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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341262

    A GENTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE

    FALCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS EDESLUMBRAMENTOS

    Eduardo Luiz Santos Cabette

    Delegado de Polcia; Mestre em Direito Social; Ps-Graduado com especializaoem Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal eLegislao Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro do Grupo de

    Pesquisa de Biotica e Biodireito da Unisal Campus de Lorena-SP.

    Pior do que o escuro em que nos debatemos a mania de ser o dono da luz.Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.

    Nada se sabe, tudo se imagina.Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107.

    INTRODUO

    O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da gentica que descortinam a

    possibilidade de uma gigantesca revoluo a alterar profundamente as relaes do

    homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.

    A violncia e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, no poderiam ficar

    imunes s irradiaes dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados

    supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse

    ramo cientfico.

    Em um estgio no qual j se reconhece com alguma dose de consenso que as

    simplificaes e os isolamentos no so capazes de explicar ou descrever a

    realidade. Quando parece estar compreendido que o todo no uma singela soma

    das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos,

    surge a gentica, apresentada quase invariavelmente sobre uma base

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    marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de

    ordem o isolamento (isolamento de genes, de caracteres etc.).

    Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genticas

    pode influenciar os estudos criminolgicos, ocasionando uma importante alterao

    de rota. Tambm relevante demonstrar como essa alterao de trajetria do

    pensamento criminolgico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos,

    prenhes de autoritarismo e de potenciais violaes dignidade humana.

    Uma inicial incurso acerca da evoluo histrica do pensamento criminolgico, ser

    capaz de mostrar como aquilo que a aplicao da gentica no campo criminolgico

    hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, no passa da repristinao de

    velhos paradigmas etiolgicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram

    equivocadas e ilusrias.

    Finalmente, ser objeto de discusso a necessidade de reflexo a anteceder

    qualquer tomada de posio e, principalmente, qualquer atitude que possa de

    alguma maneira atingir a existncia humana, ensejando vilipndios a tudo aquilo que

    caracteriza o ser do homem.

    1 ESBOANDO UMA EVOLUO HISTRICA DA CRIMINOLOGIA1

    O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estudos criminolgicos encontra-se

    no surgimento do Positivismo e, mais especificamente, da chamada Antropologia

    Criminal. Nessa ocasio opera-se uma mudana singular no que diz respeito ao

    objeto das preocupaes da cincia criminal. Enquanto a Escola Clssica Liberal

    preocupava-se com o estudo dos postulados jurdico penais, procurando

    desenvolver uma formulao terico dogmtica do Direito Penal, o advento da

    Antropologia Criminal propicia uma alterao de perspectiva, voltando os olhos da

    1 Um desenvolvimento mais aprofundado desta temtica j foi por ns levado a efeito em outrotrabalho. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A criminologia no sculo XXI. Revista Forense. Volume374, jul./ago., 2004, p. 53-78.

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    pesquisa cientfico criminal para o estudo do fenmeno do crime e, especialmente,

    da figura do criminoso.

    O Positivismo exerce grande influncia na conformao dessa nova postura, pois

    que defende a irradiao do mtodo cientfico para todas as reas do saber humano,

    at mesmo s da filosofia e da religio. Nesse contexto, o Direito e especificamente

    o ramo jurdico criminal, tambm passaram a sofrer influncias importantssimas

    desse referencial terico ento dominante.

    O Positivismo Jurdico aproxima o Direito, o quanto possvel, ao mtodo das cincias

    naturais, objetivando limita-lo quilo que tenha de concreto, observvel, passvel de

    mensurao e descrio. Por isso que seu resultado acaba sendo a limitao do

    Direito s normas legais, evitando a considerao de fatores axiolgicos, metafsicos

    etc.

    O afastamento rigoroso das questes que no fossem subsumveis ao mtodo de

    experimentao cientfico, ensejou, no bojo das cincias criminais, o nascimento da

    busca de relaes e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o

    fenmeno da criminalidade.

    A Criminologia exsurge dessa efervescncia, desse entusiasmo pelo mtodo

    cientfico, dando destaque nunca dantes constatado ao estudo do homem criminoso

    e pesquisa das causas da delinqncia.

    Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com

    sustentao em dados empricos ofertados pela demonstrao experimental de leisnaturais seguras e imutveis.

    O criminoso passa a ser objeto de estudo, uma fonte de pesquisas e experimentos

    com vistas descoberta cientfica das causas do fenmeno criminal.

    A obstinada busca de causas explicativas do agir criminoso em oposio s

    condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negao do livre arbtrio,

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    apontado at ento pela Escola Clssica como verdadeiro fundamento legitimador

    da responsabilidade criminal.

    claro que a noo de livre arbtrio no poderia servir a uma concepo positivista,

    pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto s prticas

    criminosas. A postura positivista no se coaduna com tal insegurana. Deseja

    apropriar-se de um conhecimento que propicie o domnio seguro de leis constantes

    a regerem o mundo e, por que no, o comportamento humano, inclusive aquele

    desviado.

    A conseqncia imediata foi a considerao do criminoso como um anormal. A

    partir da, bastaria dotar o pesquisador de instrumentos hbeis a selecionar, de

    forma cientfica, os criminosos (anormais), em meio populao humana

    aparentemente homognea ou normal.

    O primeiro grande passo dado por um pesquisador nesse sentido foi a doutrina

    preconizada por Cesare Lombroso, destacando-se a publicao de sua conhecida

    obra O homem Delinqente, em 1876.

    Lombroso entendia ser possvel detectar no criminoso uma espcie diferente de

    homo sapiens, o qual apresentaria determinados sinais, denominados stigmata,

    de natureza fsica e psquica. Esses sinais caracterizariam o chamado criminoso

    nato (v.g. forma da calota craniana e da face, dimenses do crnio, maxilar inferior

    procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e

    deformadas, corpo assimtrico, grande envergadura dos braos, mos e ps, pouca

    sensibilidade dor, crueldade, leviandade, tendncia superstio, precocidadesexual etc.). Todos esses sinais indicariam um regresso atvico, tendo em conta

    sua clara aproximao com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso

    intentou demonstrar uma ligao entre a epilepsia e aquilo que chamava de

    insanidade moral.

    Percebe-se claramente o contedo determinista das teorias lombrosianas, o qual

    conduziria a importantes concluses e conseqncias para a Poltica Criminal. Ora,

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    se o criminoso estava exposto conduta desviada forosamente, tendo em vista

    uma congnita predisposio, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovao que

    fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto sua conduta, isso pelo simples

    motivo de que no atuava por sua livre escolha, mas sim dirigido por foras naturais

    irresistveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sendo, jamais

    poderia ser exposto a apenaes morais e infamantes. No obstante, sendo as

    prticas criminosas componentes indissociveis de sua personalidade, estaria a

    sociedade legitimada a defender-se, impondo-lhe desde a priso perptua at a

    pena de morte.2

    A doutrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por

    estudos ulteriores que comprovaram a inexistncia de indcios seguros a

    demonstrarem qualquer diferena fisiolgica, fsica ou psquica entre homens que

    perpetraram atos criminosos e indivduos cumpridores da lei.

    No obstante, deve ser atribudo a Lombroso o mrito de ser o primeiro a

    impulsionar os estudos que dariam origem Criminologia. Ele iniciou, com a sua

    Antropologia Criminal, os estudos do homem delinqente, razo pela qual tem sido

    considerado o verdadeiro Pai da Criminologia.3 A partir dele comeam os mais

    diversos campos de pesquisa de elementos endgenos capazes de ocasionarem o

    comportamento criminoso.

    Inmeras investigaes cientficas nos mais variados campos das cincias naturais

    e biolgicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas do fenmeno

    criminal. A esse conjunto costuma-se denominar Criminologia Clnica.

    Pode-se exemplificar essa corrente criminolgica com alguns de seus ramos mais

    destacados: Biologia Criminal, Criminologia Gentica4, Psiquiatria Criminal,

    Psicologia Criminal, Endocrinologia Criminal, Estudos das Toxicomanias etc.

    2 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. So Paulo: RT, 1995, p. 75.3Op. cit., p. 82.4 O tema presente ser melhor desenvolvido em itens posteriores.

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    Todas essas linhas de pesquisa tm como trao comum a busca de uma explicao

    etiolgica endgena do crime e do homem criminoso. Procura-se apontar uma causa

    da conduta criminosa que estaria no prprio homem, enquanto alguma forma de

    anormalidade fsica e/ou psquica. Tambm todas essas teorias apresentam um

    equvoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenmeno da

    criminalidade.

    Em contraposio Criminologia Clnica, surge a denominada Criminologia

    Sociolgica, tendo como seu mais destacado representante Enrico Ferri.

    A Criminologia Sociolgica prope uma reviso crtica da Criminologia Clnica,

    pondo a descoberto que a insistncia desta nas causas endgenas da

    criminalidade, olvidava as importantes influncias ambientais ou exgenas para a

    gnese do crime. Alis, para os defensores da Criminologia Sociolgica, as

    causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exgenas,

    de forma que mais relevante do que perquirir as caractersticas do homem

    criminoso, seria identificar o meio crimingeno em que ele se encontra.

    No entanto, a Criminologia Sociolgica em nada inova no que tange postura de

    procurar uma etiologia do delito. Os criminlogos ainda insistem em encontrar

    causas para o crime, somente alterando a natureza destas, transplantando-as do

    criminoso para o ambiente crimingeno. Em suma, muda o locus da pesquisa,

    mas no muda a natureza claramente etiolgica desta.

    Os estudos relativos atuao do ambiente na criminalidade so variegados,

    podendo-se mencionar alguns ramos a ttulo meramente exemplificativo: GeografiaCriminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrio, Sistema

    Econmico, Mal vivncia, Ambiente familiar, Profisso, Guerra, Migrao e

    Imigrao, Priso e contgio moral, Meios de Comunicao etc.

    Ainda no matiz sociolgico deve-se dar ateno especial s chamadas Teorias

    Estrutural-Funcionalistas, as quais podem ser tratadas como item apartado, tendo

    em vista suas peculiaridades.

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    As Teorias Estrutural-Funcionalistas afirmam que o crime produzido pela prpria

    estrutura social, inclusive exercendo uma certa funo no interior do sistema, de

    maneira que no deve ser visto como uma anomalia ou molstia social.

    A base terica principal ofertada por mile Durkheim que d nfase para a

    normalidade do crime em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referncia

    que o crime normal porque uma sociedade isenta dele completamente

    impossvel. 5 Mas, o autor vai alm, chegando a reconhecer que o crime no

    somente normal, mas tambm necessrio para a coeso social, sendo uma

    sociedade sem crimes indicadora, esta sim, de deteriorao social. Durkheim indica

    o fenmeno criminal como reafirmador da ordem social violada e, portanto,

    legitimador de sua existncia. Toda vez que acontece um crime, a reao

    desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigncia

    das normas legais. 6

    Portanto, o desvio funcional, somente tornando-se perigoso ao exceder certos

    limites tolerveis. Em tais circunstncias pode eclodir um estado de desorganizao

    e anarquia, no qual todo o ordenamento normativo perde sua efetividade. No

    emergindo disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma

    situao de carncia absoluta de normas ou regras, ficando a conduta humana

    margem de qualquer orientao. A isso Durkheim d o nome de anomia, efetiva

    causadora de desagregao e deteriorao social. 7

    O conceito de anomia e o reconhecimento da funcionalidade do crime no meio

    social produzem uma revoluo quanto s finalidades e fundamentos da pena, vezque estes j no devem mais ser buscados na fantasiosa profilaxia de um suposto

    mal.

    5 DURKHEIM, mile. As regras do mtodo sociolgico. Trad. Pietro Nassetti. So Paulo: MartimClaret, 2001, p. 83.6 Op. Cit., p. 86.7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e crtica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dosSantos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 60.

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    Outra formulao terica relevante de matiz estrutural-funcionalista deve-se a Robert

    Merton. Ele se apropria do conceito de anomia para demonstrar que o desvio no

    passa de um produto da prpria estrutura social. Portanto, absolutamente normal,

    considerando que esta prpria estrutura que vem a compelir o indivduo conduta

    desviante. Merton expe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o

    indivduo ao crime no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas no lhe

    disponibiliza os meios necessrios para o seu alcance legal. O indivduo perde suas

    referncias, sentindo-se abandonado sem possibilidades normais de conseguir

    seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressionado para a conquista de certos

    objetivos sociais, o indivduo precisa preencher esse vcuo (anomia) de alguma

    maneira. E a nica maneira disponvel ser a perseguio dos fins colimados por

    meios ilegtimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legtimos no esto

    acessveis.

    De acordo com Merton: a desproporo entre os fins culturalmente reconhecidos

    como vlidos e os meios legtimos disposio do indivduo para alcan-los, est

    na origem dos comportamentos desviantes. 8 E mais: a cultura coloca, pois, aos

    membros dos estratos inferiores, exigncias inconciliveis entre si. Por um lado,

    aqueles so solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem

    estar; por outro, as possibilidades de faz-lo, com meios institucionais legtimos,

    lhes so, em ampla medida, negados.9

    Outro referencial importante a denominada Teoria da Associao Diferencial,

    produzida por Edwin H. Sutherland. Segundo essa construo terica, a

    criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano,

    aprendida conforme as convivncias especficas s quais o sujeito se expe emseu ambiente social e profissional.10

    Essa linha de pensamento possibilitou a formulao da conhecida Teoria das

    Subculturas Criminais, para a qual o sujeito aprenderia o crime de acordo com sua

    convivncia em certos ambientes, assumindo as caractersticas de determinados

    8 Op. Cit., p. 63.9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65.10 Op. Cit., p. 66.

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    grupos aos quais estaria preso por uma aproximao voluntria, ocasional ou

    coercitiva.

    Afirma Sutherland que o processo de associao diferencial propicia ao sujeito, de

    conformidade com seu convvio, aprender e apreender as condutas desviantes

    respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a

    criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo

    de convvio aprendizado os infratores menos privilegiados praticariam usualmente

    os mesmos crimes, vez que estariam conectados ao convvio de pessoas de seu

    nvel social e s teriam oportunidade de aprender essas determinadas espcies de

    condutas delitivas, no sendo-lhes possibilitado o acesso a conhecimentos e

    condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De

    outra banda, os mais abastados teriam acesso ao aprendizado de outras

    modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razo disso

    tambm dificilmente incidiriam nas condutas afetas s classes mais baixas.

    H certo ponto de contato entre a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a

    modalidade de conduta atribuda aos indivduos das classes pobres e abastadas

    apresentaria uma distribuio em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos

    para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulao de

    Sutherland tem a pretenso de ser mais ampla, fornecendo uma frmula geral apta a

    explicar a criminalidade dos pobres e das classes altas. Para o autor sob comento,

    qualquer conduta desviante seria apreendida em associao direta ou indireta com

    os que j praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse

    comportamento criminoso no tm contatos freqentes ou estreitos com o

    comportamento conforme a lei. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou nocriminosa de acordo com o grau relativo de freqncia e intensidade de suas

    relaes com os dois tipos de comportamento (legal e ilegal). Isso o que se

    denomina propriamente de associao diferencial. 11

    Essa maior abrangncia da teoria preconizada por Sutherland a teria tornado mais

    completa do que aquela defendida por Merton. Segundo a maioria dos crticos, as

    11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.

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    explicaes de Merton seriam bastante satisfatrias para a criminalidade dos

    pobres, mas no serviriam para esclarecer por que pessoas dotadas de todos os

    meios institucionais e legais para a consecuo de seus objetivos sociais, mesmo

    assim, perpetrariam aes delituosas.12 Portanto, no sem motivo que o termo

    crime de colarinho branco ou white collar crime foi cunhado e empregado

    originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma

    conferncia que se passou na sede da American Sociological Society, com a

    finalidade de fazer referncia a uma espcie de criminalidade praticada por pessoas

    de nvel social elevado, e em especial na sua atuao profissional.13

    Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural funcionalista

    pode-se mencionar a chamada Teoria das Tcnicas de Neutralizao, cujos

    principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma

    correo da Teoria das Subculturas Criminais, mediante a complementao

    implementada pelo acrscimo dos estudos das tcnicas de neutralizao. Estas

    seriam maneiras de promover a racionalizao da conduta marginal, as quais seriam

    apreendidas e usadas lado a lado com os modelos de comportamento e valores

    desviantes, de forma a neutralizar a atuao eficaz dos valores e regras sociais, aos

    quais o delinqente, de uma forma ou de outra, adere. 14

    Na verdade, mesmo aquele indivduo que vive mergulhado em uma subcultura

    criminal no perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma,

    sobre a influncia e presta reconhecimento a algumas de suas regras. desta

    constatao que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usados

    pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas

    desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.

    12 Para um aprofundamento e uma discusso dessa crtica, a qual no caberia no presente trabalho,remete-se o leitor a nosso estudo anterior j mencionado: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit.,p. 69 71.13 A conferncia de Sutherland teve o ttulo White Collar Criminality e foi publicada pela AmericanSociological Review, em seu nmero 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. Ocrime de colarinho branco: aplicao e eficcia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira deCincias Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97.14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.

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    So descritas algumas espcies bsicas de tcnicas de neutralizao: 15

    a) Excluso da prpria responsabilidade o infrator se enxerga como vtima das

    contingncias, surgindo muito mais como sujeito passivo quanto ao seu

    encaminhamento para o agir criminoso.

    b) Negao da ilicitude o criminoso interpreta suas atuaes apenas como

    proibidas, mas no criminosas, imorais ou destrutivas, procurando redefini-las com

    eufemismos.

    c) Negao da vitimizao a vtima da ao delituosa apontada como

    merecedora do mal ou do prejuzo que lhe foi impingido.

    d) Condenao dos que condenam atribuem-se qualidades negativas s instncias

    oficiais responsveis pela represso criminal.

    e) Apelo s instncias superiores sobrevalorizao conferida a pequenos grupos

    marginais a que o desviado pertence, aderindo s suas normas e valores

    alternativos, em prejuzo das regras sociais normais.

    Note-se que a mais destacvel tcnica de neutralizao a prpria criao de uma

    subcultura. Esta a maior ensejadora de abrandamentos de conscincia e defesas

    contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovao por parte de outras

    pessoas integrantes do grupo, ocasionam uma tranqilizao e um sentimento de

    integrao que no se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e

    valores oficiais.16

    Inobstante os avanos obtidos com as Teorias Estrutural Funcionalistas, uma

    alterao verdadeiramente radical do modelo de pesquisa do fenmeno criminal

    somente adviria com o surgimento da chamada Criminologia Crtica.17 com ela

    15 Op. Cit., p. 78 79.16 Op. Cit., p. 81.17 Tambm denominada Nova Criminologia, Criminologia Radical, Criminologia Dialtica,Criminologia Interacionista ou Criminologia da reao social.

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    que se leva a efeito o abandono da mais constante premissa da Criminologia

    Tradicional, qual seja, aquela de ser o crime uma realidade ontologicamente

    reificada.

    A partir das idias trazidas tona pela reviso criminolgica crtica, o crime passa a

    ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social

    responsvel pela edio, vigncia e aplicao das leis penais.

    Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encarado como um anormal e o crime

    como manifestao patolgica.

    A explicao para a criminalidade agora procurada no desvelar da atuao do

    Sistema Penal que a define e reage contra ela, iniciando pelas normas

    abstratamente previstas, at chegar efetiva atuao das agncias oficiais de

    represso e preveno que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicao de algum

    como criminoso dependente da ao ou omisso das agncias estatais

    responsveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivduos praticantes de

    atos desviantes no so tratados como criminosos, at que sejam alcanados pela

    atuao das referidas agncias, as quais so pautadas por uma conduta e exercem

    um papel altamente seletivo. Ser ou no ser criminoso algo que no est ligado

    presena ou no de alguma doena ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou

    no o indivduo sido retido pelas malhas das agncias seletivas que agem

    baseadas em orientaes normativas e sociais.18

    Propem as Teorias da Criminologia Radical o abandono do velho modelo

    etiolgico, visando erigir uma inovadora abordagem crtica do Sistema Penal,inclusive propiciando um srio questionamento de sua legitimidade.

    A Criminologia Crtica caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idia

    de que o Sistema Punitivo construdo e funciona com apoio em uma ideologia da

    sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa

    social ou da preocupao com a criao ou manuteno de condies para um

    18 Op. Cit., p. 86.

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    convvio harmnico entre as pessoas. O verdadeiro fim oculto de todo Sistema Penal

    seria a sustentao dos interesses das classes dominantes. Qualquer instrumento

    repressivo de controle social revelaria a atuao opressiva de umas classes sobre

    as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recaindo pesadamente

    sobre os pobres e raramente atuando contra os integrantes das classes

    dominantes, os quais, alis, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O

    Direito visto como absolutamente despido de qualquer finalidade de transformao

    social. Ao contrrio, encarado como um instrumento de manuteno e reforo do

    status quo social, conservando e alimentando desigualdades pelo exerccio de um

    poder de dominao e fora.19

    Impe-se uma conscientizao da gigantesca diferena de intensidade da atuao

    do Direito Penal sobre setores desvalidos da sociedade, enquanto apresenta-se

    bastante leniente e omisso perante condutas gravssimas ligadas s classes

    dominantes.

    nesse contexto que emerge a Teoria do Labeling Approach ou Teoria da

    Reao Social. Enquanto o pensamento criminolgico at ento vigente advogava a

    tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente

    natural e at era preexistente s normas penais que o definiam num mero exerccio

    de reconhecimento, o qual, alis, consistia em um certo acordo universal, um

    consenso social; a Teoria do Labeling Approach vir para desmistificar todas essas

    equivocadas convices.

    O Labeling Approach ou etiquetamento indica que um fato s tomado como

    criminoso aps a aquisio desse status atravs da criao de uma lei queseleciona certos comportamentos como irregulares, de acordo com os interesses

    sociais. Em seguida, a atribuio a algum da pecha de criminoso depende

    novamente da atuao seletiva das agncias estatais.

    19 LYRA, Roberto, ARAJO JNIOR, Joo Marcello de. Criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,1992, p. 204 205.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341275

    Passa a ser objeto de estudo da Criminologia a descoberta dos mecanismos sociais

    responsveis pela definio dos desvios e dos desviantes; os efeitos dessa definio

    e os atores que interagem nessas complexas relaes. Deixa-se de lado a iluso

    do crime como entidade natural pr jurdica e do criminoso como portador de

    anomalias fsicas ou psquicas.

    Essa nova linha de reflexes produz uma derrocada no mito do Sistema Penal como

    recuperador dos desviados. Contrariamente, entende-se que a atuao rotuladora

    do Sistema Penal exerce forte presso para a permanncia do indivduo no papel

    social (marginal e marginalizado) que lhe atribudo. O sujeito estigmatizado ao

    invs de se recuperar, ganharia um reforo de sua identidade desviante. Na

    realidade, o Sistema Penal assim concebido passa a ser entendido como um criador

    e reprodutor da violncia e da criminalidade.

    Finalmente cabe expor sumariamente a relao entre a Sociologia do Conflito e a

    Nova Criminologia.

    Como j visto, a Nova Criminologia pe em cheque a idia de que as normas de

    convvio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns.

    A est o ponto de contato com a Sociologia do Conflito, que apregoa ser uma tal

    concepo uma mera fico erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na

    realidade, essa ordem social seria produto no de consenso, mas do conflito de

    interesses de grupos antagnicos, prevalecendo a vontade daqueles que lograram

    exercer maior dominao.

    Com o esboo desse quadro evolutivo da cincia criminolgica, possveldeterminar dois principais momentos de mudanas conceituais e epistemolgicas: o

    primeiro deles refere-se transio do Direito Penal Clssico para o nascimento da

    Criminologia, sob a gide do Positivismo, com as inaugurais pesquisas

    lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente a que o homem criminoso

    adquire importncia central nos estudos, que no mais se reduzem s dogmticas

    jurdicas. O segundo momento relevante foi o da mudana radical do referencial

    terico da Criminologia, propiciado pela emergncia da chamada Criminologia

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341276

    Crtica. Nessa oportunidade abandona-se o modelo de pesquisa etiolgico

    profiltico, mediante um consistente questionamento de um longo processo de

    medicalizao do crime.20 O fenmeno criminal passa a ser perquirido como criao

    da prpria organizao social e no mais como um ente pr existente, passvel de

    compreenso e apreenso pela aplicao isolada do mtodo das cincias naturais.

    A virada epistemolgica propiciada pela Criminologia Crtica no desmerece o

    conjunto dos estudos anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa

    criminolgica. To somente faz perceber que so possveis explicaes parciais

    para o fenmeno criminal, mas jamais tal questo pode ser devidamente

    desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violncia em geral

    so problemas complexos que somente permitem uma viso ponderada atravs de

    um conjunto de saberes e mtodos de investigao, os quais, isolados, produzem

    noes fantasiosas e distorcidas. No por outro motivo que atualmente se fala

    numa Criminologia Integrada.21

    Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evoluo dos estudos criminolgicos

    j anteriormente levada a efeito em outro trabalho22 com um objetivo bastante

    definido: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possvel como se

    chegou ponderada e racional concluso de que o crime em si no existe na

    natureza, tratando-se do resultado de normas humanas convencionadas. O

    criminoso, portanto, somente todo aquele que infringe tais normas e no o

    portador de anomalias. As pesquisas etiolgico-profilticas, que so o original

    impulso da Criminologia, so impregnadas de um determinismo irreal porque

    baseadas em uma noo ilusria do crime como ente natural pr-jurdico, que o

    Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quando, na verdade, o crime uma criao do Direito, podendo inclusive modificar-se ao longo do tempo e das

    mudanas sociais.

    20 BORELLI, Andra. Da privao dos sentidos legtima defesa da honra: consideraes sobre odireito e a violncia contra as mulheres. Revista Brasileira de Cincias Criminais. n. 54, maio/jun.,2005, p. 10.21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 618.22 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 78.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341277

    Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explicados por meio de

    uma abordagem etiolgica (v.g. o homicdio perpetrado por um esquizofrnico que

    acredita estar esfaqueando um monstro)23, deve-se ter em mente que se trata de um

    critrio vlido somente de forma eventual e parcial. Alm disso, mesmo sua validade

    eventual em nada atinge a concluso inarredvel de que o crime uma criao

    normativa, um filho do Direito e das convenes e no um rebento da natureza. O

    retorno a uma noo equivocada a este respeito, devido a qualquer espcie de

    descoberta cientfica e novas possibilidades de interveno, constitui um enorme

    retrocesso do pensamento criminolgico com riscos de terrveis conseqncias

    sociais e individuais.

    2 GENTICA: A SOLUO PARA O PROBLEMA DA VIOLNCIA E DO

    CRIME?

    2.1 A REFLEXO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE

    H sempre uma casca envolvendo tudo que se apresenta ao nosso conhecimento eavaliao. Se nossa anlise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela

    superfcie, jamais rompendo essa casca de aparncias, corre-se o grave risco de

    proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em dados e informaes

    fantasiosas.

    Sobre isso nos alerta o literato Jos Saramago em sua crnica Jogam as brancas e

    ganham, afirmando que por baixo ou por trs do que se v, h sempre mais coisas

    que convm no ignorar, e que do, se conhecidas, o nico saber verdadeiro.24

    Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que

    propicia a ao ou omisso acrtica ou at mesmo bem intencionada, embora

    equivocada. Hannah Arendt chama a ateno para este ponto quando destaca a

    23 O exemplo refere-se ao ato de matar algum, tido como criminoso, mas obviamente no se olvidaa questo da inimputabilidade sob o ngulo legal. que o fim da exemplificao consiste nadiscusso sob o prisma criminolgico e no jurdico.24A Bagagem do Viajante. 6. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341278

    banalidade do mal escancarada no julgamento do medocre funcionrio do

    nazismo, Eichmann, responsvel por massacres terrveis de seres humanos.

    enormidade do mal produzido no correspondia o homem insignificante em

    julgamento: ele no era estpido, porm era dotado de uma curiosa e totalmente

    autntica incapacidade de pensar.25

    A capacidade de pensar um atributo humano que no deve jamais ser desprezado.

    Quando isso ocorre, alm de configurar uma deturpao do homem, pode ser a via

    ideal para sua autodestruio.

    Mas, no basta pensar, este pensar precisa ser tambm livre, no pode estar

    amarrado a idias pr concebidas pelo prprio pensador ou assimiladas de

    terceiros sem um necessrio filtro crtico. No bom que idias alheias

    simplesmente dominem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente no

    adequado que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o

    mundo a seu talante, vendo apenas aquilo que quer ver e desprezando a

    realidade.26 So respectivamente casos de submisso acrtica e esquizofrenia

    intelectual, os quais freqentemente se entrelaam para conformar ideologias

    perniciosas.

    A gentica na atualidade tem sido apresentada, especialmente na grande mdia,

    como uma espcie de panacia para todos os males. De outra banda, h aqueles

    que satanizam as pesquisas genticas, somente apontando seus danos potenciais e

    perigos.

    Diante de tal quadro imprescindvel exercitar nossa capacidade de pensarcriticamente, no acatando simplesmente tudo aquilo que proposto de acordo com

    esta ou aquela orientao.

    25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. So Paulo: Companhia das Letras,2004, p. 226. Ver tambm sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalm. 6. ed. Trad. RubensSiqueira. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, passim.26 Desde antanho alertava Descartes sobre o perigoso erro de julgar que as idias que esto em nsso semelhantes ou conformes as coisas que esto fora de ns. DESCARTES, Ren. De Deus, queEle existe. In: SMITH, Plnio Junqueira. Dez provas da existncia de Deus. So Paulo: Alameda,2006, p. 206.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341279

    No seguimento ser abordada a apresentao da gentica como possvel soluo

    para a criminalidade, como j tem sido aventado e alardeado pela imprensa na

    divulgao de certas pesquisas acerca de supostos genes da violncia ou genes

    do crime.

    2.2 BASES DA CULPABILIDADE

    O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto sua legitimidade. Uma das

    discusses mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da

    imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsvel por seus atos

    criminosos ao ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente

    responsvel por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a represso do

    criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?

    A tradicional fundamentao legitimante do Direito Penal encontra-se na aferio da

    presena de culpabilidade, significando que determinada ao ou omisso pode

    ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejando a reprovao jurdica em

    razo de sua conduta ilcita.

    No obstante, a configurao terica da culpabilidade j formalmente explicitada nos

    termos acima mencionados, carecia de uma sustentao material a indicar qual

    seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prtica criminosa.

    Neste passo surge a questo do livre arbtrio em conflito com uma concepo

    determinista do ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segundo

    o qual a culpabilidade reside na liberdade do autor atuar de modo diverso no

    momento do fato. Melhor dizendo, a censurabilidade do comportamento tem lastro

    no fato do culpado haver desejado agir de modo contrrio ao dever quando podia

    atuar em conformidade com este. 27 Se o homem dotado de certa liberdade para

    27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade Culpa Direito Penal. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese do livre arbtrio como pressuposto da culpabilidadeh bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo sentido: IDEM, O Problema da Conscincia dailicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, passim.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341280

    agir ao ponto de tornar-se o responsvel por suas condutas, solucionada estar a

    questo da culpabilidade. Ao reverso, se o homem , em suas aes e omisses,

    apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento,

    entra em crise a pretenso de responsabiliz-lo por seus atos.

    Em As Viagens de Gulliver, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os

    Houyhnhnms) so seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por

    puro instinto. No diferente do acima narrado a postura dos Houyhnhnms perante

    os Yahoos, conforme se v pelo seguinte trecho da fico:

    Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, no os culpava por suas odiosas

    qualidades mais do culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma

    pedra afiada por cortar-lhe o casco.28

    Essa antiga discusso que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas

    teses deterministas, no teve fim e vem permeando toda a discusso acerca da

    legitimidade e eficcia dos instrumentos coercitivos penais.

    Agora as afirmaes de que talvez a gentica possa apontar causas endgenas

    para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polmica.

    Nesse diapaso manifesta-se Casabona, aduzindo que as hipteses geneticistas

    sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente

    importante, mas no novo, na discusso sobre o fundamento da imposio da pena

    no livre arbtrio ou no.29

    O geneticismo que ameaa dominar as pesquisas criminolgicas apresenta traos

    nitidamente reducionistas e deterministas.

    28 SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. So Paulo: NovaCultural, 1996, p. 278.29 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. So Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.

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    CABETTE, Eduardo Luiz Santos

    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341281

    O criminlogo passa a assumir um carter semelhante ao heternimo de Pessoa,

    Ricardo Reis, marcado pela crena no destino como uma lei indiscutvel e imutvel

    que dirige a vida dos homens.30 isso que o leva a produzir versos como estes:

    Nossa vontade e o nosso pensamentoSo as mos pelas quais outros nos guiam

    Para onde eles queremE ns no desejamos. 31

    Contenta-te com seres quem no podesDeixar de ser. 32

    Nesse contexto o homem retratado como um ttere passivo, movido por cordas

    invisveis. Essas cordas j foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo

    demnio, passando para a crena Positivista nas causas endgenas mais variadas,e chegam na atualidade s mos invisveis ou microscpicas da gentica.

    Ora, se o crime determinado pela presena de certos genes, o mal que ele

    representa deixa de ser moral para configurar um exemplo de mal natural. Um

    genocdio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espcie. Ao homem

    nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou soluo a ser

    aventada deve ter um contedo teraputico e jamais punitivo. At sob um ponto de

    vista teolgico as discusses ficariam polarizadas entre argumentos como os de

    Bayle, apontando Deus como um gigantesco criminoso, em contraposio a uma

    teodicia de Leibniz, procurando formular uma defesa do Criador sob o argumento

    dos insondveis mistrios dos desgnios divinos.33

    No incio do sculo XIX, o Marqus de Laplace, conhecido fsico e matemtico

    francs, afirmava que a natureza e o homem eram guiados por um conjunto de leis

    fsicas imutveis, das quais no seria possvel qualquer espcie de evaso. Essas

    leis guiariam os destinos das partculas mais nfimas da matria at a formao dos

    pensamentos humanos. Ele formulou a suposio de que uma vez configurado

    inicialmente o universo, todos os eventos futuros, incluindo os que envolvem

    30 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25.31 Op. Cit., p. 68.32 Op. Cit., p. 93.33 NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel,2003, p. 31.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341282

    experincias humanas de passado, presente e futuro, foram especificados de

    maneira irreversvel. Tal suposio, como bastante lmpido, no deixa espao

    para o conceito de livre arbtrio e configura uma forma extrema de determinismo

    cientfico. No obstante, no foi preciso mais que um sculo para que o conceito

    determinista de Laplace fosse derrubado por descobertas cientficas como as bases

    da fsica quntica e o Princpio da Incerteza do fsico Werner Heisenberg.34

    preciso questionar, como faz Casabona, se as investigaes genticas podem

    constituir no campo criminolgico um verdadeiro retorno s teorias biolgicas sobre

    a criminalidade.35

    No parece restar dvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizendo,

    retrocesso, s teorias biolgicas deterministas sobre a criminalidade, a partir do

    momento em que se cogita da descoberta de um ou vrios genes responsveis pelo

    agir criminoso ou pelos vcios comportamentais humanos. Quando se verifica esse

    claro retrocesso superada viso do crime como uma entidade natural pr

    jurdica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e

    determinista, carregado de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuez,

    el ser humano es plenamente humano cuando es capaz de ir mas all de onde es

    impulsado y llegar al mbito en que s libre y responsable, donde decide. El ser

    humano se deshumaniza cuando deja de ser responsable.36

    bem verdade que por um lado a biologizao do crime retira do homem criminoso

    o pesado fardo da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punio, que

    passa a configurar uma retribuio to injusta quanto um castigo imposto a um

    animal que agiu movido de acordo com suas naturais predisposies. Emcontrapartida, no mais existe a esperana de emenda do homem criminoso, razo

    pela qual se no se pode mais legitimamente falar em sua punio, pode-se

    conceber um legtimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o

    34 COLLINS, Francis S.A linguagem de Deus. Trad. Giorgio Cappelli. So Paulo: Gente, 2007, p. 85 86. Esse princpio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplacianode um s golpe, j que demonstrou que qualquer configurao inicial do universo jamais poderia defato ser determinada com a preciso que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace.35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 114.36 NUEZ, Juan Martn. Sabiduria China. Disponbel em: .Acesso em: 31 mar. 2007.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341283

    infrator no passvel de reforma, seja por sua vontade manifestada

    espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social

    podem perfeitamente atingir extremos inimaginveis em outro contexto.

    Considerando o homem delinqente como portador de uma anomalia que

    inevitavelmente o precipita conduta desviada, somente trs opes podem ser

    aventadas: sua cura, sua neutralizao ou sua eliminao pura e simples.

    Se a cura no era em regra uma hiptese palpvel para Lombroso, os novos

    biologistas criminais, sustentados na gentica, sonham com terapias profilticas

    mediante manipulaes tornadas possveis com o avano cientfico. Descoberta a

    presena de um gene crimingeno, quem sabe sua extrao ou sua manipulao

    pudesse significar a produo de um novo homem devidamente adaptado s regras

    do convvio social? Alm disso, a atuao poderia no somente ser repressiva e

    preventiva ps delitual, mas realmente preventiva (pr delitual), atuando sobre

    os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham

    a enveredar-se pela senda do crime, numa concepo algo parecida com a fico

    cinematogrfica de Minority Report.

    Aparentemente a gentica aplicada Criminologia seria portadora de grandes

    esperanas de um mundo melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.

    No obstante, os potenciais da gentica nesse e em outros campos tm sido

    alargados de maneira fantasiosa, como ser exposto no seguimento deste trabalho.

    Ademais, a manipulao gentica alteradora da personalidade humana pode ser um

    instrumento extremamente arbitrrio, incompatvel com o respeito da dignidadehumana e com as concepes do Estado Democrtico de Direito.

    A esperana de recuperao, ressocializao, reforma, readaptao ou

    reeducao do delinqente permeia os sistemas normativos, mas merece

    questionamento quando se aventa a autoritria interveno estatal na esfera da

    conscincia do infrator. Ao Estado no dado oprimir a liberdade interna do

    condenado, impondo-lhe concepes de vida e estilos de comportamento. , pois,

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    incompatvel com o Estado Democrtico a imposio ao condenado dos valores

    dominantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator,

    o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negando-se a adaptar-se s

    regras de convvio coletivo.37

    por isso que o moderno pensamento criminolgico e penitencirio optou desde

    muito tempo pelo afastamento da pretenso de reduzir o cumprimento da pena a

    um processo de transformao cientfica do criminoso em no criminoso.38

    Entretanto, conforme j exposto, ao criminoso determinado inevitavelmente por

    fatores endgenos no somente o caminho teraputico imaginvel. Resta tambm,

    abandonada a v esperana em sua mudana, o caminho da neutralizao por meio

    da priso perptua ou da eliminao pela pena de morte.

    Sabe-se que tais opes so impraticveis no ordenamento jurdico brasileiro por

    fora de normas constitucionais impedientes (art. 5, XLVIII, a e b, CF). Mas, a

    discusso neste trabalho supera o mbito estritamente jurdico normativo razo

    pela qual se impe a anlise de todas as hipteses.

    No seio de um regime orientado por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais

    ou genticos), seria natural o surgimento da idia da eliminao dos inconvenientes

    ou pelo menos sua neutralizao.

    Arendt, tratando da configurao dos regimes totalitrios, bem destaca que o

    crime, enquanto ao ou omisso deliberada passvel de castigo; j o vcio,

    como pecha indelvel e determinante do agir s pode ser exterminado.39

    Citando Proust, a autora lembra que a considerao de uma predestinao

    gentica como motivadora de condutas pode produzir, at certo ponto, uma relativa

    tolerncia para com os transgressores. Entretanto, num certo momento essa

    37 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execuo Penal. 3. ed. So Paulo: Atlas, 1990, p. 39.38 Op. Cit., p. 40.39 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6. ed. So Paulo: Companhiadas Letras, 1989, p. 109.

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    tolerncia pode desaparecer, substituda por uma deciso de liquidar no apenas os

    verdadeiros criminosos, mas todos os que esto racialmente40 predestinados a

    cometer certos crimes, o que pode ocorrer quando a mquina legal ou poltica,

    refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critrios sociais em leis a

    pregarem essa necessidade de libertao social do perigo em potencial. Se for

    permitido estabelecer o cdigo legal peculiar aparente largueza de esprito que

    liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vcio, ele ser mais

    cruel e desumano do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas

    respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta.41

    preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebido como um

    ramo cientfico autnomo de carter normativo, altamente influenciado em sua

    conformao pelas concepes formuladas pela cincia criminolgica. Pode-se

    afirmar que a cincia penal, em data de hoje, totalmente permevel s propostas

    da Criminologia.42

    Como afirma Pelez: 43

    La criminologa y el derecho penal son dos ciencias autnomas , pero niopuestas, ni separadas, ms bien asociadas. No se resuelve ningnproblema penal sin tener en cuenta los resultados de la criminologa,convertida en base indispensable de la teoria y la prctica del derecho penalmoderno, as como del derecho penitenciario y del derecho procesal.

    Cabe agora a seguinte indagao: qual espcie de Direito Penal seria aquele

    conformado de acordo com uma criminologia gentica?

    A resposta evidente a esta relevante questo a de que seria um modelo de DireitoPenal Autoritrio, estruturado como um Direito Penal do Autor e no como um

    Direito Penal do Fato. As pessoas passariam a sofrer uma represso criminal no

    por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.

    40 Acrescentaramos ao texto tambm a palavra geneticamente.41 Op. Cit., p. 103.42 NASCIMENTO, Jos Flvio Braga. Curso de Criminologia. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p.229.43 PELEZ, Michelangelo. Introduccin al studio de la criminologa. Buenos Aires: Depalma, 1966, p.190.

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    Ferrajoli44 expe com absoluta propriedade esse modelo autoritrio de Direito Penal:

    Substancialismo e subjetivismo, alm disso, alcanam as formas mais

    perversas no esquema penal do chamado tipo de autor, onde a hiptesenormativa de desvio simultaneamente sem ao e sem fato ofensivo. Alei, neste caso, no probe nem regula comportamentos, seno configurastatus subjetivos diretamente incriminveis: no tem funo reguladora, masconstitutiva dos pressupostos da pena; no observvel ou violvel pelaomisso ou comisso de fatos contrrios a ela, seno constitutivamenteobservada e violada por condies pessoais, conformes ou contrrias. Estclaro que ao faltar, antes inclusive da prpria ao ou do fato, a proibio,todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se,com efeito, de uma tcnica punitiva que, por isso, tem um carterexplicitamente discriminatrio, alm de antiliberal.

    Com referncia a uma Criminologia Gentica reducionista e determinista, pode-se irainda mais longe com apoio no prprio Ferrajoli, chegando-se possibilidade da

    construo de um modelo punitivo irracional. Isso tendo em conta a idia de uma

    preveno especial pr delitual, mediante a atuao sobre a pessoa, manipulando

    seu cdigo gentico para evitar a potencial conduta criminosa, hiptese aventada

    por aqueles que fazem uma profisso de f nos poderes milagrosos da cincia

    gentica.

    o que o autor sob comento denomina de Sistema de mera preveno, no qual a

    punio assume a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva,

    no tenha-se em conta a funo de preveno geral, exercida por sua ameaa

    legal preventiva como conseqncia do delito, mas uma funo de preveno

    especial, ligada sua cominao preventiva, como um prius em vez de um

    posterius relativamente ao fato criminoso. evidente o carter no igualitrio,

    ademais de puramente decisionista, deste esquema de interveno punitiva. Deconformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de

    retribuio, dirigido a prevenir fatos delituosos por meio da comprovao e da

    punio dos j ocorridos, em sistema de pura preveno, dirigido a afrontar a mera

    suspeita de delitos cometidos, mas no provados, ou o mero perigo de delitos

    futuros. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a

    legalidade e a jurisdicionariedade, passando a ser informado por meros critrios de

    44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razo. Trad. Ana Paula Zomer, et. al. So Paulo: RT, 2002, p. 80 81.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341287

    discricionariedade administrativa e degenerando-se ou pervertendo-se em simples

    procedimento policial de estigmatizao moral, poltica e social.45

    preciso refletir sobre essas conseqncias deletrias, capazes de deitar por terra

    conquistas seculares, antes de ceder s presses de teorizaes pseudo

    cientficas tentadoras. Afinal, como adverte Carbonnier, um manto de ilogicidade, de

    absurdo, por intermdio do direito, tem invadido a existncia de cada ser humano.

    Nenhum crebro resiste completamente a esta presso da irracionalidade jurdica.46

    2.3 O OTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENTICA

    O retrocesso que pode ocorrer com uma adeso acrtica a uma Criminologia

    Gentica com pretenses de controle sobre a conduta humana mediante

    intervenes pr ou ps delitivas, aparte estribar-se em concepes superadas do

    crime e do criminoso como entes naturais marcados por desvios patolgicos,

    tambm apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma

    clara tendncia para a conformao de uma estrutura totalitarista de poder.

    O fenmeno do crime, ampliado muitas vezes de forma artificial pela mdia, com sua

    capacidade de comunicao nunca antes historicamente igualada ou sequer

    semelhante, mas tambm inegavelmente configurador de uma justa preocupao

    social, tendo em vista a potencializao da violncia real nas sociedades modernas,

    caracterizadas pela heterogeneidade multiplicadora de desigualdades e conflitos,

    ocasiona uma constante demanda por solues.

    Em meio a esse clima de terror, freqentemente no se ponderam devidamente os

    custos e benefcios de certas vias apontadas como solues para o problema da

    criminalidade, em especial a violenta.

    45 Op. Cit., p. 81 82.46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: Une nappe dedraison, dabsurdit, par lintermdiaire du droit, a envahi lexistence de chaque homme. Aucuncerveau ne resiste compltement cette pression de lirrationnel juridique.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341288

    Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais no

    o crime em si mesmo, mas o perigo de que o encarniamento na sua represso

    termine por desembocar no totalitarismo.47

    A Criminologia Gentica nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de

    seus argumentos e demonstraes, o que induz sua aparente neutralidade.

    justamente essa caracterstica de tal concepo acerca da questo criminal que

    pode conduzir a um terrvel cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.

    O cientificismo uma ideologia daqueles que, por deterem o monoplio do saber

    objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da

    realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalizao completa do saber. 48

    J foi destacado neste trabalho como essa crena no saber cientfico como nico

    detentor da verdade, sob a forma do pensamento positivista, influenciou a

    Criminologia, erigindo a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes

    etiolgicas da Criminologia Clnica.

    interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a

    possibilidade de qualquer contribuio da religio para o saber humano, tambm

    no deixa de erguer-se sobre pilares intocveis que podem bem ser definidos como

    verdadeiros artigos de f: 49

    1) a cincia o nico saber verdadeiro; logo, o melhor dos sabedores; 2) acincia capaz de responder a todas as questes tericas e de resolvertodos os problemas prticos, desde que bem formulados, quer dizer, positivae racionalmente; 3) no somente legtimo, mas sumamente desejvel queseja confiado aos cientistas e aos tcnicos o cuidado exclusivo de dirigiremtodos os negcios humanos e sociais; como somente eles sabem o que verdadeiro, somente eles podem dizer o que bom e justo nos planos tico,poltico, econmico, educacional etc.

    47 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito La nueva forma del holocausto? Trad. SaraCosta. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24.48 JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionrio Bsico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1996, p. 44.49 Op. Cit., p. 44.

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    Como adverte tienne Gilson50, os dogmas do cientificismo podem ser to arbitrrios

    quanto os religiosos o seriam de acordo com o ponto de vista dos cientistas. Assim

    sendo, se h realmente o perigo e exemplos histricos passados e contemporneos

    de regimes totalitaristas influenciados por concepes religiosas, igualmente pode-

    se temer e constatar exemplos semelhantes orientados pela crena desmedida nos

    atributos do saber cientfico.

    Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky organizam uma coletnea de textos sobre a

    questo do fanatismo, chamando a ateno para o fato de que no se deve falar em

    fanatismo (no singular), mas em fanatismos (no plural).51 Dessa forma, a obra

    aborda o problema sob vrias faces de sua manifestao, dividindo os textos em

    blocos que tm por temtica comum o problema proposto, mas sob suas

    diversificadas faces (religiosa, racista, poltica e esportiva).52

    A revelao divina atribuda a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos

    pode perfeitamente ser substituda pela crena em um suposto saber cientfico que

    acaba sendo divinizado, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, a to

    decantada racionalidade cientfica que, levada a extremos, abre caminho para o

    irracionalismo caracterstico dos fanatismos que, invariavelmente, desembocam no

    totalitarismo. A irracionalidade condio para o fanatismo e tambm para o

    totalitarismo a partir do momento em que a contestao no tem espao.53 Certas

    verdades cientficas acabam desqualificando de tal forma seus opositores que

    ganham foros de intangibilidade. Se uma raa perversa por natureza, que valor

    tm seus argumentos e que espcie de pessoas se d ao trabalho de defend-la?

    Se os portadores de certos genes so maus, criminosos, pode-se dar crdito ao quedizem ou queles que pretendem defender seus direitos?

    A precauo contra essa espcie de discurso cientfico no configura um desejo de

    opresso livre pesquisa e prpria liberdade de expresso na sociedade. Na

    50Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Macedo. Lisboa: Edies 70, 2002, passim.51Faces do Fanatismo. So Paulo: Contexto, 2004, p. 9.52 Op. Cit., p. 15 282.53 Op. Cit., p. 10.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341290

    verdade, quando um pensamento (cientfico ou no) tem a pretenso de naturalizar

    o mal moral, selecionando determinadas categorias de pessoas como suas

    portadoras, seja por que for (crentes de certa religio, pertencentes a uma raa,

    aderentes a um movimento poltico ou portadores de certos genes); claro est que

    tais grupos que tero seu direito de livre expresso absolutamente desrespeitado,

    de acordo com aquilo que Fiss denomina de efeito silenciador do discurso. Nessas

    circunstncias o direito livre expresso limitado por si mesmo, pois, a partir do

    momento em que seu exerccio ilimitado implicaria no silenciar de contra

    argumentos, ntida est a necessidade de impor-lhe limites.54

    Embora no esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista no possa ainda

    cativar um nmero suficiente de incautos, ensejando algo semelhante com o

    holocausto 55, penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos

    genericamente considerada, tenha aprendido alguma coisa com os erros do

    passado e no mais se deixe levar por ideologias to grosseiras.

    No entanto, fato que, como diz Bauman, nenhuma das condies que tornaram

    Auschwitz possvel realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada

    para evitar que tais possibilidades e princpios gerem catstrofes semelhantes a

    Auschwitz. 56 Talvez o prprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento

    da dignidade humana no sculo XXI, mas se ele no convencer como antes, quem

    sabe uma verso mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?

    O nazismo se baseava em verdades reveladas pela cincia. Essas verdades

    convenceram as pessoas um dia a acreditarem que o mais imbecil dos arianos

    puros pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista. Isso noresultava de uma apreenso racional da realidade, mas de uma verdade revelada

    pela propaganda nazista. Tratava-se de um dogma de f legitimado por

    argumentos pseudocientficos.57

    54 FISS, Owen M.A ironia da liberdade de expresso. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mrio da SilvaPereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 60.55 Basta ver o que tem ocorrido na atualidade na frica e Europa devido a conflitos tnicos e raciais.56 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1998, p. 30.57 PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Op. Cit., p. 10.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341291

    Ainda antes disso, no sculo XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma

    sucesso de crnios que ia dos macacos, passando pelos orangotangos at chegar

    aos negros e da, seguindo num suposto processo evolutivo, at chegar outra

    extremidade onde se achavam os asiticos centrais e os europeus. Tratava-se

    tambm de uma explicao pseudocientfica no s para a classificao das raas,

    mas tambm para justificar as disparidades de poder, ordenando-os em termos de

    superioridade e inferioridade.58

    Hoje a gentica, dependendo dos rumos que venha a tomar, tem o potencial de

    engendrar uma verso mais sofisticada e sutil do racismo, com alto potencial

    genocida e violador da dignidade humana.

    Na extensa obra de Hannah Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato

    entre as caractersticas de um totalitarismo racista e segregador operado no

    passado, com o potencial modelo calcado no determinismo gentico da atualidade.

    Uma primeira e importante aproximao encontra-se no fato de que o poder

    gentico projetado sobre o homem muito mais profundo e opressivo do que

    qualquer outro exemplo de controle poltico antes existente e executvel.

    uma caracterstica inerente aos regimes totalitrios no se contentar com a

    simples irradiao do poder, controlando os destinos exteriores das pessoas, mas

    pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, donde o biopoder torna-se

    o sonho de qualquer burocracia totalitria com sua gana de controle absoluto,

    podendo interferir com igual brutalidade com o indivduo e com a sua vida interior.59

    No sem razo que as utopias da biotecnologia tm evocado a memria do

    nazismo e de outros regimes totalitrios, conforme expe o jornalista e historiador

    Jos Arbex Jnior em entrevista concedida a Cludio Tognolli:

    58 FERNNDEZ ARMESTO, Felipe. Ento voc pensa que humano?Trad. Rosaura Eichemberg.So Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81.59 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. 6. ed. Trad. Roberto Raposo. So Paulo: Companhiadas Letras, 1989, p. 277.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341292

    Toda utopia tem uma forte vocao totalitria (a perfeio de um no lugar que

    projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como

    uma nova utopia, ela me produz uma sensao de desumanizao do homem por

    um jogo, que tem como um dos componentes a total biologizao do corpo

    (entendido como mquina produtiva) e como outro componente a erradicao do

    desejo, no sentido lacaniano, que s pode existir como resposta ao precrio e ao

    frgil provisrio que constitui a humanidade do homem; o desejo da mquina

    biotecnolgica substitudo por metas, por vontade de potncia. Isso me cheira a

    nazismo.60

    Tambm Leo Serva61, em entrevista similar manifesta-se no mesmo sentido,

    afirmando ver a biotecnologia como a manifestao contempornea do modelo de

    medicina perseguido pelos nazistas.

    Entretanto, o poder de seduo desta e de outras utopias tendencialmente

    totalitrias muito grande e tem como sustentao dois pilares: o formato cientfico

    de apresentao das idias e a propaganda que difunde a ideologia.

    A cincia funciona como um manto de segurana e neutralidade a legitimar o poder

    absoluto pretendido. Nas palavras de Arendt:62 Tanto no caso da publicidade

    comercial quanto no da propaganda totalitria, a cincia apenas um substituto do

    poder. A obsesso dos movimentos totalitrios pelas demonstraes cientficas

    desaparece assim que eles assumem o poder.

    As informaes veiculadas pela imprensa, dando conta dos supostos potenciais dagentica para a soluo de todos os problemas humanos, colaboram para o reforo

    da crena em uma utopia que se projeta para o futuro.

    Alm do fato de que tais informaes nem mesmo retratam a realidade do estgio

    das pesquisas e o verdadeiro potencial das tcnicas, tambm ensejam um clima de

    60 TOGNOLLI, Cludio.A falcia da gentica. So Paulo: Escrituras, 2003, p. 233.61 Op. Cit., p. 238.62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.

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    aposta cega numa salvao que a cincia (agora a gentica) teria o condo de

    propiciar humanidade, de forma a tornar desinteressantes consideraes de ordem

    tica sobre os procedimentos e conseqncias.

    Bauman63 alerta para o fato de que a cincia costuma ser posta parte das

    consideraes morais, mediante a preponderncia do foco nos fins, sendo os meios

    relegados a segundo plano, pelo menos quanto ao aspecto tico:

    (...), mais do que qualquer outra autoridade, a cincia autorizada pelaopinio pblica a praticar o princpio, de outra forma eticamente odioso, deque os fins justificam os meios. A cincia o mais completo exemplo dadissociao entre meios e fins, que o ideal da organizao racional daconduta humana: os fins que so submetidos a avaliao moral, no osmeios.

    Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento cientfico tem sido

    freqentemente utilizada justamente para protelar as discusses, gerando

    argumentos incontestveis no presente, j que seus efeitos promissores so sempre

    projetados para o futuro, de modo a justificarem a atuao presente sem maiores

    consideraes ticas sobre os meios, tendo em vista os fins que se vislumbram

    frente.

    Eis a lio de Arendt64:

    A propaganda totalitria aperfeioou o cientificismo ideolgico e a tcnica deafirmaes profticas a um ponto antes ignorado de eficincia metdica eabsurdo de contedo porque, do ponto de vista demaggico, a melhormaneira de evitar discusso tornar o argumento independente deverificao no presente e afirmar que s o futuro lhe revelar os mritos.Contudo, no foram as ideologias totalitrias que inventaram esse mtodo eno foram elas as nicas a empreg-lo. O cientificismo da propaganda demassa tem sido empregado de modo to universal na poltica moderna quechegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsesso com acincia que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemtica eda fsica no sculo XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o ltimoestgio de um processo durante o qual a cincia tornou-se um dolo que,num passe de mgica, cura os males da existncia e transforma a naturezado homem.

    63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187.64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.

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    Panptica, Vitria, ano 1, n. 9, jul. ago. 2007, p. 262-341294

    Percebe-se, portanto, quo comum que o totalitarismo se aproprie e aproveite do

    cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultao de

    propsitos, inclusive sem grande preocupao com a real consistncia das teorias

    cientficas preconizadas.

    Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma febre biocrtica65 a

    ensejar um poder de caracteres absolutamente inditos na histria da humanidade.

    biocracia corresponde a implantao de um biopoder, o qual apresenta um

    espectro de irradiao muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre

    os destinos de toda uma populao, inclusive de geraes futuras.66

    Esse biopoder, exercitado visando uma sociedade livre do crime e da violncia, seria

    dotado dos instrumentos necessrios para atuar sobre os genes a fim de adequar o

    comportamento da populao s regras sociais consideradas convenientes.

    Uma grave questo est em saber a quem seria dado o privilgio de decidir quais

    seriam os padres desejados por tal sociedade.

    Talvez a suposta neutralidade cientfica indique que esse poder no deva

    concentrar-se nas mos de uma pessoa determinada, mas ser exercido de acordo

    com o conhecimento tcnico cientfico devidamente burocratizado. Nesse contexto

    o exerccio do poder no apresenta um centro de irradiao, tornando-se impessoal,

    alicerado em critrios tcnicos praticamente incontestveis.

    Essa diluio do poder, longe de enfraquec-lo em sua atuao sobre o indivduo,

    torna-o absoluto. A converso dos governos em burocracias faz com que nopertenam mais ao imprio da lei ou dos homens, emanando agora de escritrios

    ou computadores annimos, cuja dominao inteiramente despersonalizada pode vir

    a se tornar uma ameaa maior liberdade e quele mnimo de civilidade sem o qual

    65 TOGNOLLI, Cludio. Op. Cit., p. 94.66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvo. So Paulo: Martins Fontes,2000, p. 296.

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    nenhuma vida comunitria concebvel, do que jamais foi a mais abusiva

    arbitrariedade dos tiranos do passado.67

    Um dos traos que diferenciam as ditaduras dos governos totalitrios est na

    burocratizao do poder tornado impessoal e, por isso, ainda mais arbitrrio,

    distante e atroz. A burocracia enquanto mando de ningum, torna-se a forma

    menos humana e mais cruel de governo.68

    Essa caracterstica de um governo de ningum, que no significa ausncia de

    governo, como uma das mais tirnicas e cruis verses do exerccio do poder

    insistentemente destacada nas obras de Arendt.69

    A impessoalidade do exerccio do poder sustenta-se tambm na crena em uma

    fico comunstica, ou seja, na suposio da existncia de um interesse comum da

    sociedade, o qual poderia ser assegurado pela fora de uma mo invisvel que

    teria o condo de guiar o comportamento humano e produzir a harmonizao de

    eventuais conflitos de interesses.70

    Ora, o que mais convincente e adequado a esse tipo de pensamento do que uma

    modalidade de poder exercitvel sobre a humanidade, partindo de seu interior, de

    cdigos genticos sutilmente manipulados para guiar de forma irresistvel o

    comportamento e harmonizar a convivncia social?

    impossvel no fazer a ligao de todo esse contexto com a obra de fico, hoje

    nem tanto futurista, de Huxley, Admirvel Mundo Novo, na qual um governo

    totalitrio instrumentaliza homens e mulheres padronizados em grupos uniformes,objetivando a consecuo da estabilidade social.71

    67 ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. So Paulo:Companhia das Letras, 2004, p. 66.68 Op. Cit., p. 94 95.69 IDEM.A Condio Humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitria,2004, p. 50.70 Op. Cit., p. 53 54.71 HUXLEY, Aldous.Admirvel Mundo Novo. 2. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. So Paulo:Globo, 2003, p. 14.

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    2.4 A DESCONSTRUO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAO DA

    DIGNIDADE HUMANA

    Quando se trata da possibilidade de manipulao gentica, especialmente

    levantando-se a hiptese de alterao do genoma humano, mediante a excluso de

    caractersticas consideradas negativas a critrio de quem quer que seja, impossvel

    no vislumbrar uma flagrante violao da autenticidade do homem em sua natural

    diversidade.

    Certamente uma das piores violncias a serem perpetradas contra a humanidadeseria a excluso arbitrria da riqueza da diversidade, caracterstica esta, alis, muito

    claramente constatvel por meio da prpria gentica, a qual demonstra a

    singularidade de cada ser humano.

    Talvez as geraes que no tenham conhecido o que seria viver em um mundo

    onde as diferenas se chocavam sim, mas tambm surpreendiam, se completavam

    e libertavam, no tenham noo daquilo que perderam. Entretanto, no justo que

    ns, cientes do que significa essa perda, condenemos nossos psteros a um mundo

    de homogeneidade montona e arbitrria.

    O que nos restaria em um mundo de seres humanos pr moldados ao sabor de

    uma burocracia qualquer, detentora do poder decisrio do que seja bom ou mau em

    relao capacidade de conduta e personalidade?

    Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofundado, retratado por

    Saramago72 ao ver os ps de oliveira dos campos de sua terra natal expulsos pelo

    milho hbrido por fora de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:

    Por cada p de oliveira arrancado, a Comunidade Europia pagou um prmioaos proprietrios das terras, na sua maioria grandes latifundirios, e hoje, emlugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo decriana e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo elquenes, esburacados de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar

    72 SARAMAGO, Jos.As pequenas memrias. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.

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    dos dossis de ramos carregados de azeitonas negras e de pssaros, o quese nos apresenta aos olhos um enorme, um montono, um interminvelcampo de milho hbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmonmero de folhas nas canoilas, e amanh talvez com a mesma disposio eo mesmo nmero de maarocas, e cada maaroca talvez com o mesmonmero de bagos.

    Jonas fala em sua obra das utopias do homem autntico vindouro, dentre as quais

    menciona o super homem do futuro de Nietzsche, e a superioridade dos homens

    criados numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias

    socialistas. O primeiro no disse jamais uma palavra sobre o que se poderia

    concretamente fazer para o advento de seu super homem. Os segundos

    aliceravam suas crenas nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida

    sobre um modelo econmico revolucionrio.73

    Mas, ambas as teorizaes tm emcomum um projeto de homogeneizao do humano, extirpando as diferenas, as

    variaes, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da prpria personalidade.

    Quem sabe na atualidade a manipulao gentica pudesse tornar tais projetos bem

    mais palpveis?

    A questo, porm, saber se possvel falar em um homem autntico construdo na

    homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboar a autenticidade

    humana, a destri, ao pretender eliminar a diferena, o inesperado e at o ambguo

    que inerente humanidade.

    Nas palavras de Jonas: 74

    Tendremos tambin que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza

    unvoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( ensi) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidadde ser bueno o ser malo,ms an, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Ciertoes que de los grandes malvados se dice que son inhumanos, pero solo loshombres pueden ser inhumanos; y los grandes malvados ponen de manifestola naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habr derechazarse tambin, por tanto, la idea de una riqueza de la naturalezahumana existente, pero dormida, que solo aguarda a ser abierta (des encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse.Solamente existe la dotacin biolgico anmica de esta naturaleza para lariqueza y pobreza del poder ser; riqueza y pobreza son igualmente

    73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernndez Retenaga. Barcelona:Herder, 1995, p. 258 263.74 Op. Cit., p. 350 351.

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    naturales, si bien se da un predomnio de la ltima, pues la pobreza enhumanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas comoelegida incluso en las circunstancias ms favorables por la pereza y lasobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riquezadel yo, adems del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de lalucha contra la pereza).

    A extino dessa potncia do poder ser humano convertida em um ser pr

    fabricado altamente limitadora. Se por um lado, como j visto, a crena em um

    determinismo biolgico ou gentico exime o homem de responsabilidade, tambm

    lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim tambm, a construo de um

    homem geneticamente direcionado para o bem (ainda que sem entrar em

    pormenores sobre a legitimidade desse conceito formulado por algum ou alguns),

    praticamente extermina a noo do mrito da ao moral, juntamente com aliberdade e a identidade de cada ser humano.

    bem verdade que a grandeza da liberdade no isenta de riscos, inclusive

    altamente negativos. Mas, prefervel viver em um mundo onde a escolha

    possvel do que em outro onde tudo pr determinado. de Viktor Frankl75 a

    afirmao de que melhor um mundo no qual seja possvel, por um lado, um

    fenmeno como o de Adolf Hitler e, por outro, o de tantos santos que j viveram.

    Necessrio se faz recordar que a singularidade uma nota caracterstica de toda

    existncia humana.76

    H um terrvel perigo que corre todo aquele que tem a pretenso de aprimorar algo,

    qual seja, o risco de que suas mudanas acabem por desnaturar o original,

    transformando-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que

    inicialmente era.

    Um breve conto de Brecht77 muito bem ilustra esse dilema:

    75 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponvel em:www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 44. bom lembrar que Frankl sofreu na pele asagruras do nazismo.76 Op. Cit., p. 46.77 BRECHT, Bertolt. Histrias do Sr. Keuner. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Editora 34,2006, p. 33.

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    O personagem Sr. Keuner narra, no episdio intitulado Forma e Contedo,que certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe entregou uma tesoura emandou aparar um loureiro, orientando-o a fazer o corte de modo que arvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu incio imediato aotrabalho, cortando os brotos selvagens, mas sentindo srias dificuldades paraatingir o formato de uma bola. Finalmente a rvore tomou em suas folhagens

    o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por isso, quando o jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepcionado: Certo, isto uma bola, mas onde est o loureiro?.

    O desejo de aprimoramento do homem por meios genticos revela um anelo de fuga

    da condio humana que nos dada para ingressar em um novo estgio no qual o

    prprio homem pretende moldar sua condio. Move a humanidade um desejo

    incontido de afastamento da natureza, seja pela criao de ambientes artificiais,

    seja, agora, pela possibilidade da criao de um homem artificial. esse

    desiderato que se manifesta quando se pretende criar a vida em uma proveta ou unir

    sob um microscpio o smen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir

    seres humanos superiores, mudar-lhes as dimenses, as formas, as capacidades

    etc. Tambm certamente o mesmo desejo de escapar da condio humana anime

    a esperana de prolongar a durao da vida humana para alm dos cem anos.

    Realmente o homem do futuro, projetado pelos cientistas para menos de um sculo,

    parece motivado por uma rebelio contra a existncia humana tal como nos foi

    dada um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja

    trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. No h razo para

    duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como no h motivo

    para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida orgnica da Terra. A

    questo apenas se desejamos usar nessa direo nosso novo conhecimento

    cientfico e tcnico e esta questo no pode ser resolvida por meios cientficos:

    uma questo poltica de primeira grandeza, e portanto no deve ser decidida por

    cientistas profissionais nem por polticos profissionais.78

    O que Arendt prope que os potenciais e riscos advindos com os novos

    conhecimentos cientficos no sejam simplesmente engolidos por todos em silncio

    respeitoso figura do cientista sbio. A autora convida todos a agirem,

    concebendo a ao como a efetiva participao poltica nas importantes decises a

    78 ARENDT, Hanna. A condio humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2004, p. 10 11.

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    serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexo sobre os rumos a serem

    seguidos no so pertencentes a um grupo privilegiado, mas a toda humanidade. 79

    E neste ponto podemos retomar com Arendt a questo da singularidade humana

    como essencial para a preservao da autenticidade do homem.

    Lembrando Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como

    um dos fatores preponderantes na diferena entre o homem e o animal. Isso porque

    o primeiro foi criado unum ac singulum, enquanto os animais foram ordenados a

    existirem vrios de uma s vez (plura simul iussit existere). Para Santo Agostinho,

    a criao demonstra que os animais vivem como espcie, ao passo que os

    homens tm uma existncia singular. Resta claro que a pluralidade a condio da

    ao humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto , humanos, sem que

    ningum seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido ou venha a

    existir. 80

    Note-se que a ao do homem, isto , sua participao ativa na sociedade, seus

    atos prprios, suas manifestaes pessoais, s vivel, tendo em conta sua

    singularidade; o inesperado que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o

    homem pode ser o mesmo que o co eterno vivendo na espcie, com seus latidos e

    o rabo a abanar do incio ao fim dos sculos, como vislumbra Schopenhauer. 81

    Acontece que no homem est nsita a novidade e o novo sempre surge sob o

    disfarce do milagre. O fato de que o homem capaz de agir significa que se pode

    esperar dele o inesperado, que ele capaz de realizar o infinitamente improvvel. E

    isto, por sua vez, s possvel porque cada homem singular, de sorte que, a cada

    nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. 82 Pretender evitar essaoriginalidade o mesmo que destruir um milagre.

    79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial nfase importncia que Hanna Arendt d participaoativa do homem na sociedade (Vita Activa). Para a autora o que caracteriza o homem em suacondio humana a ao, entendida como participao poltica, manifestao de s