Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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7 ALÍPIO DE SOUSA FILHO EDITOR Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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7ALÍPIO DE SOUSA FILHO

EDITOR

Gênero e SexualidadesESTUDOS GAYS

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Proposta Editorial

Publicação semestral de estudos teóricos, pesquisas empíricas, ensaios e resenhas sobre as temáticas de gênero e sexualidade, com destaque para os estudos gays, lésbicos e queer sobre homossexualidades, lesbianidades, transexualidades. A revista publica igualmente trabalhos de teoria social, direitos humanos, cultura e política que dialoguem com a temática central.

Bagoas : revista de estudos gays / Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. - V. 1, n. 1 jul./dez. 2007)- . - Natal : EDUFRN, 2007- . v. ; 23 cm.

Semestral. Início: jul./dez. 2007. Editor: Alípio de Sousa Filho. Descrição baseada em: v. 1, n.1, jul./dez. 2007. ISSN 1982-0518 1. Ciências Humanas e Sociais - Periódico. 2. Sexualidades - Periódico. 3. Ética sexual - Periódico. 4. Ética moral - Periódico. 5. Homossexualidades - Periódico. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. II. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 168.522:3(05)

A revista tem registo no Sociological Abstracts

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTEReitora: Ângela Maria Paiva Cruz

Vice-Reitora: Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTESDiretor: Herculano Ricardo Campos

Vice-Diretora: Maria das Graças Soares Rodrigues

EDITORAlípio de Sousa Filho

EDITORES ADJUNTOS

Antonio Eduardo de OliveiraDurval Muniz Albuquerque Junior

SECRETÁRIO EXECUTIVOJosé Eider Madeiros

BOLSISTA DE APOIO TÉCNICOGlauber Vinícius

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃOLaurisa Alves

COMISSÃO EDITORIAL

Anne Christine Damásio – UFRNCarlos Guilherme Valle – UFRN

Cinara Nahra – UFRN Eduardo Anibal Pellejero – UFRN

Elisete Schwade – UFRN Makarios Maia – UFRN

Márcio de Lima Dantas – UFRN Maria das Graças Pinto Coelho – UFRN

Rozeli Maria Porto – UFRN

CONSULTORIA EDITORIALAdriana Piscitelli – UNICAMP

Adriana Resende Barretto Vianna – UFRJ Alessandro Soares da Silva – USP

Alexandre Câmara Vale – UFCDaniel Welzer-Lang – Univerité Toulouse 2 – França

David Foster – Arizon University – EUADenílson Lopes – UFRJ

Edrisi Fernandes – UFRN Emerson da Cruz Inácio – USP

Eugênia Correia Krutzen – UFPBFabiano Gontijo – UFPI

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Fernando Bessa Ribeiro – UTAD – PortugalFernando Villamil – Universidad Complutense de Madri – EspanhaFrancisco Oliveira Barros Junior – UFPIHorácio Costa – USPJames Noyle Green - University of Brown – EUAJoel Birman – UFRJJúlio Simões – USPLaura Moutinho – USPLeandro Colling – UFBALuiz Fernando Dias Duarte – UFRJLuiz Mello de Almeida Neto – UFGLuiz Mott – UFBALuiz Paulo Moita Lopes – UFRJLourdes Bandeira – UNBMarcos Antônio Costa – UFRNMárcia Aran – UERJMaria Helena Braga – UFRNMaria Luiza Heilborn – UERJMichel Maffesoli – Sorbonne – FrançaMiguel Vale de Almeida – ISCTE – PortugalMiriam Grossi – UFSCPeter Fry – UFRJRicardo Barrocas – UFCPaulo Roberto Ceccarelli – PUC-BHRegina Facchini – UNICAMPRobert Howes – University of London – InglaterraRogério Diniz Junqueira – INEPSérgio Carrara – UERJSonia Correa – ABIASteven Butterman – University of Miami – EUASeverino João Albuquerque - University of Wisconsin – EUATânia Navarro-Swain – UNBToni Reis – ABGLTWilton Garcia Sobrinho – UBC

REVISÃOJúlia Ribeiro Fagundes Oscar Maurício Gómez Gómez (para o Espanhol) PROJETO GRÁFICOJanilson Torres

CAPAJanilson Torres (a partir da obra anônima "Master of the jardin de vertueuse consolation” - 1470-1475 d.c. - , na qual Bagoas é retratado, intercedendo por Nabarzanes, diante de Alexandre Magno. Visualize o original).

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EDITORIAL

ARTIGOS

A inversão sexual entre os Azande

E. E. Evans-Pritchard

Ser Queer

Paul Goodman

A homossexualidade perante a lei na França:

do pós-guerra à “liberação gay”

Geoffroy Huard de La Marre

Identidades, cuerpos y educación sexual:

una lectura queer

Germán S. M. Torres

Para uma análise sobre a incorporação de disposições

normativas de prescrição dos corpos

na contemporaneidade

Juliana Perucchi

Sexual inversion among the Azande

Being Queer

The homosexuality in front of the law in France:

from postwar to “Gay Liberation”

Identities, bodies and sex education:

a queer approach

Towards an analysis of the incorporation

of body-regulating dispositions

in contemporary times.

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sumário

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Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas

de educação para a população LGBT no Brasil

Luiz Mello

Fátima Freitas

Cláudio Pedrosa

Walderes Brito

O caso Geisy Arruda: representações midiáticas

brasileiras sobre violências contra mulheres

Rayani Mariano dos Santos

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa

Giovanna Lícia Rocha Triñanes

Miriam Pillar Grossi

Para se pensar sobre a experiência transexual na escola:

algumas cenas

Dayana Brunetto Carlin dos Santos

Da finada à europeia: experiências de ser,

não permanecer e estar travesti na adolescência

Tiago Duque

A construção da homossexualidade no curso da vida a

partir da lembrança de gays velhos

Murilo Peixoto da Mota

Beyond an anti-homofobic kit: public policies on

education for the LGBT population in Brazil

The Geisy Arruda case: Brazilian media representations

of violence against women

To think about the transsexual experience in education:

some scenes

From the deceased to the "Europeans": experiences of

being, not continuing, and temporarily becoming a

transvestite in adolescence

The construction of homosexuality during life

time before recollections of old gay men

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Sexualidade e política:

uma abordagem a partir do mercado e do consumo

Isadora Lins França

A homossexualidade no Brasil no século XIX

Adailson Moreira

De vigilias y sueños:

los dibujos eróticos de Helga Montalván

Francisco Zaragoza Zaldívar

Uma cultura dos contatos: sexualidades

e erotismo em duas obras de Gilberto Freyre

Thiago Barcelos Soliva

Rompendo com a binaridade masculino e

feminino nas canções buarqueanas:

um estudo de Folhetim e Tango de Nancy

Roberto Gabriel Guilherme de Lima

RESENHA

CONFIANÇA E MEDO NA CIDADEZYGMUNT BAUMAN

Por Daniel Gonçalves de Menezes

NORMAS

Sexuality and politics:

an approach related to market and consumption

Homosexuality in the Nineteenth Century

Vigils and dreams:

the erotic drawings of Helga Montalván

A culture of contacts: sexualities and

eroticism in two works of Gilberto Freyre

Breaking with the binarism masculine/feminine in the Chico Buarque's songs:

a study of the “Folhetim” and “Tango de Nancy”

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QUANTOS ARTISTAS PERDEREMOS MAIS?

Este ano, a mídia noticiou caso de menino de 12 anos que se

matou, em Vitória, vítima de bullying homofóbico na escola. Descrito

como criança “alegre e sonhadora”, Roliver de Jesus teria sido

continuamente vítima de agressões nas quais era chamado de “bicha”,

“gay” etc. Véspera de carnaval, escreveu carta anunciando seu

suicídio e enforca-se. Uma colega de Roliver declarou: “ele dizia que

queria ser um grande artista”.

Fatos assim não são raros no Brasil e em outros países. Para

muitas crianças e jovens, a escola tem sido o lugar para o aprendizado

do olhar do preconceito, do estigma e da injúria, seja para praticá-los

contra outros, seja para suportar a violência de que se é vítima. Esse

aprendizado muitas vezes ocorre simultaneamente com a

aprendizagem da própria língua. Aprende-se muito cedo que se pode

maltratar alguém com palavras e outros aprendem a carregar por

muito tempo (ou para sempre) as sequelas de insultos que funcionam

como espécie de interdito à existência. Designados logo cedo por

palavras como “bicha”, “veado”, “mulherzinha”, “sapatão”, meninos e

meninas, confusos com os sentidos desses termos, vão tendo seus

destinos sociais traçados, quando ainda eles pouco ou nada sabem de

si. Destinos que podem variar muito: sorte quando são belos! Outros

destinos atam alguns sobreviventes ao signo de sua vulnerabilidade

psicológica e social produzida pelo estigma.

A pergunta que cabe fazer é: por que razão o governo federal

brasileiro deixou de implantar o programa Escola sem Homofobia,

sendo o bullying homofóbico na escola tão corriqueiro e de efeitos tão

perversos? Pergunta especial caberia à Presidente da República,

Dilma Rousseff, que vetou o kit educativo contra a homofobia proposto

pelo MEC: quantas crianças como Roliver de Jesus, com sonhos de

serem artistas, poetas, escritores, filósofos, cientistas, médicos,

arquitetos, juízes etc., perderemos mais, por suicídio ou assassinato,

sem que nossos governantes promovam políticas educativas de

combate à homofobia? O que mais governantes e gestores públicos

esperam para se decidirem por corajosas políticas de enfrentamento às

crueldades praticadas contras gays, lésbicas e transexuais na

sociedade brasileira?

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editorial

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Como produto de uma educação social generalizada nas

famílias e reforçada nas escolas e pelas mídias, a homofobia somente

pode ser combatida por meio de uma contraeducação à educação

homofóbica. Contraeducação crítica à ideologia da heterossexualidade

como única via normal da sexualidade, estigmatizante da

homossexualidade como anormalidade, disfunção sexual, desvio

moral. Essa contraeducação não pretende ser “propaganda da

homossexualidade” (como equivocadamente a Presidente da

República falou à nação), mas crítica ao preconceito homofóbico e

relativização de instituições históricas como a cultura da

heterossexualidade, que, negando-se como invenção histórica, impõe-

se como um fato natural. Aliás, se o assunto for propaganda, que dizer

da heterossexualização da esfera pública por meio de outdoors,

novelas, publicidades, canções, como uma espécie de reiteração

social obsessiva da heterossexualidade como norma?

Para aqueles que vivem o massacre do preconceito e da

discriminação, decisões são esperadas dos governantes, em todos os

níveis, que sejam portadoras da esperança que teremos uma

sociedade sem homofobia amanhã. De governos que se apresentam

como comprometidos com transformações, não se pode aceitar que

permitam a chantagem política, de natureza religiosa ou outra, em

nome da governabilidade, admitindo que atrocidades continuem a

acontecer contra aqueles que o preconceito pretende isolar como uma

maldita espécie sexual à parte. O Brasil não necessita apenas de

desenvolvimento econômico, mas também de desenvolvimento

cultural, intelectual, moral. Não o terá se continuar conservador e

homofóbico.

_______________________________

Na organização deste número, por colaboração dos autores

que nos enviaram seus artigos e pelo trabalho de nossos consultores,

conseguimos conjugar reflexões teóricas e metodológicas sobre as

questões da homossexualidade, travestilidade e gênero nas suas

diversas interfaces com outras questões sociais. Reunindo na mesma

edição textos clássicos e textos que tratam de questões da atualidade

brasileira e mundial, oferecemos às leitoras e aos leitores reflexões

críticas sobre temas que constituem o foco da revista.

Menção especial cabe fazer às traduções de Evans-Pritchard e

Paul Goodman: a primeira, realizada por Felipe Bruno Martins

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Fernandes e Dennis Wayne Werner, oferece a leitura em português de

texto do antropólogo britânico que está entre os principais expoentes

da fundação e desenvolvimento da antropologia; seu texto sobre a

homossexualidade entre os Azande, como esclarecem os tradutores,

“é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido

com os estudos de sociedades não homofóbicas”. A tradução

publicada nesta edição tem a permissão da American Anthropological

Association. O segundo, a tradução de Paul Goodman, é colaboração

entusiasmada do tradutor Chico Guedes, que fez chegar a Bagoas texto

do escritor estadunidense, um ensaio de 1969, pioneiro no uso

político do termo queer antes que se convertesse, em resposta à

homofobia, numa categoria acadêmica e do ativismo.

A partir desta edição, a Bagoas estará disponível também no

Portal de Periódicos da UFRN http://www.periodicos.ufrn.br/ojs, em

continuidade ao princípio de ampliação do acesso ao conhecimento

produzido nas universidades. Continuamos com o site

http://www.cchla.ufrn.br/bagoas e com a versão impressa da revista,

disponível à venda em livrarias e pelo nosso site.

Que nossa alegria com a edição de mais um número da

Bagoas seja também a alegria de nossas leitoras e leitores!

Alípio de Sousa Filho

Editor

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Artigos

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2E. E. Evans-PritchardAntropólogo, Universidade de Oxford

Tradução: Felipe Bruno Martins FernandesBolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior e do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária e Científica com o Brasil (CAPES/COFECUB)

EHESS/Toulouse)[email protected]

Revisão: Dennis Wayne WernerProfessor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Doutor em Antropologia pela City University de Nova York (CUNY)[email protected]

École des Hautes Études en Sciences Sociales (

1Inversão sexual entre os Azande

Sexual inversion among the Azande

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Resumo

A relação homossexual masculina e feminina parece ter sido comum entre os Azande em

tempos passados. Entre homens, essa relação era aprovada nas companhias militares

de homens solteiros. Entre mulheres, a relação era descrita como frequente nas práticas

em casas poligâmicas, apesar de altamente desaprovada.

Palavras-chave: Sudão – região sul. Azande. Inversão sexual.

Abstract

Male and female homosexual relationship seems to have been common among the

Azande in past times. Between males it was approved of in the bachelor military

companies. Between females it is said to have been a frequent, though highly

disapproved of, practice in polygamous homes.

Keywords: Sudan – southern. Azande. Sexual inversion.

1 Publicação original: EVANS-PRITCHARD, E. E. Sexual Inversion among the Azande. American Anthropologist, New Series, v. 72, n. 6, p. 1428-1434, dec. 1970. Texto reproduzido com a permissão da American Anthropological Association (AAA).2 Sir Edward Evan (E. E.) Evans-Pritchard nasceu na cidade de Crowborough/Inglaterra, em 21 de setembro de 1902, e morreu no mesmo país em 11 de setembro de 1973, na cidade de Oxford, poucos anos após ter recebido a honraria de cavaleiro, em 1971 (para conhecer este ritual britânico, veja LEACH, Edmund. Once a knight is quite enouch: como nasce um cavaleiro britânico. Mana, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, apr. 2000). Foi professor de Antropologia Social na Universidade de Oxford. Dessa geração de antropólogos, foi um dos primeiros a dar centralidade ao papel da experiência do pesquisador na pesquisa de campo antropológica, sendo reconhecido até os dias de hoje pelo racionalismo com o qual analisava sua entrada em campo. Um dos principais representantes da escola antropológica estrutural-funcionalista britânica, esse autor começou seu trabalho de campo dentre o povo Zande em 1926, defendendo sua tese de doutorado em 1927. Esse trabalho resultou no clássico Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (publicado em 1937). O texto que se segue é uma nota do autor sobre o trabalho com esse povo africano. Entretanto, essa nota foi publicada quase quarenta anos após sua escrita (1970) e em outro país, os Estados Unidos, no ano da primeira marcha gay em Nova York (celebrando a Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969), e quando o tema das homossexualidades tinha finalmente sido liberado nas discussões acadêmicas naquele país. A tradução desse artigo surge da análise realizada por Walter L. Williams no verbete “Antropologia”, do Dictionnaire de l'Homophobie (TIN, Louis George. Presses Universitaires de France, 2003). No referido verbete, Evans-Pritchard é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido com os estudos de sociedades não homofóbicas. O texto que se segue é visto por Walter L. Williams como uma grande contribuição para esse empreendimento. Evans-Pritchard é também autor de inúmeras outras obras, dentre elas a clássica monografia intitulada “The Nuer: A Description of the Modes of Livelihood and Political Institutions of a Nilotic People”, publicada originalmente pela Clarendon Press/Oxford em 1940 e traduzida para o português.

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É inquestionável que a homossexualidade masculina, ou melhor, a

relação sexual entre jovens guerreiros e rapazes, era comum em tempos pré-

europeus entre os Azande e, como assinalou Czekanowski (1924, p. 56),

citando Junker (1892, p. 3-4), não há quaisquer razões para supor que a 3homossexualidade foi introduzida pelos Árabes , como alguns já pensaram.

Todos os Azande que conheci bem o bastante para discutir esses assuntos

afirmaram que a homossexualidade feminina (lesbianismo) também era

praticada em casas poligâmicas em tempos passados e ainda o é no presente

(1930). Este ensaio reúne informações sobre ambas as práticas e apresenta

traduções de alguns textos sobre o assunto, coletados entre os Azande do 4Sudão há quarenta anos .

Antes da imposição da regra do governo europeu, havia muitas

disputas entre os diferentes reinos (EVANS-PRITCHARD, 1957b, 1957c).

Parte da população masculina adulta de cada reino era organizada em

companhias militares de abakumba, “homens casados”, e aparanga, “homens

solteiros”. Essas mesmas companhias, para além das funções militares,

serviam na corte de várias formas, inclusive os homens das companhias eram

chamados para trabalhar nas lavouras dos reis e dos príncipes (EVANS-

PRITCHARD, 1957a). No presente relato, não nos referiremos outra vez às

companhias de homens casados. Fazia parte do costume das companhias de

homens solteiros, alguns dos quais viviam em tempo integral nas cabanas do

reino, tomarem rapazes-esposas. Isso era, sem dúvida, produzido pela

escassez de mulheres disponíveis para o casamento nos tempos em que os

mais ricos mantinham grandes haréns, o que só era possível para eles porque

eram necessários muitos recursos para se obter uma esposa e esses homens

tinham mais facilidade do que homens pobres para consegui-los. A maioria dos

homens jovens, consequentemente, casava-se tarde, quando tinha em torno de

trinta anos – e isso se devia ao fato de as meninas ficarem noivas (em um

sentido legal, já casadas) bastante novas, muitas vezes, desde o nascimento.

Dessa forma, a única maneira pela qual os jovens podiam obter satisfação com

uma mulher era por meio do adultério. Entretanto, o adultério era uma solução

muito perigosa para resolver o problema do jovem, em função da multa muito

17E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

3 N.T.: Evans-Pritchard refere-se às problemáticas dadas pelo nascente movimento homossexual na Europa, particularmente no final do século XIX e início do século XX, em um sentido muito semelhante àquele proposto por Borrillo (2010) com relação às ideias difundidas por inúmeras ideologias (nazismo, comunismo etc.), sempre se referindo à homossexualidade como uma prática do “outro”, remetendo assim a uma possível causa externa dessas práticas. Fonte: BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.4 N.T.: Levando-se em conta que a publicação original desse texto aconteceu no ano de 1970.

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alta que seu pai teria que pagar caso fosse descoberto – vinte lanças e uma

mulher, o que significava, concretamente, o pagamento de duas mulheres ao

marido. Algumas vezes, o marido ficava tão enfurecido que recusava a

compensação e escolhia, em vez desta, a mutilação do ofensor, cortando suas

orelhas, lábio superior, genitália e mãos. Assim, com o risco sendo tão alto, era

comum aos solteiros cautelosos das companhias militares que viviam na corte,

caso não se satisfizessem com a masturbação – prática que não era

considerada vergonhosa, embora nenhum jovem a fizesse em público –,

casarem-se com rapazes para, dessa forma, “satisfazerem” com eles suas

necessidades sexuais. Um jovem de boa posição em sua companhia talvez

pudesse ter mais de um rapaz (kumba gude). Para esses rapazes, seus

companheiros guerreiros eram badiya ngbanga, “amantes da corte”.

Acredito que o desaparecimento total dessa instituição em tempos

pós-europeus mostra que o reconhecimento dessa união temporária entre um

jovem e um rapaz era decorrente das dificuldades no passado de estes se

satisfazerem com relações heterossexuais. É verdade que as companhias

militares também desapareceram, mas os Azande atribuem (corretamente, ao

que acredito) o abandono do costume ao fato de o casamento para jovens ter se

tornado mais acessível e ao desarranjo geral da moral, incluindo a supressão

das punições habituais nos casos de adultério e fornicação. O casamento entre

rapazes era devido, como dizem os Azande, à zanga ade, “carência de

mulheres”. Como pontuou um homem: “qual homem preferiria um rapaz ao

invés de uma mulher? Ele seria um tolo. O amor por rapazes surgiu pela

carência de mulheres”. Dessa forma, os Azande falavam do casamento entre

rapazes como um kuru pai, “costume antigo”, ainda que eu não tenha escutado

nenhum homem falar sobre dormir com um rapaz com desagrado – na pior das

hipóteses, consideravam o costume como algo engraçado. Mesmo na minha

época, os Azande falavam de um homem que antes foi o rapaz-esposa de

algum guerreiro da mesma forma como nós, na Inglaterra, falamos de alguém 5que tinha sido o fag de alguma celebridade. Também é necessário esclarecer

que, como na Grécia antiga, até onde podemos julgar, quando os rapazes-

esposas cresciam e quando eles e seus maridos posteriormente se casavam

com mulheres, passavam a ter uma vida normal de casados, como qualquer 6outro casal. Não havia os urnings que existem no sentido europeu moderno.

18

5 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado para referenciar uma espécie de “escravo” de um colega mais velho nas escolas particulares inglesas.6 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado por Kraft-Ebing para homossexuais passivos convictos.

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O costume do casamento entre rapazes desapareceu antes de minha

primeira visita ao território Zande, o que impossibilitou a observação direta.

Dependo, dessa forma, apenas dos relatos sobre o passado, os quais eram

unânimes entre os homens mais velhos. Tenho usado propositadamente os

termos “esposa”, “marido” e “casamento” porque, como os textos a seguir

deixarão claro, se tratavam de uniões legais nos modelos de um casamento

normal (pelo menos enquanto durassem). O guerreiro pagava o preço da noiva

(por volta de cinco lanças ou mais) para os pais do rapaz e realizava serviços

para eles da mesma forma que faria se tivesse casado com uma das suas filhas.

Caso ele provasse que era um bom marido, os pais então substituiriam o filho

por uma filha. Também, se outro homem tivesse relações com o rapaz, ele

poderia, como me contaram, processá-lo no tribunal por adultério.

Os rapazes eram “mulheres”: “Ade nga ami”, eles diriam, “nós somos

mulheres”. Um rapaz era chamado por seu amante como diare, “minha

esposa”, e o rapaz o chamaria de kumbami, “meu marido”. O rapaz comeria

fora da vista dos guerreiros da mesma forma que as mulheres não comem na

presença de seus maridos. Os rapazes realizavam muitos dos serviços menores

que uma mulher cumpria diariamente para seu marido, tais como a coleta de

folhas para sua limpeza sanitária, a coleta de folhas para sua cama, a coleta de

água, o corte de lenha, a ajuda no roçado das lavouras do pai de seu esposo e o

fornecimento de mensagens e mantimentos cozidos de sua casa para a corte

para complementar aqueles dados pelo príncipe, mas não cozinharia mingau

para ele. No que diz respeito a esses serviços, o que devemos manter em mente

é que um rapaz na corte não tinha a mãe ou as irmãs para cuidarem dele.

Também o rapaz-esposa carregaria o escudo de seu marido quando a

companhia estivesse em viagem. Deve ser entendido que ele realizava esses

serviços a fim de que a relação não fosse pensada como inteiramente de

natureza sexual, uma vez que deveria ser entendida como tendo um lado

educacional. No que diz respeito ao lado sexual, à noite, o rapaz dormiria com

seu amante, que manteria com ele, por entre as coxas, relações sexuais (os

Azande demonstravam aversão à possibilidade de penetração anal). Os

rapazes conseguiam o máximo de prazer que podiam ao friccionar seus órgãos

na barriga ou na virilha do marido. De qualquer maneira, embora existisse esse

lado da relação, era claro nos relatos dos Zande que também havia o conforto

em compartilhar uma noite na cama em companhia.

A palavra “rapaz” (kumba gude) aparentemente deve ser traduzida

livremente, pois, a partir do que escutei, os mancebos deveriam ter entre doze e

vinte anos. Quando deixassem de ser rapazes, eles adeririam às companhias de

19E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

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guerreiros de seus ex maridos e tomariam por sua vez rapazes como esposas;

dessa forma, o período de casamento era também um período de aprendizado.

Não posso apresentar números de casamentos com rapazes, entretanto, posso

afirmar que a prática era aceita e comum. Obtive listas com séries de tais

casamentos de vários homens mais velhos, mas seria de pouco proveito tentar

documentar tais séries com nomes, uma vez que já se passou muito tempo (65

anos após a morte do rei Gbudwe).

Antes de apresentar os textos, há que se declarar ainda que alguns

membros da nobreza reinante se envolviam em relações sexuais homossexuais.

Normalmente, eram os filhos jovens de príncipes que permaneciam na corte

até seus pais entenderem que era a hora de dar-lhes uma esposa e distritos para

sua administração. Eles se mantinham distantes do harém de seus pais e

tomavam rapazes plebeus como serviçais e para seu prazer sexual. Parece que

o príncipe, por maior número de esposas que pudesse ter, também dormia

eventualmente com um rapaz, em vez de ficar sozinho na noite anterior de uma

consulta ao oráculo, uma vez que a relação sexual com uma mulher era um 7tabu nessas ocasiões . Era dito que “kumba gude na gberesa nga benge te”:

“um rapaz não arruína o oráculo de veneno”. Fora isso, soube apenas de um

príncipe sênior – deposto pela administração – que, apesar de ter muitas

esposas, ainda dormia habitualmente com rapazes. Por essa e outras razões,

ele era considerado pelos Azande como levemente louco. Ninguém deve tirar

conclusões precipitadas, como Czekanowski fez sobre os registros de Junker a

propósito dos rapazes que acompanhavam o príncipe Zande onde quer que ele

fosse, pois todos os reis e príncipes são acompanhados por pajens, que eram

tratados por seus mestres com notável indulgência, em contraste com o

distanciamento severo com o qual seus superiores eram usualmente tratados.

Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963a, p. 277-

280), um homem muito conhecedor da vida da corte nos tempos passados,

que foi um rapaz-esposa e, como chefe de uma companhia de guerreiros na

corte de Príncipe Gangura, muitas vezes foi marido de rapazes:

Antigamente os homens costumavam ter relações sexuais

com rapazes da mesma forma que eles tinham com

esposas. Um homem pagaria uma multa para outro caso

20

7 N.T.: Em sua monografia clássica sobre o povo Zande, Evans-Pritchard (1978) se refere a algumas interdições rituais para a consulta do oráculo de veneno, entre elas, a impossibilidade de o homem adentrar a consulta após ter mantido relações sexuais com mulheres (p. 179), porém, não faz referência à existência de práticas sexuais entre homens. Já no que tange às relações sexuais entre mulheres, o autor realiza algumas discussões e salienta que essas práticas são comuns nos haréns dos príncipes. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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ele tivesse tido relação sexual com seu rapaz. As pessoas

pediam a mão de um rapaz com uma lança, da mesma 8forma que pediam a mão de uma menina a seus pais .

Todos os jovens guerreiros que estavam na corte, todos

tinham seus rapazes. As cabanas dos homens jovens que

ficavam ao redor da corte, todos os rapazes-amantes

ficavam nestas cabanas. Eles construíam suas cabanas

grandes e compridas e havia vários jovens em cada cabana,

cada um em seu próprio lugar, juntamente com seu capitão.

Seus rapazes-amantes também dormiam nas cabanas.

Quando chegava a noite, eles acendiam o fogo em frente à

cama dos maridos, cada um acendia um fogo em frente à

cama do seu amante. Quando os jovens guerreiros

começavam a ficar com muita fome na corte eles

mandavam seus rapazes-amantes para a casa de seus pais

[do rapaz] para buscar comida para eles. Os rapazes-

amantes iriam à casa dos pais e retornariam com

montantes agradáveis de mingau e galinha cozida, além de

cerveja. Os parentes do rapaz o escoltariam [quando ele era

casado] da mesma forma que eles escoltavam uma noiva

[no seu casamento] para seu marido com muita comida

boa. Entretanto, os rapazes não cozinhavam eles mesmos o

mingau para seus maridos, eles cozinhavam mandioca e

batata-doce para seus amantes. Eram as mães [dos

rapazes] que cozinhavam mingau em suas casas, e ótimas

carnes. Alguns cozinhavam galinhas. Eles juntavam toda

essa quantidade de comida e levavam para onde estavam

seus maridos. Todos esses jovens e seus amantes; não

havia esquecimento dos rapazes de sua tarefa de prover

comida para seus maridos. Mas o mingau que eles serviam

a eles, eles escondiam parte da carne no meio do mingau

para dar aos seus maridos, porque eles eram como 9esposas . Seus amantes não aprovavam que eles rissem

alto como homens, eles desejavam que eles falassem

suavemente, como falavam as mulheres.

Quando todos os jovens guerreiros iam roçar as lavouras do

príncipe cada um levava seu amor. Quando chegassem ao

cultivo, eles construiriam uma grande cabana para seu

8 Um homem daria uma lança no momento de pedir a mão da menina em casamento como a primeira prestação do dote. No caso dos rapazes, a admissão da lança igualmente constituía um casamento legal.9 No preparo de uma refeição para convidados, uma esposa Zande frequentemente guardava parte nos fundos para que seu marido pudesse, secretamente, ter uma segunda refeição quando os convidados fossem embora.

21E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

Page 22: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

capitão e colocariam uma cerca ao redor. Nesse campo,

cheio de rapazes, sendo de outra maneira o capitão ficaria

sozinho. Então os jovens começariam a construir pequenos

abrigos adjacentes à cabana do capitão, o acampamento ia

longe, atravessando riachos. Mas todos os rapazes ficavam

no cercamento que eles haviam erguido para o capitão.

Quando anoitecia, os rapazes se dispersavam, cada um

para a cabana do seu amante e acendiam ali um fogo para

ele. Cada um ia acender o fogo na cabana de seu amante.

Na manhã seguinte eles se encontrariam no cercamento do

capitão. Nenhum jovem poderia entrar ali sem permissão.

O capitão dava a eles a refeição atrás do cercamento.

Apenas se o capitão estivesse bem disposto acerca de

algum jovem guerreiro que ele o convidaria para entrar no

cercamento e compartilhar a refeição com ele. Todos os

outros nunca entrariam no cercamento; eles veriam seus

amores à noite. Os jovens roçariam a lavoura até o

anoitecer e então eles retornariam para o local de dormir.

Os amores já teriam preparado a cama dos maridos e

acendido o fogo para eles na cabana.

Texto coletado com Ganga (EVANS-PRITCHARD, 1962, p. 16-17),

um dos capitães das companhias de guerreiros do rei Gbudwe:

Isso é sobre como homens se casavam com rapazes

quando o rei Gbudwe era senhor de seus domínios.

Naqueles dias, se um homem tivesse relações com a

esposa de outro homem, o marido mataria ele ou cortaria

suas mãos e genitais. Então por essa razão um homem

costumava casar com um rapaz para ter orgasmo entre

suas coxas, o que acalmaria seu desejo por mulheres. Se

um rapaz era uma boa esposa para seu marido, cinco

lanças seriam pagas por ele, e por outro, até dez lanças.

Um marido que fosse generoso com seus sogros, eles lhe

dariam depois uma mulher; dizendo que se ele era bom

para um rapaz, seria melhor ainda para uma mulher. Se ele

se casasse com uma mulher seus sogros se beneficiariam

muito. Este seu menino, ele não toleraria ver outro homem

perto; eles brigariam, e se levassem o caso diante do [rei]

Gbudwe, Gbudwe disse ao homem que foi atrás do rapaz

do outro que ele deveria pagar ao homem lanças [em

compensação], uma vez que ele tinha ido atrás do rapaz do

outro. Também existiam homens que, apesar de terem

[mulheres] esposas, ainda assim se casavam com rapazes.

22

Page 23: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Quando a guerra eclodiu, eles levaram seus rapazes com 10eles , mas eles não levavam seus rapazes para o lugar da

batalha; os rapazes ficavam atrás no campo, porque eles

eram mulheres; e eles coletavam lenha para o marido e

depenavam as folhas nzawa [para limpeza sanitária] e

cozinhavam as refeições para quando seus maridos

retornavam da batalha. Eles faziam para os maridos tudo o

que uma esposa faz para seu marido. Eles buscavam água

e a apresentavam para o marido de joelhos e eles pegavam

a comida e levavam para eles, e o marido então lavaria as

mãos e comeria a refeição e contaria para seu rapaz-esposa

o que acontecera no campo de batalha.

Até agora alguma coisa já foi dita sobre a homossexualidade masculina.

E sobre o lesbianismo? Este também deve ser considerado como um produto,

assim como a homossexualidade masculina, da poligamia em larga escala. Se a

poligamia em larga escala excluía jovens homens do sexo normal, aquela

condição de casas poligâmicas também impedia que as esposas, ou algumas

delas, recebessem a quantidade de atenção sexual que elas desejavam de seu

marido comum, que poderia muito bem ser um homem velho sem o vigor sexual

da sua juventude. Apesar de os homens terem hábitos ligeiramente diferentes,

pode-se dizer comumente que uma mulher que é uma de três esposas não

dormiria com seu marido mais do que dez noites por mês, uma de seis esposas

não dormiria com seu marido mais do que cinco noites por mês e assim por

diante. Uma de muitas esposas de um príncipe ou de um plebeu importante no

passado talvez não compartilhe a cama do marido com ele há mais de um mês

ou dois. No caso de uma das dúzias, às vezes centenas, de esposas de um rei,

ela poderia ficar totalmente privada de uma vida sexual normal para uma mulher

de um lar comum. Relações sexuais adúlteras eram muito difíceis para as

esposas de tais famílias poligâmicas tão extensas, pois estas eram mantidas em

reclusão e cuidadosamente vigiadas; a morte na descoberta, ou até mesmo na

suspeita, seria a pena para ambos, a esposa e seu amante.

Era nessas famílias poligâmicas, como dizem os Azande, que o

lesbianismo era praticado. Obviamente, não tive a possibilidade de saber disso

através da observação, dessa forma somente posso dizer o que me foi contado

(exclusivamente por homens, embora as mulheres admitissem que algumas

praticavam o lesbianismo). As esposas esculpiriam uma batata-doce ou raiz de

mandioca no formato de um órgão masculino, ou usariam uma banana para o

10 Relações sexuais com mulheres eram um tabu para os guerreiros em momentos de batalha.

23E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

Page 24: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

propósito. Duas delas iriam então se trancar em uma cabana e uma delas se

deitaria na cama e assumiria o papel feminino, ao mesmo tempo em que a

outra, com o órgão artificial amarrado ao redor de sua abdômen, assumiria o

papel masculino; então, elas inverteriam os papéis.

As mulheres eram certamente desprivilegiadas na antiga sociedade

Zande e uma indicação adicional da dominação masculina é que o que era

encorajado aos homens era condenado entre as mulheres. Homens Zande,

especialmente os príncipes, têm horror ao lesbianismo e o considera como

altamente perigoso, sendo mais ou menos equivalente ao adandara, um tipo de 11parto em que as mulheres dão à luz gatos , como se acredita (EVANS-

PRITCHARD, 1937, p. 51-56). Seria fatal se um homem visse uma dessas

mulheres amamentando seus gatos. Escutei falar que alguns dos mais notáveis

reis do passado – Bazingbi, Gbduwe, Wando e outros – morreram por causa das

práticas lésbicas entre suas esposas. É inclusive alegado que na casa de

Gbduwe uma de suas esposas mais antigas, Nanduru, uma velha senhora

grisalha nos meus dias, executou muitas de suas coesposas devido a essa

ofensa. Alguns Azande me disseram que o lesbianismo era muito praticado

pelas filhas e irmãs da nobreza reinante, em cujas casas elas viviam relações

incestuosas. O nobre reinante pode dar uma menina escrava a uma de suas

filhas, que a ungiria e pintaria para que a escrava se tornasse atrativa e então se

deitaria com ela. Além disso, os Azande falam que uma vez uma mulher

comece a ter relações sexuais homossexuais ela provavelmente continua a

mantê-las, porque ela então passa a ser senhora de si e pode buscar

gratificação quando quer, e não apenas quando um homem resolve lhe

gratificar, podendo a gratificação durar o tempo que ela desejar.

Pareceria, se as afirmações Zande estão corretas, que a relação lésbica

é produzida em primeira instância por um ritual simples. Quando duas

mulheres são muito amigas, elas podem solicitar a formalização da amizade

24

11 N.T.: No apêndice III, intitulado “Outros agentes nefastos associados à bruxaria” (p. 293-298), Evans-Pritchard (1978) descreve outros agentes que podem ser considerados bruxos ou detentores das ações de bruxaria, entre eles alguns animais. Andandara, uma espécie de gato selvagem, é a mais temível das criaturas malignas classificadas como bruxas. Até mesmo sua possível aparição é temida pelos Azande, já que apenas olhar para esse gato pode causar a morte. Dessa forma, o gato macho tem relações sexuais com humanas que, a partir disso, ficam grávidas de outros gatos. Após a relação sexual com o gato, a mulher mantém relações com seu marido e fica grávida de crianças e gatos. No dia anterior ao parto, ela vai ao mato, com uma especialista, dá à luz o gato (que fica guardado em sua casa) e, no dia seguinte, a criança, sendo que ninguém fica sabendo do primeiro parto. Os Azande, segundo o autor, se referem ao lesbianismo como andandara, pois ambas são ações femininas que podem causar a morte de qualquer homem que testemunhe. Assim, o lesbianismo é considerado agourento pelo povo Zande e suas consequências são nefastas, não o ato. Evans-Prithcard (1978) relaciona esse mal provocado por andandara (lesbianismo e gato) com os malefícios das funções sexuais femininas. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Page 25: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

através de uma cerimônia intitulada bagbaru, tendo conseguido a permissão de

seus maridos para fazê-la. Um marido sente dificuldade de negar o

consentimento, uma vez que essa formalização, normalmente, não significa o

envolvimento de um elemento sexual. Uma das mulheres faz um pequeno

presente para a outra, a outra então faz um presente de retorno. Elas então

dividem um sabugo de milho e cada uma planta as sementes da sua parte do 12sabugo em seu jardim . Algum tempo depois, as mulheres executam várias

tarefas mútuas e vão, de tempos em tempos, trocar alguns presentes.

Entretanto, mesmo que um esposo consinta com a amizade, ele o faz

geralmente com relutância, porque os homens Zande pensam que essa ligação

de amizade entre mulheres pode claramente se configurar como um disfarce

para intimidades homossexuais.

Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963b, p. 13-14):

Entre os Azande muitas mulheres fazem o mesmo que

homens. Muitas delas têm relações sexuais entre elas da

mesma forma que um esposo faria. O lesbianismo começou

com um milho cujo nome é kaima, um milho cuja espiga é

vermelha como o sangue. Elas pegam essa espiga e

proferem um feitiço sobre ela, da mesma forma que os

homens proferem um feitiço sobre o sangue ao fazerem a 13irmandade de sangue , e quando isso é feito uma delas

[dentre as duas mulheres] tem que segurar no topo da

espiga e a outra segura na base da espiga que é sua parte e

elas então quebram a espiga entre elas. Depois disso, elas

não devem chamar uma a outra pelo seus nomes próprios,

mas sim chamar uma a outra de bagburu. Aquela que é a

esposa deve cozinhar o mingau e um frango e levá-los para

aquela que é o esposo. Elas fazem isso entre elas várias

vezes. Elas têm relações sexuais entre elas com batatas-

doces esculpidas no formato de um pênis circuncidado e

também o fazem com mandiocas esculpidas e também

com bananas. No topo é como se fosse um órgão

masculino. O esposo não gosta que sua mulher fique de

conversa com outras mulheres. Ela bate em sua esposa da

mesma forma que um esposo bate em uma esposa no caso

12 O ritual corresponde à troca de sangue entre homens. Sugiro que o ritual feminino é uma cópia do uso do sabugo de milho vermelho-sangue (EVANS-PRITCHARD, 1933).13 N.T.: Segundo Evans-Pritchard (1978), irmãos de sangue são indivíduos não aparentados que estabelecem uma aliança especial por um pacto em que o sangue é o símbolo. Opõe-se em inúmeros aspectos à relação entre irmãos consanguíneos. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

25E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

Page 26: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

de mau comportamento, como no caso de sair com um

homem. Entretanto, quando Gdbuwe era vivo, ele era

muito contrário a qualquer coisa que tivesse a ver com

lesbianismo.

Texto coletado com Kisanga (EVANS-PRITCHARD), um homem com

amplo conhecimento dos costumes Zande:

As mulheres se encontram e uma diz para a outra, “Oh,

minha amiga, você, por que não gosta de mim, amor!”. A

outra responde, “Oh, Senhora, minha amante, por que eu

deveria te querer mal?”. A primeira fala, “Senhora, venha

depois de amanhã que eu tenho uma pequena coisa pra lhe

dizer”. Ela replica, “oh, Senhora, o que é isto que você não

me fala agora? A menos que você me diga agora não

poderei sobreviver a noite esperando para saber!”. Então

uma fala para a outra, “Senhora, estou profundamente

apaixonada por você. Oh senhora, como deveremos

gerenciar esse horrível esposo?”

“Hm! Oh, Senhora, será que eles mantêm essa guarda toda

sobre uma mulher!”.

“Ahe, Senhora, vamos bolar uma artimanha. Você vem

depois do meu esposo e nós faremos um pacto de amizade

amorosa (bagburu) entre nós e ele pensará que é só uma

amizade entre mulheres, e assim Senhora você poderá me

dar prazer”. Ela acrescenta, “Amanhã cedo você venha com

um pequeno presente para ele”.

Na manhã, bem cedinho, ela pega um presente, como uma

lança, e vem visitar o esposo em sua casa. Ela fala para o

esposo:

“Então, você escutará com atenção o que eu venho lhe

dizer?”.

“Senhora, diga o que a Senhora veio fazer em minha casa”.

“Eh, Senhor, é sobre minha amiga, mestre. Eu disse a mim

mesma, Senhor, que eu viria perguntar ao príncipe sobre

ela. Eu não sou um homem que poderia lhe enganar com

uma mulher”.

Ele então diz, “Eh, Senhora, pode ser que eu consinta”.

“Oh, Senhor, por sua cabeça! Oh, Senhor, por sua cabeça!

Permita que eu tenha a mulher, Senhor. Eu vou moer

farinha para ela, e se ela estiver doente eu vou apanhar

lenha para ela”.

26

Page 27: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

14“Primeiro eu preciso consultar os oráculos, Senhora .

Penso que devo primeiro consultar os oráculos”.

“Eh, Senhor, está recusando a sua mulher? Será que ela é

um homem?”.

“Tudo bem, Senhora, você deixa a lança e vai para sua casa

que eu pensarei no assunto”.

Ela esfrega o solo diante dele [agradece a ele] dizendo, “Oh,

meu mestre, eu vou sozinha entre as pessoas, Senhor!”.

Então ela vai para casa. Ela dorme duas noites e então ela

mói farinha e ela retorna com farinha e mingau. Quando ela

aparece no caminho sua amante corre ao seu encontro:

“Oh, meu amor, Oh, minha amiga, Oh, Senhora você não

veio hoje?”. Ela coloca a farinha e o mingau ao lado no

terreiro. Ela pega um banquinho e coloca para ela se sentar.

O esposo fala amuado:

“Você veio, minha amiga?”.

“Sim, Senhor”.

“Senhora, me deixe em paz estou sentindo frio hoje”.

Elas pegam a comida dele e a trazem. Ele está embaraçado.

“Menina, derrame água sobre minhas mãos”. Sua esposa

pega água e derrama sobre suas mãos. Ele diz, “Senhora,

isso é bom, senhora, isso é bom”. Ele tira um monte de

mingau. Ele se emburra e continua emburrado, dizendo

para suas filhas, “agora então peguem e levem para as

crianças”.

“Ahe, Senhor! Uma pessoa traz sua comida e um homem

não está bem – essa comida não deve ser dada para

outrem, não deveria esta comida ser guardada para que ele

a coma em outro momento?”.

“Hm! Eh, mulher, como uma pessoa pode argumentar com

um pai dessa maneira!”. Elas o enganam. “Oh não, Senhor,

eu não estou discordando nada, Senhor”.

14 N.T.: Evans-Pritchard (1978) argumenta que a explicação dos infortúnios entre os Azande se dá em torno da noção de bruxaria, que se transforma em uma causa indireta para relatar determinadas dificuldades cotidianas. Dessa forma, a consulta a oráculos é uma ação rotineira na cultura Azande, sendo o oráculo de veneno um dos principais e mais certeiros, responsável pelas acusações de bruxaria. São os oráculos que fornecem elementos para a interpretação dos indivíduos quanto aos possíveis malfeitores (bruxos) de seus infortúnios. Evans-Pritchard (1978) coloca ainda que os oráculos são meios para impor comportamentos (p. 76), bem como que a função de bruxaria envolve juízos morais (p. 88). Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

27E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

Page 28: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

28

“Senhora, eu não estou me sentindo bem hoje, hoje não é

um bom dia para mim. Devo retirar-me”.

“Ele! Espia só, que esposo desagradável esse meu,

Senhora, que personagem antipático!”.

A esposa coloca água diante de sua amante da mesma

forma que ela faria se fosse seu [homem] marido. Ela tem

seu pênis em sua bolsa – ela leva o pênis com ela onde quer

que ela vá. Elas esculpem uma batata-doce na forma de um

pênis circuncidado. A mulher-esposo faz um furo ao longo

da batata-doce e então amarra a batata-doce com corda em

seu lombo para que ela fique como um homem. Ela se lava

com água e unge a si mesma com óleo.

Enquanto isso o esposo está comendo sua refeição na

cabana de sua esposa mais velha. Ele diz a ela, “Oh,

Senhora, como você já está comigo há tanto tempo e você

nunca me fez sofrer. Minha esposa, isto que eu estou

vendo, você vê também?”.

“Não, Senhor, mas tenho uma ideia sobre isso. Não estou

certa das coisas, Senhor! Eh, Senhor, como você é um

homem, em um caso como este, porque você não escuta o

que ela tem a dizer para satisfazer a sua mente?”.

Ele tosse: “tudo bem, essa minha morte de que elas estão

falando, vou até o fim”.

As duas mulheres se levantam para se deitarem no chão,

porque na cama seus movimentos fazem muito barulho. A

esposa do homem diz: “Aquele meu esposo desagradável, é

capaz de ele tentar armar uma cilada para pegar as pessoas

na cabana!”.

“Se ele o fizer ele vai morrer se ele vir isso. Madame, não se

fatigue pensando sobre assuntos de mulher, você verá o

que acontece”.

“Deixe-nos fazer o que estamos prestes a fazer. Somente

pare de falar do meu esposo”. Ela faz com que ela fique

quieta ao apertar sua cabeça sobre ela enquanto ela obtém

o prazer de seu amor. O esposo chega e se inclina sobre o

alpendre e ele escuta os sons delas dentro da cabana, ele

escuta o movimento dentro da cabana, como dizem “Oh,

meu irmão, Oh, minha querida, Oh, meu esposo, Oh,

Senhora”. Ele entra na cabana e quando elas o veem elas se

levantam do chão. Ele agarra sua esposa e fala (para a

outra mulher):

Page 29: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

“Oh, minha amiga, você me matou. Pensei que você tivesse

vindo em minha casa com boas intenções, mas pelo que

vejo é minha morte que você traz”.

Então ele chama sua esposa mais velha:

“Amante, venha ver o mal que me atingiu – esta mulher, eu

a peguei junto com sua companheira...”.

“Heyo! Meu esposo! Você me chama para ver uma relação

de mulheres – suas esposas podem ser muito maliciosas,

Senhor”.

“Eh, mulher, nós dividimos uma casa com você em

conversa-dupla (sanza). Então vocês estão todas

mobilizadas pelo desejo de minha morte!”.

“Opa! Sai fora e não fale comigo – é a minha culpa que você

tenha caminhado e entrado na cabana?”.

Talvez deva incluir na conclusão desta nota que não estou sugerindo de

forma alguma que a pederastia e o tribadismo são explicados pelas condições

sociais, como essas obtidas com os Azande. Evidentemente, não o são. O que é

certamente explicado, dada a plasticidade libidinosa, são as formas

institucionais prevalentes na sociedade Zande e as atitudes (masculinas)

direcionadas a elas.

29E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30

Page 30: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

30

Referências

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Autêntica, 2010.

CZEKANOWSKI, Jan. Forschungen im Nil-Kongo Zwischengebiet. Leipzig: Klinkhardt &

Biermann, 1924. v. 2.

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______. Witchcraft, oracles and magic among the Azande. Oxford: Clarendon Press,

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JUNKER, Wilhelm. Travels in Africa. London: Chapman and Hall, 1892.

Page 31: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

2

1Ser queer

Being queer

Paul Goodman2 Sociólogo, poeta e escritor estadunidense

Tradução: Chico Moreira GuedesBacharel em Letras pela UFRJ, professor de inglês,

estudioso de idiomas e [email protected]

Page 32: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

32

Resumo

Paul Goodman faz um balanço de como a homossexualidade afetou a sua vida pessoal e

profissional e as suas relações com o mundo acadêmico, intelectual e literário da sua

época. Reflete também sobre as implicações políticas, sociais e afetivas de uma

atividade homossexual intensa e promíscua, ou da sua repressão, nos Estados Unidos

da metade do século XX.

Palavras-chave: Queer. Nigger. Homossexualidade. Liberdade. Preconceito. Repressão.

Universidade. Literature. Pacifismo.

Abstract

Paul Goodman gives an account of how homosexuality affected his personal and

professional life and his relationship with the academic, intellectual and literary world of

his time. He also reflects on the political, social and emotional implications of an thintensive and promiscuous homosexual life in mid-20 Century USA.

Key-words: Queer. Nigger. Homosexuality. Freedom. Prejudice. Repression. University.

Literature. Pacifism.

1 Escrito e publicado pela primeira vez em 1969, três anos antes da morte do autor, por encomenda da revista WIN, órgão de imprensa da organização pacifista War Resisters League, para uma edição dedicada ao tema da homossexualidade. A tradução aqui publicada foi fruto de uma solicitação feita a Chico Guedes por Jonathan Lee, produtor e diretor do documentário Paul Goodman Changed My Life, lançado nos EUA em outubro de 2011.2 Paul Goodman nasceu na Cidade de Nova York em 09 de setembro de 1911 e morreu em 02 de agosto de 1972 em uma propriedade rural no estado de New Hampshire. Sociólogo, poeta, escritor, crítico literário, e intelectual militante, Goodman é principalmente lembrado como o autor de Growing Up Absurd, best-seller sobre educação e delinquência juvenil, publicado em 1960, e como ativista pacifista, líder da nova esquerda norte-americana na década de 1960. Inspirador do movimento de jovens contra a Guerra do Vietnã, Goodman escreveu também sobre planejamento urbano e modelos para vida em comunidade, além de ter sido cofundador da Terapia Gestalt nas décadas de 1940 e 1950. A liberdade e naturalidade com que Goodman, que era casado e pai de três filhos, tratava publicamente – em escritos e nas suas falas públicas – da sua vida homossexual intensa tornou-se um dos mais importantes pontos de partida para a emergência do movimento de liberação gay nos anos 1970.

Page 33: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Em maneiras essenciais, minhas necessidades homossexuais me 3tornaram um nigger . No sentido mais óbvio, tenho sido submetido, é claro, à

brutalidade arbitrária de cidadãos e da polícia; mas, fora ter sido derrubado

uma vez ou outra, me livrei sem grandes problemas nesses casos. Tenho um

bom faro para confusão incipiente e costumava ter pés ligeiros. O que me torna

um nigger é que não se pressupõe que meu impulso para abordar alguém seja

um direito meu. Então fico com a sensação de que essa não é minha rua.

Não reclamo de minhas cantadas não serem aceitas; ninguém pode

reivindicar ser amado (exceto crianças pequenas). Contudo, eu sou

menosprezado pelo fato em si de dar cantadas, por ser eu mesmo. Ninguém

gosta de ser rejeitado, mas há uma maneira de rejeitar uma pessoa que lhe

concede o direito de existir, que só fica abaixo de sermos aceitos. Eu raramente

desfrutei desse tratamento.

Allen Ginsberg e eu uma vez chamamos a atenção de Stokely

Charmichael para o fato de sermos niggers, mas ele nos desconsiderou sem

pestanejar, dizendo que nós poderíamos sempre esconder nossa disposição e

passar despercebidos. Ou seja, ele nos concedeu a mesma falta de imaginação

que normalmente se concede aos negros; para ele, nós não existíamos

verdadeiramente. É interessante que esse diálogo tenha se passado na TV

nacional britânica, esse bastião do sigilo. Mais recentemente, desde a

formação do Gay Liberation Front, Huey Newton, dos Black Panthers, deu

boas-vindas aos homossexuais à revolução, por serem igualmente oprimidos.

4Em geral, na América, ser um nigger queer não é econômica e

profissionalmente uma desvantagem tão grande quanto ser um nigger negro, a

não ser em algumas áreas como o serviço público, em que há medo e

dissimulação consideráveis (em regimes mais puritanos, como a Cuba de hoje,

ser queer é um mau negócio profissional e civilmente. Regimes totalitários,

sejam comunistas, sejam fascistas, parecem ser intrinsecamente puritanos).

Porém, minha experiência pessoal tem sido bem mista. Já fui despedido três

vezes por causa do meu comportamento queer ou por reivindicar meu direito a

33Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41

3 N.T.: A decisão de manter nigger do original em inglês decorre da impossibilidade de traduzir fielmente a carga fortemente pejorativa e racista que o termo carrega historicamente na cultura estadunidense. Nego, negão, crioulo ou termos assemelhados, aparentes soluções, não dão conta da força negativa que nigger adquiriu no contexto do racismo nos Estados Unidos. 4 N.T.: A decisão de manter o termo queer reflete a opção que tem sido feita universalmente nos textos dos estudos gays traduzidos em várias línguas nos quais ele aparece no original. O termo queer, tradicionalmente usado com o sentido de estranho, anormal, aquilo ou aquele que não está de acordo com uma presumida normalidade, foi apropriado por vários autores, preocupados com as questões da sexualidade, sobretudo antes de o termo gay se tornar corrente, como foi o caso do autor.

Page 34: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ele, foram as únicas vezes em que fui despedido. Fui mandado embora da

Universidade de Chicago nos primeiros anos de Robert Hutchins; da Escola

Manumit, afiliada ao Brookwood Labor College, de A. J. Muste; e do Black

Mountain College. Essas eram instituições altamente liberais e progressistas e

duas delas se orgulhavam de se considerarem comunidades – francamente,

minha experiência com comunidades radicais é que elas não toleram minha

liberdade. Apesar disso, sou totalmente a favor de comunidade, porque é uma

coisa humana, só que parece que eu estou fadado a ser excluído delas.

Por outro lado, até onde eu sei, meus atos homossexuais e minha

reivindicação explícita a eles nunca criaram desvantagem para mim em

instituições mais caretas. Ensinei em meia dúzia de universidades estaduais.

Sou constantemente convidado, muitas vezes como principal palestrante, para

convenções de superintendentes de escolas secundárias, conselhos de

diretores, conselheiros pedagógicos, forças-tarefa sobre delinquência juvenil e

assim por diante. Falo o que acho que é verdade – com frequência trata-se de

temas sexuais –, dou cantadas, se aparece oportunidade, e continuam a me

convidar. Até transei algumas vezes, o que é mais do que eu posso dizer de

conferências/convenções dos SDS (Students for a Democratic Society) ou da 5Resistência . Talvez as pessoas sejam tão caretas que não acreditam ou se

atrevem a notar o meu comportamento; ou, mais provavelmente, esse pessoal

profissionalmente mais careta é mais vivido (nossa palavra antiquada para

cool) e não dá a mínima para o que você fizer desde que eles não tenham que

encarar pais ansiosos e a imprensa sensacionalista.

Quando a gente vai envelhecendo, os desejos homossexuais nos

deixam mais alertas em relação a adolescentes e jovens, mais do que os

desejos heterossexuais, especialmente porque nossa sociedade desaprova

fortemente os casos entre homens mais velhos e meninas e mulheres mais

velhas e meninos. De qualquer forma, no homem, a parte homossexual da

personalidade é uma sobrevivência da adolescência. Porém, nem é preciso

dizer que há um limite para essa ponte sobre o abismo entre gerações.

Inexoravelmente, eu, como outros homens que frequentam campi

universitários, nos damos conta de que as sucessivas levas de calouros

parecem cada vez mais imaturas e incomunicáveis, e acabamos parando de

tentar assaltar o berçário. A música deles não me anima. Depois de um tempo,

meu melhor contato com os jovens passou a ser com os amigos dos meus

filhos, como conselheiro na sua política, e não por desejos sexuais meus (a

morte do meu filho me afastou totalmente do mundo jovem).

34

5 N.T.: ao alistamento obrigatório.

Page 35: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Embora eu tenha sido extremamente pobre até doze anos atrás – criei

minha família com a renda igual à de um meeiro –, no geral eu não atribuo isso

ao fato de ser queer, mas à minha total inaptidão, truculência e má sorte. Em

1945, até o exército me rejeitou como “Material Não Militar” (eles tinham esse

carimbo), não porque eu fosse queer, mas porque durante o exame enchi o

saco de todos com meu ativismo pacifista e também porque eu tinha a vista

ruim e hemorroidas.

Curiosamente, no entanto, escutei de Harold Rosenberg e do finado

Willie Poster que meu comportamento sexual me causava danos precisamente

no universo literário de Nova York. Por causa dele, eu deixava de ser convidado

para festas vantajosas nas quais poderia fazer contatos e conseguir publicação.

Só posso acreditar em Harold e Willlie porque eles eram observadores sem

preconceitos. O que eu próprio notei é que eu era excluído dos lucrativos

círculos literários dominados por marxistas nos anos trinta e por ex-marxistas

nos anos quarenta, porque eu era anarquista. Por exemplo, eu nunca era

convidado pelo PEN Club ou pelo Committee for Cultural Freedom. Quando o

CCF finalmente me procurou no final dos anos cinquenta, eu tive de recusar o

convite porque eles já eram patentemente uma ferramenta da C.I.A. (escrevi

isso em 1961, mas eles se safaram com mentiras).

Para continuar moralmente vivo, um nigger usa vários tipos de malícia,

que é a vitalidade dos sem-poder. Ele pode ser aleatoriamente destrutivo, já que

sente que não tem nenhum mundo a perder, e talvez consiga impedir os outros

de desfrutar o mundo deles, ou ele pode se tornar um grupista fanático,

achando que só os seus pares são autênticos e têm alma. Há queers e negros

pertencentes a ambas categorias. Queers são “artísticos”, negros têm “alma”

(esse é o tipo da teoria, sinto dizer, que se nega a si própria; quanto mais você

acredita nela, mais estúpido se torna; é como tentar provar que você tem senso

de humor).

No meu caso particular, entretanto, ser um nigger parece me inspirar a

querer uma humanidade mais elementar, mais selvagem, menos estruturada,

mais variegada e em que as pessoas prestem atenção umas às outras. Ou seja,

minhas dificuldades deram energia ao meu anarquismo, utopianismo e

gandhismo. Há negros nesse grupo também.

A minha posição política real é fruto de uma reação consciente ao fato

de ser um nigger. Eu ajo baseado em que “a sociedade na qual eu vivo é minha”,

esse é o título de um dos meus livros. Considero o Presidente como meu servidor

público, a quem eu pago, e o repreendo como um péssimo empregado. Sou mais

constitucional do que a Corte Suprema. Diante da grosseira ilegitimidade do

35Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41

Page 36: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Governo – com sua guerra do Vietnam, sua facção industrial-militar e a C.I.A. –,

eu me apresento como um patriota antiquado, nem tão submisso nem mais

revolucionário do que o necessário para os meus modestos objetivos. Isso é uma

posição quixotesca. Às vezes eu me pareço com Cícero.

Quando estão no grupismo Gay Society, os homossexuais podem se

tornar fantasticamente esnobes e apolíticos ou reacionários. Essa é uma ego-defesa

compreensível: “Você precisa ser melhor do que alguém”, mas seu benefício é

muito limitado. Quando eu faço palestras na Mattachine Society, meu sermão

invariável é que eles devem se alinhar com todos os outros grupos libertários e

movimentos de libertação, já que a liberdade é indivisível. O que precisamos não é

de orgulho desafiador e autoconsciência, mas de espaço social para viver e respirar.

O pessoal do Gay Liberation finalmente entendeu a mensagem da liberdade

indivisível, mas eles têm o fanatismo usual do movimento.

No entanto, há um lado positivo. Pela minha observação e experiência,

a vida queer tem notáveis valores políticos. Pode ser profundamente

democratizante, juntando todas as classes e grupos, mais do que a

heterossexualidade consegue. Sua promiscuidade pode ser uma coisa linda

(mas que seja prudente em relação a doenças venéreas).

Eu já cacei ricos, pobres, classe média e pequenos burgueses; pretos,

brancos, amarelos e marrons; acadêmicos, esportistas amadores,

universitários medíocres filhos-de-papai e vagabundos; homens do campo,

pescadores, ferroviários, trabalhadores das indústrias pesada e leve, das

comunicações, dos negócios e das finanças; civis, soldados e marinheiros e,

uma ou duas vezes, policiais (mas provavelmente por motivos edipianos tenho

a tendência a ser sexualmente antissemita, o que é um saco). Há algum tipo de

significado político, creio, no fato de existirem tantos seres humanos atraentes;

mas o que é mais significativo é que as muitas funções que eu exerço

profissional e economicamente não estão exatamente definidas, retêm certa

animação e sensualidade. O HEW, em Washington, e a Escola 201, no Harlem,

não são uma perda de tempo total, embora eu fale para as paredes em ambos

os lugares. Tenho com que me ocupar nos trens, ônibus e durante as esperas

cada vez mais longas nos aeroportos. Em resorts de férias, onde as pessoas

ficam idiotas porque estão de férias, tenho um motivo para frequentar garçons e

camareiros, que estão trabalhando para ganhar a vida. Tenho alguma coisa

para fazer em protestos pela paz – música de guitarra não me anima –, embora,

sem dúvida, os arquivos da TV e o FBI tenham fotos de mim passando a mão

em alguém.

36

Page 37: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

As características humanas que afinal têm importância para mim e

podem ganhar minha amizade duradoura são bem simples: saúde,

honestidade, não ser cruel ou ressentido, disponibilidade e doçura de

personalidade ou de feições. Refletindo sobre isso agora, só a estupidez óbvia, a

limpeza obsessiva, o preconceito racial, a insanidade e a bebedeira ou o uso

habitual de drogas realmente me causam rejeição.

Na maioria das sociedades humanas, é claro que a sexualidade

sempre foi uma área a mais na qual as pessoas podem ser injustas, ricos

comprando pobres, machos abusando das fêmeas, sahibs usando os niggers,

adultos explorando os jovens, mas acho que isso é neurótico e não traz a maior

satisfação. São Tomás, que foi um grande filósofo moral, embora ruim na

metafísica, diz que a principal utilidade do sexo – tomado separadamente da lei

natural da procriação – é permitir conhecer outras pessoas intimamente. Essa

tem sido minha experiência.

Uma crítica comum da promiscuidade sexual tem sido, é claro, a de

que em vez de democracia ela envolve uma superficialidade terrível da conduta

humana, sendo um arquétipo da idiotice da vida urbana massificada. Tenho

minhas dúvidas de que esse seja realmente o caso, embora eu não saiba; como

no caso do pessoal que frequenta galerias de arte, não sei a quem a arte diz

alguma coisa e quem fica ainda mais confuso – mas ao menos alguns estão

procurando alguma coisa. Um homem ou mulher jovem fica se preocupando:

“Ele está realmente interessado em mim, ou só no meu corpo? Se eu fizer sexo

com ele, ele vai me considerar como um nada”. Eu considero essa distinção

sem sentido e desastrosa; na verdade eu sempre me comportei de maneira

exatamente oposta e muitas das minhas lealdades pessoais de vida inteira

tiveram início com sexo. Porém, isso é a regra ou a exceção? Considerando a

frieza e fragmentação usual da vida comunitária atual, meu palpite é de que a

promiscuidade sexual enriquece mais vidas do que as torna insensíveis. Não é

preciso dizer que se tivéssemos melhor comunidade, teríamos também uma

vida sexual melhor.

Não posso dizer que minha própria promiscuidade (ou tentativas de)

tenha evitado que eu ficasse possessivamente enciumado de alguns dos meus

amantes – mais de mulheres do que de homens, mas de ambos. Minha

experiência não tem demonstrado o que Freud e Ferenczi parecem prometer:

que a homossexualidade diminui essa paixão voraz, cujas causas eu não

compreendo. Contudo, o ridículo da inconsistência e da injustiça da minha

atitude tem me ajudado a rir de mim mesmo e me impedido de exagerar.

37Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41

Page 38: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Às vezes é a caçada sexual que me leva a um lugar onde conheço

alguém – por exemplo, eu costumava rondar bares perto do cais –, às vezes

estou em um lugar por outro motivo e caço por acaso – por exemplo, vou para o

estúdio de TV e dou uma cantada no câmera –, às vezes as duas coisas vêm

juntas – por exemplo, gosto de jogar handebol e tenho interesse sexual em

parceiros de handebol. Mas no final é tudo a mesma coisa, porque em todas as

situações eu costumo pensar, falar e agir da mesma forma. Fora ajustes

corteses comuns de vocabulário – mas não de sintaxe, que altera o caráter –, eu

falo das mesmas coisas e não uso máscaras diferentes, ou me vejo de repente

com uma personalidade diferente. Talvez haja duas razões opostas pelas quais

eu consigo manter minha integridade: por um lado, tenho um intelecto forte o

suficiente para perceber como as pessoas são de verdade neste nosso único

mundo e para conseguir fazer contato com elas independentemente de

diferenças de formação; por outro lado, é provável que eu esteja tão fechado

nas minhas pressuposições que nem noto obstáculos óbvios impedindo a

comunicação.

O jeito como eu realmente abordo não tem feito grande sucesso. Como

eu não uso meus dons para manipular a situação, eu raramente consigo o que

quero dela. Como não traio meus próprios valores, não me insinuo para

agradar. Meu igualitarismo aristocrático afasta as pessoas, a não ser que elas

sejam seguras de si mesmas o suficiente para também serem

aristocraticamente igualitárias. Ainda assim, o fato de eu não ser falso ou

manipulador também tem impedido pessoas de desgostarem ou se ressentirem

de mim e normalmente eu tenho a consciência limpa, não há muita mentira ou

papo-furado para varrer fora.

Ter-me tornado uma celebridade nesses últimos anos, no entanto, me

prejudicou sexualmente mais do que ajudou. Por exemplo, universitários jovens

e íntegros que poderiam gostar de mim e que costumavam me procurar agora

mantêm uma distância respeitosa do homem ilustre. Talvez achem agora que

eu só posso estar interessado no corpo deles, e não neles mesmos. Outros, que

me procuram somente porque eu sou muito conhecido, parecem entrar em

pânico quando fica claro que eu não dou a mínima para isso e me porto como eu

mesmo. Claro que uma explicação mais simples para a piora da minha sorte é

que eu estou mais velho a cada dia, provavelmente mais feio, e certamente

cansado demais para tentar com afinco.

Como regra, eu não acredito em pobreza e sofrimento como uma

maneira de aprender nada, mas, no meu caso, as dificuldades e a carência da

minha inepta vida queer tiveram a utilidade de simplificar minhas noções do

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Page 39: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

que é uma boa sociedade. Como no caso de qualquer viciado que não consegue

sua dose facilmente, essas coisas têm me mantido em contato direto com a

fome material. Assim, eu não consigo levar o Produto Interno Bruto muito a

sério, nem status, nem credenciais, nem soluções tecnológicas grandiosas,

nem política ideológica, incluindo movimentos de libertação ideológicos. Para

uma pessoa esfomeada, o mundo tem que se apresentar na forma de gêneros

alimentícios. Mas não é o que acontece. Eu aprendi a ser modesto nas minhas

metas para a sociedade e para mim mesmo: coisas como ar limpo, grama

verde, crianças com brilho nos olhos, não ser empurrado pra lá e pra cá,

trabalho útil que se adapta às nossas habilidades, comida simples e gostosa e

uma fugidinha ocasional satisfatória.

Uma feliz propriedade dos atos sexuais e talvez, especialmente, de

atos homossexuais é que eles são sujos, como a vida: como Agostinho disse,

Inter urinas e feces nascimur, nascemos no meio de mijo e merda. Numa

sociedade tão classe-média, ordeira e tecnológica como a nossa, é bom romper

o enojamento, que é um fator importante no que é chamado racismo, bem

como na crueldade com crianças e no isolamento de doentes e moribundos. A

natureza ilegal e o pegue-o-que-der-pra-pegar de grande parte da vida

homossexual atual rompe outras atitudes convencionais. Embora eu desejasse

ter feito minhas festas com menos apreensão e menos pressa, foi uma

vantagem aprender que fins de cais, traseiras de caminhões, becos dos fundos,

atrás das escadarias, cabines de praias abandonadas e banheiros de trens são

amostras adequadas de todo espaço que há. Para bem e para mal, a vida

homossexual retém algo do alarme e excitação da sexualidade infantil.

É danoso para as sociedades reprimir qualquer vitalidade espontânea.

Às vezes, é necessário, mas só raramente; e certamente não no caso dos atos

homossexuais, que, até onde eu ouvi falar, nunca fizeram mal a ninguém. Parte

da hostilidade, paranoia e competitividade automática da nossa sociedade

resulta da inibição de contato físico. Contudo, de uma maneira muito

específica, a proibição da homossexualidade causa dano e despersonaliza o

sistema educacional. A relação professor-aluno é quase sempre erótica. As

únicas outras motivações psicológicas saudáveis são a mãe-protetora,

relevante no caso de crianças pequenas, e o profissional que precisa de

aprendizes, relevante para as escolas de graduação. Se houver medo e

preocupação de que os sentimentos eróticos podem se converter em sexo,

abertamente, a relação professor-aluno falha, ou pior, torna-se fria e cruel.

Nossa cultura se ressente enormemente da falta de amizades pedagógicas

sexuais, homossexuais, heterossexuais e lésbicas, que foram proeminentes em

outras culturas. Sem dúvida, uma sexualidade funcional é provavelmente

39Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41

Page 40: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

incompatível com nosso sistema educacional massificado. Essa é uma entre

muitas razões por que ele deveria ser desmantelado.

Lembro-me que quando Growing Up Absurd tinha recebido várias

críticas fulgurantes, finalmente um crítico irritado, Alfred Kazin, sugeriu

sombriamente que eu havia escrito sobre meus delinquentes porto-riquenhos

(e chamei-os de “mancebos”) porque eu tinha atração sexual por eles. Que

novidade. Como eu poderia escrever um livro perceptivo se eu não prestasse

atenção? E por que eu iria prestar atenção em alguma coisa a não ser que por

algum motivo ela me interessasse? A motivação da maior parte da sociologia,

seja ela qual for, tende a produzir livros piores. Duvido que alguém diga que

minha observação de adolescentes delinquentes ou dos universitários do

movimento estudantil foi prejudicada pelas minhas paixões. Mas quero bem a

eles, sim – claro, eles poderiam até dizer: “com um amigo desses, quem precisa

de inimigos?”

Porém, é verdade que um lado ruim das dificuldades e perigos da vida

queer na nossa sociedade, como em qualquer situação de escassez e fome, é

que nos tornamos obsessivos e fixados em relação a ela. Eu certamente gastei

um número excessivo de horas ansiosas da minha vida caçando, que poderia

ter gasto passeando com outros propósitos ou com nenhum, cultivando meu

espírito. Contudo, acredito que tive a energia, ou a teimosia, de não deixar

minha obsessão turvar minha honestidade. Até onde sei, nunca elogiei um mau

poema de um rapaz por ele ser atraente, mas é claro que fico especialmente

contente se o poema for bom e eu puder dizer isso. Melhor ainda, é claro, se ele

for meu amante e me mostrar algo que me deixe orgulhoso e que eu possa

empurrar para um editor. Sim, já que eu comecei essas reflexões com uma nota

amarga, deixe terminá-las com um poema feliz de que eu gosto, do meu livro

Hawkweed.

We have a crazy love affair

It is wanting each other to be happy.

Since nobody else cares for that

we try to see to it ourselves

Since everybody knows that sex

Is part of love, we make love.

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When that's over , we return

to shrewdly plotting the other's advantage.

Today you gazed at me, that spell

is why I choose to live on.

God bless you who remind me simply

of the earth and sky and Adam.

I think of such things more than most

but you remind me simply. Man,

you make me proud to be a workman

6of the Six Days, practical .

Pesando tudo, não sei se minha escolha, ou compulsão, de uma vida

bissexual me tornou especialmente infeliz ou apenas medianamente infeliz. É

óbvio que toda maneira de viver tem seus problemas, ter ou não ter pai, ser

casado ou solteiro, ser fortemente sexuado ou mais assexuado e assim por

diante, mas é difícil julgar a experiência dos outros, fazer uma comparação. Senti

persistentemente que o mundo não foi feito para mim, mas tive bons momentos.

Trabalhei um bocado, criei filhos lindos e cheguei aos 58 anos de idade.

6 Tradução literal: Nós temos um louco caso de amor / e queremos a felicidade um do outro./ Como ninguém mais se importa com isso / nós tentamos resolver isso sozinhos. / Como todos sabem que o sexo / faz parte do amor, fazemos amor./ Quando isso termina, voltamos / a conspirar a vantagem um do outro. / Hoje você ficou me olhando, aquela magia / é o motivo por que escolho continuar vivendo. / Deus bendiga você que me lembra simplesmente / da terra, céu e de Adão. / Eu penso nessas coisas mais do que a maioria / mas você me lembra simplesmente. Homem, / você me faz orgulhoso de ser um trabalhador / dos Seis Dias, prático.

41Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41

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Page 43: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

3

The homosexuality in front of the law in France: from postwar to “Gay Liberation”

Geoffroy Huard de la MarreDoutorando na Universidad de Cádiz/Université de Picardie – Jules Verne

[email protected]

Tradução: Marcos TindoProfessor de Língua Francesa na Fundação de Apoio à Educação e ao

Desenvolvimento Tecnológico do Rio Grande do Norte (FUNCERN)Mestrando em Linguística Aplicada pela

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

A homossexualidade perante a lei na França: 1do pós-guerra à “liberação gay”

Page 44: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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Resumo

Este artigo trata-se do estudo das diferentes leis que foram implementadas desde o pós-guerra até metade dos anos 1970, as quais condenavam as relações homossexuais em público, percebendo quais precauções os homossexuais deveriam tomar para evitarem a condenação. Mostra que é falsa a ideia de que a repressão jurídica da homossexualidade na França aparece de novo com o regime de Pétain e atinge o seu apogeu com a subemenda Mirguet em 1960. Com efeito, se o termo contre-nature (antinatural) reaparece nos textos legais dessa época, o qual já não aparecia desde a Revolução Francesa, os atos homossexuais em público sempre foram punidos por diversas leis que utilizavam outras terminologias.

Palavras-chave: Homossexualidade. França. Lei. Contre-nature. Pudor. Moralidade.

Abstract

I want to study in this article – from the post-war until the mid 1970's – the various laws which condemned the homosexuals's reports in public places, then to see what precautions were taken by homosexuals to avoid conviction. I would like to show that the idea that the legal repression of homosexuality in France appears again with the Petain's regime and culminates in the sub-amendment Mirguet in 1960 is false. Indeed, if the term “against nature” reappears in the legislation at that time when it had no longer appeared since the French Revolution, the public homosexual acts were always punished by several laws that used other terminologies.

Key-words: Homosexuality. France. Law. Against nature. Decency. Morality.

1 Este artigo constitui uma parte das pesquisas da minha tese de doutorado, a qual preparo atualmente, sobre a história da homossexualidade na França e na Espanha (1945-1975), na Université de Picardie – Jules Verne e na Universidad de Cádiz, sob a orientação conjunta dos senhores professores Didier Eribon e Francisco Vázquez García.

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Introdução

A subemenda Mirguet, de 18 de julho de 1960, que classificava a

homossexualidade como “flagelo social”, foi o texto jurídico repressivo mais

discutido na história contemporânea dos homossexuais, desde que foi o alvo

das críticas do Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (Frente

Homossexual de Ação Revolucionária, FHAR, 1971-1974). Não obstante,

quase uma dezena de outras leis repressivas afetou diretamente os

homossexuais no pós-guerra, mesmo que o termo contre-nature (antinatural)

tenha reaparecido explicitamente somente em um texto de lei do regime do

Vichy – já que o crime de sodomia desaparecera desde 1791. Além do mais,

essas leis repressivas foram acompanhadas por medidas produtivas da ordem

sexual dominante: heterossexualidade, casamento de homens com mulheres,

procriação, natalidade, virilidade para os homens, privatização da sexualidade

(a sexualidade é privada, o espaço público é assexual).

O ato antinatural, com um menor, punido com prisão: 1942-1982

“Não há, na França, delito nem crime de homossexualidade. Este não

é punível na França”. Assim começa o dicionário dos Parquets (Ministérios

Públicos) (LE POITEVIN, 1884). Contudo, em 6 de agosto de 1942, uma lei –

utilizando argumentos teológicos – modificou o artigo 344 do código penal para

punir com “prisão de seis meses a três anos e com uma multa de 200 a 60.000

francos” toda pessoa que cometer um ato “indecente ou antinatural com um

menor do seu sexo” (Journal officiel de l'Etat français, 1942, p. 2923),

fixando-se a maioridade sexual, na época, à idade de vinte e um anos para as

relações homossexuais e quinze anos para as relações heterossexuais. O

aumento da natalidade foi um componente fundamental do regime de Pétain

para levar a cabo a “revolução nacional”, por isso o termo “antinatural” é aqui

especificado no sentido da sexualidade não produtora de crianças.

Essa lei do Vichy foi retomada na Liberação pelo governo provisório do

general DeGaulle, no artigo 331 do código penal, pois ela foi “inspirada pela

preocupação em prevenir a corrução dos menores” (Journal officiel de la

République française, 1945, p. 630). Com efeito, a preocupação dos

partidários da ordem moral consistia em “expiar as culpas que tinham trazido a

fúria divina sobre o país, designar categorias da população responsáveis pela

derrota” (DANET, 1977, p. 80).

Encontra-se, a propósito disso, muito frequentemente, o elo entre a

collaboration (simpatizantes da ocupação nazista) e a homossexualidade. “A

45Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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associação semântica resistência = virilidade é frequentemente acompanhada

pela identificação da homossexualidade à collaboration”, afirma Jackson

(2009, p. 47), pois vários escritores “pederastas” foram igualmente

collaborateurs, como: Marcel Jouhandeau, Robert Brasillach e Henry de

Montherlant. Contudo, esse elo entre homossexualidade e valores negativos é

mais antigo. Ele remonta aos anos trinta, quando certos textos aproximavam

homossexualidade e fascismo, fazendo-se elogio da hipervirilidade masculina

diante da democracia “efeminada”. A derrota de 1940 seria ligada à

feminilização da nação, e é por isso que se deveriam expurgar os inimigos após 2a guerra . As condenações por “afronta pública ao pudor” foram, outrossim,

mais numerosas durante os anos do pós-guerra do que nas décadas seguintes.

Esse elo entre homossexualidade e fascismo ou collaboration não é

feito somente na literatura e na imprensa – para dar somente um exemplo, em

L'enfance d'un chef, de Jean-Paul Sartre: a experiência homossexual de Lucien

leva-o à extrema direita e ao militantismo antissemita –, mas igualmente em

diversos filmes (Roma, città aperta, de Roberto Rossellini, em 1945, Les

maudits, de René Clément, em 1947, Rope, de Alfred Hitchcock, em 1948), o

que deu uma larga difusão a tais ideias.

O cinema não se limitou somente a fazer a ligação entre

homossexualidade e fascismo. Mostrou também quase sempre uma imagem

negativa da homossexualidade, fornecendo, cada vez mais, uma imagem

patológica, perigosa e frequentemente cômica dela: Strangers on a Train, de

Alfred Hitchcock, em 1951; Il conformista, de Bertolucci, em 1969; Der junge

Törless, de Schlöndorff, em 1966; La caduta degli dei, de Visconti, em 1969;

The Boys in the Band, de Friedkin, em 1969.

Foi necessário esperar a eleição de François Mitterrand, em 1981,

para que essa lei fosse ab-rogada, quase quarenta anos após a sua aparição, 3em 4 de agosto de 1982 . Os atos homossexuais com menores – acima dos 15

anos – não são mais condenáveis desde essa data.

Deve-se destacar que não era a homossexualidade, como tal, o que era

condenado, como na Inglaterra, na Alemanha ou na Espanha, mas somente as

relações homossexuais entre maior e menor de idade. Essa condenação

apareceu nas leis do regime do Vichy, mas sempre esteve presente – sob outras

46

2 Nesse ponto, remeto-me às análises de Julian Jackson, Arcadie, 2009, p. 46-49.3 A votação na Assembleia Nacional aconteceu em dezembro de 1981: 327 votos a favor (PC, PS, MRG) e 155 contra (UDF e RPR). Em 4 de agosto de 1982, a segunda alínea do artigo 331 do código penal foi ab-rogada. Journal officiel de la République française, n. 180, 5 ago. 1982.

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4denominações – na lei, desde 1791 . Os “vícios”, os “atos perversos” e outros 5“maus costumes” eram constantemente catalogados e reprimidos . É por isso

que a afirmação de LePoitevin – comumente admitida hoje, desde o movimento

de liberação homossexual – não é exatamente correta.

A proteção da juventude e a exaltação da virilidade foram os elementos

fundadores da ordem moral familiarista, desenvolvida pelo regime de Pétain para

salvar a raça e a nação da derrota devido a uma “república feminilizada” pelos

seus “desviados”, “perversos” e “espécimes tarados da raça” (URVOY, 1942).

Esses homens [...] são uma legião e, contrariamente ao que

se crê, esses costumes não fazem deles uma casta

exclusivamente recrutada nas classes burguesas [...]. Dia a

dia Paris se desviriliza [...]. Eles invadiram tudo: a filosofia,

as artes, a política [...]. O mercado negro tendo acabado,

esses jovens depravados, vítimas dos tempos fáceis da

Liberação, buscavam na prostituição homossexual uma

sequência lógica à longa teoria das astúcias advindas da

guerra (SERVEZ, 1955, p. 8, 24, 26, 109 apud JACKSON,

2009, p. 43).

Foi necessário então reconstruir um estado viril e uma identidade 6masculina forte e guerreira contra essa “degeneração” , simbolizada pelos três

grandes escritores homossexuais: Proust, Gide e Cocteau, os quais valorizavam

a homossexualidade nas suas obras. Essa ideologia foi acompanhada de uma

4 Citemos, a título de exemplo, a condenação em 1903 do poeta Jacques d'Adelsward de Fersen por “excitação habitual de menores à imoralidade”, Le canard sauvage, 1 agosto de 1903, citado por Charles-Louis Philippe, “Messes noires”. In: Le crapouillot, n. 30, agosto de 1955, p. 53.5 Para se ater somente aos anos de antes da guerra, o governo Daladier publicou em 29 de julho de 1939 um decreto-lei sobre a família e a natalidade, no qual se invocava a “agravar a repressão dos vícios” e a “lutar contra os flagelos sociais que constituem tantos perigos para o futuro da raça”. Ademais, o governo de 1939 puniu as publicações pornográficas “que constituem insultos à dignidade familiar”. Citemos igualmente os artigos 119, 120 e 122 do decreto-lei de 29 de julho de 1939, reagrupados sob o título de “proteção da raça”: artigo 119: “Serão punidos com pena de prisão de um mês a dois anos, e multa de 100 a 5.000 francos, a fabricação, a detenção, a importação, a exportação, a transferência, a afixação, a exposição, a projeção, a venda, a oferta, a distribuição, a entrega de quaisquer impressos, escritos, desenhos, cartazes, gravuras, pinturas, fotografias, filmes, emblemas, objetos, imagens [...] contrários aos bons costumes”; artigo 120: “mesmas penas para todos os cantos, gritos ou discursos contrários aos bons costumes, publicação de anúncios ou de correspondências visando a imoralidade”; artigo 122: “essas penas serão dobradas se a vítima for um menor”; decreto-lei de 29 de novembro de 1939 contra as doenças venéreas: contra as doenças vergonhosas, punir-se-á – para além das prostitutas que fizerem captação de clientes – todos os que, “por gestos ou palavras ou por quaisquer outros meios, procedam publicamente ou tentem publicamente proceder à captação de pessoas de um ou do outro sexo com vistas a provocá-los à imoralidade”, Marc Daniel, Histoire de la législation pénale française concernant l'homosexualité. Arcadie, n. 97, p. 10-27, jan. 1962. Ver também Jean Danet. Famille et politique, discours juridique et perversions sexuelles, XIX et XX siècle. Nantes: Faculdade de Direito e de Ciências Políticas, Universidade de Nantes, 1977. v. 6.6 Acerca da história da ideologia virilista do Vichy, remeto a Patrick Buisson, 1940-1945 Années érotiques (BUISSON, 2008)

47Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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onda contrária de pudor a partir de 1946, representada pelo Cartel de Ação

Moral e Social (CAMS). O seu secretário geral, André Mignot, alcunhado “papa

da família francesa”, foi o principal responsável pela intensa propaganda

moralizadora desde a Liberação: fechamento de prostíbulos, proibição de

afixação sobre revistas e publicações libertinas, censura de filmes, medidas de 7proteção da mulher e da criança etc .

Processos jurídicos repressivos e sistemas produtivos da norma sexual

sempre tiveram lugar. Nos anos do pós-guerra, até aproximadamente os anos

1952-1954, a vontade de virilização da nação francesa tangeu

particularmente as relações sexuais entre homens – considerados como

desvirilizantes ou inviris – em locais públicos, porque estas sujeitavam a França 8ao risco dos seus valores morais . Existia todo um sistema de qualificação das

condutas a partir de dois valores opostos: o bem e o mal, o positivo e o negativo,

que servia para hierarquizar as condutas, diferenciá-las (normal-anormal),

para, em seguida, sancioná-las. Esse sistema objetivava reprimir, é claro, mas,

sobretudo, estabelecer diferenças e regras para normalizar, produzindo as

normas sociossexuais numa vontade de dessexualização do espaço público,

isto é, em um movimento de privatização da sexualidade.

Não poderia haver, no espaço público, pederastas, exibicionistas,

vagabundagem de menores, prostituição clandestina etc. A captação, “com

vistas a provocar a imoralidade”, a bigamia, a embriaguez e as atitudes em via

pública que incitassem provocar a imoralidade foram condenadas a fim de

recuperar os valores tradicionais, dentre os quais a família, exaltada pelo

governo do Vichy, era um elemento fundamental. A França quis expurgar-se dos

colaboradores com o inimigo (encontraram-se, nessa época, numerosos delitos

de “indignidade nacional”, por exemplo, por ter pertencido ao partido pró-

alemão NRP ), e entre os seus inimigos, estavam os homossexuais, conforme

mostra o elo frequentemente estabelecido, na altura, entre collaboration e

homossexualidade.

Essa vontade de virilização da nação foi acompanhada no mesmo

momento de uma valorização da família – a qual não podia ser senão

48

7 “Contra a onda de pudor, o French-Cancan encontrou o seu New-Look”, France-Dimanche, n. 92, p. 7, 6 jun. 1948. O CAMS foi fundado no começo do século XX para recuperar a moralidade pública. As suas principais ações consistiram em lutar contra o alcoolismo, a prostituição, o aborto, os espetáculos “nocivos” e outras debilidades da sociedade. Contra essa coalizão, diversos intelectuais fundaram a Academia do Erotismo: “Montherlant apoia (moralmente) a Academia do erotismo”, France-Dimanche, n. 124, p. 3, 16 jan. 1949. Para uma análise mais desenvolvida do CAMS, remeto à minha tese.8 As afrontas públicas ao pudor foram bem mais numerosas do pós-guerra até esse período. As cifras baixaram sensivelmente depois. Acerca de um estudo estatístico, remeto à minha tese.

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heterossexual –, simbolizada pelo casal, o casamento e a procriação. Toda

sexualidade contrária a esse modelo de vida era “contrária aos bons costumes”.

Além das condenações por “afronta pública ao pudor”, as condenações por

prostituição clandestina e aborto ilegal foram também bastante numerosas.

Impregnado por essa ideologia, o almirante Darlan, então ministro da

Marinha, foi à origem do ordenamento de 1942 (SIBALIS, 2002, p. 31-34)

para proteger a moralidade da Marinha de um “importante caso de

homossexualidade no qual se encontr[av]am comprometidos marinheiros e

civis” (SIBALIS, 2002, p. 32; LIFFRAN, 1981, p. 18-19), o que era comum há

várias décadas. Devia-se evitar o contágio da homossexualidade junto à

juventude, protegendo os jovens dessa perversão. A lei do Vichy, retomada na

Liberação, assim como a emenda Mirguet eram apenas a ponta visível do

iceberg sempre citado pelos movimentos de liberação homossexual. Além

dessas, outras leis reprimiram e condicionaram a vida dos homossexuais do

pós-guerra.

Um escritor da revista Arcadie, o magistrado Claude Nérisse, explicou

em vários números quais eram os riscos incorridos pelos “homófilos” – como

então lhes chamava – diante das leis repressivas, não mencionando

explicitamente a homossexualidade (NERISSE, 1954-1955, p. 16-21, 16-19,

29-31, 32-34; GUERIN, 1958, p. 39-45). Ele estabeleceu um catálogo para

todos os tipos de desejos entre pessoas do mesmo sexo, sem nenhum

moralismo. Mesmo que a homossexualidade não seja expressamente nomeada

no código penal, as relações homossexuais são desentranhadas sob três outras 9denominações: afronta pública ao pudor , excitação de menores à imoralidade

e atentados aos costumes ou atos indecentes.

A afronta pública ao pudor e outras leis proibindo a homossexualidade no

espaço público

A afronta pública ao pudor, inscrita no artigo 330 do código penal, não

previa somente reprimir as relações homossexuais, mas igualmente a

licenciosidade nos locais públicos. Podiam enquadrar-se nessa lei uma pessoa

que urinasse em via pública, um casal que mostrasse em público demasiada

ternura nos gestos bem como os homens que se acariciassem nos urinóis

públicos (ou nas vespasiennes [cabines de banheiro de calçada]), nos parques

9 Código penal, livro III, título 2, seção 4, atentados aos costumes: artigo 330, lei de 13 de maio de 1863: “Toda pessoa que cometer uma afronta pública ao pudor será punida com prisão de três meses a dois anos, e com uma multa de 2.000 francos a 20.000 francos”.

49Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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10ou em outro local público. Os exemplos são numerosos . Para que o atentado

público fosse manifesto, devia reunir dois elementos: cometer ato indecente,

num local público, e ter a intenção culpada do delinquente reconhecida como

um acinte à decência (com um elemento de publicidade, isto é, expor-se para

ser visto). A lei não previa de diferença entre ato indecente heterossexual e

homossexual, mas havia nos fatos uma distinção de tratamento quanto à

apreciação do impudor do ato. Quando se tratava de atitudes homossexuais, a

lei era somente a primeira etapa dos vexames, contando com policiais à

partida, jurídicos na sequência e depois sociais, já que a prossecução popular

rejeitava esse tipo de comportamento “associal” ou “antinatural”.

Numerosos casos mostravam igualmente que foram condenados por

essa lei homossexuais que, pela sua atitude, suas palavras ou seus gestos 11obscenos, procuravam abordar outros em via pública . Ademais, o elemento

de publicidade podia ser interpretado de várias formas e impôs, portanto, aos

homossexuais múltiplas estratégias para levar a cabo os seus desejos. Com

efeito, era necessário evitar expor-se às vistas em local público, mas também

em local privado, onde os olhares exteriores podiam penetrar a autenticidade 12dos atos e atitudes ali cometidos por falta de precauções suficientes (as praias

nudistas notavelmente). Alguém podia também prestar queixa para denunciar

o que tinha visto, mesmo que houvesse consentimento entre as pessoas

envolvidas, sendo as diligências encaminhadas. A espionagem ou a delação

eram duas das técnicas comuns para fazer respeitar a ordem moral e os

homossexuais deviam adotar estratégias para burlar o poder desta última.

Ter relações sexuais em um carro em via pública enquadrava os

indivíduos em questão sob o artigo 330, já que, mesmo que o carro estivesse 13fechado, os passantes podiam tê-los percebido .

Quando se tratava de menores, estes eram ao mesmo tempo culpados

– o ato era consumado e consentido – e vítimas – por serem menores de idade.

Esses casos assemelhavam-se ao de “golpes e feridas recíprocas”, no qual cada

culpado era a vítima do outro.

Ademais, o despacho de 2 de julho de 1945 elevou para quinze anos a

maioridade sexual. Toda relação entre um adulto e um menor de quinze anos

50

10 Remeto à parte da minha tese dedicada à repressão policial baseada nos arquivos da Polícia de Paris.11 Decisão do tribunal civil de Marselha de 26 de fevereiro de 1908, Dalloz périodique, 1908-5-49, citado por Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 18.12 Boletim criminal, 10 de novembro de 1932, Dalloz périodique, 1933, I, 133 apud Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 20.13 Boletim criminal, 19 de julho de 1935, Dalloz hebdomadaire, 1935, p. 528 apud Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 20.

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era crime aos olhos da lei (essa maioridade era fixada em onze anos, em 1832,

e depois em treze anos, em 1863). Um adulto podia manter relação

heterossexual com uma menor a partir de quinze anos, ao passo que um adulto 14não podia ter relação homossexual com um menor até os 21 anos .

Além disso, em 16 de julho de 1949, uma lei regeu o conteúdo das

publicações destinadas à juventude por medo da delinquência desde a guerra.

Uma comissão de vigilância e de controle foi criada (JACKSON, 2009, p. 51).

No fim de 1948, Jacques Debu-Bridel, conselheiro municipal de Paris,

propôs fecharem-se todas as boates homossexuais da capital. Essa proposta foi

seguida de um despacho prefeitoral, de 1° de fevereiro de 1949, artigo 2º, que

proibiu os homens de dançarem juntos em público em Paris e que foi

estritamente aplicado até ao fim dos anos 1960 (AUDOUARD, 1948, p. 7;

GIRARD, 1981, p. 21).

Contudo, a lei podia ser contornada, notadamente, nos bares. Para dar

somente um exemplo, foi possível que os homens dançassem entre si em La

Chevrière, uma aldeota em Seine-et-Oise. O trem que partia de Saint-Lazare no

domingo à tarde era até mesmo chamado “trem das loucas” (MINELLA;

ANGELOTTI, 1996 apud JACKSON, 2009, p. 56-57). Não foi, porém, o único

lugar em que os homens podiam dançar entre si. Era perfeitamente possível

dançar em todos os bares ou clubes da capital onde a clientela homossexual era

majoritária. Era suficiente estabelecer códigos e ser vigilante no caso de possíveis

verificações policiais. Mesmo se o policial estivesse à paisana, era frequente

descobri-lo muito facilmente e os encarregados tinham então o tempo de parar a

música ou de fazer separarem-se os homens (DELPAL, 1970, p. 102).

Outro despacho de polícia muito mais antigo, datado de 22 de janeiro

de 1907, proibia os travestis de se travestirem em via pública. O artigo 4°

precisava: “Afora no domingo, segunda e terça-feira e da quinta-feira de Meia-

Quaresma, fica proibido de aparecer em via pública fantasiado ou travestido”.

Os travestis que se enquadravam nesse ordenamento deviam pagar uma multa

e mudar de roupas para corresponder ao sexo inscrito no seu documento de

identidade. O artigo 1º estipulava que “as atrações ou espetáculos ditos de

'travesti' que comportarem a vestidura de roupas femininas por parte de

homens são proibidos nos bailes públicos e nos estabelecimentos que vendam

para consumo no local”, o que não impedia os espetáculos de Chez Michou,

Carrousel, Alcazar ou Grande Eugène de acontecer sem problema (DELPAL,

1970, p. 87-88).

14 Sobre esse ponto, ver Janine Mossuz-Lavau. Les lois de l'amour, les politiques de la sexualité en France (1950-1990). Paris : Payot, 1991. p. 238.

51Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

Page 52: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

O atentado ao pudor

O atentado ao pudor, artigo 331 do código penal, era considerado

como uma pena mais grave que a afronta pública ao pudor. Consistia em impor

a um terceiro uma visão ou um ato que pudesse escandalizar o seu pudor. Para

ser condenada, a pessoa devia ter cometido o ato com violência (ou “violência

moral”) ou constrangimento, se o querelante fosse maior de idade, e devia

haver uma “intenção culpada” nos dois casos (quer se tratasse de um maior,

quer de um menor). Porém, o ato devia ser demonstrado por testemunho ou por

confissão do autor presumido das violências. Caso se tratasse de um menor,

tinha uma presunção que contava em seu favor, pois era considerado inocente,

contando igualmente a diferença de idade entre os dois parceiros. Assim, os

policiais tiravam conclusões mais facilmente. Por outro lado, se fossem dois

maiores, era mais difícil provar os fatos, mas a vítima podia fazer chantagem ao

seu algoz para obter dinheiro, alegando, por exemplo, que não prestou queixa

durante as violências que sofreu porque não queria provocar escândalo no

recinto ou alhures, aceitando, obrigado e forçado, os atos que reprovava. Esse

argumento podia intimidar o algoz e obrigá-lo, então, a entrar no jogo da

chantagem, mesmo que ele pudesse não ter cometido nenhum ato. Entretanto,

a repressão jurídica era às vezes demasiado forte para não ceder à chantagem.

Vê-se então que essa lei abria a porta para extorsões em vez de evitá-las.

Outros casos similares condenavam igualmente o querelante. Em

1933, em Dinan, um marinheiro procurou hospedar-se uma noite na casa de

um membro da sua família, mas como este não tinha mais quartos livres,

convidou-o a dormir na mesma cama que um viajante quinquagenário, o qual

teria abusado dele durante a noite. Querendo evitar o escândalo, o marinheiro

não disse nada durante a noite, mas prestou queixa no dia seguinte. Porém, o

tribunal não acreditou em nada disso, posto que o marinheiro tinha 21 anos e

nessa idade ele poderia ter evitado essa violência sem problemas. O réu foi

então liberado. Contudo, as coisas teriam sido diferentes se esse incidente

tivesse acontecido após o despacho de 1945, que elevou a idade da vítima de 1518 a 21 anos. O réu teria sido condenado por causa da idade do marinheiro .

Esse tipo de caso era frequente nessa altura.

Circunstâncias agravantes foram também previstas: se o autor dos

gestos indecentes fosse um ascendente familiar e se o menor tivesse menos de

15 anos, o fato podia ser qualificado de crime e conduzir à reclusão a partir do

52

15 Tribunal correcional, Dinan, 1933 apud Claude Nérisse, Le libertin devant la loi, ce qu'il faut savoir, Arcadie, n. 11, p. 16-21, nov. 1954.

Page 53: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

despacho de 2 de julho de 1945 do artigo 331 do código penal, ou ainda se o

ato fosse cometido por um professor, preceptor ou funcionário que abusasse

das suas funções. Esses últimos podiam ser condenados a trabalhos forçados, 16incluindo a prisão perpétua, depois de passar por um júri .

Em 1946, o artigo 16 do estatuto geral do funcionário indicava que

“ninguém pode ser nomeado para um emprego público se não for de boa

moral”. Por outro lado, um artigo do código trabalhista, de 30 de dezembro de

1910, que permanecia em vigor, afirmava que

o mestre deve se comportar para com o aprendiz como bom

pai de família; vigiar a sua conduta e os seus modos, seja

em casa, seja fora, e avisar os seus pais, ou os

representantes destes, das faltas graves que ele possa

cometer ou das inclinações viciosas que ele possa

manifestar (MOSSUZ-LAVAU, 1991, p. 239).

A legislação que dizia respeito, de perto ou de longe, à

homossexualidade exercia uma função de controle dos costumes na França do

pós-guerra.

A excitação de menores à imoralidade

Outra lei que não mencionava expressamente os homossexuais, mas

os tocava diretamente, tratava-se da excitação de menores à imoralidade,

artigo 334 do código penal, que existia já nas leis de 1810 e 1903. Ela

propunha-se a proteger a pureza dos jovens até a idade de 21 anos, em geral,

tingindo-se de certo moralismo religioso. Com efeito, a maioridade penal 17recuou de 18 a 21 anos, como a maioridade civil, desde a quarta República ,

no que concerne aos atentados aos costumes. No que diz respeito aos delitos de

direito comum (roubo, vagabundagem etc.), a maioridade permaneceu nos 18

anos, o que mostra bem qual foi a moral sexual que governou a redação desse

despacho de 8 de fevereiro de 1945.

A lei contemplava um fato que tendia a favorecer a imoralidade de

outrem: atos obscenos, práticas indecentes etc. em presença de um menor.

Porém, caso se tratasse de um menor consentidor, o adulto não se enquadrava

“em princípio” na lei, segundo o dicionário criminal:

16 Claude Nérisse lembra certos casos similares com “imprudentes vigiando os dormitórios” (Claude Nérisse, Le libertin devant la loi, Arcadie, Op. Cit., p. 20).17 Código Penal, artigo 334 bis, parágrafo 2º apud Claude Nérisse, Les libertins devant la loi, Arcadie, Op. Cit., p. 17.

53Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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Em princípio, aquele que excita um menor à imoralidade

para satisfazer as suas próprias paixões não se enquadra no

artigo 334 do código penal, pelo menos se se trata de uma

sedução direta e pessoal. O delito, pelo contrário, deverá ser

mantido se o acusado fomentava aproximações entre

menores para satisfazer a sua própria luxúria, seria mais 18para o menor um intermediário de corrupção .

Devia-se aí entender “corrupção” como proxenetismo. A finalidade

dessa lei era efetivamente reprimir o proxenetismo, evitando o relacionamento

de clientes eventuais com menores para obter benefícios financeiros ou outros.

Além do mais, para que o delito fosse constituído, dever-se-ia

adicionar dois outros elementos: a idade da vítima e o hábito. Com efeito, se a

vítima fosse menor de 16 anos, o hábito não era levado em conta: um só ato era

suficiente para condenar o adulto. Em contrapartida, se o menor tivesse entre

16 e 21 anos, o hábito era necessário para estabelecer o delito e condenar o

acusado, podendo isso tudo ser acompanhado de circunstâncias agravantes a

partir de 1946, podendo levar cinco anos de prisão e pagar três milhões de

francos de multa.

O deslocamento de menores

O artigo 354 do código penal estipulava que “o caso dos menores de

ambos os sexos raptados ou desviados ou deslocados dos locais onde eles

foram postos pela autoridade ou da direção daqueles aos quais eles estavam

entregues ou confiados sofrerá a pena de reclusão” (NERISSE, 1955, p. 29-

31), sendo necessário haver fraude ou violência da parte do adulto considerado

como autor do rapto. O que era punido não era realmente a relação sexual de

uma noite entre um adulto e um menor, mas a instalação de um menor na casa

de um adulto que não fosse a autoridade parental ou a Assistência pública.

Com efeito, se houvesse queixa, o magistrado podia condenar o “sequestrador”

mesmo que não tivesse “abusado'” do jovem, demonstrando que ele quisera

subtraí-lo à autoridade parental ou aos que dele tinham a guarda. Ademais, a

ideia de “desvio” era compreendida num sentido geográfico e não moral, como

deslocamento (durável) de um lugar a outro. Por fim, os magistrados entendiam

por “fraude” ou “violência” os eventuais subterfúgios orquestrados pelo adulto

para influenciar o consentimento do menor e obter dele os favores (chantagem,

proposta de dinheiro, “bebidas embriagantes” etc.). Sendo assim, o advogado

54

18 Garson, Dictionnaire criminel spécial annoté apud Claude Nérisse, Les libertins devant la loi, ce qu'il faut savoir, Arcadie, n. 12, p. 16-19, dez. 1954.

Page 55: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

podia às vezes obter uma absolvição se a ausência de violência ou de fraude

fosse provada. Porém, se certa atração homossexual fosse demonstrada, o

adulto podia ter sérios aborrecimentos.

O adultério e os homossexuais casados

O homem casado podia encontrar-se numa situação fortemente

problemática em caso de adultério. Nérisse (1955, p. 33-34) tratou de um

problema desse tipo, de um marido traindo com um homem, o qual não

aparecia nos textos de lei, mas que foi definido como uma causa peremptória

de divórcio em 12 de abril de 1949 (não se deve esquecer que, nessa época, os

homossexuais casados com mulheres eram muito numerosos). Com efeito, o

código civil francês não reconhecia as relações homossexuais fora do

casamento como adultério. O mais interessante do artigo é que, sob forma de

carta a uma mulher cujo marido se deitou com um homem e ela desejou

denunciar por adultério, o autor deu preciosos conselhos aos numerosos

homens casados que tinham relações sexuais com homens e que liam a revista

Arcadie. Foi um meio cômodo de mostrar aos seus leitores como eles podiam

continuar a viver a sua vida dupla ou mesmo tripla (a vida profissional, a vida

familiar e a vida homossexual). Ele mostrou de fato a esses homens como eles

podiam evitar o escândalo público, com diferentes argumentos para que as

suas mulheres não arruinassem as suas vidas. Eles deviam fazer chantagem

emocional à sua esposa para que ela retirasse a sua queixa e, assim, os filhos

deles não descobrissem a verdadeira natureza do desejo do seu pai,

argumentando com a vergonha pela qual podia passar uma esposa em caso de

adultério, porque, para provar isso, as leis pediam testemunhos de amigo(a)s,

vizinho(a)s, esses motivos que já conseguiriam, em geral, persuadir a mulher a

não levar o problema a público.

Outras leis regiam ainda a vida das pessoas que se podiam agrupar sob

o nome de homossexuais, mesmo que tenhamos visto que as leis se abriam a

outras categorias: adulto que ama menores, prostituição masculina, homem

casado que se deita com homens etc. Os militares e os marinheiros também

eram contemplados por leis que reprimiam relações sexuais com homens.

Militares e marinheiros diante da lei: premissas do maccarthismo na França?

As infrações de direito comum cometidas pelos militares e marinheiros

fora do recinto portuário ou da caserna eram regidas pelo direito penal e

dependiam dos tribunais correcionais. Concernente aos delitos de afronta aos

55Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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56

costumes, mais precisamente às relações homossexuais com os militares ou

marinheiros, era bem sabido que estes últimos se entregavam à prostituição 19quando das permissões ou quando os marinheiros desciam a terra . Essa

atividade não era sem risco para os clientes – frequentemente casados e pais de

família –: roubo, espancamento e humilhação eram alguns dos exemplos mais

comuns, e eles podiam até mesmo ser condenados por “atentado ao pudor

cometido contra menores”, posto que muitos desses marinheiros ou jovens

militares ainda não tinham atingido vinte anos.

Os tribunais condenavam igualmente os militares e os marinheiros.

Por exemplo, os jovens engajados viam o seu engajamento suspenso segundo

um parágrafo da lei que permitia reter os “distúrbios mentais”, dentre os quais o

“desajuste dos sentidos e das secreções glandulares”. Deve-se, nesse aspecto,

lembrar que uma das causas de reforma ou de isenção do serviço militar era a

atração “não natural” de um homem por outro homem. Jean Genet fez menção

disso no Journal du voleur: “a pederastia teria sido suficiente para eu ser

dispensado [do serviço]” (GENET, 1949, p. 50). Além disso, as decisões de

justiça implicavam toda uma avaliação médica: visitas, retornos, perguntas do

médico-major, novos remédios para reequilibrar as secreções glandulares, tudo

isso acompanhado da vergonha do olhar social (vexações, fofocas). Alguns 20eram levados a chegar ao suicídio .

No exército, os homossexuais sofriam igualmente uma verdadeira caça

às bruxas durante os anos 1950-1960, diretamente inspirada pelo 21maccarthismo, que influenciou as instâncias militares francesas . Com efeito,

o exército francês recebeu instruções precisas da Direção de pessoal militar

dadas pelos Estados Unidos aos seus aliados atlânticos para expurgar dos seus 22serviços “personalidades que têm defeitos particularmente vulneráveis” . Os

homossexuais eram considerados como “espiões”. Eram acossados por

19 Os exemplos de marinheiros ou militares entregando-se à prostituição masculina ou tendo relações sexuais não tarifadas com outros homens nos portos não se limitavam nem à França nem aos anos do pós-guerra. Numerosas são as referências sobre esse assunto na obra de Jean Genet (GENET, Jean. Querelle de Brest. Paris: Gallimard, 1953. p. 32-33). O historiador George Chauncey mostra que as práticas eram muito difundidas em Nova Iorque na primeira metade do século XX, notavelmente nos anos 1920 e 1930, nos quais jornais populares publicavam regularmente caricaturas de gays abordando marinheiros (CHAUNCEY, George. Gay New York. Op. Cit. p. 227).20 Claude Nérisse faz referência a um caso similar numa cidadezinha da costa bretã que fez grande alarido na altura: “Os desertores do caminho das damas”. Um homem, casado e pai de família, suicidou-se após a aparição na impressa de um caso desse gênero. In: “Le libertin devant la loi, infractions de droit commun commises par des militaires ou marins”, Arcadie, n. 17/5, p. 32-34, maio 1955.21 A respeito de uma história da repressão dos homossexuais sob o maccarthismo, ver John D'Emilio, Sexual Politics, Sexual Communities, The Making of a Homosexual Minority in the United States, 1940-1970. Chicago et Londres, University of Chicago Press, 1983.22 Deputado Dronne na Assembleia Nacional, em 3 de dezembro de 1954 apud Daniel Guérin, “La répression de l'homosexualité”, Op. Cit., p. 43.

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delatores. Daniel Guérin citou as declarações de um oficial geral da República

quando pronunciou a exclusão de um militar que tinha tido relações sexuais

com outro homem: “Vejo-me obrigado a puni-lo, pelo respeito ao Deus em que

creio” (GUERIN, 1958, p. 43). A influência do maccarthismo sobre as

autoridades militares francesas forrou-se de uma ideologia moralizadora e

religiosa que estendia o seu poder contra os homossexuais militares e

marinheiros.

Seria igualmente sensato interrogar-se acerca da influência do

maccarthismo não somente no Exército e na Marinha, mas também em toda a

França. A repressão jurídica e policial e depois também a subemenda Mirguet

não são as consequências dessa influência? A ideologia virilista da Liberação

expurgou os inimigos da nação (collaborateurs, homossexuais) como o

maccarthismo nos Estados Unidos fizera com os comunistas e os

homossexuais. Contudo, na França, houve certo controle dos homossexuais,

mas não houve repressão em grande escala.

A subemenda Mirguet: a homossexualidade como “flagelo social”

A subemenda do deputado Paul Mirguet do UNR (1911-2001) 23visando “lutar contra a homossexualidade” foi a nova lei, a partir de 1960,

que reprimiu ainda mais duramente os homossexuais, como lembram quase 24todas as publicações sobre a história da homossexualidade . Todavia, essa

subemenda Mirguet não implicou quase nenhuma consequência direta na

repressão policial e jurídica dos homossexuais. Essa lei não foi senão uma das

leis que condenavam as relações sexuais entre maior e menor de mesmo sexo.

Ficou, todavia, a mais famosa.

Ela nasceu num contexto de luta contra a delinquência juvenil. Em

1959, uma comissão foi encarregada pelo governo da inspeção dos filmes para

controlar o “crescimento da delinquência” e em 1961 novas classificações para

os filmes destinados a proteger os jovens foram criadas. A proteção da

juventude era um tema onipresente nessa altura e a subemenda Mirguet é um

exemplo disso, já que a homossexualidade é frequentemente associada à

delinquência. Em 1958, o diretor da polícia judiciária deu uma conferência

sobre “homossexualidade e as suas consequências na delinquência”

(JACKSON, 2009, p. 117).

23 Assembleia Nacional, constituição de 4 de outubro de 1958, legislatura 1958-1962, tabelas analíticas dos anais, 2ª parte, table nominative, tomo II, letras J a Z, p. 903.24 O exemplo mais flagrante da importância dessa subemenda é talvez o nome de um dos jornais do FHAR, O flagelo social. Sobre a história e o contexto dessa subemenda, remeto ao livro de Julian Jackson, Arcadie, Op. Cit., p. 115-119.

57Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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58

Paul Mirguet, deputado da Mosela de 1958 a 1962 e antigo

conselheiro municipal de Metz (SIBALIS, 2001, p. 285-286), propôs-se a

adicionar em 18 de julho de 1960 uma subemenda à emenda n. 8 de Marcelle

Devaud, a qual tomava medidas para lutar contra certas doenças assim como

contra o alcoolismo e a prostituição. Mirguet esperava acrescer a essa emenda

uma alínea para favorecer “todas as medidas próprias à luta contra a 25homossexualidade” . Os argumentos usados pelo deputado eram os mesmos

que os dos outros discursos que inferiorizavam a homossexualidade. Fazia-se 26necessário “proteger as nossas crianças” . A juventude e a delinquência juvenil

eram temas bem presentes na época em que as crianças do baby-boom se 27tornaram adolescentes .

Mirguet lembrou também que a emenda que visava lutar contra a

prostituição não fazia referência explicitamente à homossexualidade. Ademais,

ele brandia o espectro da “nossa civilização perigosamente minoritária” para

convencer os deputados de que se deveriam combater os valores que não

defendiam a moral dominante, sob o risco de perder o poder ou o “prestígio”

diante das evoluções que a sociedade estava conhecendo (contracepção,

aborto, mas, sobretudo, a independência argelina, que aparecia como

inevitável para DeGaulle). O presidente e a Assembleia riram repetidas vezes,

mas não houve objeção. A subemenda de Mirguet foi finalmente votada, não

condenando a homossexualidade como tal, mas sim as relações homossexuais

entre maior e menor de idade. Além disso, a afronta pública ao pudor era

condenada com uma multa mais importante quando se tratava de relações

sexuais entre homens.

O artigo 2º institui ao artigo 330 do código penal uma pena

agravada para o caso em que a afronta pública ao pudor é

cometida por homossexuais. Essa medida responde à

preocupação manifestada pelo Parlamento, a 4ª da lei

supracitada de 30 de julho de 1960. Com efeito, levando-

se em conta que o conjunto da legislação francesa relativa à

luta contra o proxenetismo e à prostituição se aplica sem

distinção de sexo e indiferentemente em caso de relações

homossexuais ou heterossexuais, pareceu que era

25 Anais da Assembleia nacional, Debates parlementares, legislatura de 1959 a 1960, de 30 de junho a 25 de julho de 1960, p. 1981.26 Anais da Assembleia nacional, Debates parlementares, legislatura de 1959 a 1960, de 30 de junho a 25 de julho de 1960, p. 1981.27 Alguns exemplos: SAUVY, Alfred. La montée des jeunes. Paris : Calmann-Lévy, 1959; Françoise Giroud lançou em 1957 no Express a fórmula “nouvelle vague” para falar da nova geração; FOURNIER, Christiane. Nos enfants sont-ils des monstres? Paris: Fayard, 1958.

Page 59: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

particularmente útil, para responder ao desejo expresso

pelo Parlamento, aumentar as penas previstas quando essa

infração fosse cometida por homossexuais [...].

Art.2. – O artigo 330 do código penal é completado pela

alínea seguinte: ? ? alínea 2? ? Quando a afronta pública ao

pudor consistir em ato antinatural com um indivíduo do

mesmo sexo, a pena será reclusão de seis meses a três anos

e uma multa de 1.000 NF a 15.000 NF (Journal Officiel,

1960, p. 10603).

Contudo, essa subemenda provocou um verdadeiro pânico entre os

homossexuais. Baudry enviou uma carta da parte da Arcadie a Mirguet, em 20

de julho de 1960, na qual sublinhava a grande preocupação em que se

encontravam não somente os arcadianos, mas igualmente os homossexuais

em geral.

Infelizmente, a sua subemenda à futura lei sobre os flagelos

sociais, do fato que visa, de forma global e indiscriminada,

a “homossexualidade”, comporta o mui grave risco de

atingir, bem mais que os prostitutos, os proxenetas e os

corruptores de rapazes, centenas de milhares de

homossexuais honestos e dignos que, de nenhuma forma,

podem ser considerados como um flagelo social. Nós

dizemos mesmo centenas de milhares [...]. Dentre estes,

há colegas seus da Assembleia, senadores, médicos,

engenheiros, camponeses, operários, industriais,

comerciantes. Para todos esses, a sua subemenda abre 28perspectivas de angústia, de terror, de ruína .

Baudry relembrou que não era contra a homossexualidade que se

necessitava lutar, mas contra a prostituição masculina, a imoralidade pública e

pela proteção das crianças – o que previa Mirguet – e Baudry procurou

diferenciar dos “homossexuais ordinários”. Ademais, reforçou que as leis

existentes já concerniam às relações sexuais entre pessoas de mesmo sexo e

que não havia necessidade de mais repressão quanto a esse assunto.

Mirguet respondeu à carta de Baudry e afirmou que a sua subemenda

não pretendia ser um texto repressivo a mais. Ele esperava pedir ao governo 29para “agir com meios humanos e medicinais” . Esse texto permaneceu,

28 Carta enviada pela Arcadie a Mirguet em 20 de julho de 1960, documento datilografado enviado pela Arcadie aos seus assinantes.29 Carta de Paul Mirguet à Arcadie, 30 de julho de 1960, documento datilografado enviado pela Arcadie aos seus assinantes.

59Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

Page 60: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

60

todavia, nas memórias dos homossexuais e marcou igualmente os militantes 30dos anos 1970 .

Conclusão

A reaparição do termo teológico “antinatural” em uma lei do Vichy,

retomada depois na Liberação por DeGaulle, foi somente um dos exemplos de

medidas para revirilizar a nação francesa após a guerra. Porém, esse “ato

antinatural com um menor punido com prisão” não significou a reaparição da

repressão dos homossexuais, como se esta tivesse desaparecido desde a

Revolução Francesa. Numerosas leis já existiam bem antes do regime de Pétain

e eram aplicadas. Todavia, a repressão jurídica da homossexualidade não é

senão um dos pilares da ideologia sexual dominante, que tenta inferiorizar

constantemente as relações entre pessoas do mesmo sexo enquanto valoriza a

heterossexualidade reprodutiva por meio da família e do casamento. A

patologização da homossexualidade pelo discurso médico e a consideração da

homossexualidade como pecado, conforme o faz a hierarquia eclesiástica, são

outros conceitos que configuram a ordem social dominante e, por isso mesmo, 31a vida dos(as) homossexuais . É por isso que nós deveremos nos apegar a

historicizar esses mecanismos de diferenciação entre homossexualidade e

heterossexualidade – percebidos como a-históricos – para lutar contra a

dominação heterossexual e masculina, que somente procura reproduzir a

ordem inigualitária estabelecida.

30 Remeto, acerca desse ponto, à parte da minha tese de doutorado dedicada ao FHAR.31 Remeto à minha tese de doutorado quanto ao estudo desses diferentes conceitos inferiorizantes da homossexualidade.

Page 61: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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61Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62

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Page 63: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

4

Identidades, cuerpos y

educación sexual: una lectura queer

Identities, bodies and sex education:

a queer approach

Germán S. M. TorresUniversidad Nacional de Quilmes

Máster en Investigación Aplicada a la Educación y Licenciado en Educación

Investigador del Departamento de Ciencias Sociales, UNQ, Argentina

[email protected]

Page 64: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

64

Resumen

El artículo aborda el campo de la educación y la sexualidad desde una perspectiva

queer. El objetivo es avanzar en la discusión de una perspectiva pedagógica queer,

tomando a la identidad y al cuerpo como dimensiones de análisis centrales tanto para la

apuesta teórica y política queer así como para la educación sexual. Haciendo foco en el

currículum oficial de la educación sexual de la ciudad de Buenos Aires, se señala el

modo en que son configurados las identidades y los cuerpos. Se da cuenta, por un lado,

de las condiciones de posibilidad que los construyen como dominios de intervención y

normalización y, por el otro, de los aportes de la teoría queer para su comprensión dentro

del campo de la pedagogía y de la educación sexual.

Palabras clave: Identidad. Cuerpo. Educación sexual. Pedagogía. Teoría queer.

Abstract

This paper focus on the field of education and sexuality from a queer approach. The aim

is to go into the discussion of a pedagogical queer perspective, taking identity and body

as main dimensions of analysis both for queer theory and politics as well as for sex

education. Focusing on the official curriculum for sex education of the city of Buenos

Aires, it is analyzed the way identities and bodies are configured. The article accounts,

on the one hand, the conditions of possibility which build them as domains of

intervention and normalization and, on the other hand, the contributions of queer theory

for their understanding and for the pedagogical and sex education field.

Keywords: Identity. Body. Sex education. Pedagogy. Queer theory.

Page 65: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introducción

Este trabajo se propone una lectura crítica de las relaciones entre

educación y sexualidad y, particularmente, de la educación sexual en su versión

oficial. Antes que presentar los resultados conclusivos de una investigación,

este trabajo busca abrir un espacio de discusión acerca de lo que la educación y

la pedagogía hacen con nosotros y de lo que nosotros podemos hacer con ellas.

El foco estará puesto en la primera versión oficial del currículum de la

educación sexual de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, editada a partir de la

sanción en 2006 de la Ley 2110 de Educación Sexual Integral por parte de la

Legislatura porteña y de la Ley 26.150 de creación del Programa Nacional de

Educación Sexual Integral por parte del Congreso de la Nación Argentina. La

mirada crítica sobre la educación no ignora la multiplicidad de contextos,

espacios y prácticas en los que la sexualidad entra en tensión con otras

dimensiones relevantes de la vida de los individuos y los grupos sociales. Esta

mirada sólo pretende poner de relieve algunas de las tensiones constitutivas de

lo educativo, en tanto espacio clave donde se ponen en juego, de manera

explícita, distintos campos de saber, formas de dominación y, de manera

primordial, donde se construyen identidades y corporalidades.

Las coordenadas en las que se ubica la escuela (convertida en

sinónimo de educación a lo largo de los últimos dos siglos) la hacen uno de los

reductos más resistentes de los ideales del Iluminismo y la Modernidad. La

escuela se presenta ante la sociedad como el lugar en el que se encarnan y

afianzan los ideales del progreso, la razón, la libertad y la autonomía. Estos

ideales, que forman parte del “sentido común moderno” (SILVA, 1997, p.

275), perviven en las prácticas, relaciones y discursos que fundan y atraviesan

desde la cotidianidad escolar hasta la formulación de las políticas educativas. Y

uno de los puntos más densos donde esos ideales modernos se tensan es en el

cruce entre la educación y las sexualidades. Distintos trabajos han dado cuenta

de la sexualización de las prácticas educativas – las dinámicas escolares, las

prescripciones curriculares, las representaciones de los agentes educativos

(MORGADE, 2011; MORGADE; ALONSO, 2008). Estos aportes han

subrayado críticamente la presencia –excitada antes que reprimida – de la

sexualidad y de una educación sexual en la escuela: sea a través de

representaciones hegemónicas y heterosexistas que fundan una “educación

sexual” presente en el currículum oculto, cuyo principal sentido es preservar el

orden social de género establecido (MORGADE, 2006, p. 28); o bien como una

pedagogía de la sexualidad presente en el día a día escolar que legitima

determinadas identidades y prácticas sexuales, mientras que relega y margina

otras (LOURO, 2007). En oposición al cliché que ha indicado que en la escuela

65Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 66: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

'de eso no se habla', esta serie de trabajos ha mostrado que ella aparece

configurada, en definitiva, como un ámbito regulado y cargado de

significaciones y poderes que, al decir de Michel Foucault (2003), hablan de y

a la sexualidad. Es en este contexto de proliferación regularizada de significados

que, a partir de la sanción de leyes que ordenan la obligatoriedad de la

educación sexual para el sistema educativo argentino, la sexualización de lo

escolar pasa a solaparse con una prescripción explícita y normatizada de la

cuestión.

Es en este punto donde se presenta la necesidad de una crítica sobre

las condiciones de posibilidad – y, por tanto, sobre las condiciones de

imposibilidad – que rigen la conformación de la educación sexual como un

dominio curricular específico en el que se ponen en juego saberes, identidades

y, en definitiva, relaciones de poder (SILVA, 1999). Dada la proliferación de

mecanismos de poder que invocan 'verdades' para el gobierno de los sujetos, la

crítica aparece como lo que Foucault (1996, p. 110-111) denominó una

“ontología histórica de nosotros mismos” que, apuntando a ese nudo entre

poder, verdad y sujeción, se constituye en una “crítica de lo que somos” pero

también en un “análisis histórico de los límites que se nos plantean y prueba

de su franqueamiento posible”. Llevadas al campo de la educación y la

sexualidad, estas consideraciones implican la puesta en cuestión de dos

dimensiones cruciales: la identidad y el cuerpo. En lo que sigue, este trabajo

abordará ambas cuestiones en sus cruces con el discurso oficial de la educación

sexual, tomando como recurso algunos elementos de la teoría queer.

Asumiendo que la puesta en cuestión tanto de la identidad así como del cuerpo

son dos de los ejes sobre los que se ha articulado esa apuesta teórica y política,

este trabajo se propone avanzar en la discusión y construcción de una

perspectiva pedagógica queer.

Educación sexual e identidad: del sí mismo autónomo a la desujeción

El orden discursivo pedagógico se ha erigido como una instancia de

poder que no sólo produce e instaura saberes 'verdaderos' sino que también, de

manera concomitante, produce formas particulares de subjetividad. En tal

sentido, puede considerarse que el discurso de la educación sexual se ha

configurado en sus lineas principales como una tecnología del yo. Estas

tecnologías constituyen procedimientos “que se proponen o prescriben a los

individuos para fijar su identidad, mantenerla o transformarla en función de

cierto número de fines, y todo ello gracias a las relaciones de dominio de sí

sobre uno mismo o de conocimiento de uno por sí mismo” (FOUCAULT, 1994,

66

Page 67: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

p. 255). A partir de esta misma definición, Jorge Larrosa (1995, p. 282) ha

planteado el concepto de dispositivo pedagógico para dar cuenta de las formas

en que el discurso pedagógico “trata siempre de producir, capturar y mediar

pedagógicamente alguna modalidad de la relación de uno consigo mismo con

el objetivo explícito de su transformación”. En tanto dispositivo pedagógico, la

educación sexual se presenta como una instancia de delimitación identitaria

que busca regular un conjunto de prácticas pedagógicas en las que los y las

estudiantes son posicionados como sujetos que deben construirse a sí mismos

en el marco de condiciones restringidas de inteligibilidad. Los contendidos y

objetivos propuestos para la educación sexual por parte del Gobierno de la

Ciudad de Buenos Aires (GCBA) avanzan en tal sentido. Es así que se ha

instituido a la construcción, el conocimiento y el cuidado de sí mismo como

objetivos principales. Ello ha supuesto, por caso, que la educación sexual debe

colaborar en el “afianzamiento de la autoestima” (GCBA, 2007a, p. 11); en la

“autoafirmación y conciencia de sí” (GCBA, 2007e, p. 23); en la

“construcción de la identidad” o en “el cuidado de uno mismo” (GCBA,

2007d, p. 21). Otro de los puntos claves que han organizado a la educación

sexual es la producción de sujetos autónomos. En tal sentido, se ha planteado

como objetivo central el “desarrollo de la autonomía vinculado con la toma de

decisiones” (GCBA, 2009b, p. 22), o el “propender a la autonomía” de los

estudiantes (GCBA, 2009a, p. 18) como responsabilidad de la escuela, etc.

Ese sujeto consciente, autónomo e idéntico que se construye, se

enuncia, se conoce y se cuida a sí mismo aparece en la educación sexual

simultáneamente como un punto de llegada deseable pero también como un

punto de partida epistemológico incuestionado. Es aquí donde la apuesta

crítica queer debe entrar en juego. La pregunta inquieta y provocadora que ha

planteado Stuart Hall (2006): “¿Quién necesita identidad?” puede bien

trasladarse al currículum de la educación sexual, indagando acerca de la

necesidad o deseabilidad de construcción de sujetos conscientes, autónomos e

idénticos a sí mismos. No por un rechazo a la necesidad de la identidad per se

(pues no podría nunca exigirse la supresión de la identidad) sino a las

condiciones sobre las que se impone esa necesidad como fundamento y como

objetivo o, en términos foucaultianos, a las condiciones que imponen al

individuo la sujeción a la propia identidad. Pues la 'identidad', antes que ser

una descripción de lo que uno esencialmente 'es', constituye lo que Judith

Butler (2007, p. 71) ha denominado como un “ideal normativo”. Es decir, un

marco restrictivo que si bien posibilita la construcción del sujeto, también la

restringe. En tanto 'ideal' producido en el seno de relaciones de poder, la

identidad supone siempre diferenciaciones y exclusiones que delimitan un

67Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 68: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

espacio de 'seres abyectos' cuyas vidas y cuerpos aparecerán como 'invivibles' e

'inhabitables'. Ese espacio resulta precisamente el “exterior constitutivo” del

espacio estable y normalizado de la identidad (BUTLER, 2005, p. 19-20). Es

en ese punto que, desde una perspectiva pedagógica queer, el ideal identitario

debería aparecer como un punto de tensión y cuestionamiento antes que un

supuesto dado o un objetivo a alcanzar. Como se detallará en el siguiente

apartado, los saberes que propone la educación sexual para la construcción del

sujeto sexuado que se conoce y cuida a sí mismo implican – incluso ya desde su

formulación legislativa (TORRES, 2009) – un recorte heterosexista de las

identidades, deseos y prácticas sexuales posibles. En ese marco, la 'identidad'

no puede ser nunca fundamento ni objetivo incuestionado de la educación en

general, ni de la educación sexual en particular. De igual modo, en este marco

resulta impugnable proclamar acríticamente a la autonomía como dimensión

fundamental de la construcción del sí mismo. Así como “[l]a promesa de

autonomía re-introduce, por la puerta de atrás, la fantasía de un sujeto

soberano y en pleno mando de sus actos” (SILVA, 2001, p. 9), tampoco da

cuenta de que la construcción de ese sujeto se desarrolla en condiciones

restrictivas que hacen de la autonomía un recorte de lo inteligible – es decir, una

exclusión de posibles alternativas disidentes – y no el desarrollo de una

característica esencial de la identidad.

La crítica a la noción de identidad marca precisamente una de las

lineas fundamentales sobre las que se han desarrollado la teoría y la política

queer. La crítica queer apunta, en tal sentido, a uno de los sentidos dominantes

del espacio social y cultural: la heterosexualidad. O, mejor dicho, a la

heteronormatividad, entendida como la construcción normativa y

normalizante de las formas de conocer, conformar y vivir los cuerpos así como

las identidades, las prácticas y los deseos sexuales. La apuesta queer apunta,

por tanto, a las formas de sujeción y normalización que imponen – a la vez que

limitan y excluyen – modos de ser, de actuar y de desear. Desde esta

perspectiva, se entiende que el régimen heteronormativo restringe el espacio de

la sexualidad a una heterosexualidad obligatoria (BUTLER 2005, 2007;

RICH, 1999; RUBIN, 2003; WITTIG, 2006). Pero puede pensarse también

que lo queer, como señala Tamsin Spargo (2004, p. 53), “está en perpetua

discordancia con lo normal, con la norma, sea esta la heterosexualidad

dominante o la identidad gay/lesbiana. En una palabra, es definitivamente

excéntrico, a-normal”. En tal sentido, no sólo el análisis de la cuestión de las

identidades sexuales aparece como uno de los ejes primordiales de lo queer

sino también, de modo indirecto, la cuestión de las identidades culturales y

sociales (SILVA, 1999). Desde esta perspectiva general, el foco está puesto en

68

Page 69: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

la desestabilización de la noción misma de 'identidad', entendida como una

pretendida propiedad esencial, estable y homogénea, tanto de los individuos

como de los colectivos sociales. La teoría queer asume a la identidad, antes

bien, como un terreno fronterizo, relacional e inestable limitado – aunque

también posibilitado – por diversas instancias de poder y de saber.

Cabe ahora preguntarse de qué modo puede relacionarse la crítica

queer de la identidad con la educación y la pedagogía. O, como lo plantea

Guacira Lopes Louro (2001, p. 15), “¿Cómo un movimiento que se remite a lo

extraño y a lo excéntrico se puede articular con la educación,

tradicionalmente el lócus de la normalización y del orden?”. Como primera y

fundamental consideración, puede decirse que una pedagogía queer pondría

de relieve de manera explícita el carácter político de la educación, en tanto

instancia fundamental de la producción social de la normalidad. Suzanne

Luhmann (1998, p. 151) ha señalado, en efecto, que una pedagogía queer

“mira con escepticismo el proceso de cómo se construyen las identidades y

(...) pasa a preocuparse por las exclusiones inmanentes de la normalidad”.

Asimismo, en relación a lo identitario, una pedagogía y un currículum queer

“estarían dirigidos al proceso de producción de las diferencias y trabajarían,

centralmente, con la inestabilidad y la precariedad de todas las identidades”

(LOURO, 2001, p. 16). Siguiendo esta misma linea de sentido, Deborah

Britzman (2002, p. 200), en su propuesta queer o “transgresora”, nos insta a

imaginar una pedagogía “preparada para superar el sujeto duplicado

foucaultiano: 'sujeto a otra persona mediante el control y la dependencia, y

sujeto a su propia identidad mediante una conciencia o autoconocimiento'”. Y

detalla que “aunque pueda resultar difícil concebir el autoconocimiento como

un espacio de dominio, la mayor parte de mi argumentación pretende

desestabilizar los viejos principios del yo instituido por la educación: alterar el

mito de la normalidad como estado original y alterar el sujeto unitario de la

pedagogía” (BRITZMAN, 2002, p.200). En un intento de profundización y

complejización de estos argumentos, puede resultar fructífero el abordaje del

planteo que realiza Britzman en articulación con una lectura del propio

Foucault, junto a algunos aportes de Butler.

En el texto que cita Britzman (“El sujeto y el poder”), Foucault

planteaba un análisis retrospectivo de su trabajo, señalando que sus esfuerzos

habían estado centrados no tanto en el poder sino en la cuestión del sujeto. Es

precisamente en este punto donde aparecen algunos aportes relevantes de su

trabajo para la discusión de una pedagogía queer. En una conferencia ofrecida

en 1978, publicada con el título “¿Qué es la crítica?”, Foucault (1995, p. 8)

69Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 70: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ponía nuevamente el acento sobre el nudo entre sujeción, poder y verdad,

especificando su noción de crítica como “el arte de la inservidumbre

voluntaria, el de la indocilidad reflexiva”. Y agregaba que, así entendida, la

crítica “tendría esencialmente por función la desujeción en el juego de lo que

podría denominar, con una palabra, la política de la verdad” (FOUCAULT,

1995, p.8, énfasis añadido). Eso que el autor define como “desujeción” o,

como lo plantea en otra parte del mismo texto, como el “arte de no ser

gobernado” (FOUCAULT, 1995, p. 7) según un juego dado de condiciones

restrictivas y normativas, constituye una fuerte apuesta teórica y política.

Llevada al espacio de la pedagogía y de la educación sexual, esa apuesta tensa

la formación de sujetos idénticos a sí mismos hacia la formación de identidades

abiertas y necesariamente indeterminadas. En este punto, una pedagogía

queer, antes que plantear a la autonomía, la consciencia, la coherencia, la

fijeza y la unidad como elementos necesarios y deseables de la identidad,

trabajaría sobre un terreno decididamente inestable en el que la producción de

sujetos – sus límites, condiciones y exclusiones – no se plantearía como un

objetivo último y cerrado, sino como un problema constante a la vez que

movilizante. Antes que circunscribir las modalidades y los mecanismos para la

producción del sí mismo, la pedagogía y el currículum queer pondrían de relieve

los condicionamientos que regulan y limitan al sujeto y hacen de la identidad un

ideal regulatorio y normativo. Pero también, y de modo primordial, se

esforzarían por abrir el espacio de la creatividad y la libertad en la construcción

de la identidad en relación con los otros, en una dirección necesariamente

indeterminada, no prescriptiva y abierta al cuestionamiento. Todo ello en el

límite de las mismas matrices de poder que, si bien aparecen como

condicionantes, constituyen también el único lugar posible para la ruptura y el

desplazamiento hacia la agencia, o, en otros términos, para la crítica y la

desujeción.

Esta articulación entre poder, identidad y agencia ha sido abordada por

Butler como una cuestión primordial. En parte heredera de los planteos

foucaultianos, la autora ha emprendido un trabajo deconstructivo del sujeto y la

identidad, no para su supresión, sino en el marco de una genealogía crítica

preocupada por la apertura de nuevos espacios de movilización política. En

Mecanismos psíquicos del poder, atenta al carácter productivo del poder,

Butler (2001, p. 12) señala que éste “no es solamente algo a lo que nos

oponemos, sino también, de manera muy marcada, algo de lo que

dependemos para nuestra existencia y que abrigamos y preservamos en los

seres que somos”. Es en tal sentido que emprende un cuestionamiento en torno

70

Page 71: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

1a lo que denomina el “dilema de la [agencia ]” (BUTLER, 2001, p. 24), es

decir, la ambivalencia en la que aparece ubicado el sujeto, que es a la vez efecto

del poder pero que, en virtud de ese mismo poder, aparece como la condición

de posibilidad para la agencia. Unos de los problemas que plantea este dilema

es, en palabras de la autora, “cómo adoptar una actitud de oposición ante el

poder aun reconociendo que toda oposición está comprometida con el mismo

poder al que se opone” (BUTLER, 2001, p. 27). En una relectura del planteo

de Foucault acerca de la crítica y la desujeción, Butler avanza en otro trabajo

sobre estos mismos problemas. Asumiendo que el sujeto se conforma en una

trama de discursos “verdaderos” y relaciones de poder, la autora plantea que la

crítica surge en el medio de “una rasgadura en el tejido de nuestra red

epistemológica” (BUTLER, 2000, p. 3). Es decir, en el momento en el que los

discursos disponibles se vuelven inadecuados o incoherentes para dar cuenta

de nuestras experiencias. Así, en el plano individual, la crítica supone la

pregunta “¿qué, dado el orden contemporáneo de ser, puedo ser?” (BUTLER,

2000, p. 9). A partir de tal interrogante se abre el paso a una forma de

“transformación de sí” crítica que adquiere la forma de un arte, una repetición y

una estilización:

[L]a crítica no puede consistir en un acto singular, ni

pertenecerá exclusivamente al dominio subjetivo, porque se

tratará de la relación estilizada con la exigencia que al

sujeto se le impone. Y el estilo será importante en la medida

en que, como estilo, no está totalmente determinado de

antemano, ya que incorpora la contingencia que en el curso

del tiempo marca los límites de la capacidad de

ordenamiento que tiene el campo en cuestión (BUTLER,

2000, p. 8; énfasis añadidos).

De este modo, la estilización crítica adquiere un carácter performativo,

presentándose tanto como la exposición de los límites de lo inteligible así como

el intento de su desplazamiento y transformación. La performatividad articula

aquí la formación del sujeto con las relaciones de poder que lo posibilitan y

condicionan. Butler (2001, p. 112) plantea que “el sujeto sólo se mantiene

como sujeto mediante una reiteración o rearticulación de sí mismo como tal”.

Pero es ese mismo carácter necesariamente repetitivo – o mejor dicho, iterable

– el que se presenta como una posibilidad de desestabilización. Es decir, como

una posibilidad de crítica en relación a las normas que intentan dictar los

modos de subjetivación posibles: “no hay posibilidad de aceptar o rechazar

En función de la pertinencia y claridad de la explicación, traducimos como “agencia” el término agency que en la traducción al español utilizada aquí figura como “potencia”.

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Page 72: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

una regla sin un yo que se estiliza en respuesta a la exigencia ética que a él se

impone” (BUTLER, 2000, p. 6). Ese “yo” que se estiliza puede emprender una

resistencia performativa a las coacciones del poder, abriéndose paso desde el

sujeto sujetado al poder y a su propia identidad hacia la agencia y la desujeción.

Esta estilización crítica de la identidad se presenta, por tanto, como una

“práctica de libertad” (BUTLER, 2000, p. 7) que surge precisamente en los

límites de lo que se presenta como posible. Pero ésta no debe ser entendida

como una forma de voluntarismo que supone a un sujeto como causa, pues esa

práctica depende fundamentalmente del horizonte de posibilidades regulado

por la matriz de saberes 'verdaderos' en la que tiene lugar. Es decir, que la crítica

“no emana de la libertad innata del alma, sino que se forma en el crisol de un

intercambio particular entre una serie de normas o preceptos (que ya están

ahí) y una estilización de actos (que extiende y reformula esa serie previa de

reglas y preceptos)” (BUTLER, 2000, p. 7). La extensión y reformulación

estilizada de la identidad en el marco de normas que intentan circunscribir los

modos posibles de ser implican para Butler, en definitiva, “actuar con

artisticidad en la coacción” (BUTLER, 2000, p. 13). Pero esa “artisticidad”

performada en condiciones restrictivas no debe opacar que, de modo

primordial, se trata también de una búsqueda de “los límites de esas

condiciones, los momentos en los que esos límites señalan su contingencia y

su transformabilidad” (BUTLER, 2000, p. 10).

La contingencia y posibilidad trasformadora del poder estarían en la

base de una perspectiva educativa queer, emprendida en el momento preciso

en que los enunciados de la educación sexual se muestran frágiles e

insuficientes frente a la proliferación de formas identitarias, corporales y de

deseo que se oponen al ideal prescripto de identidad coherente y

heterosexualidad reproductiva. En el marco de una pedagogía queer se

asumiría al poder no como algo a ser abolido en nombre de algún objetivo

emancipatorio, sino como algo a ser puesto en práctica, reformulado y

desbordado en pos de la ruptura de los límites que recortan el dominio de lo

vivible. Así, en una pedagogía queer la 'identidad' no sería un objetivo a formar

sino algo a poner en riesgo. Si las condiciones en las que la identidad autonóma

y estable del sujeto sexuado se presenta como fin y como supuesto están dadas

por el régimen de heterosexualidad obligatoria, el objetivo de la pedagogía

queer será emprender el camino crítico que avance sobre las obligaciones y

restricciones que buscan imponerse como necesidades y fundamentos para

una existencia vivible. La pedagogía queer no temería a la incoherencia de las

identidades; por el contrario, jugaría en esa superficie indefinida, sin alarmarse

72

Page 73: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

por la falta de estabilidad del sí mismo. Eso no significa que prescribiría un

modo de liberación al modo de 'sé incoherente', 'sé inestable' o 'sé queer'. La

estilización performativa de la identidad queer implicaría, antes bien, como lo

plantea David Halperin (2007, p. 83), el desarrollo de “una identidad sin

esencia”. Esto es, una identidad que se construye no como una sustancia

siempre igual a sí misma, sino como “una relación de resistencia” (HALPERIN,

2007, p. 135) frente a las normas, jerarquías y violencias sociales que buscan

definir las formas identitarias posibles, haciendo de la formación del sujeto un

campo decididamente abierto, indeterminado e incalculable.

Educación sexual y cuerpo: de la naturaleza a los placeres

Junto con la identidad, la cuestión del cuerpo constituye otro punto

crucial tanto para la educación sexual como para la apuesta queer. Así como el

'sentido común moderno' dispone al sujeto autónomo, racional y unitario como

fundamento y desiderátum, de igual modo dispone las coordenadas para la

inteligibilidad del cuerpo como una entidad fija, biológica y natural a la vez que

subordinada a la 'mente' dentro de una dicotomía reduccionista. En el proceso

de subjetivación que supone la educación sexual, uno de los objetivos

primordiales de conocimiento y cuidado del sí mismo ha sido, precisamente, el

cuerpo, asumido en su sentido moderno como naturalmente dado, con

determinadas funciones y sujeto a mutación sólo a partir de los cambios

propios de su naturaleza biológica siempre igual a sí misma. Así, han sido

prescriptos como contenidos u objetivos de la educación sexual, entre otros, el

“conocimiento del cuerpo y de los sistemas reproductores apoyados en los

conocimientos biológicos” (GCBA, 2007d, p. 10); o el “saber cómo es, cómo

funciona y cómo va cambiando (…) a medida que crece y adquiere nuevas

funciones” (GCBA, 2007c, p. 12). Ahora bien, el recorte del cuerpo conocible

prescripto por la educación sexual se ha centrado exclusivamente en las

funciones reproductivas del cuerpo. El conocimiento del cuerpo y sus cambios

supone así, por caso, el conocimiento de los “Cambios internos en los varones:

producción de semen. Manifestaciones de esos cambios: erección y

eyaculación. Cambios internos en las mujeres (…). Manifestaciones de estos

cambios: la menarca; la menstruación, frecuencia y duración” (GCBA,

2007b, p. 23); o la “[c]aracterización de la pubertad e identificación de los

cambios puberales. Producción de hormonas femeninas y masculinas”

(GCBA, 2007b, p. 23). Se establece así, en primer lugar, el carácter natural y

biológico del cuerpo y, por tanto, fijo e inmutable. Y, en segundo lugar, se

produce un cuerpo reproductivo o potencialmente reproductivo como condición

73Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 74: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

necesaria. En esta versión de la educación sexual, por tanto, el único cuerpo

que merece ser conocido y cuidado es el cuerpo heterosexual y reproductivo.

La deconstrucción del cuerpo desde la teoría y la política queer ha

partido de la discusión con una parte de la teoría feminista que dio por sentado

el carácter natural, biológico y pasivo del cuerpo frente al carácter social,

cultural y construido del género. Desde la apuesta queer se ha avanzado sobre

esas dicotomías análogas entre naturaleza/cultura, sexo/género,

materia/discurso o fijo/construido, poniendo de relieve los mecanismos de

poder que han configurado la ficción del cuerpo como algo ya dado y anterior a

la cultura y al discurso. En tal sentido, Butler (2005, p. 28) ha señalado que la

“materia” del cuerpo, antes que ser un mero “sitio” o “superficie” sobre la que

se imprimiría la cultura, es el producto de “un proceso de materialización”

regulado por relaciones de poder que ordenan las significaciones en torno a lo

“femenino” y lo “masculino”. Tanto el cuerpo como el sexo o la diferencia sexual

no constituyen meros hechos dados en la naturaleza sino, al decir de Beatriz

Preciado (2002, p. 22), elementos propios de una “tecnología de dominación

heterosocial” a través de la cual no sólo se conmina el cuerpo a lo natural sino

que también se lo reduce a “zonas erógenas en función de una distribución

asimétrica del poder entre los géneros (femenino/masculino)” (PRECIADO,

2002, p.22). A esta regulación normalizante tanto del cuerpo como de la

identidad sexual y de género, Preciado (2008, p. 90) la denomina

programación de género, entendida como una tecnología que parte de la

premisa “un individuo = un cuerpo = un sexo = un género = una sexualidad”

en pos de asegurar “la relación estructural entre la producción de la identidad

de género y la producción de ciertos órganos (en detrimento de otros) como

órganos sexuales y reproductivos” (PRECIADO, 2008, p. 59). La 'naturaleza'

de lo corporal se revela por tanto no como una esencia estática, sino como una

tecnología que regula y organiza un dominio de coherencia heterosexista entre

el cuerpo, el sexo natural, la identidad de género, las prácticas y los deseos

sexuales. Esta coherencia y continuidad impuestas suponen y reconstruyen una

heterosexualidad que aparece como obligatoria, en tanto suprime las posibles

opciones que podrían desestabilizar tal secuencia normalizante.

Al especificar los cuerpos de varones y mujeres en el marco de la

educación sexual, han sido ciertas funciones, partes y órganos – y no otros – los

que fueron recortados como definitorios de lo sexual. Pero esa 'descripción' de lo

natural y corporal no es más que una imposición que regula el dominio legítimo

y normalizado de los cuerpos, los géneros y las sexualidades. A este mismo

respecto Butler sostiene que:

74

Page 75: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Se afirma que los placeres radican en el pene, la vagina y

los senos o que surgen de ellos, pero tales descripciones

pertenecen a un cuerpo que ya ha sido construido o

naturalizado como concerniente a un género específico. Es

decir, algunas partes del cuerpo se transforman en puntos

concebibles de placer justamente porque responden a un

ideal normativo de un cuerpo con género específico. (...)

Qué placeres se despertarán y cuáles permanecerán

dormidos normalmente en una cuestión a la que recurren

las prácticas legitimadoras de la formación de la identidad

que se originan dentro de la matriz de las normas de género

(BUTLER, 2007, p. 158-159).

En esta misma linea de sentido, Preciado (2002, p. 105-106) señala

que “los órganos sexuales no son solamente 'órganos reproductores', en el

sentido de que permiten la reproducción sexual de la especie, sino que son

también, y sobre todo, 'órganos productores' de la coherencia del cuerpo como

propiamente 'humano'”. Aquí, lo propiamente humano remite, en un sentido

muy importante, al campo de lo inteligible en materia de cuerpos, identidades,

prácticas, deseos y placeres sexuales. La especificación de determinadas

partes u órganos como propiamente sexuales no sólo opera sobre la definición

de lo 'verdaderamente' masculino y femenino, sino que también impone una

única dirección posible en el terreno de la sexualidad: la heterosexualidad. Esta

matriz no sólo se impone sobre aquellos individuos cuyas vidas y cuerpos no se

reconocen en el ideal regulatorio heterosexista sino que también opera efectos

sobre lo 'femenino', apareciendo asociado a la maternidad como destino

definitorio del cuerpo y la identidad femenina.

La obligatoriedad de la educación sexual abrió un espacio discursivo

que obligó a que el cuerpo fuera enunciado como un fundamento y un objetivo

ineludible en el discurso pedagógico. La educación sexual no sólo ha regulado

las identidades y los cuerpos según una versión hetero-reproductiva.

Fundamentalmente, ha colocado en el terreno de la abyección a una serie de

cuerpos indeseables e inhabitables: los cuerpos de las adolescentes

embarazadas, los cuerpos travestis y trans, los cuerpos violentados por el

aborto insalubre y penalizado, los cuerpos marcados por el racismo y las

distintas formas de homofobia, los cuerpos abusados, los cuerpos con

VIH/SIDA, los cuerpos autoerotizados... Desde ya, estas experiencias

corporales no son equivalentes. Entre ellas, la educación sexual se ha centrado

en el abuso sexual, el embarazo no deseado y el VIH/SIDA. Claramente, los tres

constituyen efectos adversos a erradicar. Pero cuando la educación sexual

75Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 76: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

76

solamente se centra en ellos como instrumento sanitario de prevención frente a

los 'riesgos', 'amenazas' y 'patologías' de la sexualidad, se erige como una

instancia más de normalización que regula lo vivible, haciendo de las

identidades y los cuerpos dominios altamente regulados. Esas experiencias

corporales abyectas son configuradas como monstruosidades ubicadas en el

límite de lo normal. Esto es, como imposibilidades que habilitan y refuerzan la

inteligibilidad del cuerpo femenino y masculino normales: heterosexuales, a la

vez que inocentes, puros y pasivos en la infancia; y, en la adolescencia, fértil,

virgen y fecundable el primero, eyaculador, reproductivo e impenetrable el

segundo.

Frente a este panorama, una perspectiva pedagógica queer debe

avanzar sobre estas regulaciones del cuerpo hacia una crítica que lo arranque

de la 'naturaleza' y lo lleve hacia el terreno del poder y la disputa. En ese terreno,

el cuerpo aparecería como un dominio de intervención posible sólo a partir de la

puesta en juego del poder y el saber, en una estrategia de desbaratamiento de

las normas fundadas en la 'naturaleza' que se invocan como destinos

necesarios. Así, el cuerpo no sería un mero dato, complemento u objeto pasivo

sobre el que se construiría la 'identidad', sino un lugar de manipulación, disfrute

y exploración indeterminada. Tampoco sería un dominio diseccionado y

regulado como íntimo o privado sino, antes bien, un dominio social y político

abierto a la metamorfosis y a la proliferación de placeres. Pero no según una

regulación hedonista de las formas negativas y positivas del placer, sino a partir

de la apertura de un campo de posibilidades corporales cuyos límites no

pueden ser normados de antemano aunque sí elaborados constantemente en

un sentido crítico frente a las violencias y exclusiones que se imponen como

norma. Desde esta misma postura, en un currículum queer la salud aparecería

como una preocupación, pero sólo si está dada en el marco de una

diversificación de placeres y prácticas sexuales y no de los 'riesgos' y 'amenazas'

de la sexualidad hetero-reproductiva. De modo similar, en un currículum queer

el abuso sexual no sería constituido en el único fundamento, vehículo y objetivo

para la enunciación de la sexualidad infantil, sino apenas uno de los aspectos

posibles a abordar en la conformación de las identidades, los cuerpos y los

deseos. La anticoncepción tampoco sería el contenido a enseñar a modo de

'cura' frente a la 'epidemia' de embarazos no planificados, sino una herramienta

más para el disfrute y construcción del propio cuerpo en relación con otros y

otras. En definitiva, en una pedagogía y un currículum queer el cuerpo

aparecería como un dominio de experimentación moldeable e intensificable a la

vez que articulado – y nunca subordinado ni dominado – de maneras diversas

con la construcción crítica de la identidad.

Page 77: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Cuerpos e identidades: de la educación (hetero)sexual a la indeterminación

Este trabajo no es un manifiesto sino un ejercicio – entre otros posibles

– de articulación promiscua de distintos textos. Lo que se planteó aquí como

pedagogía queer podría bien llamarse pedagogía desviada, rara, excéntrica,

disidente... También podría entrar en diálogo o aproximarse a una pedagogía

profana en la que se busca escapar a “la captura social de la subjetividad”

(LARROSA, 2000, p. 42), o a una pedagogía contra-sexual que propone

“maximizar las superficies eróticas” del cuerpo (PRECIADO, 2002, p. 35).

Sus apropiaciones, discusiones o articulaciones ulteriores no pueden ser aquí

dirigidas ni planteadas de antemano, del mismo modo en que las identidades y

los cuerpos a los que se dirige no pueden ser normados y delimitados de manera

concluyente.

La crítica emprendida aquí se da en el contexto tanto de una educación

(hetero)sexual obligatoria erigida sobre el pánico al abuso sexual, la amenaza

del embarazo adolescente y el peligro de las enfermedades de transmisión

sexual, a la vez que vigilada o tergiversada por la Iglesia católica; así como de

una pedagogía de la sexualidad heterosexista que traduce las 'anormalidades'

como insultos, murmullos, rechazos y violencias cotidianas. En este marco,

una perspectiva educativa queer busca emprender una crítica a los modos de

ser y desear en pos de la construcción de un horizonte de posibilidades más

amplio que no pueda ser delimitado con anticipación. La puesta en cuestión de

las normas que rigen la inteligibilidad de la identidad y el cuerpo no implica la

caida en un terreno vaciado de valores éticos, sino la consideración de que esos

valores no pueden ser definidos de manera definitiva sin antes tomar en cuenta

las exclusiones constitutivas sobre las que se construyen. En síntesis,

cuestionar los discursos disponibles para la enunciación 'verdadera' de las

identidades y los cuerpos implica tanto el cuestionamiento de los entramados

de poder que imponen condiciones normalizantes, así como de la apertura de

un campo de experiencias identitarias y corporales indeterminadas que, lejos

de negar al poder, lo asuman como una instancia productiva abierta de modo

necesario a la contingencia en el marco de relaciones colectivas y valores

comunes a ser constantemente construidos y discutidos.

77Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79

Page 78: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

78

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Page 80: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

80

Page 81: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

5

Juliana PerucchiProfessora do Programa de Pós-graduação em Psicologia

da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJFDoutora em Psicologia Social pela

Universidade Federal de Santa Catarina – [email protected]

Para uma análise sobre a incorporação de disposições normativas de prescrição

dos corpos na contemporaneidade

Towards an analysis of the incorporation of

body-regulating dispositions in contemporary times.

Page 82: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

82

Resumo

Este ensaio teórico busca analisar as formas por meio das quais certas

regularidades objetivas são “incorporadas” pelas pessoas, de modo a

naturalizar práticas sociais radicalmente contextualizadas e situadas. Para

tanto, articula os conceitos de cuidado de si, de Michel Foucault, e

performatividade, de Judith Butler; em contraponto e diálogo com a noção de

habitus, de Pierre Bourdieu. A análise aponta que a produção de subjetividades

em meio às regularidades objetivas do sistema normativo de sexo/gênero se

converte em um sistema produtor dos corpos e das condutas.

Palavras-chave: Corpos. Cuidado de si. Performance. Habitus.

Abstract

The objective of this paper is to analyze the forms by which certain objective

regularities are spontaneously incorporated by people, in order to naturalize the

social practices radically situated. For so it articulates Foucault's concept of

care the self; and Butler's concept of performance, in contrast and dialogue at

Bourdieu's concept of habitus. The analysis points that the production of

subjectivities amidst objective regularities of normative sex-gender systems

converted onto at produce system of bodies and conduct.

Key-words: Bodies. Care of the self. Performance. Habitus.

Page 83: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introdução

Propõe-se neste ensaio teórico uma articulação conceitual entre duas

categorias analíticas, a saber, a noção de cuidado de si, de Michel Foucault

(2006b), e a de performatividade, de Judith Butler (1999), as quais permitem

pensar as formas por meio das quais certas regularidades objetivas produzem

subjetividades. Contrapõem-se as perspectivas dessas duas categorias a uma

terceira, que consiste no conceito de habitus (BOURDIEU, 1974), por meio da

qual Pierre Bourdieu se propôs a analisar a incorporação de certas

configurações sociais que possibilitam a construção de condutas e estilos de

vida individuais, orientados por instâncias produtoras de valores culturais e por

referências identitárias, disponíveis na contemporaneidade.

É efetivamente a partir do conceito de cuidado de si, formulado por

Michel Foucault (2006b), que se inicia essa reflexão acerca dos processos

pelos quais certas disposições sociais produzem sujeitos, forjando práticas

corporais que passam a orientar outras práticas, de si sobre si próprio e sobre

outros, criando estilos de vida. É também por meio dele que se vislumbra a

possibilidade de diálogo entre esses três autores, na articulação com as

proposições de Butler e em contraponto e tensão com a perspectiva de

Bourdieu, no desiderato de articular proposições teóricas, nos limites de suas

(in)compatibilidades epistemológicas.

Considerando que a formulação do conceito de cuidado de si permite

problematizar o processo pelo qual o indivíduo transforma-se a fim de alcançar

certo modo de ser, pode-se articular tal categoria analítica à noção de

performatividade, na medida em que ambas remetem a constructos teóricos

que permitem analisar princípios de orientação de práticas.

O uso dos conceitos de cuidado de si e performatividade na reflexão acerca da

prescrição e da autonomia dos corpos na contemporaneidade

Primeiramente, pretende-se iniciar esta reflexão contextualizando a

perspectiva de análise do princípio do cuidado de si, construída por Michel

Foucault em suas últimas obras sobre a História da Sexualidade,

especificamente o segundo e o terceiro volumes (FOUCAULT, 2006a, 2006b). 1Nesses livros, o autor analisa, por meio da hermenêutica do cuidado de si na

Antiguidade e posteriormente nos primeiros tempos da era cristã, o processo que

os sujeitos operam sobre si mesmos de modo a exercitar certo estilo de vida.

83Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

1 “Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido” (FOUCAULT, 2007, p.40).

Page 84: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Concentrando-se na discussão proposta no terceiro volume, pode-se

conjeturar que, sendo a filosofia um modo de vida na Antiguidade clássica, o

fundamento do trabalho do indivíduo sobre si mesmo se dava conforme regras

de condutas preconizadas pela própria Filosofia. Era necessário abrir mão do

supérfluo para então se lançar ao primordial. No entanto, como analisa

Foucault, o primordial apresenta diferentes roupagens na filosofia clássica e,

consequentemente, o princípio do cuidado de si apresenta-se diferentemente

nos diversos contextos históricos da era clássica.

Os modos de vida nos primeiros séculos do Império Romano, por

exemplo, incidiam sobre o cuidado de si, mas esse cuidado adquiriu novas

facetas que o tornaram diferente do de outros períodos. Na filosofia antiga, o

ocupar-se de si era anterior ao conhecer a si mesmo, já na era cristã houve uma

inversão: o conhecimento de si aparece como princípio fundamental, enquanto

que o cuidado de si passa a ser negligenciado como algo imoral, pois a renúncia

de si passa a ser condição para a salvação, não mais no sentido atribuído pelos 2gregos da antiguidade clássica , mas sim no sentido espiritual cristão, em que o

indivíduo convertido abre mão de si mesmo para chegar à verdade. Assim, no

ascetismo cristão, as práticas de cuidado de si remetem a exercícios como os

procedimentos de provação, o exame de consciência e o trabalho do

pensamento sobre si mesmo. Todas essas práticas tinham como preocupação

fundamental a purificação do espírito.

A análise foucaultiana permite afirmar que, no período clássico, o foco

era a relação entre subjetividade e verdade, sendo o cuidado de si o princípio

que estabelece as possibilidades de o sujeito acessar a verdade, mas as

dimensões e as formas modificam-se ao longo do tempo. Enquanto para Platão

a verdade se encontrava no interior do indivíduo e precisava ser revelada por

meio do cuidado de si sobre si mesmo, que marca o ascetismo platônico na

busca da revelação do si por meio do cuidado de si; no ascetismo cristão, o que

conta é o conhecimento de si e a renúncia ao si, a conversão para que uma

outra realidade seja alcançada e revelada: a salvação. O acesso à verdade é,

portanto, diferente.

Nessa digressão contextual em relação às discussões que Foucault

desenvolve na sua genealogia quanto às regulações que se farão sobre a vida

das pessoas por meio das tecnologias de si, percebe-se que a ideia de ocupar-se

84

2 Michel Foucault problematiza o princípio do cuidado de si entre os gregos a partir do discurso em Alcebíades e analisa como foi elaborado, como foi constituindo sua história. Nesse sentido, a “salvação” aparece como uma atividade permanente sobre si mesmo, segundo Foucault, na análise de Alcebíades – salvação como “estar em posse de si”, não com o mesmo sentido que aparece na era cristã.

Page 85: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

consigo é bem antiga nas culturas ocidentais e se desdobra atualmente nos

modos de vida de suas sociedades. A análise do princípio do cuidado de si

mostra que tal ideia já estava presente no ideal do cidadão espartano de

treinamento físico e de preparação para a guerra, mas foi com Sócrates que

esse ocupar-se de si ganhou a dimensão de um cuidado de si, adquirindo

paulatinamente as formas de uma verdadeira “cultura de si”.

Por essa expressão é preciso entender que o princípio do

cuidado de si adquiriu um alcance bem geral: o preceito

segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em

todo caso um imperativo que circula entre numerosas

doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma

atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou

formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em

práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas,

aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma

prática social, dando lugar a relações interindividuais, a

trocas e comunicações, e até mesmo a instituições; ele

proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a

elaboração de um saber (FOUCAULT, 2006b, p. 50).

A epimeleia heautou, ou a arte de ocupar-se de si, ultrapassa o

domínio do conhecimento de si, não indicando somente uma preocupação,

mas designando, sobretudo, um conjunto de práticas, de ações por meio das

quais se desenvolve um refinamento da alma com auxílio da razão, para que se

possa levar a melhor vida possível. Já no período helenístico, o cuidado de si

não se configura como um princípio de conhecimento apenas, mas sim uma

prática de cuidado. É um conjunto de exercícios em que o si, ao mesmo tempo

que é cuidado, é produzido. O si é objeto e fim do cuidado. Na virada para a

cultura helenista, o cuidado de si toma novas formas. Ele não se foca mais na

cidade, mas em si mesmo. A articulação entre o cuidado e o conhecimento que

se vê em Alcebíades já não se percebe aqui. A arte de ocupar-se de si remete ao

uso prático de um conjunto de verdades que operam como agentes de uma

modificação, de uma transformação subjetiva.

No estudo em torno da epimeleia, Foucault analisa o vocabulário e as

expressões que designam o cuidado de si e evidencia que a dimensão do

conhecimento de si está num conjunto de expressões que se remetem à

atenção, ao olhar, à percepção; em que o si é o objeto dessa atenção, desse

olhar, mas que, de todo modo, há uma ação, remetendo-se necessariamente a

uma prática. Enquanto que a dimensão do cuidado está voltada para a

conversão e para uma conduta dos corpos, a prática que designa o cuidado de

85Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 86: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

si produz o sujeito da ação, que toma o “si mesmo” como refúgio, convertendo-

se nele, voltando-se para si mesmo, de sorte que

[...] sería necesario distinguir en el concepto de epimeleia

los aspectos siguientes: En primer lugar, nos encontramos

con que el concepto equivale a una actitud general, a un

determinado modo de enfrentarse al mundo, a un

determinado modo de comportarse, de establecer

relaciones con los otros. [...] En segundo lugar, la epimeleia

heautou es una determinada forma de atención [...] implica

que uno reconvierta su mirada y la desplace desde el

exterior, desde el mundo, y desde los otros, hacia si mismo.

La preocupación por uno mismo implica una cierta forma de

vigilancia sobre lo que uno piensa y sobre lo que acontece

en el pensamiento. En tercer lugar, la epimeleia designa

también uno determinado modo de actuar, una forma de

comportarse que se ejerce sobre uno mismo, a través de la

cual uno se hace cargo de si mismo, se modifica, se purifica,

se transforma o se transfigura. [...] La noción de epimeleia

implica, por último, uno corpus que define una manera de

ser, una actitud, formas de reflexión de un tipo determinado

de tal modo que, dadas sus características específicas,

convierten a esta noción en uno fenómeno de capital

importancia [...] en la historia de las prácticas de la

subjetividad (FOUCAULT, 1987, p. 34-36).

Por meio de sua hermenêutica, Michel Foucault permite-nos uma

constatação: o cuidado de si aparece como preocupação prática de cada

indivíduo durante toda a sua existência e como preocupação de todos os

indivíduos. Na esfera da vida individual, ao longo da existência, o cuidado de si

está vinculado à arte de viver, ao modo de vida do sujeito, na medida em que o

cuidado de si se estende para toda a vida. Foucault aponta para as práticas que

sustentam esse cuidado.

Um aspecto importante indicado por esse autor refere-se à

constatação do cuidado de si como ética universal. Uma consequência do

deslocamento cronológico do cuidado de si é exatamente o fim do privilégio

desse princípio para algumas pessoas (os aristocratas, em Alcebíades, por

exemplo) e sua universalização. Entretanto, as práticas do cuidado de si, em

todas as suas dimensões, dão-se institucionalmente, ou seja, contextualizadas

nas diversas redes de relação, de posições do sujeito. Embora seja evidenciado

como regra universal, o cuidado de si atinge a poucos. Essa forma, presente no

período helenístico, reaparece posteriormente no cristianismo: todos são

chamados, mas poucos os escolhidos.

86

Page 87: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A demanda no período helenista é a generalização do cuidado de si

para todos, algo semelhante ao que se tem hoje. Porém, hoje o cuidado de si

não tem um fim em si mesmo, há outras demandas. Atualmente, o cuidado de

si está em função de demandas produtivas, na medida em que eu cuido de mim

para poder produzir, como também está a serviço das relações familiares, no

sentido de que é necessário (ou pelo menos exigido socialmente) que eu saiba

cuidar de mim para que eu possa ser reconhecido como capaz de cuidar de

alguém. Governo de um, governo dos outros! Entretanto, para além dessas

dimensões, o cuidado de si na contemporaneidade está cada vez mais

vinculado ao individualismo, à preocupação consigo mesmo, à qualidade de

vida e à conduta individual. Essa demanda se processa cada vez com maior

visibilidade nos centros urbanos: produtos e serviços são criados para

atenderem prioritariamente os interesses de pessoas que vivem sozinhas e que

se (pré)ocupam consigo mesmas.

A análise do princípio do cuidado de si aponta para ações que definem

e constroem o sujeito: os tipos de ação levam para a atenção a si mesmo, a

voltar-se a si próprio, a cultuar-se a si, reivindicando-se de diferentes modos.

Remete-se a ações que designam a epimeleia heautou, ações pelas quais se

constituem os sujeitos e seus modos de vida. Foucault remete a um conjunto de

práticas de si, correlato de uma construção de si, que ultrapassa o domínio do

conhecimento.

Ocuparse de uno mismo significa ocuparse de su alma: yo

soy mi alma. [...] Se trata de transferir a una acción hablada

el hilo de una distinción que permitirá aislar, distinguir, al

sujeto de la acción del conjunto de elementos, las palavras,

los ruídos, que constituyen esta acción misma y que le

permiten realizarse. Se trata en suma, si ustedes quieren,

de hacer aparecer al sujeto en su irreductibilidad

(FOUCAULT, 1987, p. 46-47).

O indivíduo age, assim, de modo a operar como sujeito dessa ação em

relação aos códigos prescritivos disponíveis em sua cultura. Porém, vale

lembrar que existem diferentes níveis de consonância para a prescrição. Tais

gradações em relação às formas de prescrição foram denominadas por Foucault

como “substância ética”, que designa os modos como o indivíduo se constitui

enquanto sujeito moral (FOUCAULT, 2006a). Portanto, a forma como o sujeito

estabelece sua relação com tais regras, ou seja, seus modos de sujeição,

constitui-se por meio da elaboração do trabalho ético sobre si mesmo,

caracterizado pela obrigatoriedade de colocar tais regras em prática.

87Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 88: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A partir dessa reflexão, permite-se conjeturar acerca da noção de

cuidado de si, princípio norteador da cultura ocidental, como aparece na

contemporaneidade em contraponto e diálogo com a perspectiva de

incorporação de disposições normativas, tendo o corpo como matriz de

inscrição simbólica da cultura, bem como em diálogo e articulação com a

perspectiva do corpo como efeito da repetição citacional dos discursos. São

processos pelos quais subjetividades contemporâneas reclamam para si certas

identidades. Reclamar uma identidade é descrever (por meio de um conjunto

de conhecimentos e de práticas) aquilo que se é, ou aquilo que se faz

reconhecer-se (e ser reconhecido) como sujeito. Não se trata apenas de

conhecer a si mesmo, ou de conhecer o que faz de si um sujeito, mas sim uma

conduta prática de cuidar de si mesmo, a ponto de tornar-se, para si e para os

outros, um sujeito. Reclamar uma identidade é, portanto, exercer um conjunto

de práticas por meio das quais o sujeito se produz, ao mesmo tempo que cuida

de si. Essa produção se dá, fundamentalmente, pelo corpo em relação a certas

disposições sociais, do que se convencionou chamar de sistema sexo/gênero.

Trata-se de um sistema pelo qual se articula um cruzamento

estratégico de dispositivos normativos da sexualidade, de modo a delimitar

binariamente características de masculinidade e de feminilidade,

categorizando e hierarquizando práticas corporais. É pelo sistema sexo/gênero

– que Rubin (1993, p. 2) define como “o conjunto de medidas mediante o qual

a sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade

humana e essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” – que se

estabelece a institucionalização das condutas corporais heteronormativas.

Essa institucionalização, por sua vez, estabelece as regras que fazem funcionar

a regularidade das condutas.

O termo “conduta”, apesar de sua natureza equívoca,

talvez seja um daqueles que melhor permite atingir aquilo

que há de específico nas relações de poder. A conduta é, ao

mesmo tempo, o ato de “conduzir” os outros (segundo

mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a

maneira de se comportar num campo mais ou menos

aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em

“conduzir as condutas” e em ordenar a probabilidade

(FOUCAULT, 1995, p. 243-244).

Analisar as conduções das condutas, ou esse conjunto de

possibilidades de exercícios de poder dos corpos/sobre os corpos, remete-se à

análise dos tipos de ação que leva à atenção a si mesmo, a voltar-se a si mesmo,

a cultuar-se a si mesmo, a reivindicar a si mesmo de acordo com diferentes

88

Page 89: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

possibilidades discursivas. Essas possibilidades designam ações pelas quais se

constituem modos de vida, estilos de existência, performances de gênero

reguladas pelo sistema sexo/gênero. Esse sistema, conforme analisa Butler

(1993), configura uma matriz de significado que impede aos corpos uma

formulação alternativa (contra-hegemônica) aos significados de “homem” e

“mulher”, “masculino” e “feminino”. A inteligibilidade desses constructos

vincula-se ao que a autora define como “heterossexualidade compulsória”, ou

seja, a uma instituição social por meio da qual é inteligível apenas uma

classificação binária: homem/mulher, macho/fêmea. Assim, condutas

corporais fora desses limites de inteligibilidade configuram identidades de

gênero aberrantes, estranhas ou, nas palavras de Butler, abjetas.

Desse modo, a condução das condutas, que configuram as práticas de

cuidado de si na sociedade de controle na contemporaneidade, possibilita o

processo de “reconhecimento” de identidades nos limites do sistema de

sexo/gênero, nos parâmetros de inteligibilidade da matriz binária hegemônica e

compulsória. Assim, o gênero – concebido como um conjunto de gestos e

inscrições desempenhados sob a superfície do corpo – institui as fronteiras

desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. O sexo é assim

“materializado” pela performatividade dos agentes sociais, sobretudo por meio

de práticas de uso dos prazeres (FOUCAULT, 2006a) que “abrem ou fecham

superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do

corpo (BUTLER, 2003, p. 190). A arte da existência “[...] se encontra

dominada pelo princípio segundo o qual é preciso 'ter cuidados consigo', é esse

princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu

desenvolvimento e organiza a sua prática” (FOUCAULT, 2006a, p. 49).

Nesse sentido, as identidades de sexo e de gênero são concebidas

como práticas discursivas (que incidem sobre os corpos, suas condutas e seus

cuidados), sendo os sujeitos “efeitos de um discurso amarrado por regras”

(BUTLER, 2003, p. 208), regras de conduta e de cuidados que compõem o

conjunto de regularidades objetivas dispostas à incorporação.

Modos de falar, de sentar, de olhar, de transar, estilos de vestuário e de

acessórios, isto é, todo um conjunto de posturas e de artefatos – vinculados às

condutas e à circulação dos corpos – configuram um campo disperso de

disposições socioculturais pelas quais se possibilita certo reconhecimento do

sujeito social. A cena social na qual se processam as práticas que compõem os

dramas da vida cotidiana é, portanto, articulada nesse jogo de possibilidades

de incorporação das regularidades objetivas disponíveis. É nesse processo de

construção performativa e cuidadosa dos corpos que a vida social explicita sua

radicalidade.

89Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 90: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Porém, nesse mesmo processo também existem possibilidades de

transgressão, como a escolha por certo modo de vida que tem sido, cada vez

mais, expressado por pessoas que, inicialmente, se deparam com a expressão

de suas homossexualidades e que vão gradativamente se derivando para outra

construção da identidade de gênero, caracterizada pelo uso de indumentárias,

vestimentas e adereços, contrários à prescrição de gênero. Essas pessoas se

constituem em subjetividades femininas a partir de um corpo tido como

masculino, construindo novas relações de gêneros, inventando um outro

feminino, como, por exemplo, o feminino travesti (BENEDETTI, 2000). A

articulação entre os conceitos de cuidado de si e a performatividade permite

presumir que tais construções performativas – de si sobre si e sobre outros –,

engendradas pelo sistema normativo sexo-gênero-desejo, não se processam de

modo fixo, nem demarcam os territórios ou produzem os corpos da mesma

maneira, em distintos contextos históricos.

Certas performances – no sentido butleriano –, como as da drag

queen, dos travestis e de outras pessoas transgêneros, demonstram que não

existe coerência natural ou qualquer a priori inato para o sexo, o gênero e a

sexualidade. São, todas, inscrições “flutuantes” na configuração material e

simbólica dos corpos, constructos culturais forjados por repetições de atos

estilizados e de discursos (re)citados. Quanto mais repetidos, mais se dá a

impressão de que são naturais, inatos e a-históricos. Assim, por meio da

repetição de performances, da repetição de práticas que conduzem a conduta,

certos constructos de sexo, gênero e sexualidade são incorporados de forma

não reflexiva, como representações de alguma essência fixa e imutável; de uma

sexualidade naturalmente humana.

As possibilidades de condução das condutas corporais na

contemporaneidade, pelas práticas de cuidado de si e pelas performances

sexuais e de gênero, configuram a inteligibilidade das formas pelas quais os

atributos de masculinidade/feminilidade tornam-se legítimos, enquanto

regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis ou, dito de outro

modo, criando identidades de gênero inteligíveis. Essas “condições de

possibilidade” da emergência de determinados discursos ou formulações de

sexo/gênero, trabalhados por Butler, permitem refletir as formas pelas quais

essas regularidades objetivas orientam práticas individuais, regulam condutas

que, por sua vez, retroalimentam o sistema de manutenção da lógica binária

hegemônica.

É desse modo que elementos culturais que se constituem como

disposições sociais garantem a inteligibilidade de certas formulações do que

seja “masculino” ou “feminino” na estética dos corpos, do que seja “legítimo”

90

Page 91: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ou “ilegítimo” nas relações de gênero, do que seja “normal” ou “anormal” nas

práticas sexuais e, por fim, do que pode ou não ser “reconhecido” como

importante/inteligível. Não se trata, portanto, da mesma natureza daquilo que

Bourdieu define como habitus, ou seja, um conjunto de valores, de princípios,

de orientações que regulam condutas dos sujeitos de modo a torná-los

passíveis de reconhecimento cognitivo. Trata-se, efetivamente, da produção de

algumas vidas inteligíveis e de outras vidas não inteligíveis, de corpos que

importam e de corpos que não importam, vidas e corpos que não são

entendidas/os (no sentido ontológico) como vidas e corpos humanos, ainda que

sejam de pessoas.

Há uma diferença fundamental entre a noção de habitus trabalhada

por Pierre Bourdieu (1974) e a questão da centralidade do corpo nas

concepções de cuidado de si, em Michel Foucault, e de performatividade, em

Judith Butler. No primeiro, o corpo é entendido como matéria-prima de

inscrição simbólica e de materialização da cultura, lócus privilegiado de análise

do sujeito social. Nota-se como essa perspectiva difere radicalmente das

noções cunhadas por Foucault e por Butler, nas quais os corpos não são

superfícies de inscrição simbólica, mas sim, propriamente, produções

discursivas em suas materialidades. Para Bourdieu, o corpo inscreve na pessoa

a radicalidade da construção identitária que se realiza pela estrutura social,

construção da qual o próprio indivíduo não é inteiramente sujeito. Para

Foucault e Butler, a pessoa é, ela mesma, em sua própria materialidade

corporal, efeito das práticas discursivas que a fabricam.

Se o olhar do sociólogo francês volta-se ao habitus, ou seja, a essa

inscrição inapagável que, segundo o autor, se configura como matriz geradora

de práticas e que pode ser definida como “sistema de disposições socialmente

constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem

o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias

características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 1998, p. 184) a leitura

de Foucault e de Butler leva a analisar outra seara, a dimensão ficcional dessas

narrativas de si, que atribuem a certos conjuntos de práticas uma ideia de

unidade, de identidade coesa.

Vale destacar que o desiderato bourdieusiano que interessa confrontar

nessa reflexão é aquele referente à análise da relação entre o indivíduo e o grupo

social ao qual pertence. Sendo assim, a noção de habitus contempla um

constructo que se propõe a entender como inscrições corporais se processam,

desde muito cedo, de modo a configurar comportamentos. Contudo, tal

conceito articula elementos de outra ordem, que não aqueles mobilizados pelo

conceito de cuidado de si e pela noção de performatividade de gênero, que, por

91Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 92: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

sua vez, permitem analisar a produção de corpos e vidas (in)inteligíveis. A

distância conceitual do habitus com o princípio do cuidado de si remete ao

olhar, epistemologicamente, diferenciado dos autores, frente às práticas sociais

que tomam os movimentos corporais, as posturas, os gestos, os modos de

higiene, os modos de olhar, de andar, de falar, de comer, de se vestir, enfim,

tudo o que se refere ao corpo.

Considerando que os indivíduos são produzidos desde a mais tenra

infância, pela sociedade de controle e por sua ordem social normalizada por um

sistema de sexo/gênero heteronormativo, entende-se que a leitura de Foucault e

Butler remete-se à tese: discursos habitam corpos. Já pela perspectiva de

Pierre Bourdieu, o habitus de determinado grupo, como resultado histórico e

coletivo, individualiza-se em cada agente social.

Detemo-nos agora nos aspectos que concernem à elaboração de

condutas corporais produzidas por um universo simbólico marcado pela

(in)visibilidade das identidades. Tais aspectos compõem determinado perfil de

construção identitária que pode ser sintetizado em uma configuração de valor

que concatena quatro princípios ético-estéticos: o “assumir”, como estratégia

político-corporal de visibilidade de qualquer orientação sexual; o “ironizar”,

como a estratégia do exagero drag-queen/king, de sátira ao inalcançável ideal

de feminilidade/masculinidade; o “enrustir”, como estratégia político-corporal

de proteção/exclusão; e o “transviar”, como estratégia de reconstrução corporal

inteligível.

Tais princípios configuram os campos de força que atravessam os

processos de produção corporal, definindo leituras de mundo que se expressam

concretamente em condutas de valorização da singularidade individual e de

representação de valores coletivos: de afirmação de diferentes orientações do

desejo sexual como determinante de um estilo de vida; do exagero como

paródia da “normalidade”; da subordinação ao “armário” ou a uma “vida

dupla” como efeito normativo; da redefinição corporal-sexual como não

necessariamente ruptura à norma, nem tendo, em si mesma ou a priori, um

caráter contra-hegemônico de emancipação do sujeito.

As pessoas se enquadram em um determinado universo de valores que 3

encontram nos corpos uma “situação” privilegiada de reprodução da norma.

92

3 Termo que Judith Butler (2003, p. 27) toma emprestado de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, mas em uma direção diferente da fenomenologia. Como pontua na nota de rodapé de seu livro Problemas de Gênero, Butler critica a manutenção da “relação externa e dualística entre uma imaterialidade significante e a materialidade do próprio corpo” (p.217). Neste sentido, se o corpo é uma situação “não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais” (Butler, 2003, p. 27).

Page 93: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Portanto, é dentro desses marcos que devemos analisar os processos de

construção de identidades corporalmente vivenciadas. No âmbito das

experiências corporais – reguladas por certas disposições socioculturais acerca

de como se deve cuidar de si –, as construções identitárias são orientadas

discursivamente pela condução das condutas nos limites do inteligível. “A

alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; alma, prisão do corpo”

(FOUCAULT, 1997, p. 32). Nessa perspectiva, como destaca Judith Butler, a

constituição do sujeito depende da subordinação e da destruição do corpo. A

partir da dependência do outro que condiciona e sustenta o desejo de existir, o

sujeito se constitui reiteradamente ao longo da vida, por meio do cuidado de si

mesmo. A repetição é a forma de reinstalação do poder que submete o sujeito à

captura identitária, e o diálogo conceitual estabelecido, neste ensaio, entre

Michel Foucault e Judith Butler permite partir do pressuposto de que a

condição de assujeitamento possibilita a emergência do sujeito.

Nesse sentido, problematizam-se as estratégias pelas quais a

regulação social estabelece que o sujeito possa ser ou homem, ou mulher.

Como o sujeito somente pode emergir a partir da condição de assujeitamento,

passa a reconhecer-se, exclusivamente, em algum desses dois lugares. Assim,

ao se analisar o “transviar” como estratégia de reconstrução corporal

(in)inteligível, propõe-se a reflexão acerca de como, por exemplo, um corpo

travesti, ao mesmo tempo que metaforiza um desvio à norma, subordina-se a

ela, uma vez que traduz tanto certa resistência ao assujeitamento da cultura

que designa ao corpo do macho um gênero masculino quanto se submete a

certo assujeitamento à identidade de gênero feminino, sem romper com a

norma de gênero hierarquizada. São expressivas as experiências “transviadas”

que ancoram identidades de gênero a diferenças sexuais anatômicas,

reduzindo possibilidades de emergência de sujeitos contra-hegemônicos por

meio da reprodução dualista da constituição dos gêneros.

A estratégia político-corporal de proteção/exclusão aqui denominada

como “enrustir” também traduz esse paradoxo frente à norma. Assim como o

“assumir” implica estratégia político-corporal de visibilidade de qualquer

orientação sexual, o “enrustir” remete-se ao jogo entre fazer invisível ou deixar

visível alguma orientação do desejo sexual. Tanto um quanto outro, nos limites

desses termos, constituem-se no paradoxo da possibilidade de subversão e da

subordinação à norma. Nesse sentido, as proposições de Sedgwick (2007, p.

28-29) são esclarecedoras:

Acredito que todo um conjunto das posições mais cruciais

para a contestação do significado na cultura ocidental do

século XX está consequente e indelevelmente marcado pela

93Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 94: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

94

e s p e c i f i c i d a d e h i s t ó r i c a d a d e f i n i ç ã o

homossocial/homossexual, particularmente, mas não

exclusivamente, masculina, desde mais ou menos a virada

do século. Entre essas posições figuram, como já indiquei, os

pares segredo/revelação e privado/público. Ao lado desses

pares epistemologicamente carregados, e às vezes através

deles, condensados nas figuras do “armário” e do “assumir-

se”, essa crise específica de definição marcou por sua vez

outros pares tão básicos para a organização cultural

moderna, como masculino/feminino, maioria/minoria,

inocência/iniciação, natural/artificial, novo/velho,

crescimento/decadência, urbano/provinciano, saúde/doença,

mesmo/diferente, cognição/paranoia, arte/kitsch,

sinceridade/sentimentalidade e voluntariedade/dependência.

Tão espalhada tem sido a mancha dispersa da crise do

homo/heterossexual que discutir quaisquer desses índices

em qualquer contexto, sem uma análise anti-homofóbica,

acabaria, talvez, por perpetuar compulsões implícitas em

cada um deles sem o saber.

A reflexão da autora leva a pensar como a díade segredo/revelação é

constitutiva do que chamamos hoje homossexualidade. Se trouxermos à baila,

outra vez, a experiência travesti, constata-se que esta encena e revela a paródia

dos gêneros, uma vez que, não existindo uma origem ligada ao corpo biológico,

concebe-se a necessidade da destruição desse corpo, que, investido de poder,

dá condições à emergência de um sujeito.

Uma manifestação, até certo ponto, caricata dos aspectos que

concernem à elaboração de condutas corporais produzidas por um universo

simbólico marcado pela (in)visibilidade das identidades, contempla o

“ironizar” e sua estratégia do exagero e da sátira ao inalcançável ideal de

feminilidade/masculinidade. O carnaval, nesse contexto, representa certa

ironia com situações de transgressão da norma dentro dela mesma,

constituindo-se simultaneamente restritivo e liberador. Contudo, ironizar pode

tomar também um outro sentido mais estratégico, talvez no que se refere à

brincadeira e ao jogo com representações da natureza e do artifício,

desestabilizando a distinção entre falso e verdadeiro, entre corpos e

tecnologias, entre órgãos sexuais e práticas de sexo.

Nesse sentido, e sem alongar por mais tempo a explanação neste texto

ou propor qualquer aprofundamento necessário, aqui, vale destacar o debate

crítico que Beatriz Preciado estabelece com as proposições de Judith Butler,

como o lançado na entrevista concedida a Jesús Carrillo:

Page 95: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Los análisis queer ortodoxos en términos de género como

performance me parecen insuficientes para entender los

procesos de incorporación de sexo y de género. Al acentuar

la posibilidad de cruzar los géneros a través de la

performance teatral, Gender Trouble (1990), el texto

canónico de la teoría queer, habría subestimado los

procesos corporales y especialmente las transformaciones

sexuales presentes en los cuerpos transexuales y

transgenéricos, pero también las técnicas estandarizadas

de estabilización de género y de sexo que operan en los

cuerpos “normales”. Precisamente por ello, las primeras

críticas frente a esta formulación de identidad en términos

de parodia o drag surgieron desde las comunidades

transgenéricas y transexuales. Aunque es cierto que en sus

libros posteriores hasta llegar al más reciente – Undoing

Gender (2004) –, Judith Butler se ha esforzado por restituir

los “cuerpos” que habían quedado diluidos entre efectos

paródicos y performatividad linguística. [...] Podemos decir

que se han abierto al menos dos espacios de

conceptualización: uno dominado por nociones

performativas cuyo impacto ha sido de especial relevancia

en el ámbito estético, y otro de corte biopolítico, en el que se

perfila una nueva definición del cuerpo y de la vida. Lo que

la crítica transgenérica ha puesto sobre la mesa no so n

yaperformances, sino transformaciones corporales físicas,

sexuales, sociales y políticas que ocurren no en el escenario,

sino en el espacio público (CARRILLO, 2007, p. 381-382).

Uma dimensão do problema envolve a redução da cultura à mera

natureza performativa paródica da identidade de gênero, naquilo que Sedgwick

problematizou: certa incapacidade da formulação de identidade em termos de

paródia para explicar a produção da beleza, a economia do estilístico, o prazer

de inventar e criar estratégias de sobrevivência, que ocorrem em experiências

transexuais. A análise de Preciado (2011) acrescenta uma reflexão pertinente

com a inserção da análise da “sexopolítica”, retomando Foucault, para

investigar como

o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e

também os códigos da masculinidade e da feminilidade, as

identidades sexuais normais e desviantes) faz parte dos

cálculos do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e as

tecnologias de normalização das identidades sexuais um

agente de controle sobre a vida (PRECIADO, 2011, p. 11).

95Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 96: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

96

Considerações finais

A articulação conceitual dos três constructos teóricos trabalhados

neste ensaio permite problematizar contextos de (in)visibilidade das

identidades socialmente vividas, sem reduzir o indivíduo a um reprodutor das

estruturas sociais, tampouco à figura de um agente plenamente livre em suas

escolhas ou independente das contingências sociais. Desse modo, pode-se

conjeturar que a construção das identidades sexuais e de gênero,

corporalmente vivenciadas, processa essa capacidade performática de

produção de diferentes sentidos do mundo social e de diferentes práticas de si,

que se concatenam em determinados estilos de vida coletivos.

Assim, à guisa de conclusão, para além da prescrição

feminilidade/masculinidade, legítimo/ilegítimo, normal/anormal, comum à

estética dos corpos (nas roupas, nos gestos, nas práticas sexuais etc.), a

produção de corpos em meio às regularidades objetivas do sistema sexo/gênero

– heteronormativo e binário – tem como efeito a construção performativa e

cuidadosa de sujeitos, por si mesmos e pelos outros.

Page 97: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Referências

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97Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97

Page 98: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

98

Page 99: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

6

Luiz MelloProfessor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG)

Pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da [email protected]

Fátima FreitasPesquisadora do Ser-tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da UFG

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da [email protected]

Cláudio PedrosaProfessor do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO)

Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)[email protected]

Walderes BritoConsultor em relacionamento com stakeholders

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFGMestre em Comunicação pela UFG

[email protected]

Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas de educação para a população LGBT no Brasil

Beyond an anti-homofobic kit: public policies on education for the LGBT population in Brazil

Page 100: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

100

Resumo

A escola costuma ser um dos primeiros espaços onde pessoas que subvertem as normas

de gênero são humilhadas. Frequentemente, isso é reforçado pela LGBTfobia das/os

profissionais de ensino e/ou por sua falta de preparo para tomar os direitos sexuais como

tema motivador de processos educativos comprometidos com a equidade sexual e a

justiça erótica. Recentemente, políticas públicas começaram a ser implementadas para

superar esse quadro, na forma de ações como a oferta de cursos para professoras/es, a

confecção de material didático, a inclusão desse tema em conferências nacionais de

educação e semelhantes, entre outras iniciativas. Neste artigo, procuramos refletir sobre

os limites e as possibilidades dessas iniciativas a partir da análise de documentos

governamentais e de entrevistas com gestoras/es e representantes da sociedade civil.

Palavras-chave: Educação. LGBT. Políticas públicas. Cidadania. Sexualidades. Brasil.

Abstract

The school is generally one of the first places where people who subvert the gender rules

are humiliated. Frequently, this is enhanced by LGBTphobic education professionals

and/or their lack of preparation to adopt sexual rights as a motivational theme in

educational processes committed to sexual equity and erotic justice. Recently, public

policies started being implemented to overcome this situation, in the concrete form of

actions such as offering teacher training courses, developing didactic material, and

including this theme in national conferences on education and similar subjects, among

other initiatives. In this article, we aim at reflecting on the limitations and possibilities of

these initiatives, based on the analysis of governmental documents and interviews with

public sector managers and civil society representatives.

Key-words: Education. LGBT. Public policies. Citizenship. Sexualities. Brazil.

Page 101: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Notas metodológicas preliminares

Antes de iniciar o texto propriamente dito, queremos destacar três

opções teórico-metodológicas e políticas que pautaram a nossa escrita. Em

primeiro lugar, invertemos deliberadamente a regra gramatical que define o

masculino como elemento neutro e adotamos o feminino como referência

constante, independentemente do sexo dos sujeitos referidos. Adjetivos e

substantivos masculinos, em nossa convenção, passam a ser o termo

particular, usados apenas para se referir a pessoas do sexo masculino, quando

no singular. Provavelmente, o estranhamento inicial decorrente dessa

feminização da escrita e insurreição contra o androcentrismo linguístico

passará após algumas poucas páginas de leitura.

A segunda opção se materializa na utilização aleatória da ordem das

letras que compõem a sigla LGBT, a qual assume, nos textos aqui

apresentados, a forma GLBT, TLBG, BTGL e outras. Entendemos que os grupos

organizados de travestis, transexuais, lésbicas, gays e bissexuais no Brasil

passam por um momento de forte afirmação de suas demandas na arena

política, ao mesmo tempo que são aliados em permanente disputa identitária e

de poder, a despeito de se apresentarem e de serem socialmente vistos como

um movimento social unificado. Mais que privilegiar uma ordem fixa e rígida de

letras na sigla, o que poderia gerar o entendimento de que as demandas de uns

grupos são mais importantes ou prioritárias que as de outros, utilizamos o

conjunto de letras B, G, L e T em qualquer sequência, como marcador

identitário desse coletivo de grupos sociossexuais, sem que se estabeleçam

hierarquias ou subordinações entre eles. No caso de nomes de eventos,

documentos, grupos da sociedade civil ou órgãos de governo, a sigla será

sempre apresentada no formato utilizado pelas instâncias responsáveis.

Por fim, em vez de homofobia utilizamos nos textos a expressão

LGBTfobia – e suas variantes GLBTfobia, TLBGfobia, BTGLfobia, entre outras.

A intenção é explicitar que o preconceito, a discriminação, a intolerância e o

ódio que atingem travestis, transexuais, lésbicas, gays e bissexuais possuem

em comum o fato de esses segmentos sociais questionarem a ordem sexual e de

gênero de maneiras afins, mas diferentes. O que se pretende com essa opção é

sublinhar que a intolerância social em relação à homossexualidade masculina

(ideia implícita à noção de homofobia) não é da mesma ordem que a

intolerância que atinge lésbicas (oprimidas por uma lesbofobia que, além de

homofóbica, é machista e sexista), nem do repúdio que sistematicamente

atinge travestis e transexuais, cujas existências ferem de morte os binarismos

macho-fêmea, homem-mulher, o que as torna vítimas preferenciais do

101n. 07 | 2012 | p. 99-122

Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito

Page 102: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

terrorismo de gênero. Optamos por LGBTfobia (e variantes da sigla), ainda,

para evitar o uso repetitivo das expressões lesbofobia, transfobia, travestifobia,

gayfobia e bifobia, o que cansaria a leitora. Resta-nos dizer que a adoção do

sufixo “fobia” para caracterizar qualquer modalidade de preconceito e

discriminação sexual e de gênero parece-nos limitada, já que reforça um

discurso biológico e patologizante, quando se sabe que os fundamentos das

disputas de poder entre grupos diversos, inclusive sexuais, são claramente de

ordem social, política, cultural e econômica. Porém, essa discussão está além

dos objetivos que motivaram a produção deste paper e, na falta de alternativa

melhor, também recorremos à ideia de que a aversão e o ódio contra a

população LGBT possuem um componente fóbico. Manteremos o uso de

homofobia em vez de LGBTfobia e variantes sempre que a expressão integrar

nomes de eventos ou for referida em documentos citados e entrevistas

realizadas com gestoras e ativistas no contexto da pesquisa.

Além dessas notas preliminares e das breves considerações iniciais no

próximo tópico, este texto estrutura-se em duas outras seções. Na primeira, são

apresentadas ações do governo, na área da educação, voltadas ao combate à

LGBTfobia e à promoção da cidadania e dos direitos humanos da população

TGBL, já implementadas e em desenvolvimento, enquanto na segunda são

propostas algumas considerações de cunho analítico, na tentativa de ponderar

avanços, limites e impasses das discussões e práticas a respeito de pessoas

TBGL no espaço escolar.

Como educar quem educa?

Este texto tem como tema as políticas públicas de educação voltadas

para a população LGBT e reúne parte dos resultados dos projetos de pesquisa

“Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: um mapeamento crítico

preliminar” e “Políticas públicas para a população LGBTT: mapeamento de 1iniciativas exemplares para o estado de Goiás” , desenvolvidos no âmbito do

Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da

Universidade Federal de Goiás. Ao longo da pesquisa, foram aplicados

questionários e realizadas entrevistas com 52 gestoras públicas que atuam nas

esferas federal, estadual e municipal, em ministérios/secretarias que

desenvolvem ações/programas/projetos que buscam garantir a cidadania e os

direitos humanos de pessoas TLGB, assim como entrevistas com 43

102

1 Esses projetos contaram com o apoio financeiro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), respectivamente. O relatório das pesquisas está disponível em: <www.sertao.ufg.br/politicaslgbt>.

Page 103: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

representantes da sociedade civil que atuam na mesma área. Para o

mapeamento preliminar das políticas públicas voltadas para essa população,

foram priorizadas seis áreas de atuação governamental: educação, saúde,

segurança, trabalho, assistência social e previdência social. O levantamento de

dados foi realizado no Distrito Federal e em nove estados, distribuídos nas cinco

regiões geográficas do país: Amazonas, Ceará, Goiás, Pará, Paraná, Piauí, Rio

de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Das 52 gestoras entrevistadas, 16

estavam vinculadas a órgãos de políticas especificamente voltadas a pessoas

LGBT, como coordenadorias/coordenações/núcleos, nos três níveis de governo,

enquanto 36 representavam órgãos com atuação setorial em uma das áreas

privilegiadas na pesquisa. Desse total, dez eram gestoras vinculadas à área de

educação, sete das quais atuantes na esfera estadual e três, na federal.

Um dos conceitos que está na base da pesquisa é que o estudo das

políticas públicas constitui um campo de conhecimento que busca

compreender o “Estado em ação”, analisar essa ação e propor mudanças, caso

seja necessário – e possível (HOFLING, 2001; SOUZA, 2006). A partir daí,

podemos refletir sobre os diversos interesses em jogo na formulação,

implementação, monitoramento e avaliação dessas políticas. Somente quando

essas múltiplas esferas de ação são pensadas conjuntamente é possível

compreender os caminhos pelos quais as iniciativas saem – ou não – do papel e

como as pessoas, para quem as políticas foram pensadas, terão acesso a elas.

Nesse contexto, é também fundamental que o olhar alcance a complexa relação

entre governo e sociedade civil na negociação dessas políticas.

Para a análise das políticas públicas no foco deste texto, tomamos

como ponto de partida o conceito de educação, que consta no art. 1º da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996: “A educação abrange os

processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência

humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos

sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Em

outras palavras, a educação é uma área que perpassa toda a sociedade e que

não está restrita apenas à escola. Por questões metodológicas, entretanto,

nesta pesquisa, assim como na LDB (por outras motivações), o foco é a

educação escolar, envolvendo alunas, professoras, gestoras e comunidade.

Assumido esse enfoque escolar, buscamos, então, mapear ações e programas

promovidos pelo Ministério da Educação, geralmente por meio da Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e por secretarias

estaduais e municipais de educação que conduzem ou que participam de

políticas públicas para a população LGBT.

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Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito

Page 104: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A essa altura, alguns pressupostos que fundamentaram o

desenvolvimento de nossa pesquisa precisam ser explicitados, ainda que não

esgotem os argumentos metodológicos sobre a relevância deste estudo. Em

primeiro lugar, em consonância com a opção por enfatizar os processos

educacionais característicos da instituição escolar, entendemos que escola é

um espaço onde diversas concepções de mundo, ideologicamente

estruturadas, estão em disputa, não sendo apenas um aparelho do Estado,

reprodutor dos interesses da classe dominante (ALTHUSSER, 1985). Também

pensamos que a escola não é um lugar onde somente devam ser ensinados

conteúdos como matemática, ciências, português, mas onde se pode aprender

sobre cidadania bem como se pode exercitar a convivência e o respeito – e não

apenas a tolerância – à diferença. Enfim, consideramos a escola um espaço

profundamente significativo para a construção das subjetividades em nossa

sociedade. Em segundo lugar, entendemos a sexualidade como uma

construção social constitutiva da experiência humana, que em nossa sociedade

é elemento-chave para a formação das subjetividades. Desse modo, devido à

importância dos processos educacionais na construção das subjetividades, a

escola deve estar preparada também para orientar as alunas a viverem em um

mundo plural, onde práticas e desejos sexuais diferentes sejam possíveis e

igualmente respeitados.

Ainda como afirmação de uma posição ética, articulada a uma

preocupação técnica, apontamos a necessidade de capacitação para que

profissionais de educação e gestoras públicas possam/consigam lidar com a

diversidade – étnico-racial, religiosa e, especialmente, no âmbito da

sexualidade, entre outras –, pois uma constatação que surge na maioria

absoluta das entrevistas realizadas é que aquelas profissionais não estão

“preparadas” – qualificadas e sensibilizadas – para lidar com esses temas e por

isso se calam diante de tantos atos de preconceito e discriminação, como

afirma uma gestora federal:

Eu acho que entre os principais problemas reside mesmo a

sensibilidade e a qualificação dos profissionais, os gestores

de maneira geral pra atuarem nesse campo. Acho que é

necessário de uma maneira geral expandir essa discussão

tão importante que é o combate à homofobia pros

diferentes atores, ah... e gestores das políticas públicas [...]

Esse é um dos principais problemas, que é de fato a pouca

qualificação e pouca sensibilidade de alguns profissionais

pra estarem acolhendo essa demanda no processo de

formulação e de implementação das políticas públicas.

104

Page 105: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Saindo do armário e do papel

Na pesquisa, foram identificados dois cursos como instrumentos de

capacitação de professoras na temática em discussão, propostos pelo Governo

Federal em parceria com estados e municípios: Saúde e prevenção nas escolas

(SPE) e Gênero e diversidade na escola (GDE). Ambos passaram a ser ofertados

em 2006, último ano do primeiro mandato do presidente Lula. Se houve cursos

dessa natureza em anos anteriores, o silenciamento das pessoas entrevistadas

a respeito deles pode indicar baixo alcance, descontinuidade ou simples

inexistência.

O Saúde e prevenção nas escolas foi criado pelos Ministérios da

Educação e da Saúde, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Fundo das Nações Unidas para

a Infância (UNICEF) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O

projeto pretende integrar saúde e educação com o objetivo de “transformar os

contextos de vulnerabilidade que expõem adolescentes e jovens à infecção pelo

HIV e à aids, a outras doenças de transmissão sexual e à gravidez não

planejada” (BRASIL, 2006b, p. 17). Esse projeto é realizado conjuntamente

pelas secretarias estaduais/municipais de educação e saúde nos estados, por

meio da promoção de cursos de formação de profissionais nas escolas. O curso

é dividido em unidades e as unidades em oficinas. A despeito da forte ênfase

em questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, na unidade “A

sexualidade na vida humana”, há duas oficinas que tratam diretamente do

tema orientação sexual: “A orientação sexual do desejo” e “Homossexualidade

na escola”.

Além de uma gestora federal, gestoras de cinco das dez unidades da

federação pesquisadas mencionaram o projeto “Saúde e prevenção na escola”

entre as ações do governo que estão em desenvolvimento, embora uma das

entrevistadas tenha enfatizado o problema da escala dessa implementação:

Num primeiro momento foram abertas 600 vagas, mas

num universo de 70.000 professores, 600 vagas não faz

nem cócegas. Pra você ter cara de política pública tem que

ter um investimento do Governo Estadual de um lado, a

contrapartida, e investimento do Governo Federal no

sentido de ampliar a ação, já que é um curso a distância. Na

verdade é um curso semipresencial, tem 170 horas a

distância e 30 presenciais. Então, vai formar 1500

professores da rede estadual. E a contrapartida do estado

são as formações presenciais. A gente vai entrar com a

docência, que é feito pelos próprios militantes (teremos um

105n. 07 | 2012 | p. 99-122

Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito

Page 106: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

docente que é um professor transexual, outra, uma lésbica,

então são todos de caráter afirmativo, pessoas que não só

têm o conteúdo acadêmico, mas vivenciam as

experiências).

Já o curso Gênero e diversidade na escola: formação de

professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais

também foi ofertado pela primeira vez em 2006, como um projeto piloto

resultante da parceria entre a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

(SPM), o Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o British Council e o Centro Latino-

Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ), nas seguintes

cidades: Niterói e Nova Iguaçu/RJ, Maringá/PR, Dourados/MS, Porto Velho/RO

e Salvador/BA. O conjunto de conteúdos do curso, como seu próprio subtítulo

indica, aborda os temas gênero, sexualidades e relações étnico-raciais e tem

como objetivo principal contribuir para a formação continuada de profissionais

de educação da rede pública de ensino acerca dessas três questões, tratadas

articuladamente. O curso faz parte da modalidade semipresencial, com carga

horária de 200 horas – destas, 24 são presencias e 176 a distância –, e tem em

sua estrutura unidades que abordam “Sexualidade, direitos e educação” e

“Sexualidade no cotidiano escolar”.

Em 2008, o projeto foi ampliado, a partir de parceria com a Rede de

Educação para a Diversidade, que reúne várias instituições públicas de

educação superior dedicadas à formação continuada semipresencial. Foram

selecionadas 19 instituições de ensino superior que passaram a oferecer

formação nessa modalidade, totalizando 13.000 vagas e um investimento de

aproximadamente R$ 9.000.000,00. Em 2009, o Ministério da Educação

abriu edital para universidades que tivessem interesse em disponibilizar o

curso, o qual passou a ser ofertado como extensão (carga horária de 200 horas)

e também como especialização (380 horas). Foram selecionadas as propostas

de mais nove IES, que ofereceram cerca de 6.500 vagas, com um investimento

de aproximadamente R$ 5.000.000,00. Em 2010, o GDE também foi

ofertado como curso de extensão e especialização, por nove IES, 2correspondendo a 3.500 vagas .

Nas entrevistas, esse curso foi comentado por gestoras e ativistas de

quatro das dez unidades da federação entrevistadas, com destaque para o

106

2 Para informações sobre as iniciativas do Ministério da Educação relativas ao combate à LGBTfobia, ver Relatório de Monitoramento das Ações do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – PNPCDH-LGBT.

Page 107: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

alcance de número relativamente alto de professoras e para o fato de ser uma

ação conjunta entre órgãos e instâncias de governo, oferecendo formação em

gênero e sexualidade para um público variado. Nas palavras de uma gestora e

de uma representante da sociedade civil entrevistadas:

Temos parceria com a Rede Nacional de Jovens Vivendo e

Convivendo com HIV/Aids. Então eles estão formulando uns

projetos pra serem implementados nas escolas em termos

de prevenção de DST/aids e de forma a tentar diminuir a

discriminação. Por exemplo, o grupo tá participando agora

de um curso que é “Gênero e diversidade na escola”, que

também envolve essa questão de estar diminuindo nas

escolas esse impacto da discriminação.

Na área da educação, nós estamos envolvidos num projeto

que articula governo estadual e governo federal, né? Que é o

“Gênero e diversidade na escola”. A gente desenvolveu

esse, esse projeto, todo esse conteúdo, é um curso online,

né? Foi desenvolvido numa interlocução a pedido da

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, mas já

uma articulação com a SEPPIR e com o MEC. Esse curso foi

desenvolvido em 2006, foi testado um projeto piloto em

seis capitais e depois a gente revisou o material, os

conteúdos. Aí o MEC incorporou esse curso na Universidade

Aberta do Brasil, na UAB, e abriu para universidades

brasileiras, né?

Além dos cursos, especialmente a partir de 2007, o Governo Federal

também estimulou a discussão sobre enfrentamento do preconceito e da

discriminação relativos à orientação sexual e à identidade de gênero na escola

por meio da publicação de livros a respeito dessa temática. Um dos principais

materiais identificados nesta pesquisa é o volume dos Cadernos Secad,

intitulado Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e

superar preconceitos. Produzida em 2007, a publicação faz parte de um

conjunto de Cadernos elaborado pela Secad para documentar as políticas

públicas que o MEC vem realizando em diversos âmbitos, como educação no

campo e educação ambiental, por exemplo. No subtítulo Marcos

institucionais, são apresentadas a discussão conceitual dos temas e a

legislação relacionada – incluindo o PNDH II e o Brasil sem Homofobia (BSH).

Em Gênero e diversidade na educação: diagnóstico, são registrados resultados

de pesquisas que mostram a necessidade de se desenvolver políticas públicas

em educação para o enfrentamento da discriminação de gênero e para a

orientação sexual na escola. Já no subtítulo Gênero e diversidade na educação:

políticas públicas, afirma-se:

107n. 07 | 2012 | p. 99-122

Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito

Page 108: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Considerando os planos de ação já existentes – Plano

Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) e Programa

Brasil sem Homofobia (BSH) – a tarefa do Ministério da

Educação é fazer com que a sua implementação, a médio e

longo prazos, promova o enraizamento dessa agenda de

enfrentamento ao sexismo e à homofobia nos sistemas de

ensino e na sociedade. No curto prazo, é indispensável

atuar, de forma coerente e consistente, sobre as ações já em

curso, visando a superar concepções limitadoras em que

corpos, sexualidades, gêneros e identidades são pensadas a

partir de pressupostos disciplinadores heteronormativos e

essencialistas (BRASIL, 2007, p. 35).

Por fim, em Programas, projetos e ações, aparecem em destaque

algumas iniciativas da Secad que contribuem para promover direitos humanos

e cidadania para mulheres e população LGBT, tais como: o curso “Gênero e

diversidade na escola”, mencionado anteriormente, e o “Prêmio Construindo a

Igualdade de Gênero”. Esse prêmio integra o Programa Mulher e Ciência, que

está em sua 6ª edição, e foi criado pela Secretaria de Políticas para as

Mulheres, da Presidência da República (SPM/PR), com o objetivo de “estimular

a produção científica e a reflexão acerca das relações de gênero, mulheres e

feminismos no País e de promover a participação das mulheres no campo das

ciências e em carreiras acadêmicas” (BRASIL, 2007, p. 67).

O “Relatório de Monitoramento das Ações do Plano Nacional de

Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Travestis e Transexuais”, produzido pela SDH e divulgado em julho de 2010,

traz dados atualizados sobre o investimento financeiro no âmbito do Prêmio

Construindo a Igualdade de Gênero: da 1ª à 4ª edição, R$ 233.000,00 por ano

(concurso de redações para estudantes do ensino médio e artigos científicos de

graduandos, graduados, especialistas, mestrandos, mestres e doutorandos);

na 5ª edição, R$ 249.500,00 (mantidos os concursos anteriores e criada a

categoria Escola Promotora da Igualdade de Gênero, com o objetivo fomentar

projetos comprometidos com a igualdade de gênero – premiada uma escola por

região); e na 6ª edição, R$ 506.400,00 (com a inovação de se premiar, na

categoria Escola Promotora da Igualdade de Gênero, uma escola por unidade

da federação).

Ainda como indicador de reconhecimento por parte do Estado da

relevância da ampliação do debate sobre diversidade – pensada numa

perspectiva abrangente, que envolve diversos grupos subalternizados –, o

Ministério da Educação, por meio da Secad, tem promovido a publicação de

108

Page 109: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

livros como os de Ramos (2003), Teles e Franco (2006) e Hernaiz (2007),

além de outros dois que tratam especificamente dos temas homofobia e

diversidade escolar (ABRAMOVAY; ANDRADE; ESTEVES, 2007; JUNQUEIRA,

2009a). A mesma Secad também lançou editais – sobretudo por meio da 3Universidade Aberta do Brasil – dirigidos a universidades onde haja grupos de

pesquisadoras dispostas a promover, em seus estados, cursos de extensão

direcionados a profissionais de educação, que tratem dos temas gênero,

diversidade sexual e relações étnico-raciais.

Por outro lado, diversas organizações não governamentais, muitas

vezes com recursos originários de parcerias com os governos federal, estaduais

e municipais, também produzem material pedagógico dirigido a adolescentes,

professoras e pais-mães, que trata de temas relacionados ao combate à

TGBLfobia e à promoção do respeito à diversidade sexual e a como a família e a

escola podem contribuir para que adolescentes não heterossexuais e rebeldes

em relação aos estereótipos de gênero vivam com menos culpa e mais prazer,

preparadas para enfrentar as situações de preconceito e discriminação. Essas

publicações relacionam os temas combate ao preconceito e respeito e

promoção da cidadania com informações sobre desejos, conhecimento do

corpo e prevenção às DST/aids, a exemplo de Jesus et al. (2006), Kamel e

Pimenta (2008), Pedrosa e Castro (2008) e Penalvo e Bernardes (2009). Além

disso, muitas ativistas do movimento LGBT recorrentemente são convidadas a

participar de, ou mesmo organizar, grande parte das ações promovidas por

secretarias de educação estaduais e municipais relacionadas ao combate à

GTBLfobia e à promoção da cidadania, especialmente tendo em vista a escassa

presença de gestoras capacitadas, em todas as esferas de governo, a

desenvolver iniciativas que contemplem tais temas. Como afirma uma ativista

entrevistada:

A grande maioria das ONGs virou prestador de serviços do

Estado, né? Está sendo engolido pelo sistema, inclusive daí

fica com dificuldades de fazer a crítica e de apontar, porque

acaba sendo um, mais uma instância. Mas só que é

desigual essa participação, digamos assim, e a

responsabilidade fica a cargo da sociedade civil.

Todavia, uma preocupação que esse tipo de iniciativa desperta é: em

que medida organizações da sociedade civil têm assumido para si a execução

3 Segundo informações do portal UAB/CAPES: “A Universidade Aberta do Brasil é um sistema integrado por universidades públicas que oferecem cursos de nível superior para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária, por meio do uso da metodologia da educação à distância”. O Manual operacional da Rede de Educação para a Diversidade explica como funcionam esses cursos.

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de atribuições que são do governo (tais como distribuir preservativos ou educar

profissionais de educação para lidar com adolescentes LGBT)? Afinal, a frente

prioritária de atuação de qualquer movimento social talvez ainda seja a de

cobrar/monitorar (ou, numa linguagem mais tecnocrática, “fazer o controle

social”) as ações do governo e não atuar como um “prestador de serviços”, haja

vista os riscos de que ativistas e seus grupos assumam uma posição de

subordinação diante do governo, em face das relações de dependência,

inclusive financeira e político-partidária, que se estabelecem.

A respeito da produção de materiais didáticos, é importante registrar

que as pessoas entrevistadas fizeram pouca menção, exceto uma gestora

federal, que mencionou a existência de editais orientados pelo Plano Nacional

de Direitos Humanos e Cidadania LGBT, e outra gestora também federal, que

fez algumas considerações críticas sobre o tema, a partir de uma pergunta

integrante do questionário da pesquisa relativa à existência de “monitoramento

e revisão dos livros escolares didáticos, manuais escolares e programas

educativos visando a eliminar estereótipos”:

Não existe monitoramento. [...] o que existe é antes; não é o

monitoramento a posteriori. O que existe é a análise

preliminar do material. [...] Agora, a pesquisa da Débora

Diniz e da Tatiana [Lionço], a partir dos materiais

aprovados no âmbito nacional, do livro didático, elas

conseguiram verificar, elas verificaram que não há

homofobia explícita, propaganda homofóbica, não é nada

disso. [...] Porém, existe todo um silêncio acerca da

diversidade sexual, então se isso também não for

homofobia...

Um passo qualitativamente superior à promoção episódica de cursos

de capacitação e da publicação pontual de materiais a respeito da proteção de

direitos da população LGBT no espaço da escola foi dado a partir de 2008 com

a realização da Conferência Nacional de Educação Básica (2008), da

Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais

(2008) e da Conferência Nacional de Educação (2010). O que muda com

essas iniciativas é, principalmente, a criação de um espaço plural para o debate

envolvendo não apenas os setores do governo mas também as pessoas afetadas

pela questão, por meio de representantes da sociedade civil.

A Conferência Nacional de Educação Básica ocorreu em abril de 2008

e contou com delegadas de todos os estados e do Distrito Federal,

representando gestoras, grupos da sociedade civil, profissionais de educação e

pais-mães de alunas. O tema central foi Construção do Sistema Nacional

110

Page 111: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Articulado de Educação e as discussões estiveram estruturadas a partir de

cinco eixos temáticos, sendo o que mais nos interessa aqui o IV – Inclusão e

Diversidade na Educação Básica, no qual são apresentadas propostas relativas

aos temas educação e afrodescendência, educação indígena, educação

especial e diversidade sexual. Especificamente em relação ao tema diversidade

sexual, são apresentadas cinco ações para as políticas de educação, com

destaque para 1) combate à linguagem sexista, homofóbica e discriminatória

nos livros didáticos e paradidáticos; 2) promoção de cultura de reconhecimento

da diversidade sexual e de gênero no cotidiano escolar; 3) inserção dos estudos

de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.

A Conferência Nacional LGBT foi realizada em junho de 2008, com a

presença de 1.118 participantes, sendo 569 delegadas representantes do

poder público e da sociedade civil, 108 convidadas e 441 observadoras

(BRASIL, 2008a, p. 313-314). Como resultado de um grupo de trabalho

composto por 102 participantes, foram aprovadas na Plenária Final da

Conferência 60 deliberações relativas ao eixo “educação”, versando sobre

temas como o fomento à pesquisa e à produção de materiais didáticos e

paradidáticos que promovam o reconhecimento e o respeito à diversidade

sexual e identidade de gênero bem como a criação de coordenadorias

específicas para LGBT nos diversos órgãos e instâncias do Ministério da

Educação, entre muitos outros.

Já a Conferência Nacional de Educação foi realizada entre 28 de

março e 1º de abril de 2010, em Brasília, e teve como tema Construindo o

Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação:

Diretrizes e Estratégias de Ação. Um de seus objetivos principais está

relacionado à formulação do novo Plano Nacional de Educação, como se

observa abaixo:

Espera-se que sua ampla divulgação, disseminação e

debate possam servir de referencial e subsídio efetivo para

a construção do novo Plano Nacional de Educação (2011-

2020) e para o estabelecimento, consolidação e avanço

das políticas de educação e gestão que dele resultarem em

políticas de Estado (BRASIL, 2010, p. 11).

O que mais nos interessa nesse documento é o Eixo VI – Justiça Social,

Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade, do qual faz parte o

tema gênero e diversidade sexual, contemplado em 25 deliberações – número

bem ampliado se comparado às cinco propostas referidas anteriormente e que

integram o documento final da Conferência de Educação Básica, realizada em

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2008. Seguramente, a participação de ativistas e educadoras LGBT na

Conferência Nacional de Educação e sua capacidade de articulação com

representantes de outros segmentos sociais foram determinantes para a

aprovação desse número de propostas, entre as quais quatro são

particularmente relevantes, a saber: 1) introdução e garantia da discussão de

gênero e diversidade sexual na política de valorização e formação inicial e

continuada dos/das profissionais da educação; 2) construção de uma proposta

pedagógica sobre gênero e diversidade sexual para nortear o trabalho na rede

escolar de ensino; 3) garantia de que o MEC assegure os recursos financeiros

necessários à implementação do Projeto Escola sem Homofobia em toda a rede

de ensino e das ações relativas à educação previstas no Plano Nacional de

Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT; e 4) criação de grupos de

trabalhos permanentes nos órgãos gestores da educação dos diversos sistemas,

para discutir, propor e avaliar políticas educacionais para a diversidade sexual e

relações de gênero, compostos por representantes do poder público e da

sociedade civil.

Apreciações sobre o dito e sobre o silenciado

Considerando o reduzido número de gestoras entrevistadas no

contexto da pesquisa e em especial o fato de que apenas dez são vinculadas a

órgãos especializados na área de educação, queremos destacar que a breve

análise apresentada a seguir não tem pretensões de caráter generalizante, mas

pode oferecer sinalizações sobre prioridades, desafios e problemas

enfrentados.

Ao passarmos em revista os documentos de domínio público relativos

à população GBLT na política educacional, podemos nos apropriar melhor do

panorama que se oferece a quem procura entender a relação entre as

demandas dessa população e as políticas públicas na área de educação. Em

primeiro lugar, destaca-se a evidência da preocupação tardia com a questão.

Observando que a homossexualidade se colocou como problema social para o

poder público no Brasil desde antes da década de 1930 (TREVISAN, 2000) e

considerando também que o Estado brasileiro, desde essa mesma época, inicia

seu projeto de modernização da educação (SHIROMA; MORAES;

EVANGELISTA, 2007), é de se lamentar que as medidas higienistas de

combate aos homossexuais, empreendidas desde antes do integralismo de

Getúlio Vargas, chegando à modernização de Juscelino Kubitscheck

(LACERDA, 2005), tenham sido as únicas respostas oficiais do Estado para

essa questão social por muitas décadas. A perspectiva de inclusão dessa

Page 113: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

população como público de políticas educacionais é um evento dos primeiros

anos deste século 21, ainda em vias iniciais de implementação.

Com a breve caracterização de ordem geral que fizemos de

documentos que mais ou menos explicitamente apresentam parâmetros,

princípios, diretrizes, eixos, estratégias e ações para lidar com questões

relativas à educação, combate à TLGBfobia e promoção de uma cultura de

respeito à diversidade sexual, objetivamos provocar a reflexão sobre como

essas temáticas vêm sendo tratadas pelo Governo Federal ao longo dos últimos

25 anos, ao menos no “papel”. Aqui, vale a pena insistir, porém, na tese de que

na prática a teoria é outra, já que, como diz Junqueira (2009b), muitas são as

estratégias adotadas por gestoras para desviar-nos (ou se desviarem) da

abordagem da questão da diversidade sexual na educação, entre as quais se

destacam: a “concordância infrutífera”, que interrompe a conversação, mas

“não desdobra nenhuma medida efetiva”; a “hierarquização”, que estabelece

que todas as outras demandas – tais como analfabetismo, evasão escolar,

racismo – devem ser resolvidas primeiro, antes de se tratar do assunto; e

(talvez) a estratégia mais conhecida por nós: a “negação”, que invisibiliza a

existência da TBGLfobia e/ou de pessoas gays/lésbicas/travestis/transexuais

nos espaços escolares. Ao longo das entrevistas realizadas no contexto da

pesquisa, encontramos os mais diversos discursos por parte das gestoras – dos

mais bem-intencionados, mas que não contam com apoio e dotação

orçamentária, aos que acreditam que devem atender toda a população

(políticas universalistas) e não criar políticas “específicas”.

Também não se deve esquecer que as gestoras envolvidas com a

formulação de políticas públicas, geralmente atuantes na esfera do Governo

Federal, nem sempre estão em contato direto com as responsáveis por sua

execução, nos âmbitos dos estados e dos municípios. Muitas vezes não se sabe,

portanto, como as diretrizes propostas são materializadas no contato direto

com alunas, pais-mães, professoras e outras profissionais da educação. No

caso específico do Ministério da Educação, algo que se observa é a ausência de

informações relativas à efetividade das políticas propostas, dado que a maior

parte de sua atuação restringe-se à esfera da formulação. Nas palavras de uma

gestora entrevistada:

A agenda LGBT e a agenda de promoção do

reconhecimento da diversidade sexual exigem um

comprometimento das diferentes instâncias de formulação

de política educacional. Quando a gente pensa no

Ministério da Educação, você tem essa atribuição, é, de

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coordenação, de indução, de estabelecimento de

incentivos, de diretrizes.

Um olhar mais detido sobre o fenômeno recente da multiplicação de

iniciativas estaduais e municipais voltadas para o combate à evasão escolar de

travestis e transexuais talvez seja ilustrativo dessa falta de articulação entre as

ações implementadas nas distintas esferas de governo.

Do ponto de vista dos projetos de capacitação de professoras e

publicações acima apresentadas, vale registrar que eles foram recorrentemente

mencionados pelas gestoras entrevistadas, tanto no âmbito estadual quanto no

federal, como iniciativas que estavam sendo implementadas e por meio das

quais os debates sobre gênero e sexualidade começaram a chegar às escolas.

Nas palavras de uma gestora federal e outra estadual, respectivamente:

Por exemplo, no ano passado, no “Gênero e Diversidade na

Escola”, que é a formação que a gente faz com esses temas,

nós tivemos cerca de 13 mil professores envolvidos, só

nessa formação, e esse ano a gente tem muito mais.

[...] a gente tem já há alguns, há uns cinco anos,

participado do “Saúde e Prevenção nas Escolas”, em

parceria com a Secretaria da Saúde. [...] É um projeto que

faz parte de um programa, é... Federal, né, que tá voltado

para uma política, a implantação de uma política de saúde

de adolescentes, né?

O fato de esses projetos serem citados no âmbito da atuação nos

estados nos faz pensar que eles, ainda que embrionariamente, saíram da esfera

restrita de formulação do Governo Federal e começaram a alcançar as

populações-alvo. Se as secretarias de educação, em alguns casos, em parceria

com as de saúde, estão conseguindo iniciar um processo de capacitação de

suas profissionais, isso aumenta as chances de que estas reflitam sobre sua

prática profissional e tentem redefini-la numa perspectiva menos machista e

BGTLfóbica, contribuindo para que as escolas se tornem um ambiente menos

discriminatório e preconceituoso para todas aquelas que vivenciam outras

formas de sexualidades e identidades de gênero, não restritas ao universo da

norma heterossexual. Não há dúvida, porém, de que dois desafios são centrais

nesse processo: a desvinculação das abordagens sobre gênero e sexualidade do

âmbito da saúde reprodutiva e o enfrentamento do próprio preconceito e

machismo/BLTGfobia das profissionais de educação.

A respeito das ações do governo mais destacadas pelas entrevistadas,

chamam nossa atenção aquelas relacionadas a temas como promoção de

Page 115: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

seminários e cursos de capacitação e combate a práticas discriminatórias e

preconceituosas no ambiente escolar. Um olhar sobre as ações que mais estão

sendo realizadas pelas secretarias/ministérios nos permitiu notar que a maioria

delas parece incidir principalmente sobre as representações sociais em torno da

população LGBT. Ações como seminário, debates e capacitações costumam ter

um caráter menos interventivo e mais preventivo, contribuindo para a

modelagem de novas formas de entender ou conceituar um problema – isso

talvez seja menos óbvio no caso da ação “Celebração de acordos de cooperação

técnica para implementação de ações de promoção de direitos…”. No conjunto,

porém, mantém-se o viés preventivista, muitas vezes com poucos resultados

imediatos, quando muito, influenciando apenas a dimensão intelectual do

problema, sem promover grandes mudanças nas práticas e nos afetos.

Além disso, esse tipo de ação se caracteriza, sobretudo, por seu

caráter pontual: “Realização de debates, seminários e cursos”, “Realização de

cursos de capacitação e formação”, “Realização de cursos de qualificação”,

atividades que não pressupõem uma continuidade, são de curto prazo, não

conseguem mudar a estrutura e a LBTGfobia institucional que caracterizam em

nível profundo o sistema educacional brasileiro. Para a maioria dessas ações,

não há planejamento, monitoramento e avaliação, encerrando-se em si

mesmas e renovando-se com uma frequência que depende mais da boa

vontade das gestoras, da pressão da sociedade civil e do repasse eventual de

recursos para os níveis estadual e municipal por parte do Ministério da

Educação. Note-se como ações que pressuporiam um trabalho de

planejamento e execução mais de médio-longo prazo, atingindo o núcleo duro

da TBGLfobia escolar, não são sinalizadas como prioritárias no âmbito dos

órgãos das gestoras entrevistadas, a exemplo de “Reformulação dos currículos

escolares visando à atualização de conteúdos que trabalhem as questões de

gênero e sexualidade nos diferentes níveis da formação escolar”,

“Monitoramento e revisão dos livros didáticos, manuais escolares e programas

educativos, visando eliminar estereótipos, preconceitos e discriminações de

gênero, orientação sexual, raciais nas escolas” e “Compra e distribuição de

material didático-pedagógico sobre a temática LGBT para a rede

municipal/estadual de ensino”.

Um terceiro aspecto dessas ações pode ser inferido com alguma

margem de segurança a partir das entrevistas com gestoras e ativistas. A

maioria das ações é realizada a partir da iniciativa de “indivíduos”

pessoalmente compromissados com o combate à BLGTfobia, vinculadas ao

governo, às universidades e ao próprio movimento LGBT, e não enquanto uma

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política de Estado, o qual muitas vezes reduz sua atuação à esfera do

financiamento de iniciativas isoladas. Sobre esse tema, vejamos o relato de

uma ativista entrevistada:

[...] em relação à educação, eu diria que as ações e

programas são quase zero, tanto em nível federal, como

estadual, como municipal. O que existe são ações de ONGs

que incidem, sobre, tanto o MEC, como a Secretaria

Estadual e Municipal de Educação e que pontualmente

realizaram algumas ações, né? Mas nenhuma dessas ações

são, têm sido suficientes pra mudar, é... ou pelo menos

tentar mudar, né, a percepção de preconceito, discriminação

nesse país e tampouco mudar a incidência sobre, né,

incidência não, mas mudar o perfil homofóbico desse país,

né? Eu acho que a educação ainda deixa muito a desejar.

A preocupação com a sensibilização de profissionais da educação para

o combate à TGBLfobia no ambiente escolar é um dos temas mais recorrentes

nos planos, programas e demais documentos que indicam diretrizes, objetivos

e ações relativos a esses segmentos, seja os de caráter geral, como o Plano

Nacional LGBT e o Programa Nacional de Direitos Humanos 2 e 3, seja os

documentos específicos do âmbito da educação, como os referentes à

Conferência Nacional de Educação Básica e à Conferência Nacional de

Educação. Todavia, quando se observa o número de ações de qualificação de

professoras efetivamente mencionadas pelas gestoras que responderam

questionários da pesquisa, o que se verifica é que ainda há muito por fazer, já

que o total de iniciativas e o público alcançado ainda são muito pouco

significativos.

Essa falta de sensibilização das profissionais de educação e das

próprias gestoras para lidar com o combate à discriminação e ao preconceito,

que atingem estudantes que não se conformam aos parâmetros da

heterossexualidade compulsória, está entre os desafios apontados tanto por

gestoras quanto por ativistas para a implementação de políticas públicas para

TLGB na área de educação. A discussão de questões relativas a esse tema

muitas vezes é considerada secundária. Nem todas as pessoas julgam o tema

relevante, frequentemente o evitam e, portanto, continuam a se calar, sendo

não raro protagonistas ou cúmplices na reprodução do preconceito. Mesmo

num nível mais institucional, essa resistência também se faz presente, como

afirma uma ativista entrevistada, e não apenas no âmbito da educação:

A maioria dos ministérios foi muito difícil de trabalhar. A

educação até hoje, a educação [Ministério da] é uma porta

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fechada. O Itamaraty é uma porta fechada, sabe? Você vê

que a gente fala da dotação orçamentária, mas o

planejamento [Ministério do] é uma porta fechada, sabe?

Outro aspecto destacado por entrevistadas, sejam do governo, sejam

da sociedade civil, é o fundamentalismo religioso, que dificulta a

implementação de projetos, obstaculiza a realização de debates e evita que

essas discussões saiam do papel, como afirma uma gestora entrevistada:

Embora a Constituição diga que o Estado é laico, o servidor

não é laico. Então, quando a gente fala assim “Ah, mas nada

caminha na educação?”. Caminha, só que se de repente

você pega uma diretora de ensino que quer fazer caminhar e

ela pega uma diretora de escola que é de alguma religião

mais conservadora aquela escola não anda.

Uma dificuldade frequentemente citada tanto por gestoras quanto por

ativistas é sobre como fazer essas políticas saírem do papel. Primeiro se luta

muito para ter leis, portarias, resoluções, decretos, programas, planos e projeto

que proponham estratégias de punição da discriminação, que assegurem a

travestis e transexuais o uso de nome social nas escolas, que garantam o

respeito à diversidade, que se comprometam com as demandas da população

LGBT. O outro passo então é fazer com que essas propostas e políticas cheguem

até as pessoas, fazer com que cheguem aos estados e municípios, pois na

verdade já existem muitos “papéis”, que contraditoriamente também podem

ser usados para silenciar as demandas da sociedade civil, embora produzam

mudanças de pequeno alcance nas vidas concretas das pessoas reais, vítimas

de discriminação e preconceito, como afirma uma ativista:

O Brasil Sem Homofobia virou nada e o Plano de Direitos

Humanos, então, vai virar nada. [...] Um é o cala a boca do

outro, é uma tentativa de que a sociedade civil não cobrasse

que o outro não foi feito. Essa é a relação dos dois. O Plano

Nacional de, o Programa Nacional LGBT foi uma estratégia

do governo para calar a nossa boca, pra parar de cobrar o

Brasil Sem Homofobia. É isso.

Entre as conquistas específicas na área de educação apontadas pelas

entrevistadas, destacam-se as portarias e resoluções que tratam da inclusão do

direito ao uso de nome social por travestis e transexuais na escola e alguns

pareceres e diretrizes que dão um indicativo nessa mesma direção. Foram

também reconhecidas como importantes, embora incipientes, as capacitações

já realizadas com profissionais de educação e os editais que o MEC divulgou

destinados à promoção de ações educacionais de combate à LTBGfobia. Por

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fim, há uma tendência geral de se dizer que o diálogo entre governo e sociedade

civil tem se ampliado, embora as gestoras sejam mais otimistas que as ativistas

quando se reportam aos limites e às possibilidades dessa interlocução.

De qualquer maneira, consideramos significativa a realização das

Conferências Nacionais de diversos setores, precedidas por conferências

estaduais, compostas por representantes de amplos setores do governo e da

sociedade civil. Mesmo que as propostas aprovadas nessas conferências nem

sempre se tornem norma legal e, principalmente, nem sempre sejam

concretizadas, ainda assim são espaços importantes para o debate do tema e

para a negociação de propostas na direção do enfrentamento ou pelo menos na

caracterização dos problemas.

Nesse sentido, outro aspecto a destacarmos diz respeito à

importância da perspectiva dos Direitos Humanos para a inclusão da pauta

LGBT no âmbito educacional. A maioria das ações identificadas nesta pesquisa

é derivada de interlocução entre a área de Direitos Humanos e a de educação, a

qual se constrói em decorrência da pressão social exercida por ativistas BTLG e

gestoras da educação pessoalmente identificadas com o combate à BTGLfobia.

Esse aspecto sugere que o campo da educação, ainda que seja permeável à

inserção dos debates sobre direitos humanos, tem sido pouco acolhedor das

demandas da população GTLB, quando se pensa numa escala que atinja a

maior parte do sistema educacional do país. Ressaltamos daí, mais uma vez, a

importância das conferências municipais, estaduais e nacional LGBT e de

educação para o fortalecimento de uma interlocução mais direta com o Estado,

para além da tutela dos órgãos de Direitos Humanos.

Além da efetivação de leis, decretos e portarias que garantam o

respeito e a não discriminação no âmbito escolar (e em todos os espaços) de

alunas TLBG, somente podemos desejar e exigir que existam cada vez mais

editais de fomento a pesquisas sobre relações de gênero e sexualidades, mais

cursos de capacitação para profissionais de educação, saúde, segurança etc.,

maior produção de materiais didáticos que tenham a inclusão das diversidades

(e a visibilidade das diversas conjugalidades, parentalidades, afetos, desejos,

carinhos) como pautas e esperar que, com as mudanças que o movimento

LBGT fomenta, o espaço escolar seja cada vez mais democrático, divertido,

acolhedor e educativo, ensinando sobre diversidade e respeito em vez de

continuar sendo um espaço opressivo, humilhante e degradante para as alunas

que afrontam a heteronormatividade dominante.

Entretanto, não há dúvida de que o desafio é grande. Recentemente,

por exemplo, ganhou a cena nacional a notícia de que o Ministério da Educação

Page 119: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

começaria a distribuir, para seis mil escolas de ensino médio da rede pública,

material educativo conhecido como “kits educativos anti-homofobia”,

integrante do Projeto Escola sem Homofobia, composto de um caderno, uma

série de seis boletins, três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz e

uma carta de apresentação para gestoras e educadoras. Esse material foi

financiado pelo MEC e executado em parceria com as ONGs Pathfinder do

Brasil; Reprolatina – Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva; e

ECOS – Centro de Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução

Humana (São Paulo); bem como com o apoio da Associação Brasileira de

Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e da Global

Aliance for LGBT Education (GALE).

Tal proposta encontrou forte resistência de parlamentares vinculados

a grupos GTBLfóbicos e de fundamentalistas religiosos, que tentaram por

meios diversos impedir a distribuição nas escolas do referido material, sob o

argumento de que ele seria uma “apologia ao homossexualismo entre jovens” e

estimularia a pedofilia. Por outro lado, várias organizações manifestaram-se

favoravelmente ao reconhecimento da adequação da proposta pedagógica do

Projeto Escola sem Homofobia, tendo em vista a relevância do enfrentamento

da BLTGfobia no espaço escolar e a adequação do material proposto às faixas

etárias e de desenvolvimento afetivo-cognitivo a que se destina. Entre essas

organizações, destacam-se o Conselho Federal de Psicologia, o Programa

Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e a representação da

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(UNESCO) no Brasil. Tal conflito de interesses e disputas ideológicas somente

mostra como a falta de um arcabouço legal de proibição explícita da

discriminação por orientação sexual e identidade de gênero bem como a

garantia de cidadania plena e direitos humanos da população TLGB ainda fere

de morte muitas das ações, projetos e programas que integram políticas

públicas propostas pelo Governo Federal, no sentido da promoção de uma

sociedade que não trate os que não se enquadram nos limites da norma 4heterossexual como párias e escória em seu próprio país .

4 A reação da Presidenta Dilma Rousseff foi particularmente preocupante, já que determinou, em maio de 2011, a suspensão da distribuição do kit anti-homofobia, mesmo antes de consultar Fernando Haddad, seu Ministro da Educação, quanto à pertinência e adequação do material ao objetivo de combater a homofobia no ambiente escolar no Brasil. Como divulgado amplamente nos meios de comunicação de massa, a decisão da Presidenta teria sido motivada pela ameaça de parlamentares da bancada evangélica de apoiar a convocação do então Ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, braço forte do Governo Dilma, para explicar sua “evolução patrimonial” suspeita, caso não fosse tomada uma medida decisiva contra a divulgação do kit. A distribuição foi suspensa, mas mesmo assim Palocci caiu.

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Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito

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Rayani Mariano dos SantosPesquisadora do Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades – NIGS

Estudante do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina – [email protected]

Patrícia Rosalba Salvador Moura CostaProfessora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe – IFS

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH/UFSCPesquisadora do NIGS

[email protected]

Giovanna Lícia Rocha TriñanesPesquisadora do NIGS

Estudante do curso de Ciências Sociais da [email protected]

Miriam Pillar GrossiProfessora do Departamento de Antropologia da UFSC

Coordenadora do NIGSDoutora em Antropologia Social

[email protected]

O caso Geisy Arruda: representações midiáticas brasileiras sobre violências contra mulheres

The Geisy Arruda case: Brazilian media representations of violence against women

Page 124: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

124

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar a cobertura midiática divulgada em

portais da internet sobre o caso da estudante Geisy Arruda, agredida pelos

colegas dentro do campus da Universidade Bandeirante em São Paulo, sob a

alegação de que estava usando um vestido muito curto. Foram pesquisadas

171 matérias de quatro portais (Folha de S. Paulo, R7 da Record, G1 da Globo

e revista Época). Observa-se que o evento de agressão atraiu grande interesse

da mídia e da população e promoveu um intenso debate entre jornalistas,

antropólogos, psicólogos, intelectuais, políticos e ativistas de movimentos

sociais, principalmente do feminista. Porém, apesar da grande discussão e do

espaço ilimitado da internet, a violência de gênero não foi muito discutida,

tendo algumas matérias, inclusive, ratificado essas agressões como “culpa da

estudante”.

Palavras-chave: Gênero. Mídia. Violência.

Abstract

This paper analyzes the media broadcasting coverage on web portals about the

case of the student Geisy Arruda, harassed by colleagues within the

Bandeirante University campus in Sao Paulo, under the claiming that she was

wearing an “unappropriated” very-short dress. 171 reports from four web

portals (Folha de S. Paulo, R7 Record, G1 and Época magazine) were

investigated. It has been noticed that the aggression event gathered a lot of

perspectives and a huge media and population interest, which promoted an

intense debate among journalists, anthropologists, psychologists, intellectuals,

politicians and activists from social movements, especially the feminist one. In

despite of all the extended real and virtual discussions, little reflection on

violence against women was made present, though. And in some particular

media cases, the aggression was ratified as “her blame”.

Key-words: Gender. Media. Violence.

Page 125: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introdução

Importantes estudos acadêmicos em torno das violências praticadas

contra mulheres têm sido produzidos desde o final da década de 1970 por 1estudiosas da temática . Pesquisadoras como Mariza Corrêa (1983) Miriam

Pillar Grossi (1998, 2006), Maria Filomena Gregori (1993), Heleieth Saffioti

(1995, 2004), Lia Zanotta Machado (2010), entre outras, têm contribuído

para a diversificação teórica em relação ao debate em torno desse campo de

estudo. Além disso, essa produção de conhecimento tem proporcionado um

diálogo bastante particular entre pesquisadoras, militantes e instituições

públicas, as quais passaram a atuar diretamente no atendimento às mulheres

vítimas de violência.

O reconhecimento social das violências contra as mulheres, como um

fator de ordem pública, começou a ser caracterizado efetivamente mediante

denúncias junto às delegacias a partir da década de 1980, fruto de pressões do

movimento feminista que mobilizava a sociedade com o objetivo de prevenir e

criminalizar as violências. De acordo com diferentes autoras (GROSSI, 1998;

CORRÊA, 1983; MACHADO, 2010), antes da emergência dos movimentos

feministas, havia pouca visibilidade dos casos de violências praticados contra

as mulheres, sendo situados e resolvidos na ordem do domínio privado.

Após o surgimento dos SOS Mulher (GROSSI, 1998), primeiros grupos

feministas que lutavam contra as violências praticadas contra as mulheres nos

anos 1980, estabeleceu-se um diálogo dos movimentos feministas com o

Estado, sendo uma das primeiras políticas públicas efetivas em relação à

temática das violências a criação da primeira delegacia da mulher, que

aconteceu no estado de São Paulo no ano de 1985.

As lutas contra as violências e a busca pela criminalização

continuaram marcando a agenda do movimento feminista durante a década de

1990, obtendo sucessos e também alguns retrocessos. Autoras como Debert

(2006) explicam os retrocessos principalmente a partir da instauração da Lei

9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, cujo principal objetivo

era a ampliação do acesso da população à justiça. Os mecanismos aplicados

contribuíam para a celeridade processual e a aplicação de penas alternativas

em lugar das penas de restrição da liberdade. Esse fato colocou as violências

contra a mulher no patamar de “menor potencial ofensivo”.

1 Para conhecimento das várias pesquisadoras que têm contribuído com o debate sobre violências contra a mulher, ver os livros Grossi; Minella; Porto (2006) e Grossi; Losso; Minella (2006).

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Page 126: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Em 2006, foi aprovada a Lei 11.340, denominada de Lei Maria da

Penha. A denominação da Lei 11.340 de 2006 foi uma homenagem a Maria

da Penha, farmacêutica paraense, vítima de tentativa de assassinato pelo

marido por duas vezes e como consequência ficou paraplégica. Segundo dados

do primeiro relatório sobre a Lei Maria da Penha publicado em 2010, em 2005

já existiam 398 delegacias especiais para mulheres espalhadas por todo o país.

De acordo com Wania Pasinato e Cecília MacDowell Santos, o número total de

delegacias passou no ano de 2008 para 403. Machado (2010) aponta que o

total de delegacias especializadas de atendimento à mulher, somando-se aos

postos de atendimento especializado às mulheres, chega a 404, segundo

dados apresentados pela Secretaria de Políticas para Mulheres em 2008.

A importância do surgimento de legislações específicas que tratam de

violências contra as mulheres aponta para o fato de que existe um número

alarmante de mulheres que sofrem violências no Brasil, tanto no espaço

privado do lar como no âmbito da vida publica, isto é, em variadas instituições,

ambientes de trabalhos, ruas, igrejas, serviços de saúde, redes de

telecomunicações, escolas e universidades. Notícias de violências contra

mulheres têm ocupado espaço na mídia brasileira com bastante frequência.

A forma, muitas vezes, arbitrária e condenatória com que as mulheres

vítimas de violência são apresentadas e representadas pelos meios midiáticos é

o objeto de nossa reflexão aqui, tomando como exemplo um episódio de grande

repercussão na mídia brasileira – o caso da estudante de Turismo Geisy Arruda,

que foi agredida por colegas da faculdade por estar usando um vestido curto,

cor-de-rosa. É a respeito da imensa repercussão desse fato na mídia,

acontecido em 2009, que nos debruçamos. Esse acontecimento foi muito

divulgado na mídia brasileira, ganhando espaço também no cenário

internacional. No dia 10 de novembro de 2009, por exemplo, o site do New

York Times noticiou que a expulsão de Geisy havia sido revogada. Além disso,

os jornais Guardian, Daily Telegraph e Pakistan News deram também destaque

ao acontecimento, sendo o caso noticiado até na televisão portuguesa.

Para a análise pretendida, utilizamos como fontes de pesquisa o banco

de dados que construímos com matérias jornalísticas publicadas nos portais da

Folha de S. Paulo, R7 da rede Record, G1 da rede Globo e revista Época, bem

como por meio do programa semanal Fantástico, exibido aos domingos pela

emissora Globo de televisão. Esses jornais são representativos do conjunto dos

meios de comunicação no Brasil, alcançando milhares de leitores e expectadores

e atuando, também, no intenso processo de formação de opinião pública da

126

Page 127: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

sociedade brasileira. Também utilizaremos como instrumento teórico de análise 2o conceito de gênero, com enfoque nas violências contra as mulheres .

Apoiando-nos metodologicamente em estudos de Grossi et al. (2010)

sobre mídia, optamos por delimitar um recorte temporal do material recolhido.

Selecionamos as matérias que foram expostas entre os dias 28 de outubro de

2009 (primeiro dia em que alguma matéria desses sites consultados fez

referência ao assunto) e 12 de novembro de 2009. Subsidiaram nossa análise

aspectos que constam em cada matéria publicada como: título da matéria,

setor do site, lugar que o site ocupa e o tipo de emissor. Para analisarmos a

cobertura midiática do caso de Geisy Arruda, baseamo-nos na metodologia que

se utiliza da análise de discurso. De acordo com Rial (2004) e Hamburger

(2007), além de textos, discursos são práticas sociais. Nesse sentido, a mídia

tem o poder de originar fenômenos sociais e estabelecer ou alterar estereótipos.

Ao analisarmos os portais da Folha de S. Paulo, G1 e R7, percebemos

que a maioria das matérias são notícias, havendo poucos artigos e notas. Já no

site da revista semanal Época, encontramos artigos, sendo a maior parte

publicada em blogs dos/as colunistas. Ao discutirmos as diferenças entre o artigo

e a notícia, remeteremo-nos à classificação dos gêneros jornalísticos no Brasil,

seguindo as orientações de Melo (2003), quando sugere que o “jornalismo

articula-se [...] em função de dois núcleos de interesse: a informação (saber o

que passa) e a opinião (saber o que se pensa sobre o que passa). Daí o relato

jornalístico haver assumido duas modalidades: a descrição e a versão dos fatos”

(MELO, 2003, p.63), modalidades classificadas pelo autor como jornalismo

informativo e jornalismo opinativo. No primeiro grupo, entrariam notas, notícias,

reportagens e entrevistas. No segundo, constariam editoriais, comentários,

artigos, resenhas, colunas, crônicas, caricaturas e cartas.

No período analisado, foram registradas nos sites pesquisados 171

matérias sobre o caso Geisy Arruda. Observamos que o site que mais emitiu

informações sobre o assunto foi o G1 – da rede Globo, com 79 matérias

publicadas, seguido do R7 – Record, com 40 matérias. Os sites da Folha de S.

Paulo e da revista Época publicaram 44 e 8 notícias, respectivamente. Esse

número de matérias significou praticamente notícias diárias durante duas

semanas sobre o caso aqui analisado.

2 O gênero pode ser compreendido como uma maneira de “problematizar a polaridade entre feminino e masculino estabelecida pelo conceito biológico de 'sexo'” (FUNK, 2009, p. 103). Procuramos entender as violências de gênero como uma construção social presente nas diversas relações sociais e culturais (GROSSI, 1998, p. 293), denunciando as desigualdades existentes entre homens e mulheres. As violências contra a mulher podem ser definidas como física, sexual, psicológica, mas não podemos esquecer de mencionar as violências institucionais, que contribuem muito para um cenário de humilhação e submissão da condição de ser mulher.

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As matérias jornalísticas na tela: conhecendo o caso Geisy Arruda

Graças à postagem de um vídeo no site YouTube, ficou conhecido o caso

da jovem aluna matriculada no curso noturno de Turismo da Universidade

Bandeirante (Uniban), localizada na Grande São Paulo, em São Bernardo do

Campo, na região do grande ABC paulista. No dia 22 de outubro de 2009, Geisy

Arruda foi à aula com um minivestido cor-de-rosa choque e foi agredida e

hostilizada por seus colegas, que “enfurecidos' e “surtados” se dirigiram à moça

com ofensas morais, além de tentativa de linchamento. O vídeo mostra que a

moça, ao passar pelos corredores da universidade em direção à sala de aula, foi

acompanhada por uma multidão de estudantes que gritavam palavras como

“gostosa”, “puta”, “vagabunda”, “vamos te estuprar”. Geisy somente conseguiu

chegar à sala com a ajuda de uma colega. Ela permaneceu trancada com a turma

e o professor, enquanto os alunos gritavam em frente à sua sala, tentando adentrar

esse espaço. A saída da sala de aula e da universidade na noite do episódio

somente foi possível após a chegada da polícia. Vestida com o jaleco emprestado

por seu professor, Geisy foi escoltada por policiais até a sua residência. Os próprios

estudantes que a agrediram filmaram a cena com seus celulares e colocaram na

internet. A partir daí, o caso se espalhou pela grande imprensa. Os alunos

utilizaram como justificativa para a prática de tal episódio o desejo de

“resguardar” a “moralidade” do ambiente universitário que frequentavam. Em

torno do discurso da defesa dos valores e da moral da instituição de ensino, a

Uniban decidiu expulsar a aluna. Essa atitude, além de contribuir para maior

exposição do caso na mídia, foi a gota d'água que mobilizou efetivamente ativistas

dos movimentos feministas, membros do governo, intelectuais e pesquisadores/as

em torno da agressão, que se tornou um símbolo dos casos de violências contra

mulheres no Brasil. Passaremos a analisar, a seguir, a forma como o caso foi

apresentado em cada uma das mídias analisadas.

O caso Geisy Arruda apresentado pelo programa Fantástico da rede Globo

A história de Geisy Arruda foi extensamente noticiada, principalmente

no período entre a postagem do vídeo da agressão no YouTube e a sua expulsão

da Uniban, com posterior readmissão da estudante. A rede Globo, no seu

principal programa informativo semanal, o Fantástico, abordou a manifestação

contra a aluna do curso de Turismo da Uniban nos dois domingos após o caso

ter acontecido (1º e 8 de novembro de 2009), mas em nenhuma das ocasiões

discutiu os motivos que levaram os/as estudantes a agredirem Geisy.

Na primeira matéria, restringiu-se a ouvir a consultora de moda Gloria

Kalil e o vice-reitor da universidade, Ellis Wayne Brown. Esse último disse que o

128

Page 129: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ato cometido pelos estudantes não tinha sido tão grave a ponto de gerar a

expulsão deles. Já Gloria Kalil, nos menos de 25 segundos que falou, esforçou-

se para explicar para as “desinformadas” (como Geisy) que “a moda é uma

linguagem” e que a menina errou ao ignorar isso: “ela se vestiu de modo

inadequado ao ambiente em que estava” e foi “lida” de uma maneira que não

gostaria. Após a explicação, a consultora completou que, mesmo com a roupa

inadequada, nada justificaria a agressão. A abordagem dada ao acontecimento

Geisy Arruda pelo Fantástico se preocupou em tratar de uma questão que é

frequentemente associada às mulheres, a moda.

Na segunda reportagem do Fantástico, do dia 8 de novembro, o

assunto foi a expulsão da estudante. Foram mostradas algumas passagens da

nota publicada pela Uniban com os “motivos” da expulsão, como trajes

inadequados e postura “incompatível” com o ambiente escolar. As pessoas

ouvidas na reportagem foram: Geisy Arruda e o seu advogado, o advogado da

Uniban, um advogado constitucionalista, um educador e um estudante. Foram

destacados também trechos da carta escrita pela União Nacional dos

Estudantes (UNE), condenando a agressão. Das seis pessoas ouvidas nessa

reportagem, apenas uma era mulher. Novamente, não foi discutido o tema das

violências contra as mulheres, atendo-se o programa a questões superficiais,

que já tinham sido manchetes em sites e jornais de todo o país.

Esse fato nos provocou uma reflexão sobre as formas como as

violências contra as mulheres são apresentadas nos meios midiáticos

brasileiros, em especial nos programas televisivos. A maneira banal como o

caso foi apresentado num dos programas televisivos de maior audiência no país

fica bem expressa na fala da articulista de moda quando se referiu à falta de

“adequação” da roupa que Geisy usava no dia do episódio. Outra questão

refere-se à presença constante de pessoas entrevistadas que falavam,

exclusivamente, de questões morais. Além disso, percebemos a falta de

iniciativa por parte dos/as jornalistas de tentarem construir matérias mais

densas que fomentassem o surgimento do debate, evidenciando que atitudes e

preconceitos de gênero são comuns e fazem parte do dia a dia das mulheres

brasileiras.

Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal G1

No site G1, entre os dias 29 de outubro e 12 de novembro de 2009,

foram publicadas 79 matérias sobre o fato. A diferença entre a apresentação de

matérias escritas em portais, em relação à fonte televisiva, está,

fundamentalmente, na maior extensão quantitativa dos textos escritos, com

129n. 07 | 2012 | p. 123-145

Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi

Page 130: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

constantes repetições dos fatos vividos pelos personagens durante

determinado período de tempo. Outro fator diz respeito à possibilidade de

participação do/a leitor/a por meio de comentários das notícias divulgadas nos

sites e nos blogs.

A primeira notícia do site G1 sobre o caso foi publicada no dia 29 de

outubro. A matéria era curta e dizia no título: “Aluna com roupa curta provoca

tumulto em universidade e vídeo cai na web”. A utilização do verbo “provocar”

indica a culpabilização de Geisy pela agressão. Nas matérias publicadas nos dias

seguintes, houve mudança de abordagem, com a substituição do verbo provocar.

Nas outras notícias, a exposição da aluna se estabelece a partir do xingamento

que sofreu, explorando sua condição de vítima, como nesta frase retirada de uma

matéria: “uma jovem foi xingada em faculdade por usar roupa curta”.

Nos dias seguintes, diversas matérias foram publicadas com títulos

sugestivos e variados como: “Para universitárias de SP, minissaia não combina

com sala de aula”. O texto mostra que há um julgamento moral em relação ao

uso de saia curta, prática vestimentária bastante presente em universidades,

tanto em São Paulo como em diversas cidades brasileiras. Outras notícias

também dão destaque às roupas. Uma delas foca no fato de que Geisy voltaria

às aulas na Uniban, “mas de calça comprida”. Nessa notícia, é novamente

citado que a estudante de Turismo “provocou alvoroço ao aparecer na

faculdade com um minivestido rosa”. Quando o jornal opta por uma das

expressões: “estudante provocou alvoroço” ou “estudante que foi agredida”,

subtende-se a culpabilização de Geisy pela roupa usada, podendo essa escolha

influenciar na interpretação dos leitores. Além das formas variadas de contar o

mesmo fato, como argumenta Almeida (2007), há variações e formas de

interpretar diferentes, que demonstram como a heterogeneidade dos

espectadores, em termos de suas posições sociais, afeta e permite leituras

distintas de um mesmo texto.

Outras notícias foram publicadas dando voz à UNE, entidade que

classificou o fato como “violência sexista”. Apesar de a editoria do site não ter se

preocupado em discutir a questão com esse enfoque, abriu espaço para que a

UNE expusesse seus argumentos. Outro texto que chama a atenção é o seguinte:

“Opinião: Tumulto na Uniban mostra que alunos devem amadurecer como

pessoas”. O texto que vem logo abaixo do título diz: “Faltou bom senso para usar

traje apropriado à faculdade. Nada, porém, justifica a hostilização sofrida pela

jovem”. A linha de argumentação do/a autor/a do artigo era de que há regras na

sociedade que são guiadas pelo bom senso das pessoas, sendo a escolha da

roupa que se usa uma delas, ou seja, que Geisy ao se vestir com uma saia curta

para ir à faculdade estava agindo fora das regras sociais de vestimenta.

130

Page 131: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A primeira matéria que estava focada nas reações do movimento

feminista foi publicada no dia 9 de novembro, após a expulsão da estudante da

universidade. O texto era curto e falava da organização de protesto na frente da

universidade. Outro texto publicado comentava sobre uma pichação no muro

da Uniban onde estava escrito “faculdade preconceito”. Os outros sites

analisados não publicaram notas ou notícias sobre a pichação.

Também foram publicadas matérias com excessiva vitimização de

Geisy, como, por exemplo, “Tudo o que eu mais queria era voltar a estudar, diz

aluna expulsa pela Uniban”. No olho dessa matéria, há duas frases, uma delas

diz que “Geisy Arruda disse estar muito abalada por não poder voltar à

faculdade”. No mesmo dia dessa publicação, foi apresentada uma matéria que

expressava a opinião do Governo e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O

importante dessa matéria é que ela deu voz a pessoas e entidades como o

presidente da OAB e a ministra, à época, da Secretaria Especial de Políticas

para Mulheres, Nilcéia Freire, que criticaram a expulsão. A maior parte das

fontes ouvidas é oficial. Percebe-se que em várias ocasiões as falas das fontes

oficiais são o fato principal da notícia. As fontes oficiais são aquelas que estão

ligadas a uma instituição e autorizadas a falarem em nome dela. De acordo com

Lage (2006), elas são mantidas pelo Estado, empresas e organizações, as

quais possuem algum poder de Estado e são consideradas as mais confiáveis.

Após a revogação da expulsão de Geisy pela Uniban, uma matéria saiu

com o seguinte título: “Alunos da Uniban vaiam manifestantes durante ato

contra expulsão de aluna”. O texto relata uma batalha com dois lados (UNE e

entidades de defesa da mulher versus estudantes da Uniban), e no meio uma

celebridade de televisão com um minivestido rosa, a qual, segundo a notícia, é

rodeada e filmada pelos estudantes, mas essa mulher, diferentemente do que

aconteceu com Geisy, não foi agredida. Apesar de ser uma matéria com o

intuito de cobrir o protesto realizado pelos movimentos sociais, o foco é na

celebridade que está presente e nas vaias que os manifestantes receberam. As

reivindicações dos movimentos presentes não são discutidas.

Vale ressaltar duas notícias publicadas a respeito do protesto

organizado pelos estudantes na UnB e um artigo cujo título era “Opinião: Caso

da Uniban mostra que falta avançar na igualdade entre gêneros”. A psicóloga e

psicopedagoga Ana Cássia Maturano diz que o que o fato expôs é que “temos

muito ainda que avançar na igualdade entre os gêneros”. O texto se propôs a

discutir a questão da violência contra a mulher, do papel dela na sociedade, do

preconceito que ainda sofre, debatendo questões que foram ignoradas pela

maioria das notícias publicadas tanto pelo site G1 quanto por outros

pesquisados.

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Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal Folha de S. Paulo

Foram publicadas no site da Folha de S. Paulo 44 reportagens. As

matérias oscilaram entre acusação e defesa da vítima. Uma das notícias

publicadas no dia 30 diz: “Alunos se dividem em defesa e ataque a estudante

que causou tumulto por 'pouca roupa'”. Além da culpabilização da estudante,

outro aspecto que merece destaque é a forma como foi escrita, como se fosse a

narrativa de um filme. Há personagens, drama, ação, herói e vítima: “O

professor Rubens [...] teve de sair da sala em operação de resgate”. A jornalista

continuou com o sensacionalismo: “A essa altura, Michele [Geisy] chorava,

desmanchando a maquiagem. Um chute na porta, a maçaneta voou.

Machucou o professor”. Toda a matéria veio ilustrada com as frases gritadas

pelos alunos da Uniban que agrediram Geisy Arruda.

Devido à escolha da repórter pela dramatização, a notícia não

conseguiu demonstrar a seriedade do fato. Ao escolher dar voz aos agressores,

colocando as frases violentas e maldosas ditas por eles, como “deixou cair uma

carteira, de propósito, só para ter de se agachar”, sem se preocupar em discutir

todo o preconceito e violência de gênero que estavam por trás delas, a repórter,

de certa forma, legitimou a ação deles. Além disso, a matéria é finalizada com

uma fala da estudante de Turismo dizendo que agora “Só se veste de calça e

camiseta e a maquiagem fica guardada”. A partir dessa frase, subtende-se que

a matéria apelou para o moralismo e ratificou o erro cometido por Geisy de usar

indumentárias inadmissíveis para o ambiente escolar, ou seja, a aluna

aprendeu a lição, ela não vai mais usar roupas que os outros consideram

inadequadas.

Quando analisamos produtos jornalísticos, devemos refletir sobre

alguns conceitos que permeiam o campo, já que, ao entendê-los, é possível

compreender melhor como é a rotina de produção de notícias e como esta

interfere no produto final. Um desses conceitos, como aponta Tuchman

(1999), é a objetividade. A autora explica que os jornalistas “podem mitigar

pressões contínuas como os possíveis processos de difamação e as repressões

antecipadas dos superiores, com a argumentação de que o seu trabalho é

'objetivo'” (TUCHMAN, 1999, p. 74). De acordo com ela, o jornalista poderia

afirmar, por exemplo, que, em vez de dar sua opinião, ele citou outras pessoas.

Esse recurso é encontrado em todos os sites analisados e em grande parte das

matérias. “Ao inserir a opinião de alguém, eles acham que deixam de participar

na notícia e deixam os 'fatos falar'” (TUCHMAN, 1999, p. 81). Porém, ao

selecionar as fontes com as quais irá conversar e depois escolher o que irá

aproveitar daquilo que foi dito, o jornalista já está utilizando-se de sua

subjetividade, fato que se repetiu em vários casos aqui analisados.

132

Page 133: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Nos dias que se seguiram, várias matérias foram publicadas no site da

Folha de S. Paulo. Nota-se que após a expulsão o fato ganhou maior

importância na mídia. Várias informações que ainda não haviam sido dadas

foram temas de matérias. Em uma delas, expuseram uma manchete que fala

sobre a readmissão da estudante. A notícia está focada no fato de que o vice-

reitor da Uniban, Ellis Brown, afirmou que a repercussão negativa do caso

influenciou na readmissão de Geisy. Toda a notícia é delineada com frases e

opiniões de Ellis Brown, a única fonte citada. Além de classificar o Conselho de

corajoso por seguir o processo regimental e expulsar Geisy, “negou que o

conselho universitário tenha se precipitado ao expulsar a estudante”. É

importante destacar que a mídia, mesmo tratando o caso de forma superficial e

preconceituosa, em muitos momentos, também contribuiu positivamente,

ajudando na decisão da universidade de readmitir Geisy Arruda.

Após a análise das reportagens publicadas no período selecionado, é

possível indicar que a cobertura realizada pelo site da Folha de S. Paulo foi

bastante superficial. Em nenhum momento, a editoria proporcionou uma

discussão mais profunda em relação ao caso. É fato que todas as matérias

analisadas pertenciam ao gênero jornalístico notícia, que normalmente possui

um lead no qual são respondidas seis perguntas básicas relacionadas ao fato

noticiado (quem, o quê, quando, onde, como e por que). Nota-se que em

inúmeras matérias sobre o caso quase todas essas perguntas eram

respondidas, quem, o quê, quando, onde e como são respondidas em todas,

porém por que não. O porquê foi exaustivamente explicado pelo vestido curto,

ocultando o preconceito e o machismo que estavam por trás da agressão.

Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal R7

No site de notícias da Record, o R7, foram encontradas 40 matérias,

publicadas do dia 30 de outubro a 12 de novembro de 2009. Uma entrevista

com a estudante agredida tem como título uma frase de Geisy dizendo que se

sentiu “um bicho, uma criminosa”. Essa citação foi escolhida com o objetivo de

atrair a atenção do leitor. Já no texto introdutório da entrevista nota-se que o

jornalista condena a atitude dos estudantes da Uniban. Ele diz que Geisy foi

“vítima de um dos mais insanos atos coletivos de que se tem notícia nos últimos

tempos”. Além disso, destaca que “inclusive mulheres” atacaram a estudante.

Essa participação de mulheres na agressão é observada também em outras

matérias.

Várias notícias saíram, mas destacamos o artigo no blog de Eduardo

Marini, que fala de uma questão relevante. O jornalista utiliza uma linguagem

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informal para dizer o quão é absurdo algumas pessoas que vão comentar o

episódio gastarem 90% do tempo falando da roupa “inadequada” que Geisy

usou, para no final dizerem que “nada justifica”. Essa crítica foi direcionada ao

programa Fantástico, especialmente à fala de Gloria Kalil.

Matérias com enfoque político também foram publicadas, como

“Presidente do PT chama universidade que expulsou aluna de 'fascista'”. Outras

deram vozes à UNE e à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Ambas as entidades criticaram enfaticamente a expulsão de Geisy, porém

nenhum dos dois títulos conseguiu expor claramente as opiniões. Nesse portal,

a fala da ministra Nilcéa Freire, por exemplo, classificou a expulsão de

“absoluta intolerância e discriminação”, informação que apareceu apenas no

olho da matéria.

Outro artigo publicado no blog Querido Leitor destaca de forma direta e

irônica como é absurdo a Uniban apresentar em seu comunicado como

justificativa para a expulsão o fato de Geisy ter feito um percurso maior, posar

para fotos, ter se recusado a complementar suas vestimentas, como se esses

atos fossem crimes.

O protesto liderado por movimentos sociais feministas e pela UNE

também ganhou destaque no portal do R7. Mais uma vez, o foco da notícia

recaiu nas vaias dos estudantes da Uniban. No olho da matéria, há frases

gritadas pelos estudantes para as manifestantes, como “vai lavar panela”, “vai

lavar roupa” e “vai cozinhar”, fato que demonstra nesses ditos o local que ainda

é designado à mulher na sociedade brasileira. Ao longo da matéria, foram

ouvidos apenas estudantes da Uniban que criticam Geisy, dizendo que ela pediu

para ser agredida, que usou um “vestido muito obsceno”. Um dos estudantes

ouvidos pelo R7 falou: “Agora, vão achar que só prostituta estuda aqui”.

A escolha da abordagem e as fontes ouvidas pelo site mostram que a

cobertura do protesto foi extremamente parcial. Além disso, apenas no fim da

matéria o evento foi retratado, com informações sobre quais movimentos

participaram e o que eles reivindicavam.

Outro protesto noticiado pelo site R7 foi o realizado pelos estudantes

da UnB em defesa de Geisy. A manifestação ganhou destaque pelo fato de os/as

alunos/as terem tirado a roupa e se dirigido ao prédio da reitoria, em protesto

contra a atitude considerada machista por eles/as. O fato aconteceu logo após a

grande repercussão que o caso ganhou na mídia nacional e internacional. Em

nenhum dos casos, foi discutido de forma mais clara e menos superficial o

motivo dos protestos, que não eram apenas a favor de Geisy, mas para

reivindicar que cesse todo tipo de violência contra a mulher. Os estudantes da

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UnB, por exemplo, reivindicavam que as estudantes dessa universidade

tivessem mais segurança no campus, fato que não foi citado na matéria do site

R7, mas foi noticiado na rede Globo, por meio do jornal nacional.

Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal da revista semanal

Época

Ao se escolher como objeto de pesquisa matérias publicadas em uma

revista, deve-se levar em consideração o fato de que há um intervalo diferente

de tempo entre as publicações das revistas semanais e dos jornais diários. Por

isso, normalmente, as notícias publicadas pela revista já foram apresentadas

por outros meios como televisão, rádio e diários. Os periódicos semanais então

precisam ter um diferencial: trazer informações novas e analisar o fato de forma

mais profunda. Devido a essas peculiaridades, é mais comum encontrar

opiniões e discussões mais densas em revistas do que em jornais.

Se nas revistas impressas a opinião se apresenta de forma mais

contundente, nos portais das revistas, ela se mostra ainda mais presente, já

que na internet não há o problema da falta de espaço para a formatação do

texto. Além disso, os colunistas têm blogs onde dispõem de maior liberdade

para falar o que pensam e escrever com uma linguagem mais informal.

A primeira matéria que saiu no site da Época sobre o caso de Geisy

Arruda foi publicada no blog Bombou na Web, no dia 28 de outubro. Nela, o

jornalista falava do episódio e classificava o vídeo como “muito triste”. Em outro

momento, diz que o evento “ocorreu numa universidade e não num ritual

bárbaro qualquer”. Esses dois exemplos ilustram o caráter mais livre e informal

das matérias analisadas nesse veículo, além de sugerir que a linha editorial se

posicionou de forma mais crítica e direta em relação a outras linhas editorias

estudadas neste artigo.

No blog 7x7, a jornalista classificou a história de “simples, vergonhosa

e sádica”, criticou os “rapazes” que disseram que a moça pediu para ser

xingada por ter ido com roupa curta e disse que esses são os “mesmos que

estupram por se sentirem 'atiçados' por coxas à vista e decotes mais sensuais”.

Outras matérias do site trazem dois aspectos que chamam a atenção:

um refere-se à citação recorrente da cor do cabelo de Geisy (loira) e outro faz

referência ao vestido, que por ser tão curto era possível “entrever sua calcinha”.

Nesse sentido, apesar de as matérias do site da Época serem mais cautelosas

em relação ao episódio, pode-se perceber uma grande preocupação com a

aparência, a cor do cabelo e os trajes usados pela estudante agredida.

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Um artigo que merece destaque é “Geisy foi expulsa pelos filhos da

revolução sexual?”, também publicado no blog 7x7, escrito a convite das

editoras do blog por Gabriela Leite, socióloga, fundadora da ONG Davida e da

grife Daspu e autora do livro Filha, mãe, avó e puta – no qual conta sua

experiência como universitária e garota de programa. Convidar uma pessoa que

já sofreu preconceito por ser prostituta foi uma iniciativa interessante da

editoria do site, pois houve um enfoque diferente que conseguiu expor as

semelhanças entre as agressões que várias mulheres sofrem cotidianamente e

que não são discutidas, além de explorar criticamente várias situações que

pontuam os preconceitos de gênero sofridos por mulheres.

Em uma coluna que saiu no dia 8 de novembro, o colunista justificou a

atitude de expulsar Geisy como uma questão meramente “mercantil”, já que

era mais fácil “criminalizar uma minissaia do que enfrentar uma massa de

centenas de estudantes que, acima de tudo, pagam pelas mensalidades que

sustentam o estabelecimento”. Vemos que o argumento econômico utilizado

apaga também o preconceito que esteve por trás da decisão da expulsão.

Geisy Arruda: um debate entre pares

Por fim, analisamos aqui quatro artigos de opinião publicados em

diferentes veículos após a exibição exaustiva do caso na mídia: da socióloga e

líder do movimento de prostitutas Gabriela Leite, do psicanalista Contardo

Calligaris, do filósofo Renato Janine Ribeiro e da antropóloga Sônia Correa.

Gabriela Leite escreve no blog Mulher 7x7, no dia 9 de novembro

2009, um artigo intitulado “Mulheres são vagabundas ou certinhas? Boas ou

más? Da vida ou de família?”. Nele, a autora defende o movimento pela

legalização da prostituição, tomando como mote o caso Geisy Arruda. Gabriela

escreve sobre uma dupla moral que vigoraria na sociedade brasileira, que

“procura prostitutas para satisfazer suas fantasias e esconde-se atrás de bons

costumes”. Para ela, essa seria a raiz da luta política pelos direitos das

prostitutas “em nome de uma sociedade menos hipócrita e moralista”. Ela

defende que Geisy Arruda não deve se calar frente às agressões que sofreu e

deve lutar em nome de um equilíbrio maior na civilidade, onde “todos seriam

livres para exercerem sua autonomia”.

Já o psicanalista Contardo Calligaris escreve no site da Folha de S.

Paulo, no dia 5 de novembro de 2009, um artigo intitulado “A turba da

UNIBAN”. Para ele, após 40 anos de luta feminista, a sociedade brasileira

ainda não reconheceu que mulheres são sujeitos sociais e como tal “também

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têm desejos”. O insulto usado pela “turba” de universitários contra Geisy – puta

– mostraria a rejeição social à possibilidade de uma mulher ter desejo próprio.

Dessa forma, a agressão representa a opinião social de que ela “deveria ser

punida” por mostrar seu desejo. Calligaris traz também argumentos feministas

sobre como os papéis de atividade e passividade sexual associam-se no Brasil à

figura do “veado” e aos papéis femininos e que portanto a “turba” da Uniban

estava também obrigada a mostrar-se “ativa” sob risco da estigmatização do

passivo sexual, que é o lugar ocupado simbolicamente pelos homossexuais em

nosso sistema de gênero (FRY, 1982).

O terceiro artigo destacado aqui é o do filósofo e professor da USP,

Renato Janine Ribeiro, publicado pela Folha de S. Paulo no dia 15 de

novembro de 2009: “Tensão e direitos humanos”. O argumento central de seu

texto se refere ao desejo, a uma sexualidade provocante que mexeu com os

estudantes da Uniban e fez com que o caso merecesse destaque na mídia. Para

o autor, tratar esse assunto a partir dos parâmetros de cidadania ou

discriminação contra a mulher deixaria as reflexões empobrecidas e com um

viés apenas legalista. O que está em pauta e deve ser refletido, segundo Janine,

é a negociação entre o id e o ego representados a partir dos estudos de Freud.

Expresso na proposição de que, após a mulher ter conquistado o direito de se

vestir como bem queira expondo seu corpo publicamente, a consequência é a

exigência de maior autocontrole por parte dos homens, ao que Janine chamou

de “confronto hipermoderno”, posto que estes não sabem ainda como lidar com

a liberdade feminina, ou seja, não sabem controlar seus impulsos sexuais.

Em contrapartida e em resposta a Renato Janine Ribeiro, Sônia

Correa, antropóloga e autora do quarto artigo, “A persistente naturalização do

sexo: um breve comentário sobre o artigo de Renato Janine Ribeiro”, publicado

no portal Universidade Livre, argumenta que a concepção apresentada por

Ribeiro é fortemente embasada por um viés heterossexual e sexista, dizendo: “é

instigante a observação feita pelo autor de que o 'sexo' tem um poder brutal de

deflagrar emoções públicas e midiáticas”. Ela lembra que no dia em que Geisy

foi atacada pelos alunos da Uniban, certamente, aconteceram no país centenas

de episódios de violência, desrespeito à liberdade de expressão e inclusive

violação da integridade física de outras mulheres, mas também de homens,

meninos, meninas e pessoas idosas, em muitos casos perpetrados por

particulares ou agentes do Estado. Porém, segundo ela, a maioria desses

episódios não chegou às páginas de jornal ou telas de televisão e os que

chegaram não causaram maior escândalo. Correa critica a visão essencialista

sobre a sexualidade defendida por Janine através do uso de noções de sexo

como algo “meramente fisicalista e naturalista”. Criticando a visão de desejo

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exposta pelo filósofo, ela argumenta que numa sociedade nacional e numa

cultura global em que muitos outros corpos, inclusive masculinos, estão

expostos na publicidade, na televisão e na internet, não faz nenhum sentido

tratar o corpo feminino como fonte única e principal da incitação ao desejo.

Os dois textos trazem uma noção mais contundente e profunda do que

as matérias dos outros veículos estudados, pois refletem as diferentes situações

de violência às quais as mulheres estão sujeitas e das quais lutam para se

libertarem, representadas pelas lutas sociais, e, sobretudo, pelo movimento

feminista. O caso de Geisy, portanto, é inserido nos dois artigos, nesse quadro

mundial de luta por equidade entre os gêneros. As reflexões desenvolvidas por

Calligaris nos possibilitam ir além e pensar que dentro desse mesmo quadro

mundial político se inserem também os movimentos LGBTTT.

Caminhos trilhados por Geisy Arruda após o episódio da Uniban

De outubro de 2009 até o início de 2011, fizemos um monitoramento

dos sites G1, R7, Folha de S. Paulo e Época, usando como pesquisa o nome de

Geisy Arruda, a fim de explorar os desdobramentos do acontecimento em sua

biografia. Não faremos distinção entre eles, pois todos os portais mencionam os

mesmos fatos, variando somente o número de notícias. Observamos que após a

divulgação do episódio a estudante se tornou muito conhecida no Brasil e

passou a ter um status de celebridade, tendo sua vida noticiada

cotidianamente em sites de notícias, revistas de fofocas e em outros meios. Em

dezembro de 2009, Geisy ganhou 32 mil reais em cirurgia plástica como

presente de seis empresárias amigas do cabeleireiro de Geisy. Após cirurgia

modeladora e implante de silicone, Geisy, atualmente apresentada como “ex-

estudante”, “empresária”, “modelo” e/ou “celebridade”, apareceu

“recauchutada” no programa Fantástico da rede Globo.

No início de 2010, ela é homenageada e convidada para desfilar como

destaque de uma escola de samba do Rio de Janeiro, cujo tema do desfile era

“Com que roupa... eu vou?” Ela representou a rainha Elizabeth I vestida com

uma releitura de seu vestido rosa. No mês seguinte, março de 2010, Geisy

lança nas ruas do comércio popular de São Paulo uma coleção de vestidos na

cor rosa, que leva o nome Rosa Divino: “Minha inspiração é a dona de casa”,

disse a estudante ao site G1. Durante esse mesmo ano, Geisy apareceu em

diferentes programas de emissoras de televisão como MTV, Globo, Record e

SBT. Além disso, assinou um contrato com a TV Cidade, afiliada da Record em

Fortaleza, na qual iria apresentar um programa. Porém, o contrato foi

cancelado.

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Ela apareceu também em clipes musicais e foi cogitada para ser garota

propaganda da cerveja Devassa. Geisy foi convidada para participar de um

reality show da emissora de televisão Record, do mesmo grupo do portal R7. O

reality show se chama A Fazenda, no qual pessoas famosas são convidadas

para ficarem confinadas durante alguns meses em uma fazenda. A terceira

edição, que contou com a participação de Geisy, começou no dia 28 de

setembro. A estudante foi a segunda a ser eliminada, no dia 15 de outubro.

Apesar do pouco tempo em que permaneceu no reality show, durante o

período, várias notícias sobre ela foram publicadas no portal R7. Enquanto

estava na casa, os companheiros de confinamento cogitaram repetir o episódio

violento que aconteceu na Uniban. A ideia era que Geisy colocasse o mesmo

vestido rosa usado no dia em que foi agredida para que os colegas da casa

encenassem o papel dos universitários que protagonizaram a agressão, no

entanto os colegas do confinamento sugeriram se dirigir à estudante apenas por

gestos, enquanto ela poderia responder o que quisesse. A ideia não foi

realizada, pois Geisy afirmou que não gostaria de relembrar o episódio vivido.

Após sua saída, foi cogitada para sair na capa de revistas masculinas,

optando por estampar a capa da revista Sexy com ensaio sensual em Punta del

Este, no Uruguai. Essa edição publicada no mês de novembro de 2010 foi a

mais vendida dos três anos anteriores da revista.

No mês seguinte, o jornalista Fabiano Rampazzo, atual colunista de

revistas e sites de comportamento, lança, pela Matrix Editora, marca da Editora

Urbana Ltda, cinco mil exemplares do livro biográfico de Geisy – Geisy Arruda:

Vestida para causar. O livro é resultado das sessões de entrevistas realizadas

com Geisy ao longo de 2010. É escrito em primeira pessoa, como uma espécie

de livro de confidências, com alguns trechos nos quais o autor acrescenta

informações relevantes. Merecem destaque a longa descrição detalhada da

noite do massacre na Uniban e o início de suas aparições na mídia nacional e

internacional. No prefácio, a psicanalista e colunista da revista da Folha,

Luciana Saddi, apresenta Geisy como responsável, livre sexualmente,

trabalhadora, e sensível para as causas em defesa da liberdade das mulheres

(RAMPAZZO, 2010). Em maio de 2011, a ex-estudante participou da 2ª

Marcha Nacional Contra a Homofobia, em Brasília. Segundo a revista Época,

uma das conclusões do autor é que Geisy virou “símbolo do feminismo”. Vale

refletir sobre qual feminismo se está falando, a partir do que Otto (2004)

caracteriza como um contexto de diversas identidades e de um feminismo

difuso na sociedade. Nele, a imagem de Geisy pode ser entendida com base na

expressão de uma sexualidade exacerbada como indicação de uma espécie de

poder obtido, sinônimo de “ter controle” de sua sexualidade (CRANE, 2006),

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lançando mão de concepções do feminismo vinculadas à submissão e

centralidade da figura masculina. Para Crane (2006), é também segundo essa

imagem que podemos entender clipes musicais de mulheres como Madonna,

Britney Spears, Christina Aguilera e outras.

No portal R7, o editor Paulo Tadeu falou que o livro busca atingir novos

brasileiros emergentes da classe C: “Ela exerce um fascínio sobre essa classe.

Ela enfrentou uma entidade poderosa, com dinheiro. É uma história que fala

muito para a classe C”. Na mesma matéria, Geisy menciona que está

considerando fazer um filme do livro e, ainda, candidatar-se a vereadora em

Diadema, sua cidade natal no ABC Paulista.

No carnaval de 2011, em março, ela desfilou novamente pela mesma

escola de samba do Rio de Janeiro que a convidara em 2010. Dessa vez sob o

tema “O sonho sempre vem pra quem sonhar”, em homenagem à autora

infantil Maria Clara Machado, vestida com uma fantasia chamada “Delícia”.

Em novembro de 2010, mesmo mês de lançamento da Sexy, a revista Época,

na edição de 653, entrevista o reitor da Uniban. Na entrevista, o reitor em

nenhum momento admite que a Uniban ou os estudantes agrediram Geisy. Em

sua fala, deixa claro: “O motivo pelo qual revogamos a expulsão foi para atender

a um apelo do ministro da Educação, Fernando Haddad, que mostrou

preocupação com o caso, e também pela grande pressão da mídia e dos

movimentos sociais que agiram de forma muito agressiva”.

Além da fama, consequências judiciais surgiram do fato que

aconteceu com Geisy. No dia 22 de abril de 2010, o Ministério Público Federal

instaurou uma ação civil pública contra a Uniban, extensiva ao MEC e à União,

acusando a universidade de não respeitar o devido processo legal durante a

sindicância que resultou na expulsão da estudante Geisy Arruda, em novembro

de 2009.

A estudante também moveu uma ação contra a Uniban. Geisy queria

um milhão de reais de indenização. Durante a audiência, que aconteceu em

setembro de 2010, não se chegou a um acordo com a universidade, pois esta

não aceitou qualquer negociação, pois acredita que não houve nenhuma

omissão da instituição de ensino. Em outubro do mesmo ano, a Uniban foi

condenada a pagar 40 mil reais à estudante. Porém, ambas as partes não

ficaram satisfeitas e recorreram.

Observando-se os fatos que foram noticiados sobre Geisy Arruda,

nota-se que a ex-estudante se tornou uma nova celebridade. O fato associado à

agressão não foi mais tratado, com raras exceções, como às relacionadas às

consequências judiciais.

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É importante perceber que, apesar disso, o nome Geisy Arruda é

marcado por uma trajetória de rápida ascensão social acompanhada por

grandes transformações estéticas. Ou seja, seu nome está carregado pela

classe social específica da qual a aluna Geisy Arruda pertencia no momento da

agressão e da grande visibilidade. Esse aspecto determina, enquanto uma

celebridade e empresária nacional, quem são seus fãs, o público com quem

dialoga e para o qual vende seus produtos, os programas dos quais participa

etc., mesmo que a própria agressão e o fato ocorrido na Uniban – o motivo pelo

qual a ex-estudante se tornou conhecida – sejam já periféricos ou inexistentes

na mídia e em seu público. Do mesmo modo, são ignoradas as atitudes da

universidade e a reação dos movimentos sociais, do movimento feminista, dos

estudantes, da mídia, dos intelectuais e da população civil contra o preconceito

dos alunos que agrediram Geisy.

Conclusão

O presente artigo buscou retratar as formas como as violências sofridas

por Geisy Arruda foram apresentadas na mídia brasileira. Observamos que a

aluna foi exposta de maneira preconceituosa em muitas matérias analisadas,

tendo como destaque, quase sempre, o “mau” uso do vestido rosa, além da

apresentação de Geisy como um “objeto” que despertou o desejo dos

estudantes da Uniban.

As diversas mídias, como informantes e formadoras de opinião,

também contribuem para que atitudes, como o caso dos estudantes da Uniban,

sejam consideradas “naturais”, pois “afinal de contas a Geisy provocou o

episódio”, na medida em que “usou roupas inadequadas para a ocasião”, como

afirmaram a editora da moda Gloria Kalil e o filósofo Renato Janine Ribeiro.

Nesse aspecto, o artigo remete-se à análise magistral de Peter Gay (Da Rainha

Vitória a Freud) sobre o pânico que se instalou entre os homens, no fin de siécle

europeu dos novecentos, quando o papel da mulher quanto à sexualidade

feminina estava em franco processo de transformação.

É perceptível o pouco interesse da mídia em discutir o problema das

violências de gênero, em especial aquelas cometidas contra as mulheres, de

forma mais clara, precisa e neutra. Na maioria das vezes, encontramos

resistência na abordagem da violência como um problema social, ficando esta

no âmbito da moralidade e ainda consagrando a mulher, quase sempre, como a

responsável pelos atos de violência que a acometem (GROSSI, 2006).

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Por outro lado, observamos também que algumas matérias e artigos

dialogaram com o/a leitor/a de maneira mais crítica, apresentando argumentos

que problematizam a questão social vivenciada pela mulher na atualidade e

dando espaço para que intelectuais e movimentos sociais se posicionassem

sobre o assunto, pontuando as diversas formas de violência que atingem

mulheres.

A participação dos movimentos sociais, sobretudo do movimento

feminista e de instituições como a Secretaria de Políticas para Mulheres e o

Ministério da Educação, foi fundamental para que as diversas mídias

começassem a tratar esse caso de forma menos sensacionalista, contribuindo

para que o episódio que acometeu Geisy Arruda fosse foco de maior reflexão,

principalmente após a expulsão da aluna, divulgada em nota pela Uniban.

Portanto, não houve uma posição única e apenas negativa na representação da

mídia sobre o caso Geisy Arruda. Nesse sentido, podemos destacar que,

embora pouco representativa, em relação à quantidade de matérias

publicadas, a mídia também demonstrou ter grande interesse na questão das

violências contra as mulheres.

A diferença entre a apresentação de matérias escritas em portais,

comparando-se à fonte televisiva, está, fundamentalmente, na maior extensão

quantitativa dos textos escritos, com constantes repetições dos fatos vividos

pelos personagens durante determinado período de tempo. Outro fator diz

respeito à possibilidade de participação do leitor por meio de comentários das

notícias divulgadas nos sites e nos blogs. Portais de revistas têm mais liberdade

para escreverem e se posicionarem sobre o assunto. Além disso, as matérias e

artigos publicados em sites tinham um teor mais crítico e, algumas vezes,

tentavam mostrar o lado perverso da violência sofrida por Geisy, com

entrevistas que abordavam temáticas como violência e prostituição. Tais

abordagens podem ser compreendidas a partir das análises de Melo (2003)

sobre as distinções entre os gêneros jornalísticos.

O programa Fantástico, exibido pela rede Globo, apresentou o caso

Geisy a partir de parâmetros mais superficiais e, sobretudo, com aspectos

moralistas pautados em apresentações de como as mulheres devem se

comportar, bem como dicas sobre boas maneiras, com destaque para a cultura

da moda e da estética, representada pela colunista Gloria Kalil.

Por fim, os atos praticados pelos/as estudantes da Uniban se

apresentam como relevantes para discutirmos as violências que as mulheres

sofrem diariamente, independentemente da condição social que ocupam, da

Page 143: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

idade, etnia, cor, mas apenas pelo fato de ser mulher. Por que o caso de Geisy foi

tão divulgado? Poderíamos destacar especialmente o ineditismo e a intensidade

sobre a forma como a estudante foi agredida – tendo em vista que milhares de

estudantes brasileiras vão à universidade de minissaia, mas não sofrem agressão

– bem como, e sobretudo, o uso das redes sociais e as mídias eletrônicas, uma

vez que eventos pontuais como esses são rapidamente divulgados na internet,

tendo efeitos inesperados e colocando na pauta, mesmo que de maneira não

adequada, o debate sobre as violências contra as mulheres, possibilitando,

principalmente, a proliferação de opiniões de pessoas que se manifestam dos

mais diferentes lugares sociais. Além disso, a projeção nacional e internacional

que Geisy Arruda ganhou e o status de celebridade que lhe é conferido

atualmente podem ser compreendidos também como fruto desse contexto social

e do uso intensivo das tecnologias e redes sociais.

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Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi

Page 144: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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Para se pensar sobre a experiência transexual na escola: algumas cenas

To think about the transsexual experience in education: some scenes

Dayana Brunetto Carlin dos SantosCoordenadora de Gênero e Diversidade Sexual da SEED

Pesquisadora associada do LABIN – CGS Laboratório de Investigação sobre Corpo, Gênero e Subjetividades – UFPR

Mestre em Educação – UFPRAtivista da Liga Brasileira de Lésbicas – PR

[email protected]

Page 148: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

148

Resumo

Este texto propõe a discussão sobre a experiência transexual na escola com base em

alguns conceitos de Michel Foucault, como biopoder, disciplina, biopolítica e

governamentalidade. A partir dessa reflexão sobre a escola como um empreendimento

biopolítico de controle dos corpos e das narrativas de transexuais sobre suas

experiências escolares, o que se pode entender como corpos transexuais, ainda, escapa

ao empreendimento biopolítico da educação. Essas narrativas, organizadas por meio de

atos performativos da memória, evidenciam que ao se analisar experiências transexuais

na escola toda a generalização pode ser perigosa. Os atos performativos da memória

foram aqui emblematicamente organizados em cenas.

Palavras-chave: Escola. Transexualidade. Atos performativos da memória. Narrativas.

Abstract

This paper proposes the discussion of the transsexual experience in school based on

some concepts of Michel Foucault, bio-power, discipline, governmentality and

biopolitics. From this reflection on the school as a new development for bio-political

control of bodies, and from transgenders' narratives about their school experiences, what

can be understood as bodies transsexuals still ventures beyond the bio-political

education. These narratives, organized through performative acts of memory, show that

when analyzing transsexuals experiences in the school all kinds of generalization may be

dangerous. The performative acts of memory are organized into scenes here

symbolically.

Key-words: School. Transsexuality. Performative acts of memory. Narratives.

Page 149: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Contexto

As discussões aqui propostas são parte da dissertação intitulada

Cartografias da Transexualidade: a experiência escolar e outras tramas,

elaborada sob orientação da professora Dra. Maria Rita de Assis César e

defendida pela Universidade Federal do Paraná, em 2010.

Nesta pesquisa, o trabalho se deu a partir da análise de narrativas de

transexuais sobre seus processos de escolarização formal. A produção de

narrativas foi realizada em dois momentos: por meio de entrevistas individuais

com seis mulheres e um homem transexual bem como de um grupo de

discussão com representatividade de lideranças do movimento social de

travestis e transexuais dos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa

Catarina. Com o intuito de explicitar qual sujeito está falando e de que

momento participou, a letra E foi acrescentada logo após o nome e sobrenome

das/do entrevistadas/o. Para as participantes do grupo de discussão, logo em

seguida ao primeiro nome constam as letras GD.

As categorias de análise foram denominadas de atos perfomativos e as

subcategorias de cenas, considerando uma reflexão sobre a perfomatividade das memórias, bem como a atuação de cada uma/um dos sujeitos envolvidos

nesta pesquisa. Neste texto, constam algumas das análises realizadas.

A ideia de performance foi aqui utilizada em dois sentidos. Em

primeiro lugar, porque a performance está presente na produção de si em todas

as narrativas utilizadas para esta pesquisa. Transexuais, mulheres e homens

hétero, homo e bissexuais, conforme se descrevem, sempre realizarão

performances de gênero e da identidade desejada e/ou construída nos

processos de transformação. O conceito de performance também é

fundamental para este trabalho, considerando que para Butler (2000) as

identidades de gênero e sexuais serão sempre performativas. No caso de uma

reflexão sobre a memória das experiências transexuais, poderá se pensar em

algo como uma “performatividade da memória”. E por que não pensar que para

todas/os nós seja assim?

Uma leitura do mapa estático da transexualidade, construído por redes

de poder-saber singulares, demonstra as condições de possibilidade para a

invenção do sujeito “transexual”, na segunda metade do século XIX. Nessa

perspectiva, pode-se afirmar que a transexualidade não é um dado natural e a-

histórico, mas sim uma invenção engendrada nas redes de saber-poder. Como

outros objetos e sujeitos, o sujeito transexual é uma produção histórica e

datada, construída a partir da articulação de mecanismos singulares de

controle dos corpos e desejos.

149Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 150: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Bento (2008), ao abordar a transexualidade, define-a como uma

experiência e não como uma identidade única, fixa, sedimentada, isto é, a

realização de um processo de produção de si, que implicará um conjunto de

transformações corporais e sociais que, por sua vez, constituirão experiências

de produção de corpos e subjetividades. Segundo a autora:

Prefiro referir-me à “experiência transexual”, pois a

transexualidade não é a pessoa. Quem vive esta experiência

tem outras identidades que povoam suas subjetividades:

trabalha, namora, pode ter religião, é membro de

comunidades sociais múltiplas (família, grupos de

interesse), como todo ser social (BENTO, 2008, p. 145).

Partiu-se do pressuposto de que as narrativas produzidas pelos

sujeitos não representam a verdade do que aconteceu no passado, mas sim a

construção de uma realidade. A apresentação do passado pressupõe uma

concepção de trabalho conjunto entre memória e historiografia, em que

interessa compreender que o passado que se está recriando é distinto da sua

forma primeira. Nesse sentido, Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 73-74,

grifos do autor) problematiza:

Uma tal representação não é mais do que uma ilusão dessa

representação total. Respeitar esses limites [...] implica, na

verdade, respeitar a diferença entre o passado e sua

atualização; implica perceber que a historiografia é apenas

uma (re)inscrição do passado e não seu texto “original”.

O autor argumenta ainda sobre a utilização da expressão apresentação

em detrimento de representação: “Graças ao conceito de memória, eles

[Benjamin e Halbwachs] trabalham não no campo da re-presentação, mas sim

da apresentação enquanto construção a partir do presente” (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 70, grifo do autor).

Assim, essas narrativas são construídas de forma imbricada com

outros enunciados também construídos na cultura por meio da utilização da

linguagem. Segundo Leonor Arfuch (1995, p. 52-53, grifo da autora):

Aun cuando aparezca como un recorrido azaroso, librado a

la iniciativa mutua, todo diálogo está atravesado por

múltiples determinaciones, no sólo las inherentes al uso del

lenguaje y a las posiciones de los enunciadores [...] sino

también las que imponen las instituciones involucradas en

cada caso [...]. [...] Esta “ajenidad” de la palabra (por

cuanto se está obligado a decir o no decir, a “hablar por boca

de otros”), compartida por los interlocutores, participa de

150

Page 151: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

un fenómeno mayor, [...] y que tiene que ver con la

pluralidad de voces que hablan, sin que nos demos cuenta,

en los enunciados que consideramos “propios”: vejos

saberes, creencias, dichos del sentido común, verdades que

no necesitan demonstración, opiniones fijadas por el

estereotipo. Así, cada enunciado no solamente interactúa,

[...] con un Otro que instituye frente a si (dialogismo) sino

también con la otredad de lo ya dicho, con el antiguo

sustrato de una lengua y una cultura. En ese sentido nunca

es un primero, por más que responda a nuestra iniciativa

personal, al mundo de nuestra experiência.

Conforme a autora, o sujeito deixa de ser fonte de sua palavra e dos

sentidos que produz e passa a ser “falado” em meio à trama sociocultural na

qual está inserido. Nessa perspectiva, importou compreender os sujeitos da

pesquisa como personagens, operando um distanciamento entre autoras/r e

narradoras/r. Transexuais foram as/o narradoras/r de suas memórias utilizadas

nesta pesquisa. Essas/e narradoras/r são/é entendidas/o nesse contexto como

figuras discursivas que constroem suas falas e se constroem para o momento

do diálogo, isto é, a sua exibição pública (ARFUCH, 1995). Dessa forma,

poder-se-ia pensar que nos atos performativos da memória são agregados

pensamentos e elaborações antes feitas, os quais por si só não eram a imagem

do passado. Poder-se-ia perguntar, diante dessas colocações, se aí não estaria

um possível enunciado para a performatividade das memórias.

Cena um: a escola e a transexualidade

O conceito de disciplina de Michel Foucault é fundamental para se

pensar a invenção da escola moderna, em meados do século XVIII, como

instituição disciplinar. As disciplinas consistem em técnicas de poder que

incidem sobre os corpos visando ao seu domínio detalhado para produzir

subjetividades específicas. Conforme Foucault (2007, p. 118),

[e]sses métodos que permitem o controle minucioso das

operações do corpo, que realizam a sujeição constante de

suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-

utilidade, são o que podemos chamar de “disciplinas”.

A descoberta do corpo como alvo de poder se constitui em elemento

essencial para o exercício da disciplina (FOUCAULT, 2007). Em sua obra Vigiar

e Punir, publicada em 1975, ao analisar historicamente o funcionamento das

prisões, Foucault (2007) elaborou uma importante teorização sobre as

151Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 152: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

instituições, explicitando que as atividades e os procedimentos de tais

instituições têm no corpo-organismo, isto é, no corpo individual, seu alvo

privilegiado.

Importa compreender a disciplina em termos produtivos, ou seja, a

disciplina que produz efeitos sobre os corpos de forma ampla, permanente e

contínua (Alfredo VEIGA-NETO, 2007b).

O investimento do poder sobre os corpos se deu de forma a atingir

todos os corpos simultaneamente, da maneira mais detalhada possível, sem

que se anulasse a ação sobre cada corpo. Dessa forma, a arquitetura e a

organização espacial dos corpos tornaram-se fundamentais. Para Veiga-Neto

(2000, p. 13-15, grifo do autor):

[...] isso implica que os corpos não estejam dispersos, mas

de preferência submetidos a algum tipo de cerceamento ou

confinamento que os torne acessíveis às ações do poder. A

clausura – em tantos aspectos copiada pela escola – é o

exemplo limite desse confinamento. [...] dentro desse

confinamento, a distribuição dos corpos deve ser o menos

caótica, difusa e informe possível, pois é preciso que o

poder atinja igualmente a todos. [...] O quadriculamento é a

melhor imagem para uma distribuição em que a lógica é:

“um lugar para cada corpo e um corpo em cada lugar”. [...]

A função de uma quadrícula é, em última instância,

desempenhada pelo corpo que a ocupa. [...] o que mais

importa não é tanto o território nem o local – em termos

físicos – ocupados por um corpo, mas, antes, a sua posição

em relação aos demais. E desses demais entre si e assim

por diante. [...] Assim, o espaço não se reduz a um simples

cenário onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do

que isso, é o próprio corpo que institui e organiza o espaço,

enquanto o espaço dá um “sentido” ao corpo.

No processo de constituição da escola moderna disciplinar, não

somente os corpos foram disciplinados. A disciplina atingiu também os

saberes, produzindo os saberes escolares ou a pedagogização do conhecimento

(VEIGA-NETO, 2000). A partir desse processo, deflagra-se um enfrentamento

no campo do saber relacionado ao exercício de poderes, determinando o

rearranjo dos próprios saberes. Para Julia Varela (1994, p. 89-90):

A partir de finais do século XVIII, e em conexão com esse

processo de pedagogização do conhecimento, produziu-se

uma nova transformação, que Michel Foucault denominou

152

Page 153: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

de “disciplinamento interno dos saberes”. [...] [Para

Foucault, importava] analisar o múltiplo e imenso combate

que então se travou no campo do saber, em relação com a

formação e o exercício de determinados poderes, o que

implicou uma reorganização dos próprios saberes.

O processo de disciplinarização dos saberes foi orientado por meio de

procedimentos como organização, classificação, depuração e censura dos

conhecimentos, constituindo-se em uma operação moralizadora. Assim, a

distinção entre corpo e conhecimento na escola disciplinar anulou-se, uma vez

que ambos foram disciplinados e moralizados com o intuito de produzir um

determinado tipo de sujeito. Esse conjunto de corpos e conhecimentos

disciplinarizados engendrou a produção de um sujeito específico, ou seja, o

sujeito anormal (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2004, p. 54). Esse deslocamento

é importante na medida em que articula uma relação imprescindível para a

compreensão da problemática proposta por esse texto, isto é, a dicotomia entre

normalidade e anormalidade. Nesse sentido, a autora (2004, p. 54)

argumenta:

De conhecimentos verdadeiros, tal como eram entendidos

no século XVII, os conhecimentos passaram a ser

separados entre morais e amorais, em uma operação que

classificou, hierarquizou e excluiu conhecimentos em nome

da produção de uma subjetividade normalizada.

No projeto disciplinar, o exame ocupa lugar central. Esse

procedimento se constitui, segundo Foucault (2007), por meio de uma espécie

de comparação e de um desejo relacionado a uma média idealizada no que se

refere a comportamentos e condutas. No interior do regime de saber-poder, por

meio do qual se articulam saberes produzidos e práticas regulatórias, o exame é

a culminação do processo, pois articula “as técnicas de hierarquia que vigia e as

da sanção que normaliza” (FOUCAULT, 2007, p. 154). Na forma de técnicas,

esses saberes e práticas intentam o controle dos corpos por meio dos exames.

Esse regime pressupõe também a punição aos indivíduos desviantes das regras

estabelecidas. Segundo Foucault (2007, p. 152-153, grifo do autor):

Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar,

não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a

repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem

distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os

comportamentos singulares a um conjunto, que é ao

mesmo tempo campo de comparação, espaço de

diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar

153Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 154: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa

regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base

mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se

deve chegar perto. [...] A penalidade perpétua que

atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das

instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza,

homogeneiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.

Desse modo, estabelece-se uma diferenciação entre os sujeitos e sua

segregação, entre duas dimensões bem distintas e caracterizadas, isto é, o

normal e o anormal. A diferença passa a ser pertinente como subsídio para a

diferenciação e a classificação. Produz-se, dessa forma, uma hierarquia entre

os sujeitos fundamentada em uma aproximação ou distanciamento da norma

(FOUCAULT, 2007). Instaura-se, com isso, a dicotomia entre normalidade e

patologia, que sustenta o funcionamento das instituições disciplinares,

propiciando o cumprimento da sua função de disciplinar e normalizar os

sujeitos (CÉSAR, 2004).

O Estado moderno nasce e cresce em meio às transformações na

dinâmica do poder, articulando soberania, disciplina e gestão governamental,

sendo essa última, segundo Veiga-Neto (2007b, p. 72), compreendida como

“uma nova arte de governamento exercida minuciosamente, ao nível do detalhe

individual e, ao mesmo tempo, sobre o todo social”. O conceito foucaultiano de

governamentalidade é fundamental para se pensar sobre esses

deslocamentos.

As análises de Foucault, ao tomarem as formas de governar como um

objeto de investigação definiram um domínio de governo em que tais práticas

têm a população como seu objeto, a economia política como forma central e os

dispositivos de segurança como seu instrumento técnico essencial (Edgardo

CASTRO, 2009). Nessa perspectiva analítica, “[...] o poder político acabava de

assumir a tarefa de gerir a vida” (FOUCAULT, 1988, p. 151). Assim, de acordo

com Foucault (1988, p. 152), instalou-se uma tecnologia de dupla face sobre a

vida: enquanto o poder disciplinar centrou-se no adestramento do corpo,

cerrado nas instituições, a biopolítica focalizou-se na regulação da população.

Essa tecnologia o autor denominou de “biopoder”.

A educação assim como a saúde e a habitação, por exemplo, passam,

a partir da metade do século XVIII, a ser uma preocupação do Estado (Inês

DUSSEL; Marcelo CARUSO, 2003, p. 158). Em artigo sobre o tema, Ernesto

Pimentel Filho e Edson Vasconcelos (2007) descrevem as formas de atuação

da biopolítica, a partir das teorizações de Michel Foucault:

154

Page 155: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Essa nova tecnologia não se resume ao homem como corpo,

ela se dirige aos fenômenos mais globais, mais gerais. Vai

afetar os processos ligados à vida, como o nascimento, a

morte, a doença, a produção, o casamento. Nesse sentido,

não será a individualização que se coloca, mas a

massificação; não o homem-corpo, mas o homem-ser vivo.

Processos como os de natalidade, mortalidade e de

longevidade se articulam a uma série de outros de ordem

política e econômica, eles serão os principais campos de

saber e alvos dessa biopolítica. É então que se lança mão de

incrementos para a melhor captação destes processos

(PIMENTEL FILHO; VASCONCELOS, 2007, p. 18-19).

A biopolítica transforma os fenômenos de população em um problema

político e científico (André DUARTE, 2006). A fabricação da vida como

fenômeno político é o objetivo de uma tecnologia cujo alvo central é a

população. As várias possibilidades de intervenções no biológico criam

mecanismos e efeitos até então impensáveis (Fabrício PONTIN, 2007, p. 69).

Com isso, pode-se compreender a escola como um empreendimento biopolítico

por excelência. Considera-se que os novos saberes criados a serviço do poder

tiveram como objetivo principal o controle do corpo como espécie. Assim, a

população constitui-se em um corpo com múltiplas cabeças que, para ser

compreendido, é descrito, numerado, quantificado, analisado, além de ser

comparado em relação àquilo que se instituiu como norma. Disso, resultam

dois efeitos: o controle das populações e a previsão dos seus riscos (VEIGA-

NETO, 2007b; DUSSEL; CARUSO, 2003).

Deslocamentos

Nas últimas décadas, entretanto, uma nova ordenação social tem se

feito sentir. Essa nova ordem social está sendo implementada, ainda que sua

análise e compreensão passem, muitas vezes, despercebidas sob a forma da

naturalização de discursos e práticas sociais. Nesse sentido, Gilles Deleuze

(1992, p. 216) argumenta que “[o] que está sendo implantado, às cegas, são

novos tipos de sanções, de educação, de tratamento”.

O pressuposto foucaultiano sobre o exercício das disciplinas em que

cada corpo ocupava o seu lugar, o mais visível possível, para facilitar o

controle e a produção de corpos dóceis e úteis não foi extinto, apenas se

deslocou. A ideia de crise ocupa na nova ordem social um lugar central na

produção de relações de poder diferenciadas das engendradas pela disciplina

155Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 156: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

na modernidade. Deleuze, em um ensaio de 1992, em que reflete acerca das

transformações sociais, políticas e econômicas a partir da segunda metade

do século XIX e com base em suas análises sobre a contemporaneidade,

refere-se a uma crise generalizada nas instituições disciplinares modernas de

confinamento, dentre as quais se encontra a escola. A compreensão dessa

crise escolar, como meio de confinamento e exercício do poder disciplinar,

implica a apreensão da escola como objeto historicamente construído com

data de nascimento e, por ser histórica, suscetível ao desaparecimento

(Pablo PINEAU, 2005).

O provável desaparecimento do modelo disciplinar moderno já havia

sido notado e anunciado pelo próprio Foucault, na análise da modernidade e da

invenção das instituições disciplinares. Conforme Deleuze (1992, p. 219-220,

grifo do autor),

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos

XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. [...]

Mas, o que Foucault também sabia era a brevidade deste

modelo [...]. As disciplinas, por sua vez, também

conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se

instalavam lentamente e que se precipitaram depois da

Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que

já não éramos mais, o que deixávamos de ser. Encontramo-

nos numa crise generalizada de todos os meios de

confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família.

Dessa forma, para Deleuze, Foucault demonstrou a brevidade das

sociedades disciplinares e a crise que engendrou as relações sociais a partir da

Segunda Guerra Mundial, considerando as atrocidades empreendidas nos

campos de extermínio, como os assassinatos em massa de judias/eus,

ciganas/os e homossexuais, entre outros (CÉSAR, 2004; DUSSEL; CARUSO,

2003). Nesse importante ensaio, Deleuze desenvolveu o conceito de

“sociedade de controle”, que consiste em uma ferramenta fundamental para a

elaboração das problematizações sobre essa nova ordenação social, além de

ser essencial para a discussão aqui apresentada, que toma a escola

contemporânea como o lugar sobre o qual os sujeitos da pesquisa se inscrevem.

A busca pela qualidade total na educação, o empreendedorismo, a

motivação, a competitividade, a metodologia de projetos, ações pontuais sobre

os temas sociais desarticuladas do currículo, a recuperação paralela, a

promoção automática das/os estudantes, a frequente presença de organizações

não governamentais, além da presença de policiais nas escolas realizando

156

Page 157: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

atividades para as quais as/os professoras/es, descrentes de sua própria

formação, não se sentem preparadas/os, marcam esse contexto (DUSSEL;

CARUSO, 2003).

O importante conceito de pedagogia do controle, elaborado por Maria

Rita de Assis César (2004), consiste em uma ferramenta fundamental para

pensar a construção da escola contemporânea. Nessa perspectiva, a própria

ideia de conhecimento se altera, uma vez que o importante na nova ordem social

é a informação. Os investimentos em educação e na escola visam a transmissão,

o fluxo e o movimento da informação, com velocidade. Essa transformação

produz efeitos no que se refere ao discurso e às práticas pedagógicas, alterando,

assim, o funcionamento das escolas. Na elaboração da autora:

Partindo da tese da passagem de um mundo a outro, a

educação disciplinar está deixando de existir, ainda que

seus fantasmas ainda se façam presentes, e no seu lugar

está surgindo a pedagogia do controle. Na medida em que

isso implica a transformação radical do conceito de

conhecimento, que agora dá lugar à noção de informação

como o verdadeiro “objeto” a ser transmitido segundo

algumas regras metodológicas específicas, a educação

strito sensu fica reduzida a uma mera reelaboração moral.

[...] Na “pedagogia do controle” não só as normas e valores

morais são pedagogizados e escolarizados, mas também

todo e qualquer aspecto da vida (CÉSAR, 2004, p. 150-

153, grifo do autor).

A escola é aqui pensada como empreendimento biopolítico, que

implica uma potencialização do governo dos corpos e das mentes. Com isso, os

agenciamentos biopolíticos da escola deslocam-se para uma

governamentalidade neoliberal, isto é, se a sociedade passa do seu modelo

disciplinar para o controle, a escola passa a ser pautada pela

governamentalidade. A escola contemporânea situa-se nas relações entre a

biopolítica e essa nova forma de governamentalidade neoliberal. É agenciada

pelas biopolíticas e, com isso, tomada como um campo de investimento que

pode potencializar a produção e o consumo. Nessa perspectiva, a escola como

empreendimento biopolítico contemporâneo objetiva capturar os corpos para

torná-los viáveis para a produção e para o consumo (CÉSAR, 2010). Esse

consumo se orienta para a satisfação imediata dos desejos, que cedem espaço

a outros, tão logo sejam satisfeitos. Os produtos procurados são “leves,

voláteis, descartáveis” (Karla SARAIVA; Alfredo VEIGA-NETO, 2009, p. 193).

157Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 158: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

1Berenice Bento (2008), ao analisar os documentos que produziram o

discurso oficial da patologização da experiência transexual, encontrou uma

articulação na qual um desses documentos enreda a escola, a família e a

medicina/psicologia para a produção dos diagnósticos e das normas de gênero.

Nessa articulação, o papel da escola consiste em alertar mães, pais ou

responsáveis sobre o comportamento “anormal” da criança em relação à

sexualidade. A preocupação com esse comportamento desviante consiste no

medo de que a criança “seja”, ou “se torne”, lésbica ou gay (BENTO, 2008, p.

129). Em geral, a intervenção se dá por meio de um movimento de recondução

à heterossexualidade. Com isso, a correção do desvio transforma-se em uma

espécie de meta a ser cumprida a qualquer custo (Deborah BRITZMAN, 1996).

Em se tratando de travestis e transexuais, a pedagogia do controle tem

produzido práticas fora das instituições escolares, uma vez que se constituem

em corpos e identidades que escapam (CÉSAR, 2009). São corpos cuja

esperança de retorno à norma regulatória é praticamente nula, considerando

que a maioria dos processos e intervenções empreendidas para a fabricação de

si é irreversível, diferentemente dos corpos de lésbicas e gays.

Nesse sentido, as relações entre a escola e essas experiências

estabelecem-se no campo do estranhamento e, em geral, da tensão. Segundo a

narrativa oficial do Movimento Social LGBT, a escola contemporânea tem sido

eficiente em apagar as diferenças e em propagar a exclusão e a violência, pois 2objetiva que todas/os sejam iguais na diversidade . Entretanto, por meio de

uma reflexão sobre a diferença, a presença dessas experiências na escola

contemporânea poderá ser tomada como um acontecimento. Para Carlos Skliar

(2008, p. 21-22),

[...] é a partir de uma incapacidade, a partir de um não

conhecimento, a partir da impossibilidade para responder a

essa pergunta, que alguma coisa acontece ali, no lugar

onde não há lugar, faz-se acontecimento. Alguma coisa

158

1 Normas de Tratamento (State of Care ou SOC), texto publicado pela Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association (HBIGDA) – esse documento está em sua sexta versão; Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), atualmente na quarta versão; Código Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua décima versão (BENTO, 2008, p. 76-77).2 Para mais sobre essa narrativa oficial, acessar os seguintes sites: da Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros: <http://pessoal.atarde.com.br/marccelus2/antra/plantao.html>. Acesso em: 15 out. 2011; da Associação em defesa dos Direitos Homossexuais da grande Florianópolis ADEH – Nostro Mundo: <http://adeh-nostromundo.blogspot.com/>. Acesso em: 15 out. 2011; da Liga Brasileira de Lésbicas Paraná <ligabrasileiradelesbicaspr.blogspot.com>. Acesso em: 15 out. 2011; da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 15 out. 2011.

Page 159: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

torna-se acontecimento, pois o impossível se torna

possível.

O que se percebe é que a simples presença desses sujeitos perturba e

desestabiliza o empreendimento biopolítico da escola, uma vez que

diferentemente da saúde, a qual engendrou o processo transexualizador, a

escola não encontrou ainda meios de capturar esses corpos e torná-los viáveis

para o consumo e a produção. Dentro do imperativo da inclusão escolar, a

presença trans na escola deflagraria um processo de reorganização da

instituição sobre modulações até então impensadas. Entretanto, isso não

ocorre, produzindo, ao contrário, os processos de exclusão (CÉSAR, 2010).

Corpos e identidades transexuais operam uma desconstrução no

sistema corpo-sexo-gênero por meio de estratégias que, possibilitadas pela

própria produção regulatória, desestabilizam a escola e perturbam a nova

ordem das coisas. Esses efeitos determinam, muitas vezes, a rejeição e a

exclusão desses sujeitos, justamente porque se produzem fora da norma e

fogem ao controle (CÉSAR, 2009).

A produção do sujeito pela pedagogia do controle obedece a um novo

conjunto de normas, fundamentado por saberes e discursos que por sua vez se

articulam por meio de poderes produtores de subjetividades viáveis ao

consumo e à produção. A função desse conjunto consiste em manter a nova

ordem estabelecida pela sociedade de controle. Nesse contexto, a escola se

produz como o lugar da informação, da inclusão, da tolerância, da democracia,

da participação, além de promotora da igualdade. Entretanto, nesse discurso

atuam novos jogos de poder que irão aniquilar as diferenças em razão de uma

igualdade moralizante e de uma pedagogia da tolerância e do consenso que,

por sua vez, produzem mais exclusão e violência.

Um desafio para educação e para a escola consiste em procurar

alternativas para se pensar a partir da diferença e da multiplicidade, como uma

expressão da alteridade (Hannah ARENDT, 1987; VEIGA-NETO, 2007a).

Talvez assim se possa traçar meios para resistir e escapar aos tentáculos do

“monstro do controle”. Com isso, talvez, a educação se constitua em uma

possibilidade, como um ato político de resistência e liberdade, em meio às

incertezas e à fluidez, produzindo um enfrentamento à pedagogia da tolerância.

Cena dois: a relação com as/os professoras/es e funcionárias/os

As experiências vividas e (re)vividas pela arte de contar expressam as

transformações na vida dessas pessoas. Com isso, os sujeitos transexuais que

159Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 160: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

160

participaram e colaboraram com esta pesquisa proporcionaram possibilidades

de se pensar sobre o funcionamento das redes de poder-saber constituintes dos

processos de exclusão empreendidos na e pela escola. Essas redes

estabelecem como alvo seus corpos e identidades fabricadas.

Foram analisadas aqui as narrativas sobre as relações estabelecidas

com professoras/es e funcionárias/os da escola. As narrativas nesse aspecto

evidenciam singularidades das experiências transexuais na escola. Alguns dos

sujeitos entrevistados expressam recordações agradáveis desse contato. Para

Rafaelly (E): “[a]té os dez anos não tive problemas com preconceito na escola.

Sempre fui muito estudiosa e popular. Os professores me adoravam porque eu

era a melhor da sala”. Entretanto, ao rememorar o seu processo de

escolarização, Rafaelly narra também momentos em que a relação com as/os

professoras/es foi difícil e dolorosa.

Nossa, parece que passa um filme na cabeça... Faltava um

mês para concluir a 7ª e eu parei. Lembro que alguns

professores falavam: “olha a mariquinha!; Corta esse

cabelo!; Cria jeito de homem!”. Nessa época, meu cabelo

era chanel. O diretor dessa escola na época, que

permanece até hoje, também não achava certo eu ser, na

época, gay. Abandonei os estudos por causa disso. Não

aguentei a pressão (Rafaelly Wiest, E).

As relações entre Maitê e suas/seus professoras/es são definidas por

ela como complicadas e difíceis. Ela atribui isso à ignorância das/os

professoras/es sobre a sua experiência. Narra algumas situações por que

passou na escola, nas quais as professoras privilegiavam outras/os alunas/os

em detrimento dela.

Naquela época não existia pedagoga na minha escola.

Essas coisas de acompanhamento foram posteriores. Tinha

uma psicóloga que raramente estava lá e que não entendia

direito e não se aprofundava muito no “problema”. Por

ignorância mesmo. Mas nem eu sabia. Quando acontecia

alguma coisa de chacota na sala de aula, mesmo eu não

sendo a culpada de nada, era eu que tiravam da sala porque

eu era a maçãzinha diferente. Era eu que saía, mesmo

quando eu não tinha culpa nenhuma. Para a professora, era

melhor tirar eu do que tirar os outros 39 alunos. Tira a Maitê

e tenta resolver isso. Eu não tive nenhum acompanhamento

ou encaminhamento da escola. Sempre me culpabilizaram

e, ao mesmo tempo, não podiam falar muito porque eu era

uma ótima aluna. E não sei se mudou muito, agora que tem

Page 161: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

as pedagogas. Pelo que eu escuto do Richard, aquele amigo

da minha sobrinha, que é trans e estuda aqui no Bom Jesus,

parece que o entendimento continua bem complicado

(Maitê Schneider Caldas de Miranda, E).

Guerreiro, que vive sua transexualidade no ensino superior, conta que

estabeleceu relações difíceis tanto com suas/seus professoras/es quanto com

as/os funcionárias/os da universidade. Segundo ele, em nenhum momento

sentiu-se amparado na sua experiência transexual.

[...] Já começa com o coordenador usando a bacia de

Pilatos e lavando as mãozinhas dele. Já começa com isso,

então é difícil. A maioria dos professores é desligada. [...] A

equipe técnica de psicólogos e assistentes sociais não está

sensibilizada. Então, hoje eu vejo que a Pró-reitoria fez mais

por obrigação e não compreendeu que deveria encampar

essa luta. E o Núcleo de Gênero, nem se fala, porque eu

cheguei a pedir e não houve nenhum encaminhamento.

Tanto que as pessoas sempre me questionam: “ninguém

pode ajudar?” Não, não pode, porque não quer. Então, foi

uma decepção muito grande. [...] É tanto que uma das

professoras do Núcleo de Gênero foi minha professora e

também não fez nada (Guerreiro, E).

Ao construir suas lembranças do período escolar em relação às/aos

professoras/es, Guerreiro relata:

Eu sempre vou me lembrar de bons professores. Daqueles

que me influenciaram, que me fizeram inclusive acreditar

na educação como os óculos da transformação, que me

fizeram querer estar dentro da educação. E que me trataram

como “gente”, me elogiando quando mereci (Guerreiro, E).

Essa narrativa de Guerreiro explicita uma complexidade em relação à

escola, pois embora tenha lembranças de professoras/es que lhe mostraram

outras possibilidades de entendimento da educação, a meritocracia também

parece ter feito parte dessas interações.

Em relação à sua interação com as/os professoras/es e funcionárias/os

da escola, Carla conta que na terceira série as professoras chamaram sua mãe à

escola para dizer que ela tinha “problemas”, porque apresentava um

comportamento fora do padrão esperado para um menino. Além disso,

tentaram convencer sua mãe sobre a necessidade de tratamento para o seu

“caso”. Assim, nas suas lembranças, Carla expressa sentimentos de

ressentimento e mágoa em relação à escola:

161Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 162: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

162

As professoras diziam à minha mãe que eu tinha

“problemas”, que ela precisava me levar num médico, num

psicólogo, porque não era normal esse meu

comportamento, de querer estar só no meio das meninas e

brincar só com meninas. Mas esse meu comportamento

incomodava somente às professoras, pois nem as meninas

e nem os meninos se incomodavam com a minha presença

só nos grupos de meninas. E a mim incomodava menos

ainda, porque era nesse grupo que eu me sentia bem. Uma

vez cheguei a apanhar da minha mãe devido a essa situação

e fui proibida de me aproximar das meninas. Então, obedeci

e me isolei, pois se eu não podia falar com as meninas, com

os meninos é que eu não ia falar. Aí eu ficava na sala de aula

nos intervalos. E isso me deixa triste, pois nenhuma

professora chamou minha mãe para relatar que eu estava,

agora sim, com problemas, pois não tinha mais contato

com as amigas e passava os intervalos isolada dentro da

sala de aula (Carla Amaral, E).

A narrativa de Thaís evidencia uma lembrança de apoio em relação à

sua experiência transexual na escola. Ela relata que uma única vez se sentiu

amparada na escola por uma professora-pedagoga. No entanto, segundo ela,

essa relação foi pontual no seu processo de escolarização.

Na sétima série, tinha uma orientadora no colégio e ela viu

minha situação. Eu cheguei a reclamar com ela que não

dava mais e ela conseguiu que eu fosse ao banheiro dos

professores, mas foi só na sétima porque no outro ano ela

saiu da escola e daí voltou tudo ao “normal”. O segundo

grau eu fui fazer em outro colégio e tive que passar por tudo

de novo (Thaís Prada, E).

Nessa narrativa de Thaís, é importante notar também uma espécie de

banalização das situações de constrangimento, humilhação e violência, pois

voltar ao “normal” significa estar submetida a essas práticas na escola. Entre as

participantes do grupo de discussão, apenas Jennifer relata lembrar-se de ter

estabelecido uma relação com um professor, segundo ela, de afeto e carinho,

prolongando-se por dois anos. Ela lembra:

Tinha só um professor que quando eu comecei a tomar

hormônio, tarde já, com quinze anos, ele passou pela

minha carteira um dia e colocou a mão no meu pescoço

perguntando se eu estava bem. Daí em diante ficamos

juntos. E a gente saiu por dois anos (Jennifer, GD).

Page 163: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A costura coletiva das memórias das outras participantes é feita no

território do silenciamento. Elas afirmaram lembrar-se de ter tido uma relação

nem afetuosa nem difícil com suas/seus professoras/es e com as/os

funcionárias/os da escola. Joyce relata: “[a] relação com os professores era

mecânica. Eles mandavam e a gente fazia, porque tinha que passar de ano.

Ninguém se aproximava muito. A gente se isolava. Era o patinho feio” (GD).

Importa pensar por que as memórias dos sujeitos transexuais sobre o

relacionamento com professoras/es e funcionárias/os da escola invisibilizam

as/os profissionais da educação. Isso se evidencia nas narrativas da maioria dos

sujeitos que dizem não se lembrar de ter tido uma relação próxima com

suas/seus professoras/es. Poder-se-ia pensar no apagamento dessas

memórias.

Cena três: a relação com a instituição

As narrativas sobre a instituição escolar explicitam sentimentos de

desamparo, evidenciando uma sensação de não pertencimento a esse espaço

institucional. A montagem das memórias que importam para elas/e parece

estabelecer uma relação causal entre a sua experiência e as situações

vexatórias, promovidas pela própria instituição. Para Guerreiro:

Eu penso que eu fui hostilizado e humilhado, tanto na

escola como na universidade, porque eu era diferente, por

eu estar fora das normas de gênero, porque a sociedade é

dicotômica. É sempre aquela maldita ideia maniqueísta de

bem e mal. Então, a norma é o bem e fora da norma é o mal.

Então, se você está fora da norma, a sociedade te lê como o

mal. Então, portanto, se você é o mal, a sociedade pode te

hostilizar, pode fazer o que quiser com você. Acho que uma

explicação é essa (Guerreiro, E).

Entretanto, outras construções narrativas, como uma do mesmo

Guerreiro, explicitam a escola como uma instituição importante, de alguma

forma, na sua experiência:

Até o reconhecimento, porque eu fui diversas vezes o

melhor aluno da escola. Então tinha aquela coisa de

hastear a bandeira e isso te dá certo status. Então isso era

legal, porque eu sempre me defini como uma pessoa muito

carente. Porque para mim sempre foi muito difícil conseguir

carinho. Então, quando você tem certa admiração, mesmo

que comprada, mesmo que engolida, “goela abaixo das

163Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 164: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

164

pessoas”, para quem está muito carente, é legal. As

lembranças boas são nesse sentido (Guerreiro, E).

Nessa narrativa de Guerreiro, aparece tanto o mérito acadêmico

quanto as negociações. Maitê narra que estabeleceu uma relação utilitarista

com a escola. Segundo ela, como o ensino praticado na escola onde ela

estudava era confessional católico, ela sentia que estava pecando sempre.

Assim, resolveu ignorar o que era discutido pela escola em relação às

experiências fora da norma heterossexual, transformando a instituição em um

meio para alcançar um fim.

Escola para mim sempre foi um caminho para chegar num

fim, entende? Era bem seco assim, não tinha nada de

segunda família, não tinha nada de nada, não tinha

nenhum vínculo afetivo com a escola. Era um caminho que

eu tinha que trilhar para chegar no fim que eu queria, da

melhor maneira possível, mesmo com todas essas

impossibilidades. A escola nunca teve um vínculo do tipo

lugar de saber e nada disso... (Maitê Schneider Caldas de

Miranda, E).

Thaís, ao montar suas memórias sobre a instituição escolar, pensa,

silencia, reconhecendo a instituição escolar como promotora do preconceito e

da discriminação, juntamente com outras instituições da sociedade. Segundo

ela, as/os transexuais e as travestis são os sujeitos que mais sofrem na escola,

por influência dos ensinamentos religiosos presentes na estrutura escolar.

Nesse sentido, relata:

Hoje a coisa já se modificou um pouco mais, embora não

exista lei nenhuma que defenda a gente, não é verdade?

Tem que criminalizar a homofobia, porque os negros têm,

não é verdade? As mulheres têm a Lei Maria da Penha, por

que a gente não pode ter? Essa raça de evangélicos que vive

pegando no pé da gente achando que a gente é uma

criatura que sei lá, subdesenvolvida, que não é desse

mundo, que é filho do capeta, só isso que eles imaginam a

respeito da gente. É complicado... E nós sofremos muito

mais exposição do que os gays e do que as lésbicas na

escola, por exemplo, não é verdade? Eu penso que a

maioria das meninas, tanto de pensionato quanto de rua,

sofrem o preconceito, não aguentam e saem do colégio.

Porque tem travestis que não dá para conversar, sabe,

assim? Que são realmente ignorantes. E não é por falta de

que elas não quisessem aprender, é porque meio que isso

foi negado para elas, não é verdade? (Thaís Prada, E).

Page 165: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Embora a maioria das narrativas dos sujeitos da pesquisa expresse

sentimentos que se aproximam dos revelados na fala de Thaís, importa

considerar que as narrativas são desestabilizadas. Essa desestabilização se dá

por meio daquelas que conseguem produzir algum significado para a

instituição escolar em relação à experiência da transexualidade, como se pode

perceber na segunda fala de Guerreiro. Contudo, mesmo com as

desestabilizações produzidas nas falas que ora tomam a instituição escolar

como produtora da exclusão e do preconceito, ora atribuem algum valor para a

experiência escolar, as narrativas demonstram o descompasso entre a escola e

a experiência da transexualidade.

Cena quatro: as negociações necessárias

Na construção de suas narrativas, Maitê, Guerreiro, Dorothea e Thaís

expressaram as negociações que realizavam no período em que estavam

inseridas/os na escola. Maitê narra:

Teve as chacotas, desde cedo, o que me dificultou muito o

contato com os outros na escola. Então, sempre foi muito

difícil, porque me chamaram uma vez de mariquinha no

recreio e fizeram uma roda para mim e eu achei o máximo.

Eu estava com cinco anos, terminando o pré e não sabia

nem o que era. Depois que meu pai me explicou o que era eu

fiquei muito triste, porque a partir desse momento, eu

soube que as pessoas me tratavam como alguém diferente e

isso me magoou muito. E era tanto de um lado quanto de

outro [entre as meninas e os meninos]. Então eu ficava na

linha do meio. E a partir desse momento eu comecei a

minha vida escolar e no meu segundo ano eu percebi que

quanto mais estudiosa eu fosse, mais eu teria alguma

qualificação que faria com que as pessoas vissem uma

coisa boa, onde as pessoas não viam qualificação

nenhuma. Então, foi muito transparente, desde cedo, que

eu tinha que ser a melhor da minha turma. Não porque eu

queria ser, não porque estivesse dentro de mim, mas,

porque seria um jeito de negociar uma posição que eu não

tinha. Eu tinha sido colocada lá embaixo e esse era um jeito

de negociar uma ascensão na escola. Comecei a ser a

melhor da minha turma e as pessoas começaram a

depender de mim. Querem cola? Querem copiar o que tem

no meu caderno porque tem toda a matéria? Então vocês

têm que me convidar para a festa. E comecei a negociar

165Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 166: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

166

esse tipo de coisa na escola. Eu aprendi a ser super

dissimulada com relação a isso. Não acho que seja uma

qualidade também, mas foi uma defesa. Não é uma coisa

que eu me orgulhe muito (Maitê Schneider Caldas de

Miranda, E).

Para Dorothea, as estratégias de negociação tiveram um sentido

diferente. Segundo ela, não havia negociação, mas coação por parte das outras

crianças.

Minhas lembranças do período escolar são que eu não me

identificava nem com os meninos nem com as meninas e

descontava estudando um monte e sendo a CDF da turma,

sempre. E eu não negociava com as crianças. Eu me

isolava mesmo. Mas era muito comum as pessoas me

obrigarem, me forçarem a passar cola. Elas diziam para

mim: “ou você me passa cola ou eu te espanco na saída”. Aí

eu pensava: já que ele pediu com tanta educação, não é?

Eu passava. Mas não era por amizade. Eu me isolava

mesmo nos livros, nos cadernos e nos materiais. Meus

amigos da sala de aula eram meus materiais, mesmo

(Dorothea Lavigne, E).

Guerreiro também conta:

Em contrapartida, assim também, eu encontrei na escola

talvez o único espaço onde eu pudesse de alguma forma

comprar o meu respeito justamente pela dedicação muito

grande aos estudos. É realmente comprar o respeito. Hoje

eu não sei se eu sou uma pessoa que gosta de estudar ou eu

passei a gostar de estudar para poder ter boas notas e poder

aliviar um pouco o preconceito assim, eu não sei definir

(Guerreiro, E).

Sobre as negociações que estabeleceu na escola, Thaís relata:

O segundo grau foi muito barra pesada por causa do

preconceito, porque você está mais sexuada, chegamos

transexualizadas no colégio... Porque até então a gente ia

levando, tranquilinha, na “maciota”. Eu sempre fui uma

aluna inteligente e às vezes tinha alguns alunos que não

gostavam de mim, então eu conquistava e colocava o

nominho deles no trabalho para evitar que eles pegassem

tanto no meu pé, tá entendendo? (Thaís Prada, E).

Embora de maneira diferente, Luisa e Josiane, participantes do grupo

de discussão, também constroem essas narrativas comuns, as quais também

Page 167: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

expressam memórias do trauma, sendo articuladas pelos sujeitos como uma

forma de barganhar a sua presença na escola. Com efeito, essa presença

perturba porque desloca a inteligibilidade dos gêneros e desarticula os

pensamentos binários entre o que se constituiu historicamente como feminino

e masculino.

Cena cinco: o abandono da escola

Pensando nas costuras das memórias como narrativas traumáticas,

nesse momento, importa analisar as narrativas em relação ao distanciamento

da instituição escolar. O primeiro posicionamento diz respeito à percepção do

sujeito em relação ao seu afastamento da instituição por preconceito e

discriminação. Quanto ao grupo, dentre as dez participantes, Bruna, Joyce e

Christiani dizem ter sido expulsas da escola por essa razão. Guerreiro narra

processos excludentes, articulados na universidade, que colaboraram para que

não frequentasse as aulas, o que para ele, de alguma forma, significou uma

desistência parcial do curso.

Fiz a minha transição na UFPR. Entrei como lésbica em

2007 e, em meados de 2008, já era o Guerreiro. Não

deixei de estudar formalmente, mas quando eu não tinha

minimamente meu nome social respeitado, eu não

frequentava as aulas porque era muito sofrimento. Então,

dá para dizer que eu desisti também, não é? Porque eu

realmente não fiz. Eu fazia somente as matérias com os

professores que me aceitavam plenamente assim... Eu

fazia uma ou outra matéria com os professores que haviam

compreendido de alguma forma a minha situação e me

apoiado (Guerreiro, E).

Já Andreia Cristina, Thaís, Rafaelly, Sabrina e Carla produzem uma

narrativa comum, articulando a expulsão da escola à prostituição como

destino. Além disso, segundo elas, as transexuais que possuem graduação ou

uma profissão diferenciada formaram-se antes da transformação. Nesse

sentido, Thaís afirma:

Eu acho que, do meu ponto de vista, a prostituição nos é

imposta porque não dão para a gente o direito de estudar e

nos tornarmos profissionais de outra área. Porque é muito

difícil você conhecer alguma transexual que não esteja na

prostituição, que esteja atuando em outra área assim, que

seja formada em medicina, que seja formada em uma outra

coisa assim, sabe? Uma coisa que dê para ela o status quo.

167Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 168: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Uma transexual advogada... Ah, existe, existe sim. Mas eu

penso que durante um bom tempo da vida delas elas já se

especializaram nisso, se mantêm e depois que elas estão

formadas é que elas se transformam (Thaís Prada, E).

Outro deslocamento se dá em relação às narrativas que os sujeitos

constroem no sentido de negar o abandono da escola por preconceito.

Entretanto, como as falas se articulam por meio dos atos performativos da

memória, pode-se perceber a contradição, muitas vezes, em um mesmo

depoimento. Nesse sentido, Maitê relata: “[e]u não larguei a escola em

momento nenhum” (Maitê Schneider Caldas de Miranda, E). Contudo, na sua

trajetória escolar, percebem-se descontinuidades a partir do término do ensino

médio. Segundo ela, chegou a pensar que por estar tomando muitos hormônios

estaria com um problema neurológico, pois queria cursar Odontologia e não

passava nos vestibulares. Passou no vestibular do curso de Direito e cursou por

cinco períodos, mesmo não gostando.

Aí eu peguei uma turma super boa, super gostei e fiquei lá

cinco períodos, mesmo não querendo, detestando Direito.

Eu nunca gostei porque é uma área super formal, que não

tem nada a ver comigo. Mas, por conta da minha turma e

porque estava naquela base, no início eu acabei indo. Mas

no 5° período começaram as práticas. Com isso as

exigências também vieram, visitar presídio e ter que os

rapazes usarem terno e gravata e as mulheres sempre de

“terninho” e eu não queria isso para mim. Eu falei assim:

“olha, não é o que eu quero”. E tranquei. Fiz vestibular,

passei em Letras na Federal. Fiz um ano de Letras –

Português e Alemão e falei: “ai, também não é isso que eu

quero”. Tranquei e comecei a trabalhar com a militância,

nessa época. O site começou em 1997 e começaram todas

essas coisas na minha vida, que tomou outro sentido e eu

não terminei a faculdade. Eu estava com 25 anos na época

(Maitê Schneider Caldas de Miranda, E).

Dorothea (E), assim como Cléo (GD), relata que não abandonou a

escola por preconceito e discriminação, mas sim por dificuldades financeiras.

Nesse sentido, Dorothea afirma:

Eu fiquei na escola direto até terminar o 2° grau, que foi em

1999. Aí eu parei de estudar até 2005 porque eu precisava

trabalhar. Eu precisava de dinheiro. Nunca parei por

preconceito. Nesse ínterim, comecei a me enxergar como

trans, porque até então eu não senti tanto o preconceito

168

Page 169: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

porque eu não me enxergava. Algumas pessoas

enxergavam alguma coisa diferente, mas eu não me

enxergava (Dorothea Lavigne, E).

A narrativa de Carla evidencia um posicionamento singular em que a

transformação foi priorizada em detrimento da formação e dos estudos, isto é,

para Carla foi mais importante transformar o corpo e construir sua identidade

feminina do que a formação escolar. Ela narra que desistiu várias vezes de

estudar, reprovou e até faltou aulas para fazer leituras sobre transexualidade.

Faltava às aulas também devido ao preconceito e à discriminação que sofria e,

então, quando precisava fazer as provas, não alcançava a nota mínima exigida.

Para ela:

Isso, somado às lembranças do que passei na escola, fui

adiando o retorno à escola e relutando. Eu via minha

evolução como pessoa e como mulher e pensava: “como eu

vou voltar para a escola”? A escola não vai me aceitar. As

pessoas vão me odiar. Elas vão me chicotear. E eu não abro

mão de ser o que eu sou por causa da escola. E aí, tem

aquela fala de que quem não aprende na escola aprende

com a vida. Eu fui tentar aprender com a vida, fazer o quê?

Se na escola eu não consigo, pensei. E passaram-se 20

anos (Carla Amaral, E).

A análise das narrativas, tanto das entrevistas quanto do grupo de

discussão, suscitou uma reflexão sobre o abandono da escola por preconceito e

discriminação. Essa análise sugere que essa relação não pode ser tomada como

causal. Importa considerar os diversos elementos que articulam esse

afastamento da instituição. Assim, o abandono da escola por preconceito e

discriminação constitui-se em uma possibilidade muito evidente, tendo em

vista a interferência que essas situações produziram no rendimento escolar

desses sujeitos. Outras experiências expressas, como a resistência ao processo

de escolarização, também apareceram. Vale salientar também que, na análise

dessas narrativas, a idade em que transexuais e travestis empreenderam a

transformação de seus corpos e identidades ocupa um lugar central, assim

como os procedimentos adotados e os efeitos produzidos. Talvez seja produtivo

pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a

escola é que as/os abandona.

169Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 170: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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171Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171

Page 172: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

172

Page 173: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

From the deceased to the "Europeans":experiences of being, not continuing, and

temporarily becoming a transvestite in adolescence.

9

Da finada à europeia: experiências de ser, não permanecer e

estar travesti na adolescência

Tiago DuqueDoutorando em Ciências Sociais – UNICAMP

Mestre em Sociologia – UFSCarGraduado e Licenciado em Ciências Sociais – PUC Campinas

[email protected]

Page 174: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

174

Resumo

Esta pesquisa expõe e analisa experiências de travestilidades na adolescência a partir de

uma rede social da cidade de Campinas/SP. Por meio do referencial teórico da teoria

queer e de pesquisa etnográfica que envolveu observação, entrevistas face a face e on-

line, foca nos novos processos de travestilidades que têm sido construídos a partir de

referenciais identitários diferentes da geração anterior. Por meio das montagens e

desmontagens do que se compreende socialmente como feminino e masculino, essas

jovens têm buscado manipular identidades sociais. Sob uma perspectiva que historiciza

e contextualiza esses sujeitos do desejo em relação à sexualidade e ao gênero, a

investigação aponta como suas experiências, marcadas pela vergonha e pelo estigma,

vêm encontrando na montagem uma nova forma de relação com o dispositivo do

“armário”.

Palavras-chave: Adolescências. Teoria Queer. Desejo. Vergonha. Estigma.

Abstract

This research analyses some teenager transvestilities in a social net at the city of

Campinas, State of São Paulo, Brazil. The thesis follows a queer theoretical approach

with an ethnographic research covered with observation, face-to-face and online

interviews. It focus on new transvestilities identity processes that have been built with

different references in comparison to older generations of Brazilian transvestites. Theses

teenagers have tried to manipulate their social identities through a process of building

the feminine with the use of clothes, wigs and other accessories (montagem) and taking

them off to present themselves in a masculine performance (desmontagem). We adopt a

historical and contextual perspective to understand how these teenager experiences,

marked by stigma and shame, express ways of dealing with the “closet” apparatus.

Keywords: Adolescences. Queer Teory. Desire. Shame. Stigma.

Page 175: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Atualmente, as mudanças na esfera da sexualidade se associam às

novas tecnologias corporais e a uma ampliação do debate para além das

heterossexualidades. Entre as travestis, as possibilidades de construção do

feminino têm trazido novas implicações identitárias e tornado os corpos ainda

mais plásticos na construção e desconstrução do que se deseja para si. Essas

novidades não se dão de forma desconectada de padrões e práticas já

legitimadas por esse grupo, o que contribui para a problematização do que é ser

travesti nos dias atuais. Assim, este artigo foca na construção e desconstrução

dos corpos, das identidades e de suas relações com as experiências subjetivas

dos processos de travestilidades vivenciados por adolescentes na cidade de 1Campinas/SP .

O conceito de travestilidades, segundo Peres (2005), refere-se à

variedade de processos identitários pelos quais os sujeitos travestis passam

para se constituírem enquanto “femininos”. Pelúcio (2007) também afirma

que esse termo indica a multiplicidade das experiências ligadas à construção e

à desconstrução dos corpos, a despeito da rigidez na gramática de gênero

desses sujeitos.

Essa rigidez existe devido às suas experiências constituírem-se dentro

da heteronormatividade. Conforme Miskolci e Pelúcio (2008, p. 7),

hoje, o conceito de heteronormatividade sintetiza o

conjunto de normas prescritas, mesmo que não

explicitadas, que marcam toda a ordem social e não apenas

no que concerne à escolha de parceiro amoroso; alude,

também, ao conjunto de instituições, estruturas de

compreensão e orientação prática que se apoiam na

heterossexualidade. É toda esta ordem social que mostra

como no par heterossexualidade/homossexualidade não há

simetria, pois ele engloba díades como norma/desvio,

regra/exceção, centro/margem. A heterossexualidade só

pode existir fixando o periférico e, a partir dele, se definindo

como central.

A adolescência, por sua vez, não é tomada neste estudo somente como

um referencial etário fixo e rígido como o do Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), que aponta: pessoa entre doze e dezoito anos em condição

175Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

1 A análise presente neste texto é resultado da dissertação de mestrado defendida no curso de pós-graduação em Sociologia da UFSCar, em 2009, orientada pelo prof. dr. Richard Miskolci, cujo título é “Montagens e Desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência”.

Page 176: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

2peculiar de desenvolvimento (MUNICÍPIO DE CAMPINAS, 2003) . Afinal, a

adolescência em nossa sociedade “vem se tornando um período cada vez mais

longo e mais complexo” (BECKER, 1986, p. 12), revelando o quão socialmente

construída é essa categoria. Nessa perspectiva, procurei não focar aspectos

biologicistas da experiência do “ser adolescente”, que marcam outros estudos e

legislações, entendendo que, de fato, tais aspectos funcionam como

obstáculos, posto que consistem em produtos de uma subjetividade projetada

no instrumento do pensamento objetivo, que é o conceito (REIS; ZIONI, 1993).

Em outras palavras,

tais características passam a ser percebidas como uma

essência, em que “qualidades” e “defeitos” como rebeldia,

d e s i n t e r e s s e , c r i s e , i n s t ab i l i d ade a f e t i v a ,

descontentamento, melancol ia, agressividade,

impulsividade, entusiasmo, timidez e introspecção passam

a ser sinônimos do ser adolescente, constituindo uma

“identidade adolescente” (COIMBRA; BOCCO;

NASCIMENTO, 2005, p. 5).

Tomo o “ser adolescente” também como um conceito autodefinidor

desses sujeitos, atentando-me para a categoria “adolescente”, especialmente

quando ela era utilizada pelos sujeitos entrevistados para se autorreferirem,

independentemente dos registros legais oficiais, como documentos pessoais ou 3“fichas” institucionais daqueles que passaram por instituições de “proteção” .

Mesmo porque o que é foco deste estudo é o início da experiência travesti na

vida dessas adolescentes, a qual não segue uma faixa etária rígida, antes a

experiência diversificada entre infância e vida adulta.

Assim, esta investigação buscou fugir a preconcepções socialmente

arraigadas sobre a adolescência como período etário em que “naturalmente”

predominariam as mudanças e as dúvidas, a ousadia nas decisões ou uma

rebeldia particular. Em outras palavras, mais do que apontar contradições

próprias daquilo que temos comumente chamado de adolescência, é

necessário compreendermos que essas múltiplas experiências corporais

176

2 Contudo, entendo, como outros autores (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005), que, apesar de criticarmos o ECA por pautar a noção de adolescência como período universal, essa legislação é, ainda hoje, um importante instrumento de garantia de inúmeros direitos e de contraposição às campanhas conservadoras que pregam, entre outras reivindicações, o endurecimento de penas, a redução da idade penal e a implantação de uma política de tolerância zero àqueles sujeitos vistos como “menores infratores”.3 Essas instituições compõem a “rede de proteção à criança e ao adolescente” da cidade de Campinas. São abrigos onde eles são encaminhados e passam a morar até que atinjam a “maioridade” (18 anos) ou sejam reencaminhados a suas famílias de origem. Comumente, vão para essas instituições adolescentes vítimas de violência doméstica, envolvimento com o tráfico de drogas ou que tenham sido retirados das ruas da cidade.

Page 177: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

confusas no binarismo de gênero e o peso do descumprimento das normas, das

disciplinas e dos controles de uma sociedade que é hieraquizada pelo que

temos de sexual estão postos para todos os sujeitos, independentemente de

suas idades, atingindo, portanto, a sociedade contemporânea como um todo.

Evidentemente, existem especificidades históricas e culturais que

permitem aos adolescentes viverem experiências de uma maneira que outros

não viverão, mas não há nada capaz de ser visto como essencial ou natural

quando tratamos de sexualidade, gênero e subjetividade.

4A etnografia para esta pesquisa foi realizada no período entre março

de 2007 e março de 2009. No entanto, antes desse período, já eram 5estabelecidos contatos frequentes com a maior parte das entrevistadas .

Portanto, considerando o histórico deste pesquisador junto a esses

sujeitos, o contato com as travestis adolescentes para as entrevistas se deu via 6o pertencimento delas a determinadas redes sociais , para que se garantisse o

acesso a um material que pudesse minimizar ou, pelo menos, manter

relativamente sob controle e reflexão o viés de escolha das entrevistadas

(HEILBORN, 2004).

As entrevistas foram feitas face a face em diferentes locais (shopping

center, casa, parque público) e também por Messenger (MSN), que é um

programa de computador que possibilita, depois das trocas de endereços

eletrônicos, a conversa em tempo real, favorecendo assim a sociabilidade

virtual. Todas as entrevistadas aceitaram dar entrevistas, respondendo-me,

através das mensagens on-line, que concordavam em ter seus depoimentos

usados neste estudo. Além disso, foi utilizado também o Orkut para trocar

4 Tomo a etnografia, nos termos de Löic J. D. Wacquant (2002, p. 12), como sendo a metodologia que exige que o sociólogo faça a imersão iniciática e exercite a “conversão moral e sensual ao cosmo considerado como técnica de observação e de análise que, com a condição expressa de que ela seja teoricamente instrumentada, deve permitir ao sociólogo apropriar-se na e pela prática dos esquemas cognitivos, éticos, estéticos e conativos que põem em operação cotidiana aqueles que o habitam”.5 Os contatos com parte desses sujeitos se deram em ações do Identidade – grupo de luta pela diversidade sexual (desde 2003); enquanto fui educador social de rua do Programa de Enfrentamento a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (de julho de 2005 a fevereiro de 2006 e de junho de 2006 a março de 2007); e durante atividades que dirigi (2007 a 2010) como assessor do Núcleo de Educação e Comunicação Social do Programa Municipal de DST/Aids de Campinas.6 Considero rede social o “conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos” (BARNES, 1987, p. 167) e que podem se caracterizar, segundo John. A. Barnes, como rede social total ou parcial. A rede social total “é uma abstração de primeiro grau da realidade, e contém a maior parte possível da informação sobre a totalidade da vida social da comunidade à qual corresponde”. Já a rede social parcial é entendida como “qualquer extensão de uma rede total, com base em algum critério que seja aplicável à rede social” (BARNES, 1987, p. 166). Nesses termos, trabalhei com redes parciais, por ter “isolado” apenas as relações entre travestis adolescentes de suas redes totais, considerando que esse método se caracteriza com a primeira entrevistada indicando as próximas e assim por diante.

177Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 178: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

mensagens, conhecer comunidades temáticas, assistir a vídeos e ver as fotos

postadas. Orkut é uma plataforma de sociabilidade virtual em que as pessoas

postam e recebem mensagens, imagens e vídeos.

7O referencial teórico é o da teoria queer , que, no universo acadêmico,

desde sua origem no contexto norte-americano de fins da década de 1980,

altera o foco de uma exclusiva preocupação com a opressão e libertação dos

sujeitos homossexuais para a análise das práticas institucionais, da produção

dos conhecimentos sobre a sexualidade e do modo como eles organizam a vida

social. A teoria queer atenta, em particular, para o modo como esses

conhecimentos e práticas sociais oprimem diferenças (SEIDMAN, 1996).

Segundo Miskolci e Pelúcio (2006), a teoria queer busca apontar e

compreender o conflito entre os sujeitos e a ordem de gênero vigente. Para

esses autores, o seu

compromisso político é o de evidenciar a produção de

diferentes identidades não categorizáveis e a necessidade de

mudar o repertório existente para que os indivíduos

qualificados como menos-humanos, perseguidos, até mesmo

assassinados, possam encontrar um mundo habitável e mais

acolhedor (MISKOLCI; PELÚCIO, 2006, p. 265).

Portanto, a teoria queer volta-se para a compreensão dos processos de

categorização sexual e sua desconstrução (GAMSON, 2006, p. 347), focando

nas maneiras como a distinção homossexual/heterossexual serviu de base para

a classificação, o controle e até a discriminação de sujeitos contemporâneos.

Além disso, o queer visibiliza o caráter compulsório da heterossexualidade, a

forma como ela embasa saberes e práticas sociais e, sobretudo, como a

humanidade é prescritiva e somente é reconhecida dentro de normas

socialmente compulsórias, mas que, por serem históricas e culturais, são

passíveis de crítica e transformação.

Permanências e descontinuidades no processo de construção do feminino travesti

Segundo diferentes autores (KULICK, 2008; PELÚCIO, 2007; PERES,

2005; BENEDETTI, 2000; SILVA, 1993; entre outros), algumas características

178

7 Queer é uma categoria local estadunidense, em inglês, que pode significar excêntrico, esquisito, diferente bem como o pervertido sexual, marginal, estigmatizado ou anormal (ESCOFFIER, 1998). Segundo Ochoa (2004, p. 254), não devemos buscar traduções, mas atentarmos aos nossos xingamentos e seus próprios escândalos. Assim, no universo acadêmico, o queer tem o compromisso de entender os processos daqueles que estão fora dos marcos normativos – pensar os sujeitos teóricos que não possuem qualquer trajetória reprodutiva, moral ou economicamente fixa.

Page 179: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

comuns formam o universo das experiências das travestis brasileiras. Porém,

algumas dessas características têm sido transformadas pela experiência de uma

nova geração de sujeitos travestis, assim como outras têm sido mantidas e

reforçadas.

Por exemplo, a nova montagem dos corpos, isto é, a construção do

feminino travesti (BENEDETTI, 2000), tem contribuído para essa mudança.

Essas adolescentes têm adiado para um futuro próximo a construção dos

peitos, aceitando bombar (injetar silicone líquido) apenas nas pernas e nos

glúteos. Essa nova geração de travestis, quando vislumbra um peito para a

composição do seu feminino, sonha com as próteses de silicone, o que já

ocorria nas gerações anteriores, mas hoje essa tecnologia está mais acessível. A

conquista da prótese de silicone na cidade de Campinas ocorre por intermédio 8das cafetinas , que possuem seus próprios cirurgiões para indicar àquelas que

“podem pagar”.

Devido a essa realidade de espera das travestis pela prótese de

silicone, é comum encontrarmos travestis bastante jovens sem peitos voltando

a usar enchimentos, técnica abandonada pela maioria das travestis de

gerações anteriores. Este é um dos reflexos das novas tecnologias utilizadas

para a construção corporal do “feminino travesti” (BENEDETTI, 2000), que já

foi associado aos peitos imensos de silicone líquido injetado do estilo travecão –

“ancas fartas, muito seio, boca carnuda, coxas volumosas” (PELÚCIO, 2007,

p. 107) –, mas que hoje tem perdido espaço entre as travestis em favor do estilo

ninfeta, que corresponde às novinhas com “poucas curvas e carnes com o

'frescor' de quem acaba de entrar na 'noite'; muitas vezes, não têm marca de

barba; são ousadas em suas performances junto aos clientes” (PELÚCIO,

2007, p. 52)

Outro fator a considerar é que os próprios argumentos da redução de

danos para usuários de silicone líquido e hormonioterapia têm estado presentes

nos discursos dessas adolescentes, quando justificam a espera pela prótese de 9silicone para os peitos . Percebo com isso que a chamada “dor da beleza”, que

justificava a montagem dos corpos (BENEDETTI, 2000; PERES, 2005;

8 Cafetinas são comumente travestis que, entre outras coisas, alugam os quartos de suas casas para que outras travestis possam morar, cobrando um valor relativamente alto, intitulado de “diária”. Elas exercem uma espécie de poder e controle sobre o trabalho sexual das travestis, mesmo daquelas que não estão sob o seu teto. Nesse caso, chegam a cobrar uma espécie de “pedágio” para que as travestis possam se prostituir na rua em que controlam o mercado sexual. O espaço de sociabilidade que as cafetinas proporcionam em suas casas é um espaço importante de experimentação e construção do feminino, no qual as travestis trocam informações e aprendem valores da montagem (PELÚCIO, 2007).9 A Prefeitura Municipal de Campinas é pioneira, junto de profissionais das áreas médicas e do movimento social de travestis, na criação de um protocolo para o atendimento a usuárias de hormonioterapia e silicone líquido no Brasil.

179Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 180: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

PELÚCIO 2007), não tem sido mais a mesma. As agulhadas de silicone são

substituídas gradativamente pela cirurgia plástica. O uso dos hormônios

femininos também vem sendo relativizado, afinal algumas adolescentes se

sentem femininas mesmo sem aderir à hormonioterapia.

Tais mudanças e permanências reforçam a noção de “feminino

travesti” como sendo sempre negociado, reconstruído, ressignificado e fluído.

“Um feminino que se quer evidente, mas também confuso e borrado, às vezes

apenas esboçado” (BENEDETTI, 2000, p. 148).

Diante dessa realidade, o papel das bombadeiras (de quem aplica o

silicone líquido no corpo das travestis) ao longo do tempo pode até deixar de

existir, considerando os avanços das tecnologias de constituição dos corpos,

ainda que esses sujeitos somente tenham acesso a elas em ambientes e 10práticas tidas como clandestinas . Em Campinas, o papel das bombadeiras se

mistura ao das cafetinas, pois muitas destas são as responsáveis pelas

aplicações de silicone nas travestis. Esse serviço é vendido às travestis,

tornando-as ainda mais dependentes delas e fortalecendo uma relação

hierarquizada mediada por dívidas e violência. Por exemplo, Gisele, uma das

adolescentes desta pesquisa, segundo informações colhidas em campo, foi

assassinada a mando de sua cafetina, porque não pagava mais a rua por ter ido

morar em um apartamento com as amigas e começar a receber os clientes lá,

por meio de anúncio de jornal.

No entanto, apesar do histórico de violência de muitas cafetinas,

Pelúcio (2007) descreve o envolvimento das travestis com elas também como

uma relação de “cuidado” e “proteção”, o que permite a algumas travestis

chamarem determinadas cafetinas de “mãe”.

Ainda em relação às cafetinas que bombam travestis, sem o uso

intenso das aplicações de silicone pelas novas gerações, há, por exemplo, o

resgate da dedicação em facilitar outras formas de construção do feminino,

muitas vezes deixada de lado nos últimos anos em Campinas. Segundo o que

apontaram outros autores (BENEDETTI, 2000; PERES, 2005; PELÚCIO,

2007), penso que voltou a ser comum, via cafetinagem, conseguir-se, ainda

que a preços muito altos, roupas, jóias, bolsas, sapatos e peças íntimas.

180

10 A clandestinidade das técnicas de mudanças corporais junto às travestis se dá, principalmente, pelo fato de, diferentemente das transexuais, elas não serem consideradas, pelo discurso médico oficial, portadoras de uma patologia. Sem serem vistas oficialmente como doentes, não possuem, por exemplo, respaldo legal e médico para que profissionais promovam em seus corpos as mudanças desejadas. Não acredito que incluí-las nos códigos de doenças ou nos manuais médicos seja a solução, antes, é fundamental questionarmos a via da legitimidade das ciências médicas e psi que autoriza e desautoriza os sujeitos a alterarem seus corpos.

Page 181: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Em meio a essas ofertas das cafetinas, o que me parece um

diferenciador são os apliques para cabelos. Há na cultura da geração anterior

certo desprestígio, por parte das travestis, daquelas que não possuem cabelos

longos naturais, sem apliques. Porém, percebo mudanças nesses valores, seja

pela facilitação da montagem e da desmontagem do feminino, seja porque

favorece e agrega novo valor a um material que pode ser consumido sem

discriminação entre elas. Também há um maior uso das mulheres em relação

ao aplique, o que o torna, na visão das travestis, “muito feminino”.

Várias travestis jovens com as quais convivi em campo tinham o hábito

de trocar de cabelos, de tempos em tempos, mas muitas somente conseguiam

isso por meio da interferência das cafetinas. Assim como os cirurgiões, elas têm

as “amigas” para indicar para as travestis poderem colocar os cabelos e pagar

em parcelas para elas. Às vezes, as cafetinas possuem os próprios cabelos, que

alugam ou vendem para as travestis, com o direito de reivindicar de volta a

qualquer momento. Foi o que ocorreu com uma das entrevistadas, que teve os

cabelos retirados à força durante uma briga com uma de suas cafetinas.

Assim, ainda que a montagem com menos dor tenha ganhado espaço

entre as travestis mais novas, a cafetinagem tem buscado novas formas de se

manter em suas relações de poder com as travestis. A dor, seja antes pelas

agulhadas, seja agora em algumas situações pela retirada dos cabelos, parece

manter-se presente como parte mediadora dessas relações.

Essa configuração do montar-se possibilita um desmontar-se com

maior plasticidade e dinamismo, afinal, não é à toa que a máxima desse grupo

tem sido relativizada pelas mais jovens. O “estar como mulher 24 horas por dia”

já não é mais uma exigência para se autodenominar travesti entre as

adolescentes de Campinas. Ainda que, como nos mostra Kulick (2008) em seu

estudo, fazer a linha homem, isto é, tirar acessórios femininos para ir à rua

durante o dia e tentar não chamar a atenção ou ser vítima de violência fosse

comum entre as travestis de Salvador há 10 anos, o que tenho percebido é que,

entre algumas com as quais tenho convivido em Campinas, fazer a linha homem

vai além do medo da violência, motivo pelo qual algumas têm estado mais

comumente como homens, fazendo a linha mulher em determinados contextos.

Trânsitos trans

Este estudo mostra que esses sujeitos montam-se e desmontam-se,

não da forma como querem, mas fazendo frente a demandas e normas sociais.

Por exemplo, têm ocorrido montagens estratégicas que os favorecem a não

181Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 182: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

somente deslizarem na escala de violência, mas também a encontrarem

parceiros sexuais. Foi observado em campo que é comum montar-se para ir a

espaços que não são ameaçadores às travestis, mesmo que estes sejam

reconhecidos como de héteros. Em outras situações, têm se desmontado para

frequentar lugares de pegação gay (paquera e sexo furtivo entre homens), a fim

de encontrar parceiros sexuais.

A desmontagem garante, por exemplo, na visão de Gabriela e Rodrigo, o

aumento das chances de encontrar relacionamentos duradouros com outros

meninos adolescentes. Eles têm agido de forma diferente da geração anterior de

sujeitos que viviam os processos de travestilidades, em que o que se queria com a

montagem era a garantia de conquistar “namorados” e “maridos” que em nada

demonstrassem sentir desejo por homens (KULICK, 2008; PELÚCIO, 2007).

Assim, a montagem estratégica tem um limite de racionalidade, não

sendo operada simplesmente por uma decisão calculada, mas motivada

também por fluxos de desejos envolventes, muitas vezes não ditos e não

perceptíveis conscientemente pelos sujeitos. Em outras palavras, “não são os

indivíduos – essa afirmação é dura – os que decidem ou optam a partir de um

ego autoconsciente, os que constroem, por apelar a um clichê, suas

identidades e suas representações” (PERLONGHER, 2005, p. 279-280).

Com isso, a “escolha” na hora de encontrar os parceiros sexuais revela o

quanto a masculinidade (ainda que seja construída forçadamente por um

adolescente efeminado) é valorizada entre as bichas e os homens à procura de 11boys nos espaços de pegação, comparada com o desprestígio da montagem. O

mesmo podemos pensar sobre o valor da montagem (que faz com que muitos

digam “passar-se por mulher”), comparada com a desqualificação da

masculinidade efeminada desses adolescentes desmontados, não apenas nos

ambientes das boates gays e nas salas de bate-papo da internet, mas também nos

locais tidos como de héteros, como, por exemplo, boates de frequência não gay.

O que Miskolci (2008), em sua incursão etnográfica nas salas de bate-

papo gay voltadas ao público masculino de São Paulo, afirmou sobre o espaço

on-line de socialização homoerótica também pode ser utilizado para pensar os

trânsitos desses adolescentes e as suas buscas por parceiros amorosos:

182

11 Os boys aqui são aqueles “homens de verdade” muito jovens, alguns adolescentes, que frequentemente mantêm relacionamentos com homens, às vezes até mesmo exclusivamente com homens, mas “não parecem gays”, isto é, não são efeminados. Esses boys a que me refiro são comumente de classes menos privilegiadas economicamente. “Homens de verdade” também são aqueles que a maior parte das travestis assume como namorados ou maridos. Os “homens de verdade” perseguem um ideal de masculinidade do ativo sexualmente, isto é, aquele que penetra o ânus do parceiro. No entanto, há um contraste entre as práticas reais e esse ideal, afinal, é comum os relatos das travestis de que parte desses homens prefere ser penetrados por elas (SILVA, 1993; BENEDETTI, 2000; PERES, 2005; PELÚCIO, 2007).

Page 183: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

O desejo que os guia está na masculinidade padrão

corporificada na imagem de um homem plenamente

ajustado à ordem heteronormativa. Curioso paradoxo em

que o desejo é homoerótico, mas se dirige ao homem

“heterossexual”, ou seja, aos valores e práticas

historicamente construídos como típicos daquele que

mantém a dominação masculina (misoginia) e a recusa das

relações amorosas ou sexuais entre homens (homofobia)

(MISKOLCI, 2008, p. 7-8).

Os trânsitos possíveis diante da ordem heteronormativa são múltiplos

e diversos. Ainda que o desejo comumente seja visibilizado como sendo

homoerótico, em campo, encontramos adolescentes engajados em processos

de travestilidades que sentiam desejo afetivo e sexual por mulheres, o que

reforça a afirmação de que o que talvez tenha realmente marcado a

singularidade da configuração brasileira de sexo e gênero seja menos a ênfase

em binarismos hierárquicos e mais a recusa em operar com dualismos e

identidades essencializadas, incomensuráveis e intransitivas (CARRARA;

SIMÕES, 2007, p. 95).

Tomamos como exemplo a experiência de Rodrigo. Durante o trabalho

de campo, é perceptível que ele vai, com facilidade, de uma feminilidade 12travesti a uma masculinidade do “tipo michê” . Tanto nas ruas, onde os

profissionais do sexo masculino atuam, como nos espaços de prostituição

travesti, Rodrigo, antes do abrigamento em uma instituição que acolhia

crianças e adolescentes tidos como vítimas da prostituição, conseguia clientes

e era muito elogiado pela sua aparência, segundo suas próprias palavras, às

vezes “muito masculina”, às vezes “muito feminina”.

Esse trânsito entre ser michê e ser travesti coloca em cheque a “fase de

transição” apontada por Benedetti em seus estudos. Para o referido autor, esse

período diz respeito à fase que o sujeito passa no seu processo de construção do

corpo, “entre o menino e a travesti, quando ele vai experimentando pequenas

alterações no corpo, normalmente modificações mais facilmente reversíveis,

mas que sirvam para identificação com os atributos do feminino” (BENEDETTI,

2000, p. 44). Segundo o trabalho de campo desse autor, o sujeito alocado

nessa fase seria caracterizado pelas travestis como bicha-boy.

Em alguns casos, essa fase é real e ainda prevalece, mas há novas

travestilidades que são exatamente essa fase, não vão além dela, permanecem

12 Michê designa aqui aqueles sujeitos que se prostituem sem abdicar de propósitos gestuais e discursivos da masculinidade viril em sua apresentação junto aos clientes, comumente também masculinos.

183Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 184: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ali e dali se constituem. É algo mais do que a afirmação de Pelúcio (2007, p.

59) de que “o michê de hoje pode vir a ser a ninfetinha de amanhã, deslocando-

se no espaço porque o corpo marcado assim o pede”, pois não é um

deslocamento linear de um lado a outro, mas um constante ir e vir, nesse caso 13campineiro, em um espaço físico muito bem delimitado .

De acordo com Vencato (2003, p. 212-213), referindo-se aos sujeitos

travestis, transexuais e drags, “é com a construção plural e não estática do

corpo, da identidade e do gênero que essas pessoas brincam todo o tempo. Faz

parte do universo trans permanecer em mudança. E nunca se sabe realmente

onde elas estão”. Em relação às travestis, Silva (1993, p. 91) afirma o mesmo

sobre a sua “transcondição”: “não se trataria de uma incompatibilidade entre

uma biologia específica e uma particular personalidade (materializada no

truísmo 'alma de mulher em corpo de homem'), mas de uma tendência ao

próprio trans, à condição trans”.

Assim, a partir da montagem e da desmontagem, essas novas

travestilidades correspondem àquilo que Perlongher (1987, p. 152) escreveu

sobre territorialidade e identidade, considerando que é possível ocorrer o

deslocamento dos sujeitos mais ou menos intermitentemente pelas várias

casinhas classificatórias, mudando de classificação conforme o local e a

situação: “Frequentemente, é um mesmo sujeito que vai assumindo e

recebendo várias nomenclaturas classificatórias em diferentes momentos do

seu deslocamento”.

Esse trânsito em diferentes territórios não é característica exclusiva da

cidade de Campinas, como aponta a etnografia na cidade de São Paulo de Júlio

Assis Simões e Isadora Lins França (2005). Para esses autores, mesmo nos

“espaços gays” tidos como “chiques e dourados”, a presença de travestis aponta

para uma relação ambígua de mútua atração e estigmatização entre os seus

frequentadores e esses sujeitos. Perlongher (2005, p. 279) afirma, em relação a

esse trânsito visto em um sentido mais amplo, que há uma “capacidade,

exacerbada nos circuitos marginais, de o mesmo indivíduo participar, alternativa

ou erraticamente, de diversas redes, algumas delas 'normais'”.

Compreendo as redes chamadas de “normais” por Perlongher (2005)

como sendo aquelas que não fluem das margens noturnas da sociedade, que

correspondem a uma temporalidade em acordo com o tempo da família e não

184

13 As ruas de prostituição no centro da cidade de Campinas, onde encontrei parte das adolescentes, são separadamente ocupadas por mulheres, michês e travestis. Não há convívio intenso entre esses diferentes sujeitos no mercado sexual, sendo bastante contextual o encontro desses profissionais na noite da cidade.

Page 185: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

exercem atividades consideradas ilegais/imorais (MISKOLCI; PELÚCIO,

2008). Nesse sentido, Halberstam (2005) afirma que há usos queer de espaço

e tempo que se desenvolvem em oposição à família, à heterossexualidade e à

reprodução, apontando para experiências fora de marcadores sociais

naturalizados como a sucessão (verdadeiro script incentivado socialmente) de

nascimento, casamento, reprodução e morte.

É evidente que esse, digamos, script queer aloca parte dessas

experiências em contextos de vulnerabilidade para diferentes tipos de

violências, a ponto de levá-las à morte. Não é à toa que o termo finada chama a

atenção nos discursos desses sujeitos. As amigas de Giselle, uma das

adolescentes desta pesquisa, que foi assassinada durante o período em que

realizávamos o trabalho de campo, poucas semanas após o enterro, já

agregavam o adjetivo “finada” ao seu nome. As travestis com que convivi

comumente usam esse termo para se referirem às suas amigas que já

morreram, o qual, pelos contextos do seu uso, é empregado com respeito e forte

saudosismo. “A finada” parece ser usado em um primeiro momento para

descriminar de quem se fala, a quem se refere, considerando que o sobrenome

das travestis pouco é pronunciado entre elas. Então, em uma conversa, referir-

se “à finada Carla” ou a “Valéria, a finada” já contextualiza os ouvintes sobre

quem se fala. Entretanto, “a finada” também alude de forma indireta aos

processos dolorosos pelos quais essas travestis passaram na situação de suas

mortes. “A finada” subsistiu, por exemplo, à causa da morte, não sendo usuais

as expressões “Carla, a assassinada”, “Valéria, a desaparecida”, “Tina, a que

morreu de aids”.

O assassinato de Giselle foi justificado, segundo as informações que

colhemos entre as travestis, porque ela devia para uma das cafetinas de

Campinas. Afinal, mesmo morando e fazendo seus programas em um

apartamento alugado por amigas, a partir de contatos telefônicos e da internet,

deveria pagar diárias a uma cafetina da cidade.

A despeito de toda violência a que esses adolescentes estão expostos,

tanto na rua como em suas próprias casas desde a infância (BENEDETTI,

2000), o que esses processos de travestilidades têm me mostrado é que parte

dos entrevistados não tem rompido os laços com seus familiares, com suas

“redes normais”. Diferente do que ocorria frequentemente com a geração

anterior, muitas travestis adolescentes não têm sido expulsas de casa por seus

pais, apresentando uma realidade bastante distinta daquela descrita por

Pelúcio (2007), em que as travestis, quando se “assumiam”, tinham o espaço

doméstico da família transformado, via de regra, em insustentável.

185Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 186: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

186

Por exemplo, o convívio com Rafaela, como também com outras

adolescentes, possibilitou-nos, ao longo da pesquisa, compreender que a

permanência delas em casa se justifica por, pelo menos, três diferentes formas:

1) Rafaela, via prostituição, contribui financeiramente com as

despesas da casa, o que a valoriza bastante diante da mãe. O mesmo

aconteceu com Vivian, que, por “ajudar em casa”, teve a sua feminilidade

tolerada por sua família até pouco antes do início da montagem ser feita

cotidianamente.

Kulick (2008, p. 196), em outro contexto e período, via o dinheiro

como o que levava as travestis para a prostituição, na medida em que “elas

precisam dele para viver, comer, pagar o aluguel, mas também para sustentar

as relações afetivas com os namorados e com a família”. Portanto, “a

incapacidade de ganhar dinheiro é um golpe devastador para a travesti, tanto

no aspecto material quanto no emocional”. Ainda que essa afirmação não

possa ser generalizada, é inegável a importância do fator econômico para as

experiências desses sujeitos.

2) Rafaela teve um parente, com forte liderança na família, que

incentivou o início do processo de sua feminização, propiciando um ambiente

não tão hostil à sua expressão identitária. Daniele também teve apoio de

alguém da família, mas, nesse caso, esse apoio não fez com que os demais

familiares aceitassem a sua condição travesti por um longo tempo. Tanto na

família de Daniele como na de Rafaela esse apoio veio das avós.

A relação de Rafaela com a família era tão acolhedora que contribuiu

para que um tio (irmão da mãe) resolvesse “assumir” a sua travestilidade. A

diferença de idade desse tio em relação à de Rafaela é de mais de quinze anos.

Rafaela contou-me essa situação com entusiasmo e alegria, sentindo-se

responsável pela “libertação da tia”.

3) Gabriela, por sua vez, fez-nos compreender que a permanência em

casa também pode ser associada ao que já chamamos analiticamente de

montagem estratégica. Gabriela, por exemplo, tem, estrategicamente, usado

roupas e acessórios femininos fora de casa, segundo ela, para não colocar a sua

permanência junto dos pais em risco, mesmo eles sabendo que ela gosta de se

vestir como mulher e a respeitando a ponto de ela assumir: “Minha mãe

experimenta minhas roupas de mulher”. Quando perguntei para ela sobre o seu

pai, ela disse: “Nem liga [risos], mas ele não experimenta”.

Outro espaço de “redes normais” mantido por parte dessa nova

geração de travestis é a escola. Mesmo sendo o local onde a rejeição à

Page 187: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

homossexualidade tem sido consentida e ensinada, a partir do desprezo, do

afastamento e da exposição ao ridículo daqueles que não se apresentam com

comportamentos reconhecidos como heterossexuais (LOURO, 2004), já se

encontram relatos de adolescentes travestis que frequentam as aulas.

Os dados mostram que essas adolescentes estão em cursos chamados

“supletivos”, em que a sala tende a ter menos alunos e um perfil etário misto.

Além disso, há casos de adolescentes com diferentes perfis de montagem,

desde as com silicone no corpo e nome social feminino respeitado pelos

professores, como é o caso de Rafaela, até aquelas que ainda são alocadas pela

turma como gays, mas se sentem “mais travestis” e investem na maquiagem e

em algumas peças de roupas “mais femininas”. Nesse segundo caso,

encaixam-se, em determinando momento da pesquisa, Vivian e Rodrigo.

14Rafaela diz: “aquela escola é tudo de bom. A amapô que dirige me

trata no feminino, como todos os professores”. Vivian, além de dar relatos

parecidos sobre os profissionais da escola onde estuda, afirma que não se sente

discriminada pelos amigos da turma. Inclusive, em seu Orkut, há fotos desses

amigos, que, como disse, “são bofes de bem”. No entanto, durante as conversas

com essas adolescentes, percebemos que o mesmo clima de ambiente

acolhedor não pode ser generalizado para a escola inteira. Nos intervalos, por

exemplo, há comentários que, segundo elas, são preconceituosos, mas que, em

suas palavras, “é só não dar confiança que eles param”.

Mesmo com a inserção dessas adolescentes nos espaços familiares e

da educação formal, mantém-se a importância dos locais de prostituição na

experiência de muitas delas. Isso ocorre, principalmente, porque esses espaços

ainda são provedores de um simbolismo para a compreensão/identificação do

ser travesti, “simbolismo este que delimita um espaço social/sexual diferente

do mundo da normalidade heterossexual, um espaço que é marcado tanto pelo

perigo como pelo prazer, e pela constante inversão do que seriam as

14 Amapô, em bajubá, é o mesmo que mulher. Segundo Pelúcio (2007), as travestis adotam uma série de termos vindos do ioruba-nagô, compondo uma espécie de gíria conhecida como bajubá, pajubá ou bate-bate. O bajubá, como é chamado em Campinas, é definido pelas travestis como sendo um dialeto oriundo dos espaços sagrados das religiões afrodescendentes. Esse vocabulário tem sido transmitido nos vários ambientes que as travestis frequentam, como boates, bares, Organizações Não Governamentais (ONGs) voltadas para a diversidade sexual, encontros nacionais ou regionais de militantes travestis. Ele também já é empregado em programas humorísticos e usado por diversos personagens em novelas brasileiras. O uso do bajubá parece se voltar ao clima do contexto da sua origem entre algumas das adolescentes com as quais convivi, especialmente aquelas que foram abrigadas em instituições de “proteção” a crianças e adolescentes nesse município. Como as gerações anteriores, as mais jovens de hoje usam esse linguajar próprio para se comunicar nas instituições com outros adolescentes que o conhecem sem serem compreendidos pelos demais. O teor da conversa é quase sempre a respeito de práticas ou desejo sexuais, visto que não podem declarar ou deixar transparecer suas práticas sexuais ou desejos pelos seus pares, afinal, no abrigo, é proibido manter relações sexuais.

187Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

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188

convenções aceitas” (PARKER, 2002, p. 114-115). Dentre todas as

expectativas construídas no universo do sexo pago, ainda destaca-se como 15central a possibilidade de ir para a Europa .

No entanto, ter uma experiência internacional não está ao alcance de

todas. Existe um perfil no mercado do sexo em Campinas que garante as

chances de viajar para se prostituir fora do Brasil. Daniele, por exemplo, que no

início da pesquisa vivia em Campinas, mas ao término deste estudo morava na

Espanha, tinha disciplina para pagar as contas em dia com a cafetina, ao não

se colocar (não usar drogas) na rua, e parecia ter axé, aos olhos de suas amigas,

isto é, sorte na noite com os clientes.

Essas características fazem com que as adolescentes e jovens travestis

não simplesmente escolham ir para a Europa. Na verdade, a cafetina é quem

identifica esse perfil disciplinado de quem “pode pagar” a viagem e o custo da

permanência, convidando-as, para a alegria de poucas, a realizarem esse

sonho e a prepará-las durante alguns anos para a viagem.

Depois de Daniele ter saído de Campinas e ido para a Europa,

comunicamo-nos com ela por meio da plataforma virtual de relacionamento

Orkut e também pelo MSN. Durante nossas conversas pelo MSN, a frase que

ela definiu para que os seus contatos a visualizassem, numa espécie de

apresentação pessoal após o seu nome, diz muito a seu respeito: “Quem sou eu

é o que muita gente queria saber ou talvez conhecer, mas, o que fiz da minha

imagem (risos) não está no gibi”.

A mudança que percebemos em seu perfil do Orkut ao longo do trabalho

de campo é, principalmente, referente às suas fotografias, as quais, tiradas em

uma noite escura, em um posto de gasolina frequentado principalmente por

caminhoneiros, dão espaço a imagens de praias ensolaradas e paradisíacas. Há

também a visível diferença, quando comparamos as fotografias anteriores com

as atuais, em relação à cor de sua pele. Ela aparece com a pele mais clara, pois,

segundo ela, além da maquiagem, as fotos foram “trabalhadas” para torná-la

ainda mais bonita. Nesse processo de embranquecimento, os cabelos foram

alisados, fazendo com que ela não use mais as tranças étnicas, como muitas

meninas negras brasileiras.

No entanto, os textos das mensagens que não são apagadas do

histórico da sua página no Orkut também não são os mesmos. Hoje, misturam-

15 Esse fluxo migratório se acentuou nos anos 1980 e, até o momento, mantém-se como sonho de ascensão social dentro do grupo pesquisado, dado o acesso a bens materiais e simbólicos que o dinheiro aferido nessas viagens pode proporcionar (PELÚCIO, 2007, p. 227).

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se os textos em português e em espanhol de admiradores e clientes

internacionais com aqueles dos antigos bofes saudosistas no Brasil, bem como

os de várias travestis que também se prostituem na Europa. Algumas poucas

amigas mulheres e travestis do Brasil pedem notícias e elogiam as fotos. Antes,

liam-se mensagens em português mal escrito de jovens admiradores e raros

clientes do período em que morava no Brasil.

As imagens, legendas e mensagens que não foram apagadas de seu Orkut

dizem muito sobre o processo de construção identitária em que Daniele está

empenhada em legitimar diante das outras travestis que a visitam nesse espaço on-

line. Essa construção identitária é a de uma verdadeira europeia, ou seja, a

categoria êmica mais valorizada no meio travesti, por denotar sucesso,

enriquecimento e sofisticação, tanto na construção de um corpo feminino como nos

gestos, vocabulário e aprendizado de uma língua estrangeira (PELÚCIO, 2007).

Portanto, o sonho de ir para a Europa se justifica porque comumente a

Europa significa um ponto de virada, promovendo-as no mercado sexual

brasileiro e dando-lhes oportunidades de transformações radicais no corpo,

para torná-lo o mais discreto possível, isto é, fazendo-as passar por mulher.

Assim, essas manipulações das identidades, seja no clássico processo de

construção de uma top, seja naqueles de montagens e desmontagens nos

termos mais atuais, têm diminuído as possibilidades de escândalo e favorecido

o trânsito desses sujeitos, sem passarem ou estarem expostas a situações de

violência ou vexatórias.

Sobre a vergonha e o escândalo

Segundo Goffman (1988), há uma fase da socialização quando se 16aprende que se possui um estigma particular assim como as consequências

de possuí-lo. Sobre essa fase, focaremos no início deste item.

Em sua reflexão acerca das experiências de desrespeito social, Axel

Honneth (2003) considera que a luta por reconhecimento nasce dos conflitos

surgidos pelo desrespeito. Assim, ele toma o conflito como a base de toda e qualquer

interação social, afirmando que as consequências de ser possuidor de um estigma

são percebidas pelo fato de o processo de socialização, em geral, ser efetuado

16 O estigma é pensado neste estudo mais como uma linguagem de relações do que como um atributo depreciativo em si, podendo, nos termos de Goffman (1988), ser manipulável. Em outras palavras, entendo estigma mais como uma linguagem de relações do que como um atributo depreciativo em si, sendo ele um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, relação esta que deve ser contextualizada e localizada historicamente. Por isso, “um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso” (GOFFMAN, 1988, p. 13).

189Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 190: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

190

na forma de uma interiorização de normas de ação,

provenientes da generalização das expectativas de

comportamento de todos os membros da sociedade. Ao

aprender a generalizar em si mesmo as expectativas

normativas de um número cada vez maior de parceiros de

interação, a ponto de chegar à representação das normas

sociais de ação, o sujeito adquire a capacidade abstrata de

poder participar nas interações normativamente reguladas

de seu meio; pois aquelas normas interiorizadas lhe dizem

quais são as expectativas que pode dirigir legitimamente

todos os outros, assim como quais são as obrigações que

ele tem de cumprir justificadamente em relação a eles

(HONNETH, 2003, p. 135).

Esta leitura sobre “interações normativas” defende que “na medida em

que a criança em desenvolvimento reconhece seus parceiros de interação pela

via da interiorização de suas atitudes normativas, ela própria pode saber-se

reconhecida como um membro de seu contexto social de cooperação”

(HONNETH, 2003, p. 136).

Kulick e Klein (2003) problematizam o olhar de Honneth sobre

experiências vergonhosas a partir das reflexões de Eve Kosofsky Sedgwick. Eles

afirmam que, como Honneth (2003), essa autora argumenta que a noção de se

ver envergonhado é atribuída por outros e que a experiência da vergonha é

constitutiva da pessoa. Porém, diferentemente de Honneth (2003), Sedgwick

(1993 apud Kulick; Klein (2003)) não compreende que esse sentimento possa

ser eliminado a partir de um aumento de consciência ou via esforços de

reconhecimento.

Honneth (2003) acredita que, desenvolvido o autorrespeito a partir

das interações, os sujeitos podem deixar de se sentirem envergonhados,

enquanto Sedgwick afirma que a vergonha é constitutiva de toda formação

identitária, mesmo daqueles que não são tidos como desrespeitados

socialmente. Assim, todas as nossas experiências de socialização, nas quais

nossos comportamentos e expressões foram/são controlados por afiadas

repressões, tais como “tem gente olhando para você”, são importantes nexos

na construção de nossas identidades (KULICK; KLEIN, 2003, p. 7).

Nessa lógica, a extinção da vergonha pode significar a própria extinção

da noção da identidade do eu. Portanto, Sedgwick assim como Kulick e Klein

(2003), afirma que, em vez de fantasiar sobre o fim da vergonha, ela deve ser

reconhecida, abraçada e posta em curso como uso político transformador.

Porém, no nível das práticas sociais cotidianas, especialmente entre os jovens

Page 191: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

com quem convivemos, não há interesse, tampouco parece possível a eles

transformar a condição da vergonha em algo positivo ou político.

Vagner, por exemplo, depois de muitas dúvidas, optou por ser “só

drag”, e não mais travesti. Contudo, ele não queria ser uma “drag qualquer”.

Escolheu um nome duplo, agregando assim mais status à sua escolha. O

primeiro nome é de uma cantora negra americana, famosa e elogiada por sua

beleza na mídia internacional. O sobrenome é de uma drag brasileira, também

famosa, magra, branca, tida como feminina e rica devido aos seus shows

“luxuosíssimos”. A escolha do segundo nome foi alvo de várias críticas dos

amigos de Vagner, afinal, segundo eles, ele parece mais com uma outra drag

brasileira, negra, que se passa por pobre e que é famosa pelos shows, nos quais

se apresenta sem qualquer produção, mas sempre com tom de deboche, com

um discurso escandaloso.

Vagner e outras adolescentes disseram em campo que se montam e

gostam de “causar”. Elas são unânimes em dizer que desmontadas não

chamam a atenção, pois, segundo Gabriela, “desmontada perde o glamour”.

“O legal é causar”, disse em certa ocasião. “Causar” é chamar a atenção, não

passar despercebida, ser reconhecida, notada. De uma forma mais ampla, o

“causar”, para essas adolescentes, é no sentido afirmativo de suas capacidades

de se tornarem femininas, de serem elogiadas por sua estética.

O “causar” também pode ser usado no sentido de “bafão”, de

escândalo. No entanto, para elas, esta parece não ser uma boa proposta, algo

que mereça investimento. As travestis com as quais convivemos prezam por um

comportamento não escandaloso e procuram chamar a atenção sem passar

vergonha, por meio de características que as levam, sob sua lógica, a serem

respeitadas como pessoas educadas, “finas”.

Porém, sabemos que a vergonha marca a experiência de meninos que

se interessam afetiva e sexualmente por outros meninos. Esta se forja porque,

primordialmente, eles buscam atender aos comportamentos normativos

esperados, e o não cumprimento das expectativas sociais os vexa e relega seus

desejos ao reino do segredo. As adolescentes entrevistadas foram unânimes em

afirmar que suas primeiras experiências afetivo-sexuais com outros garotos se

deram em segredo e que, mesmo sem serem descobertas, sabiam desde muito

pequenas que havia algo de “errado” ou vergonhoso naquilo que faziam.

A descoberta dessas experiências era comumente recebida com

violência por alguns membros das famílias das entrevistadas. Daniele,

inclusive, sofreu várias agressões físicas por parte de sua mãe, antes de sair de

casa. Todas as travestis desta pesquisa são oriundas de famílias tidas como

191Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 192: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

192

heterossexuais. Exceto a família dessa adolescente, na qual a mãe se assumia

enquanto lésbica e convivia com sua companheira há alguns anos. No entanto,

Daniele não é aceita por sua mãe, que, segundo suas palavras, “até a tolerava

como gay, mas jamais a aceitava enquanto travesti”.

A negação do filho que, “além de ser viado, ainda se veste de mulher”

por parte da mãe de Daniele justifica-se, segundo seu relato, pelo fato de sua

mãe relacionar travesti à imagem dominante que a associa ao extremo do

efeminamento e da passividade sexual; em suma, ao rompimento radical das

expectativas sociais sobre como deve se apresentar e se comportar um homem.

As travestis são relegadas ao campo desvalorizado do feminino e, entre

outros fatores, por se tratarem de homens que abdicaram do privilégio da

masculinidade, têm sua identidade associada a um desvio de caráter que

excede o vergonhoso e se aproxima do estigmatizável, motivo de escárnio e

objeto de reações violentas. Assim, o interesse por pessoas do mesmo sexo cria

a vergonha que se sofre, geralmente, em segredo, ao se sentir um estranho em

um mundo apresentado como heterossexual. Porém, o rompimento das

normas de gênero, por sua expressão pública, torna as travestis sujeitas a

reações mais violentas e, no limite, estigmatizadoras do que as vivenciadas por

outros homo-orientados como gays ou lésbicas.

Historicamente, segundo Bento (2008), o discurso da diferença

sexual, isto é, de que existem dois sexos “biológicos” hierarquicamente

diferentes e separados, um para o homem e outro para a mulher, deu suporte ao

julgamento das condutas, naturalizando e essencializando o que se entendia

por comportamentos masculino e feminino. Segundo a autora, nessa lógica

dicotômica, não é possível haver deslocamentos. Além disso, nesses termos, “o

masculino e o feminino só conseguem encontrar sua inteligibilidade quando 17referenciados à diferença sexual” (BENTO, 2008, p. 25) .

Em uma perspectiva informada pelos estudos de gênero, passamos a

conhecer a masculinidade e a feminilidade não como algo direta e

“naturalmente” associado aos genitais, antes como signos ou processos que

são acionados por meio de práticas culturais. Isso se faz imprescindível para

refletir sobre a subjetividade travesti (KULICK, 2008, p. 242). Como essa

reflexão ainda está longe da realidade do senso comum, em alguns casos, até

17 Não é à toa que a imposição da normalidade dos gêneros inteligíveis ligados à diferença sexual é o que leva algumas dessas travestis a desejarem a cirurgia de “mudança de sexo”, afinal, esta seria uma “tentativa de transcender os domínios do irrelevante e do risível” (SILVA, 1993, p. 159). Não foi constatado, porém, esse desejo entre as entrevistadas, com a exceção pontual de Vivian, que, em suas palavras, “chegou a pensar nisso”, tendo até uma comunidade no Orkut com o título “Quero trocar de corpo” (115 membros), mas desistiu, pois “está bem assim”.

Page 193: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

mesmo dos ambientes acadêmicos, os maus tratos que Daniele e outras

travestis adolescentes também sofreram são frequentes. Maus tratos têm

efeitos subjetivos profundos, pois consistem em

um tipo de desrespeito que fere duradouramente a

confiança, aprendida através do amor, na capacidade de

coordenação autônoma do próprio corpo; daí a

consequência de ser também, com efeito, uma perda de

confiança em si e no mundo, que se estende até as camadas

corporais de relacionamento prático com outros sujeitos,

emparelhada com uma espécie de vergonha social

(HONNETH, 2003, p. 215).

No entanto, não é somente através de experiências de violência física

que a vergonha emerge mesclada ao estigma. O surgimento da vergonha, e a

possibilidade de esse sentimento se tornar central na experiência dos sujeitos,

dá-se quando o indivíduo percebe que um de seus próprios atributos é impuro,

podendo imaginar-se como não portador dele (GOFFMAN, 1988, p. 17).

Por exemplo, nas experiências de Vivian e Rodrigo, eles se perceberam

portadores de atributos impuros durante processos institucionais tidos como

“acolhedores” e de “proteção”. Isso ocorreu durante suas permanências nos 18abrigos por onde passaram. Inclusive, nos aconselhamentos presentes no

discurso moralista cristão dessas instituições, que os pediam para “voltar a ser

menino”, pautaram as suas experiências em diferentes níveis, até os últimos

contatos com eles, quando já viviam fora das instituições. Porém, isso não 19significa que a desmontagem institucional tenha atingido o seu objetivo

plenamente. Afinal, hoje, procuram ser “úteis” para a sociedade, nas palavras

de Vivian, “fazer alguma coisa de bom”, mas parecem estar distantes do

modelo de masculinidade heteronormativo defendido pelas instituições.

No entanto, segundo Warner (1999, p. 7), há uma política da

vergonha que vai além do sentimento declarado e deliberado por esse

moralismo. “Ela envolve também desigualdades silenciadas, desinteresses,

efeitos de isolamento e a falta de acessos públicos”. Então, em se tratando de

sexualidades subalternas, podemos afirmar que “o efeito da vergonha é a

dominação heterossexual” (WARNER, 1999, p. 6).

Parker e Angglenton (2001) afirmam que o estigma tem sempre uma

história, a qual faz com que, pela estigmatização, os sujeitos sejam inseridos de

diferentes formas nos sistemas ou estruturas de poder.

18 “Os conselhos ao estigmatizado frequentemente se referem com bastante singeleza à parte de sua vida que o mais envergonha e que considera a mais privada” (GOFFMAN, 1988, p. 122).19 Sobre os processos de desmontagem institucional, ler Duque (2007).

193Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

Page 194: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

De fato, é possível ver a estigmatização desempenhando

um papel chave na transformação da diferença em

desigualdade, e pode funcionar, a princípio, em relação a

qualquer um dos eixos principais da desigualdade

estrutural interculturalmente presente: classe, gênero,

idade, raça ou etnia, sexualidade ou orientação sexual, e

assim por diante (PARKER; ANGGLENTON, 2001, p. 14).

Nesse contexto, podemos pensar como se dá a questão do uso político

do escândalo por essa nova geração que, conforme Kulick e Klein (2003),

amplia o espaço da abjeção. Para eles, “o escândalo é toda situação que

evidência (ou visibiliza) uma diferença das realidades hegemônicas ou das

socialmente desejadas” (KULICK; KLEIN, 2003, p. 2). A maior parte das

travestis de gerações anteriores, diferentemente das estudadas neste texto,

abusava cotidianamente da sua condição vergonhosa, de forma a se impor nas

mais várias situações. Parece-nos que as mais jovens têm buscado esconder ou

evitar o que pode lhes causar vergonha.

Considerações finais

A experiência de ser travesti dessa rede de adolescentes de Campinas

revela o quanto o aprendizado de “como se tornar travesti” e as possibilidades

de concretizar a montagem têm mantido permanências e rupturas com as

experiências identitárias de outras gerações de travestis. Destaca-se

estrategicamente a flexibilização do ideal êmico de “estar como mulher 24

horas por dia”, o qual tem perdido força entre as mais jovens, possibilitando-

lhes trânsitos mais fluídos do que os de outrora, chamando a atenção para si de

maneiras menos vexatórias.

Talvez isso seja possível, devido a uma das características que revela

certa continuidade no ser travesti ao longo dos últimos anos, o fato de as

travestis adolescentes com as quais convivemos perseguirem, como a geração

anterior, uma condição de feminilidade que as faça “passar por mulher”. Os

processos de construção do feminino, mesmo com tecnologias empregadas de

formas diferentes das de outras gerações (como a diminuição dos hormônios

femininos, das aplicações de silicone líquido e a maior adesão às próteses de

silicone utilizadas com mais frequência entre as mulheres), ainda legitimam

uma feminilidade vista como “natural”, reproduzindo assim normas e padrões

de gênero já reconhecidos e classificados hierarquicamente em seu meio.

A criação do já conhecido “feminino travesti” revela-se uma

intersecção em que o gênero é apenas o principal meio para “superar” ou

transmutar outras categorias, como a negritude e a origem socioeconômica. O

194

Page 195: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ideal de beleza travesti segue o padrão hegemônico disseminado pela mídia,

portanto, é branco, rico e sexualizado. Seja na escolha do sobrenome de uma

drag famosa, seja no cuidado com a maquiagem e as fotos que se postam no

Orkut de uma europeia, é perceptível que a construção do feminino equivale

também a um branqueamento e a uma busca de ascensão social por meios

estético-comportamentais.

O enfoque nesse processo de montagem e desmontagem também

revelou o quanto os espaços de sociabilidade de diferentes jovens têm

permitido, via desejo, um trânsito de montadas e desmontadas que as fazem

deslizar na escala de violência que travestis têm enfrentado socialmente. A

manipulação do estigma parece ser uma característica marcante dessa

geração, que busca maior aceitabilidade e respeito, o que, talvez, substituía, ao

menos em parte, as estratégias cotidianas de escândalo que marcaram as

gerações anteriores, nas quais muitas travestis eram destituídas até mesmo da

aspiração ao respeito social.

É perceptível também que o agenciamento desejante desses sujeitos,

via montagem sem hormonioterapia e silicone líquido, tende a criar corpos

plásticos mais afeitos aos interesses biopolíticos do presente do que os corpos

transformados das travestis de gerações passadas. Afinal, monta-se e

desmonta-se, não da forma como querem, mas fazendo frente a demandas e

normas sociais. Em outras palavras, o agenciamento desejante desses sujeitos

parece colocar seus corpos abertos a interesses hegemônicos. Assim, essas

experiências são um misto de resistência e inserção em códigos valorizados de

sexualidade, gênero e desejo.

Essas maneiras de vivenciar identidades sexuais de forma fluída,

transitória e reversível colocam em questão a capacidade de o conceito de

travestilidade abarcá-las sem as reduzir a um tipo já existente cujas mudanças

aqui apresentadas sugerem transformar-se em algo diverso, mesmo que ainda

não consolidado (se é que um dia virá a ser). O cenário cambiante das culturas

sexuais de nossos dias insinua que as experiências que aqui se buscou

reconstituir e analisar deverão marcar, por algum tempo, a vida das

adolescentes, mas, como quaisquer outros processos identitários, estão

restritas aos limites de um contexto social e histórico específico.

Por fim, as identificações são menos escolhas conscientes do que

posicionamentos contextuais em que se articulam os interesses de cada um

diante de normas e convenções sociais. No caso das adolescentes com quem

convivemos, identificamos esse posicionamento como resultado do modo

como, guiadas por seus desejos, encontram formas de lidar com a vergonha da

homossexualidade e o estigma de romper padrões de gênero.

195Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198

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Page 199: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

10

Murilo Peixoto da MotaSociólogo,

Doutor em Serviço Social,Membro do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas

em Direitos Humanos da [email protected]

A construção da homossexualidade no curso da vida a partir da lembrança

1de gays velhos

The construction of homosexuality during life time before recollections of old gay men

Page 200: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

200

Resumo

Este artigo analisa as dimensões sociossexuais relacionadas à homossexualidade e ao

envelhecimento de homens com mais de sessenta anos, de camadas médias e

moradores da cidade do Rio de Janeiro. A partir de quinze entrevistas, são analisadas as

trajetórias da vida desses sujeitos, enfocando-se as expressões de ser gay e a experiência

de envelhecer. Com base no aporte teórico da perspectiva da construção social para a

reflexão sobre a sexualidade e o envelhecimento no espaço social, esta pesquisa reflete

sobre a agência desses indivíduos, a carreira homossexual, as lembranças que

demarcam essa geração, os vínculos afetivos, as atividades cotidianas, as

sociabilidades e as práticas sexuais que revelam um circuito gay caracterizado pela

valorização da vida jovem e pelo individualismo. Diante do estigma de ser gay e velho,

examina-se como são as experiências relacionais e quais estilos de vida são

construídos e experimentados por esses homens.

Palavra-chave: Homossexualidade. Envelhecimento. Masculinidade.

Abstract

This article examines the social and sexual dimensions related to homosexuality and

men aging over the sixty years, middle class and residents of Rio de Janeiro city. From

fifteen interviews, the lives trajectories of these subjects are analyzed focusing on the

expressions of being gay and the experience of getting older. Based on the theoretical

contribution of authors who reflect on sexuality and aging in the social space, from the

perspective of social construction, this research reflects on agency of individuals, the

homosexual career, memories that mark their generation, affective ties, the everyday

activities, sexual practices and the sociability that reveal a gay circuit characterized by

the appreciation of the young life and individualism. Due to the stigma of being gay and

old, we have to answer how these relational experiences are and what lifestyles are

constructed and experienced by these men.

Key-words: Homosexuality. Ageing. Masculinity.

1 Este artigo é parte de minha tese de doutorado – “Homossexualidades masculinas e a experiência de envelhecer” – defendida em outubro de 2011 pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Page 201: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introdução

Este artigo busca sintetizar as narrativas que circunscreveram uma

pesquisa realizada ente os anos de 2009 e outubro de 2011 com quinze

homens gays, com sessenta anos ou mais, de camadas médias e moradores da

cidade do Rio de Janeiro. As análises sobre as relações homossexuais no

contexto do envelhecimento são dimensões ainda pouco estudadas pelas

ciências sociais. Neste sentido, as contribuições dessa discussão possibilitam

ampliar o debate acerca da carreira homossexual no âmbito da perspectiva

geracional e das relações de gênero, fomentando a luta contra a homofobia e

pela diversidade sexual

Inicialmente, vale mencionar apenas que o fenômeno idade, como

responsável por um conjunto de imagens e representações, revela noções de

valor ao longo do curso da vida que ganham complexidade no âmbito do debate

sobre o envelhecimento. A idade está envolvida em mitos, na ideia de

representação cronológica de um indivíduo e sua biografia, numa referência

biológica para o que simboliza ser velho. Há toda uma discussão que abarca

amplo processo de análise a respeito da idade como uma alusão demarcadora

das circunstâncias históricas e culturais para o indivíduo moderno. O próprio

sentido do que hoje se denomina terceira idade vem a reboque do princípio que

requer a compreensão da velhice dentro de um leque de possibilidades que

buscam valorizar e integrar as mesmas oportunidades ofertadas à juventude,

mas levando-se em conta as limitações e necessidades do idoso como agente

no espaço social (ALVES, 2004; DEBERT, 2004).

Todavia, saliento que ter sessenta anos ou mais é um marcador

importante que explicita a urgência da implementação de uma série de

políticas públicas de direitos sociais para os idosos como obrigação do Estado,

das quais o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003) é

exemplo. Porém, nem por isso se pode pensar essa fase da vida unicamente

atribuindo-lhe uma homogeneização e unificação de condutas que

caracterizam o indivíduo como velho (DEBERT, 2004). A idade expressa uma

representação social e deve ser contextualizada para a análise do processo de

envelhecimento como um todo. Assim, devo afirmar que a idade fundamenta

ordenamentos e costumes a partir de uma necessidade lógica de classificação.

Como escreve Bourdieu (1987, p. 19), os sujeitos não se distinguem “visando

encobrir ou justificar as relações que mantêm entre si; mas por uma

necessidade lógica que também os leva a pensar em sua existência em termos

de grupamentos e divisões”.

201Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 202: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Acrescento o fato de os sujeitos em referência serem de camadas

médias como delimitação dos indivíduos envolvidos neste estudo. A partir das

considerações de Barros (1987), levo em conta que tais camadas demarcam

um meio de vida heterogêneo, espelham impessoalidade, relações hierárquicas

e estilos de vida. Os entrevistados foram ocupantes de cargos comissionados

em grandes empresas, ex-funcionários públicos e profissionais liberais. Trata-

se, assim, de perfis caracterizados pela alta escolaridade. Essa referência a

camadas médias não se restringe ao debate sobre classe social como expressão

sintética. A ideia de camada acentua a referência simbólica no contexto de

estilos de vida dos indivíduos, que podem partilhar com o grupo certas

características sociais e culturais, mas não somente como correlações de forças

econômicas (BOURDIEU, 1983). Essa reflexão permite ampliar a análise sobre

a sociedade brasileira devido à grande heterogeneidade social e às

consequências da forte hierarquização das relações existentes, fato que

explicita o quanto os valores implicados pelos modos de vida passaram a ser

mais importantes do que a situação de classe (PEIXOTO, 2000).

Há que se levar em conta o fato de que a demarcação entre juventude e

velhice tornou-se ícone simbólico da sociedade moderna, na qual, segundo

Elias (2001), os velhos não são aqueles que suscitam o desejo de identificação.

Nessa perspectiva, esse autor ressalta que os anos de decadência acentuados

pela velhice são penosos. De todo modo, é no contexto da velhice que a

fragilidade dos indivíduos expõe a dificuldade para lidar com as dimensões que

articulam a degeneração do corpo e as experiências da vida. No entanto, a

velhice apresenta demarcações diferenciadas ao longo da história e deve levar

em conta os estilos de vida. Como apontado por esse autor, um homem de

quarenta anos do século XIX era visto como um velho, enquanto nas sociedades

industriais do século XX encontra-se recém-saído da fase de juventude,

considerando-se as diferenças no estilo de vida.

Ser velho nas sociedades modernas passa a ter a representação muito

associada à incapacidade para o trabalho. Contudo, e apesar das tentativas de

positivação com mudança de linguagem, por exemplo, adotando os termos

“terceira idade” ou “melhor idade” no lugar de “velho” ou “idoso”, o termo

“velho” é reivindicado por especialistas por apresentar maior precisão e

identificação, mesmo que seja menos respeitoso (BARROS, 2007).

Os homens aos quais faço referência neste artigo são oriundos de uma

geração que acompanhou o processo de transformação discursiva das

experiências sexuais. No aspecto geracional, destacam-se os momentos: o

período que vai da ditadura até a abertura política, e o impacto da pandemia do

202

Page 203: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

2HIV/Aids ; a transição da perspectiva patologizante para uma de direitos no

âmbito dos novos movimentos sociais; o processo de construção de um circuito

de entretenimento gay nas cidades brasileiras; a evidência do evento da Parada

Gay, que passa a dar visibilidade à sociabilidade, à homossexualidade; a luta

por reconhecimento social e civil do emergente movimento de pessoas

Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT). Em consequência, essa

geração encontra-se no auge das mudanças sociais espelhadas em novos

estilos de vida gay, com o crescimento do mercado de consumo, dos espaços de

entretenimento homoerótico, das formas de lazer, das manifestações públicas e

da reafirmação política de direitos sociais e civis. Assim, novas questões

surgem para os indivíduos velhos e envolvem aspectos que se delineiam ao

longo da carreira do homossexual, como a luta por afirmar a homossexualidade 3na trajetória de vida e sair de “dentro do armário” .

Os entrevistados apresentam uma gama de fatos em que as

lembranças de suas trajetórias de vida formam um conjunto de referências que

caracterizam a sua geração. A ideia de geração se opõe à noção de um tempo

linear, padronizado e fixado em etapas (MANHEIN, 1982). Essa perspectiva

permite uma análise das narrativas sem deixar de levar em conta as reflexões

sobre o curso da vida que focaliza o indivíduo como um agente no presente. A

categoria geração nesse sentido permite, portanto, a compreensão de como os

entrevistados reagem, engendram e adquirem valores, visões de mundo e

estilos de vida, adaptada ou renovada, de que são produtos e produtores.

4Nesse sentido, a criação da Turma OK como espaço de 5homossociabilidade , por exemplo, formada a partir da amizade de um grupo

2 O surgimento dos primeiros casos no Brasil, em 1982, da Síndrome da Imunodeficiência Humana (Aids) originou um verdadeiro pânico pelo nível de desconhecimento sobre a doença na qual um resultado positivo eliminaria qualquer sentido de alongamento da vida. O cantor e compositor Cazuza, acometido pela Aids, chegou a dizer em uma de suas músicas que “o meu prazer agora é risco de vida”, como referência a ser um portador do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Do ponto de vista gramatical, ainda que se trate de uma sigla, a palavra “aids” passou a ser equivalente a outros substantivos comuns referentes a doenças (sífilis, conjuntivite). Contudo, ainda encontramos variação da sua escrita inclusive em textos do Ministério da Saúde. Por uma questão de padronização, neste texto, será utilizada para a sigla conjunta a forma HIV/Aids e Aids quando a palavra ocorrer isoladamente.3 A expressão “dentro do armário” refere-se ao momento em que o indivíduo não assumiu a homossexualidade e, mantendo-se isolado na sua posição, vez por outra, sai para vivenciá-la clandestinamente como uma prática sublimada. Assim, até o momento de aceitar a sua condição de homossexual, o “sair do armário” ou coming out, o indivíduo passa pelo duplo processo de integração: na comunidade gay e de afirmação pública, seja no âmbito da aprendizagem, seja como busca de estilo de vida (WEEKS, 1977; HART; RICHARDSON, 1981; POLLAK, 1985; VIEIRA, 2010; ALMEIDA, 2010).4 Na cidade do Rio de Janeiro, a Turma OK faz referência a um espaço cultural de encontros de indivíduos gays,

lésbicas e simpatizantes e caracteriza-se por sua homossociabilidade ocupada por homens gays maduros. Além disso, a boate La Cueva também entra no rol de entretenimento desse perfil de homens, por mais que não se trate de uma unanimidade apresentá-los como espaços que correspondam às necessidades de suprir a carência de sociabilidade desses indivíduos e que não seja uma propriedade definida identificar esses espaços como destinados ou construídos para gays velhos.5 O termo homossociabilidade se refere ao sentimento de pertença a um lugar, a um grupo ou a uma coletividade, como fundamento para as experiências de sociabilidade homossexuais (MAFFESOLI, 2007). Ao utilizar os termos homossociabilidade e sociabilidade, refiro-me às distinções existentes entre o contexto das relações sociais entre gays e heterossexuais.

203Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 204: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

de homens, é lembrada como um fato importante, pois se trata de um ambiente

que possibilitou vínculos sociais entre os membros e os visitantes, que

passaram a compartilhar ideias, gostos e estilos até hoje experimentados.

Ademais, a boate La Cueva também se acentua como um demarcador de

experiências homossexuais para toda uma geração, assim como o calçadão da

Cinelândia, como espaço de encontros de sedução entre homens de toda uma

geração no Rio de Janeiro. A delimitação desses espaços na cidade, que

permitiram encontros para investidas sexuais e realização de redes de amigos,

também se evidencia como referência para a experimentação do lazer e

diversão da homossexualidade na velhice de maneira menos rígida e livre de

preconceitos. O que se explicita ao analisar essas narrativas é o contexto

histórico, social e cultural em que os entrevistados assinalaram as mudanças

experimentadas no âmbito do curso de suas vidas que possibilita alinhavar o fio

condutor entre sociabilidade e os modos como a sexualidade vai se construindo

como uma maneira de ser.

Contudo, mesmo aqueles que atualmente não elegem a

homossociabilidade como questão importante, a experiência de envelhecer é

apontada como um acontecimento que não se percebe, uma vez que o

sentimento de juventude permanece vivo, sendo a aparência e a degeneração

do corpo, como assinalado por Beauvoir (1990), os marcadores que objetivam

esse momento. Nesse sentido, envelhecer é traçado a partir de histórias sobre

experiências que influenciaram os seus atuais estilos de vida. As poucas opções

de sociabilidade atuais parecem demarcar a nostalgia do “bom tempo

passado”, que refletia certa sedução mesmo em meio à clandestinidade, pois

hoje a segregação da velhice se reflete, entre outras dificuldades, na obtenção

de parceiros e na tentativa de se dar continuidade a novas relações.

Neste artigo, busco alinhavar as questões relativas às rupturas,

construções e desconstruções que aparecem nas narrativas dos entrevistados e

que marcam a lembrança da infância, a trajetória da homossexualidade, além

de algumas questões mais existenciais apontadas pelo processo de

envelhecimento.

Marcas geracionais e as lembranças do passado

As narrativas sobre as lembranças da infância registram a rígida

construção das noções das representações de gênero transmitidas pela família,

as quais informam o que um homem pode ou não fazer. Apontar determinado

ato como pecado é também uma das maneiras encontradas pela sociedade

204

Page 205: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

para exercer disciplinamento baseado na heteronormatividade e na

assertividade masculina nos primeiros passos da educação dos meninos. Trata-

se da socialização da diferença entre os gêneros, simbolicamente controlados

dentro de um sistema que define o que é o masculino, o que “ele” tem que ser e 6fazer, aspecto ressaltado na infância de Francisco .

Eu me lembro também de que, depois que nós viemos para

o interior, fui morar com a minha avó. Ela era muito religiosa

e dizia que menino não brinca de boneca, pois era pecado

(Francisco, 72 anos).

Francisco também relata seu desejo de participar do ritual religioso de

Nossa Senhora, prática legada às meninas. Tal aspecto revela o quanto a

divisão sexual e a representação de gênero impõem o seu rigor no cotidiano,

determinando aquilo que se pode ou não desejar, ainda que a regra possa ser

transgredida.

Na minha infância, tinha as meninas que iam coroar Nossa

Senhora, e só as meninas faziam isso, e eu cismei com o

fato de não poder coroar Nossa Senhora vestido de anjo.

Minha avó, que fazia a roupa de anjo, era muito habilidosa.

Na época, eu tinha um cabelo cacheado igual a um anjo, e

eu dizia: Eu quero, eu quero, eu quero! Aí, minha avó

enganou o padre, entendeu? E eu fui e coroei Nossa

Senhora como se fosse uma menina. Esse fato marcou

minha infância. Essa minha avó teve uma influência muito

grande na minha vida, ela não batia muito bem da cabeça,

mas eu gostava disso (Francisco, 72 anos).

O fato de as meninas, como anjos, serem as que coroam Nossa

Senhora registra como as diferenças de gênero são naturalizadas a partir de

efeitos simbólicos, sobretudo, nos traços distintivos dos corpos. A coroa deve

ser levada pelos anjos representados pelas meninas, simbolicamente puras. Tal

reconhecimento e legitimação fundamentam a concordância entre as

estruturas cognitivas e sociais das diferenças de gênero.

Outro aspecto advindo de algumas lembranças narradas toma o corpo

sexuado como sendo depositário de princípios que implicam a divisão de

tarefas, trabalhos e cerimônias, sendo objeto de controle, no qual aqueles que

se sentem com uma “sensibilidade diferenciada” são observados com mais

atenção para que se direcionem maiores disciplinas. A diferença entre os sexos

está na base dessa distinção da divisão social. Alguns entrevistados

6 Os nomes dos entrevistados são fictícios.

205Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 206: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

evidenciam, em suas lembranças sobre a infância, o quanto os valores morais

recaem sobre a divisão do trabalho (o que é próprio de homens e o que é próprio

de mulheres; o que é para pessoas de bem e o que deve ser evitado),

determinando quais atividades profissionais não são toleradas para os homens,

questões acentuadas por Ricardo e Eduardo.

Na minha infância, eu tinha uma sensibilidade diferenciada

e inclusive acho que foi muita maldade da minha família,

pois eu deveria ter tido outro desabrochar profissional. Eu

era muito ligado à dança, passava um tempo dançando,

parecia balé. E meu pai chegou a me perguntar: – você está

ficando louco? Eu sempre vivi essa ambiguidade. Dança era

uma coisa de gay e, por isso, não se verbalizou. Eu era

muito novinho e nem percebi isso na época, fui perceber na

geração posterior. Na época, eu só consegui sentir um

estranhamento (Ricardo, 60 anos).

Eu queria uma formação que mexesse com o corpo, tipo

dança ou Educação Física, e muito com a arte. Na minha

fase da escolha, eu queria isso. Mas a dança tinha aquela

coisa de parecer com o homossexualismo, e a minha

orientação foi praticamente cem por cento reprimida [...]. Eu

fiz curso de teatro, meu pai era contra, aí eu fazia faculdade

e fazia teatro ao mesmo tempo. Ele ficou doente e falei tudo

o que eu achava do nosso relacionamento, antes dele

morrer. Para mim foi maravilhoso! (Eduardo, 60 anos).

A masculinidade se delineia no processo que se impõe pela diferença e

contraste com o feminino, ou de qualquer outro comportamento e atitude que se

distingue com o que foi delegado simbolicamente a representação de ser mulher

no universo da norma heterossexual, aspecto já amplamente debatido a partir da

literatura feminista. As dificuldades daí advindas são inúmeras para aqueles que

subvertem essa norma. Segundo Fraser (2001), todo homossexual vive a crise do

heterossexismo, o que é corroborado por José (63 anos), quando afirma:

A homossexualidade me incomoda, incomodou, porque eu

acho que a vida heterossexual é de certa forma mais fácil

(José, 63 anos).

Evidencia-se o quanto a norma heterossexual é um peso para aqueles

que ousam subvertê-la. Esse indivíduo é levado a tomar posições para se impor

e se sobressair, buscando garantir um olhar mais positivo de si, numa luta

contra o estigma impingido aos homossexuais em seu meio. Na análise de

Goffman (1982, p. 25), “o indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente

inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão”.

206

Page 207: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Então, a tentativa de se sobrepor à consciência de sua inferioridade será buscar

se definir como alguém que expresse aceitabilidade, pois nunca sabe como os

outros vão percebê-lo ou aceitá-lo em termos do estigma que lhe é imposto. Os

entrevistados, por exemplo, relatam as dificuldades no espaço do trabalho, em

meio à construção de sua carreira homossexual.

Ser o melhor no meu trabalho foi uma estratégia para eu me

impor. Na minha época você como homossexual tinha que

ser o melhor em qualquer situação. Se você é cabeleireiro,

você tem que ser o melhor cabeleireiro, se você é sociólogo,

você tem que ser o melhor sociólogo, tem que ser sim, é a

maneira das pessoas te respeitarem, porque ainda existe

muito preconceito e pouco acolhimento (Marco, 60 anos).

Há momentos lembrados que foram vividos na juventude e narrados

como marcantes historicamente. O que se delimitam são as experiências de

toda uma geração, exemplificadas nas narrativas dos entrevistados que

circunscrevem seus momentos, citados aqui por Antônio e Álvares sobre a

morte de Getúlio Vargas.

A morte do Getúlio me marcou. Eu acho que deveria ter dez

ou onze anos e me lembro que foi uma coisa que me

marcou. Foi, assim, muito forte dentro da minha cabeça,

depois fui entendendo politicamente o porquê. E, hoje, aos

sessenta e cinco anos, eu vejo claramente a situação

política da época e entendo melhor. Agora o movimento

hippie me encantou e foi o que me despertou para muita

coisa, aproveitei muito, pois aconteceu no auge da minha

juventude. Essas foram as lembranças que mais me

marcaram dentro da minha história (Antônio, 65 anos).

O registro do tempo relacionado aos acontecimentos históricos

restaura a lembrança, em que cada fato interliga e estabelece conexões, muitas

vezes esquecidas, mas reveladas no momento da entrevista, desenhando,

desse modo, a trajetória da vida. Gagnebin (2009) assinala que essa análise

sobre o fenômeno histórico é como ponto isolado salvo, formando uma

“constelação” (tomando como metáfora as estrelas no céu, que recebem um

nome quando um traço comum as reúne em forma de uma imagem).

A perseguição dos militares, as informações sobre as

torturas na ditadura me marcaram muito. Na época, eu

tinha um amigo homossexual que era comunista.

Conversava muito com ele, era uma pessoa muito culta. Eu

lembro que comprei pra ele um livro chamado Nosso

homem em Havana. E ele foi preso, foram na casa dele e

recolheram tudo o que ele tinha, cartas, livros e tudo. E eu

207Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 208: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

fiquei com medo se eles pegassem aquele livro e vissem a

minha dedicatória e me pegassem. Nessa época, eu

morava no interior, e vinha frequentar lugares gay aqui no

Rio, isso foi em 1970 (Francisco, 72 anos).

Eu me lembro que a gente tinha o toque de recolher dos

militares e foi nessa época que fui morar com meu

companheiro. Isso me marcou muito, e a gente sabia pela

televisão, e obedecia, e ninguém andava sozinho na rua. E,

por isso, era muito marcante a reunião na casa das famílias.

Todo gay que tinha um companheiro proporcionava essas

reuniões. E quem era solteiro participava, era tipo um sarau

(Antônio, 65 anos).

Quando eu tinha uns vinte anos, esse foi um momento forte

da ditadura militar, mas eu passei ao largo disso. Depois,

com o tempo, eles invadiam boates gay e essas coisas

todas, mas eu só vim a saber pela TV, porque eu não

frequentava esses lugares. Mas isso me oprimiu muito

(Eduardo, 60 anos).

Em algumas narrativas, é possível analisar o quanto determinados

acontecimentos proporcionaram sentidos simbólicos que influenciaram na

formação de novas experiências. As perspectivas políticas criam adequações

comportamentais que geram estilos de vida. Ao citarem o movimento hippie,

demarcam a experiência de uma geração cujos gostos e comportamentos

foram influenciados por esse acontecimento, aspecto lembrado por Ricardo,

Marco e José.

Tinha o movimento hippie, aquele negócio todo, a

permissividade que existia na época. Foi a coisa que mais

marcou a minha geração, pois tinha a amizade colorida,

que desapareceu, infelizmente, e aquilo era tão bonito. Era

uma forma grandiosa de amar, e eu estou me referindo a um

outro homem. Você não era obrigado a ter uma relação ou

uma ligação direta com a pessoa. Eu tive um grande amor

assim (Ricardo, 60 anos).

Eu vivi essa coisa hippie, os Beatles. Eu me lembro e isso

me marcou, pois comecei a perder cabelo com vinte anos,

na época dos Beatles, isso era horrível para aquela época

(Marco, 69 anos).

Lembro-me que eu sempre sentia atração por homens

cabeludos. Tinha essa fantasia, mas nunca transei com

esses “caras” de cabelos grandes. Eu não peguei

inteiramente a geração hippie, senti que a minha geração é

mais dos Beatles (José, 63 anos).

208

Page 209: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A trajetória de vida é dotada de lembranças que registram situações

coletivas comuns na dimensão histórica, as quais formam a experiência. Essas

narrativas destacam as vivências nas quais, para cada indivíduo, a ação social

oferta posições e descobertas, inserindo-se em movimentos mais amplos de

mudanças coletivas, dos quais é parte e para os quais contribui na construção

de estilos de vida. Nesse contexto, constroem suas carreiras homossexuais,

aprendendo que seu ato desviante possui muitos sentidos cada vez mais

apropriados, adaptados, expressando a maneira de viver. Para esses

indivíduos, segundo Becker (2008, p. 41), a carreira organiza a identidade em

torno de um padrão de comportamento desviante, mas somente “para aquele

que segue um padrão de atividade homossexual durante toda a sua vida

adulta”. É suficiente dizer que viver a homossexualidade provém de motivos

socialmente aprendidos em que se interage com outros no âmbito de uma

subcultura com mesma atividade.

Assim, acontecimentos históricos, que foram decisivos na constituição

das subjetividades coletivas, repercutiram na vida dos entrevistados como um

fenômeno geracional. As lembranças da infância, por outro lado, sublinham os

sentidos dados à formação de sua homossexualidade no âmbito do que se

busca e motiva socialmente. Além disso as experiências, em meio à repressão,

ao controle, à vigilância, associados a um sistema de representações do

masculino, deram o tom dos relatos e expuseram o dispositivo que se instala

sobre a orientação sexual, vivenciada como um desvio. Nesse sentido, o

despertar homossexual explicita questões que envolvem ritos, brincadeiras na

infância, vínculos de amizade e o projeto de sair de casa, entre outros aspectos

que envolvem a dificuldade de ser aquilo que se deseja.

A trajetória da construção da homossexualidade no curso da vida

Os entrevistados revelam o impacto do processo de liberação sexual 7norte-americano no início dos anos 1970 , embora, no Brasil, estivesse no

auge da ditadura militar. O enfrentamento dessa situação leva a adaptações

7 Refiro-me ao movimento hippie, à insurgência de lideranças gays, principalmente em São Francisco, EUA, que invocam o ambiente até então relegado do “gueto” como espaço legítimo de manifestação política e homoerótica. Às revoltas gay, em 1969, desencadeadas por uma batida policial no bar Stonewall, na cidade de Nova York, tornam-se um símbolo de luta. Stonewall passa a ser considerado o nascimento do movimento contemporâneo do Orgulho Gay. Além disso, o impacto da descoberta da pílula anticoncepcional, uma década antes, um divisor de águas nas relações conjugais com o maior controle sobre a gestação e, consequentemente, maior abertura para as práticas sexuais. Some-se a tudo isso o surgimento, nessa década, dos encontros gays, das manifestações culturais, das expressões artísticas e da imprensa alternativa, que revelavam conteúdo reflexivo sobre a homossexualidade. Foi uma década marcada pela liberação dos costumes e pelo reconhecimento de estilos de vida homossexual, como uma prefiguração do avanço nos comportamentos e nas relações humanas. Assim, os anos 1970 marcam todo um conjunto experiências, nas quais o homossexual prova sua capacidade e seu poder de se fazer respeitar, explicitando uma nova arte de viver (POLLAK, 1990).

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Page 210: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

relacionais em meio ao aparato de controle e repressão política, exigindo

estratégias de convivência no âmbito da vida pública e privada em diversos

contextos da sociedade. A relação homossexual inclina-se sobre perdas sociais.

Assim, a vida amorosa com mulheres passou a ter novos significados, como

encobrir ou amenizar o sentimento de vergonha sofrido pelo desejo sexual

direcionado a homens. Essa dimensão tem seus efeitos, como assinalado por

Eduardo e Álvares.

Tive uma mulher que ficou muito tempo na minha vida [...]

e foi ela que ficou tapando o sol com a peneira. [...] Então

namorava mulheres e tinha relacionamento homossexual

ao mesmo tempo. Era clandestino [como homossexual].

Mas eu inseria o cara no meio dos meus amigos. Era

clandestino na minha cabeça, não era clandestino esconder

de ninguém. Eu dizia para as pessoas: esse é meu amigo!

Isso era difícil, pois ele [o parceiro] tinha ciúmes [...]. Mas,

naquela época, a repressão era muito grande, e as mulheres

também se preservavam. Com as namoradas, eu não fazia

sexo com elas, ficava só nos carinhos, aquela coisa toda,

não chegava aos finalmente (Eduardo, 60 anos).

Eu me casei com uma colega da faculdade de Letras, colega

de turma, só que eu já tinha tido experiências

homossexuais... (Álvares, 75 anos).

Tratando-se de uma geração que se relacionou com o mesmo sexo em

um contexto de autoritarismo político e de intolerância no qual a

homossexualidade se associava à condição de crime e à doença, os

entrevistados viveram as relações heterossexuais para atender às expectativas

sociais e familiares construídas sobre a ideia de masculinidade fundada em

estereótipos de gênero. Assim, a carreira homossexual se apresenta permeada

por realidades contraditórias, através das quais se aprende a não se revelar, e,

aos poucos, através da sexualidade, a entender “quem se é”, aspecto lembrado

por Ricardo e José.

O que marcou a minha vida foi a percepção de duas coisas:

primeiro, que eu precisava não só de aventuras

homossexuais, eu precisava enveredar por um amor

homossexual, e, em relação a ela [mulher com quem se

casou], eu não tinha esse amor, amor mesmo. A questão

sexual era menor, mas tinha importância, porque eu

também gostava de transar com ela (Ricardo, 60 anos).

Na minha rua, naquela época [da adolescência], era quase

proibido ser homossexual. Então, a pessoa sabia que a

outra era homossexual e já via com outros olhos, já achava

210

Page 211: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

que era um marginal. Eu acho que eles tinham mais medo

de um homossexual do que de um bandido. Era como eles

falavam: homossexualidade é uma doença que pode

contagiar alguém da minha família. (Manoel, 65 anos)

O constrangimento com a própria homossexualidade, muitas vezes,

suscita as dúvidas em relação a si mesmo e a obrigação de justificar a

diferença. A consequência é o enfrentamento das muitas crises existenciais que

aparecem na gestão da vida individual, porém não sem gerar situações

paradoxais, entre as quais, o cumprimento social do casamento heterossexual

se verifica como uma realidade para os homens dessa geração.

Eu fazia Direito nessa época, me formei e me casei. E me

casei com uma mulher, mas minha mulher sabia que eu era

homossexual, mas isso não era problema, ela me amava,

gostava de mim e eu, naquela época, acreditava que isso

era possível (Ricardo, 60 anos).

Tive uma namorada em São Paulo, uma coisa muito

passageira e não era uma coisa verdadeira. Com ela,

descobri que a relação heterossexual não era a minha

praia. Mas isso eu sempre achei desde criança, que sentia

atração por meninos (Roberto, 78 anos).

A violência simbólica contra a homossexualidade ancora-se muitas

vezes nessa dimensão de poder do heterossexual sobre o homossexual. Nesse

sentido, o indivíduo trava uma luta contra si mesmo a fim de se situar em um

espaço social preconceituoso, que gera sentimentos de vergonha, sensação de

permissividade, sujeira e transgressão.

Eu comecei tarde [a ter relações homossexuais], porque eu

era muito reprimido. A primeira relação [com homem] foi

com uns vinte e poucos anos, vinte e três anos. Foi com um

ator de teatro, falecido hoje em dia. Um ator até conhecido

na época. Eu o conheci num ensaio em que eu estava

presente, aí ele se aproximou de mim e ficamos amigos, ele

era uma pessoa muito inteligente, e fui a casa dele. Essa

relação foi muito chocante para mim, porque eu voltei para

casa me achando sujo, fui logo tomar banho, e fiquei horas

no banho. Nunca mais quis ver a pessoa na minha vida,

engraçado isso!! (Eduardo, 60 anos).

Com dezoito anos, comecei a ter relação com homens, mas

com muito receio. Eu mesmo tinha o preconceito. E aí a

minha primeira experiência [sexual com homem] foi ainda

aqui no Brasil, foi de repente. Tomei coragem, o cara me

olhou e eu fui. Foi uma experiência sem afeto nenhum,

211Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 212: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

212

totalmente sexual, sem beijo, sem nada. Cheguei em casa,

toquei a companhia e a minha mãe abriu a porta e eu morri

de vergonha (José, 63 anos).

Algumas narrativas demonstram as formas como eles são

confrontados pela experiência heterossexual, cuja prática se reduz à ação em

torno da penetração. No contexto em que as relações sexuais com as mulheres

são experimentadas, o desejo parece se revestir da necessidade de provas de

masculinidade que venham encobrir o desejo homossexual e o sentimento de

estar em desvio.

Eu tive experiências com mulher, porque tinha a

necessidade de gozar em alguém, mas não tinha coragem

com um homem, pois na minha cabeça eu era o único

homossexual de toda a geração dos meus colegas. Tinha

uma coisa na minha cabeça imatura que a

homossexualidade era uma coisa de travesti. Eu sabia de

meu desejo, mas não expressava. Na época, tinha o

preconceito do meu pai, tinha medo de ser rejeitado. E eu

tinha os meus amigos, e eu não era um menino, digamos,

feminino, praticava esportes, não tinha nada gestual de um

gay... (José, 63 anos).

Eu já tinha clareza de que tinha tesão por homem, mas

guardava uma dúvida entre a parceria dos meninos de rua e

tentar uma namorada. Então, tinha uma namorada, transei

com a namorada e vi que não era o que eu queria, mas,

mesmo saindo com os garotos, tive uma namorada, porque

achava que ser gay era o mesmo que ser mulherzinha

(Antônio, 65 anos).

Está posto para esses indivíduos que ser homossexual gera o

sentimento de inferioridade e, muitas vezes, leva ao desprezo para com outros

gays, com os quais não conseguem identificar-se. Mas a percepção de se poder

viver um estilo de vida gay satisfatório adaptado às normas sociais torna-se, aos

poucos, aceitável, como demonstram as narrativas de Luis:

Tenho um amigo que é jornalista, formado, é bem

badalado, é conhecido e ele é uma pessoa totalmente

insegura na questão da homossexualidade dele, na mentira

do grupo dele, em todos os sentidos. Isso me irrita! Agora eu

acho que não tem necessidade de ir aos quatro ventos e

escrever na testa: eu sou homossexual! Eu acho que não há

necessidade disso! Entendeu? Eu acho que a minha

homossexualidade estava comigo desde garoto, mas pela

criação tentei não ter uma vida homossexual, até por causa

Page 213: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

da família, então, os conflitos vieram até eu me encontrar

na homossexualidade, que foi após a crise dos meus três

relacionamentos, relacionamentos mesmo e não aventuras.

Então, eu sou uma pessoa tranquila, por ter me encontrado

(Luís, 68 anos).

A elaboração da identidade gay, a partir de um atributo que é

desaprovado, ou seja, a associação com o aspecto feminino, passa a exigir

respostas para as maneiras como se posicionam e são aceitos em seu meio

social. A recusa em se identificar com a representação gay/mulher/feminino

leva, inclusive, à vida secreta, que sinaliza certa proteção do verdadeiro desejo

sexual. Segundo Fernando:

Muitos acham que assumir é sair pela rua gritando, “dando

pinta”, miando. Eu acho que não! A homossexualidade, o

sexo, não tem nada com o caráter feminino, mas com a

postura de cada um. E você pode ser conforme quiser e

pagar o preço [...]. Nós temos uma opção sexual e, no

entanto, temos que nos respeitar diante a sociedade. Não é

você sair por aí gritando, rebolando, dando pulinhos, não!

Eu também não faço, veja só, eu não recrimino, de repente

vai dar a impressão de que eu estou com preconceito,

preconceituosamente contra essa gama de pessoas, não é

isso, eu acho que você, para ter uma opção sexual, não é ter

determinadas maneiras de ficar demonstrando aquilo que

não tem nada a ver, vou ficar levantando bandeira. Eu, por

exemplo, não levanto bandeira de nada, eu ajo

normalmente e vejo o que é viável (Fernando, 65 anos).

Esses homens, ao se aceitarem como homossexuais, descobrem que

são alguém de quem se dizem muitas coisas, o que acentua a postura do que

deve ser um “homem” e o que significa sua distinção. Os entrevistados se veem

como objetos dos olhares de censura e curiosidade dos outros e, também, como

alvo dos discursos que demarcam o estigma com base na classificação e na

polaridade heterossexual/homossexual, masculino/feminino. A associação do

gay ao travesti, lembrada pelo entrevistado, aciona a percepção dos

homossexuais masculinos aprisionados pela dicotomia estereotipada entre

masculino e feminino, sendo o feminino sua representação estigmatizante.

Para Bourdieu (2008), trata-se de se perceber como é imposto um sistema de

classificação dominante a partir de um traço estigmatizado, que por sua vez

fornece a esse sistema o conteúdo mais adequado para isolar e definir o que se

afirma, o que ele tem e é. Na fala de Luís abaixo, é salientado o aspecto que ele

despreza sobre a visibilidade homossexual, ou seja, o jeito estigmatizado do

homem feminino.

213Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 214: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

214

Mas eu acho que você tem que defender a

homossexualidade pra você respeitar os outros, pra você ser

respeitado. O que vejo hoje em dia, como eu via

antigamente, um viadinho quá-quá, fazendo coisas, uma

dondoca, um travesti e tudo mais, mas eu acho que isso só

agride, não tem necessidade disso! Qual a necessidade de

eu estar declarando aos quatro ventos o que eu sou? (Luís,

68 anos).

A necessidade de aprender com quem se pode relacionar sexualmente

e em que espaços é permitido deixar transparecer afeição e desejo por outro

homem é um dos traços comuns nas trajetórias narradas. Na análise de Eribon

(2008), o homossexual constrói certa conduta adaptada por ser percebido

socialmente pela marca da diferença, o que muitas vezes o obriga a confrontar-

se com o seu próprio desejo em manter suas relações. Segundo Goffman

(1982), trata-se de um aspecto daquele que se sente, de alguma forma, com

um estigma e reage buscando estratégias para se posicionar no espaço social,

aliando-se a outros que sofrem da mesma marca. Assim, a busca dos meios

possíveis para fugir da violência faz com que muitos indivíduos com desejos

homossexuais migrem para outras cidades e meios urbanos fora do seio da

família. O deslocamento espacial e geográfico tem amplo significado simbólico

e prático, pois permanecer no lugar de origem é estar sujeito aos controles

morais heterossexistas. Francisco relatou a respeito de quando morava em uma

pequena cidade do interior:

Tinha medo de frequentar a noite lá. Só comecei a

frequentar lugares gays aqui no Rio, em 1970. Eu vinha

aqui nos finais de semana, foi nessa época que eu me

assumi (Francisco, 72 anos).

Sair para se aventurar em outro território permitiu a Francisco alcançar

a almejada individualidade, o anonimato e a liberdade longe dos controles

disciplinadores da sexualidade manifesta dentro da norma heterossexual. Por

outro lado, a mudança requer a construção de novas redes de sociabilidade,

mais identitárias, que possibilitem a interação com outros sujeitos e o

alargamento dessas identificações. Em outras palavras, ir para a cidade grande

é um caminho que possibilita a construção de uma subjetividade junto a outros

com os quais se possa relacionar em torno de valores e gostos similares. Esse

dado, acentuado por Pollak (1990), demonstra que os grandes centros

urbanos, com sua diversidade e modos de vida, asseguram o anonimato, a

individualidade, e oferecem autonomia para que sejam experimentados novos

estilos de vida. Os relatos de José e Márcio ilustram as possibilidades advindas

da vida nas grandes metrópoles.

Page 215: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Fiquei quase um ano na França, aí quando eu voltei para o

Brasil passei a andar em ambiente gay. Saí fora dos meus

amigos de infância, adolescência e passei a frequentar

pessoas, bares e boates gays, realmente até então isso não

era tão confortável, depois até conheci um cara e tive uma

relação (José, 63 anos).

Eu fiz uma faculdade na Austrália, uma faculdade de

Inglês. Morei dez anos e meio na Austrália, foi lá que eu

me deslumbrei [...]. Vi que aqui [no Brasil] é muito

engraçado essa coisa de ser gay, lá fora é tudo diferente

(Márcio, 65 anos).

Os entrevistados afirmam o quanto esse deslocamento pode significar

a busca por uma homossociabilidade possível e a própria aceitação do desejo

homossexual, sem ter de dissimulá-lo permanentemente (ERIBON, 2008).

Portanto, não se trata de uma mera migração ou percurso geográfico em busca

de parceiros sexuais, mas a tentativa de afirmar uma nova existência e

afirmação da identidade sociossexual, como demonstram as narrativas de

Eduardo, Ricardo e Luís.

No final da década de 70, em que eu fui trabalhar em São

Paulo [...], morei com parentes em São Paulo e depois fui

morar sozinho. Foi a minha libertação, me senti dono da

minha vida. Quando voltei, fui morar com a família de novo,

e não deu certo mais. Eu saía e a minha mãe estava na

janela me esperando voltar e não estava mais acostumado

com isso. Fui morar sozinho, comprei um apartamento, a

partir daí, voltei a me aproximar da minha família, porque

me tornei visita (Eduardo, 60 anos).

Eu era uma pessoa, depois da minha estada na França fui

outro, tomei um banho de cultura. Quem me libertou foi a

França, entendeu? Eu tive múltiplas experiências. Lá vivi

uma época em que a gente aprontava tudo, se aprontava

tudo, tudo se fazia, inclusive orgias e de tudo aquilo eu

participei, porque era comum na época (Ricardo, 60 anos).

Mas eu me descobri [homossexual] aos dezessete para

dezoito anos, porque entrei como comissário de uma

companhia aérea com dezoito anos e eu entrei casualmente

[...]. Aproveitei para viajar e era um ótimo salário na época

e eu me descobri foi exatamente nesse período, em que eu

conheci uma pessoa. Ele era pessoa muito calma, muito

bonita até e a gente teve uma transação, aí, depois disso, eu

tive vários relacionamentos, e realmente foi uma transação,

215Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 216: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

216

não um relacionamento. Como comissário, conheci outras

pessoas e eu vim a ter muitos casos [homossexuais] mesmo

(Luís, 68 anos).

As experiências relacionais com os homens aparecem, nas narrativas

dos entrevistados, marcadas pelo deslocamento espacial e pelo princípio da

rede de amizade com outros homossexuais, com os quais se estabelecem novas

relações. O percurso da migração e a descoberta de novas redes identitárias

demonstram a possibilidade de uma saída para a socialização com quem são

compartilhadas experiências no contexto do mesmo desejo e manifestação

sexual. O que há são maiores possibilidades de aprendizagem individual e

coletiva sobre a homossexualidade, até que o indivíduo venha a identificar-se

como gay; nesse processo, a identidade aos poucos vai se construindo como

fonte criadora de estilo de vida (FOUCAULT, 1981).

Tecendo algumas considerações

A homossexualidade e a velhice abordam situações geracionais cujos

atores desta pesquisa ousaram subverter, buscando aos poucos maior

aceitação social na cena pública da sociedade brasileira. Tal aspecto desperta

um conjunto de complexas questões, por expor novos prismas de antigas

discussões que merecem ser relativizadas conceitualmente, tais como: o

moderno e o tradicional, o público e o privado, a masculinidade e a

feminilidade, o novo e o velho, a juventude e o envelhecimento, o corpo e a

idade. Ricardo (60 anos) destaca:

O mundo é heterossexual e o idoso tem uma necessidade

física, uma carência física que não permite que o gay velho

se rebele. Quando ele era jovem ele se rebelou porque ele

tinha tudo em cima músculos, mobilidade, dinheiro e

outras coisas. Aí tem outra questão, que é a questão

financeira, se ele é pobre [...], e tem a questão racial, pois

se ele é negro aumenta o preconceito.

Para esses atores, o desejo homossexual na trajetória da vida expressa

na experiência de envelhecer novas maneiras de identificação e atribuição

social. As questões apresentadas na pesquisa apontam para as conquistas

políticas por reconhecimento da diversidade, sem que se vislumbrem novos

atores sociais, como, por exemplo, os gays velhos. Consequentemente, isso,

numa ponta, inclui os espaços de homossociabilidade, mantendo o preconceito

em torno desses indivíduos, e, em outra, faz realçar no espaço social certa

“velhofobia”, palavra que acrescento ironicamente para esse contexto, mesmo

que o sufixo “fobia” apresente uma carga de sentido essencialista.

Page 217: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Os sujeitos pesquisados em suas narrativas demonstraram o quanto

ainda lutam para exercer a sexualidade, para reinventá-la, sem que suas

performances públicas sejam alvo de chacota, injúria, objeto de riso frente à

estética do corpo, cuja ideologia invisibiliza o velho e nega a velhice. Nesse

contexto, afirma Márcio (65 anos): “Fui flor do campo, agora que sou tiririca do

brejo, vão ficar rindo para mim, porque agora que já não estou mais com os

meus vinte aninhos olham para minha cara e riem”.

Pude perceber que os amores homossexuais clandestinos frente à

norma heterossexual formaram a marca dessa geração. Os entrevistados foram

fortemente socializados a partir de mecanismos que naturalizam a sexualidade,

tornando-a um princípio biológico e a heterossexualidade o único modo aceito

para as relações sexuais humanas. Tal aspecto esteve associado ao sentido de

que a sexualidade e a reprodução são como destino para os roteiros sexuais,

que tiveram como suporte a ideologia patriarcal. Expressa-se com isso o quanto

o discurso e as práticas sociais refletem o poder da representação do que é ser

homem, tomando a norma heterossexual como um princípio. Esse contexto da

construção do gênero masculino, que se generalizou nos afetos e nas

percepções individuais, influenciou seus estilos de vida. Como homens, o

enfrentamento e a transgressão a essa lógica heterossexista levou-os a

apostarem na autonomia, nas práticas sexuais fugazes, na individualidade e a

manterem suas experiências afetivas de modo clandestino, longe do recinto

familiar.

Para esses homens, a velhice não trouxe a desistência de projetos e

parecem guardar para si o tempo perdido por não terem se assumido como gays

há mais tempo e gozarem da possibilidade de amar outro homem sem que

fosse preciso se esconder. Alguns entrevistados ressentem-se justamente dessa

falta de suporte comunitário e político para vivenciar sua sexualidade em outros

domínios além do privado. José (63 anos) é taxativo ao afirmar que se pudesse

voltar no tempo botaria a boca no megafone, ia assumir-se, viver os desejos

mais abertamente, reforçando a percepção de que o segredo e a invisibilidade

da experiência homossexual impõem maneiras de expressar a opressão sentida

vivida por essa geração no espaço público; hoje, percebe-se a sociedade mais

aberta às possibilidades de aceitação do estilo de vida gay. Mas o que traz de

tão importante essa necessidade de revelar-se, essa recusa em resistir ao

confinamento sexual, esse sufocamento pela ocultação quase permanente do

desejo homossexual por parte de dos entrevistados? De fato, essa geração

complexificou esse paradigma do “sair do armário”. Mas que “armário”? Para

esses indivíduos, nem havia esse sentido de “dentro do armário” como

metáfora para se esconder a homossexualidade, pois, como lembra Marco (69

anos), “naquela época não se usava isso de se assumir, mas eu não sou tão

217Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 218: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

218

ingênuo de imaginar que as pessoas não soubessem”. Nesse contexto, também

afirma Raphael (68 anos): “Nunca entrei no armário, nunca saí do armário, não

converso sobre isso, essa é a primeira vez”.

Através desse desejo de revelar a homossexualidade publicamente,

pode-se perceber o caráter contraditório das mudanças ocorridas ao longo das

gerações, em que as experiências sexuais passaram a ser um ícone para se

pensar a diferença entre a norma e o desvio (MOTA, 2007). Essa necessidade

de revelar e se assumir parece emblemática, pois demonstra o quanto a

conquista de aceitação no espaço social tem possibilitado pensar as mudanças

em torno do reconhecimento cultural de que nos fala Fraser (2001). Através

dos relatos dos entrevistados, observa-se que há evidentes mudanças ocorridas

ao longo das gerações que marcaram a experiência da homossexualidade hoje,

nas quais, no entanto, a homofobia ainda se evidencia como um traço em um

cotidiano marcado pelo heterossexismo e pelo preconceito, acrescido de suas

várias roupagens distintivas, entre elas, o crivo da idade avançada. Mas o jogo

do “assumir” ou “sair do armário” ainda implica ritos, registros e espaços

diferenciados, já que a dificuldade nesse processo está em aceitar inicialmente

esse “eu” homossexual, afastando o sentimento de ser uma pessoa em

condição de desvio (VIEIRA, 2010). Contudo, trata-se de um debate em que as

atuais gerações gozam dos avanços da micropolítica exercida por esses

entrevistados, mas que agora eles mesmos passam, de novo, por uma situação

de exceção ao enfrentar o sentido pejorativo que lhes reserva a identidade

social de ser gay velho.

Esses homens não se percebem velhos, não aceitam a velhice como

sendo o fim dos projetos de vida. Nesse sentido, para muitos, a alusão à idade é

um insulto por identificá-los como idosos, pois “uma vez que em nós é o outro

que é velho, que a revelação de nossa idade venha dos outros, e assim não

consentimos nisso com boa vontade” (BEAUVOIR, 1990, p. 353). Portanto,

não se trata de uma questão explícita do gay que envelhece. Mas o que é

próprio do gay que envelhece? Novas dominações são sentidas e expressadas

pela linguagem, que reabre para segregações equacionadas no espaço social

pela idade madura. Esse outro de que fala Beauvoir (1990) também confere o

sentido de decadência e desengajamento social em razão da condição gay.

O olhar dos sujeitos desta pesquisa sobre o espaço social revela as

contradições para gozarem das lições aprendidas ao longo da vida. O

envelhecimento para esses homens explicita o quanto são violentas as

segregações distintivas representadas pelo crivo da idade e pela norma

heterocêntrica das relações sociais que inviabilizam o reconhecimento social

da diferença.

Page 219: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Essa geração mostra, além disso, como foi pioneira em suas escolhas,

principalmente, quando se optou por firmar contratos de bens patrimoniais

como garantia de suas uniões estáveis, em um momento que nem se aventava

discutir a união civil como um direito dos homossexuais, aspecto lembrado por

Antônio e Francisco. Mas além de viverem a experiência do movimento hippie,

dos embates do movimento feminista, do afrouxamento das práticas sexuais

convencionais, do efeito aterrorizador do HIV/Aids em seus primórdios tempos

de “peste gay”, atualmente os sujeitos desta pesquisa revelam a experiência da

ditadura da felicidade com registro no corpo e baseada no ideal de juventude.

Através destas trajetórias observamos mais do que indivíduos que aceitam

complacentemente a velhice como sendo um estado de vida em que baixam as

exigências e os projetos, é a vivência da velhice como parte de um exercício

para chegar a novas experiências relacionais, valendo-se dos recursos

materiais que possuem.

Tal dimensão conduz a novos debates nos quais os entrevistados

explicitam intensas negociações entre o sexual e o sentimental, o desejo e a

prática para o exercício da sexualidade e homossociabilidade. Esta análise não

implica perceber essas dimensões como separadas entre si, mas que, apesar

de integradas, possuem certa autonomia no âmbito da experiência desses

homens, por confrontá-los com os estigmas de ser gay e velho. Essas

dimensões apresentam-se como importantes questões para se pensar o ser

humano em geral na alta modernidade. Esses sujeitos expressam seus

interesses afetivos no âmbito da ideologia do amor romântico, mas acabam por

ter dificuldades em efetivar novos encontros por causa da aparência de idade

avançada. Esses homens demonstram que não querem ser percebidos como

um corpo desfeito, deteriorado, como se estivessem próximo do fim, mas sim

sujeitos de experiências que podem contribuir efetivamente contra a

homofobia, pela diversidade sexual e pela luta por cidadania. Querem seu lugar

no campo da comunicação e mostrar o quanto podem reinventar as relações

com o mundo.

É preciso destacar que a memória desses indivíduos conta a história

da opressão, da violência familiar, do medo da transgressão do gênero

masculino, da injúria direcionada à expressão da homossexualidade de que nos

fala Eribon (2008). Tais questões se evidenciam quando se focalizam certos

fatos na trajetória dos entrevistados e que marcaram toda uma geração: oito

assinalaram ter pai autoritário, energético e disciplinador; quatro sofreram

pressão/rejeição familiar; cinco somente viveram ou revelaram a

homossexualidade para a família após a morte do pai; dez saíram de casa ou

migraram para outras cidades para viverem suas relações homossexuais. Esses

219Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222

Page 220: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

sujeitos viveram no período da ditadura militar, em que, como no nazismo,

muitos foram perseguidos e torturados sob a alegação de “subversivos”. Tais

aspectos foram marcantes e desencadearam inúmeras lutas para a construção

da carreira homossexual na trajetória da vida. Hoje, poucos usufruem, no

âmbito da aceitação e do reconhecimento, de espaços sociais por causa de sua

velhice. Levando-se em conta que em muitas sociedades modernas tem se

desencadeado uma luta contra o preconceito aos velhos, pode-se destacar a

falta de relacionamento familiar, a redução de círculos de amigos e a raridade

de espaços de permanência para a homossociabilidade.

Há de se aprofundar muitas questões em novos estudos que acionem

as sutilezas das influências de classe, gênero e etnicidade, levando-se em

consideração as exigências da performance corporal gay na velhice. Agrega-se

a isso o fato de não ter encontrado, nos espaços onde busquei os sujeitos desta

pesquisa, indivíduos negros-gays-velhos. Além disso, o tema da violência

aponta também para a necessidade de novas problematizações. Enfim, trata-

se de ver junto a sujeitos pertencentes a outros extratos sociais o potencial de

transformação que a homossexualidade e o envelhecimento facultam à

sociedade. Notadamente, o projeto de vida reflexivo e crítico da experiência

homossexual narrado pelos entrevistados mostrou as possibilidades de

mudança de vida através de gerações como sendo uma força de subversão

frente às necessidades de adaptação e construção de estilos influenciados pela

norma e pelo desvio, pelo tradicional e pelo moderno, pelo público e pelo

privado, possibilitando novas concepções e representações para as

homossexualidades masculinas e as experiências de envelhecer.

220

Page 221: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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222

Page 223: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

11

Sexualidade e política: uma abordagem a 1partir do mercado e do consumo

Isadora Lins FrançaPesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de

Estudos de Gênero Pagu – UnicampDoutora em Ciências Sociais pelo Programa de Doutorado

em Ciências Sociais – IFCH/UnicampMestre em Antropologia Social pelo PPGAS – FFLCH/USP

[email protected]

Sexuality and politics: an approach related to

market and consumption

Page 224: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

224

Resumo

Neste artigo, procuro traçar uma abordagem retrospectiva para questões referentes a

política, homossexualidade, consumo e mercado, trazendo resultados de pesquisa de

campo realizada em São Paulo no âmbito do meu mestrado e doutorado. Busco me

aproximar da proposta central do trabalho por meio: 1) dos discursos de empresários

envolvidos com o mercado segmentado; 2) dos significados atribuídos a lugares de lazer

noturno por seus frequentadores; 3) das ações organizadas por frequentadores do

mercado segmentado de lazer noturno, as quais produzem uma interface entre consumo

e política. Tento operar uma mudança de perspectiva na análise sobre a ação política,

comumente focada nos movimentos sociais e na implementação de políticas públicas.

Não há aqui qualquer pretensão descabida de elevar o mercado e o consumo a esferas

privilegiadas de atuação política, mas sim o recurso ao desenho de tensões saudáveis a

partir de práticas sociais e à análise de sua rentabilidade teórica e metodológica.

Palavras-chave: Sexualidade. Consumo. Movimento social. LGBT. Mercado.

Homossexualidade.

Abstract

This article aims to draw a retrospective approach to issues related to politics,

homosexuality, consumption and market. It brings results from fieldwork which was

done in the city of Sao Paulo for my master and PhD degrees. The central purpose of this

work is organized considering results related to: 1) discourses from owners of business

directed to gays and lesbians; 2) meanings about homosexuality constructed by men

who use to go to venues directed to gays and lesbians; 3) political actions articulating

consumption and politics. I try also to make a shift in the analysis about political action,

usually focused on social movements and public politics. There is no place here for an

approach which understands consumption and market as privileged fields for political

action. Instead of this, I intend to make an approach which could be able to bring

tensions related to both market and social movement, in order to think how these

tensions could be theoretically and methodologically productive.

Key words: Sexuality. Consumption. Social movements. LGBT. Market. Homosexuality.

1 Parte deste texto foi apresentada no GT Gênero e Sexualidade, no 34º Encontro Anual da ANPOCS, em 2010. Agradeço a Adriana Vianna, pela leitura e pelas sugestões naquela ocasião, bem como aos demais participantes e coordenadores do GT. Agradeço também a Regina Facchini pela sua leitura e seus comentários.

Page 225: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

2Neste artigo , procuro realizar uma reflexão sobre consumo, mercado,

política e homossexualidade, conectando alguns pontos de minhas pesquisas

de mestrado (FRANÇA, 2006a), que abordavam as relações entre “movimento 3LGBT” e “mercado GLS”, e de doutorado (FRANÇA, 2010) , em que explorei

relações entre consumo e produção de subjetividades de homens que se

relacionam afetiva e sexualmente com outros homens, ambas realizadas no

contexto da cidade de São Paulo. Não tenho a pretensão de preencher lacunas

ou oferecer explicações capazes de dar conta de fenômenos tão complexos a

partir dos dados das duas pesquisas. Meu objetivo, antes, é o de delinear

questões que sejam produtivas no sentido de compreender melhor as relações

aqui mencionadas e que possam estar ancoradas em dados empíricos.

Busco me aproximar da proposta central do trabalho por meio: 1) dos

discursos de empresários envolvidos com o mercado segmentado; 2) dos

significados atribuídos a lugares de lazer noturno por seus frequentadores, que

em certa medida questionam “consensos” relacionados à homossexualidade; e

3) de ações que se dão em conexão com o mercado segmentado de lazer

noturno – e articuladas também via internet –, que produzem uma interface

entre consumo e política. Esses tópicos para análise têm em comum o fato de

que se dão no âmbito do mercado e ao mesmo tempo reverberam politicamente,

ou seja, pretendem ser – ou são – um tipo de resposta a diferenças na sua forma

da desigualdade, mas não são iniciativas políticas de um ponto de vista mais

tradicional, do movimento social ou da formulação de políticas públicas.

Um dos fios condutores que possibilitam esboçar uma análise do

encontro entre política – ou, mais estritamente, entre movimento LGBT – e o

mercado voltado para gays e lésbicas acompanha o processo de construção de

identidades pelo qual determinados atores sociais emergem na condição de

sujeitos políticos. Identidades, aqui, são pensadas através de uma perspectiva

processual, estando em permanente fabricação. A própria emergência de novos

atores reivindicando-se como constituintes do sujeito político do movimento

LGBT – como atesta a organização de travestis, transexuais e bissexuais –

evidencia a fragilidade de abordagens teóricas que lidam com as identidades

225Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

2 Dedico este trabalho à memória de Pâmela Anderson, que integrava a Secretaria de Travestis e Transexuais à época em que eu realizava minha pesquisa de campo do mestrado e que me possibilitou resgatar parte da história das Blitz Trans.3 Ambas as pesquisas foram realizadas com apoio financeiro do CNPq.4 Hall (2000) também ressalta a crítica a que o conceito de identidade tem sido submetido em diversas áreas do conhecimento, chamando a atenção para o fato de que tais críticas não advogam a substituição do conceito por outro mais “eficiente”, mas buscam deslocar o paradigma no qual a ideia de identidade foi criada. Dessa forma, tal conceito deve ser colocado “sob rasura”: “uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem sequer ser pensadas” (HALL, 2000, p. 104).

Page 226: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

4coletivas como elementos estáveis e internamente homogêneos . Nos estudos

de gênero, a crítica à ideia de um sujeito pré-discursivo e de identidades

estáveis e descritivas desses sujeitos se desenrolou em constante diálogo com o

movimento feminista, resultando no questionamento de um sujeito político

universal do feminismo, de base biológica e marcado por uma semelhança

transcultural que se traduzia na categoria “a mulher” (HARAWAY, 2004; 5BUTLER, 2003a) .

Uma leitura equivocada da crítica a uma suposta coerência anterior à

constituição dos sujeitos políticos tende a identificar tal posição com a

inviabilidade de qualquer ação política, uma vez que eliminaria a possibilidade de

se reconhecer o sujeito como ponto de partida dessa ação. Não se trata, contudo,

de dispensar categorias como “mulheres” ou “homossexuais”, já que estas

definem um campo social inteligível do qual a ação política não pode prescindir,

mas de tomá-las como designadoras de um campo inesgotável de diferenças,

permanentemente aberto à ressignificação – e não como categorias descritivas

dos sujeitos aos quais se referem (BUTLER, 2003b). Ocorre, portanto, que para

essa perspectiva teórica determinado sujeito político “não é base, nem produto,

mas a possibilidade permanente de um certo processo de ressignificação, que é

desviado e bloqueado mediante outro mecanismo de poder, mas que é a

possibilidade de retrabalhar o poder” (BUTLER, 1998, p. 31).

Tal leitura nos ajuda não somente a pensar os processos de

constituição de sujeitos políticos e de identidades relacionadas a gênero e

sexualidade no âmbito do movimento LGBT, como também no âmbito do

mercado voltado para gays e lésbicas, tido aqui não apenas como cenário, mas

também como produtor de subjetividades e categorias de identidade. Fry

(2002), em seu trabalho sobre o mercado de produtos de beleza direcionados a

“pessoas de pele mais escura e cabelo mais crespo”, defende, concordando 6com Sahlins (2000) , que, ao contrário do que se acredita, esse mercado não

se constitui em resposta às demandas de uma classe média negra, mas integra

um processo de constituição mesmo dessa classe média. Como afirma Fry

(2002, p. 315), os “bens e serviços não apenas suprem uma necessidade; na

226

5 Tal questionamento já vinha se desenhando como resultado da articulação de mulheres negras e lésbicas no movimento e na teoria feminista, que se posicionavam de forma a expor a fragilidade de um uso e compreensão universais da categoria “mulher” e o entrecruzamento de pertencimentos específicos (raça, classe social, sexualidade, entre outros) na produção de diferentes subjetividades (HARAWAY, 2004).6 Para Sahlins (2000), a produção e o consumo seriam mediados por uma “lógica significativa do concreto”, que permitiria a exploração de “possíveis diferenciações sociais através de uma motivada diferenciação de bens”. Assim, “o produto que chega ao seu mercado de destino constitui uma objetificação de uma categoria social, e assim ajuda a constituir esta última na sociedade; em contrapartida, a diferenciação da categoria aprofunda os recortes sociais do sistema de bens” (SAHLINS, 2000, p. 185).

Page 227: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

verdade, criam uma necessidade e, ao fazê-lo, disseminam sub-repticiamente

uma 'identidade negra' em todo o Brasil”. Miller (1995), por sua vez, ressalta a

importância de processos relacionados às “políticas de identidade” e aos

“estilos de vida”, a partir da década de 1960, na produção de mercadorias.

Na mesma direção de Fry e Miller, acredito que o mercado voltado para

gays não responde a demandas de um “grupo social preexistente ”, mas

contribui para a produção mesma de sujeitos, categorias de identidade e

estilos. Assim, o mercado segmentado produz diferentes categorias em torno

da homossexualidade e faz circular referências e imagens identitárias acerca

dos possíveis estilos de vida ligados à homossexualidade, colaborando para

construir e reforçar identidades coletivas que servem de referência para a

atuação do movimento social e vice-versa. Temos, então, um campo comum

entre movimento e mercado.

Levando em consideração tais premissas, realizo neste trabalho o

exercício de deslocar um pouco uma perspectiva tradicional dos estudos no

âmbito da política em intersecção com a sexualidade, mais voltada à análise do

Estado e dos movimentos sociais. Interessa, aqui, menos o esgotamento das

questões abordadas e mais uma reflexão a partir de notas e insights

etnográficos. Acredito que o deslocamento proposto, ainda que um tanto

exploratório, pode resultar no apontamento de discussões frutíferas em torno

das estratégias de enfrentamento do preconceito e da luta pelo reconhecimento

de direitos em diversos âmbitos.

Embora tenha percorrido alguns apontamentos teóricos em relação ao

modo como identidade e consumo são encarados neste trabalho, não pretendo

distinguir a priori campos claros e bem delimitados entre mercado e movimento

social por meio das teorias sobre movimento social ou sobre mercado, mesmo

porque tais fronteiras apresentam-se móveis no campo sobre o qual me

debrucei, sendo definidas contextual e cotidianamente, no desenrolar de

diferentes estratégias e ações políticas.

Mercado e movimento: a aproximação entre atores

O primeiro ponto a ser explorado é a aproximação recente entre atores

do mercado e do movimento. Nesse sentido, vale a pena realizar uma breve

incursão retrospectiva a respeito das relações entre movimento e mercado,

contrastando dois momentos: o relativo à década de 1970, quando o

movimento LGBT começa a se organizar no Brasil, e o que se inicia em meados

da década de 1990, quando se verifica um reflorescimento do movimento

227Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 228: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

após certo refluxo registrado na década de 1980 (FACCHINI, 2005). Talvez

não coincidentemente sejam períodos que registram também uma

efervescência do mercado relacionado à homossexualidade. Além da análise

da literatura sobre homossexualidade no Brasil que se debruçou sobre o final

da década de 1970, a abordagem aqui desenvolvida também é fruto dos

estudos produzidos na década de 1990 e no início de 2000, além de trazer

dados de pesquisa de campo realizada nos anos de 2004 a 2006, no âmbito 7de minha pesquisa de mestrado .

No contexto brasileiro de finais da década de 1970, em que os efeitos

da abertura política começavam a ser sentidos juntamente com o clima de

“desbunde”, registra-se também uma ampliação do “gueto” gay paulistano,

com a abertura de novas boates e bares, tendo como epicentro a região central

da cidade de São Paulo, especificamente o Largo do Arouche (PERLONGHER,

1987, p. 86). Como salienta MacRae (1990), cada novo estabelecimento que

surgia era visto como “vitória para a causa” por boa parcela dos frequentadores

do “gueto”. A efervescência geral tinha paralelo no incipiente “movimento 8homossexual”, que passava a se organizar com a criação do Grupo Somos .

Entretanto, havia uma rejeição do movimento ao “gueto”, com

constantes críticas dos militantes do Somos a respeito da “integração dos

homossexuais à sociedade de consumo” (MACRAE, 1990, p. 300). A própria

constituição do grupo definia-se em oposição ao “gueto”, com o

questionamento dos militantes ao que entendiam como “papéis sexuais

hierárquicos” que imperavam no “gueto”, entre outros modelos vistos como

opressores. Havia também a perspectiva de que o movimento pudesse

propiciar espaços de sociabilidade diferentes dos proporcionados pelo “gueto”:

as reuniões de “identificação”, comuns no Somos, por exemplo, deveriam ser

um espaço no qual se poderia refletir a respeito da homossexualidade e

construir laços decorrentes de uma experiência compartilhada coletivamente.

Não obstante as críticas dos militantes de “primeira onda” a respeito

do “gueto”, as relações com o circuito noturno de lazer simbolicamente

228

7 No mestrado, realizei minha pesquisa de campo a partir da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, com o intuito de observar as relações entre movimento social e mercado “GLS”, lançando mão de observação etnográfica da organização de duas Paradas do Orgulho e das mais diversas atividades relacionadas ao mercado e ao movimento nesse período, além da realização de entrevistas semiestruturadas com empresários importantes do setor “GLS” e com ativistas e ex ativistas da Associação da Parada. Os trechos de entrevista que trago neste artigo resultam desse trabalho e podem ser encontrados em análises mais abrangentes em França (2006).8 A respeito do surgimento do movimento LGBT no Brasil, ver MacRae (1990), Green (1999) e Facchini (2005). Utilizo neste artigo a periodização de Facchini (2005), que vê três momentos distintos no movimento: o que vai do seu início, em finais de 1970, ao fim do grupo Somos-SP, em 1983; o período que vai do fim do grupo Somos ao início da década de 1990; e o período a partir da década de 1990.

Page 229: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

marcado pela homossexualidade não deixavam de existir, pois era lá que se

poderia encontrar a “base” do movimento. Embora os primeiros militantes do

Somos não tivessem o “gueto” como referência para sua atividade política,

muitos que posteriormente acessaram o grupo costumavam frequentar as

casas noturnas e traziam novos integrantes por meio das redes sociais

desenvolvidas nesses espaços. Dessa forma, mais do que uma oposição

distanciada do “gueto”, procurava-se desempenhar um papel na tarefa de

“conscientizar” os “homossexuais”: “de uma forma muito real, aprendia-se a

ser homossexual, ou melhor, militante homossexual. Embora muitas das ideias

correntes no gueto fossem aproveitadas, grande número delas passava por uma

reciclagem sofrendo consideráveis transformações” (MACRAE, 1990, p. 132).

Essas são as referências a respeito da relação entre movimento e

“gueto” num primeiro momento do movimento, em boa parte derivadas do

trabalho de Edward MacRae sobre o grupo Somos. Parece correto afirmar que 9essa postura atravessou a década de 1980 , com um grande ponto de inflexão

nessas relações na década de 1990, quando a estratégia de visibilizar os então

“GLT” (Gays, Lésbicas e Travestis) e de propor manifestações massivas se faz

presente no movimento, diferenciando-se claramente de propostas anteriores.

Ao passo que essa postura crescia no âmbito do movimento, também se

verificava, especialmente no movimento paulista, a tendência a combinar

reuniões dos grupos com atividades de sociabilidade e lazer. Essas duas

tendências influenciariam sobremaneira na adesão à proposta das Paradas,

que se tornaram, no Brasil, ocasiões de maior visibilidade do movimento LGBT

e também, em muitas cidades, de maior interação com o mercado segmentado.

Diferente das outras manifestações, as Paradas, inspiradas em

eventos semelhantes de outros países, pressupunham uma periodicidade

anual e se destinavam especialmente à celebração do “orgulho” e à

visibilização de demandas do movimento, inaugurando um estilo diferenciado

de atuação política, pautado também por atividades de caráter lúdico. O

sucesso das Paradas também remete a uma mudança do discurso

característico do movimento: a ênfase na vitimização de LGBT, bastante

característica do movimento na década de 1980, passou a dividir espaço com

um discurso e ações que procuravam afirmar uma identidade qualificada como

“positiva”, na maior parte das vezes personificada na ideia de “orgulho”.

9 Salvo engano, não há referências de como se constituiu essa relação na década de 1980, quando o “gueto” – e também o movimento – sofreu o impacto da aids. De toda forma, registra-se nesse período uma considerável redução dos grupos militantes em São Paulo e há uma guinada do movimento como um todo em direção a um discurso mais específico de reivindicação de direitos civis, com menos ênfase no antiautoritarismo e no comunitarismo verificados num primeiro momento (FACCHINI, 2005). Imagino que esses fatores possam ter contribuído, de certa forma, para o enfraquecimento da visão que contrapunha o “gueto” a alternativas “revolucionárias”. Porém, dada a escassez de referências a esse respeito, tais considerações não passam de especulações.

229Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 230: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Nesse período, ao mesmo tempo em que o movimento volta a florescer

em São Paulo, o antigo “gueto” sofre transformações consideráveis, como já

relatadas, diversificando e expandindo suas atividades em direção à

constituição de um mercado mais amplo, conhecido então como “GLS” 10(voltado para Gays, Lésbicas e Simpatizantes ), que se instalava não somente

na região central, mas também em uma das áreas mais ricas da cidade. Além

das mudanças estruturais em relação ao mercado, há também uma

transformação considerável na forma como ele se constitui e se apresenta: os

espaços de consumo e sociabilidade passam a incorporar, em certa medida,

elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade, explicitando o seu

direcionamento a um público de orientação sexual determinada e

compartilhando alguns símbolos com o movimento LGBT, como é o caso da

bandeira do arco-íris, que passa a ser comum em lugares “GLS” e em muitas

atividades do movimento.

É importante considerar que, nesse período, as fronteiras entre

mercado e movimento social são questionadas com força por uma parcela do

empresariado que, inclusive, passa a se organizar por meio de associações de

empresários, embora com atuação ainda tímida. Esses atores incorporam, em

certa medida, elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade,

explicitando o direcionamento dos seus negócios ao público de gays e lésbicas.

Empresários começam a se ver, e a serem vistos, como articuladores de uma

ação política, no sentido de que estimulam a “autoestima de gays e lésbicas” e

a formação de uma “identidade positiva” – através de iniciativas como festivais

de cinema, editoras e mesmo espaços de lazer e sociabilidade – e fazem

circular informações por esse público – por meio de sites e revistas

especializadas.

Nesse sentido, o compartilhamento de identidades sexuais e o

trabalho com um público que é alvo de preconceitos aproximam militância e

mercado, fazendo com que iniciativas do mercado ganhem teor político de

combate ao preconceito, como expõem Antônio e Marcelo, empresários do

setor de turismo e de mídia. Ambos exerciam, à época das entrevistas, papel

importante em dois setores diferentes do mercado, galvanizando em torno de

seus projetos diferentes iniciativas e dialogando com diversos atores sociais:

230

10 A sigla foi criada na primeira metade dos anos de 1990, no contexto do Festival MixBrasil de Diversidade Sexual, e passou a indicar uma variedade de iniciativas relacionadas à homossexualidade, mas que se pretendiam abertas e capazes de incorporar também pessoas que não se identificassem como gays e lésbicas. Com o passar do tempo, a sigla passou a ser simplesmente sinônimo de gays, pouco se observando o caráter inicial de se distanciar do “gueto” em direção a uma atitude tida como capaz de abarcar uma maior pluralidade.

Page 231: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Eu decidi trabalhar com esse segmento por causa da

minha identidade. Pra você dar certo em qualquer

segmento, tem que gostar dele, respeitar o segmento... Não

adianta você trabalhar com velhinho, terceira idade, melhor

idade, se você não tem nenhum afeto, não tem nenhuma

identidade com isso. Claro que não precisa ser velhinho, ou

não precisa ser gay pra trabalhar, mas eu acho que pelo fato

de você ser, você cria um vínculo maior. [...] Tem que

desmistificar um pouco essa coisa entre mercado e

militante, porque eu acho que não existe essa coisa. A partir

do momento em que você assume trabalhar com o

segmento, ainda mais em uma sociedade que tem

preconceito, você já está fazendo militância, é isso que eu

acredito. Quem está no segmento ali cavando o buraco que

pastou, não deixa de ser militante, porque não são grandes

empresas. As grandes empresas vão entrar agora, agora elas

vêm. É sempre assim. Mas eu não vejo nenhuma diferença

entre a militância e as pessoas que... Dá a cara pra bater, há 10 anos, como eu fiz, é como eu falo: as pessoas do

setor não chegavam perto de mim, como se eu tivesse uma

doença contagiosa. E isso, outras pessoas passaram. Todo

mundo passou por isso. Você não deixa de estar fazendo

movimento, você trabalha com uma coisa segmentada, pra

uma minoria. Durante muitos anos a gente passou muita

dificuldade pra sustentar a empresa, de estar fazendo algo

diferente e novo, e a comunidade muito receosa (Entrevista

com Antônio, em dezembro 2005).

O que acontece é que quem é gay, você tem isso quase como

uma missão. Tudo tem um peso social na hora de você fazer,

que um hétero, quando está entrando dentro do mercado,

não tem. Não tem. Não tem. Eu acho que essa é a diferença.

Acho que negócio gay tocado por hétero é fadado ao fracasso,

porque ele lida com outro tipo de realidade, você não tem

muito anunciante. [...] No exterior é impensável um negócio

gay que não seja gerido... Como é o termo? Gay owned, Gay

runned, uma coisa assim. Gerido e de propriedade de gays.

Esse é o princípio lá fora. Esse é o princípio lá fora. Aqui não

tem muito isso, mas mesmo assim, você pega o Sergio Kalil,

ele vai gastar um dinheiro fazendo show de drag que um

empresário hétero jamais gastaria, mas é porque ele é gay,

porque é da cultura dele, porque ele acha o máximo. Acho

que se você não está imbuído na coisa... É a mesma coisa:

231Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 232: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

você vai fazer a Revista Raça sendo branco? O que eu tenho

com aquilo? Eu sou branco, não sou negro. Não tenho o que

escrever ali. Não é verdadeiro (Entrevista com Marcelo, em

dezembro de 2005).

Embora o discurso presente acima, que indiferencia atores do

mercado de ativistas pela via da identidade e do enfrentamento ao preconceito,

não seja um ponto de vista majoritário entre atores do mercado, é por essa via

que se estruturou grande parte da aproximação das relações entre mercado e

movimento, justamente nos pontos de intersecção entre os discursos comuns a 11ambos os atores . A questão da identificação com o público fica bastante clara

quando os entrevistados enfatizam que as dificuldades financeiras encontradas

para gerir seus negócios, advindas do preconceito e da estigmatização de que

são alvo, são ultrapassadas pela identificação que têm com aquele público e

por um sentimento que transcende a racionalidade do mercado.

Nesse sentido, os empresários que não se identificam como gays e que

têm procurado cada vez mais adentrar o setor são vistos como fadados ao

fracasso, pela dificuldade de entender as dinâmicas desse público consumidor

e pela falta de “afeto”, como sublinhou algumas vezes o empresário da

entrevista transcrita acima. Aqui, o compartilhamento de uma mesma

identidade surge como um pressuposto da atuação no mercado. Isso também

justifica o trânsito de pessoas entre atividades relacionadas ao mercado e ao

movimento LGBT, sendo comum que profissionais que atuam em setores do

mercado, na mídia, na noite, no turismo ou no setor editorial, tenham em algum

momento de sua trajetória participado de atividades do movimento e vice-versa

(FACCHINI, 2005; FRANÇA, 2006a). Dessa perspectiva, mercado e

movimento surgem ora como indiferenciados, ora como alinhados, sem se 12confundir, a depender da situação .

232

11 Se é possível afirmar que movimento e mercado estão muito mais próximos do que jamais estiveram a partir de meados da década de 1990 até atualmente, não podemos também desconsiderar os inúmeros pontos de conflito entre os diferentes atores, seja pela exclusão de determinadas identidades abraçadas pelo movimento no âmbito do mercado, seja pela crítica à falta de solidariedade por parte dos empresários diante das necessidades do movimento, seja pelo ímpeto de participação de atores do mercado em espaços tidos como de exclusividade de ativistas. Entretanto, o foco neste trabalho são menos as críticas e mais o movimento de aproximação, que se configura como traço que diferencia o período mais recente da trajetória do movimento social em relação às décadas de 1970 e 1980. Para uma discussão mais aprofundada, ver França (2006).12 Na entrevista de um ativista de São Paulo, também aparece uma visão que tende a não fixar diferenças entre atores do mercado e do movimento, já rebatendo de antemão a ideia de que teriam éticas e interesses antagônicos: “Não existe uma verdade sobre o que são os militantes, e não existe uma verdade sobre o que são os empresários. Não existe uma cristalização dessas duas coisas. Então, tem gente no mercado que é super safada, assim como tem gente que é super bem-intencionada. Na militância tem gente que é super bem-intencionada e tem gente que não está nem aí com as coisas. Então, não existe uma verdade pra mim: 'os militantes são bons e o mercado é ruim'. Eu não gosto desse antagonismo” (entrevista com Pedro, em janeiro 2006).

Page 233: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Fry (2002) registra, em artigo abordando as relações entre raça,

publicidade e produção da beleza no Brasil, a ênfase recente do mercado que se

dirige a negros num discurso de “ação positiva da construção da autoestima”

em oposição a uma retórica do “lamento” em relação ao preconceito,

chamando a atenção para o potencial de transformação social que iniciativas

do âmbito do mercado carregam consigo. Acredito que sejam processos

bastante semelhantes aos que analiso neste trabalho, cabendo destacar aqui

que esse direcionamento encontra um paralelo no movimento LGBT da década

de 1990, pela presença muito incisiva de um discurso em que se opõe

“afirmação positiva” e “vitimização”.

Apesar das semelhanças entre um caso e outro, porém, Fry (2002)

contrapõe o potencial de transformação social decorrente das iniciativas do

mercado às estratégias de menor impacto político de um movimento negro

tradicional, que inclusive desvaloriza as iniciativas do mercado. No caso do

movimento LGBT, é necessário deslocar essa oposição, já que as estratégias

relacionadas à parte do movimento surgido na década de 1990, especialmente

se considerarmos as Paradas do Orgulho, ao contrário de se oporem

frontalmente aos discursos e iniciativas do mercado segmentado, aproximam-

se deles, denotando uma relação marcada por processos de estabelecimento

de fronteiras e continuidades.

Por outro lado, não somente uma parcela de empresários se reconhece

como próxima do ativismo político em seus ramos de atuação pela identificação

com determinado segmento do público consumidor, sobre o qual pesa certo

preconceito, mas também, a exemplo dos frequentadores do antigo “gueto” que

viam um sentido político na expansão dos lugares de lazer e sociabilidade, os

frequentadores de lugares de lazer noturno voltados para determinado

segmento também percebem e constroem esses locais como espaços de

agência para os seus consumidores.

Mercado de lazer noturno: consensos e deslocamentos

Apesar da aproximação entre atores do movimento e do mercado, para

alguns setores do movimento atual – e para alguns estudiosos –, o mercado de

lazer noturno é especialmente visto como o lugar da produção de

normatividades, visão à qual se agregam significados relacionados a uma

suposta frivolidade atribuída aos consumidores gays. Meu segundo argumento

segue, então, na direção de problematizar concepções exclusivamente

negativas e que veem no mercado de lazer noturno forças apenas

233Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 234: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

conservadoras. Considero que, apesar da segmentação no mercado de lazer

noturno e das hierarquias ali expressas, esse cenário também oferece espaço

para deslocamentos em relação às normatividades que acompanham a

formação de identidades relacionadas à homossexualidade. Abordagens mais

próximas dos consumidores desses lugares permitem revelar a produção não

apenas de normatividades, como também de transgressões, marcadas pela

criatividade com que os sujeitos lidam com seus diversos pertencimentos.

Assim como o movimento, o âmbito do mercado também está pleno de tensões

e disputas, conforme argumento a seguir.

Um ponto importante a se considerar, quando pensamos em como os

diferentes lugares estão imersos em relações de poder, diz respeito aos fluxos de

informações que os atravessam e à capacidade de seus frequentadores e

proprietários de manejar e fazer circular informações sobre o lugar e sobre si

mesmos, bem como de produzir espaços que sejam vistos como

“representativos” de ideias relacionadas à “homossexualidade”.

Há um intenso fluxo de informações que passa por cidades como Nova

York, Londres, Berlim, Barcelona, entre outras, que produz significados – em

grande parte positivos – associados aos gays e que é acionado na atribuição de

sentido relacionado aos lugares de lazer noturno. Essas informações chegam

primeiro às pessoas que poderíamos qualificar como “intermediários culturais”

(FEATHERSTONE, 1995), as quais são conectadas às tecnologias e redes de

informação e responsáveis por antecipar tendências em termos de consumo e

estilo, muitas vezes, posteriormente, popularizadas. Assim, produzem-se

aparentes “consensos” em torno dos estilos associados aos gays e que se

materializam nos espaços de lazer noturno – incluindo desde o consumo de

determinadas roupas até os tipos de psicoativos –, articulando também

conteúdos relacionados a marcadores de classe social, idade, cor/raça, gênero

e sexualidade.

13Entre os lugares observados em minha pesquisa de doutorado

(FRANÇA, 2010), a The Week aparece como a realização desses “consensos”:

ali, haveria uma maior sintonia com as modas associadas aos gays e à

234

13 No doutorado, centrei minha pesquisa de campo em três lugares de sociabilidade voltados para homens que se relacionam afetivo-sexualmente com outros homens. Além da boate The Week e das festas voltadas para ursos, especialmente a Ursound, mencionadas neste artigo, também realizei parte da pesquisa de campo num “samba GLS”, frequentado majoritariamente por homens negros e de classes populares. Além de observação etnográfica, realizei entrevistas em profundidade com frequentadores e organizadores das iniciativas citadas. Neste artigo, os trechos de entrevistas não são analisados de maneira tão densa e a etnografia é apresentada de modo bastante rápido, já que a proposta de apresentar uma reflexão mais abrangente a partir de resultados de diferentes pesquisas não permite um detalhamento maior dos resultados de campo. Análises mais detidas sobre os contextos de sociabilidade mencionados podem ser encontradas em França (2009, 2010).

Page 235: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

reprodução de imagens que reforçam certos padrões de consumo. Um fator

fundamental é a visibilidade adquirida pelo estabelecimento: é quase

obrigatória a sua presença nos principais guias e roteiros de lazer da cidade, da

mídia segmentada ou não. Na internet, a boate é visibilizada por muitos sites e

blogs como a mais importante boate gay do país, além de ser a maior delas.

Parte do seu público assíduo caracteriza-se pelo acesso e uso de tecnologias de

informação, com grande poder de difusão, publicando conteúdos na internet

que alcançam um número de leitores considerável e atuando como

colaboradores de revistas e sites da mídia segmentada e grande mídia. A

visibilidade da boate é aumentada, ainda, pelas filiais no Rio de Janeiro, pela

The Week Floripa e pelos projetos internacionais, em que sua marca é

responsável pela promoção de festas na Europa.

Tanta exposição faz com que a boate tenha sido a mais citada em todas

as entrevistas, como se houvesse selado um padrão ao qual fosse necessário

remeter quando se trata de lugares relacionados à homossexualidade, seja para

criticar, seja para afirmar esse padrão. Assim, os significados associados à The

Week estavam sempre relacionados a um padrão de excelência no setor de

serviços voltados para o público gay bem como à melhor realização do formato

de boate de que se tem notícia, por um lado, e à produção de normatividades

que geram adesão ou recusa, por outro.

As falas abaixo, de dois frequentadores da The Week – ambos

profissionais liberais, brancos, gays e residentes em bairros de classe média

alta de São Paulo –, resumem bem o modo como a boate é identificada com

determinado tipo de público ou com certo padrão de qualidade, tornando-se

objeto de desejo para muitos:

A The Week é uma referência. Existe um sentimento

inconsciente de que existe um Olimpo, existem os

melhores, o grupo ou das bonitas, ou das inteligentes ou do

bom gosto, uma elite de sucesso. A referência, os

formadores de opinião, o paradigma a ser seguido. A The

Week é a boate dessas pessoas. Tem muita gente que não

se importa realmente. E tem uma geração que vive em torno

do que eles acham que é o mais legal (Entrevista com Igor,

em dezembro de 2008).

A The Week é a maior boate gay da América Latina, das

maiores do mundo. Eu estive agora na Europa, entrei em

boate em Paris, em Londres, em Amsterdam, em Lisboa,

nada se parece com a The Week. Eu nunca fui a Ibiza, mas

imagino que tenha, mas com o tamanho e qualidade da The

235Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 236: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

236

Week é difícil. Então, virou meio que o objeto de desejo de

todo mundo. Uma vez, atrás da revista DOM, veio um

ingresso VIP pra The Week encartado. Era um tumulto na

porta. Um monte de gente. Aí você via essa demanda

reprimida. Essa garotada que não tem dinheiro, porque a

The Week é cara, morre de vontade de ir à The Week

(Entrevista com Pedro, em novembro de 2008).

Na The Week, rapazes de classe média e de alto poder aquisitivo – ou

aspirantes – viviam a possibilidade de elaborar versões de si a partir da

interação com outros rapazes gays de mesma classe social e de experimentar o

que consideravam um estilo gay bem-sucedido. O compartilhamento de

códigos sinalizados por meio de objetos constantemente visibilizados – como a

barra da cueca, em que se expõe sua marca – era capaz de estabelecer

afinidades e barreiras num ambiente em que processos de distinção social

pareciam ser muito evidentes. Simbolicamente, a TW, numa impressão

intensificada por todo o aparato tecnológico da sua infraestrutura e pela própria

grandiosidade do empreendimento – que recebe cerca de três mil pessoas em

suas festas semanais – assumia para seus frequentadores o lugar do moderno,

do up-to-date, do que havia de melhor e mais sofisticado no mundo gay.

A boate aparece, assim, como se houvesse selado um padrão de

excelência no setor de serviços voltados para o público gay, selando também

uma espécie de padrão de excelência a ser alcançado pelos próprios gays, que

inclui ser branco, musculoso, jovem, de alto poder aquisitivo, sintonizado com

as últimas modas e de comportamento hedonista. Esse padrão corresponderia

à boa parte do que é visibilizado pela mídia segmentada e por versões positivas

da homossexualidade masculina presentes na mídia em geral. Seria possível

situar as críticas no âmbito do mercado ao que é compreendido como um

determinado “padrão” referente aos gays a partir das iniciativas trazidas por

lugares que buscam se firmar como alternativas e que dão espaço para o

surgimento e a afirmação de diferentes subjetividades e sociabilidades

relacionadas à homossexualidade masculina.

As festas dos ursos – grosso modo, homens gays, gordos, peludos e

masculinos – são bons exemplos dos potenciais de o próprio mercado de lazer

noturno produzir normatizações e transgressões. Durante a pesquisa de

doutorado, pude acompanhar como se constituem em oposição ao que seus

frequentadores consideram um padrão valorizado entre homens gays: a cena

dos ursos desenvolve-se em posição crítica em relação ao que veem como a

imposição de corpos malhados e jovens e a um consumismo superficial que

marcariam a sociabilidade entre homens gays. Além de constituírem espaços

Page 237: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

alternativos de sociabilidade, os ursos têm inclusive uma bandeira própria,

inspirada na bandeira do arco-íris, que costuma aparecer nos sites de

relacionamento e nas revistas virtuais voltadas para esse público. Também

fazem questão de aparecer em grupo nos eventos que cercam a Parada do

Orgulho LGBT. Nesse sentido, os ursos e suas iniciativas ganhariam alguma

visibilidade por desafiar determinados “consensos” de forma mais ou menos

organizada e para além do lazer noturno.

A cena ursina define-se, dessa maneira, num movimento que ao

mesmo tempo é de contraste com outra cena, tida como padrão, e de afirmação

de significados particulares. Esse jogo é evidente nas falas dos frequentadores

da Ursound, que sublinham as diferenças em relação a outros lugares e

marcam ao mesmo tempo os atrativos da festa, relacionada também a um

despojamento nas interações e no vestir que se contrapõe ao que seriam

padrões de interação e de consumo mais artificiais:

A The Week, por exemplo, é linda, é maravilhosa, tem uma

piscina lá dentro, tem ambientes, é enorme, mas ela é para

um público, primeiro de classe média, ou as pessoas que

conhecem como ganhar vip, e a indústria corporal mesmo,

você vê pessoas bombadinhas, de academia. [...] Eu

descrevo a Ursound como eu, porque me vejo gordinho, eu

sou gordinho, um estilo não muito pop. Eu não sou um

estilo pop e lá as pessoas tendem a não gostar de um estilo

pop também. Eu posso ir de bermuda, sou eu! E é eu,

gordinho, um cara que gosta de usar barba, gosta de usar

bermuda, de vez em quando gosta de ir ao teatro ou de

futebol, mas às vezes não quer falar com ninguém. Eu vejo

isso na Ursound, pessoas mais elas, mais do jeito que elas

são (Entrevista com Tadeu, 32 anos, em março de 2008).

A alegada diferença trazida pelas festas dos ursos, como a Ursound,

lembrada pelo entrevistado, articula-se à constituição da festa como um espaço

que recebe bem os homens mais gordos, mais velhos, peludos, com um

vestuário menos sintonizado à moda e que, em tese, seria mais aberto à

diversidade de corpos e estilos de modo geral. O estranhamento ao ver um

público de faixa etária tão elástica nas festas ursinas completa-se com a

observação do tipo físico das pessoas: embora nem todos sejam homens

necessariamente muito gordos, há uma profusão de barrigas salientes. Os

magros também estão lá, mas em menor número e com menos destaque: os

primeiros a tirar a camisa no espaço da pista não são os musculosos, mas os

gordinhos, que dançam com desenvoltura.

237Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 238: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

238

A incorporação e afirmação positiva, por parte dos ursos, de perfis

menos valorizados pelo mercado – e aqui a polissemia do termo cai bem, pois

estamos falando de mercado de consumo e do mercado afetivo-sexual – e que

destoam da figura do gay jovem, “em forma” e bem vestido, não raro visibilizada

como a imagem do gay socialmente aceitável em novelas (BELELI, 2009) e em

outros produtos midiáticos, conferem às suas iniciativas certo tom político. Não

é à toa que, em 2010, os ursos foram convidados pela associação que organiza a

Parada do Orgulho LGBT em São Paulo para comandar um dos trios elétricos,

com o que se desejava enfatizar a diversidade de corpos e estilos associados à

homossexualidade e prover um lugar para os mais velhos e mais gordos.

Apesar do potencial de deslocamento que a cena dos ursos carrega,

vale lembrar que, mesmo entre os ursos, produzem-se novas normatividades.

Por outro lado, as boates nos moldes da The Week também não são a

incorporação exata de normas e padrões. Concordo com as observações de

Gregori (2008) a respeito dos constantes movimentos de normatização e

transgressão que se dão no âmbito do mercado. Segundo a autora, explorar as

práticas que envolvem o erotismo em contexto de mercado é também se

debruçar sobre “experiências e práticas que alternam, de modo complexo,

esforços de normatização e também de transgressão” (GREGORI, 2008, p.

589). É preciso, portanto, levar em conta o quanto relações de poder no interior

do mercado e mesmo no que consideramos como uma face mais pública da

homossexualidade são contextuais.

Dessa forma, não tenho como objetivo delinear oposições entre

transgressão e normatização ao comparar as duas cenas, mas produzir um

contraponto que permita ao leitor observar movimentações capazes de adquirir

um tom político no interior do mercado, na medida em que deslocam hierarquias

e relações de poder que se exercem nos domínios da boate ou da festa e que,

contudo, referem-se a disputas que estão para além de seus limites físicos.

Embora reconheça que não esteja tratando de ações políticas num

sentido mais estreito, se consideramos a arena do “político” de forma

abrangente, de modo a incorporar disputas a respeito das possíveis imagens

sociais e de processos normativos relacionados à homossexualidade, pode-se

dizer que mesmo no âmbito do mercado de lazer noturno também se dão

deslocamentos capazes de serem tomados como políticos. Ao mesmo tempo,

os âmbitos do mercado e do lazer noturno, em conjunto com as redes sociais e

outros fóruns de comunicação na internet, são também espaços que

possibilitam a articulação dos que os frequentam, inclusive em torno de

questões mais tradicionalmente encaradas como da arena da política. No

Page 239: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

próximo item, percorreremos alguns exemplos etnográficos relacionados à

construção da solidariedade e à reivindicação de direitos em redes costuradas

pelo mercado e de ações que se dão em articulação com espaços de consumo

frequentados por LGBT e nesses próprios espaços.

Direitos e consumo

Miller (1995) observa a crescente tendência de transformação do

consumo em uma arena permeável à ação política, considerando que as

demandas dos consumidores nem sempre se igualam à atuação dos

empresários, ou seja, não há qualquer conexão direta entre anseios do

consumidor e atuação dos empresários. Assim, tem surgido uma série de ações

que cobram “responsabilidade social” do mercado, enfatizando um controle

social dos consumidores em relação às esferas de produção e circulação de

mercadorias. No entanto, o autor ressalva que “não há nenhuma razão

particular para otimismo”, já que “existe uma distância considerável entre o

encontro de interesses entre sociedades consumidoras e negócios, de um lado,

e a formação de uma cidadania responsável e moral, preocupada com as

consequências de suas demandas” (MILLER, 1995, p. 45). O contraste e a

distância sublinhados por Miller (1995) aparecem nos conflitos aos quais me

reporto a seguir.

O primeiro caso diz respeito ao posicionamento de consumidores

quando entendem que seus direitos estão sendo desrespeitados em razão de

sua sexualidade ou expressão de gênero, exigindo igualdade por meio de ações

relacionadas a espaços de consumo e que se caracterizam pela demanda de

usufruto pleno desses espaços. Há uma diferença, porém, em como essas

demandas aparecem: no caso de gays, lésbicas e bissexuais, têm surgido no

que tange às demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo; quanto a

travestis e transexuais, muitas vezes, reivindica-se apenas a possibilidade de

ingressar em determinado estabelecimento, sem ter sua entrada impedida ou

sobretaxada.

14Os “beijaços” em bares e restaurantes não explicitamente

direcionados a gays e lésbicas, mas frequentados por esse público, podem ser

interpretados na direção das reivindicações por usufruto pleno de espaços de

lazer e consumo e têm se tornado cada vez mais comuns desde meados da

14 O “beijaço” é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento LGBT desde o início de 2000. Nos mesmos moldes do kiss-in, tática política do movimento nos Estados Unidos e Europa, o “beijaço” consiste numa demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público.

239Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

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240

década de 1990, sinalizando uma atitude em direção à visibilidade e à

exigência de igualdade de tratamento em espaços públicos. Muito

constantemente, tais manifestações, mesmo que encampadas pelo movimento

LGBT, derivam da organização dos próprios frequentadores dos lugares, que se

utilizam de mensagens de denúncia na internet ou mesmo da mídia

segmentada. Em 2001, presenciei o primeiro “beijaço” de que tomei

conhecimento no Brasil, ocorrido num bar de frequência de gays e lésbicas –

embora não explicitamente dirigido a esse público – que havia expulsado duas

mulheres que ali se beijavam.

O protesto, ainda referido como kiss-in, foi organizado pelas

frequentadoras do bar e seus amigos, em articulação com grupos

anticapitalistas atuantes na cidade. Em 2003, o termo “beijaço” se popularizou

por ocasião da manifestação ocorrida no Shopping Frei Caneca, centro de

compras e espaço de sociabilidade tão frequentado por gays e lésbicas na

cidade de São Paulo e tão simbolicamente marcado por esse traço que recebia a

alcunha de Shopping Gay Caneca. Convocados por uma ONG, em conjunto

com dois rapazes que haviam sido impedidos de se beijar no shopping, a

manifestação atraiu cerca de duas mil pessoas e obteve ampla cobertura da

imprensa (FRANÇA, 2006a).

O “beijaço” foi acompanhado, na Justiça, de uma ação reparatória de

dano moral, movida pelos rapazes contra o shopping, a qual se pautou na Lei

Estadual 10.948/01, aprovada no ano de 2001 no estado de São Paulo,

versando sobre a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de

gênero nos espaços públicos da cidade. Em 2005, a 3ª Vara Cível de São Paulo

julgou a ação procedente, obrigando o shopping a pagar a indenização de 50

salários mínimos a cada um dos autores e proferindo parecer, do qual vale a pena

citar ao menos um trecho, em tempos de desrespeito à laicidade do Estado:

Em nosso ordenamento são livres a orientação sexual e, por

consequência, as manifestações de afeto entre as pessoas.

Vivemos num Estado Democrático de Direito, laico, fundado

na dignidade da pessoa humana, e com o objetivo de

promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação 15(Constituição da República, arts. 1º, inc. III e 3º, inc. IV) .

Apesar de muitas das leis antidiscriminação que vêm sendo aprovadas

em âmbito local abrangerem estabelecimentos não comerciais e outras formas

de discriminação não relacionadas a espaços públicos, tais dispositivos legais

15 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-abr-22/shopping_reparar_casal_ gays_ discriminacao>. Acesso em: 20 dez. 2011.

Page 241: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

têm sido bastante utilizados em relação a estabelecimentos comerciais.

Segundo a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Travestis e Transexuais), 11 estados da federação e 18 municípios já contam

com leis antidiscriminação por orientação sexual.

Em outra ocasião, abordei (FRANÇA, 2006b) as demandas de

travestis em relação a estabelecimentos comerciais da cidade de São Paulo,

também se fazendo valer da Lei Estadual 10.948/01. Em 2003, a Secretaria

de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT deu início

a uma série de visitas a estabelecimentos da cidade de São Paulo – o que foi

denominado de Blitz Trans. As visitas eram sempre compostas pelas travestis, a

maioria na Secretaria de Travestis e Transexuais, e por um militante da

Associação da Parada que atuava como advogado. A ideia do nome adotado

para as visitas faz parte de um jogo de palavras que, de algum modo, inverte a

ideia de vítimas das blitzes policiais que as travestis costumam sofrer na rua.

Esse raciocínio fica claro na entrevista realizada com uma das principais

articuladoras do protesto, quando conta como surgiu a ideia da Blitz Trans:

Um dia a Vanessa falou: “eu queria fazer uma blitz, sair

prendendo todo mundo que discrimina a gente”. [...] Ela só

não sabe passar isso pra gente de uma forma séria, ela

passa brincando, mas é super válido o que ela fala. [...] E a

Carla: “opa! Mas dá pra gente sair, a gente pode sair

visitando estabelecimentos, e tal”. E aí, nós pegamos a lei

10.94816 que protegia a gente e fomos visitando

estabelecimentos por aí (Entrevista com Diana, em

dezembro de 2004).

O que conferia um caráter irônico à “brincadeira” de Vanessa era

justamente a disparidade entre o sujeito que é vítima de uma ação e a suposta

impossibilidade de que se coloque como autor da ação, gerando um contraste

de significados que provoca o riso. Levar essa ideia a sério provocou um efeito

de inversão que tirava as travestis da qualidade de vítimas, para apresentá-las

como agentes contra o próprio preconceito que sofriam.

Dois estabelecimentos se mostraram mais resistentes às

reivindicações das travestis: uma boate voltada para gays – cuja proprietária

teve de acompanhar os integrantes da blitz a uma delegacia próxima e acabou

cedendo às suas demandas – e uma sauna destinada ao público homossexual

masculino e frequentada por michês, que gerou grande mobilização em torno

do assunto, já que a legitimidade da reivindicação das travestis foi

imediatamente colocada em questão por uma parcela do movimento LGBT, de

empresários e de frequentadores da referida sauna. Recorro brevemente aos

241Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 242: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

242

argumentos nos quais se apoiaram as demandas das travestis, publicados no

site da Secretaria de Travestis e Transexuais:

[...] estamos lutando pelo direito de ir e vir que nos está

sendo tirado. [...] Reflita sobre a Lei 10.948 mais

especificamente no Artigo 2º que diz: “Consideram-se atos

atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e

coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais ou

transgêneros, para os efeitos desta lei: proibir o ingresso ou

permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento 16público ou privado, aberto ao público” .

Pode-se depreender dessa passagem que as ações das ativistas

pleiteavam direitos de cidadãs plenas, como o direito de ir e vir. Ao argumento de

que a sauna era dirigida a homens e que as travestis querem ser vistas como

pessoas de identidade feminina, as ativistas redarguiam com a ideia de que sua

identidade feminina não era reconhecida pelo Estado e seu Registro Civil

continuava com o nome e sexo masculinos. Sendo assim, sentiam-se no direito de

frequentar os referidos estabelecimentos restritos aos homens, já que a oscilação

entre o reconhecimento legal e social de sua identidade apenas surgia quando o

efeito era o de cercear seus direitos, e nunca o contrário. Parte da polêmica se

fundava no fato de que as travestis reivindicavam o direito ao lazer e ao sexo e

operavam um deslocamento na maneira como eram frequentemente percebidas.

Não se colocavam a partir da posição de prestadoras de serviços sexuais a serem

consumidos por outros, mas a partir da posição de clientes, de consumidoras de

serviços. Bradavam seus direitos de consumidoras e de cidadãs travestis.

Para uma parcela do movimento, era incompreensível que travestis se

mobilizassem por motivos tão “banais” e que “invadissem” espaços de trocas

sexuais direcionados a gays: seria melhor que se concentrassem em não serem

assassinadas, reivindicando o direito de viver. Essas militantes se contrapunham

a uma parcela do movimento que atuava no sentido de estreitar o que se

considerava passível de reivindicação por determinado segmento. Para as

travestis, o âmbito do mercado e do lazer noturno funcionava perfeitamente como

uma arena em que exigiam reconhecimento pleno de suas potencialidades e em

que discutiam a diferença de status em relação aos gays companheiros de

ativismo. Em certo momento, tratava-se menos de uma demanda por participar

da sauna e mais por uma disputa a respeito de quem pode reivindicar o quê.

Além dessas iniciativas, relacionadas ao usufruto de espaços de lazer,

outras compõem um universo de atuação política em meio a práticas de

16 Disponível em: <http://www.transgeneros.blogger.com.br>. Acesso em: 15 jul. 2004.

Page 243: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

consumo. É curioso que, durante a minha pesquisa de doutorado, tenha visto a

maior parte de ações relativas ao mercado e ao consumo surgir justamente

entre meus interlocutores que mais frequentemente são associados à imagem

do gay consumista e politicamente desinteressado: entre os homens de classe

alta frequentadores da já citada The Week, a profusão de marcas e referências

no que tange a práticas de consumo e o entusiasmo gerado pelo assunto

demonstravam um pouco do papel que o consumo desempenhava no seu

cotidiano. Ao mesmo tempo, em diversos momentos, a avaliação da própria

atitude como consumista ou materialista – ou mesmo o receio de que fosse

avaliada dessa maneira por outros – trazia à tona preocupações morais em

torno do consumo, refletindo valores sociais correntes em relação à aquisição

de bens (MILLER, 1995).

Continuo o argumento da terceira parte deste trabalho narrando

rapidamente dois episódios da minha pesquisa de doutorado envolvendo

exatamente tais interlocutores, em situações em que o consumo se associa à

ação política, em articulação com demandas dirigidas à justiça ou a entidades

de regulamentação do próprio mercado e da publicidade. Procuro justamente

relativizar leituras que veem numa relação estreita com o consumo um

hedonismo ou individualismo puro, considerando que, por meio de estratégias

muito próprias articuladas ao universo do consumo, os rapazes pesquisados

também estabeleciam redes de solidariedade e de reivindicação e esboçavam

disputas em torno dos significados associados à homossexualidade.

Tratamos de um contexto de sociabilidade e lazer noturno em que o

consumo de bens está muito presente e é constantemente tematizado, nas

conversas, no conteúdo de blogs, sites e revistas e em ações diversas. A partir

da observação dos blogs de alguns dos meus interlocutores frequentadores da

boate The Week e da rede de blogs com que se comunicavam, os quais têm

hoje perdido espaço para outros canais de comunicação na internet – redes

sociais como o facebook ou tumblr, por exemplo –, foi possível observar um

pouco do cotidiano de seus autores e de suas referências. Os blogueiros

escreviam sobre as boates mais valorizadas, as festas e os DJs mais

promissores da semana, as novidades referentes a consumo e tecnologia, moda

(especialmente underwear), cinema e programas da TV a cabo, cuidados

corporais e atividades físicas (principalmente musculação), homens atraentes

e comportamentos e estilos referentes à homossexualidade. Criavam um

conjunto de referências que ajudava a estabelecer padrões de valorização de

determinados estilos e subjetividades associados ao consumo de objetos e de

lugares, em consonância com os expressos nas revistas voltadas para gays e

nos clubes, como a já citada boate The Week. Parte importante das ações que

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Page 244: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

traziam alguma dimensão política no contexto dos blogs se dava próxima ao 17âmbito do consumo .

Em 2009, por exemplo, acompanhei uma campanha na internet de

boicote a uma marca de “salgadinhos” que havia veiculado uma propaganda em

que um grupo de amigos está num carro comendo o “salgadinho” e, assim que

toca uma música considerada um “hino” gay, um dos rapazes começa a dançar

de modo espalhafatoso, fazendo com que os outros dirijam um olhar desconfiado.

Nesse momento, a cena congela e, no lugar do rosto do rapaz, aparece a marca

de “salgadinhos” com a narração do locutor: “Quer dividir alguma coisa com os

amigos? Divide um Doritos”. A conclusão mais imediata é a de que não se deve

compartilhar a homossexualidade com os amigos. Logo, o comercial surgiu em

um blog gay e foi se espalhando para outros, propondo o boicote ao produto, até

que foi criada uma imagem em que o salgadinho aparecia com uma marca de

proibido e os dizeres “cuidado: produto homofóbico”. Um outro blogueiro, por sua

vez, lembrou que não era apenas o “salgadinho” que deveria ser boicotado, mas a

Pepsico, empresa que o produzia, o que gerou uma nova imagem, com o sinal de

proibido acima de diversos produtos da empresa.

17 As ações aqui mencionadas acontecem de forma quase espontânea: a partir de uma publicação nos blogs, há a adesão e o tema passa a ser publicado em outros blogs e redes sociais. Em 2010, parece surgir uma proposta de aproveitar o potencial de comunicação dos blogs no que se refere a causas políticas de modo mais organizado, com a criação de uma rede de blogueiros gays. A ideia é encabeçada pelo site mixbrasil e o grupo se reuniu algumas vezes em estabelecimentos comerciais frequentados pelo público gay. Sua primeira iniciativa é a tentativa de deflagrar uma campanha pela igualdade de direitos, inspirada na aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina. Foi criado um logotipo para a campanha baseado na imagem utilizada pela Human Rights Campaign – uma organização norte-americana com foco na defesa dos direitos de “LGBT” –, mas com as cores da bandeira brasileira.

Imagem 1 – Imagem que foi incorporada aos blogs durante a campanha de boicote à marca

Fonte: http://www.uomini.blogger.com.br/DORITOS%201.jpg acesso em 09 jun 2009

244

Page 245: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Simultaneamente, surgiam propostas e modelos de carta que

deveriam ser dirigidas ao CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação 18Publicitária) bem como propostas de que todas as casas noturnas voltadas

para gays e lésbicas boicotassem os produtos da Pepsico. Ao mesmo tempo, a

ABGLT redigiu um ofício ao CONAR solicitando a retirada da propaganda. Com

mais de 100 reclamações, o conselho de ética do CONAR votou por 7 a 5 pela

proibição da peça comercial. A estratégia de utilização da contradição entre ser

bem visto como consumidor e sofrer preconceito como cidadão utilizada pelos

blogueiros era resumida na frase de um dos articuladores do boicote: “Por que 19nossa grana é tão bem-vinda, mas a gente mesmo não?” .

No início de 2008, o mesmo grupo de blogueiros gays iniciou uma

campanha pelo reconhecimento do direito à herança de um rapaz cujo parceiro

de longa data havia morrido repentinamente. A campanha logo se espalhou por

muitos blogs, ganhando também os sites da mídia segmentada. Consistia na

divulgação de um abaixo-assinado que atestava a relação duradoura do casal

em questão e que podia ser assinado nas lojas de cuecas Foch, localizadas em

São Paulo na região dos Jardins e no já mencionado Shopping Frei Caneca, com

filiais no Rio de Janeiro e em Curitiba. A fotografia do casal mostrava dois

homens em torno dos 35-40 anos, brancos, musculosos e depilados, posando 20em meio a outros homens sem camisa numa festa indefinida . Ambos

participavam da mesma rede e ambientes referidos pelos blogueiros, o que fez

a iniciativa ser batizada de “ação entre amigos”.

18 O CONAR é uma ONG fundada em 1978 e composta por um colegiado de representantes da sociedade civil e de setores ligados ao mercado e à publicidade. Embora suas decisões não tenham poder legal, é incomum que delas se recorra na justiça, sendo entidade bastante reconhecida no meio publicitário. Pelo site do CONAR, podemos observar o crescimento das queixas vindas de consumidores. Boa parte dessas queixas estão relacionadas à infração de “respeitabilidade”, definida pelo CONAR a partir dos seguintes artigos: “Artigo 19 – Toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às autoridades constituídas e ao núcleo familiar. Artigo 20 – Nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade. Artigo 21 – Os anúncios não devem conter nada que possa induzir a atividades criminosas ou ilegais – ou que pareça favorecer, enaltecer ou estimular tais atividades”. Disponível em: <http://www.conar.org.br>. Acesso em: 15 out. 2010.19 Disponível em: <http://celsodossi.blogspot.com/2009/03/doritos-x-gayss.html>. Acesso em: 15 out. 2010.20 Embora não possa afirmar com absoluta certeza qual o perfil em relação à classe social envolvendo o casal, imagino que se trate de um casal de classe média alta/alta, o que posso deduzir um pouco pelo perfil de consumo e pela rede social em que estão envolvidos. Oliveira (2009) afirma em sua tese de doutorado que ações referentes a inventário, na pesquisa que realizou a partir das ações envolvendo conjugalidade e homossexualidade, são na sua maior parte movidas por homens gays de classe alta, já que a existência de um patrimônio considerável justifica a procura pelos meios legais de defesa desse patrimônio. Curiosamente, essa informação combina com a fala de um blogueiro que considera que os gays mais ricos não costumam se envolver em causas políticas e sociais, por estarem menos expostos à homofobia no seu cotidiano, mas a questão do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo é algo que os afeta a ponto de gerar mobilização. Com o cruzamento dessas informações, ainda frágeis, posto que são apenas alguns apontamentos, sugiro que talvez a questão da classe social atue como um marcador importante no modo como pode se dar a mobilização social em torno de direitos relacionados à sexualidade.

245Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 246: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Nos posts divulgando a ação, os blogueiros se contrapunham a

iniciativas como as das Paradas do Orgulho LGBT de São Paulo, pois

enxergavam nelas um evento pautado pela festa, cujo sentido se esvaziava logo

após a sua realização, diferentemente do abaixo-assinado que organizavam,

tido como uma ação concreta de combate ao preconceito e à discriminação,

que poderia efetivamente ajudar alguém. Em um post intitulado “Nossa Luta”,

um dos blogueiros define, citando um colega de blogosfera:

Bom, amigos, chegou a hora de mostrar mais uma vez o

real sentido deste blog. O sentido de poder ajudar quem

quer que seja: de um pai que sofre com o filho deficiente

físico, no post 'sob o olhar do observador' aos muitos djs que

hoje estão empregados e ou visitam este país graças a este

blog, e tantas outras benfeitorias que consegui para muitos

amigos ao longo dos anos. [...] 'Acho que as vésperas da

Parada Gay as pessoas tem que se conscientizar que não é

uma parada que muda o mundo e sim a participação de

cada um, ao seu modo, formando uma corrente do bem. E

esta luta do X é luta de todos nós, porque aos poucos vamos

mudando pensamentos e abrindo precedentes para outros

casos futuros, e espero que sejam cada vez menos os casos 21como este'. Frase bem correta do Y .

A ação se mistura à ajuda a DJs desempregados e a outros amigos, em

contraposição a outros modelos de ação política, personificados pela Parada do

Orgulho LGBT no texto transcrito. Assim, reitera o pensamento de outro

blogueiro de que não é uma parada que muda o mundo e sim a participação de

cada um, ao seu modo.

Embora possa causar surpresa a alguns, não é de se estranhar que o

post da “ação entre amigos” apareça em meio a imagens de anúncios das

cuecas favoritas, fotos de festas e DJs, dicas de complexos protéicos para

serem consumidos depois do treino de musculação. Não esqueçamos também

que essas referências circulam em lugares específicos, como os clubes dos

quais os blogueiros são frequentadores e que propiciam o encontro entre os

integrantes dessa rede, fazendo circular referências e gostos. Esse episódio

talvez pudesse ter uma leitura simplista, apontando para um suposto

individualismo dos blogueiros e dessa rede, mas isso seria deixar de lado a

compreensão do por que o combate ao preconceito é articulado dessa forma.

21 Optei por substituir os nomes citados no trecho por “X” e “Y”, com o intuito de preservar as identidades dos citados, já que o post não se encontra disponível atualmente na internet.

246

Page 247: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Não é mera coincidência que o abaixo-assinado tenha sido colocado

numa loja de cuecas ou que seja denominado “ação entre amigos”. O consumo,

para esses rapazes, desempenha um papel muito importante: a marca da

cueca é capaz de definir quem são os “amigos”, de quem se deve aproximar ou

não numa festa e quem são os potenciais parceiros. Por meio do consumo,

esses homens expressam fronteiras que os definem em relação a outros,

articulando significados referentes à homossexualidade e a diferentes estilos de

masculinidade, definindo também os “de fora”. De acordo com as formulações

de Douglas e Isherwood (2004) sobre o uso dos bens, poderia dizer que esses

rapazes ajudam a erigir barreiras e afinidades de forma ágil e veloz a partir

desses usos, bem como um “conjunto de princípios justificadores para reunir

apoio e solidariedade e um conjunto de sinais de 'entrada proibida'”

(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p. 44). Nada mais natural que articulem

suas ações em torno do reconhecimento de direitos de modo muito próximo a

esse universo que sabem manejar como ninguém.

Perspectivas e tensões: movimento e mercado, política e consumo

À luz dos argumentos e exemplos colocados aqui, concluo trazendo

alguns pontos para reflexão. Apesar de ter privilegiado o mercado e o consumo

como esferas em que também se dá a atuação política, quero concluir forjando

um diálogo entre movimento social e mercado, com vistas a contribuir com

debates no campo da política, mais do que a manter a elegância e a coerência

textual.

Acredito que uma perspectiva antropológica a respeito da política

possibilitou uma análise mais próxima de práticas que ocorrem no âmbito do

cotidiano e que desafiam fronteiras estanques entre movimento e mercado,

política e consumo, tornando viável essa última reflexão. Para além de definir

campos de atuação, minha preocupação aqui se deu, portanto, sobre o “modo

como as relações de poder se entrelaçam, suas ramificações e as práticas a que

dão lugar” e sobre os “modos como atores sociais diversificadamente situados

exercem o poder, respondendo às exigências e expectativas sociais e culturais

tanto quanto às demandas mais obviamente políticas” (HERZFELD, 2001, p. 3).

Embora o Estado e os movimentos sociais sejam as esferas a partir das

quais tradicionalmente pensamos o fazer político, é preciso lembrar que as

esferas do mercado e do consumo também constituem cenários públicos em

que nossa capacidade de agência e ação política é exercida,

independentemente de aderirmos ou não a noções como “sociedade do

247Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 248: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

consumo”. Nessas esferas, também se negociam direitos, disputam-se

significados, perpetuam-se ou reforçam-se desigualdades. Uma das propostas

deste exercício foi tentar compreender algumas das maneiras pelas quais o

mercado e o consumo revelam-se mais do que o terreno do puro comercialismo

desprovido de sentido, no caso das questões relacionadas à sexualidade.

Assim, meu primeiro argumento se deu no sentido de questionar

fronteiras muitas vezes encaradas como fixas entre mercado e movimento, pela

atribuição de lógicas totalmente distintas de atuação entre essas duas esferas,

evocando discursos pelos quais se guia parte das ações de empresários que se

reconhecem como responsáveis por uma atuação política. Meu segundo

argumento caminhou na direção de compreender como, mesmo na esfera do

lazer noturno, há espaço para movimentos de contestação, deslocamento de

normatividades e afirmação da diversidade. Na terceira seção do texto, abordo

demandas relacionadas ao usufruto pleno de espaços de consumo e lazer.

Também exploro as maneiras pelas quais os meus interlocutores, que talvez

mais facilmente recebessem a alcunha de “consumistas”, encontravam meios

de formular demandas e reivindicar igualdade e respeito, justamente a partir de

um cenário em que o consumo e o mercado se encontravam fortemente

presentes.

Não há aqui qualquer pretensão descabida de elevar o mercado e o

consumo a esferas privilegiadas de atuação política, em detrimento de esferas

em que essa atuação tem se dado mais tradicionalmente, mas de enfatizar que

nem por isso o âmbito do mercado deve ser ignorado e de reconhecer que,

como parte importante da vida social, deve ser também objeto de investigação.

Considerando, ainda, que há conexões ativas entre mercado e movimento e que 12ambos operam a partir do recurso a uma “comunidade imaginada” e atuam

na construção de identidades e subjetividades, vale perguntar que reflexões

podem ser apontadas quando se observa o movimento a partir do mercado e

vice-versa. Uma questão é se mercado e movimento podem funcionar como

espelho crítico um do outro.

Não pretendo apaziguar tensões ou nublar as diferenças entre atores

sociais de ambos os lados, mas pensar o quanto as diferenças que envolvem as

ações de movimento e mercado podem ser produtivas para calibrar nosso olhar

de um lado e de outro. Iniciativas próximas ao mercado, por exemplo, podem

gerar adesão e estabelecer pautas nem sempre interessantes para o

movimento, trazendo para o âmbito da política demandas por lazer, pela

22 Utilizo o termo de Anderson (2008), seguindo o uso que dele faz Facchini (2008).

248

Page 249: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

transformação de discursos e práticas na mídia e publicidade, por igualdade e

respeito à diversidade sexual em aspectos da vida cotidiana.

Além disso, se no âmbito do mercado normatividades são produzidas,

também ali se aponta para desigualdades sutis, muitas vezes nubladas nos

processos de reivindicação do movimento, pelas próprias características

desses processos: por exemplo, nas reivindicações por direitos coletivos,

muitas vezes os “LGBT” aparecem como entidade, um coletivo carente de

direitos que se mostra de forma um tanto homogênea. No âmbito do mercado e

do consumo, a diversidade interna que compõe as letrinhas do movimento,

mesmo que carregada de hierarquias, surge com força suficiente para iluminar

nossa perspectiva a seu respeito.

Por outro lado, se observarmos o mercado pela lente do movimento

social, também pode oferecer linhas de fuga interessantes. O aspecto mais

flagrante aqui é a disparidade entre um movimento formado por um sujeito

político múltiplo e que congrega orientação sexual e identidade de gênero e um

mercado direcionado quase que exclusivamente a gays – em muito maior

proporção – e lésbicas. O caráter excludente desse mercado aparece de modo

inequívoco quando nos voltamos para travestis e transexuais, embora sua

distribuição de espaços e sua correlação de forças já evidenciem a

desvalorização dos mais pobres, mais escuros, mais velhos, mais gordos, mais

“femininos” ou mais “masculinos”. Não é à toa que estratégias políticas mais

numerosas e constantes no âmbito do mercado são as propostas por gays.

Além disso, no âmbito do mercado, não há ainda espaços coletivos em

que se podem confrontar posições e construir um debate político, papel que

cumprem as conferências e os encontros do movimento. As iniciativas no

âmbito do mercado e consumo, na maioria das vezes, pouco dialogam com

outras instâncias, o que também tem resposta no funcionamento da própria

lógica do mercado, que tende a segmentar e reforçar diferenças (SAHLINS,

2000; FRANÇA, 2010). Assim, é importante enfatizar o movimento social

como um espaço em que parece mais possível essa construção de

solidariedade considerando um sujeito político múltiplo, como é o LGBT.

Podemos dizer que o âmbito do mercado eventualmente responde a

questões diferentes das usualmente colocadas pelo movimento, enfatizando

aspectos relacionados ao prazer, ao lazer, a subjetividades mais ou menos

desvalorizadas, questões que aparecem mais como individuais, mas que são

também políticas. O movimento eventualmente dá respostas que o mercado

não pode dar, quando se dirige mais aos direitos coletivos e atuações mais

amplas, prioriza a questão da violência como ponto aglutinador de demandas,

249Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252

Page 250: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

oferece um espaço para a construção de sujeitos políticos por afinidade, e não

por identidade específica.

Evidentemente, essas respostas não são exclusivas de uma ou outra

esfera e há muitas nuances envolvendo práticas no âmbito do movimento e do

mercado: recorri ao esboço de algumas diferenças mais gritantes de maneira

bastante tentativa nesses últimos parágrafos, com o objetivo de dar conta das

vantagens de se olhar para o movimento pela lente do mercado e para o

mercado pelas lentes do movimento. Trata-se de traçar conexões, mas também

de forjar pontos de vista e fomentar tensões saudáveis a partir de práticas

sociais, procurando formular uma reflexão crítica sobre o modo como

compreendemos o fazer político associado à sexualidade.

250

Page 251: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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252

Page 253: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

12

Adailson MoreiraProfessor Assistente do Departamento de Ciências Sociais

da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)Graduado em Direito e Psicologia

[email protected]

Homosexuality in the Nineteenth Century

A homossexualidade no Brasil no século XIX

Page 254: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

254

Resumo

O século XIX marcou de forma profunda a sociedade brasileira ao promover mudanças

estruturais de grande envergadura. As práticas e os hábitos sociais foram objetos de

atenção das ciências, que se voltaram com o propósito de compreendê-los, estudá-los e

controlá-los, fazendo emergir as categorias de normalidade/anormalidade,

especialmente no campo sexual. Neste, o tema da homossexualidade ganhou destaque

quando surgiram pesquisas médico-científicas procurando nomear e classificar as

variações sexuais, logo marcadas e rotuladas como desvios ou patologias.

Palavras-chave: Homossexualidade. República. Teorias Higienistas.

Heteronormatividade.

Abstract

The nineteenth century marked profoundly the Brazilian society by promoting major

structural changes. The practices and social habits were pointed as subject of attention

of Sciences, who turned in order to understand them, study them and control them,

making the categories of normality/abnormality come out, especially in the sexual field,

and from this on, the theme homosexuality has gained prominence, when they began

looking for medical-scientific names and classifications for sexual variations, then

marked and labeled as deviations or pathologies.

Key-words: Homosexuality. Republic. Hygienists Theories. Heteronormativity.

Page 255: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introdução

O século XIX marcou profundamente os destinos e costumes do povo

brasileiro. Num mesmo século, o país deixou de ser colônia (1822), passou por

dois reinados e um período regencial e ingressou na República (1889). Além

disso, sofreu grandes e importantes transformações ao abandonar seu passado

escravocrata, por meio das várias leis, tais como a Lei do Ventre Livre (1871), a

Lei dos Sexagenários (1885) e, finalmente, a Lei Áurea (1888).

Ao proclamar sua independência de Portugal em 1822, o

Brasil herdou uma tradição cívica pouco encorajadora. Em

três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses

tinham construído um enorme país dotado de unidade

territorial, linguística, cultural e religiosa. Mas tinham

também deixado uma população analfabeta, uma

sociedade escravocrata, uma economia monocultora e

latifundiária, um Estado absolutista (CARVALHO, 2008a,

p. 17-18).

O pensamento social republicano é herdeiro da sociedade imperial,

que contribuiu para uma República formada por uma massa analfabeta e

miserável (MISKOLCI, 2004, p. 189).

A elite imperial era um poderoso grupo responsável pela unificação

ideológica do país por meio da educação superior, que se concentrava

basicamente na formação jurídica (Universidade de Coimbra), e, em

consequência, formava um núcleo relativamente homogêneo de

conhecimentos e habilidades à semelhança de uma ilha de letrados num mar

de miseráveis e analfabetos (CARVALHO, 2008b, p. 65), que não se

interessavam, ou estavam impedidos de acesso ao universo da política.

Com a República, a situação não mudou muito. A política adotada pelo

governo português nunca permitiu a instalação de estabelecimentos de ensino

superior nas colônias (CARVALHO, 2008b, p. 69). Assim procedendo, a Coroa

portuguesa visava à manutenção da hegemonia política da elite, já que todos os

que tinham condições financeiras estudavam em universidades europeias. Essa

situação somente se alterou com a chegada da Corte em 1808, quando foram

criadas várias escolas de ensino superior. Contudo, as escolas dedicadas

explicitamente à formação das elites políticas (Direito, Medicina e Engenharias)

apenas surgiram após a Independência (CARVALHO, 2008b, p. 74).

Se no Império vigorava uma forma de lidar com a população

baseada na pura e simples brutalidade, o que a instituição da

escravidão corroborava, na República, e sob o regime do

255Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 256: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

trabalho assalariado, as elites intelectuais depararam-se com

um paradoxo maior: como incorporar ao novo regime político

essa massa de desvalidos? (MISKOLCI, 2004, p. 189).

Essa massa de desvalidos, de analfabetos, era alheia a qualquer ato ou

acontecimento político. Um exemplo marcante dessa passividade foi o episódio

da proclamação da República, no qual não houve participação popular,

contrariando o ideário republicano do povo como protagonista dos

acontecimentos (CARVALHO, 2005, p. 9).

A indiferença do povo impressionou diversos intelectuais, na época. A

carta de Aristides Lobo, publicada no Diário Popular de São Paulo, em 18 de

novembro de 1889, ilustra essa impressão: “o povo assistiu àquilo bestializado

[...], sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar

vendo uma parada” (NUNES; MENDES, 2008, p. 92).

O povo jamais exerceu seu papel de protagonista. Assistia aos fatos

políticos entre surpreendido e indiferente. “Os acontecimentos políticos eram

representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no

máximo, como figurante” (CARVALHO, 2005, p. 163).

Trata-se de um período de crise generalizada na sociedade brasileira, de

“mudanças estruturais profundas nas políticas de domínio sobre os

trabalhadores” (CHALHOUB, 1994, p. 16). Era um momento em que todas as

estruturas e camadas sociais estavam se organizando, se estruturando para a

existência republicana. “O momento histórico, portanto, é propício ao surgimento

de novos e alternativos modos de vida” (NUNES; MENDES, 2008, p. 87).

Esses novos modos alternativos de vida não se fizeram esperar. De

novo, contudo, somente as designações científicas. Os hábitos e as práticas

eram os mesmos desde sempre, mas os olhares atentos das ciências se

voltavam para eles na intenção de compreendê-los, estudá-los e controlá-los. O

que antes era apenas uma faceta do comportamento humano, passou a ser

enquadrado nas categorias de normalidade/anormalidade, como valores em

oposição, tornando-se, no século XIX, uma espécie de dogma cientificamente

garantido (CANGUILHEM, 2010, p. 13).

As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da

ciência, com sua postura higienista. Dentre estas, as práticas entre pessoas do

mesmo sexo deixaram de ser meras práticas e foram designadas de

homossexualismo. Essas pessoas se transformaram em uma espécie

(FOUCAULT, 1984a) e passaram à tutela da ciência médica, para curar, e da

jurídica, para punir, em caso de resistência e reincidência.

256

Page 257: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Ilustrando esse processo de mudança social, a literatura produziu

obras segundo essas concepções, já que “os estudos literários sempre se

enriqueceram com o intercâmbio disciplinar” (BULHÕES, 2003, p. 13).

O tema da homossexualidade é bastante antigo, até a narrativa bíblica

traz relatos desse comportamento. “No entanto, a preocupação com essa

identidade sexual somente ganha realce no final do século XIX, quando surgiram

pesquisas médico-científicas procurando nomear e classificar as variantes

sexuais, logo rotuladas como desvios ou patologias” (OLIVA, 2002, p. 15).

Nesse período, a literatura desenvolveu pretensões de ser uma forma

de conhecimento. Assim, surgiu, por exemplo, o romance Bom-Crioulo,

publicado em 1895, que traz todos esses elementos ao narrar, de forma

detalhada, a ligação entre dois oficiais da marinha brasileira, numa narrativa

naturalista, privilegiando a ciência, o progresso e a verdade, segundo os

preceitos da época. “Nervosos e agitados, os personagens naturalistas,

exagerados ou não, revelam aos leitores e à sociedade do final do século 19 os

perigos e mistérios da sexualidade” (MENDES, 2000, p. 23).

Sociedade e Literatura

Foi no cenário social em convulsão que se deu a chegada das teorias

científicas, dentre elas, as teorias evolucionistas e positivistas. Segundo Lara

(2008, p. 88), “[...] sua retórica foi empregada tanto por críticos sociais

reformistas, como por elaboradores da ideologia oficial ao longo da Primeira

República”, provocando mudanças sociais significativas.

Conforme essas teorias, o homem chegou ao progresso ao atingir uma

escala superior da evolução, conseguindo dominar, dentro de certos limites, o

conjunto de forças que rege o seu corpo (física, intelectual, sexual etc.) e a

sociedade (MORANDO, 2002, p. 132-133).

As concepções surgidas nesse período abrangem toda uma ideologia

médico-higienista produzida pelos avanços tecnológicos, na maioria das vezes,

corroborando preconceitos ou simpatias sociais. “Expoente do

desenvolvimento e progresso desejados pela burguesia, a medicina avançou e

penetrou tanto em sentido vertical quanto em sentido horizontal no espectro

social” (QUEIROZ, 1992, p. 18).

No âmbito das ciências médicas, a sexualidade teve especial

destaque, acompanhada de preconceitos, medos, crenças e dogmas do

passado. Do universo da sexualidade, emerge uma série de práticas

257Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 258: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

consideradas antinaturais, aberrações “as mais extravagantes, que afetam não

somente a vida, a honra e a liberdade de suas infelizes vítimas, como também

comprometem a segurança social” (CASTRO, 1943, p. 5).

Desse universo de aberrações, podem-se destacar os exibicionistas, os

necrófilos, os sátiros, os sádicos, as prostitutas, os pederastas etc. Esse elenco

de personagens que mantêm condutas e práticas consideradas desviantes da

normalidade é encontrado no livro do Dr. Viveiros de Castro, professor de direito

criminal e Desembargador da Corte de Apelação do Distrito Federal, intitulado

Atentados ao pudor: estudos sobre as aberrações do instinto sexual. Trata-se

do primeiro estudo jurídico publicado no Brasil abordando essa temática, em

consonância com as pesquisas e os estudos surgidos no mesmo período na

Europa. Na área médica, o primeiro estudo foi publicado em 1872, pelo Dr.

Francisco Ferraz de Macedo, intitulado Da prostituição em geral e em

particular em relação à cidade do Rio de Janeiro: profilaxia da sífilis.

Foi essa mentalidade que destacou personagens como: prostitutas,

loucos, mundanos, celibatários, histéricos, negros, homossexuais, libertinos e

adúlteros. Sobressaindo desse espectro social, os homossexuais ganharam

notoriedade. A homossexualidade passou a ser pesquisada por estudiosos, o

que se transformou no primeiro passo para a composição do cenário de

condenação e exclusão. Estuda-se para saber, e esse saber é usado para

controlar, curar e punir (FOUCAULT, 1984a).

Mais precisamente em 1869, surgem os termos homossexual e

homossexualismo, criados pelo médico húngaro Karoly Maria Benkert. Com isso,

essa parcela da população entrou para a história “na precisa medida em que foram

detectados, estudados e controlados pelos grupos heterossexuais, dominantes

desde sempre no conjunto social” (GREEN; POLITO, 2006, p. 17-18).

Seguindo a tendência científica médico-higienista, a literatura do

período espelhou esse conhecimento. A principal corrente literária produzida

no período foi a naturalista, que expressava uma concepção positivista da

própria sociedade e, consequentemente, da literatura, caminhando em direção

a uma “migração do interesse estético para os de outra ordem, sociológicos,

antropológicos, psicanalíticos, filosóficos” (BULHÕES, 2003, p. 13).

A literatura, de uma maneira geral, procurou seguir as

tendências realistas e abandonar a subjetividade

introspectiva, voltando-se para aspectos do contexto em

que a obra de arte estava sendo produzida, abordando

temas menos idealizados e mais próximos da realidade e

dos problemas da época. A negação dos valores e

258

Page 259: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

convenções românticas, centrados na imaginação criadora

do artista e na idealização do amor, da mulher e da

sociedade, aliada à forte influência dos filósofos franceses

naturalistas e do positivismo de Comte, possibilitou à

literatura a representação de assuntos pouco

convencionais, como o adultério, o casamento por

interesse, a hipocrisia da sociedade burguesa e os males da

religiosidade mercantilista. Além desses, outros temas

aparecem, mas tratados quase sempre de forma sutil, como

o lesbianismo e a homossexualidade masculina (OLIVA,

2002, p. 24).

Nem tão sutil assim, Adolfo Caminha publicou o romance Bom-

Crioulo, em que abordou a homossexualidade abertamente, sem nenhuma

preocupação em disfarçar a natureza da relação existente entre as

personagens. O próprio autor, em artigo publicado na época, assim descreveu

sua obra:

Um marinheiro rudo, de origem escrava, sem educação,

nem princípio algum de sociabilidade, num momento fatal

obedece ás tendencias homosexuaes do seu organismo e

pratica uma acção torpe: é um degenerado nato, um

irresponsável pelas baixezas que commette até assassinar o

amigo, a victima dos seus instintos. Em torno d'elle se

espraia o romance, logicamente encadeado, de accôrdo

com as observações da sciencia e com a analyse provável

do autor, que, no caracter de official de marinha, viu os

episódios accidentaes que descreve a bordo (CAMINHA,

1896, p. 41).

Apesar de ser reconhecida como a obra mais importante a abordar o

tema, Bom-Crioulo não foi a primeira. Antes dela surgiu Um homem gasto, em

1885, de autoria do médico Lourenço Ferreira da Silva Leal, mas assinada

apenas pelas iniciais L. L.

Pela primeira vez na literatura brasileira surgiram as vozes de

“personagens cujas sexualidades se opõem às tradições do casamento, da

reprodução da espécie e da heterossexualidade” (MENDES, 2000, p. 14),

ainda que circundadas pelo discurso de uma ciência eugênica, que evidencia

vozes anormais como forma de cerceá-las, acuá-las, desnudá-las e

marginalizá-las (QUEIROZ, 1992, p. 41).

Entender como esse processo se deu implica analisar a construção

dessa nova ordem médica e higienista.

259Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 260: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A nova ordem médica e higienista

A sociedade brasileira, organizada segundo o modelo patriarcal desde

os seus primórdios, sofreu grande abalo em suas estruturas em meados do

século XIX, provocado pelo projeto médico e higienista. “Neste período

predominava uma visão biológica da sociedade e de seus problemas”

(MISKOLCI, 2010a, p. 2).

Até então, a medicina era pouco desenvolvida e os recursos, escassos.

Durante todo o período colonial, Portugal não permitiu a instalação de escolas.

“Foi política sistemática do governo português nunca permitir a instalação de

estabelecimentos de ensino superior nas colônias” (CARVALHO, 2008b, p. 69).

A prática da medicina consistia na observação de sintomas e sinais,

não havendo preocupação com as causas das doenças. Além disso, a medicina

sofria grande concorrência dos conhecimentos de medicina natural indígena,

das superstições e do curandeirismo (QUEIROZ, 1992, p. 19).

Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a situação

começou a mudar; iniciou-se uma nova fase, embora a regra fosse a escassez de

profissionais da área médica e a população estivesse em franco crescimento, o

que fez aumentar os problemas higiênicos e sanitários (QUEIROZ, 1992, p. 19).

Muitas foram as iniciativas, por parte das autoridades, de remodelar o

Rio de Janeiro, atacando seus pontos críticos e insalubres. “A intenção de dar

uma face de civilidade ao Rio, na tentativa de apresentar à comunidade

europeia uma cidade ordenada e regulada, que esteve presente desde as

primeiras medidas do Príncipe Regente e percorreu todo o século XIX”

(QUEIROZ, 1992, p. 21).

A situação das cidades brasileiras era periclitante. Cidades mal

planejadas e insalubres, ruas estreitas, íngremes e sem calçamento, lixo atirado

às ruas, que eram povoadas por animais soltos (cachorros, porcos, cavalos,

vacas etc.), isso sem contar a grande população das cidades maiores, o que só

agravava a situação (ARAÚJO, 1993).

As péssimas condições sanitárias das cidades foram pano de fundo

para a propagação de surtos epidêmicos que somente foram debelados com

grande dificuldade (ARAÚJO, 1993, p. 64).

Os dados revelam não apenas que o Rio de Janeiro era uma

cidade ciclicamente visitada por diversas moléstias, como

também que outros núcleos urbanos em processo de rápido

crescimento passavam por idêntica experiência. O

adensamento populacional, a aglomeração humana geravam

260

Page 261: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

como subproduto as enfermidades de massa, as epidemias

[...] (PECHMAN; FRITSCH, 1984/1985, p. 141).

A partir do segundo quartel do século XIX, tomava-se consciência do

alto índice de mortalidade infantil e das péssimas condições sanitárias do lar

patriarcal (TREVISAN, 2004).

A insalubridade imperante nos sobrados de início do século

XIX era resultado da arquitetura e engenharia dos ricos

senhores que decidiam por si como erigir a casa, sem

atender a requisitos básicos de higiene. Habitações

quentes, escuras, mal ventiladas e desconfortáveis

abrigavam pessoas com aspecto doentio e físico

abrutalhado. O espaço era dividido com o lixo acumulado,

águas usadas e estagnadas e animais transmissores de

doenças, como ratos, baratas, pulgas e percevejos

(QUEIROZ, 1992, p. 26).

As personagens do romance de Caminha, o negro Amaro e Aleixo, ao

desembarcarem no Rio de Janeiro, vão morar no sobrado de D. Carolina, “que

alugava quartos na Rua da Misericórdia [...] não fazia questão de cor e

tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito” (CAMINHA,

1999, p. 44). Ao descrever o quarto, o autor informa que “o quarto era

independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão roído pelo

cupim e tresandando a ácido fênico” (CAMINHA, 1999, p. 47).

A descrição dessa moradia deixa evidente as condições insalubres dos

moradores, pelo menos de uma boa parte deles, das grandes cidades

brasileiras do período, mais especificamente os da capital.

Em função de todos esses problemas, “impôs-se a convicção de que a

velha família patriarcal era incapaz de proteger a vida dos seus membros”

(TREVISAN, 2004, p. 171). Com essa certeza, iniciou-se o processo de

mudanças sociais, modernizando o lar, reduto íntimo dominado pelo poder

patriarcal e pelo rápido avanço das ideias e dos valores burgueses (CARVALHO,

2005, p. 42).

A situação crescente de ameaças de epidemias, a necessidade de

mostrar-se à comunidade internacional e o ideal modernizador e progressista

criaram “as condições básicas para que médicos, engenheiros sanitários,

políticos e autoridades governamentais se debruçassem na busca de soluções

[...]” (PECHMAN; FRITSH, 1984/1985, p. 142).

Esse período foi propício a grandes transformações das mentalidades e

solo fértil para as ciências e para o progresso (OLIVA, 2002), numa sociedade

261Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 262: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

cheia de entraves morais e sociais, “com seus ritos conservadores, dominada

por uma religiosidade que, se não é exatamente claustrofóbica, não deixa de ser

punitiva e centralizada na ideia da culpa, que estabelece privações e

prescrições à vivência sexual” (BULHÕES, 2003, p. 37).

A partir do ideal higienista, a cidade foi se transformando, tendo Paris

como modelo. “Quando as finanças da República foram recuperadas pela

política deflacionista de Campos Sales, sobraram recursos para as obras há

muito planejadas de saneamento e embelezamento da cidade” (CARVALHO,

2005, p. 40).

A cidade começou a ser submetida a uma série de medidas de

transformação urbana, objetivando melhorias no nível de vida, diminuição do

índice de doenças que afetavam a população e melhor conformação urbana

(QUEIROZ, 1992, p. 20).

À medida que o Estado foi se organizando e a Revolução Industrial se

consolidando, as classes menos favorecidas iam sendo paulatinamente

higienizadas por meio de campanhas de moralização e higiene coletiva. “Além

do corpo, também as emoções e a sexualidade dos cidadãos passaram a sofrer

interferência [...]” (TREVISAN, 2004, p. 172).

Na segunda metade do século XIX, aumentaram substancialmente os

estudos sobre sexualidade, prostituição e homossexualidade, segundo a

tendência das teorias europeias. “A vida intelectual do país começou a mudar

significativamente no início da década de 1870, com a introdução de outras

correntes europeias de pensamento, sobretudo o positivismo e o

evolucionismo” (CARVALHO, 2008b, p. 86).

As transformações pelas quais a sociedade passou nesse período,

predominando a visão biológica, deram-se “pelo fortalecimento do processo de

higienização da família, configurado pela atuação direta do médico [...] pelo

remanejamento dos papéis familiares e pela nova política sexual baseada na relação

heterossexual, monogâmica, de caráter reprodutivo” (QUEIROZ, 1992, p. 35).

A nova sociedade burguesa capitalista tinha no processo de

normalização o cerne do seu desenvolvimento (MISKOLCI, 2003, p. 93-94).

Normalidade e desvio social

Nesse período de efervescência intelectual, científica e social,

surgiram questionamentos acerca do que se pode ser considerado normal e do

que é o seu oposto, a anormalidade. Essa discussão se deu no contexto das

262

Page 263: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

teorias médico-higienistas sobre a degeneração, tendo como referência a teoria

da evolução de Charles Darwin, considerada padrão epistemológico que se

tornou fonte explicativa até para as ciências humanas, como corrente do

darwinismo social, buscando o desenvolvimento dessas teorias para estender

suas consequências à esfera social (MISKOLCI, 2010a).

O processo de normalização se iniciou pela linguagem, ao criar a

palavra e o seu ideário, culminando com o estabelecimento de

comportamentos. Auguste Comte atribuiu à palavra uma conotação médica, ao

comparar o estado normal do organismo com o estado patológico. O significado

atual surgiu da interseção do conhecimento médico com o sociológico,

imbuídos do interesse em medir, classificar e disciplinar os indivíduos de modo

que estes se conformem aos padrões de normalidade (MISKOLCI,

2002/2003).

1A palavra normal deriva do termo latino norma , que designa o “que

não pende nem para a direita nem para a esquerda”, mantendo-se, portanto,

“num justo meio”. Ou seja, essa designação privilegia a noção de equilíbrio,

ressaltando que “é normal [...] aquilo que se encontra na maioria dos casos

[...]”, passando a ser até mesmo sinônimo de natural (LALANDE, 1993, p.

737-738).

Em lugar de pretender determinar de saída as relações do

estado normal de seu contrário com as forças vitais,

procuremos simplesmente algum sinal exterior,

imediatamente perceptível, mas objetivo, que nos permita

distinguir uma de outra essas duas ordens de fatos

(DURKHEIM, 1971, p. 47).

O surgimento da noção de normal ou normalidade engendra

naturalmente seu oposto, o anormal, o desviante. A “consolidação da ordem

social assentada numa tecnologia de poder que estabeleceu normas, as

naturalizou e fez com que todos os que não se enquadrassem nelas passassem

a ser classificados como desviantes” (MISKOLCI, 2010a, p. 3). Com isso “a

preocupação inevitável com os problemas criados pelo comportamento

anormal foi exacerbada ao ponto de criar uma divisão artificial entre o

funcionamento aberrante e o normal” (GLASSER, 1960, p. 15). Ou seja,

aqueles que se afastavam dos modelos preconizados pelos higienistas eram

criticados pela sociedade e identificados como portadores de doenças ou

problemas de saúde. “Todos os 'desvios' do modelo economicamente produtivo

e biologicamente reprodutivo da família burguesa eram classificados como

aberrações” (MISKOLCI, 2003, p. 94).

1 Etimologicamente, significa esquadria formada por duas peças perpendiculares (LALANDE, 1993).

263Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 264: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Nesse passo, a homossexualidade passou a ser vista como distúrbio,

anomalia, carecendo de cura, correção. “A sodomia [...] era um tipo de ato

interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século

XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um

caráter, uma forma de vida” (FOUCAULT, 1984a, p. 43). O indivíduo ganha

notoriedade a partir de sua sexualidade. “O sodomita era um reincidente, agora

o homossexual é uma espécie” (FOUCAULT, 1984a, p. 44).

A identidade real dos fenômenos vitais normais e

patológicos, aparentemente tão diferentes e aos quais a

experiência humana atribuiu valores opostos, tornou-se,

durante o século XIX, uma espécie de dogma,

cientificamente garantido, cuja extensão no campo da

filosofia e da psicologia parecia determinada pela

autoridade que os biólogos e os médicos lhe reconheciam

(CANGUILHEM, 2010, p. 13).

Dessa autoridade científica, sucedeu o poder disciplinar, meio de

intervenção e normalização social responsável pela criação do desvio. Surgiu

“um saber, técnicas, discursos 'científicos' se formam e se entrelaçam com a

prática do poder de punir” (FOUCAULT, 1987, p. 23). Em outras palavras, a

norma passou a existir como meio de disciplinamento dos comportamentos,

dos corpos, da sociedade. “A norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio

de qualificação e um princípio de correção” (FOUCAULT, 2001, p. 62).

Qualifica porque descreve, nomeia, identifica e destaca o indivíduo no seio da

sociedade. Correção porque não tem a função de excluir, mas de corrigir, alterar

o que é desviante. A norma “está sempre ligada a uma técnica positiva de

intervenção e de transformação” (FOUCAULT, 2001, p. 62).

Durkheim (1971), estudando a distinção entre o normal e o

patológico, fruto desse dispositivo de poder disciplinador, chamou de “normais

os fatos que apresentam as formas mais gerais” e se referiu aos outros

fenômenos como mórbidos ou patológicos. A anormalidade emerge como

patologia.

Normalidade e patologia

No plano das ciências da mente (psicologia e psiquiatria), é bastante

complexa a distinção entre o normal e o patológico (FOUCAULT, 1984b). “No

decorrer da história, sempre foi motivo de controvérsia a definição do

funcionamento humano normal, sendo provavelmente até mais difícil que a

definição das grandes variações do comportamento anormal” (GLASSER,

1960, p. 15).

264

Page 265: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

No âmbito da medicina, a normalidade se mostrou por oposição ao

anormal, que se confundiu com anômalo. A partir desse ponto, o estado normal

acabou por significar ausência de anomalia (LALANDE, 1993). É pelo normal

que se chega ao anormal. “A natureza (physis), tanto no homem como fora

dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é

a doença” (CANGUILHEM, 2010, p. 10). A doença é parte do anormal, é a

característica da anormalidade. “A doença difere da saúde, o patológico, do

normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presença ou ausência

de um princípio definido, quer pela reestruturação da totalidade orgânica”

(CANGUILHEM, 2010, p. 11).

Segundo essa linha de pensamento, “o tipo normal se confunde com o

tipo médio e [...] todo desvio com relação a este padrão de saúde é um

fenômeno mórbido” (DURKHEIM, 1971, p. 48). Melhor dizendo, “o ser

humano normal é aquele que funciona de forma eficiente, possui um certo grau

de felicidade e realiza algo de valor para si próprio, dentro das regras impostas

pela sociedade em que vive” (GLASSER, 1960, p. 15).

Assim, “o anormal emerge como desviante e a explicação de seu

desvio se assentará crescentemente em uma hipotética natureza corrompida, a

qual, na segunda metade do século XIX, será denominada degeneração”

(MISKOLCI, 2010a, p. 4).

Exposto dessa forma, entende-se que “a doença não está em alguma

parte do homem. Está em todo o homem e é toda ele” (CANGUILHEM, 2010,

p. 10). Isso implica dizer que não é possível definir que parte está em

desarmonia com o todo, já que o todo está comprometido.

O estudo das diferentes sociedades evidencia uma grande variação na

noção de normalidade, não existindo modelo que seja adequado a todos os

meios e épocas. “Até certo ponto, o que estabelece os limites do normal é o nível

de tolerância de uma sociedade – e estes limites são flutuantes” (CLOUTIER,

1967, p. 15) –, revelando a eleição de valores, ou seja, “fenômenos históricos e

socialmente criados passaram a ser encarados de forma naturalizada”

(MISKOLCI, 2010a, p. 3).

Com isso, surgiu uma tecnologia de poder social, o poder disciplinar,

que é aplicado aos desviantes (FOUCAULT, 1987, p. 150), já que “[...] a vida é,

de fato, uma atividade normativa” (CANGUILHEM, 2010, p. 86).

Esse mesmo poder disciplinador, tão empenhado em estabelecer as

nuances do anormal, irá definir os contornos da normalidade em todas as

esferas sociais, especialmente os papéis de gênero e sexualidade.

265Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 266: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

266

Gênero e sexualidade no período entre o Império e a República

O final do século XIX viu emergir uma nova ordem da sexualidade na

sociedade brasileira, momento de profunda transformação nas relações de

poder e hierarquias de cunho não econômico (MISKOLCI, 2009).

O movimento higienista atribuiu à sexualidade papel relevante, ao

disciplinar comportamentos individuais e coletivos. Foucault (1984) observa

que, na Europa, a partir do século XVIII, várias áreas e disciplinas passaram a

tratar a sexualidade de modo diferente daquele adotado pela Igreja. A Medicina

se preocupava com a sexualidade feminina, a Pedagogia passou a estudar a

sexualidade das crianças e a Economia levou em conta a demografia,

ocupando-se com o planejamento da natalidade etc.

A sociedade imperial era organizada pelo modelo patriarcal, “em que o

pai exercia total poder sobre a família, controlando todas as suas atividades,

desde a esposa e filhos até os criados e agregados” (OLIVA, 2002, p. 31).

Gradativamente, esse modelo foi sendo substituído pela família burguesa, com

uma crescente interferência do discurso médico, que

buscou reduzir o poder do velho pater famílias e sublinhar o

papel da mãe como responsável pela prole e pelos cuidados

privados da unidade doméstica. Não se tratava de

incentivar a emancipação feminina, antes de reduzir o

poder do patriarca ao mesmo tempo que se estabelecia, em

outros termos, a submissão da mulher e dos filhos a uma

estrutura familiar diversa da que prevalecera desde a

colonização. Nessa perspectiva, concluiu-se que nossa

sociedade teria passado por um processo de

aburguesamento consolidado na família nuclear

monogâmica (MISKOLCI, 2009, p. 551).

Foi nesse contexto que se deu a emergência do dispositivo da

sexualidade (FOUCAULT, 1984a), ou seja, do dispositivo histórico de poder,

característico da nova ordem social. Sobre a sexualidade, Foucault (1984a, p.

100) aponta:

Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da

natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como

um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco,

desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um

dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se

apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície

em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos

prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos

Page 267: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,

encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes

estratégias de saber e de poder.

Contudo, essas mudanças que se operaram no século XIX não se referiam

a todas as práticas sexuais. Atendendo às imposições do dispositivo da sexualidade,

vários segmentos sociais foram arrolados como pervertidos, degenerados e

desviantes, já que ameaçavam o projeto de normalização médica e higienista. Da

imensa gama de práticas sexuais, “salvou-se apenas a heterossexualidade como

única prática normal e funcional” (QUEIROZ, 1992, p. 39).

A homossexualidade passou a ser encarada como sinal de

degenerescência, surgindo um julgamento moral, fruto de discursos religiosos,

jurídicos e médicos. Todos esses discursos serviram para criar o estereótipo

homossexual, como a “figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada

pelos que não podem, não sabem ou não querem seguir as injunções ideais”

(COSTA, 1992, p. 19).

Arrogados sobre esse poder, normatizado pelos padrões médico-

higienistas, “outorga-se o poder de atacar ou destruir física ou moralmente os

que dela divergem ou simplesmente se diferenciam” (COSTA, 1992, p. 19).

Doutrinas e teorias dessa ordem produziram “um movimento centrífugo

em relação à monogamia heterossexual” (FOUCAULT, 1984a, p. 39),

resultando no casal legítimo, que pratica uma sexualidade regular. Os demais,

aqueles que praticam a sexualidade irregular, inscrevem-se no universo da

ilegalidade e da perversão (QUEIROZ, 1992, p. 41). “É extensa a aproximação

entre médicos e aparato jurídico-policial, cabendo à polícia capturar

homossexuais considerados delinquentes e entregá-los a pesquisadores do

campo da medicina para 'estudos” (GREEN; POLITO, 2006, p. 21).

Mas quando para estes desgraçados se levantam

implacavelmente a severidade da justiça e a censura da

opinião, é que a ciência aparece, austera, calma, fria,

examinando se há realmente uma alma estragada e

corrompida, um perverso a punir, ou se este ato por ele

praticado é uma manifestação da degenerescência mental

ou nervosa, um impulso irresistível de vontade sem energia,

sem ter mais centros inibitórios (CASTRO, 1943, p. 6).

Essa fala do Dr. Viveiros de Castro é o reflexo do pensamento científico

do período, eivado de preconceito e ainda longe das concepções atuais.

Toda essa ideologia, permeada pelo dispositivo sexual de poder

disciplinador que nega legitimidade, é encontrada no texto de Adolfo Caminha,

267Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 268: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

268

quando ele induz seu personagem principal a dramas de consciência

carregados de culpa: “como é que se compreendia o amor, o desejo da posse

animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?” (CAMINHA,

1999, p. 29), ou ainda quando narra a primeira relação sexual entre Amaro e

Aleixo: “e consumou-se o delito contra a natureza” (CAMINHA, 1999, p. 38).

Embora o discurso seja rude e pouco encorajador, face às reações e

consequências sociais e legais, a prática homossexual era algo amplamente

difundido nesse período como ações marginalizadas, já que o que não é aceito é

reservado ao silêncio, à obscuridade, ao anonimato.

Em vários lugares públicos, como parques e praças, os homens que

apreciavam relações sexuais com outros homens encontravam-se (GREEN,

2000). “O largo do Rocio foi antigamente célebre por ser o lugar onde à noite

reuniam-se os pederastas passivos à espera de quem os desejasse” (CASTRO,

1943, p. 221-222).

Existiam lugares que eram bastante frequentados por homossexuais,

tais como portas e porões dos teatros, em dias de espetáculos, cafés,

restaurantes, bilhares, botequins, portarias de conventos, escadarias de

igrejas, casas de banho, além dos já citados parques e praças (SOARES,

1992), o que dá uma ideia da ampla rede de relações homossexuais que existia

nesse período.

A situação ficou tão comum, e isso causava estranheza e aversão às

classes médica, jurídica e religiosa, que foi necessário importar prostitutas da

Europa, na intenção de conter as práticas homossexuais, como um mal menor

(SOARES, 1992).

Igualmente difundidas eram as práticas homossexuais na Marinha

brasileira, como relata Adolfo Caminha em sua obra, por experiência, já que ele

próprio serviu na Marinha, de 1885 a 1889: “[...] alguma coisa dentro de si

revoltava-se contra semelhante imoralidade que outros de categoria superior

praticavam quase todas as noites ali mesmo sobre o convés [...]” (CAMINHA,

1999, p. 30).As relações homossexuais na Marinha eram generalizadas e

chamadas de amor de marinheiro. Essa relação “não se dava entre iguais,

envolvia relação de hierarquia funcional, hierarquia de idade, hierarquia de

experiência”, apesar de serem consideradas falta grave e punidas com

chibatadas (CARVALHO, 1995, p. 79-80).

Além da Marinha, no Exército as práticas homossexuais também eram

muito difundidas (SOARES, 1992). Embora tais práticas acontecessem mais

frequentemente em comunidades fechadas, como Exército, Marinha,

Page 269: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

conventos e colégios internos, em função do distanciamento social e da

reclusão de pessoas do mesmo sexo, sua ocorrência não está circunscrita a

esses ambientes. “[...] a prática da sodomia, ou do 'uranismo', também era

desenvolvida em ambientes refinados e intelectuais, como o corpo diplomático,

o magistério, o alto funcionalismo e o meio dos literatos e poetas [...]”

(SOARES, 1992, p. 76).

De qualquer forma, independentemente de sua origem e

circunstância, a homossexualidade era sempre vista com horror e entendida

como patologia e desvio, o que conforma com a visão heteronormativa da

sociedade, não havendo espaço para outra forma de vida.

A ordem heteronormativa da sociedade brasileira

As sociedades de todos os tempos foram organizadas a partir das

instituições familiares. É na família que a sociedade se perpetua. “A família é

entidade sociológica que independe do tempo e do espaço” (VENOSA, 2003,

p. 37). A família é o elemento que faz a mediação entre o indivíduo e sociedade,

comprometendo-se com a manutenção da ordem social (MELLO, 2005). A

família, entendida com instituição, “é o entrelaçamento de práticas sociais

articuladas em duradouro complexo de relações, costumes, sentimentos e

através do qual se exercem controles sociais e se satisfazem necessidades e

desejos das pessoas conviventes [...] Ela não se forma de repente. É antes

resultado de longo processo de acumulação de experiências e materiais”

(LIMA, 1983, p. 15).

Na antiguidade, a família se unia por vínculos mais poderosos que os

de nascimento, sendo muito mais um núcleo religioso do que uma

associação natural entre pessoas com o intuito comum de convivência

(COULANGES, 1999).

Durante a maior parte da história humana, a família não se constituiu

por vínculos de afeto. Esses vínculos diziam respeito à religião, às leis e à

propriedade econômica (VENOSA, 2003). É dessa forma que se instituiu,

desde tempos imemoriais, o casamento. “Sociologicamente falando,

casamento é o ato pelo qual homem e mulher se associam para fundar a

família, segundo o costume e a lei” (LIMA, 1983, p. 17). A instituição do

casamento assenta sua legitimidade no plano jurídico ao disciplinar os ritos

necessários para a sua validação social.

A partir do século XV até o XVIII, desenvolveu-se uma nova forma de

sociabilidade familiar, dando origem ao sentimento de família (ARIÈS, 1981),

269Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 270: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

270

que formou a família nuclear burguesa. Foi nesse momento histórico que se deu

a construção da homossexualidade como categoria sociopsicológica e do

homossexual como identidade médico-psiquiátrica (MELLO, 2005, p. 42-43).

Interessada na reprodução crescente da força de trabalho e

no aumento do lucro, a ordem burguesa procurou organizar

seu sistema sobre a aliança monogâmica e heterossexual,

sobre as grandes famílias e sobre as relações de dependência

entre as figuras familiares (QUEIROZ, 1992, p. 39).

Com esse intuito, foram se instaurando papéis sexuais bem

delimitados: masculinidade e feminilidade, com suas respectivas funções e

identificações em paternidade e maternidade. Nessa sociedade, não havia

lugar para os que dessa norma se desviassem. A heterossexualidade se instalou

como norma, como padrão de comportamento e de julgamento.

Assim, “a heteronormatividade expressa as expectativas, as

demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da

heterossexualidade como natural, portanto, fundamento da sociedade”

(MISKOLCI, 2010b, p. 5). É a naturalização de uma face do comportamento

humano, como se somente ela existisse. Elimina ou, pelo menos, cerceia,

persegue e sufoca todas as demais.

Por heteronormatividade entendemos aquelas instituições,

estruturas de compreensão e orientações práticas que não

apenas fazem com que a heterossexualidade pareça

coerente – ou seja, organizada como sexualidade – mas

também que seja privilegiada. Sua ocorrência é sempre

provisional e seu privilégio pode adotar várias formas (que

às vezes são contraditórias): passa desapercebida como

linguagem básica. Sobre aspectos sociais e pessoais; é

percebida como um estado natural; também se projeta

como um objetivo ideal ou moral (BERLANT; WARNER

apud MISKOLCI, 2010b, p. 5).

Isso equivale a dizer que a sociedade se organizou a partir da

heterossexualidade como postura moralmente correta, mais próxima das

manifestações da natureza. Essa naturalidade privilegia os desse grupo em

detrimento dos demais grupos, que são percebidos como anomalias ou

degenerados, desviantes e perversos.

Com isso, a materialidade do corpo determina o papel social que

aquele indivíduo deve desempenhar. Do menino, espera-se que desenvolva

hábitos e comportamentos masculinos e, da menina, hábitos e

comportamentos femininos. Qualquer desvio desse padrão é logo entendido

Page 271: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

como patologia, pela simples oposição ou contraposição, já que “toda doença

tem uma função normal correspondente da qual ela é apenas a expressão

perturbada, exagerada, diminuída ou anulada” (CANGUILHEM, 2010, p. 35).

O resultado desse posicionamento social é a compreensão dos padrões

de comportamento sexual a partir de uma heterossexualidade compulsória. “A

heterossexualidade compulsória é instalada no gênero através da produção de

tabus contra a homossexualidade, resultando numa falsa coerência de gêneros

aparentemente estáveis vinculados aos sexos biológicos apropriados”

(SPARGO, 2006, p. 50). Ou seja, tem por objetivo “formar a todos para serem

heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente

coerente, superior e 'natural' da heterossexualidade” (MISKOLCI, 2010b, p. 6).

É nesse contexto que a homossexualidade assume papel marginal no

universo das sexualidades. Como tal, será representada em todos os segmentos

da atividade humana, especialmente na literatura, que sempre retratou os

dramas humanos por óptica privilegiada.

A literatura como fonte histórica

A literatura pode ser entendida como uma espécie de consciência

social, mantendo estreitas ligações entre obra, autor e sociedade da qual se

origina (CORONEL, 2008), tendo como função, além de entreter, divertir e

informar, ser porta-voz daqueles segmentos que nem sempre são lembrados

pelos meios oficiais.

Ezra Pound (1977, p. 32) define literatura como “linguagem

carregada de significado”. Esse significado se expõe quando as personagens

ganham espaço e voz para expressar sentimentos, os quais de outra forma

estariam mudos aos ouvidos sociais. É assim que Amaro pode expressar seus

sentimentos em alguns trechos da obra, como: quando, após o sexo com

Aleixo, pensa que só “agora compreendia nitidamente que só no homem, no

próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurou nas

mulheres” (CAMINHA, 1999, p. 40); ao contemplar seu amado “[...] rugiam

desejos de touro ao pressentir a fêmea [...] todo ele vibrava, demorando-se na

idolatria pagã daquela nudez sensual como um fetiche diante de um símbolo de

ouro ou como um artista diante duma obra-prima. Ignorante e grosseiro, sentia-

se, contudo, abalado até os nervos mais recônditos [...]” (CAMINHA, 1999, p.

49); ao refletir sobre seu sentimento: “sua amizade ao grumete já não era

lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento calmo, numa afeição comum,

271Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

Page 272: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

272

sem estas febris nem zelos de amante apaixonado” (CAMINHA, 1999, p. 51).

É o humano se fazendo presente por meio da literatura.

Várias são as concepções e interpretações desse vasto universo da

ficção. “É próprio da literatura a capacidade de atingir territórios inconfessáveis

e sombrios da experiência humana, representando-os e recriando-os na

matéria palpável da linguagem” (BULHÕES, 2003, p. 11), criando e recriando

imaginariamente a realidade palpável da sociedade.

A literatura é um campo privilegiado para se acessar um verdadeiro

arquivo sobre questões polêmicas, especialmente as referentes ao universo da

vida privada (MISKOLCI, 2009, p. 548). “É exatamente por dar forma de uma

maneira muito peculiar a questões que provêm da conjuntura maior na qual se

insere, que a obra literária finca suas raízes no solo da História” (CORONEL,

2008, p. 2).

Com isso, os Estudos Culturais, enquanto afeitos às “formas históricas

da consciência ou da subjetividade” (JOHNSON, 1999, p. 25), valorizaram a

pesquisa histórica em literatura, entendendo que é possível reconhecer e

construir um arquivo internamente estruturado a partir da literatura, que retrata

e é parte de certas experiências históricas. A partir desse universo privilegiado,

é possível a reconstituição de histórias silenciadas (ou história dos oprimidos),

como as de mulheres, negros, homossexuais etc. (MISKOLCI, 2009).

Joan W. Scott (1998, p. 297-298) faz uma critica à história dos

oprimidos ao mudar a perspectiva para privilegiar as experiências que criaram

os sujeitos silenciados/oprimidos, construindo a história da diferença,

entendida como “a história da designação do outro, da atribuição de

características que distinguem categorias de pessoas a partir de uma norma

presumida”, ou seja, pela heteronormatividade, excluindo todos aqueles

considerados desviantes.

Respondendo a esse padrão social da época, a literatura de orientação

naturalista cumpriu a função de dissecar cirurgicamente hábitos, costumes e

práticas sociais consideradas desviantes, reforçando as diferenças enquanto

patologias sociais.

O naturalismo foi uma escola literária, de cunho científico e

racionalista, que se preocupava em difundir as teorias deterministas e

evolucionistas.

As teorias deterministas – formuladas a partir da obra de Hippolyte

Taine – preocuparam-se em estudar as causas que orientavam os fatos, físicos

Page 273: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ou morais, entendendo como causas: a raça, o meio e o momento (QUEIROZ,

1992). “Para os naturalistas (e Adolfo Caminha foi um deles), o homem é um

animal cujo destino é determinado pela hereditariedade, pelo efeito de seu

ambiente e pelas pressões do momento” (CAMPEDELLI, 1999, p. 3).

As teorias evolucionistas tiveram como seu principal divulgador

Herbert Spencer, que defendia a livre concorrência e a competição como forma

de contribuir para a evolução e o aperfeiçoamento da ordem social (QUEIROZ,

1992, p. 63).

A partir dessa formulação, as “patologias sociais” foram

assimiladas aos discursos médico, jurídico e literário,

arrebanhando os vários segmentos tidos como “desviantes”

(prostitutas, neuróticos, libertinos, homossexuais,

histéricas, loucos etc.) e tentando enquadrá-los em

modelos passíveis de manipulação e controle (QUEIROZ,

1992, p. 64).

Retratados pela ótica naturalista, que possui como característica

básica expor objetivamente a realidade social tal qual ela se apresenta, os

escritos naturalistas buscaram vínculo entre as práticas médicas e seu enredo,

filtrando a realidade por seu ponto de vista higienista (QUEIROZ, 1992).

A obra Bom-Crioulo (CAMINHA, 1999) veio à luz em 1895,

retratando de forma bastante realista a relação entre dois marinheiros.

O romance aborda a vida de Amaro, a personagem que dá título à obra,

escravo fugitivo que busca refúgio na Marinha brasileira, quando conhece

Aleixo, jovem e delicado grumete, de pele clara e olhos azuis, por quem se

apaixona.

Ao desembarcarem, passam a viver juntos, num relacionamento

sexual livre e desinibido. Porém, a história termina em tragédia, com Amaro

matando seu amante num acesso de ódio passional, após intensa tortura

psicológica, fruto de ciúme doentio e descontrolado que evidencia a desmedida

humana.

Trata-se de uma das primeiras obras a tratar explicitamente da

homossexualidade. “Além disso, é notável como Caminha descreve o

homoerotismo com uma ousada franqueza” (GREEN, 2000, p. 73).

O romance não é uma obra simples; envolve uma complexidade de

elementos, tais como raça, sexualidade, concepções sociais, organização e

concepções políticas no período de transição entre o Império e a República,

273Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

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momento de grandes transformações sociais. “Quando Caminha escreveu Bom-

Crioulo, haviam transcorrido apenas sete anos desde que fora abolida a

escravidão no Brasil, em 1888, e seis desde que os líderes militares depuseram a

monarquia e estabeleceram um governo republicano” (GREEN, 2000, p. 73-74).

Com tantas mudanças sociais acontecendo, a própria sociedade se

torna palco para a emergência de novas formas de vida e sexualidades, para

que vozes silenciadas se façam presentes, ainda que contrariando os cânones.

Desde o seu surgimento, “houve quem enxergasse em Bom-Crioulo

um libelo a favor da causa homossexual. Houve quem visse o contrário”. Os

entendimentos variam, porque as análises sempre partem de pressupostos

pessoais e diferenciados. “Ora, o narrador nem defende nem condena. Antes,

mantém-se naquela posição de frieza tão característica da estética naturalista

[...]” (CAMPEDELLI, 1999, p. 5).

A obra dá voz a personagens que, de outro modo, somente

apareceriam nas crônicas policial, jurídica e médica. Apesar de se evidenciar

essas vozes, ainda é a voz do oprimido, do indivíduo que é sacrificado e

condenado a uma vida de renúncia e marginalidade, de ausência de liberdade,

que “deriva da circunscrição da homossexualidade a espaços físicos de

decadência, ruína e mistério” (MENDES, 2010, p. 59).

Fica evidente, na obra, que “é pela anomalia que o ser humano se

destaca do todo formado pelos homens e pela vida. É ela que nos revela o sentido

de uma maneira de ser inteiramente 'singular'” (CANGUILHEM, 2010, p. 79).

Como evidenciou Leonardo Mendes, a narrativa gótica da obra é uma

estratégia de ataque à homossexualidade: “é justamente o gótico que, ao

desestabilizar o naturalismo, o cientificismo e o positivismo típicos da literatura

do período, permite que se leia o romance como uma narrativa fundadora da

literatura gay brasileira” (MENDES, 2010, p. 68).

É uma voz que surge, em meio a tantas dissonâncias, para dizer que

existe, mesmo quando essa existência é incômoda e marginalizada.

Conclusão

Bom-Crioulo chocou a sociedade da época pela temática

(homossexualidade) e pela forma crua como as cenas são retratadas.

As relações afetivas e sexuais das duas personagens principais são

apresentadas sem meias-palavras. Nada fica subentendido ou velado, o que,

pelo visto, era a intenção do autor.

274

Page 275: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Os tempos são outros, já é possível dar voz a personagens gays,

fazendo-os falar de suas dores, angústias e confusões, mostrando seu lado

humano. Contudo, a sociedade ainda não está preparada para a aceitação de

uma igualdade que será pleiteada no futuro por outras gerações de

homossexuais, pautado pela premissa dos direitos humanos.

No tempo do romance, “a literatura médica se encarregava de associar

a homossexualidade à loucura e ao crime” (MENDES, 2000, p. 171), sendo

esse o destino reservado às personagens.

275Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279

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280

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13

De vigilias y sueños: los dibujos eróticos de Helga Montalván

Vigils and dreams: the erotic drawings of Helga Montalván

Francisco Zaragoza ZaldívarProfessor de Literatura Espanhola e Hispano-americana da UFRN

[email protected]

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282

Resumen

Este ensayo analiza los dibujos eróticos de la serie El sueño de la artista plástica

cubana Helga Montalván Díaz y relaciona su práctica como creadora con su

labor como curadora y como crítica de arte en el contexto nacional cubano.

Palabras clave: Helga Montalván Díaz. Dibujos eróticos. Artes plásticas. Cuba

Abstract

The erotic drawings of the Cuban painter Helga Montalván Díaz are analyzed in

this essay in order to establish their relationship with her work as critic.

Keywords: Helga Montalván Díaz. Erotic drawings. Cuban arts.

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La obra plástica de Helga Montalván causa una sorpresa parecida a la

que nos ocasionan aquellas hijas tímidas que se demoran en hablar y un buen

día nos dejan atónitos por la inesperada elocuencia y complejidad de sus frases.

Más conocida en el medio artístico cubano por su labor como curadora

y como crítica, Helga Montalván aporta con su trabajo como dibujante una

nueva evidencia en contra de la inveterada suspicacia de los creadores contra

los críticos. Huelga decir que siempre ha sido discutible el desdén de los

primeros por aquellos a quienes consideran los benjamines de la familia,

dedicados a esa supuesta labor secundaria que sería la valoración del trabajo

ajeno. Los cuadernos de Leonardo da Vinci, tanto como los postulados teóricos

de Kandinsky o de Gropius, revelan que en muchos artistas de primera talla se

unieron desde el comienzo el esteta, el crítico y el creador. El sensible Oscar

Wilde, a un tiempo crítico y cuentista, llegó a hacer de esto una tesis en El

crítico como artista.

Lo cierto, al menos en el caso de la Montalván, es que la calidad y la

complejidad de su proyecto artístico emula con, y hasta aventaja, a la de varios

de los artistas sobre los que ella misma se ocupa en sus ensayos, palabras de

catálogos, reseñas de exposiciones y artículos.

Que conste que la producción plástica de Helga Montalván es todavía

escasa: pero la escasez es compensada con creces por la agudeza y la

singularidad de las problemáticas que moviliza y de las técnicas a las que acude.

Los dibujos de la serie El sueño ilustran de forma diáfana tales

problemáticas. Se trata de varias piezas de formato pequeño, realizadas con

lápiz de acuarela sobre cartulina. Algunas aluden directamente al conocido

cuadro El sueño del pintor francés Gustave Courbet. Otras se inscriben en la ya

larga tradición del desnudo femenino y de la figura de la mujer yacente.

Como en la obra de Courbet, en todas estas piezas de Helga está

presente el tema del sueño erótico vivido por personajes femeninos. También

comparten con el cuadro del francés el tratamiento de subtemas de carácter

relativamente prohibido, como el homoerotismo y la masturbación en la mujer,

así como la ambigüedad en el abordaje de la situación representada.

Sin embargo, por la angulosidad y la dureza de ciertos trazos, el

peculiar tratamiento del color y de las luces, por los volúmenes con los que se

conforman los cuerpos, así como por la presencia de ciertos motivos formales

recurrentes en toda la serie – por ejemplo, la profusión de círculos concéntricos

sobre un fondo azul o dorado – los dibujos de Helga se inscriben en la estética

de las vanguardias artísticas del siglo XX.

283Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

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Es evidente en varios el homenaje a Gustav Klimt, a través de la

referencia a la lluvia dorada en el cuadro en que Danae realiza la cópula con

Zeus. Sabemos que más que el mito clásico, esa lluvia de oro refiere la

experiencia del orgasmo. Es evidente también la cita, acaso con intención

irónica, de los modos de trabajar los colores acuñados por el Expresionismo.

Mario Vargas Llosa, a propósito de Flaubert, dijo alguna vez que la

novela era un género de carácter amoral. En realidad podríamos decir lo mismo

de una parte esencial del acervo de obras hoy consideradas canónicas en las

más variadas manifestaciones artísticas de la cultura judeocristiana. En su

trabajo como crítica y curadora, así como en los dibujos de la serie El sueño,

Helga Montalván revela un interés sostenido por ciertas propuestas artísticas

que versan sobre temas de dudosa moralidad.

Algo lógico, dada su condición de graduada de la carrera de Historia

del Arte, es el diálogo que establece con la tradición plástica universal en todo lo

que concierne al tratamiento de estos temas. Pero, para no desdecir de la

importancia que Raymond Williams atribuye en Cultura y sociedad a los grupos

y formaciones intelectuales en la configuración de la obra de los creadores

284

Helga Montalván, De la serie Sueños obra 2, Serie Sueños, (2009)

Page 285: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

artísticos, Helga Montalván dialoga al mismo tiempo con la producción de los

artistas de Matanzas y de la isla, sus coterráneos.

Es así, por ejemplo, que con frecuencia se detiene en el examen de

obras de artistas del ámbito nacional que postulan la transgresión de los

cánones políticos vigentes en el contexto en el que Helga se desempeña.

También, aunque con menos frecuencia, repara en la transgresión de los

cánones que orientan el comportamiento sexual. De ello dan fe algunos de sus

ensayos sobre la producción de Rolando Estévez, de Abigaíl González, de

Sheyla Castellanos y de Carlos José García reunidos en el libro Las apariencias

y el límite.

Su labor como crítica, sin embargo, no se restringe tan solo a una

indagación y a una caracterización del quehacer ajeno. También le permite

posicionar, de modo más o menos subrepticio, su propio proyecto creador. Cada

uno de los artistas antes mencionados representa tomas de posición en el

campo artístico cubano y matancero con las que Helga se identifica en parte, y

de las que disiente también en parte, inventándose una posición propia que

capitaliza lo mejor de las asunciones de sus pares y al mismo tiempo supera

algunas de sus deficiencias conceptuales o formales.

Conviene detenernos sobre este asunto.

Rolando Estévez, “el aro es color violeta, el balde es color de fuego...”

La emblemática contemporánea nos habituó tanto a los códigos de

colores que ya no somos capaces de ver la estricta convencionalidad de las

banderas y de otras enseñas. Que el rojo de la bandera cubana represente la

sangre derramada en las luchas independentistas no es menos arbitrario que

proclamar que es también síntoma de la irascibilidad del temperamento

nacional como consecuencia del clima tórrido o de la prolongada escasez.

Rolando Estévez parece haber descubierto el placer del fundador de

naciones al instituir un código emancipador basado en el color morado. Como

un Miguel Teúrbe Tolón de la liberación sexual, postula que el morado, color

formado por la mezcla del azul y el rojo, es tan válido como los dos anteriores.

Un color surgido de la alteridad, de colores otros: un sexo alternativo.

(Honestamente, estoy convencido de que una teoría del rosadito sería

comprendida con mucha más rapidez por su público, esté su público de

acuerdo o no con él).

Lo curioso de Estévez, sin embargo, es el empaque y la gravedad del

tono de su proclama. Nunca he entendido que algo tan divertido como la

285Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 286: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

libertad haya sido tan poco asociado en la tradición intelectual cubana con lo

cómico y lo festivo (no nos llamemos a engaño, la libertad podrá ser gratificante

y divertida, pero conquistarla, como nos recuerda Maceo, cuesta caro y exige

abrumadoras responsabilidades).

En un reciente performance, el artista oficia como maestro de

ceremonias decimonónico. Con gestos lentos y parsimoniosos, como en un

ritual iniciático, cubre los cuerpos desnudos de dos modelos – de sexo

masculino y femenino respectivamente – de tinta azul y roja. Luego los conduce

hacia una pared forrada de un material al que la tinta puede adherirse. Como

tipos móviles vivientes, nuestro Estévez Gutenberg proyecta a los modelos

contra el soporte elegido, y acuña, imprime, la tercera posibilidad: alegorías

moradas o violetas que remedan la forma humana, que recuerdan vagamente

al hermafrodita platónico o al más terrenal hermafrodita del Satiricón de Fellini.

Por si la sucesión de acciones no fuera suficientemente explícita, el

autor/actor enuncia un texto de tipo ilustrativo en el que intenta orientar la

interpretación que de lo visto hagan sus receptores.

Con la devoción de una amiga, Helga Montalván justifica, en un ensayo

dedicado a Estévez, esta disonancia entre fines y medios, entre intención

discursiva y materiales artísticos. Estévez, nos dice, sin dejar de ser

contemporáneo, es a un tiempo renacentista y barroco: procede de la escuela

del diseño y del teatro, de la cultura gremial.

Inferimos que en Estévez se prolonga esa mentalidad, esa forma del

imaginario medieval, que reproduce las jerarquías feudales en las relaciones

entre aprendiz y maestro; una mentalidad que aún no conoce la total autonomía

del campo artístico con base en las anónimas sanciones del mercado de arte;

que tiene que vérselas con el gusto y los intereses de poderosos mecenas, pues

su propia existencia solo es posible a través de sus encargos, por lo que acaba

reproduciendo sus puntos de vista monológicos y sus expectativas señoriales.

No culpemos a Estévez por ostentar atributos que no le son exclusivos.

En la cultura cubana, José Lezama Lima encarna mejor que nadie esta actitud a

un tiempo irreverente y señorial. Lezama hizo lo imposible por conciliar

catolicismo y homosexualidad, y aún hoy su tentativa escandalizaría a la Iglesia

Católica. Creo que ningún homosexual contemporáneo acudiría al

neoplatonismo de las tesis lezamianas en Paradiso para reivindicar el derecho a

vivir su sexualidad como le dé la gana: se ha ido aprendiendo que no es

necesario justificarse para ser lo que se es.

Sin embargo, el neoplatonismo de Lezama, y de hecho todo su sistema

poético, es coherente con las formas artística por las que optó. Paradiso y

286

Page 287: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Oppiano Licario reproducen la estructura tradicional de las novelas de

aprendizaje y de tesis, y entre otras cosas, ambas asimilan de la novela

contemporánea ciertos procedimientos propios de los géneros poéticos

vanguardistas importados a la prosa, con el fin de acentuar la expresividad del

texto, así como una ingente propensión a la autorreferencia, a la autotelia.

En cualquier caso, lo que representa Oppiano Licario en cuanto

personaje para José Cemí, es en lo que Lezama se ha acabado convirtiendo

para muchos intelectuales de nuestra patria: un maestro. (Parece que a Lezama

le gustaba ese rol. Un maestro cubano menos ingenuo, ya da igual si más o

menos culpable que Lezama, se cuidaría de anunciar por ahí su profesión. Pues

donde hay maestros, llueven trompetillas).

A nivel local, en la ciudad de Matanzas, no hay dudas de que el maestro

es Estévez. El maestro de ceremonias...

En efecto, toda una zona de la obra plástica de Estévez está investida

de ese halo ritual, del aura, propia de los graves ceremoniales, sean estos

ceremoniales asambleas partidistas u oficios religiosos.

Helga Montalván, una vez más con la condescendencia que solo se

reserva a los amigos, insiste en que Estévez amaga un gesto contemporáneo al

realizar sus obras usando materiales perecederos como papel, cartulina,

vegetales, cabellos, fibras. Algo que suena a arte matérico, a material art (no sé

por qué, pero pienso en Madonna). Omite decir, sin embargo, que la inmensa

mayoría de estas obras peca de un trascendentalismo majadero. Todo en

Estévez recuerda a una madre que nos instruye y amonesta... regaños

dulzones, reproches que toleramos sonrientes. Estévez sabrá que los

materiales que usa pronto serán polvo. No importa: “polvo serán, mas polvo

enamorado”.

No alimenta menos nuestras reservas la visible recurrencia de ciertos

motivos patriarcales en la obra plástica del consagrado artista local. El yarey de

los sombreros, el humo del tabaco, el mimbre de los sillones... No es para

menos. La raíz de la cultura renacentista y barroca de la que Estévez se nutre

está en la antigüedad clásica, en el pasado griego. Pueblos patriarcales, donde

los roles femeninos se dividían en los de esposa y de esclava, y donde solo las

hetairas llegaban a jugar un papel similar al del amigo, único par real. El

gineceo para las mujeres, y ya está bien... En el fondo, un puñado de pueblitos

misóginos, como cualquiera de nuestros pueblos de campo.

Si queremos comprender el por qué de la persistencia, en pleno siglo

XXI, de esa tan peculiar vocación de maestro, de esa proyección

287Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 288: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

cuasipedagógica en un artista plástico, tenemos que considerar el asunto

dentro del marco teórico de la historia de las mentalidades. Larga duración...

En Estévez, tanto como antaño en Lezama, un graduado de la carrera de

Derecho, vemos otro representante de esa figura peculiar de la cultura

latinoamericana que Ángel Rama describe en La ciudad letrada: el letrado.

Este tipo social, que en los albores de la sociedad moderna nace en el

seno de la nobleza de Estado, sigue vivo en nuestras coordenadas culturales.

Fueron secretarios y consejeros de Reyes, como Quevedo; juristas y abogados;

científicos, maestros y preceptores; pintores académicos, músicos, poetas

cortesanos como Sor Juana Inés de la Cruz. Sin ser necesariamente miembros

legítimos ni prominentes del campo del poder, se diferenciaban de las grandes

masas dominadas de indios evangelizados, de negros esclavos y de criollos

pobres de ciudades y campos, por dedicarse en buena medida o exclusivamente

a actividades intelectuales. El trabajo manual, el sudor, la vida servil, para los

otros. El ocio, el crear y el pensar, es cosa de patricios y nobles. (No se infiera de

lo que digo que el autor de estas líneas siente alguna preferencia particular por el

nada bucólico marabú o por la grácil caña de azúcar).

Sea como sea, el arte contemporáneo encontró otras formas y medios

para expresar las mismas ideas de emancipación y de aceptación de la

diversidad de preferencias sexuales que defiende Estévez en parte de su obra

actual. Estas formas más bien subvierten las figuras de autoridad patriarcal y

sus graves ceremoniales, sea mediante su negación, sea mediante su parodia,

cuando no se dan, simplemente, el derecho a representar sin patetismo lo que

hasta no hace mucho estaba relegado a los márgenes del discurso artístico y de

la vida social.

Basta recordar dos películas para entender lo que digo. Una es una 1producción de los años setenta, The Rocky Horror Picture Show , que aún nos

fascina por todo su humor glam, su música y la maquillada perversión de sus

personajes, entre los que sobresale, joven y bella, la actriz Susan Sarandon. Otra 2es Las aventuras de Priscilla, reina del desierto . Varias metáforas zoológicas en

las que insólitos reptiles australianos se yuxtaponen a las alegres drag queens

protagónicas, refuerzan la tesis esencial de la película: hay de todo en la viña del

señor, y hasta las más raras especies tienen derecho a la existencia.

288

1 Título de la película: The Rocky Horror Picture Show. Año: 1975. Dirección: Jim Sharman. País: Reino Unido/Estados Unidos. Duración: 100 minutos. Género: Comedia musical.2 Título de la película: Las aventuras de Priscilla, reina del desierto. Año: 1994. Dirección: Stephan Elliott. País: Australia. Duración: 104 minutos. Género: Comedia.

Page 289: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Carlos José García: el arte de ser Loscar Cejo o por una cultura de los

anagramas visuales

En el contexto abordado, que es en el que Helga Montalván se

proyecta, es precisamente Carlos José García quien lleva a cabo una inversión

similar a la que practican las películas arriba citadas.

Dada su formación como diseñador gráfico, y su obvia familiaridad con

el discurso visual de los media – revistas, historietas, carteles, sitios web,

vallas, embalajes, video y cine – Carlos maneja con eficacia incomparable los

motivos de los que el pop art se apropió hace ya medio siglo.

Los colores de sus trabajos son llamativos, estridentes, como los de las

portadas de las revistas de masas. Los tipos y la organización de los tipos en el

espacio visual de sus obras remiten directamente al uso del texto con fines

expresivos en los vehículos impresos de amplia circulación. Vehículos que

pretenden agradar, complacer a públicos amplios, que tienen como misión

promover la venta y estimular el consumo.

Susan Sontag sostiene que lo camp, claramente relacionado con el

pop, es estridencia y mal gusto deliberado, en otras palabras, que tiene una

vocación anticlásica, pero no añade que se explica fundamentalmente en un

contexto urbano, sobre todo en las grandes urbes donde conviven heterogéneas

multitudes: inmigrantes internos y externos, gente de los más variados estratos

socioeconómicos, razas y preferencias sexuales. Umberto Eco la completa en

su indagación sobre el kitsch, y señala la relación entre lo camp y la cultura de

masas, que gana carta de existencia en el marco de la sociedad urbana

contemporánea. El fácil efecto emocional del kitsch tiene para Eco una

correlación más o menos clara con la vocación comercial de los medios, que,

como sabemos, solo se explica en el contexto de la industria publicitaria. (Eco,

la verdad, no hace más que invertir el signo de las aversiones de Adorno con

respecto a la industria cultural).

Algunas obras de Carlos José García consisten en autorretratos

sonrientes en carátulas de Playboys imposibles. Carátulas que lo subvierten

todo. Subvierten el discurso de la pornografía de masas, que resalta la belleza

femenina y relega a los márgenes a transexuales y travestís; carátulas que

parodian de paso, como deformación y caricatura, lo que ya era en sí

hiperbólica imitación: la hipóstasis de los atributos de la femineidad que

caracteriza a las drag queens.

Nada más lejos de la intención de Carlos, por supuesto, que reivindicar

a olvidadas Priscillas. (Que lo hagan ellas, qué diablos. Sabemos

perfectamente que Carlos se encuadra en lo que solemos llamar de macho

289Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 290: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

cubano). Helga nos revela que el propósito de Carlos José García es otro:

sencillamente, jugar.

Con la devoción de una novia, la crítica reconoce, y pone en las alturas,

tal intención discursiva, así como los procedimientos mediante los cuales el

artista cardenense realiza sus objetivos. Se trata, una vez más, del arte en su

dimensión lúdica.

Helga la crítica echa mano a Umberto Eco para legitimar las prácticas

de Carlos, en particular al Umberto Eco de El péndulo de Foucault, aunque creo

que igual habría podido acudir al Henri Bergson de La risa o al Johan Huizinga

de Homo ludens. En mi modesta opinión, el Umberto Eco de El nombre de la

rosa hubiera sido más pertinente, y convincente, por todo lo que presupone en

la novela el segundo volumen aristotélico de La poética, dedicado al estudio de

la comedia, volumen que echa al fuego el áspero personaje de Jorge de Burgos.

(No sé qué opinan ustedes, pero yo sospecho ya que a Helga Montalván le

encanta el jueguito).

En honor a la verdad, creo que no hace falta ir tan lejos

(concretamente, a Italia) para comprender a Carlos José. Apuesto a que él

mismo aceptaría que no se dedica a otra cosa que a reiterar el viejo arte cubano

del choteo. Y nada de remitirnos ahora a Mañach o a Fernando Ortiz para

entender el concepto. Cualquier cubano de a pie sabe a qué nos referimos.

Sin temor a exagerar (él, no yo; sé que no exagero), Carlos José García

eleva la trompetilla a método artístico. Lanza tizas contra la pizarra profesoral,

convencido (con razón) de que alguna niñita abúlica o insegura acabará por

reírle la gracia. Después de todo, tenemos que reconocer que no hay demasiada

distancia entre el medio artístico cubano y una escuelita municipal. Y mucho

menos cuando ese medio es la municipalidad matancera.

En Las reglas del arte, Pierre Bourdieu insinúa que la especularidad, la

intertextualidad y la autorreflexividad propias del arte contemporáneo son en

buena medida el resultado de la emergencia y de la formación de un campo

artístico e intelectual autónomo. Campo social con leyes propias, con reglas

tácitas que conforman una compleja doxa. Solo el que sea capaz de recordar

sus comienzos en la farándula, podrá evocar el tiempo, los sobresaltos y el

esfuerzo que le toma a un individuo asimilarse a este campo, reconocer los

santos y señas de cualquiera de sus múltiples grupos.

En la escuelita primaria municipal sucede más o menos lo mismo. Y

algunos descubren que conviene hacerse el chistoso para ganarse la aceptación

de los niños malos, de los pilluelos del aula. Para ser uno más entre ellos. Carlos

José parece recordarlo y ahora lo extrapola al mundo de la farándula: es el niño

290

Page 291: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

malo de las artes plásticas en Cuba, el chistoso supremo. Les tira trompetillas a

las figuras maestras del medio, a los teóricos y artistas consagrados. Se mete

con todo el mundo y no deja títeres con cabeza. Él sabe que no se molestarán: a

fin de cuentas, son sus compañeritos de escuela (de la Escuela Vocacional o de

la Escuela de Diseño). Esos compañeritos que hoy encuentra en galerías y cines

como antes nos encontrábamos frente al terreno de pelota o en el parque del

barrio. Nos prestamos o nos robamos los libros, hacemos copias piratas de

discos que luego nos regalamos, nos intercambiamos las novias. (Nada que

objetar: las poblaciones pequeñas son inevitablemente endogámicas).

Cada día que pasa, Carlos José depura más su método, el de la

trompetilla: cada vez más, sus implicaturas discursivas las comparten menos

personas, unos pocos privilegiados de su ámbito, sus allegados (gente de muy

sonoros nombres, como Loscar Cejo, Annod Narak y Obi Wan). En un camino

que nada teme al solipsismo ni al tedio anagramático, intuyo que Carlos se

inventará una posición única en el campo intelectual y artístico cubano. Él es y

será el único y último representante de tal posición: sus obras, y el sentido de

estas, partirán todas de sí y concluirán en sí mismo. Ole con ole con ole, déjenlo

que baile solo...

Sin embargo, mientras no llegue esa hora, y Carlos nos siga

sometiendo a sus trabajos, tendremos que vérnoslas con un problema: de tanto

jugar, se acaba identificando al objeto artístico, y por carambola a sus

receptores, con un juguete. Creo que a nadie le gusta sentir que lo tratan como a

un juguete. Me atrevería a afirmar que ni siquiera Carlos.

Al final de su Homo ludens, Huizinga se interroga sobre el sentido del

juego, sobre cómo puede librarse el hombre del círculo vicioso del juego, ya que en

la cultura humana todo es susceptible de ser entendido como tal. El notable

erudito se responde de modo religioso, orientándose hacia lo supremo. Yo no le

sugeriría a Carlos una meta tan alta: no debe de ser fácil alcanzar con las tizas una

pizarra colgada en el Paraíso. Quizás Carlos José pueda mirar hacia otra parte: al

frente, a su alrededor, en torno suyo. Va y hasta a su propio interior. ¿Será que no

quiere, o no puede, comunicar lo que ve y siente? ¿Será que no siente?

Yo no le doy vueltas: quizás Carlos José no tenga nada que decir.

Abigaíl González, el sadismo a escala de crepúsculo

Abigaíl González Piña, en cambio, sí parece querer comunicarnos algo.

En varios de sus ensayos sobre este fotógrafo, y con la cuidada

discreción que nos merece alguien con quien hemos tenido un affaire, Helga

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Page 292: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Montalván insiste en separar a este artista de la adscripción efectuada por la

crítica de la obra del mismo al discurso de género y a la problemática de la

violencia contra la mujer. Según ella, las claves para entender una parte de la

obra de Abigaíl habría que buscarlas en la pornografía. Más específicamente, en

su intención de provocar y de escandalizar al público con temas pornográficos, o

de hacerlo cómplice apelando al voyeurismo de todo espectador.

En realidad, la violencia contra la mujer y la pornografía no se excluyen

por fuerza. Solo que la pornografía no suele denunciar esta violencia, sino más

bien refrendarla. Basta con leer a Sade para comprobarlo. De Abigaíl,

precisamente, lo que nos interesa es su inconsciente e inconsistente coqueteo

con el sadismo.

Se recuerda demasiado del Marqués de Sade lo que hoy podríamos

reducir a pornografía o a mero inventario de parafilias – de ellas está llena

Justine – y se olvida aún más la abundancia de parrafadas ético-filosóficas en

sus libros. Dos centurias antes de que se considerara un hecho legítimo, Sade

anticipa el relativismo moral y la anomía que caracterizan al mundo

contemporáneo. Sus curas corruptos y corruptores no se contentan nunca con

saciar sus deseos, sea cual sea el grado de perversión de estos. También

necesitan legitimarlos. Para justificar el placer que les produce el daño que

infligen a sus víctimas, se comparan a las fieras de la Naturaleza. Si Dios le dio

al lobo los instintos asesinos que lo llevan a cazar a los mansos corderos, y

aceptamos con naturalidad este hecho, por qué horrorizarnos entonces ante la

naturaleza de nuestros propios instintos, preguntan – retóricamente – sus

personajes, al tiempo que violan a una adolescente o ponen en práctica el

pecado de la sodomía. No podía esperarse otra cosa de la extensión del

racionalismo ilustrado al campo de la moral.

Ya estamos tan habituados a la sociedad secular que hemos perdido

de vista que el verdadero destinatario de los ataques ideológicos de Sade fue la

Iglesia, y en particular, la moral sexual del Catolicismo. Después de todo, una

institución que demonizó el placer sexual y que proscribió, por ejemplo, el sexo

dorsal, reduciendo las múltiples posibilidades físicas a unas contadas

posiciones, bien que se merecía la virulencia de un Sade. Pero reducir la obra de

Sade al componente pornográfico es cuando menos un anacronismo; el que

cometen deliberadamente muchas de las adaptaciones de su obra a los gustos

del lector contemporáneo. Sade también fue un maestro de la blasfemia, en la

acepción original de esta palabra. Sus páginas están pobladas de iglesias que

se destinan a la celebración de orgías; de esperma de candelabros que se

confunde con el esperma de los frailes; de crucifijos que exploran la cavidad

292

Page 293: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

anal de trémulas muchachitas. Sus violadores no juegan exclusivamente al lobo

y a caperucita: insisten muy a menudo en oficiar misas negras.

Varias de las series fotográficas de Abigaíl, como, por ejemplo,

Hormonalmente tuyo, proclaman de forma errática dos tesis contrarias y al

mismo tiempo complementarias: la orgullosa dominación masculina,

manifiesta como sadismo y como donjuanismo; el terror de Ulises a dejarse

seducir por Circe.

Como el Marqués de Sade, Abigaíl parece combatir la moral sexual

predominante de un país a través de la representación artística de sus prácticas

sexuales, de diversas parafilias, del homoerotismo, etc. Era de esperarse que

algo así pasara en Cuba, si consideramos que somos una nación que ha

politizado dos veces la sexualidad en menos de cincuenta años. Primero como

mecanismo de censura o de bloqueo intelectual, en los años setenta; después

como simulación de libertad, en los últimos quince años.

De cualquier modo, el esfuerzo del fotógrafo entraña mucha futilidad.

En un país donde la cultura portuaria de burdeles y de prostitutas, y la

promiscua cultura del barracón de las plantaciones de caña, siguen vivas y se

aúnan en nuestras ciudades en las palabras bayú y singar, palabras más

frecuentes que nunca en nuestra variante insular del idioma, este era tal vez el

último tema al que debíamos dedicarnos.

Contra todos los pronósticos, las armas de Abigaíl son también

bastante similares a las del Marqués. Digo contra todos los pronósticos, porque

incurrir en los recursos del sadismo como tesis moral en pleno siglo XXI, es

como mínimo un contrasentido. Es pasar por alto que la prolífica industria

pornográfica ha explotado hasta la náusea todas las variantes posibles de la

sexualidad, reduciéndolas a objetos de consumo. Sea lo que sea, nada ofende

ya los valores establecidos, si es que queda aún algún valor establecido, con tal

de que se pueda comprar y vender en una tienda o un quiosco.

Sade apela a la ofensa, al atentado al pudor, mediante la representación

y la exposición de la desnudez femenina y de diversas prácticas sexuales, entre

ellas las homoeróticas, en una época en la que la Iglesia aún dictaba normas de

comportamiento moral y estaba entrelazada al Estado. El mundo de los instintos

que refrenda el Marqués es al mismo tiempo y más bien el mundo del logos, el

ámbito de la razón dominadora de la Ilustración, que hace tabla rasa, a través de

la crítica, de tabúes y prejuicios de todo tipo. Hoy ya nos da lo mismo saber si

estos prejuicios son la virginidad y la castidad femeninas o el temor inmemorial a

los gatos negros y a los vanos de las escaleras.

293Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 294: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

294

Al usar los motivos del sadismo, Abigaíl se queda, tal vez sin saberlo a

ciencia cierta, prácticamente con lo más puro del gesto racional del Marqués: el

gesto dominador.

En la serie Hormonalmente tuyo, una de las modelos se masturba. El

punto de vista del fotógrafo se impone en la foto. Es evidente que la foto es pura

pose. Más que darse placer a sí misma, la modelo parece protegerse de la

mirada fotográfica. Como si intuyera que la voluntad artística del creador podría

o habrá de jugarle alguna vez una mala pasada. La figura femenina se ve

incrustada contra la cama y contra la parte inferior del marco. La mirada voyeur

parece pasarle por arriba, indetenible, como si de hecho ni siquiera le interesara

ese cuerpo desnudo, como si lo único que de verdad le interesara fuera el acto

mismo de someterlo, de tenerlo tendido, rendido, en ese lecho. El derecho a

mirar, el mero desnudarse ajeno, constituyen ya su victoria.

Los muslos alzados como columnas de la modelo, rígidos,

antinaturales – la verdad es que nunca he visto a ninguna masturbarse así –

delatan una tensión entre dos seres, la modelo y su fotógrafo. La figura

femenina todavía se resiste, como esas mujeres indecisas que te dicen que no

quieren, pero en realidad, más temprano que tarde, sí. Para la mirada

fotográfica, sin embargo, los muslos ya no son ni siquiera un obstáculo que

trasponer. Ahora no pasan de un estorbo visual.

De lo que se trata, para el voyeur, es de llegar cuanto antes al final, a la

pared, sin excesivos rodeos. Parece como si la mirada fotográfica quisiera

reducir ese cuerpo a la misma naturaleza objetual de todo lo que le rodea.

Igualarlo a ventiladores, ventanas, mesas de noches, adornos... Le hace una

cama, después la hace cama... La mirada le impone al cuerpo vivo la

deprimente precariedad de su entorno, intenta aniquilarlo. (La verdad es que es

imposible lograrlo: tenemos ante los ojos un cuerpo demasiado bello).

Todo lo que pretende el voyeur es concretar cuanto antes las cosas,

darlas por hechas, finalizarlas: desnudar el cuerpo, acostarlo, abrirle las

piernas, captar el toque de los genitales por la mano. Nos hace ver; nos

restriega en la cara su victoria. Para él, capturar este instante ya equivale a la

posesión, al acto sexual y al propio orgasmo (no importa de quién ni en qué

orden). Reduce todo un proceso a un único acto. Reduce el acto a lo que

constituiría su fin. El fin del acto como fin en sí. Sutilmente, la mirada

fotográfica le está anunciando a la modelo: “ya está, ya terminé contigo, ahora

pasemos a la próxima”.

De hecho, es así como se contempla la serie: vamos a ver la próxima.

Es una sucesión de victorias, el álbum de un Casanova. Si el autor hubiera sido

Page 295: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

más honesto y a la vez más cínico, hubiera podido cambiar el título de la serie a

“hormonalmente tuya”. Porque la figura masculina, el sujeto, no pertenece a

ninguna. Es a él, aparentemente, a quien todas pertenecen. Bellas modelos que

el personaje/fotógrafo nos dice poseer sobre la mesa, en el sofá, en el baño, en

la cama, en la meseta de la cocina, entre los platos sucios del fregadero, sobre

los restos de comida, en toda la vasta geografía de una casa. Una parte de sus

fotos parece hacerse eco de aquel comportamiento, tan propio de los

adolescentes masculinos, en que el orgullo viril se manifiesta como divulgación

de lo que fuera en su momento un evento privado, un acontecimiento íntimo.

Sin embargo, el personaje masculino de la serie nunca nos parece

seguro. Se ve rígido en las fotos, casi hierático, demasiado a la defensiva. Sus

ropas son como una coraza, como si para él desvestirse representara un peligro.

Sabemos que todo seductor le teme a la impredecible y siempre

sospechosa inocencia de caperucita. Teme a terminar como el lobo del cuento.

Es un terror que asimila a Don Juan, a Casanova y a la pobre fiera del relato

infantil. Y después de todo, está más que justificado. El mito de Don Juan, tanto

como el de Casanova, surge en un contexto de relaciones sociales y entre los

sexos sumamente tensas: el contexto de las cortes europeas. Por cada

victorioso Don Juan, hay cientos de pobres diablos convertidos en juguetes de

la veleidad y de la voluntad de las cortesanas. Estos nunca estarán

completamente seguros de poseerlas, no llegarán a saber si en lugar de seducir

fueron en realidad seducidos por ellas en pro de indescifrables propósitos:

ascenso social, protagonismo, compensación psicológica, la satisfacción de un

fugaz deseo, los caprichos de la vanidad de una mujer (nadie es perfecto,

tampoco las mujeres).

En la foto, por ejemplo, en la que una linda modelo (la misma que fingía

masturbarse) está tendida en un sofá y el personaje masculino posa sentado a su

lado, la mirada fotográfica trata de divulgar, por el encuadre, la organización de

los planos y la composición de las figuras –el cuerpo femenino en posición

horizontal, el masculino en la vertical– la hegemonía masculina. Pero pese a

todo el significado de dominio masculino que de modo tan teatral el creador le

impone a la escena, esta (la modelo, también la escena) se le va de las manos.

La vitalidad y la belleza del cuerpo de la mujer, así como el gesto coqueto y la leve

sonrisa, más insinuada que perfilada, remiten inmediatamente a la figura de las

coquetas, de las cortesanas juguetonas, que tan bien representaron Boucher y

Fragonard, y que tanto deben haber aterrorizado a un Casanova. El desenlace

trágico de la novela epistolar de Chordelos de Laclos nos recuerda siempre que ni

un cínico o depravado como Valmont está totalmente a salvo de las malas artes

de una Marquesa de Merteuil.

295Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 296: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

296

Acaso sin proponérselo (pero y eso qué importa), el fotógrafo Abigaíl

González alude y actualiza en esta foto uno de los más remotos terrores

masculinos: el temor de Ulises a que la bella Circe lo convierta en cerdo, como

hizo con tantos hombres. Algo de este terror mítico asoma en la sin dudas más

bella foto de la serie: aquella en la que una modelo femenina expira el humo de

un cigarro, y el aire nebuloso de sus pulmones invade la atmósfera escasamente

iluminada de la habitación. Indiferente a la mirada fotográfica, dueña de su

propio ámbito, esta figura femenina, con una gran trenza que le corre por la

espalda, nos obliga a enfrentarnos a varias imágenes primordiales de la mujer:

la mujer como bruja, con poderes y artes sobrenaturales que escapan al ámbito

y al dominio de la razón; la mujer como pitonisa, lectora de los secretos del

destino; la mujer como sirena, canto arrebatador, encanto, llamado que

destruye a los hombres; la mujer como madre, como tierra fecunda, cuerpo de

toda creación.

No le pidamos peras al olmo. Ni siquiera Abigaíl podría resistirse a

tantos poderes juntos.

Sheyla Castellanos: del encausto a la sangre, yo, la célibe, o por qué (ya) no

quiero quitarme las faldas de la seducción

La pintora Sheyla Castellanos parece estar perfectamente consciente

de las fisuras del discurso artístico de Abigaíl. De sus (ingenuas) perversiones

tanto como de sus terrores.

Helga Montalván, la crítica, con una objetividad que solemos reservar

al trato con nuestros enemigos, nos muestra que en la otra artista matancera la

representación de la mujer como sexo débil, como animal doméstico, no es más

que una sutil y divertida ejercitación del arte de la ironía. Es como si Helga

supiera que Sheyla sabe cuáles son los dones de diosas que a ambas, como

bellas mujeres, les corresponde (...yo sé que tú sabes que yo sé/qué se yo, qué

sé cuanto...)

Sobre el presupuesto de este conocimiento compartido por la pintora y

por su crítica, tácito arsenal nuclear, Helga Montalván señala lo que nadie, a no

ser ella misma, podría ver. Que Sheyla se está mofando en sus dibujos, en

apariencia los más complacientes, del discurso de la dominación masculina.

La burla es perfecta, incluso en aquellos casos escandalosos en que se

realiza una feminización de la figura del hombre abusando de motivos clásicos

ampliamente reconocidos, como sucede en el dibujo de El ángel de Alied. Es

Page 297: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

como cuando te burlas de alguien sin que se dé cuenta, pero dos o tres

cómplices, tus verdaderos destinatarios, sí captan el chiste.

Sheyla – Helga más, mucho más – nos recuerda a Sor Juana. A la Sor

Juana Inés del famoso autorretrato: “este que ves, engaño colorido...” Por

supuesto, recuerdan a Sor Juana no por el contenido del soneto. La monja

jamás habría podido, ni se habría atrevido, y probablemente no habría querido,

exponer su desnudez en público. La recuerdan por la terrible inteligencia; por el

modo sutil en que invierten y desmontan un género. Sor Juana se divirtió con

uno que tenía cierta tradición en su época, el soneto de retrato y de elogio a una

dama. La poetisa mexicana cambió la perspectiva de la voz autoral. Ahora

hablaba una mujer, desmintiendo los halagos masculinos. Se vio a sí misma en

sus versos como polvo, hueso, como nada... cristalinos tópicos barrocos.

Sheyla hace algo similar en El ángel de Alied: sigue la tradición

pictórica del desnudo de la mujer yacente, solo que sustituye el cuerpo

femenino por el cuerpo de un hombre, sin renunciar a la inmensa mayoría de los

motivos de siempre, desde la postura sensual de abandono, entrega o reposo,

hasta los gestos de las manos o la expresión del rostro.

Analizando otro notable dibujo de Sheyla en un ensayo, dibujo titulado

El lecho infinito, Helga señala el parentesco de la figura femenina con la

Madame Recamier de David, aunque haciéndonos notar un detalle

importantísimo: en el dibujo de Sheyla, la mirada, carente de ternura, se desvía

del espectador, se retrae, como si la mujer de salón empezara finalmente a

sentirse fatigada, de vuelta ya de tantas cosas...

Otro de los dibujos de Sheyla, de hecho, hace mucho más explícito

este paulatino cansancio, que deriva en aislamiento: representa una figura

femenina sentada en un sofá, de espaldas, contemplando un cuadro. Helga nos

dice, acertadamente, que el bodegón del cuadro es la pura apariencia

superpuesta a lo que ya es de por sí apariencia. Superficie de significantes

carente ya de sentido: mera decoración. Géneros vacíos, conjuntos de

convenciones sociales y pictóricas que aún ejercen su poder, que acaso

ofuscan, pero que no gozan ya de legitimidad alguna entre los que las

obedecen. Se les hace caso como a un viejo gobierno o a una película tonta de

domingo. En este dibujo, la figura femenina representada por Sheyla es como la

Venus de Velázquez, pero ya sin vocación narcisista. No le hace falta el espejo.

Tal vez sea mejor ver una naturaleza muerta que una naturaleza cansada o

moribunda.

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Helga Montalván, libido y teofanía

Lo que la mirada fotográfica de Abigaíl solo puede captar con

fascinación horrorizada, sorpresa en la que convergen por igual la atracción

sexual y la aversión, Helga Montalván lo recrea con el sosiego y la familiaridad

con que se lleva un lunar junto al ombligo o se prepara el café de todas las

mañanas. Es lógico, pues ella misma es una de esas diosas que las modelos de

Abigaíl refieren.

Si Abigaíl contempla a la mujer como exterioridad, como naturaleza

que la razón sádica debe someter, pugnando por igualarla a los utensilios de la

vida doméstica, Helga instituye en sus dibujos una representación de la mujer

que parte de otra perspectiva: esencialmente, su propia experiencia. No solo su

experiencia personal, aunque hay mucho de confesionalismo en su obra. Me

refiero también a su experiencia como crítica, como estudiosa de la Historia del

Arte y como profesora.

Su exposición de la desnudez femenina y del deseo sexual, manifiesto

tanto en los motivos homoeróticos como en la masturbación, es mucho más

que pornográfica y no tiene nada de sádica. La pornografía se circunscribe al

área de lo sexual, de los instintos, de la mera reiteración mecánica y de la

concreción: su meta es excitarnos y hacernos eyacular... cuanto antes.

Un análisis iconográfico de los dibujos de Helga, sin embargo, revela

inmediatamente muchos más motivos que los estrictamente pornográficos.

Algunos vienen de la tradición clásica y renacentista de la representación del

cuerpo como teofanía. Otros de la pintura erótica del Rococó o de los

movimientos artísticos de fines del XIX e inicios del XX, refuncionalizados por

ella. Otros de la expresión de la experiencia onírica en la pintura de las

vanguardias históricas del siglo XX, en particular del Expresionismo.

El artista Abigaíl, en las fotos de Hormonalmente tuyo, tiende a

inmovilizar a sus modelos, como un violador judoka que juega a reducir a la

víctima a la obediencia; les aplica una llave. Nos fuerza a mirar cómo las

derriba contra el suelo o la cama, las aprieta contra el fregadero, las encierra en

el baño, les pasa victoriosamente por arriba, aplastándolas. El ángulo, el punto

de vista, casi nunca se pone a la altura de las retratadas. Predomina una mirada

de superioridad. La composición de sus interiores abusa de líneas de

estabilidad y de fuerza: las líneas de la cama, las líneas de las mesitas y los

sofás, las líneas arquitectónicas de las paredes. Lo más inestable en sus fotos

suelen ser los cuerpos femeninos: si no están inmovilizados, son cuerpos

desequilibrados; cuerpos ladeados, cuerpos bocabajo, cuerpos acuclillados o

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en caída. Como el cuerpo de la modelo (otra vez la que fingía masturbarse) que

tiene que apoyarse con las dos manos en el piso para no caerse de la cama.

Todo lo que persigue la mirada de Abigaíl con estos desequilibrios es

poner a sus venus púdicas en situaciones en las que peligre el pudor: en la foto

en la que la modelo pende en el borde de la cama, por ejemplo, sin la defensa de

sus manos, las nalgas de la muchachita quedan expuestas al aire, vulnerables.

(Por suerte, como ya vimos, a veces sus modelos triunfan, logran ser algo más

que el objeto de un capricho fotográfico. Es el caso de esa diosa sedente y

fumadora que asume una posición de parto y al mismo tiempo prenatal:

equilibro primitivo y completo, planeta que se pare a sí mismo).

En los dibujos de Helga Montalván, en cambio, todo tiende al

movimiento y a la liberación del cuerpo aprisionado y a la vez prisión. Y más

bien se ignora el concepto de pudor. No se ofende ni se transgrede:

sencillamente, no hay de qué avergonzarse. Ni impudicia ni vergüenza púdica.

En efecto, las curvas de la anatomía, las sábanas ondulantes, las

relaciones de composición que establecen entre sí las figuras femeninas, los

motivos alegóricos o decorativos, los contrastes cromáticos, sugieren

significados de movilidad, nos hacen pensar en el oleaje, las mareas, las

corrientes submarinas, en un vasto mar sin control.

299Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

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Helga Montalván, De la serie Sueños obra 3, Serie Sueños, (2009)

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Y en lugar del placer sádico, en el que el gozo deriva del sometimiento

del cuerpo ajeno, Helga Montalván proclama la emancipación del cuerpo

propio, la satisfacción del deseo a través de la masturbación. No es el placer

como dominio, sino el placer como grito – ¿gemido? – de independencia.

Varios motivos en todas las figuras de la serie refieren claramente este

placer erótico. Las cejas arqueadas, la barbilla inclinada hacia arriba, los ojos

cerrados, los muslos abiertos, la mano cercana al pubis, la exposición del sexo.

Más que los desnudos femeninos de Cranach, Tiziano o Rubens, en los que el

pudor obliga a velar o cubrir la genitalia de la mujer, los dibujos de la Montalván

recuerdan las imágenes patiabiertas de las mujeres de Boucher y Fragonard.

Pero curiosamente, la boca se mantiene cerrada, distanciándose de las

representaciones del éxtasis en la tradición mística en las Artes Plásticas. Es

como si hubiera una voluntad de atenuar la expresión del gozo de los

personajes, de no llevar la representación a los extremos del paroxismo, de

mediar o revestir esa experiencia con los signos de una realidad diferente,

desgajándola de la contingencia del instante, de las vicisitudes de la carne, de

la desesperada agitación y lo efímero.

Uno de esos signos es el dedo índice extendido. Hay una resonancia en

este del gesto de bendición del Cristo Pantocrátor, figura mayestática recurrente

en la iconografía cristiana. Al mismo tiempo, este signo refuncionaliza el motivo

del índice de Dios en La creación de Adán de Miguel Ángel. El dedo capaz de

infundir vida, de dar origen a la especie humana.

La apropiación de dichos motivos por parte de Helga, obviamente, se

aparta de la representación cristiana del cuerpo de la mujer como lugar de

pecado, presente en Miguel Ángel tanto como en los pintores cortesanos del

Rococó francés. En su lugar, sus dibujos proponen el carácter divino del deseo

femenino, su majestad y su triunfo.

Helga diviniza – le da categoría cósmica y religiosa – a la libido y a la

masturbación.

Noli me tangere

Tal intención discursiva se potencia mediante el uso coherente y

conveniente del resto de los elementos pictóricos en las piezas.

En la mayoría de los dibujos, por ejemplo, la composición se basa en el

cruce de líneas diagonales. Los cuerpos yacentes se abren. Codos y rodillas se

prolongan de forma simétrica, como las aspas de un molino.

301Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

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Considerando el conocimiento que la Montalván tiene como

historiadora del arte de la tradición clásica del desnudo, y del predominio en

esta de las posturas corporales casi plenamente horizontales o verticales

(pienso en Giorgione y en Botticelli), así como de la hegemonía del uso de la

perspectiva frontal paralela, llama la atención que en esta serie la composición

se inscriba en una práctica muy socorrida en la pintura religiosa que recrea el

pasaje bíblico de la Resurrección, y en particular del noli me tangere.

Si observamos algunos de los cuadros más destacados de dicha

tradición, como los de Andrea del Sarto y de Correggio, podremos comprobar la

presencia en buena parte de ellos de la composición en diagonal creada por el

conjunto de los cuerpos de María Magdalena y de Cristo.

“No me retengas, no me toques, no me demores”, le dice Cristo a

Magdalena arrodillada. Sintiéndose llamado al cielo, junto al Creador, rumbo a

un destino más alto y trascendente, las palabras y el toque de la mujer en este

instante son una distracción imperdonable.

Cristo encarna aquí el principio masculino de la seriedad, la

responsabilidad, la atención a los asuntos de interés público, aquello que Freud

define como principio de realidad. Nada expresa mejor este principio que la

exaltación del sacrificio, de la vida como calvario y dolor, y que el lugar de

sufrimiento por excelencia: la cruz. La verticalidad de la cruz, su ostentosa

estabilidad, invocando el martirio de la carne.

María Magdalena encarna el principio contrario, el del placer. Es la

pulsión, la emotividad descontrolada; despilfarro de energías, de recursos, de

tiempo. La que retiene y demora, la que distrae. Es la que está más cerca de la

tierra, a ras del suelo, a nivel del horizonte. Es la que convida a acostarse, la que

impide ascender.

Helga parece incorporar, apropiarse con orgullo de esta idea

desestabilizadora; la hace el centro de sus dibujos. Sus personajes femeninos

están echados en la cama, tumbados, entregados al reposo, al sueño, al placer.

Tienen los brazos y las piernas abiertas, o sensualmente cruzadas. Son mujeres

que arden de amor: cruces caídas ellas mismas.

La actitud, sin embargo, no resulta hostil o desafiante, como si los

personajes de la serie no quisieran enmarañarse en las amarguras de una lid.

No sentimos la rudeza de quien agrede por sentirse ofendida. Más bien se nota

un alegre abandono, un cuidar de sí misma que no es totalmente desdeñoso

con el otro, a pesar de la dulce negligencia.

302

Page 303: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Es como si su personaje nos dijera: “¿que no te toque?... muy bien,

pues entonces me toco a mí misma”.

Las apariencias y el límite (de la representación)

Helga Montalván – la crítica – es devota confesa de la obra de Jorge

Luis Borges. De cuentos como “Las ruinas circulares” y “Funes el memorioso”.

No es en lo absoluto casual que algo de las técnicas de representación

borgianas esté presente en sus dibujos.

Borges problematiza la percepción y la representación de la realidad

en relatos como “Las ruinas circulares” y “El sur”, provocando dudas en sus

lectores con respecto al carácter real o imaginario, vivido o soñado, de la

historia que cuenta. Información de gran verosimilitud histórica, estrategias de

caracterización de los personajes que entrecruzan el género ensayístico, la

biografía y el testimonio, y el punto de vista narrativo que se identifica con la

experiencia del protagonista del cuento, etc., estimulan la interpretación de los

textos en clave realista. Sin embargo, algunos datos puntuales, como el

soñador que se descubre soñado en “Las ruinas circulares”, o el imposible

reconocimiento del protagonista Juan Dahlmann poco antes de la riña en el

cuento “El sur”, introducen una contradicción lógica, una suspensión

extraordinaria de las leyes naturales, que está en la raíz del efecto fantástico de

algunas de las obras más elogiadas del escritor argentino.

Si observamos los dibujos de la serie El sueño en su condición de serie

de obras, comprobaremos que también aquí los modos de representación o

mímesis oscilan entre dos extremos: uno que podríamos considerar realista,

clásico, tradicional, y otro de valor opuesto: subjetivo, onírico, idiosincrático.

El punto de vista en el primero de estos dos modos tiende a asimilarse

al de un observador o testigo que tiene la posibilidad de contemplar de modo

objetivo la escena. Es fácil reconocer en los dibujos los elementos propios de la

habitación privada, de la alcoba, en la cultura occidental. Cama, ropa de cama,

almohadones, paredes, persiana. El cuerpo femenino es el protagonista en

todos los casos. Preside la habitación, es su centro, y las múltiples líneas de

fuga que crean la ilusión de profundidad, cuando las hay, se subordinan a la

anatomía humana.

En el segundo modo de representación, al contrario, los motivos

figurativos asociados a la alcoba prácticamente se confunden con elementos

decorativos abstractos, como espirales, círculos concéntricos y rectángulos.

303Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 304: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Estos crean una alternancia de masas y de formas con la que se intenta

equilibrar los contrastes de temperatura dados por los colores.

De cualquier modo, en ambos modos de representación el uso de los

colores es subjetivo e intenso, una cita deliberada de las técnicas del

Expresionismo, como si la dibujante no hubiera querido hacer concesiones ante

los credos clásicos o academicistas relativos al color. Vemos azules y morados

que contrastan con naranjas, rojos y sepias. Amarillos que sirven de base a

manchas doradas y marrón. Tan solo la iluminación y los colores de la piel

humana se rigen por los principios o ideales de verosimilitud típicos de la

pintura clásica.

En dos de los dibujos, por otra parte, el punto de vista está situado

arriba, como si se tratase de una representación en planta, desplazándose de

las formas de encuadre tradicional de la escena en retratos y paisajes, hacia

posiciones que solo el cine y la fotografía contemporáneos han sabido explotar

al máximo.

Esta ambivalencia u oscilación de los modos de representación entre

un extremo realista y otro subjetivo, así como la peculiar preferencia cromática

y el uso de ornamentos o motivos decorativos, dan pie a una profunda

ambigüedad en la interpretación de las obras de la artista matancera.

Es cierto que el propio cuadro de Courbet que inspira las piezas de la

Montalván es de por sí muy ambiguo. Pero en este la ambigüedad deriva de la

incertidumbre con relación al estado de los personajes. ¿Están dormidas estas

mujeres? ¿Sueñan? ¿O están despiertas y fingen dormir? La respuesta que les

demos a estas preguntas incide en el nivel de voluntariedad o de

involuntariedad, de conciencia o inconsciencia, que les podemos atribuir a los

sujetos en la situación representada. Courbet, sin renunciar a las técnicas de la

pintura realista, en particular la perspectiva, el cuidado con el detalle en las

texturas, los colores y la iluminación, puebla el espacio pictórico de elementos

que refuerzan una interpretación hedonista. Joyas dispersas en el lecho, un

florero de perfumadas flores, un frasco de vidrio que acaso contenga un

agradable elíxir. El pintor francés desafía subrepticiamente las convenciones

morales de su tiempo al representar una escena de probable homosexualismo

femenino. Aunque más que mostrar, la insinúe.

En las piezas de Helga Montalván, sin embargo, la ambigüedad es de

otro orden, y es mucho más compleja, porque no se restringe al nivel de las

intenciones tras los actos.

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Page 305: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Por lo pronto, resulta difícil decidir, al contemplar algunas de las piezas

en las que hay dos figuras femeninas, si se trata de un único personaje que se

desdobla, o si se trata realmente de dos sujetos distintos.

A ratos parece lo más obvio: dos mujeres desnudas que comparten la

cama. Las manos que se ocultan bajo la almohada en una de las piezas nos dan

la clave para descifrar una experiencia amorosa soterrada, dulce, prohibida.

Experiencia que los personajes quisieran mantener confinada al inocente

territorio del sueño. No hay señales explícitas o visibles de complicidad, de

compartida consciencia: los ojos están cerrados, los cuerpos reposan.

Aparentemente, estas mujeres duermen.

En otra de las piezas, sin embargo, más bien nos parece que Helga

acude a la técnica de la pintura renacentista de representar en el mismo espacio

pictórico diferentes situaciones espaciotemporales. Este recurso, muy utilizado

en la pintura religiosa para relatar pasajes bíblicos, resulta adecuado para referir

la complejidad de la experiencia onírica del deseo. Es como si la dibujante se

resistiera a reducir lo que es efluvio, ondulación, flujo y espasmo, a la fijeza

bidimensional de la cartulina. Como si le fuera imprescindible dar cuenta de los

múltiples estados del deseo, de sus grandes momentos y de sus progresos.

¿Cuál podría ser la intención discursiva que se manifiesta en este

peculiar tratamiento del material artístico? A nuestro entender, se trata

esencialmente de la voluntad de relativizar el carácter sublime de la experiencia

erótica. De, al mismo tiempo que se defiende y se refrenda, poner en solfa esa

retórica del amor como teofanía o epifanía de la que los dibujos se hacen eco, en

una suerte de ejercicio autoirónico. Expresar, dar testimonio del deseo amoroso

y de sus poderes cosmogónicos; pero también ponerlo risueñamente en

cuestión. Un canto lírico que se ve atravesado por las salidas de tono de la

comedia y la rechifla. (Este gesto de Helga niega el principio de gratuidad que

anima la obra de Carlos José García. Para ella, jugar tiene sentido, y el sentido

jamás se limita al mero acto de jugar.)

“¿Con qué puedo retenerte?”

Sin dudas, los cuerpos representados en los dibujos de Helga son muy

hermosos y atractivos; su sola vista despierta el deseo. Estas mujeres nos

invitan a que las admiremos, a que las toquemos con la mirada, a que las

gocemos. Son sublimes, casi dolorosamente. Grado extremo de la belleza,

expresan un nivel de perfección corporal que desata los instintos más

duramente domesticados por la sociedad civilizada. Son cuerpos que

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arrebatan. Deseo irles arriba a estas mujeres, raptarlas o violarlas como el 3Centauro Neso quiso hacerle a Deyanira .

Sin embargo, el otro que desea, el sujeto por antonomasia de la

dominación masculina, está excluido de la representación. Las mujeres de

estos dibujos se resisten a su imperio; cierran los ojos a su fastidiosa

omnipresencia. En su lugar, prefieren replegarse dentro sí mismas, bucear en su

interioridad, buscar refugio en el mar sin fronteras de la propia libido.

Ahora bien, esta renuncia no se traduce en orgullosa declaración de

autonomía. Parece que Helga Montalván creyera que de todos los excesos, el

exceso de soledad es el menos deseable. Así, aunque se experimente sin

dramatismo, sin aspavientos autocompasivos o histéricos (angustia y drama sí

asoman en ciertos dibujos de Sheyla), la soledad esencial de las mujeres de sus

dibujos parece acusar una pérdida, denota un despilfarro de posibilidades. Uno

tiende a exclamar al verlas: ¡qué desperdicio!

Lógicamente, a una seguidora del Expresionismo no le ha de resultar

extraña la tesis de que la experiencia predominante del individuo

contemporáneo es la de la vida dañada, trunca; la biografía personal como

rompecabezas en el que se juntan despropósitos, desaciertos y pérdidas. En el

horizonte promisorio y resplandeciente del sentimiento amoroso y de la libido,

siempre existe la posibilidad de que surjan los oscuros nubarrones del

desencuentro, el fracaso, la frustración. Quizás ese saber nutra la autoironía del

discurso amatorio de los dibujos de Helga; perfecto equivalente pictórico de la

irónica teoría amorosa que Jorge Luis Borges expone en su cuento “El Aleph”.

Sospechamos que para nuestra crítica y artista plástica, no es que el

amor y el deseo remitan a una realidad inefable que no pueden captar los signos

humanos. La ambigüedad de su modo de representación no deriva de la

imposibilidad gnoseológica de referir una experiencia absoluta. Es más bien

como si la artista estuviera tomada por una melancolía ontológica (pero que no

se pelea con la carne ni se acaba de resignar al celibato). Como si la rondara la

certidumbre de que el brillo de lo divino, de lo cósmico, la terrible perfección de

los ángeles a la que apunta el sentimiento amoroso, se habrán de ver

prontamente velados por las contingencias del vivir, por el avance inexorable

hacia la muerte, la catástrofe y la ruina. Helga se hace depositaria de este

conocimiento con una sonrisa tranquila, en un benévolo carpe diem. (He aquí

precisamente tres de sus grandes signos: conocimiento, transitoriedad

veleidosa, pérdida. La libertad, desde luego, le es el más caro de todos.)

3 Referencia a la tercera esposa de Heracles en la mitología griega, a la cual el centauro Neso quiso violar al ayudarla a cruzar un río.

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¿Adónde pueden conducir estos ejes temáticos que ocupan a la

dibujante? Intuyo dos caminos: el solipsismo, acaso el infeliz solipsismo del

Borges de la vejez; la alegre aceptación de la existencia del otro y sus múltiples

vicisitudes. Ya veremos...

Mientras tanto, las mujeres de sus piezas continuarán describiendo

círculos en los dulces remansos de sus sueños – oasis y treguas en la cruenta

guerra entre los géneros – tejiendo y destejiendo las imágenes del devaneo

amoroso, hechas calor y luz, rasgadas de placer, aunque transidas por la

angustia de dos horizontes imposibles: la inmanencia absoluta y el móvil

perpetuo.

Para no disipar su energía en el vacío, para no sucumbir a la entropía,

estas mujeres de Helga te llaman, te piden que estés con ellas, te dejan que las

cubras.

Yo acudo sin pensarlo.

307Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308

Page 308: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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Page 309: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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Thiago Barcelos SolivaMestre em sociologia pelo Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia da UFRJ. Doutorando em Ciências Humanas (antropologia cultural)

do [email protected]

Uma cultura dos contatos: sexualidades e erotismo em duas

obras de Gilberto Freyre

A culture of contacts: sexualities and eroticism in two works of Gilberto Freyre

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Resumo

Com base nas obras Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos, escritas por

Gilberto Freyre, pretendemos pensar o campo da sexualidade no processo de

constituição da sociedade brasileira. Ambos escritos na década de 1930, esses livros se

mantêm como referências fundamentais para a compreensão da formação da sociedade

brasileira em períodos distintos. Trata-se de um fabuloso esforço intelectual de

compreensão de nosso “processo civilizador”. Igualmente importantes são as suas

contribuições para a compreensão da vida sexual do brasileiro. Temas como erotismo,

vida íntima, relações de gênero, infidelidade e prostituição aparecem frequentemente e

de forma pioneira nessas obras, mostrando-nos peculiaridades do processo de

construção de uma sexualidade à brasileira. Interessa-nos aqui esmiuçar esses achados

pioneiros, na tentativa de problematizar a importância desse legado para as novas

gerações de estudiosos das sexualidades.

Palavras-chave: Casa Grande & Senzala. Sobrados & Mocambos. Pensamento social

brasileiro. Sexualidade. Gilberto Freyre.

Abstract

From the works Casa Grande & Senzala and Sobrados & Mocambos, written by Gilberto

Freyre, we want to think about the field of sexuality in the process of formation of

Brazilian society. Both written in the 1930s, these books remain as fundamental

references for understanding the formation of Brazilian society in different periods. This

is a fabulous intellectual effort to understand our “civilizing process”. Equally important

are their contributions to the understanding of the Brazilian sexual life. Themes such as

eroticism, sexual life, gender relationships, infidelity and prostitution and often appear

as pioneers in these works, showing us the peculiarities of the construction of sexuality

to a Brazilian. What interests us here scrutinize these findings pioneers in trying to

discuss the importance of this legacy for future generations of scholars of sexuality.

Key-words: Casa Grande & Senzala. Sobrados & Mocambos. Brazilian social thinking.

Sexuality. Gilberto Freyre.

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Apresentação

Poucos autores brasileiros conseguiram tanto destaque nacional e

internacional como Gilberto Freyre. Escritor de vasta e densa obra, Freyre foi

um dos mais destacados intérpretes da cultura brasileira entre os estudiosos do

seu tempo. De formação heterogênea e, sobretudo, cosmopolita, característica

que mais nos interessa, Freyre esteve em contato com respeitados intelectuais

quando ainda em formação em renomados centros de produção e circulação de

conhecimento nos Estados Unidos.

Sua experiência acadêmica nesse país lhe rendeu uma formação

solidamente erudita, não obstante sua vocação literária e ensaísta estar sempre

presente no conjunto de seus escritos. Tanto na Universidade de Baylor (Texas)

quanto em Colúmbia (Nova Iorque), principalmente nessa última, o jovem

Freyre desfrutou de um momento histórico muito propício para as Ciências

Sociais nos Estados Unidos no período pós-Primeira Guerra Mundial. Na

ocasião, a academia norte-americana encontrava-se sensível à coexistência de

diferentes tradições intelectuais, principalmente aquelas vindas da Europa,

que se reuniram em solo norte-americano para a construção de um edifício

intelectual marcado pela heterogeneidade. Para Velho (2008), Gilberto Freyre

refletiu em sua obra todo esse combinado de tradições que contribuíram para a

formação de um pensamento singular:

Seja sob o ponto de vista da interação social, seja sob o

ponto de vista de cultura e personalidade, produzia-se um

volume de trabalhos e ideias que constituíram-se em

importantes subsídios para a obra de Gilberto Freyre, que

soube digeri-los e elaborá-los no decorrer de sua carreira,

contribuindo, decisivamente, por sua vez, para esse campo

de debates. Como intelectual universalista, bebeu em

várias fontes, na história e na antropologia britânicas, na

história e na escola sociológica francesas e no pensamento

social e filosófico alemão, além da ciência social norte-

americana, produzindo, assim, um perfil singular (VELHO,

2008, p. 12).

Um dos temas principais nesse período, particularmente quando da

sua permanência em Colúmbia, era a relação indivíduo e sociedade. A partir

dessa discussão, Freyre passa a uma particular interpretação da sociedade

brasileira, reconstruindo aspectos pouco explorados pelos estudos que, até

então, encabeçavam as análises sobre o Brasil. Um desses temas diz respeito à

sexualidade, que assume no autor pernambucano uma dimensão excepcional.

311Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 312: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Viajante incansável, Freyre não se apropriou apenas do capital

acadêmico atribuído à intelligentsia norte-americana do final do século XIX e

início do século XX, mas também pôde entrar em contato com toda a

diversidade cultural de uma outra sociedade complexa. A propósito dessa

interação, pôde desenvolver uma sensibilidade analítica muito própria que lhe

facultou desenvolver uma compreensão original do Brasil em termos de sua

constituição histórico-cultural (VELHO, 2008).

O exemplo mais bem-acabado da genialidade desse autor refere-se à

sua obra monumental, cujos trabalhos mais destacados são, indubitavelmente,

Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos. Ambos publicados na

década de 1930, esses textos inauguram um novo momento do pensamento

social brasileiro, ainda dominado pelas concepções racistas em evidência

nesse período. Trata-se de monografias precursoras interessadas em interpretar

nossa sociedade e nossa gente a partir de uma perspectiva multifacetada, cujas

influências disciplinares (história, antropologia, geografia, sociologia etc.)

encontram-se dissolvidas pelo gigantismo de uma análise extremamente rica

em detalhes.

Simultaneamente, essas obras carregam a marca de uma nova postura

acadêmica, a exemplo das influências de Boas, contrárias ao arianismo

intelectual. Essa postura apresenta-se no esforço de valorização da

miscigenação, bem como da defesa de um luso-tropicalismo (VELHO, 2008),

sobretudo em Casa Grande & Senzala. Essa preocupação se expressa,

principalmente, no interesse que desenvolveu pelas contribuições das 1diferentes etnias, em particular dos negros vindos da África para a formação do

povo brasileiro.

Inovador ainda é o material com o qual Freyre trabalha. Utilizando-se

fartamente dos documentos do período da inquisição, tais com as confissões e

denúncias ao Santo Ofício, bem como de narrativas de viajantes que aqui

estiveram nos tempos da colonização, fontes pouco recorridas pela

historiografia da época (BOCAYUVA, 2001), Freyre reconstrói episódios da

vida privada de nossos antepassados mais remotos.

Em muitos aspectos, Freyre se aproxima das análises de Norbert Elias,

ainda que os dois autores não tenham sido apresentados um ao outro. Essa

relação pode ser percebida na forma como o autor pernambucano desenvolve

seu argumento, baseando-se no processo pelo qual teria se dado a emergência

312

1 Freyre não esconde a “predileção”, ainda que fale das contribuições de outras etnias, pelos negros na construção do povo brasileiro. Essa “predileção” pode ser sentida, sobretudo, nos dois últimos capítulos dedicados à discussão das influências da cultura africana na nossa cultura.

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da sociedade brasileira. A propósito desse argumento, Freyre expressa uma

forte preocupação com o que Elias define como “processo civilizador”, ou seja,

um processo histórico de longue durée que implica uma mudança na vida

psíquica dos indivíduos, modelando comportamentos, controlando os

instintos, incidindo tanto na esfera privada quanto na pública (ELIAS, 1994).

Esse interesse é ainda mais manifesto em Sobrados & Mocambos, em que se

dedica a estudar a “reeuropeização” do Brasil com a chegada da Corte

Portuguesa, evento que inaugurou novos padrões de conduta entre os

brasileiros, desenvolvendo o autocontrole entre eles.

Nas páginas que seguem, privilegiamos conhecer alguns aspectos

dessa imensa obra, gigante em tamanho e importância, sobretudo aqueles que

se relacionam com a sexualidade. Na primeira parte, dedicaremos atenção às

contribuições de Casa Grande & Senzala no tocante à formação da cultura

sexual brasileira, essa sexualidade baseada nos excessos. Na segunda parte,

procuramos entender o processo que o autor chama de “reeuropeização”,

privilegiando conhecer seus reflexos na mudança de postura do brasileiro em

relação ao campo da sexualidade. Não pretendendo esgotar aqui esse tema,

sabemos que ele é por demais complexo para as ambições deste trabalho.

Interessa-nos, contudo, esmiuçar esses achados pioneiros, na tentativa de

problematizar a importância dessa obra para as novas gerações de estudiosos

das sexualidades.

Sexualidade e erotismo na “Casa Grande” e na “Senzala”

Vimos que alguns dos traços mais marcantes da obra de Gilberto

Freyre dizem respeito à heterogeneidade e à complexidade com que constrói

sua singular interpretação do Brasil. Um dos aspectos mais importantes para

compor essa interpretação é a sua análise da sexualidade. Temas como

erotismo, vida íntima, infidelidade, relações de gênero e prostituição aparecem

frequentemente e de forma pioneira nessa obra, mostrando-nos peculiaridades

do processo de construção de uma sexualidade à brasileira. Poderíamos

mesmo afirmar que Freyre empreende uma história social da sexualidade

baseando-se no conjunto das relações sociais que conferem contornos à vida

íntima no Brasil Colonial.

Tema recorrente entre os estudiosos das Ciências Sociais, a

sexualidade em Gilberto Freyre assume uma importância capital, já que se

relaciona aos arranjos pelos quais as diferentes etnias se misturaram para a

formação de uma nova cultura. Nesses termos, podemos compreender nossa

313Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 314: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

formação histórico-social como dotada de um forte componente hedonista, de

uma atração irresistível entre os corpos, que motivou a miscigenação entre as

diferentes culturas responsáveis pela nossa constituição como povo.

Sendo assim, amores, afetos, desejos e ódios são preocupações

recorrentes do autor para interpretar nossa existência social. Para Freyre, foi a

miscibilidade sexual-racial o elemento mais importante para a colonização

brasileira, se comparado à mobilidade dos homens no Brasil do descobrimento.

Por meio dessa mistura, nossos ancestrais deram conta do processo de

povoamento de tão vastas e longínquas terras, o Brasil, como defende

obstinadamente em várias passagens do livro:

Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo

ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços

que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram

firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com

povos grandes e numerosos na extensão do domínio

colonial e na eficácia da ação colonizadora (FREYRE,

1950, p. 103).

Esse intercurso de corpos, como afirma o autor, obedeceu aos

criteriosos gostos do colonizador branco. De acordo com Freyre, o colonizador

desenvolveu logo que aqui desembarcou um gosto pelas mulheres não

europeias, cujos atributos estéticos atendiam aos seus mais diferentes

instintos. Foi assim que a mulata apareceu nos escritos de Freyre como

predileta para aplacar os prazeres do corpo do macho-branco. A construção

social da mulata como genuína marca da mulher brasileira, sensual,

voluptuosa teve no conjunto dos trabalhos de Freyre o seu maior defensor.

Estudos como os de Giacomini (1994) vão problematizar as

concepções acerca da constituição da mulata como signo da identidade

nacional. De acordo com essa autora, a mulher mulata aparece em

contraposição à mulher negra, sendo essa última um elemento representativo

da África, ao passo que a outra surge como um resultado positivo da

miscigenação, uma verdadeira “síntese da brasilidade” (GIACOMINI, 1994).

Elemento agregador entre diferentes povos, a mulata estreita os contatos entre

opostos, favorecendo laços com o “outro”. Esses atributos a isentam de

qualquer controle em relação à esfera familiar, visto que supostamente possui

uma libido exagerada. Essas características são criticadas por Giacomini

(1994), porque teriam estimulado imagens estereotipadas da mulata, ao

mesmo tempo que reforçariam a noção de um multiculturalismo harmonioso

em detrimento das agruras de nosso passado escravista.

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Entretanto, Freyre afirma que o gosto português pelas mulatas

somente se expressou em um outro momento da colonização. Quando aqui

chegaram, os portugueses se depararam com outro tipo de mulher: a indígena.

O contato com essas mulheres fez operar entre os homens brancos todo um

conjunto de representações associadas à “mulher dos trópicos”. Para Rago

(2006), essas representações foram etnocentricamente construídas quando do

contato dos europeus com uma outra sociedade entendida como inferior, as

sociedades indígenas. Esse contato teria mobilizado representações em torno

da mulher não europeia, entendida como dotada de uma sexualidade fora de

controle, portanto, algo animal.

Aliás, para Freyre, as representações acerca da figura da “mulher dos

trópicos” encontravam correspondência na predisposição do português pela

mistura com diferentes povos, um traço do cosmopolitismo português. Essa

singular predisposição pela mistura, sobretudo com os povos de origem africana,

teria tornado os portugueses mais “plásticos” em função das sucessivas

mestiçagens que ocorreram ao longo dos séculos na Península Ibérica.

Para tal processo preparara-os a íntima convivência, o

intercurso social e sexual com raças de cor, invasoras ou

vizinhas da Península, uma delas, a de fé maometana, em

condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e

artística, à dos cristãos louros (FREYRE, 1950, p. 221).

De acordo com Freyre, a moral sexual indígena em muito favoreceu ao

povoamento empreendido pelo homem branco, uma vez que sancionava a

poligamia, duramente combatida pelos jesuítas, cujos padres trataram de

repreendê-la arduamente nos anos que sucederam ao período do

descobrimento. Para Freyre, as mulheres indígenas foram as primeiras a

servirem à empresa colonizadora, ajudando a povoar essa parte do mundo. A

suposta voluptuosidade das mulheres indígenas encontrava terreno fértil no

tipo de homem europeu que aqui chegou, homens degredados pelos excessos

que cometiam, homens sexualmente superexcitados, argumenta Freyre.

Nesses termos, esses homens encontravam aqui o ambiente perfeito para

exercitar seus exageros, como podemos ver na passagem que segue:

O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os

próprios padres da companhia precisavam descer com

cuidado, senão atolavam o pé em carne. [...] As mulheres

eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais

ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham

deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de

espelho (FREYRE, 1950, p. 219).

315Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 316: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

A imagem corriqueira defendida pelos viajantes do período do

descobrimento, de que entre os nativos brasileiros predominava a

licenciosidade sexual, não encontrava correspondência na moral sexual das

populações indígenas que, como avalia Freyre, estava fortemente submetida a

um conjunto de interdições que controlavam e prescreviam tabus acerca de sua

atividade sexual. Concomitantemente, essas imagens não satisfaziam a

realidade das populações negras, cuja sexualidade, de acordo com o autor, não

se rendia aos excessos, já que se compunha de uma moral sexual cingida de

prescrições rituais que antecediam o enlace sexual. Como sugere o autor:

Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao

brasileiro, o erotismo, a luxúria e a depravação sexual. Mas

o que se tem apurado entre os povos negros da África, como

entre os primitivos em geral, é maior moderação do apetite

sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos

negros africanos, que para excitar-se necessita de

estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico.

Orgias. Enquanto que no civilizado o apetite sexual de

ordinário se excita sem grandes provocações [...]

demonstrando a necessidade entre eles de excitação

artificial (FREYRE, 1950, p. 412).

O apetite sexual aguçado foi um componente tão mais presente entre

os portugueses (colonizadores, dominadores) do que entre os outros grupos

étnicos que compunham a sociedade brasileira. Dessa forma, as

representações associadas à pretensa “sexualidade selvagem” do negro e do

indígena não encontram paralelo nos traços culturais constitutivos das outras

culturas responsáveis pela colonização. A luxúria das terras brasileiras foi antes

uma consequência do tipo de organização social escravista que aqui se

estabeleceu. Essa organização franqueou o apreço por uma cultura hedonista,

baseada na assimetria modelada pelas relações sadomasoquistas.

Para Gilberto Freyre, a mulher indígena desfrutava de uma liberalidade

maior que a assistida pelos homens da mesma etnia. Essas mulheres se

encontravam supostamente mais liberadas para a sexualidade. Entre os

homens indígenas, Freyre surpreendeu uma verdadeira “comunidade de

homens” contrastando em grau de importância interna com a das mulheres. As

sociedades secretas viabilizavam uma alta aproximação entre homens de

diferentes idades. A entrada dos jovens não iniciados nessas sociedades era

marcada por dramáticos “ritos de passagem”, responsáveis pela transmutação

do iniciando em um homem. Essa homossociabilidade baseava-se na

solidariedade e reciprocidade entre eles. Segundo o autor, as relações sexuais

316

Page 317: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

entre iguais biológicos era prática comum entre os homens de diferentes tribos 2brasileiras . Sobre essa prática, falavam horrorizados os viajantes que aqui

estiveram ao longo dos séculos. Para Freyre:

As sociedades secretas de homens, possível expressão, ou

antes, afirmação – na fase sexual e social de cultura

atravessada por muitas das tribos ameríndias ao verificar-

se a descoberta do continente do prestígio do macho contra

o da fêmea, do regime patronímico contra o matronímico,

talvez fossem melhor estímulo que a vida de guerra à

prática da pederastia (FREYRE, 1950, p. 257).

A propósito da homossexualidade e da bissexualidade nas populações

ameríndias, Freyre ressalta a considerável importância conferida aos homens

efeminados ou “invertidos”, cuja presença nesse tipo de sociedade é uma

constante. Esses homens gozavam de grande prestígio nesses grupos, servindo

para papéis que se relacionavam com a prática da magia e com a feitiçaria,

instituições centrais para a cosmologia indígena. Em trabalho sobre os Guaiaki,

Clastres (1988) revela aspectos dessa cultura que se aproximam das

observações de Freyre sobre os indígenas brasileiros do período do

descobrimento. No capítulo “O arco e o cesto”, Clastres (1988) chama a

atenção para a rígida divisão sexual dessa sociedade, ressaltando a

importância dos papéis de gênero como estruturantes, principalmente no plano

simbólico, para a vida social. Em sociedades onde esses papéis são tão

austeramente determinados, o lugar ocupado pelos homens quando se

distanciam dos símbolos imputados ao universo masculino é, geralmente, a

magia. Eles são totalmente incorporados à estrutura da sociedade,

transformando-se em uma figura feminina. Para Clastres, esses homens

dotados de aptidões sobrenaturais são lugar-comum entre esses grupos. Em

função da farta ocorrência registrada na documentação encontrada pelo autor,

Freyre destaca o quão comum era, entre os viajantes no período do

descobrimento, associar os indígenas à pederastia (FREYRE, 1950, p. 258).

Foi também na moral sexual indígena que os homens brancos

puderam consumar seus apetites pelo amor entre iguais. Freyre destaca como a

prática de sexo entre homens encontrou no período colonial momento propício

para desenvolver-se. É importante destacar que Freyre não atribuía à

homossexualidade um traço peculiar de nenhuma etnia que contribuiu na

2 A homossexualidade é prática sancionada entre diferentes culturas ao redor do mundo. Em muitas dessas tribos, essa prática se relacionaria com a construção social da masculinidade, sendo recorrente em uma dada faixa de idade como rito de passagem, marcando a entrada do neófito na “sociedade dos homens”, através de um conjunto de práticas que envolvem uma interação, inclusive sexual, com outros homens.

317Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 318: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

formação do Brasil, o que faz é afirmar que essa prática esteve presente em

todas as etnias (brancos, negros e indígenas), reforçando o seu caráter regular

em diferentes sociedades.

É conveniente perceber ainda todo o notável interesse de Freyre pela

vida sexual do negro brasileiro. Esse interesse é revelado nos capítulos que

seguem às discussões acerca das contribuições indígena e branca na formação

social brasileira. Nesses capítulos, Freyre parece mesmo fazer derivar do negro

todo o erotismo da vida sexual brasileira, ressaltando, sobretudo, elementos

comumente associados ao imaginário social acerca de nossas preferências

sexuais.

Outro tema inovador tratado por Freyre é o da prostituição. De acordo

com o autor, a prostituição das “negrinhas” teria sido uma forma inaugural de

comercialização dos corpos no Brasil Colonial. Esse comércio dos desejos era

facilitado, em algumas situações, por suas donas brancas, verdadeiras

proxenetas, que afiançavam suas escravas aos marinheiros nos portos

coloniais. O rígido controle em relação à sexualidade das moças brancas

contrastava com a lubricidade das mulheres negras, que deveriam sempre

estar disponíveis à fornicação (FREYRE, 1950, p. 629). Essa necessidade de

evitar as mulheres brancas dos contatos com os homens alimentou-se da

prostituição. Ademais, toda a vida pública da mulher branca era negada em

função do enclausuramento nas “Casas Grandes”. Essas eram fortemente

submetidas aos olhares dos mais velhos, em um esforço premente de

preservação da castidade.

A literatura especializada sobre o tema tem revelado que essa lógica

ajudou a produzir representações negativas associadas à personagem da negra

e da mulata no imaginário social brasileiro. Aliás, essa discussão tem rendido a

Freyre as mais equivocadas críticas atribuídas aos supostos traços racista e

misógino presentes em sua obra. Percebemos que a prostituição em Freyre

assume um tom de algo crítico, que se relaciona com a dinâmica das relações

raciais brasileiras, fortemente influenciadas por nossa tradição escravista. O

corpo negro como mercadoria, investido de notáveis atributos sexuais, aparece

como corolário de uma relação baseada na desigualdade entre brancos e

negros. Esse corpo expressa uma forma de consagrar o “outro” como objeto em

uma sociedade onde o poder encontra-se em mãos brancas.

Casa Grande & Senzala inaugura ainda a discussão acerca das

relações sexuais intergeracionais. Freyre destaca a incidência das trocas

afetivo-sexuais entre mulheres mais novas, incluindo aqui a faixa etária que

hoje classificaríamos como crianças, e homens bem mais velhos. Essas uniões

318

Page 319: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

eram sancionadas pela opinião popular. As diferenças raciais não se

apresentavam como dados relevantes para entendermos a dinâmica dessas

uniões, afinal mulheres brancas e negras eram igualmente objetos de desejo

desses “rapagões”. Nota-se, contudo, uma diferença de status, já que as

mulheres brancas eram procuradas para casamento, enquanto as negras

ficavam relegadas aos prazeres da alcova.

A prematuridade com que as mulheres entravam na vida sexual

aparece como dado significativo para avaliar a mortalidade infantil, bem como

a farta disseminação de doenças venéreas entre pré-púberes e púberes. O

número de meninas brancas que sofreram as consequências de sucessivos

abortos em função da pouca idade era extremamente alto, como observa Freyre

(1950). Elas também morriam constantemente na hora do parto, em função do

corpo ainda mal preparado ou mesmo em função da má alimentação das

“Casas Grandes”. Entre os indígenas, a mortalidade infantil era tão alta que,

quando percebida pela Companhia de Jesus, seus membros trataram de

construir mitos em torno da criança natimorta. Esses mitos reforçavam a ideia

de que as crianças eram anjos, que quando mortos voltavam aos braços do

senhor, confortando pais e filhos diante da iminência da morte.

A ocorrência de doenças venéreas é outro dado que despertou grande

interesse de Gilberto Freyre. De acordo com o autor, a recorrência da sífilis entre

os brasileiros afiançou a civilização dos trópicos. Os valores positivos

associados à miscigenação pelos excessos sexuais entre as etnias tiveram seu

contraponto negativo na rápida disseminação dessas “doenças do mundo”.

Como afirma Freyre (1950, p. 161):

À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a

desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas,

uma a formar o brasileiro – talvez o tipo ideal do homem

moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou

índio a avivar-lhe a energia, outra a deformá-lo. [...] Sua

ação começou ao mesmo tempo que a da miscigenação;

vem, segundo parece, das primeiras uniões de europeus,

desgarrados à-toa pelas nossas praias, com as índias que

iam elas próprias oferecer-se ao amplexo sexual dos

brancos. [...] Costuma dizer-se que a civilização e a

sifilização andam juntas: o Brasil, entretanto, parecer ter-se

sifilizado antes de se haver civilizado.

A importante contribuição de Freyre para a história da sífilis no Brasil,

assim como de seu entendimento, está na desvinculação dessa doença com a

miscigenação ocorrida no país. Gilberto Freyre opera uma mudança

319Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 320: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

significativa na forma de pensar a doença, tirando-a do campo da degeneração

racial que a associava aos efeitos da miscigenação, para a esfera da patologia

social (TEIXEIRA, 1997).

A correspondência entre vida íntima e vida pública é outro marco

importante da obra de Gilberto Freyre. A respeito desse assunto, Rago (2006)

escreve que Freyre identifica a sexualidade com um poderoso modelador das

relações sociais, postulando-a como fator fundante para uma possível

interpretação do Brasil. As relações travadas na esfera pública brasileira

refletem a vocação do brasileiro em apreciar relações marcadas pelo

sadomasoquismo, característica tomada de empréstimo da vida privada

(RAGO, 2006). As analogias entre vida sexual, portanto íntima, e vida pública

são estruturantes para a construção desse modelo de se relacionar como o

“outro” em nossa sociedade. Em Freyre (1950, p. 167):

Esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de

escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica,

tem-se feito sentir, através da nossa formação, em campo

mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los em

nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre

encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às

vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo

transformadas em cultos cívicos, como do chamado

“marechal de ferro”.

Daí a facilidade em se encontrar relações fundadas em um forte

antagonismo entre seus elementos. O sadismo brasileiro se expressaria, em

larga medida, “no gosto em dar surra, de mandar arrancar dente de negro

ladrão de cana, de mandar brigar, na sua presença, capoeiras, galos e canários”

(FREYRE, 1950, p. 166). Vítima predileta do sadismo do menino branco, os

negros tiveram seus corpos constantemente submetidos à ferocidade desses

pequenos (mais tarde homens feitos), mesmo sexualmente. Era com esse

escravo que os primeiros contatos sexuais ocorriam, ainda que sem o

consentimento do negro, feito de passivo na relação sexual. A submissão sexual

do homem negro pelo branco é um dado significativo para compreendermos a

relação de poder e dominação travada entre essas duas etnias. Nessa relação, o

lugar assumido no coito é um ponto de fundamental importância para entender

a dinâmica que engendra os papéis sexuais, bem como a distribuição do poder

e do prestígio na nossa sociedade.

O lugar do homem como elemento penetrador oferece o modelo de macho

a ser produzido pela lógica dos gêneros à brasileira. Em suas pesquisas sobre a

homossexualidade no Brasil, o antropólogo Peter Fry (1982) observou que a

320

Page 321: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

sociedade brasileira encontra-se dividida por uma rígida hierarquia de gêneros.

Para o autor, a posição ocupada na relação sexual (ativo/passivo) expressaria a

posição dos indivíduos dentro da estrutura social. Assim, os papéis de gênero

estariam submetidos à oposição masculinidade/atividade e

feminilidade/passividade, não oferecendo possibilidades para manifestações não

ortodoxas de outras identidades sexuais senão aquelas forjadas pela matriz

heterossexual (FRY, 1982). Nesses termos, ao penetrar sexualmente o homem

negro, o homem branco estaria subtraindo-o de sua masculinidade, colocando-o

em um lugar de menor prestígio, menor ainda do que aquele ocupado pela mulher.

Contudo, os negros não foram as únicas vítimas desse desequilíbrio de

forças concernentes às relações à brasileira, as mulheres sofreram, talvez na

mesma intensidade que seus opostos negros, desse traço peculiar atribuído ao

nosso processo civilizador. Sua existência foi sumamente silenciada à sombra

do pai e do marido, a quem deveria respeitar e servir. Porém, foi na dinâmica

das relações sexuais que esse gosto pelo sadismo se manifestou em sua forma

mais acabada, sobretudo no tocante à iniciação sexual do homem branco. A

esse fim, serviram tanto as mulheres negras quanto os “moleques de

pancadas”, como visto anteriormente, como também animais e frutas. Em

Freyre, essa problemática articula-se diretamente com o tipo de organização

social e econômica que se instaurou aqui nos idos tempos da colonização.

Dessa forma, podemos perceber que foi pelos excessos sexuais, ou mesmo pelo

uso do corpo passivo, que se pôde exercitar o poder em relação ao “outro”,

subjugado.

Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao

masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização

portuguesa – colonização, a princípio, de homens quase

sem mulher – e no sistema escravocrata de organização

agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores

todo-poderosos e em escravos passivos é que se devem

procurar as causas principais do abuso de negros por

brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se

acentuavam entre nós; e em geral atribuídas à luxúria

africana (FREYRE, 1950, p. 448).

Esse sadismo não era um atributo exclusivo dos homens brancos. Às

mulheres brancas, ao contrário das mulheres indígenas e negras, era reservado

um lugar mais destacado no conjunto da sociedade patriarcal. Ainda que

tenham sido silenciadas pelos maridos, elas encontraram outras formas pelas

quais puderam exercitar seu poder. O sadismo da sinhá branca em quase nada

se diferenciava do senhor em termos de crueldade. Eram muitas as atrocidades

321Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 322: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

322

praticadas por essas senhoras, geralmente motivadas pelos ciúmes de seus

maridos. Para Freyre, essas moças enclausuradas nas “Casas Grandes” e

depois nos “Sobrados”, tendo como companhia um séquito de escravas

passivas, puderam construir um mundo à parte (privado), cujo poder de punir

era uma forma de extravasar sua total subserviência ao modelo patriarcal de

organização familiar. A submissão da mulher encontrava explicação na

proeminência do sexo “nobre” (o homem), um dos eixos principais do

patriarcalismo, que Freyre qualifica de monossexual, em função da

centralidade no homem.

Outros exemplos da predominância desse modelo são encontrados

quando da relação do menino com seus mestres nos colégios coloniais. Como

afirma Freyre (1950, p. 584), “houve verdadeira volúpia em humilhar a

criança: em dar bolo em menino. Reflexo da tendência geral para o sadismo

criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro”. Os colégios foram

ainda observados como espaços de forte repressão em função dos possíveis

males que poderiam contextualizar. Os “excessos sexuais” praticados pelos

meninos levaram ao recrudescimento das preocupações com esses espaços.

Não somente os medos de uma possível contaminação por diferentes

doenças em função das péssimas condições de higiene estavam em jogo,

práticas como a pederastia e o onanismo eram perseguidas pelos higienistas

coloniais como perniciosas à regularidade social. Essas preocupações

possuíam uma dimensão antes moral que epidemiológica, já que doenças

como a sífilis apareceram como fortes signos de masculinidade entre os

homens daquela época, tal como um ritual de passagem à vida sexual.

Freyre revela como essas doenças, sobretudo a sífilis (doença que

deixa marcas no corpo), apareciam, aos olhos da sociedade brasileira, como

capital simbólico que distinguia os machos dos não machos. Daí a facilidade

em se encontrarem nas ruas do Brasil Colonial homens que exibiam as sequelas

da doença e que faziam isso com profundo orgulho. O problema, tal como

colocado pelos higienistas, era com as formas não ortodoxas de transmissão da

doença, que ocorriam em função das relações sexuais entre esses meninos

enclausurados nos colégios. Se antes a prática homossexual era pouco vigiada,

talvez em função da escassez de mulheres na colônia, a Igreja Católica já

começara a operar um verdadeiro controle sobre essa prática, principalmente

por meio da institucionalização dos colégios jesuítas.

A lassidão sexual das terras além-mar não isentava nem mesmo os

clérigos que aqui se colocaram à disposição da empresa civilizadora. A ideia

corrente defendida por Gasper Von Barleus (1660) de que “não existe pecado

Page 323: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

ao sul do Equador” era perseguida com impiedosa obstinação pelos padres e

outros membros do clero que aqui se fixaram. A união desses homens da

religião com suas amancebadas (negras) acabou por criar em nossas terras

uma verdadeira instituição, cujos filhos foram seus principais representantes.

Esses moços puderam ter acesso a uma educação que muito se assemelhava a

dos senhores brancos, fazendo-nos supor que essas uniões apresentavam

grandes oportunidades de mobilidade social em uma sociedade fortemente

hierarquizada.

Nem mesmo o plano religioso estava isento do erotismo brasileiro nos

tempos da colônia. Freyre destaca como a comunicação com o sagrado

expressava-se por meio de uma forte dimensão sensual. A devoção dedicada

aos inúmeros santos, vindos da herança portuguesa, estava profundamente

marcada por esse erotismo, fortemente amparado pela materialidade das

imagens sagradas. As mulheres eram as principais devotas desses santos,

muitas das vezes os procuravam para solicitar-lhes casamentos. Santos como

São João e São Gonçalo do Amarante eram os preferidos e mais indicados para

esse fim. Aos olhos de alguns viajantes, as festas religiosas no Brasil mais

pareciam rituais apaixonados e grosseiros nos quais mulheres em estado de

transe cantavam e punham seu corpo em contato direto com a imagem do

santo de devoção.

A intimidade com o santo de devoção era outra característica marcante

entre esses santos e seus devotos, traço cultural já presente entre nossos mais

antigos ascendentes em Portugal. Essa intimidade se expressava nos contatos

carnais com a imagem sagrada. O corpo ocupava um espaço importante nas

interações entre os fiéis e a figura santificada no culto religioso. Quantas

mulheres esfregaram acaloradamente suas coxas nas imagens de São Gonçalo

do Amarante na esperança de terem suas súplicas alcançadas, casamento e

filhos, diz Freyre. Outras tinham em São João seu santo de intimidade, a quem

se entregavam em confidências amorosas. Como avalia Freyre, foi assim que

“os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do

povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em

fecundar as mulheres, em proteger a maternidade” (FREYRE, 1950, p. 441).

Outra instituição abundantemente utilizada por esse mercado

amoroso foi a magia. A prática da magia relacionou-se diretamente com a

religião no trato das coisas sexuais no Brasil Colonial. Era comum lançar mão

da magia para tratar de pedidos associados à fecundidade, à gravidez, bem

como ao mercado amoroso. Santos eram requisitados, mas também não se

dispensava a bruxaria (magia simpática) como um componente eficaz para se

323Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 324: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

324

obterem favores das forças sobrenaturais. A exemplo das nossas antepassadas,

ainda recorremos a esses recursos quando diante do amor. São vários os

episódios de magia sexual, destacando-se entre eles os “trabalhos para trazer a

pessoa amada” para a convivência do suplicante apaixonado, em nossa

sociedade.

Assim como na religião e na magia, a sexualidade se colocou

constantemente à mesa do brasileiro. O autor destaca a associação entre

diferentes tipos de comida, sobretudo doces, e a prática sexual. Esse

simbolismo sexual, como sugere Freyre, foi observado nos inúmeros pratos

com nomes fazendo referência explícita à atividade sexual. Para Freyre, as

freiras foram as principais protagonistas desses “doces erógenos”. Saíam dos

conventos “babas de moça”, “beijinhos”, “desmamados”, “casadinhos”, para

citarmos apenas alguns daqueles doces que enfeitam as mesas brasileiras. Daí

as analogias, tão comuns na sociedade brasileira, nas formas de se denominar

o sexo, tais como “comer”, correspondendo a transar, que cruzam

semanticamente esses dois campos em uma mesma categoria verbal.

Enfim, Freyre mostra como diferentes instituições incorporaram esse

elemento sexualizante que esteve constantemente presente no nosso processo

de formação. A empresa colonizadora não se estruturou como um projeto de

europeização dos costumes (SOUZA, 2008), mas sim por meio dos excessos e

desequilíbrios entre diferentes etnias. Ainda que estivessem investidos pelos

encargos previstos pela tarefa colonizadora europeia, os portugueses não se

furtaram da “vida desregrada” e impregnada de luxúria. Teriam essas

características moldado nossos costumes profundamente estruturados em um

desequilíbrio de conduta entre os gêneros e as formas com as quais exercem a

sexualidade. Era um desequilíbrio desvantajoso para as mulheres, quando

comparadas aos homens, cujos excessos eram historicamente permitidos.

Novos padrões de sociabilidade: os “Sobrados” e os “Mocambos”

Publicada em 1936, Sobrados & Mocambos trata do processo de

constituição da vida urbana brasileira, a partir da decadência da aristocracia

monocultora no século XIX. Diferentemente de Casa Grande & Senzala, que se

dedica a analisar a formação do Brasil no período colonial, essa obra vai

estudar a transição de um modelo marcado pela égide da aristocracia rural para

outro baseado no desenvolvimento urbano, destacando as mudanças ocorridas

na vida social dos brasileiros nesse ínterim.

Page 325: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

O livro se inicia com a chegada de Dom João VI, de sua mãe, Dona

Maria, e de sua corte e tesouros em 1808, quando deixam a Europa sob as

ameaças de Napoleão e passam a morar no Brasil. Segundo Freyre (1961, p.

15), esse êxodo da Corte Portuguesa marca a decadência dos tempos áureos

vividos pelo patriarcado rural, bem como do “amor que o rei nutria pelos

senhores rurais”. A vinda da Família Real modificou profundamente a forma

pela qual a sociedade brasileira se organizava. O Brasil passa a incorporar

elementos característicos de uma sociedade urbana e moderna. As atitudes de

Dom João VI para a nova sede do reino passam a incrementar a vida social

brasileira, tornando-a mais cosmopolita e atraente para entrada de outros

povos, dentre os quais estão alemães, franceses, italianos etc.

A herança colonizadora portuguesa marcada pela miscibilidade sexual

entre diferentes etnias deixou, segundo Freyre, uma estrutura societária híbrida

em terras brasileiras. Essa estrutura teria laçado o Brasil em

Condições de vida tão exóticas – do ponto de vista europeu

– que o século XIX, renovando o contato do Brasil com a

Europa – que agora já era outra: industrial, comercial,

mecânica, a burguesia triunfante – teve para o nosso país o

caráter de uma reeuropeização (FREYRE, 1961, p. 309).

O que Gilberto Freyre chama de “reeuropeização” implicava extinguir

toda marca do feudalismo e dos traços não europeus deixados pelo tipo de

colonização empreendida pelos portugueses do descobrimento. Esse processo

envolvia a disciplina dos corpos, domesticados conforme as novas tendências

valorizadas por esses “outros europeus”. O europeu do norte emergiria como

modelo de civilidade, contrapondo-se ao europeu ibérico, que teria sido

responsável pela colonização nos séculos anteriores. Os modos de vestir, os

comportamentos, a educação agora seguiam os modelos adotados por países

como a França e a Inglaterra.

O aportuguesamento cederia lugar ao afrancesamento e ao

inglesamento dos modos como os brasileiros se relacionavam entre si. Esse tipo

de iniciativa incidiu diretamente nas formas como os brasileiros se vestiam, nos

hábitos à mesa, bem como na educação científica. A frouxidão sexual das

“Casas Grandes”, baseada na relação do senhor aristocrata e seus escravos da

“Senzala”, seria substituída pelos modos refinados e comedidos dos

“Sobrados” burgueses e seus opostos, os “Mocambos”, povoados por mestiços

que procuravam imitar os modos aburguesados para obterem prestígio junto à

sociedade.

325Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 326: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

326

A “reeuropeização” dos costumes, como sugere Freyre, alterou ainda

as relações familiares, destituindo dos brasileiros a promiscuidade sexual, a

falta de etiqueta, a ausência de preocupação com a higiene pessoal, bem como

com o personalismo, características que orientavam a vida social na colônia

portuguesa. Aos homens dos “Sobrados”, não era mais permitida a poligamia

como o era no período colonial. A monogamia passou a ser vista como um valor

a ser perseguido, uma forma de controle em relação à sexualidade. A exibição

dos corpos, observada com certa naturalidade nas “Casas Grandes” de outrora,

especialmente os corpos das escravas, que deixavam ser vistas com roupas

leves que mostravam pernas e ombros com facilidade, passou a ser entendida

como ameaça à vida familiar, portanto associada à indecência e à falta de

compostura.

Esse rígido empenho em controlar as relações sociais via introdução de

normas de refinamento dos costumes reconfigurou as relações domésticas,

introduzindo interdições e regras em prol de uma rígida moral burguesa. Essa

moral se expressou, principalmente, na valorização do individualismo, do

abrandamento dos excessos e de uma percepção diferenciada dos movimentos

do corpo (SOUZA, 2008). A intimidade passou a ser um atributo a ser

observado de forma mais intensa, já que esse aspecto da vida tornou-se um

sinônimo de civilidade.

Ainda que essas mudanças tenham imprimido no Brasil ares de uma

modernidade compartilhada pelos modernos centros europeus, elas não foram

capazes de desconstruir a estrutura social pela qual o Estado brasileiro havia se

moldado. Em sua análise da obra de Gilberto Freyre, Bastos (2006) identifica

uma continuidade no que se relaciona ao século XIX e ao período colonial.

Segundo a autora, as figuras responsáveis pela construção do Estado brasileiro

ainda são aquelas advindas do sistema patriarcal. O processo de fortalecimento

do Estado, bem como dos interesses públicos, não foi intensamente vivido a

ponto de remodelar a relação público/privado. Diante disso, a autora afirma

existir uma continuidade entre família e Estado, ou seja, uma política

fortemente pautada pelo personalismo. Nesses termos, a política de

“ocidentalização” levada a cabo a partir do século XIX parece não ter sido bem-

sucedida, visto que o Brasil teria mantido uma existência simultânea de

elementos considerados “modernos”, com os resquícios de uma sociedade

fortemente marcada pelos excessos.

Page 327: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Considerações finais

Este trabalho analisou algumas das contribuições da obra de Gilberto

Freyre para o campo das sexualidades. Vimos que raça e sexualidade foram

componentes que se cruzaram para constituição histórico-social do povo

brasileiro. O tema da sexualidade ocupa no conjunto da obra freyriana um

espaço privilegiado na análise que empreende sobre a sociedade brasileira.

Percebemos que foi das relações sexuais, da dinâmica erótica, que os

brasileiros retiraram os modelos de comportamentos vivenciados nas relações

sociais mais amplas.

Contudo, são poucos os indícios deixados pelo autor a respeito de uma

sexualidade liberada, como sugere o senso comum, principalmente no homem

negro. Em detrimento da mulher negra, que recebe uma importância capital

para a empresa civilizadora e mesmo para a construção da identidade nacional,

o homem negro é invisibilizado e a sua sexualidade relegada, quando muito, à

violência sexual infligida pelo senhor branco. Da mesma forma, foi retratado o

homem indígena, improdutivo, seco, infecundo, quando comparado à

vivacidade do seu oposto sexual, a mulher indígena, a qual, segundo Freyre, foi

a verdadeira promotora da colonização. Sua importância como capital humano

extravasou os atributos físicos responsáveis pela sedução do homem branco,

sendo uma das principais responsáveis pela transmissão de bens culturais de

valores inestimáveis para a formação do povo brasileiro.

Outra preocupação profundamente presente no autor é de ordem

epidemiológica. A disseminação de doenças relacionadas ao desregramento

sexual no período colonial foi fartamente documentada pelo autor. Uma dessas

doenças, a sífilis, foi a que mereceu um dispendioso esforço analítico, posto

que se relacionava abertamente com o processo civilizador brasileiro. Dessa

forma, o autor tratou de desconstruir a tese vigente de que essa doença seria

uma causa imediata da miscibilidade das raças, deslocando a discussão para

uma perspectiva antirracista.

A frouxidão dos costumes foi, certamente, a marca mais bem-acabada

da colonização nessa parte do mundo. O excesso sexual foi um componente

essencial que, conforme Freyre, teria possibilitado a empresa colonizadora.

Entretanto, esse mundo dos excessos teria trazido ao Brasil traços por demais

exóticos aos olhares dos europeus do norte. Muito longe de ter se constituído

como uma sociedade civilizada, pautada no controle em relação aos diferentes

aspectos de sua vida, o Brasil colonial antes se aproximava ao grotesco, à festa,

ao rústico – características execradas pelos europeus não ibéricos. Diante

327Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 328: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

328

dessa realidade, chega ao Brasil a Corte Portuguesa, que modificou

profundamente as formas de sociabilidade pelas quais os brasileiros

organizavam sua vida.

As transformações atribuídas à sociedade brasileira a partir da

chegada da Corte Portuguesa, bem como pela entrada de povos europeus não

ibéricos, modificaram profundamente as formas de sociabilidade entre os

brasileiros do período. O rígido controle sobre a vida social, principalmente em

relação aos instintos sexuais, como forma de acompanhar os rebuscados

costumes advindos de França e Inglaterra levou os brasileiros a uma verdadeira

preocupação com as aparências. Essas preocupações remodelaram por

completo as relações, incluindo as domésticas, que passaram a valorizar o

comedimento em detrimento do excesso, sobretudo sexual.

Esperamos que este trabalho tenha cumprido a tarefa que se propôs no

início, qual seja: conhecer um pouco mais das contribuições de Gilberto Freyre

para o estudo das sexualidades brasileiras. Acreditamos também que essa

incursão na sexualidade freyriana tenha possibilitado desconstruir alguns

equívocos atribuídos ao conjunto de sua obra, especialmente aqueles que

qualificam esse autor como racista e misógino.

Page 329: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Referências

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329Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329

Page 330: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

330

Page 331: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

15

Rompendo com a binaridade masculino/feminino nas canções

buarquianas: um estudo de “Folhetim” e “Tango de Nancy”

Roberto Gabriel Guilherme de LimaProfessor da rede pública do estado do Rio Grande do Norte

Mestre em Literatura Comparada pela [email protected]

Breaking with the binarism masculine/feminine in the Chico Buarque's songs:

a study of the “Folhetim” and “Tango de Nancy”

Page 332: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

332

Resumo

Este artigo aborda a questão do gênero como veículo de identidade no discurso

contemporâneo, tentando (des)construir o discurso hegemônico masculino, rompendo

com a binaridade masculino/feminino e consagrando as premissas da teoria queer, que

pressupõe discursos pós-modernos no que tange à ideia da identificação do gênero.

Nesse contexto, apresentam-se os discursos presentes nas canções femininas de Chico

Buarque, que se contrapõem às canções de compositores anteriores a ele, buscando-se

compreender a ruptura da dicotomia masculino/feminino. Por meio da política da

pós-modernidade, a noção de Estudos do Gênero, nos corpos sexuados, ganha mais

visibilidade, vislumbrada pela teoria queer, que dá margens aos estudos da fronteira da

identidade, mais precisamente entre os gêneros masculino/feminino.

Palavras-chave: Identidade. Gênero. Canção. Discurso. Pós-modernidade.

Abstract

This article approaches the question of gender as a vehicle of identity in contemporary

discourse. It attempts to (de)construct the hegemonic masculine discourse, breaking

with the binarism masculine/feminine and uses premises of the queer theory, which

proposes post-modern literary discourses in relation to the notion of gender identity. In

this context, we focus the discourses present in Chico Buarque's songs taken as feminine

representations – they contrast with songs of former songwriters – trying to understand

the break of the dichotomy masculine/feminine. It's through of identy's politc of post-

modern that the notion of the Gender' studies, in the sexual bodies, get very visibility,

descrying by queer theory that give margin at the studies of frontier of identity more

needy between the gender masculine/feminine.

Key-words: Identity. Gender. Songwriting. Post-modernity.

Page 333: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Introdução

O gênero é algo histórica e socialmente constituído, mas essa ideia vem

se tornando cada vez mais fluida, passando o homem a assumir de forma

recorrente o dito comportamento feminino, apresentando a fluidez que o estudo

de gênero denota. Chico Buarque é o compositor brasileiro que desde a década

de 1970 vem (des)conectando a binaridade homem/mulher em suas canções.

Ele empresta suas canções para dar voz às mulheres, ao mesmo tempo que

potencializa e vitaliza suas narrativas de vida. Assim, “na obra musical de Chico

Buarque, o poeta sentimental tem menos espaço que o poeta objetivo, aquele

que encontra sua poética ao dar a voz para personagens pinçados na vida

brasileira” (MELLO, 2003, p. 49), já que essas mulheres passam a ser vistas por

outro ângulo: como mulheres revestidas de pleno poder de fala.

Chico Buarque relata apenas o prazer corporal exercido pelas

prostitutas por ele constituídas, deixando perceber que essa prática sempre

ocorreu aos olhos da sociedade brasileira. A partir disso, ironicamente, ele

apresenta a sua proposta de denúncia de cunho social: a venda corporal da

mulher pela falta de oportunidade de exercer cargos de posição em destaque

social, já que os ditadores eram homens. Não cabia à mulher exercer tais

cargos, o que acarretava a falta de algum salário que as fizesse viver

razoavelmente para se manter com alguma dignidade humana. Elas mesmas,

as mulheres prostitutas de Chico, relatam seus prazeres corporais em canções

consagradas pelo público buarquiano.

Como um dos pontos fundamentais desta pesquisa é a análise de

algumas canções populares vistas pelo prisma buarquiano, considera-se relevante

discorrer algumas linhas a respeito da concepção de gênero, tentando

desconectar a binaridade masculino/feminino. Em subtópico, também será dada

outra abordagem às canções buarquianas de cunho feminista, pelo viés da teoria

queer, o que evidencia um ponto de diferença entre esta pesquisa e trabalhos já

realizados a respeito do já referido tema, como o de Adélia Bezerra de Menezes e o

de Maria Helena Sansão Fontes, que abordam o feminino nas composições de

Chico Buarque sem fazer qualquer menção à teoria aqui abordada.

As canções buarquianas serão ponderadas pelo prisma da teoria queer,

a qual se propõe a estabelecer uma concepção de vida que vai além das normas

veiculadas e preestabelecidas socialmente. Ser homem ou mulher é conceber

uma simples identidade, ser queer é romper com as binaridades e consagrar

uma indeterminação textual. Os sujeitos queer surgem da reflexão, da análise

crítica e da desconstrução de autores pós-estruturalistas, os quais discutem e

desmistificam a hegemonia do masculino em relação ao feminino, que sempre

333Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 334: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

se baseou em preceitos oriundos de uma visão patriarcal de uma corrente

másculo-centrada na relação de produção e reprodução, uma vez que tais

princípios insistem em manter a noção de sujeito criada por meio de discursos da

linguagem e da cultura. Nesse sentido, o ponto-chave dos ativistas queer está

em virar ao avesso as práticas de normalização dos sujeitos em questão.

A teoria queer deseja questionar os processos ditos “[...] institucionais

e discursivos, as estruturas de significação que definem, antes de mais nada, o

que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é imoral, o que é normal

e o que é anormal” (SILVA, 2002, p. 108).

Baseada nas premissas desses teóricos denominados pós-

estruturalistas, norteia-se toda a teoria que iremos abordar nesta pesquisa, em

que se analisam as ideias de gênero apresentadas por Butler (2003, p. 24),

que afirma:

Quando o status construído do gênero é teorizado como

radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se

torna um artifício flutuante, com a consequência de que

homem e masculino podem, com igual facilidade, significar

tanto um corpo feminino como um masculino e mulher e

feminino, tanto um corpo masculino como feminino.

Sendo assim, o comportamento atribuído às mulheres, em particular

às prostitutas constituídas nessas canções, dá margens para se perceber que a

mulher conseguiu, em plena década de 1970, nas canções e concepções

buarquianas, falar de sexo e de prazer sem ser vista como leviana, passando,

dessa forma, a exercer comportamentos ditos e consagrados como masculinos.

Essas canções apresentam uma ambiguidade textual que é a proposta

apresentada pela teoria queer, afinal, as mulheres em Chico Buarque exercem

comportamentos masculinos e femininos, expondo tal ambiguidade e

apontando a fluidez da concepção de gênero.

Masculino e feminino: uma convenção social

Quando se trata de estudos a respeito de uma “minoria” – sexual,

étnica ou cultural –, estes se revestem de discussões nos âmbitos social,

político e teórico-crítico, estabelecendo uma articulação a fim de que esses

grupos sejam ouvidos como sujeitos de práticas políticas e discursivas

plenamente ativas, sendo visto previamente em Chico Buarque o discurso da

mulher revolucionando sexualmente na década de 1970. É no âmbito social

que esses grupos tentam delimitar espaços para as diferenças e para suas

334

Page 335: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

especificidades, contando com o amparo da mídia e de algumas ONGs, mas é

no campo acadêmico que questões relativas às identidades e às diferenças vêm

sendo mais discutidas.

A denominada política da identidade teve seu início nos anos 1970

na Europa e nos Estados Unidos, caracterizada pela ênfase relativa às questões

de igualdade e universalidade, em que se dava destaque às questões referentes

à diferença, tendo como reflexo a lógica da dominação que hegemoniza uma

identidade procurando recuperar o polo desvalorizado da dicotomia

homem/mulher. O termo identidade filosoficamente diz respeito àquilo que dá

a alguém sua natureza essencial e sua continuidade bem como ao que faz duas

pessoas ou grupo de pessoas terem características comuns. Ao se falar em

política da identidade, o termo já rege negação e diferença: algo é alguma

coisa, e não outra. É desse ponto que brota a filosofia da diferença em que

qualquer ser humano tem o direito de expressar livremente o seu pensamento e

ser o que quer ser como sujeito.

A política da identidade ganhou notoriedade ao longo do século XX,

adquirindo inúmeras expressões, sempre conectadas à crítica marxista e à

crítica psicanalista. A crítica marxista defendia que o ser humano era

universalizado e socialmente dividido por classes; já a crítica psicanalista

relutava em refletir o indivíduo separado das determinações sociais, postulando

a existência de um ser subjacente dentro de todos os indivíduos, o que

caracterizava uma identidade inconsciente.

As ideias freudianas da estrutura do inconsciente faziam a distinção

entre homens e mulheres, caracterizando a concepção de cada sexo, e sua

distinção estruturava-se no desenho morfológico, sempre definindo o feminino

relacionado ao masculino, em razão da falta, no caso da mulher, do órgão viril. O

modelo edipiano da formação das diferenças entre os sexos se desenvolveu

inicialmente na própria área da psicanálise, refletindo a ideia de que as diferenças

de gênero estavam intrinsecamente ligadas aos aspectos socioculturais. Quanto à

questão da sexualidade, Foucault (1998, p. 10-11) afirma:

Falar da “sexualidade” como uma experiência

historicamente singular suporia [...] os três eixos que a

constituem: a formação dos saberes que a ela se referem, os

sistemas de poder que regulam sua prática e as formas

pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer

como sujeitos da sexualidade. [...] Parecia agora que seria

preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de

analisar o que é designado como “sujeito”; convinha

335Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 336: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação

consigo através das quais o indivíduo se constitui e se

reconhece como sujeito.

Ainda, segundo Butler (2003, p. 24),

se o gênero são os significados culturais assumidos pelo

corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um

sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico,

a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade

radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente

construídos.

Inúmeros estudiosos, a respeito dos estudos de gênero, passaram a

definir o segundo sexo como uma construção social, uma metáfora da alteridade.

O conceito de mulher, ao longo do tempo, sempre foi visto e constituído histórica

e socialmente como o outro, baseando-se em paradigmas da identidade

masculina. Já o masculino sempre foi encarado como algo revestido de certo

poder em relação ao seu oposto. Segundo Scott (1995, p. 75),

[...] precisamos pensá-lo [o poder] muito mais como uma

ação que é exercida constantemente entre os sujeitos e que

se supõem intrinsecamente, formas de resistência e

contestação, do que como algo que possui apenas um polo

e que está ausente no outro.

A partir desse pensamento de Scott (1995), busca-se compreender o

poder ora constituído e convencionado entre os polos da relação binária

homem/mulher, o qual remete às ideias de que certos comportamentos

psicológicos e papéis sociais são completamente impostos aos polos homem e

mulher. Muitas vezes, os cânones sociais elaboram ideias dicotômicas

produzidas pela cultura e pela linguagem.

Segundo Louro (1997, p. 25), “sexo se refere à identidade biológica de

cada um, gênero está ligado à sua construção social como sujeitos masculinos

e femininos”. Albuquerque Júnior (2003, p. 24) complementa: “[...] deixando

o gênero de ser um mero atributo corporal, para ser um produto social”. Sob a

perspectiva de Silva (2002, p. 105), “o conceito de gênero foi criado

precisamente para enfatizar o fato de que as identidades, a masculina e

feminina, são historicamente e socialmente produzidas”, já que é a cultura que

elabora a ideia de identidade e inspira a concepção de gênero, produzida

intelectual e socialmente. Nela, cada ser humano possui uma individualidade

que, consequentemente, realiza a produção do seu imaginário subjetivo, uma

vez que a própria cultura por ele produzida não pode reprimir essa aproximação

336

Page 337: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

da subjetividade humana e a respectiva concepção cultural à qual esse ser

humano está atrelado. Nesse sentido, Geertz (1989, p. 48-49) aponta: “[...] a

humanidade é tão variada em sua essência como em sua expressão”.

Os seres humanos, tidos como principais agentes de cultura,

esquematizam seus juízos de valores a partir do seu contexto histórico,

ideológico e cultural bem como das concepções dessas construções

identitárias, modelando-as, remodelando-as e interagindo na relação tempo-

espaço devido à sua diversidade cultural.

Vê-se aqui a pluralidade da identidade do ser humano, em que cada

um luta pelo seu ideal, seu modo de pensar e de agir, porque, ao se tentar

(des)construir as dicotomias homem/mulher, masculino/feminino, é que se

percebe o quanto um polo possui o outro de forma desviada ou negada, já que

cada um carrega partes desse outro para adquirir sentido. As regras que

regulam o sexo têm o caráter de produzir aquilo que elas nomeiam, repetem e

adéquam à norma dos gêneros numa perspectiva heterossexual.

Essa discussão tem como ponto de partida as ideias de como é

constituído o mito da masculinidade, uma vez que o estereótipo do macho

exclui diferentes dinâmicas subjetivas, fato compreendido como normal, mas

que se pode conceber como algo linguística e culturalmente produzido ao longo

do tempo. Sendo assim, busca-se analisar esses estereótipos por um ângulo

que não venha induzir o leitor a uma dicotomia.

A identidade passa a ser algo que precisa de uma definição, portanto é

necessário que se atribua a ela uma abordagem que a induza a uma

significação, já que ela é cada vez mais multiplamente construída ao longo de

discursos, produzindo assim os estereótipos que reafirmam a identificação dos

seres humanos. Conforme Foucault (2003, p. 39-44),

os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte

também, políticos não podem ser dissociados dessa prática

de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao

mesmo tempo, propriedades singulares e papéis

preestabelecidos. [...] Todo sistema de educação é uma

maneira política de manter ou de modificar a apropriação

dos discursos, com seus saberes e os poderes que eles

trazem consigo.

Dessa forma, não há de se pensar que exista algo que seja

exclusivamente masculino ou feminino. Partindo desse pressuposto, percebe-

se que o polo masculino pode veicular o polo feminino, ou vice-versa. Esse

337Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 338: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

poder quem estabelece são as pessoas que se apossam do poder convencional;

a partir daí, geram-se as possibilidades de quem pode ou não cumprir tais

papéis sociais estabelecidos culturalmente, percebendo-se que ambos,

homem e mulher, podem exercer quaisquer papéis ou funções sociais.

Os estereótipos masculino e feminino regulam e policiam a

sexualidade, mas nem sempre os seres humanos definem com exatidão a sua

sexualidade, na medida em que, para Hall (apud MERCER, 2002, p. 9), “a

identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo

que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da

dúvida e da incerteza”. Já Nolasco (1995, p. 50) afirma:

O estereótipo do macho exclui estas diferentes dinâmicas

subjetivas, fazendo crer ao indivíduo que um homem se faz

sob sucessivos absolutos: nunca chora; tem que ser o

melhor; competir sempre; ser forte; jamais se envolver

afetivamente e nunca renunciar. É a este último modelo que

os homens estão procurando renunciar.

Portanto, o homem que não se enquadra dentro de um contexto

masculino hegemônico consequentemente será visto como o outro que sofrerá

a experiência da discriminação, por não ser aceito dentro dos padrões

determinados para o macho e para a fêmea, sentindo-se um ser humano

submisso, identificado pela antinorma e subjugado à categoria da

marginalidade. Daí, sabe-se que certos comportamentos e preceitos ditos

masculinos e/ou femininos, mantidos como verdades absolutas, reafirmam

que o macho não deve aferir-se pela ótica de condutas ditas femininas e vice-

versa, porque ambos não serão aceitos como normais dentro de uma sociedade

ocidental, em que o currículo aborda características de tendências branca,

machista e cristã.

Ninguém nasce macho ou fêmea, mas se torna linguística e

socialmente elaborado, enquadrando-se neste ou naquele gênero, tentando

entender as narrativas que criam opostamente o outro, em que muitas vezes

não são permissíveis determinados comportamentos dentro de um contexto

social. Para Louro (1997, p. 65), “[...] a linguagem não apenas expressa

relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e

pretende fixar diferenças”.

Antes de sermos determinados pelo gênero, lembremos que somos

seres humanos de ideias conflitantes. Mesmo assim, devemos aceitar com

certo preceito o oposto, já que a diferença é vista como um tanto

discursivamente produzida, e não como se a concretização dessa ideia fosse

338

Page 339: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

natural. Isso ocorre porque esse poder diferencial aflora, suplantando a lógica

dessa dualidade, percebendo que o oposto existe e se faz presente ao buscar no

tempo o seu espaço de aceitabilidade.

Nesse sentido, o ser diferente não existe em absoluto, pois sempre

haverá uma relatividade entre o outro não diferente para se constituir

inversamente o diferente. A identidade e a diferença pertencem à mesma

categoria das construções sociais de identificação, que implicam a exclusão e a

concepção do outro. De acordo com Silva (2002, p. 87),

para a concepção pós-estruturalista, a diferença é

essencialmente um processo linguístico e discursivo. A

diferença não pode ser concebida fora dos processos

linguístico e discursivo. A diferença não é uma

característica natural: ela é discursivamente produzida.

A teoria queer surge como uma nova possibilidade, uma nova

perspectiva, um novo horizonte para se questionar a respeito de como

redimensionar as ideias sobre gênero e identidade, tornadas fixas, prontas e

modeladas socialmente. A partir dela, é possível desvendar intelectualmente

aquilo que ainda teoricamente está intacto e inexplorado. A teoria queer é aqui

abordada porque suas temáticas servirão como ponto primordial para se

repensar e se (des)construir as ideias dicotômicas e estereotipadas de

masculino/feminino. Para Louro (2004, p. 45): “Segundo os teóricos e teóricas

queer, é necessário empreender uma mudança epistimológica que efetivamente

rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia,a classificação, a

dominação e a exclusão”. Ainda, de acordo com Silva (2000, p. 108),

[...] as identidades não são nunca unificadas, que elas são

na modernidade tardia cada vez mais fragmentadas e

fraturadas, que elas não são, nunca, singulares, mas

multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas

e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As

identidades estão sujeitas a uma historização radical,

estando constantemente em processo de mudança e

transformação.

Conforme Hall (2002, p. 71), “[...] a modelagem e a remodelagem de

relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm

efeitos profundos sobre as formas como as identidades são localizadas e

representadas”.

Em face de sua devida sexualidade, o ser humano será direcionado por

padrões canônicos durante seu percurso de vida, no qual há provas, confrontos

339Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 340: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

e conflitos que ele terá de se submeter, em razão do que já está predeterminado

e prescrito nos cânones para cada um.

Não existe um sujeito unificado preexistente, há sujeitos modelados

pelos padrões regulamentadores da sua existência. Louro (2004, p. 13)

entende que “não há lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa

é o movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto”.

Experimentar o proibido é o que cabe àqueles que transgridem as

regras preestabelecidas que delimitam o seu rumo ou direcionamento, em que

as características físicas são vistas como diferencial, atribuindo uma gama

significativa de cultura. Segundo Louro (2004, p. 15), “tal lógica implica que

esse 'dado' sexo vai determinar o gênero e induzir a única forma de desejo.

Supostamente, não há outra probabilidade senão seguir a ordem prevista”. O

compromisso com a masculinização e a feminilização do ser é uma convenção

do sujeito; o viver no perigo cabe aos transgressores do percurso, não havendo

como impedir aqueles que atravessam e subvertem as normas, os quais são

certamente os primeiros a serem localizados e escolhidos pelas entidades

corretivas e de recuperação, uma vez que para eles são prescritas exclusões e

penalidades.

De acordo com Louro (2004, p. 20), “a drag escancara a

construtividade dos gêneros. Perambulando por um território inabitável,

confundindo e tumultuando, sua figura passa a indicar que a fronteira está

muito perto e que pode ser visitada a qualquer momento”.

Ao se perceber que o polo masculino pode possuir o oposto, analisa-se

como a fronteira está tão próxima que pode ser considerada e revista como algo

adjacente ao modo de como cada ser a concebe. Se um sujeito se pronuncia

como a representação da feminilidade, sempre terá seus limites, suas

possibilidades e suas restrições.

No conjunto da sociedade, muitas mulheres lutam para serem

reconhecidas e ao mesmo tempo incluídas em termos de igualdade e

legitimação, embora muitas outras desafiem as fronteiras tradicionais de

gênero, preocupando-se apenas em pôr em questão as dicotomias

masculino/feminino, homem/mulher. Já outros grupos de mulheres não estão

satisfeitos em atravessar as divisões e permanecem vivendo a ambiguidade da

própria fronteira.

Quando se aborda o que promulga a teoria queer, os termos

homem/mulher passam a ser analisados de forma mais eficaz, colocando em

xeque a naturalização da heterossexualidade e a diversidade de identidades

340

Page 341: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

em jogo bem como questionando as estreitas relações do eu com o outro. A

diferença não estaria ausente, mas sempre presente e fazendo sentido,

desestabilizando o sujeito e problematizando as estratégias normalizadoras

que sempre pretenderam ditar e restringir as formas do ser e do viver. A

temática queer não impõe, não é canônica, e sim coloca em questão as

discussões amplas das identidades que são múltiplas, não é dualista, foge ao

enquadramento e não propõe ações corretivas àqueles que a hostilizam.

Segundo Louro (2004, p. 59),

polêmicas e debates são frequentes entre esse grupo de

intelectuais que mantém, contudo, alguns pontos em

comum, já que a maioria se apoia na teoria pós-

estruturalista francesa e apela para estratégias

descentradoras e desconstrutivas em suas análises. Sua

produção tem pretensões de ruptura epistemológica;

portanto, esses teóricos e teóricas querem provocar um

jeito novo de conhecer e também pretendem apontar outros

alvos do conhecimento.

Uma política de nova informação cultural é o que pretendem os

teóricos/as queer. Dessa forma, pode-se chegar a um ponto que estimule outro

modo de conceber e de se pensar outros interesses aos educadores. Nessa

questão, está implícito procurar conceber uma mudança epistemológica que

rompa com as binaridades e seus efeitos: de rotulação e de exclusão, já que o

alvo da política queer está em fazer uma crítica à oposição homem/mulher,

compreendida como uma dicotomia que sempre organiza as práticas sociais e

não propriamente o destino desses sujeitos.

Os questionamentos que podem ser feitos relativos à teoria queer são

inúmeros, sendo importante lembrar que não existe uma origem ou um começo

para essa teoria. O óbvio é que sua formação discursiva permite seu surgimento

em um dado contexto, porque, para o ativista queer, o importante é atravessar,

desconfiar do que está posto, sempre colocando toda a situação em

questionamento para que possa haver novas discussões, das quais possam

brotar outros pensamentos e consequentemente novas possibilidades de

redirecionamento.

Com essas abordagens amplamente discutidas, e verificando um

lirismo feminino presente em algumas composições musicais de Chico Buarque,

faz-se valer a possibilidade de (des)construção do que se pensa como masculino

e feminino, ao se perceber que determinadas composições buarquianas trazem

visões de características comportamentais ditas femininas, uma vez que o

compositor assume em suas canções uma voz lírica feminina.

341Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 342: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Quando se constata o teor de tais canções, nota-se a ideia de como um

homem pode relatar o mundo dito feminino com tanta presteza sem perder

suas características ditas masculinas. A partir desse pressuposto, chega-se à

conclusão de que o homem pode compreender o comportamento psicológico

dito feminino, já que as próprias composições buarquianas, aqui

mencionadas, denotam essa pluralidade da concepção de gênero. Sendo

assim, tenta-se (des)construir a lógica suplantada do pensamento

historicamente constituído nas relações binárias homem/mulher e

masculino/feminino, lembrando que no estudo de gênero não se deve reforçar

tais binaridades identitárias.

O feminino nas canções buarquianas

Ao se analisar a obra buarquiana, é perceptível, em algumas canções

aqui selecionadas, um lirismo feminino que o próprio Chico Buarque se

encarregou de descrever eloquentemente, falando da alma feminina de uma

forma que lhe é bem peculiar. Nesse sentido, Meneses (2006, p. 103) aponta:

“No entanto, o poeta não fala apenas da mulher, ou à mulher. Assumindo o eu

lírico feminino, ele fala como mulher. E de um ponto de vista, por vezes,

espantosamente feminino”. As imagens de mulher assim como os papéis e

identidades que emergem dessas canções compõem as representações sociais

do que se convencionou chamar de comportamentos ditos femininos; essa

constelação de imagens alude às várias concepções desse mesmo feminino.

Segundo Butler (2003, p. 47), “se é possível falar de um 'homem' com um

atributo masculino e compreender esse atributo como um traço feliz, mas

acidental desse homem, também é possível falar de um 'homem' com um

atributo feminino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade

do gênero”. Fontes (2003, p. 10) reflete a respeito de Chico Buarque dizendo:

Como poeta do seu tempo, ele é consciente da condição da

mulher na sociedade, da operação oriunda de situações

econômicas e culturais, refletindo nas relações conjugais e

também do fascínio, encanto e atração feminina que

redundam em prazeres físicos e espirituais na relação

homem/mulher.

Ramos (2006, p. 147) ressalta:

Na música popular de Chico Buarque de Holanda,

encontram-se muitas vozes que constituem a sociedade

brasileira. Vozes daqueles que, em princípio, não têm voz,

que são calados pela repressão emocional, social,

342

Page 343: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

econômica e política. Vozes daqueles que não conseguem

dizer, dos que são marginalizados no sistema. A obra de

Chico é plural pelos diversos enfoques que ela acolhe e

revela e também pelas visões assumidas tanto da condição

feminina como da masculina.

Em suas canções aqui estudadas, inúmeras temáticas são notórias e

sempre relacionadas ao comportamento dito feminino. Nelas, o

comportamento das prostitutas desvia-se dos padrões que a sociedade sempre

concebeu para a mulher, pois buscam o prazer sexual e falam a respeito dele

com seus parceiros.

Nesse sentido, percebem-se mudanças no comportamento feminino

na materialidade linguística dessas canções, no momento em que essas

mulheres relatam “segredos” encobertos pelo discurso hegemônico masculino

ao longo dos tempos. Dessa forma, as mulheres passam a assumir

comportamentos antes consagrados como masculinos. São as mulheres

aventureiras do sexo, expondo seu desejo sexual desmedido em “Folhetim” e

em “Tango de Nancy”.

Enfim, é a mulher revolucionando sexualmente em plena década de

1970, uma vez que a mulher buarquiana é concebida e revestida de pleno

poder de fala e discurso, quando ela fala por si mesma, refletindo esses

comportamentos sociais, antes somente concebidos para o homem. A respeito

desse poder discursivo da mulher em Chico Buarque, Foucault (2004, p. 10)

afirma: “Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente

formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um

objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída

historicamente”.

Folhetim

Se acaso me quiseres

Sou dessas mulheres

Que só dizem sim

Por uma coisa boa

Uma noitada boa

Um cinema, um botequim

E, se tiveres renda

Aceito uma prenda

343Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 344: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

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Qualquer coisa assim

Como uma pedra falsa

Um sonho de valsa

Ou um corte de cetim

E eu te farei as vontades

Direi meias verdades

Sempre à meia luz

E te farei vaidoso, supor

Que és o maior e que me possuis

Mas na manhã seguinte

Não conte até vinte

Te afasta de mim

Pois já não vales nada

És página virada

Descartada do meu folhetim.

(CHICO BUARQUE, 1978).

A prostituta descrita por Chico Buarque nessa canção vem afirmar sua

personalidade de mulher que usa o homem de forma a seduzi-lo com palavras,

como em: “Direi meias verdades sempre à meia luz”; “E te farei vaidoso supor”.

Ela é a mulher que exerce certo poder na relação amorosa, nesse caso, em

correspondência ao sujeito masculino, no momento em que ele está sendo o

objeto do desejo: “Que és o maior e que me possuis”.

Ao amanhecer, essa prostituta descarta o “amado”, já que ela

está disponível para outros homens. Como se vê em “Sou dessas mulheres que

só dizem sim”, ela não rejeita a possibilidade de ser amada por outros: “Te

afastas de mim”, “És página virada”, “Pois já não vales nada”. Revestida de

certo discurso feminino, a mulher buarquiana vem reafirmar comportamentos

sociais antes apenas concebidos para o homem, porque falar de vida amorosa,

de prazeres sexuais e de vida a dois com tanta presteza sempre foi

comportamento concedido aos homens.

Page 345: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Tango de Nancy

Quem sou eu para falar de amor

Se o amor me consumiu até a espinha

Dos meus beijos que falar

Dos desejos de queimar

E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha

Quem sou eu para falar de amor

Se de tanto me entregar nunca fui minha

O amor jamais foi meu

O amor me conheceu

Se esfregou na minha vida

E me deixou assim

Homens, eu nem fiz a soma

De quantos rolaram no meu camarim

Bocas chegavam a Roma passando por mim

Ela de braços abertos

Fazendo promessas

Meus deuses, enfim!

Eles gozando depressa

E cheirando a gim

Eles querendo na hora

Por dentro, por fora

Por cima e por trás

Juro por deus de pés juntos

Que nunca mais.

(CHICO BUARQUE; EDU LOBO, 1985).

Mais uma canção que reflete o submundo da prostituição. O primeiro

verso já alude a um questionamento da própria prostituta, que não vive um

momento prazeroso por amor: “Quem sou eu para falar de amor”. Assim, o

tema amor não é reservado às prostitutas, pois elas não devem amar. É comum

ouvir tal afirmação em relação às prostitutas, como é o caso de “Ana de

Amsterdã”, que cruzou o mar na esperança de casar. Sabe-se que sentimentos

relacionados a amor, família e filhos não são reservados às prostitutas.

345Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 346: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

346

Os versos “Se de tanto me entregar nunca fui minha” e “Homens eu não

fiz a soma de quantos rolaram no meu camarim” vêm reafirmar a vida fugaz da

prostituição, são marcas registradas nessa canção, que traduz o mundo sem

sentimentos formais, vivenciado por aquelas que estão na prostituição.

Esses comportamentos discursivos em que se expõe o prazer sexual

sempre foram constituídos para os homens. Sendo assim, as mulheres

passam, nas canções de Chico Buarque, a exercer comportamentos antes

concebidos para os homens, apresentando uma pluralidade de

comportamentos e apontando a indeterminação textual proposta pela teoria

queer. Sobre a politização do corpo, Foucault (2002, p. 25-26) afirma:

Mas o corpo também está diretamente mergulhado num

campo político; as relações de poder têm alcance imediato

sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o

suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a

cerimônias, exigem-lhe sinais. [...] Trata-se de alguma

maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos

aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se

coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos

e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.

O homem sempre foi o personagem dominante nas relações sociais,

mas, em plena década de 1970, surgem figuras emblemáticas na sociedade

carioca e brasileira que se destacaram por causar certo impacto

comportamental devido às suas performances, que fugiam aos padrões

denominados e consagrados como femininos. Dentre essas figuras, destacou-

se Leila Diniz.

A busca pela emoção e a exposição sem constrangimentos do seu

prazer sexual caracterizaram uma mulher que assume uma postura ativa de

viver seu oposto, incorporando aspectos do viver masculino, sem, contudo,

masculinizar-se. É a mulher que se situa além do sistema de dominação

masculina, sempre numa posição de paridade, evitando buscar seu exercício

da dominação sobre o homem.

Assim são as prostitutas descritas por Chico Buarque, as quais se

expõem nessas canções ao falarem de sexo, de vida conjugal e de afetividade

com seu parceiro, sem receios de se mostrarem publicamente ao relatarem sua

vida sexual de forma tão explícita. As canções buarquianas se constituem de

um eu lírico feminino, o que aponta Chico Buarque como um compositor

brasileiro que consegue explicitamente (des)montar a binaridade

masculino/feminino.

Page 347: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Conclusão

Este trabalho baseou-se na questão das binaridades consagradas

social e culturalmente entre os polos masculino/feminino, privilegiando o

discurso buarquiano, em que o teor feminino se faz plenamente visualizado,

identificando uma mulher revolucionária na década de 1970, ao expor

publicamente seus desejos sexuais e seus anseios por aventuras amorosas. Ao

tomar essas canções buarquianas como corpus deste trabalho, foi possível

compreender que o homem também pode veicular o denominado

comportamento feminino independentemente do seu sexo. Com isso, não se

quer reforçar os estereótipos, nem consagrar as dicotomias, mas investir

politicamente, tentando desestabilizar verdades hegemônicas a respeito do

masculino/feminino consagradas pela rigidez da lógica das binaridades ao se

enfatizar aquilo que se convencionou como normal.

Numa perspectiva permeada pela pós-modernidade, passa-se a

redefinir o estudo do gênero, em que a binaridade masculino/feminino torna-se

um alvo, não necessitando reforçar tal dicotomia estereotipada, consagrada ao

longo do tempo como natural. Isso se mostra possível quando se institui uma

realidade permissível, abrangendo as condições do sujeito como um ser não

contraditório em relação à sua sexualidade. Butler (2003, p. 52) afirma:

O “sujeito” masculino é uma construção fictícia, produzida

pela lei que proíbe o incesto e impõe um deslocamento

infinito do desejo heterossexualizante. O feminino nunca é a

marca do sujeito; o feminino não pode ser o “atributo” de um

gênero. Ao invés disso, o feminino é a significação da falta,

significada pelo Simbólico, um conjunto de regras linguísticas

diferenciais que efetivamente cria a diferença sexual.

Aos poucos, verificou-se a importância do discurso feminino

buarquiano para a desestabilização da dicotomia masculino/feminino,

consagrada pelo estereótipo masculino ao longo do tempo. Chico Buarque é o

compositor brasileiro que rompe a fronteira do gênero, apontando um horizonte

de possibilidades ao expor seu lirismo feminino e consagrar a ruptura da

fronteira do gênero, assinalando o que afirma Butler (2003, p. 24): “[...] com a

consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade,

significar tanto um corpo feminino como um masculino e mulher e feminino,

tanto um corpo masculino como feminino”.

347Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348

Page 348: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Referências

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348

Page 349: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Resenha

Page 350: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS
Page 351: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Na busca de atribuição de sentido para as alterações das práticas

socialmente compartilhadas e empreendidas pelos indivíduos na vida urbana,

podem-se apontar, em linhas gerais, a orientação pela via do risco e do medo,

que vem se formando desde a derrocada do Estado de bem-estar social, e a

emergência do Estado mínimo e de aspectos sociais, econômicos e culturais

que valorizam as práticas que se voltam para a busca objetiva por proteção, que

é direcionada contra um inimigo amorfo. Essas mudanças geram resultados

ambivalentes de uniformização do espaço urbano, cindindo ainda mais

firmemente ricos e pobres, como também trazem a possibilidade de aproximar

ainda mais as pessoas, já que as cidades contemporâneas juntam, aglomeram

e aproximam aqueles que querem se separar.

Essa é a questão fundamental que anima a análise realizada pelo

sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Confiança e Medo na Cidade. O

sociólogo, ao produzir um trabalho ensaístico sobre a nova configuração urbana

que vem se delineando nas grandes cidades, procura compreender as

alterações sociais e psicológicas dessa mudança. Apesar de não ser referência

do seu trabalho, Bauman parece querer compreender as características sociais

constitutivas do novo fenômeno urbano, tal como fez o sociólogo e filósofo

alemão Georg Simmel (1979) há mais ou menos um século.

Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está organizada em

três capítulos, nos quais são discutidos os impactos engendrados pela

emergência das mudanças urbanas acarretadas, especialmente, na fase

líquido-moderna da sociedade ocidental.

Na estruturação da obra, percebe-se claramente um nexo entre os

capítulos, permitindo dividi-la em três partes. De início, o autor apresenta uma

351Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355

CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE

ZYGMUNT BAUMAN

Por Daniel Gonçalves de MenezesGraduado, Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN

[email protected]

Page 352: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

pormenorizada análise sobre as questões que dizem respeito à confiança e ao

medo na cidade, demonstrando que esse medo e o desejo de um “porto

seguro”, que praticamente nunca é encontrado, em grande medida,

relacionam-se com a construção de um processo sociourbanístico, que cria e

generaliza uma nova sensação de insegurança. Posteriormente, ele expõe os

efeitos perversos e as possibilidades positivas desse processo. No último

capítulo, reflete sobre aquele que, talvez, seja o maior inimigo

fenomenologicamente construído do homem urbano: o “estrangeiro”.

O primeiro capítulo traz a perspectiva crítica de apresentação e análise

dos fatores constitutivos da cultura do medo, a qual vem se consolidando nos

espaços urbanos. A cidade, reflete Bauman (2009), que emergiu como um

espaço para proteger as pessoas dos “outros”, que não faziam parte do “nós”,

agora parece perder sua função, sendo dominada por uma cultura do medo.

Essa cultura do medo, reproduzida principalmente – mas não apenas

– pela classe média, avaliza políticas de controle e repressão com a

esperança de que seu problema seja dissipado. O problema é que, dominados

pelo individualismo moderno e pela integração pela via do afastamento, os

agentes promovem o fim dos antigos e sólidos laços sociais em prol de uma

tentativa desenfreada, ao mesmo tempo incerta, de superar a insegurança

em que imaginam viver. As cidades social-democratas, que tinham uma

relativa organização do “medo”, cedem espaço às novas aglomerações

urbanas proporcionadas pela desregulamentação do Estado mínimo e do

capitalismo flexível.

O capitalismo, que se organiza de modo cada vez mais global, forma

uma agenda urbanística que acompanha esse crescimento. Porém, essa nova

configuração sociourbana deixa pouca brecha para as intervenções da política,

que, em certo sentido, agem em âmbito local. Incapazes de resolver os seus

“problemas”, os cidadãos passam a procurar supri-los nas promessas

mercadologicamente montadas para isso, criando o que Bauman (2009) chama

de uma verdadeira “mixofobia” – o desejo de segurança, que se confunde com o

isolamento e com a suspeita crescente com relação ao “outro” e ao “diferente”.

Nada de mistura nem de aproximações. Somente os muros e os condomínios

fechados podem, nessa perspectiva, resolver o problema das pessoas.

Bauman (2009), apesar do pessimismo inicial, tenta vislumbrar

alternativas para essa jaula de ferro em que se transformaram os lares das

pessoas. Deve-se perseguir aquilo que ele denominou de “mixofilia”, que é a

tentativa de criar um ambiente propício para uma fusão de horizontes onde a

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Page 353: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

diferença é não apenas respeitada, mas também valorizada. Se por um lado há

uma desintegração do antigo “nós” sólido-urbano, a cidade, em suas novas

manifestações urbanas, cria condições para que os indivíduos,

inevitavelmente, aproximem-se e passem a experimentar novas sensações de

convívio e respeito com relação ao outro, já que os muros apresentam limites e

as pessoas se veem obrigadas a interagir com o “outro”. Daí pode surgir a

composição de um novo “nós”, baseado na “mixofilia”.

No segundo capítulo, Bauman (2009) disseca as implicações sociais

da arquitetura que nasce com a cultura do medo, da incerteza e do risco. A

arquitetura do medo tende a uniformizar. Os espaços modernos planejados

pelos arquitetos e administradores públicos modernos, que privilegiavam o

acesso e o convívio público, são reconstruídos em prol da uniformização das

casas dos residenciais vigiados pelas câmeras de seguranças, atravessadas por

muros e cercas eletrificadas. As praças e os espaços urbanos de convívio social

perdem a sua significação e são fortemente contestados pelas novas gerações,

aquelas que, justamente, mais sofrem com esse próprio esvaziamento urbano.

As consequências não intencionais das ações dos agentes

preocupados com a segurança e que compram suas casas nesse novo ambiente

uniforme são a de gerar, ao contrário do que eles desejam, ainda mais medo e

incerteza. Nunca é possível estar totalmente seguro. Somente a convivência

diversa e democrática pode produzir o aprendizado social necessário para que

os atores consigam conviver e, quem sabe, superar os riscos por eles mesmos

construídos.

Diz Bauman (2009, p. 74) já no terceiro capítulo: “[é preciso] ver,

reconhecer e resolver os problemas da convivência”. Somos sempre os

estrangeiros do outro, já que nos caracterizamos como vizinhos de pessoas

que, em muitos momentos, mal nos conhecem, mas que também não

conhecemos.

Essa diferença vem sendo encarada nas novas agregações urbanas,

através do estabelecimento de fronteiras com o “estrangeiro”, tentando,

sobretudo, construir moradias “vedadas”, em que não há brecha para qualquer

ente externo. Seria o nosso “aconchego”. Um lugarzinho só nosso, longe de

toda a “loucura” e “parafernália” da cidade.

O fato é que as cidades, na visão de Bauman (2009), transformaram-

se em depósitos de “lixo humanos” – pessoas totalmente supérfluas. Não se

trata mais do antigo “desempregado”, que, mesmo que isso em regra não

acontecesse, tinha a possibilidade de ser novamente “inserido”. Era um

353Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355

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horizonte, em certa medida, possível. Agora há o simples descarte das pessoas.

Essas pessoas não apresentam qualquer possibilidade de serem “absorvidas”

pelo sistema. Perderam a condição de serem chamadas de “gente”. Os espaços

públicos cuidam, nas novas cidades, de expulsá-los e impedir que eles durmam

num banco de uma praça ou façam um alojamento na grama de um parque.

Bancos desconfortáveis para dormir e até sensores de água e de barulhos vêm

sendo instalados nas principais cidades da Europa com o intuito de promover

essa política de “limpeza humana”.

Além disso, a mesma cidade que abriga os condomínios de luxo

produz os guetos da underclass, horroroso conceito americano, diz Bauman

(2009), cunhado para enquadrar acriticamente os membros de uma suposta

“classe inferior”.

Os cidadãos ditos de “bem”, quando procuram um lugar seguro,

querem, de fato, esquecer que isso existe e se livrar dos membros da

underclass. O “estrangeiro” precisa ser extirpado. O paradoxal é que, ao

tentarem criar maior segurança e conforto para si próprios, os membros dos

condomínios fechados perdem a capacidade de convívio com o outro

estrangeiro, o que aguça ainda mais o medo de qualquer tipo de contato com

outras pessoas, incapacitando-as.

A questão é que essa separação nunca será total. As cidades se

formam e a maior parte do gênero humano mundial já vive nelas e a tendência é

só crescer. É nesse sentido que Bauman (2009) afirma que, em vez de um

choque de civilizações, deve existir um encontro de vizinhos, pois, para o bem

da própria humanidade, a ideia de espaços urbanos vedados não é real. São

respostas construídas para os medos também construídos. Nesse panorama, o

homem tem a tarefa de tornar a comunidade dos homens direcionada para a

compaixão e para a plena compreensão e convívio com o outro.

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Page 355: Gênero e Sexualidades ESTUDOS GAYS

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: PEREIRA, Luiz (Org.). O fenômeno

urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

355Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355

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f) no caso de títulos com organizador(es): utilizar o sistema SOBRENOME, Prenome (Org.). Título da obra. Local de publicação: editora, data.

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h) no caso de artigos de jornais: utilizar o sistema SOBRENOME, Prenome. Título do artigo. Título do jornal, local, dia, mês, ano. Título do caderno.

i) no caso de artigos de revistas: Título da Revista. Ano, número, periodicidade. Notas especiais.

7. Os textos devem ser encaminhados com revisão prévia. O envio dos textos a consultores/pareceristas fica condicionado ao cumprimento dessa exigência.

8. Os artigos encaminhados serão avaliados por pelo menos dois consultores, escolhidos pelo Editor.

Autores interessados em enviar trabalhos devem consultar periodicamente as chamadas de artigos em www.cchla.ufrn.br/revistabagoas

Cada autor receberá 2 (dois) exemplares do volume em que publicou artigo de sua autoria.

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* Em obediência à MP 567/2012, esta variação passa a ser 51, a partir de maio do ano corrente.

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