções possíveis, e, em nosso ponto de vista, necessárias, queencontram respaldo nos aparatos críticos da versão da Bíblia Hebraica(1967, p. 1.336).

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118 Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003

O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao

filho da gazela.37

A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de

corpos que se amam sobressaem nesse poema de

encontros e desencontros. Há outras sabedorias

a aprender. Trata-se da dimensão de gratuidade

vivida nas relações amorosas como contraponto

ao tempo em que as liberdades para o corpo es-

tavam cerceadas. Cantares é um conjunto de po-

emas significativos, com uma força de vida que

não pode seguir como segredo, muito menos re-

duzir-se a alegorizações, como se fez ao longo da

história da interpretação. Quebrar o silêncio do

texto, diante das amarras teológicas, talvez cons-

titua movimento aprendente – do dizer o Bem so-

bre a vida por intermédio de uma postura inte-

gradora do ecossistema. Um convite eco-ético

parece depreender-se das palavras e imagens teci-

das nesse texto.

O corpo, a terra, a vida estão sob controle.

Códigos de pureza e impureza38 decretam

aproximações ou distanciamentos de Deus. Di-

zem do poder e do não poder dos corpos na re-

lação de uns com os outros e com tudo o que os

cerca. Nesse jogo de poder, o texto diz o Bem so-

bre a vida, suspendendo tais concepções norma-

tivas e aprisionadoras dos corpos. A poesia/pala-

vra apresenta-se como mediadora do encontro da

amada e do amado. Com imagens de seu cotidi-

ano de trabalho, de descanso e de conflitos, a vida

é descrita com simplicidade.

O discurso em Cantares é sexuado. A afir-

mação do corpo da mulher e do homem é uma

constante. Os corpos posicionam-se. Não por-

que querem ser provocativos, mas porque, nessa

época, o controle sobre a vida passava pelo corpo.

Esse é o lugar do poder. Em Cantares também

está explicito um outro olhar e sentir diante da

natureza. Descrevendo o saltitar das gazelas,

pode-se falar do amor e dizer as belezas do corpo.

Há proximidades de nossas questões sobre

a interdependência entre seres humanos e ecos-

sistema e o jeito harmonioso com que a poesia de

Cantares comunica a plena integração de plantas,

árvores, relva, animais, estações, frutos... e o cor-

po dos que amam. As imagens, as sensações, os

perfumes e outras formas comunicativas desse li-

vro podem dizer da vida muito mais do que al-

guns discursos são capazes de fazer.

O Contexto HistóricoEntre orações e profecias, o pequeno livro

está abrigado na Bíblia. A força revolucionária do

corpo, que sente/crê/faz acontecer o amor, tem

contornos novos de enfrentamento de conflitos.

Cantares é um texto, sem dúvida, subversivo!

Erótico! Está no meio do período de domínio

dos sacerdotes como senhores das leis, da religião

e da política. Sua redação final perpassa os proje-

tos de reconstrução nacional do pós-exílio, em

paralelo à dominação de grandes impérios (persa,

grego). Um tempo de controle sobre o corpo.

Suores, odores, aromas, líquidos, vontades... es-

tão sob controle dos rígidos códigos de pureza.

Não foram poucas as tentativas de explicar

a pertença de Cantares ao canon bíblico. Muitas

possibilidades e contendas envolveram tais expli-

cações. As variações cobriram uma gama enorme

de interpretações espiritualizantes, outras alegó-

ricas e místicas e muito pouco houve de interpre-

tações históricas.39 Silêncio, alegorizações e res-

trições litúrgicas fizeram com que um conjunto

significativo de elementos que proclamam o Bem

sobre a vida, e sua interdependência e mutualida-

de, ficassem qual segredo aos nossos olhos e ou-

vidos. A cumplicidade de amantes em suas lidas

cotidianas marcadas por intervalos de amor foi

obscurecida em sua centralidade.

Cantares é um texto que, em sua poesia,

toma as melhores imagens, sons, aromas, sabores

37 Cantares 1.13, 14, 16; 2.3, 9.38 Os códigos de pureza são encontrados em Levítico 11-15 e os códigosde santidade, em Levítico 17-26. Esses textos, em sua redação final, sãocontemporâneos a Cantares. Outros, como Esdras e Neemias, sãotambém importantes para compreender a força crítica de Cantares.Eles registram as formas reguladoras da vida e do cotidiano rumo àestruturação da nação no período pós-exílico, isto é, século IV a.C.,aproximadamente. Mais adiante, tais aspectos serão retomados e expli-citados.

39 Entre judeus do primeiro século, por exemplo, ele foi consideradotexto sagrado e usado liturgicamente na ocasião da Páscoa. Entrecristãos, foi reconhecido em seu alcance metafórico-religioso. Cf.MESTERS, 1993; SIQUEIRA, 1993; ANDIÑACH, 1998.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 119

e saberes para afirmar a dignidade do corpo (o

próprio e o do outro). Um contraponto muito

forte num período em que o corpo da mulher era

mal-dito pela impureza, mal-dito pela procedên-

cia étnica, mal-dito pelo Estado que o instrumen-

talizava na prostituição, mal-dito pelo empobre-

cimento – corpos de homens e mulheres malditos

pelo que entrava ou saía deles.

Esse corpo, em Cantares, aparece em sua

beleza auto-revelada – “sou negra e formosa” – e

na beleza pronunciada pelo amado que busca, na

natureza e no corpo da amada, maneiras de ex-

pressar uma relação nova e muito distinta entre

homens e mulheres.

(...) ó mais formosa entre as mulheres, sai

pelas pisadas dos rebanhos e apascenta os

teus cabritos junto às tendas dos pastores.

Formosas são as tuas faces entre os teus

enfeites, o teu pescoço com os colares.

Eis que és formosa, ó querida minha, eis

que és formosa: os teus olhos são como

os das pombas.

Qual o lírio entre os espinhos, tal é minha

querida entre as donzelas.40

Cantares anuncia, na poesia cotidiana do

encontro e do desencontro dos corpos da amada

e do amado, o jeito distinto de enfrentar confli-

tos. Nesse texto não há muitas orações de pedi-

do, nem discursos de denúncia; a dinâmica é ou-

tra. São discursos fortes de denúncias e anúncios,

aparentemente segredados pela linguagem poéti-

ca. O conflito do momento é pano de fundo que

dá maior contundência às palavras. Em Cantares,

o corpo proclama sua beleza, liberdade e pureza

contra todo um sistema dominado pelos sacerdo-

tes, que estão exigindo ofertas e sacrifícios para

devolver-lhe a condição de pureza e proximidade

de Deus.

Não se pode ler Cantares sem considerar

seus paralelos históricos, a exemplo dos códigos

de santidade de Levítico.

Qualquer homem que tiver fluxo seminal

do seu corpo será imundo por causa do

fluxo (...) toda a cama, em que se deitar o

que tiver fluxo (...) e tudo sobre que se as-

sentar será imundo (...) qualquer que lhe

tocar banhar-se-á em água e será impuro

até a tarde (...). Quando pois, o que tem

fluxo estiver limpo, contar-se-á sete dias

para sua purificação; lavará as suas vestes,

banhará o corpo em águas correntes e

será limpo. Ao oitavo dia tomará duas ro-

las ou dois pombinhos, e virá perante o

Senhor, à porta da tenda da congregação e

os dará ao sacerdote: este oferecerá um

pela expiação do pecado e outro para ho-

locausto: e assim o sacerdote fará por ele

expiação do seu fluxo perante o Senhor.41

Esse é um pequeno exemplo, pois Levítico

continua dizendo o mesmo ou carregando mais as

tintas, ao falar da emissão de sêmen pelo homem,

da relação sexual entre homem e mulher, da mu-

lher em seu fluxo de sangue, da mulher após o

parto (no qual é impura ainda por mais tempo se

tiver dado à luz meninas), do corpo doente, do

corpo que toca e ingere animais considerados im-

puros, do corpo marcado por necessidades espe-

ciais. Enfim, o controle sobre os corpos é feito

pela teologia, que vai crescendo e consolidando-

se em um eixo sacerdotal e sacrificial transcen-

dente ao espaço do religioso. Isso porque, ade-

mais de controlar o sagrado, controla a econo-

mia, a política e as relações sociais, criando uma

estreita dependência da benção de Deus às con-

dições de pureza ou de impureza que passam pelo

corpo.

Naquele tempo em que se legislava sobre o

corpo, buscando controlá-lo, a mulher, ao pro-

nunciar palavras cheias de cotidiano, parece fazer

vista grossa às regras de seu tempo. Faz que não

vê. Diz e sai em busca do que pronuncia. Cons-

trói as pontes entre as palavras e os corpos, pre-

para o leito do encontro. Diante da ousadia desses

poemas, que exaltam a beleza dos muitos corpos

humanos e do ecossistema, não é de surpreender

que Cantares estivesse vestido de interpretações

poderosas para domar o amor e direcioná-lo ao

40 Cantares, 1.8, 10, 15; 2.2. 41 Levítico 15.2-15.

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120 Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003

matrimônio e, na seqüência, às analogias religio-

sas.

Como és formoso, amado meu, como és

amável. O nosso leito é de viçosas folhas,

as traves da nossa casa são de cedro, e os

seus caibros de cipreste.

(...) Qual macieira entre as árvores do

bosque, tal é meu amado entre os jovens;

desejo muito a sua sombra, e debaixo dela

me assento: e o seu fruto é doce ao meu

paladar.

Leva-me à sala do banquete, e o seu es-

tandarte sobre mim é o amor.

Sustentai-me com passas, confortai-me

com maçãs, pois desfaleço de amor.

A sua mão esquerda esteja debaixo de mi-

nha cabeça, e a direita me abrace.

Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas

gazelas e cervas do campo, que não acor-

deis, nem desperteis o amor, até que este

o queira.42

A organização do conjunto de poemas de

Cantares, muitos deles bem antigos, acontece

possivelmente no período pós-exílico, em torno

do IV século a.C. A conjuntura marcada pela pre-

sença da dominação imperial (dos persas e, de-

pois, dos gregos) está arquitetada em um projeto

de reconstrução nacional, articula-se pela elite

que vem do exílio43 e tem no grupo sacerdotal

sua força de expressão maior. Senhores do tem-

plo, da lei e da pureza ritual desencadeiam uma

profunda segregação dos estrangeiros, das mu-

lheres e dos empobrecidos.44

Os sacerdotes do segundo templo45 serão

responsáveis por desencadear um sistema políti-

co e econômico em consonância com os interes-

ses de uma elite nacional e dos impérios em exer-

cício, por meio de mecanismos religiosos legiti-

madores de suas ações. Sob uma teologia marca-

da pelos códigos de pureza e impureza ritual, que

controlavam o corpo em sua sexualidade, em sua

classe social, em sua etnia, em seu gênero ou em

suas doenças, fica evidente, num período que

ruma para uma organização escravista do traba-

lho, que o corpo é o lugar do poder (e conhece-

mos algo semelhante em nossas histórias de vida

e de continente). Por isso, a lógica sacrificial deve

contê-lo, culpabilizando-o, o que em muito se

aproxima do rito sacrificial propagado como ne-

cessário nas políticas econômicas de mercado,

que devoram cotidianamente muitos corpos em

seu altar.46 Suores, odores, aromas, líquidos, von-

tades... estão sob o controle dos rígidos códigos

de pureza. Sobre eles, todo o controle e a mal-

dição.

Uma teologia que dissesse o Bem-sobre-a-

vida ficava na dependência dos ritos de passagem

da impureza para a pureza. Um deslocamento

não possível a qualquer corpo: os sacerdotes es-

tavam nesse caminho. O sistema não era mera-

mente religioso, mas econômico. Ofertas e sacri-

fícios precisavam ser pagos para devolver ao cor-

po a sua condição de pureza e proximidade de

Deus (talvez, por isso, os poemas de Cantares se-

jam tão econômicos em sua menção a Deus).

É, portanto, contra esse controle do sagra-

do47 que a força gratuita do amor da amada e do

amado insurge-se, dizendo da beleza dos corpos

um do outro e de todos os líquidos que saem e

entram deles. Em Cantares, há curiosamente

muito pouca água, em contraposição às muitas

águas de Levítico. Extremamente positivas são as

falas sobre o corpo, poesia tecida das belezas mais

singelas e dinâmicas, que a natureza podia ofere-

cer aos lábios da amada e do amado para dizer um

do outro, um para o outro das curvas e contornos

do corpo que ardia de amor.

42 Cantares 1.16, 17; 2.3-7.43 Essa realidade está expressa nos textos bíblicos de Esdras e Nee-mias.44 Cf. Esdras, capítulos 7-10; Neemias, capítulos 5-13.45 Trata-se do Templo de Jerusalém, reconstruído nesse período doretorno do exílio, conforme narrativas nos textos de Esdras, capítulos3-6.

46 O sacrifício necessário, exigido pela atual economia de mercado,apresenta-se como oferenda a um sagrado antropofágico, que se ali-menta da morte e dos decretos de morte às vítimas, por esse mesmosistema culpabilizadas (tendo o fracasso como responsabilidade pes-soal, e não sistêmica) ou tornadas boi de piranha ou bodes expiatórios.Nesse rito de morte, vão para o altar do sacrifício as pessoas mais enfra-quecidas por esse discurso normativo sobre os corpos: a exemplo dosempobrecidos, dos negros, dos indígenas, das mulheres, das crianças,dos velhos, dos doentes de aids, dos soropositivos, das pessoas porta-doras de necessidades especiais, enfim, dos integrantes dos grupossociais na rota da descartabilidade e da exclusão social.47 Controle combatido por Jesus e que o levou à morte.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 121

Ritos sacrificiais, na lógica purificadora de

Levítico, implicam prisões aos corpos, anunciam

dívidas ao cotidiano do trabalho, retiram das mu-

lheres a maior parte dos dias de sua vida como

tempos e espaços de beleza.48 Tudo, ou quase tu-

do, na vida é impureza. É dívida. É escravidão. É

religião e economia e política. A despeito desse

jogo de poder, o texto de Cantares diz o Bem so-

bre a vida, suspendendo concepções normativas e

aprisionadoras dos corpos.

O meu amado fala e me diz: levanta-te,

querida minha, formosa minha, e vem.

Porque eis que passou o inverno, cessou a

chuva e se foi; aparecem as flores na terra,

chegou o tempo de cantarem as aves, e a

voz da rola ouve-se em nossa terra.

A figueira começou a dar seus figos, e as

vides em flor exalam o seu aroma; levan-

ta-te, querida minha, formosa minha e

vem.

Pomba minha, que andas pelas fendas dos

penhascos, no esconderijo das rochas es-

carpadas, mostra-me o teu rosto, faze-me

ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce,

e o teu rosto amável.49

Nesse texto, os corpos de mulheres e ho-

mens estão, todo o tempo, descobrindo as bre-

chas do controle para viver e dizer o Bem e o

Amor sobre o próprio corpo e o do outro. E fa-

zem poesia em profunda sintonia com a natureza

e seu movimento; por meio da interdependência

com o ecossistema, os corpos da amada e do

amado se fortalecem para anunciar sua resistên-

cia.

A Poesia de Cantares e suas Luzes para Pensar Paradigmas Novos

Poesia de amor não é apenas para quando

não temos mais nada a fazer, nem mesmo quando

todas as lutas já estão resolvidas, nem quando as

articulações políticas já ocorreram. Não! Gratui-

dade e amorosidade nas relações cotidianas impli-

ca rever as assimetrias de poder estabelecidas nos

espaços públicos e privados da vida, nos lugares

de trabalho e nos de descanso, nas ações políticas

de pequenos e grandes impactos, enfim, na revi-

são das desigualdades das micro e das macrorre-

lações experenciadas no cotidiano.

Assumir o corpo como referencial não ape-

nas metodológico, mas também epistemológico

resulta, na leitura de Cantares, na instauração de

questionamentos sobre as leituras que escondem

o texto. Por outro lado, anuncia que o jeito de

criar versos para dizer o corpo de amantes em

plena sintonia com a natureza pode nos ajudar a

perceber uma proximidade da agressão (científi-

ca/política/econômica/religiosa) praticada contra

o ecossistema, em analogia àquela imposta ao

corpo empobrecido, particularmente o feminino.

A fala amorosa é aproximativa. É exercício

de muitos dizeres, compõe-se de palavras inexa-

tas, imprecisas. A fala amorosa faz uso de media-

ções, transfigurando tudo o que está à sua volta.

Sons, cheiros, sabores, texturas, cores tornam-se

mediações para falar do corpo do amado e da

amada, para anunciar a conexidade intrínseca en-

tre seres humanos e ecossistema, para se interpe-

netrarem, se dizerem com beleza e poesia o que

as palavras não conseguem captar dos sentidos.

“O discurso amoroso é produção de conheci-

mento a partir dos sentidos do corpo.”50 Olho

não tem garras, um umbigo não pode ser taça, lá-

bios não têm gosto de mel... No entanto, criam

imagens da relação, transcendendo as palavras,

transgredindo as regras.

Arrebatas-te o coração, com um só de

teus olhares (...).

Desvia de mim os teus olhos porque eles

me perturbam (...).

O teu umbigo é taça redonda, a que não

falta bebida; o teu ventre é monte de tri-

go, cercado de lírios.

Que belo é o teu amor (...) quanto me-

lhor é teu o amor do que o vinho (...) os

teus lábios destilam mel! Mel e leite se

acham debaixo da tua língua.51

48 Cf. Levítico, capítulos 11-15 e 17-26.49 Cantares 2.10-14.

50 PEREIRA, 1993, p. 55.51 Cantares 4.9; 6.5; 7.2; 4.10, 11.

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Essa descrição do corpo amante e amado

revela profunda harmonia/sintonia com o ritmo

e com os demais corpos existentes no cosmo. O

movimento da vida, das pessoas, dos animais e

das plantas conjugados pela dinâmica do ar, da

água, da terra e do fogo alternava dias e noites,

marcando a cadência do trabalho, do descanso,

do prazer, do dizer, do sentir, do fruir, do sofrer,

do dançar... Enfim, um movimento novo convi-

dativo para revisões das racionalidades estrutura-

doras dos saberes, entre os quais, o teológico.

A cadência própria do discurso, em Canta-

res, provoca perguntas exigentes para a identifica-

ção do método de entrada no texto, de tal manei-

ra que suas belezas se abram a quem lê. Entre elas

estão as seguintes interpelações: dá para não ins-

trumentalizar a leitura do texto bíblico, mas dei-

xá-lo acontecer como simples fruição?; dá para

imaginar a leitura do texto bíblico tal qual a poe-

sia – pura gratuidade que inunda a vida e descor-

tina horizontes, reacende esperanças, inaugura

energias e instaura redes de dignidade que tecem

cotidianos mais amplos, os quais a racionalidade

humana é incapaz de tocar plenamente?; dá para

ensaiar indagações pequenas, provisórias respos-

tas e uma grande dose de desejo de fazer aconte-

cer uma leitura nova, que nos surpreenda a todos

e a todas, com sua espiritualidade de vida?

Nesse sentido, motivado pelo próprio jeito

de Cantares, cabe observar a necessidade de ques-

tionar o método racional, sociológico, de con-

fronto permanente com as estruturas, como eixo

único de leitura bíblica. Muito embora se possa

reconhecer a sua expressiva contribuição para

uma leitura histórica e contextual, tal método foi

gradativamente mostrando os seus limites. Ou-

tras categorias de análise têm cooperado com a

ruptura da exclusividade da racionalidade econô-

mico-social. Entre os caminhos epistêmicos de

superação dos impasses, foi fundamental agregar,

como perguntas metodológicas e horizontes

epistêmicos, as contribuições das teorias de gêne-

ro e da complexidade, conforme explanadas em

item anterior neste ensaio.

O movimento do corpo em silêncio, sem

pressa em dar respostas, sem aflição por não sa-

ber a verdade, sem uma infinidade de certezas

está em melhor sintonia com a poesia de Canta-

res. Por isso, ao invés de palavras-respostas a pri-

ori sobre o texto bíblico, sugere-se como cami-

nho metodológico perguntas-escuta-contempla-

ção das imagens do texto de Cantares. Uma di-

nâmica desprovida das respostas e aberta aos

movimentos complexos, que marcam a existência

cotidiana das pessoas e da pluralidade de vidas do

ecossistema, é caminho transgressor necessário

para fruir a beleza desse texto.

O movimento das palavras e imagens, ora

simbólicas ora reais, indica uma dinâmica que

tece para frente e para trás, no texto de Cantares,

um emaranhado de poemas parecidos com o

amor: lugar de encontros e desencontros. Dos ei-

xos perceptíveis nessa teia da vida, desejo subli-

nhar o de viver a gratuidade de relações como si-

nal de reconstrução de nossa percepção do ecos-

sistema, e não como proposta de abandonar es-

peranças e lutas. Dessa forma, pode-se inaugurar,

na leitura bíblica, uma revisão das posturas que a

reduzem a um manual e a um conjunto de dog-

mas atemporais e universais ou, ainda, das que

reforçam leituras que não permitem à vida e ao

seu ritmo cotidiano ser vividos na gratuidade e

fragilidade que lhes são peculiares. Essa postura

interrogaria a teologia que vai se consolidando,

muitas vezes, na contramão dos clamores de vida

digna.

Uma nova percepção da terra, em conexi-

dade com seres humanos e demais seres vivos, à

semelhança das descrições dos corpos em busca

do amor, como em Cantares, pode nos devolver

o fôlego e animar nossos passos, no momento de

desafios cósmicos-globais que se nos apresentam

e exigem uma reorganização da vida e das rela-

ções todas.

Os problemas globais que atualmente afe-

tam a biosfera e a vida humana – ambos talvez ir-

reversíveis, na visão de Fritjof Capra – não po-

dem ser entendidos isoladamente. São sistêmi-

cos. Estão interligados e interdependentes. “O

momento presente com a escassez de recursos, a

degradação do meio ambiente, o colapso das co-

munidades locais e a violência étnica nos colocam

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 123

diante de uma grande crise: uma crise de perce-

pção.”52 Essa crise precisa ser enfrentada com

base na mudança de percepção e do pensamento.

Assim, considerar a novidade da interdependên-

cia de tudo o que forma o ecossistema e produz

vida exige assumir, ainda que provisoriamente, a

perspectiva de suspender o eixo da centralidade,

seja qual ela for, como mecanismo de compreen-

são das alternativas para reconstruir as relações de

poder no cotidiano. A interdependência dos se-

res humanos e dos demais seres vivos do ecossis-

tema é perceptível no discurso amoroso da ama-

da e do amado, que, ao viver o cotidiano, inaugu-

ravam linguagens novas, movimentos de ampla

conexidade e respeito com os muitos seres vivos

e demais sinais do cosmo, em contraste com os

discursos normativos cerceadores do corpo.

Em Cantares, a fala do cotidiano invade o

sagrado, o público e o espaço dominado pelos

homens. As estruturas de poder de caráter andro-

cêntrico e hierárquico “sabem do amor e lhe de-

signam espaços permitidos, controlados de ex-

pressão (...) sabem da capacidade subversiva das

paixões que acordam os sentidos e a consciência

e, mais que tudo, inspira imagens, falas e mun-

dos”.53 Essa distinta dança dos movimentos que

se sucedem, afirmando a vida contra as formas de

morte e controle sobre o corpo, a propriedade e

o trabalho, no texto bíblico, desafia-nos a entrar

nesses poemas com novos olhares e indagações.

Cantares pode nos ajudar a aprofundar uma nova

percepção na direção da integração de seres hu-

manos e ecossistema e de seres humanos em re-

lações sociais afirmando o poder como redes de

construção da dignidade da teia da vida, como a

que se percebe na relva feita leito para o encontro

do amor.

O nosso leito é de viçosas folhas, as traves

da nossa casa são de cedro, e os seus cai-

bros de cipreste.

(...) Qual macieira entre as árvores do

bosque, tal é meu amado entre os jovens;

desejo muito a sua sombra, e debaixo dela

me assento: e o seu fruto é doce ao meu

paladar.54

Em Cantares, a mulher não é vítima, não é

tema, nem é privilégio seu o protagonismo. Con-

forme a nossa proposição, na introdução deste

ensaio, o referencial de gênero não pretende visi-

bilizar a mulher, mas as relações sociais de poder

nas quais ela está envolvida. Temos, nesse texto,

mulher e homem em diversas relações, constru-

indo caminhos alternativos, superando processos

de instrumentalização do corpo feminino. Assu-

mindo, enfim, o conhecimento do outro, por

meio da observação das belezas diferentes do

corpo de cada um. A mulher, em Cantares, tem

voz e fala. Ela escolhe imagens, palavras, cheiros

e sabores para anunciar o desejo do encontro,

para descrever o corpo masculino. E convida-o

ao encontro, vai buscá-lo entre os pastores, nas

horas do descanso do meio-dia. Também corre

riscos e o busca nas horas da noite, na cidade, e é

agredida pelos guardas. Nem todas as relações

entre homens e mulheres, em Cantares, são de

parceria. Algumas são de enfrentamento, de re-

sistência, como essa com os guardas e outras com

seus irmãos. Contudo, pode-se afirmar que gran-

de é a sua iniciativa. Ela participa plenamente do

amor, está doente de amor.

Eu dormia, mas meu coração velava; eis a

voz do meu amado, que está batendo.

Levantei-me para abrir ao meu amado (...)

mas já ele se retirara e tinha ido embora; a

minha alma se derreteu quando antes ele

me falou; busquei-o, e não o achei; cha-

mei-o, e não me respondeu.

Encontraram-me os guardas que ronda-

vam a cidade; espancaram-me, feriram-

me; tiraram-me o manto os guardas dos

muros.

Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se en-

contrares o meu amado, que lhe direis?

Que desfaleço de amor.55

Ousadia, corpo para o amor em tempos de

corpo impuro nas relações. Contudo, reconhecer

52 CAPRA, 1996, p. 24.53 PEREIRA, 1993, p. 48.

54 Cantares 1.16, 17; 2.3.55 Cantares 5.2, 5-8.

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o protagonismo da mulher e a parceria de seu

amado não pode obscurecer a dominação-explo-

ração que sobrecarrega muito mais a vida das mu-

lheres do que a dos homens.56 A preservação do

texto de Cantares, com todas as controvérsias

por ele provocadas, é seguramente fruto de uma

memória de grupos sociais de mulheres e homens

que viveram a resistência ao poder de grupos do-

minantes que impunham outra lógica ao cotidia-

no. Os irmãos e os guardas da cidade aparecem

como sinais da presença desses grupos sociais,

que manejam o controle dos corpos. Os irmãos a

querem controlar, seja pelo trabalho que lhe im-

põem de cuidar da vinha deles, seja pelo dote que

querem definir, identificando quanto vale o seu

corpo. Já os guardas usam de violência quando ela

busca por seu amado nas horas da noite, nas cer-

canias da cidade.

Os filhos de minha mãe se indignaram

contra mim, me puseram por guarda de

vinhas; a vinha, porém, que me pertence

não a guardei.

Temos uma irmãzinha, que ainda não tem

seios; que faremos a esta nossa irmã, no

dia em que for pedida?

Se ela for um muro, edificaremos sobre

ele uma torre de prata; se for uma porta,

cercá-la-emos com tábuas de cedro.

Eu sou um muro, e os meus seios, como

as suas torres; sendo assim, fui tida por

digna da confiança do meu amado.

A vinha que me pertence está ao meu dis-

por.57

A palavra aqui pronunciada indica os jogos

de poder, evidencia o controle sobre o corpo da

mulher em vários âmbitos da sociedade. A poesia

anuncia o quão desprezível é comprar o amor,

descrever o preço do corpo da mulher por sua

força para o trabalho e sua sexualidade reprodu-

tiva. Na casa dos irmãos, o controle é manifesto.

O valor é calculado: seus seios e sua força, sua

muralha. A reação dela, que está no centro das

negociações, é encantadoramente rebelde. O que

tenho é meu, para meus amigos, para a paz. En-

costada no amado e de costas para os irmãos en-

contra-se a mulher de Cantares.

FESTA E TRANSGRESSÃO DA ORDEM COTIDIANA

Talvez seja o caso de afirmar que, diante de

tão contundentes opressões, não se pode viver de

Cantares todos os dias. Também é preciso não

confundir Cantares com sonho paradisíaco, em

que tudo dá certo. Encontros e desencontros,

possibilidades e impossibilidades, paixão e con-

trole, acolhida e violência contra o corpo são re-

alidades constantes. Simultâneas. Ao usar a ex-

pressão talvez não seja possível viver só de Canta-

res, imagino que há momentos em que a lingua-

gem comunicativa pode e tem de ser outra.

Talvez por isso mesmo o livro esteja entre profe-

cias e orações. Sabedoria! Há tempo oportuno

para todas as linguagens.

Não é preciso ler os textos bíblicos sempre

com uma finalidade antecipadamente justificada.

Uma leitura para mera fruição pode nos abrir

para belezas, como a de Cântico dos Cânticos. As-

sim, esse jeito de encontrar a vida, nas palavras

desse livro, pode nos ensinar a ler outros textos

bíblicos. Sem instrumentalizá-los para a luta ou

para qualquer outra coisa, é possível que consti-

tuam espaços de graça e tenham, por isso, graça.

Fruição. A novidade que talvez seja importante

insistir é manter sempre de Cantares o olhar para

o mundo, a percepção da realidade. Um perce-

pção desfrutada nas festas (dança da sulamita),

nas delícias do amor (a relva que acolhe o tempo

do descanso), no aconchego dos lugares que fa-

zem história popular de resistência (debaixo das

macieiras), na acolhida das casas ou dos lugares

da casa que não representam opressão (quarto da

mãe).58 A percepção que anuncia as redes de mu-

tualidade e interdependências entre os seres pro-

move a integridade da vida.

O olhar, a sensibilidade, a percepção de vi-

ver a vida sem abdicar do amor, do descanso, do56 Cf. as inúmeras situações descritas no texto de Levítico, capítulos12-15, que aprisionam muito mais dias da vida das mulheres do que dados homens.57 Cantares 8.8-10, 12. 58 Cantares 1.16, 17; 6.13-7.1; 8.5-7; 3.4, 5.

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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 125

dizer das belezas, da festa, ainda que se tenha de

resistir a diversas formas de opressão, pode ser

uma novidade que nos ajude nos dias de hoje.

Muitas lutas nos endurecem e nos fazem

perder a ternura, o brilho no olhar, não nos ale-

grar com a festa, não dedicar tempo para preparar

a boa comida para receber amigos e família, aban-

donar o cuidado de brincar com as crianças seus

jogos infantis, suas fantasias e faz-de-conta, adiar

o namoro com o marido e a mulher, esquecer de

oferecer flores, de escrever o cartão, de convidar

para o passeio, enfim, nos fazem esquecer de pre-

parar o lugar do amor... Acredito que o cotidiano

das relações de poder precisa ser regado por um

novo olhar e um novo sabor, que parecem estar

segredados nos poemas de Cantares.

Essa percepção, nada alienada, nada sub-

missa/sucumbida à ordem vigente, é, em Canta-

res, o convite mais impressionante e instigante

que consigo perceber para nos animar. Para acen-

der os olhos outra vez. Para colorir o cotidiano de

quem resiste, sem amargar com os conflitos, e

nutrir esperanças que se cultivam em porções

breves.

O livro não é de luta. Traz canto, festa, dan-

ça, sofrimento, perdas, laços de amor, tempos de

trabalho e de descanso. Lugares acolhedores dos

corpos, em contraste com as múltiplas prisões.

Não há discursos, o amor é vivido intensamente

e expresso em poemas. Não há propostas de in-

versão das posições assimétricas. Mas a vivência

do amor é, em si, um grande convite à liberdade

e à revisão das estruturas normativas que preten-

dem controlar o corpo. O tempo do amor cor-

responde ao tempo do cotidiano no qual tem tra-

balho, tem dificuldade, tem paixão, tem encon-

tros e desencontros.

A sabedoria de Cantares, sabedoria da vida

do povo. Sabedoria de minhas avós, de muitas

avós. Sabedoria que não é muita instrução, mas

muita percepção, sensibilidade e cuidado com o

corpo, o próprio e o do outro. Quero ler Canta-

res iluminada pela dança leve do corpo de mulhe-

res do povo que, em meio a tanta dureza, não dei-

xaram de amar. E amando, anunciaram o bem-be-

leza do corpo do outro e o trouxeram para perto,

para viver na contra-mão do que se esperava das

relações naquela época. No ato de trazer para

perto, o corpo alargou-se e os horizontes multi-

plicaram-se. O corpo que veio foi de volta para os

seus, para o trabalho, inundado de amor e de pos-

sibilidades, exalando a alternativa resistente con-

tra o comportamento esperado.

A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de

corpos que se amam sobressaem nesse poema

como contraponto ao tempo em que as liberda-

des para o corpo estavam cerceadas. Essa dinâmi-

ca assemelha-se ao modo como muitas pessoas

empobrecidas lidam com o seu cotidiano em

nossa realidade. Ainda que vivam em um tempo

que proclama o Mal para as suas vidas, elas se-

guem vivendo seu desejo e sua estética de afirma-

ção da dignidade para seus corpos, fazendo seus

bailes, suas comidas, suas festas, criando traba-

lhos informais de sobrevivência – ressignificando

os discursos controladores do corpo e da vida.

Por isso, há muito para aprender da gratui-

dade das festas do povo, lugar em que a fartura

anuncia-se como o desejo futuro tornado presen-

te pela partilha e pela solidariedade, e não porque

as questões estruturais da sociedade estão já so-

lucionadas.

Tomo a festa como um ângulo possível,

entre outros. O privilégio concedido à

festa se deve ao fato de que, como forma

lúdica de sociação e como um fenômeno

gerador de imagens multiformes da vida

coletiva, portanto, como modo privilegia-

do de expressão dos sentimentos coleti-

vos, ela possibilita uma outra aproxima-

ção do ato mesmo de produção da vida,

da experiência humana em sociedade, ou

seja, do vínculo social.59

[A festa] é, no entanto, vivida, por aque-

les que dela participam, como explosão de

vida, como revigoramento e, portanto,

como uma espécie de renascimento, ple-

no de atualidade, de inovação, de ruptura.

Para quem participa dela, a festa não tem

idade, é sempre atual.60

59 PEREZ, 2002, p. 36.60 Ibid., p. 53.

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126 Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003

Os olhos, os ouvidos, a boca, as mãos são

locus de poesia apresentando percepções muito

profundas das opressões conjunturais refletidas

no corpo de cada pessoa. Por isso, nos desafiam

a visualizar revisões nas hermenêuticas bíblicas e

suas derivações teológicas marcadas por uma ra-

cionalidade ocidental-branca-masculina estrutu-

radora de subordinações diversas, como a da na-

tureza, das mulheres, dos negros e dos indígenas,

entre outras. Dizer o Bem sobre a vida como es-

tética de resistência ao controle da existência é o

eixo para propor esse diálogo interdisciplinar,

partindo de uma proposta de revisão teológica

circunscrita ao debate epistemológico e à aproxi-

mação do texto poético, que, historicamente, este-

ve sob controle, por sua força crítica, às teologias

aprisionadoras do corpo e da beleza cotidiana.

A novidade que talvez seja importante in-

sistir é manter sempre de Cantares o olhar para o

mundo, a percepção da realidade. Uma percepção

desfrutada nas festas, nas delícias do amor, no

aconchego dos lugares que fazem história popu-

lar de resistência. A percepção que anuncia as re-

des de mutualidade e interdependências entre os

seres para a integridade da vida. Portanto, uma

nova forma de poder: redes nas quais interdepen-

dem incontáveis fios de vida. Diante desse pano-

rama, parece essencial seguir o diálogo entre sa-

beres, acompanhados por Cantares e, por que

não, pela beleza poética de Fernando Pessoa:

De tudo, ficaram três coisas:

a certeza de que estamos sempre come-

çando...

a certeza de que é preciso continuar...

a certeza de que seremos interrompidos

antes de terminar...

Portanto devemos

fazer da interrupção um caminho novo...

da queda um passo de dança...

do medo, uma escada...

do sonho, uma ponte...

da procura... um encontro.

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Dados da autora

Doutora em ciências da religião pela UMESP.Professora no Mestrado em Educação Física,

Faculdade de Ciências da Saúde/ UNIMEP.Coordenadora regional para América Latina e

Caribe da Associação Ecumênica de Teólogos eTeólogas do Terceiro Mundo (EATWOT/ASETT).

Recebimento artigo: 1.o/abr./03

Consultoria: 16/abr./03 a 26/jun./03

Aprovado: 27/jun./03

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