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  • CadernosdeGeocincias,v.6,2001.

    E qual o lugar da Geografia Regional no contexto atual da Geografia?1

    Angelo Serpa* *Professor do Departamento e Mestrado em Geografia,lnstituto de Geocincias UFBA

    No nova a idia de que a Geografia o estudo da individualidade dos lugares.

    Para os que defendem esta idia, o estudo geogrfico deveria abarcar todos os fenmenos que esto presentes numa dada rea, tendo por meta compreender o carter singular de cada poro do Planeta:

    Alguns gegrafos vo buscar esta meta atravs da descrio exaustiva dos elementos, outros pela viso ecolgica, encontrando no prprio inter-relacionamento, um elemento de singularizao. Em ambas as propostas, a individualidade local o que importa. Esta perspectiva teria suas razes em autores da Antigidade Clssica, como Herdoto ou Estrabo, que realizaram estudos mostrando os traos naturais e sociais das terras, por onde andaram. Modernamente, tal perspectiva tem sua expresso mais desenvolvida na chamada Geografia Regional. Esta prope, como objeto de estudo, uma unidade espacial, a regio - uma determinada poro do espao terrestre (de dimenso varivel), passvel de ser individualizado, em funo de um carter prprio (MORAES, 1981: 15-16).

    O dualismo na Geografia relacionava-se com o contraste entre a Geografia Geral (sistemtica, chamada hoje com mais freqncia Tpica) e a Geografia Especial (Regional). Enquanto a Geografia Tpica se ocupa de um determinado grupo de caractersticas produzidas por um tipo de processo, independente das caractersticas que possam ocorrer no mundo, a Geografia Regional tem o seu enfoque numa rea especfica que revela certa homogeneidade, resultante de caractersticas relacionadas dentro da rea. Para Jan BROEK, pode-se resolver esse dualismo considerando os aspectos tpicos e regionais como duas aplicaes do mtodo regional:

    Se, por exemplo, estivermos interessados na localizao tpica das indstrias de manufatura, procuramos as regies do mundo que so homogneas em termos desse critrio especfico. Por outro lado, quando praticamos a chamada Geografia Regional, selecionamos certas caractersticas (tpicos) como critrios para marcar a regio. Afinal, todos os lugares da Terra so singulares e cheios de coisas peculiares. Ser intil pensar que podemos dominar a totalidade de contedo de qualquer rea. Uma regio, portanto, uma rea homognea em termos dos critrios especficos escolhidos para delimit-la das outras regies (BROEK, 1967: 8 1-82).

    Em virtude dos debates travados na Alemanha durante a segunda metade do sculo XIX verificou-se, no final do sculo, um consenso geral entre os gegrafos alemes no sentido de que os estudos segundo os elementos e os estudos segundo as reas eram igualmente importantes e necessrios na Geografia. Essa posio equilibrada foi, porm, em breve pertubada por novas teorias acerca das regies como reais unidades de rea, que permitiriam a reformulao de conceitos genricos e, segundo se presumia, de leis ou princpios gerais, aparentemente independentes dos trabalhos em Geografia Sistemtica (HARTSHORNE, 1978).

    Embora essa teoria das regies como entidades legtimas tenha sido de breve durao, deixou um resduo de convices segundo as quais poderiam ser elaborados conceitos genricos de regies em termos do seu carter total. Na Alemanha a Geografia Sistemtica ou Geral foi relegada a um nvel inferior e, muitas vezes, afastada inteiramente do campo da disciplina. Nos Estados Unidos, por outro lado, muitos gegrafos reagiram contra as teorias exageradamente otimistas sobre a Geografia Regional, a ponto de impugnarem a legitimidade do seu lugar na Geografia. At mesmo na Frana, onde os gegrafos sempre foram particularmente festejados por suas monografias de carter regional, alguns estudiosos vieram a encarar a Geografia Geral como o coroamento dos conhecimentos geogrficos, a meta derradeira da Geografia

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    (HARTSHORNE, 1978). Para HARTSHORNE essa controvrsia histrica contribuiu para um equvoco,

    resultado do pressuposto da existncia de uma dicotomia em Geografia. O autor acha que a expresso Geografia Regional tende a confirmar a impresso errnea de que a outra modalidade da Geografia no diz respeito a reas:

    As expresses Geografia Geral e Geografia Sistemtica tendem, uma e outra, a dar realce aos estudos genricos de fenmenos particulares, e no aos estudos de fenmenos em inter-relao, em lugares especficos (HARTSHORNE, 1978: 118).

    A exigncia de alguns estudiosos de que a Geografia Regional deveria ser eliminada da Geografia, alegando a impossibilidade de uma anlise objetiva da complexa integrao dos fenmenos heterogneos, existentes nas reas, com o emprego das cincias sistemticas, foi levada por LE LANNOU ao campo dos seus opositores. O autor ataca a premissa de que qualquer parcela muito vultuosa da Geografia Geral possa pretender analisar sua matria da maneira e no grau que tais opositores consideram cientfica:

    Tais resultados no foram alcanados quanto aos aspectos humanos da Geografia nem podem ser esperados quanto totalidade dos aspectos naturais, Desde que a maior parte da integrao completa da Geografia no pode ser decomposta em integraces elementares, a excluso da Geografia Regional como no cientfica em breve teria de ser tambm seguida pela excluso da maior parte do que hoje se denomina Geografia Sistemtica (LE LANNOU, in: HARTSHORNE, 1978: 120).

    Na verdade, todos os gegrafos, independente de suas convices, reconhecem que no poderamos, de modo algum, explicar as escolhas e os atos do homem exclusivamente em termos de relaes com o meio natural:

    Considerar ou no a Geografia como uma cincia questo que no pode ser resolvida pela amputao de importantes segmentos da disciplina como um campo de conhecimento. As integraes complexas de fenmenos que variam atravs das reas constituem a realidade do nosso mundo. Descrev-las e, tanto quanto possvel, analisar e explicar essas diversas integraes, suscita problemas que so, indubitavelmente, difceis de resolver. Mas a Geografia a disciplina da qual os homens esperam tais solues, e ela sempre procurou proporcion-las (HARTSHORNE, 1978: 120).

    Evoluo do conceito de Regio: De Herdoto a Hartshorne

    Uma geografia que se preocupa com a descrio dos lugares, numa perspectiva regional, remonta antiguidade clssica, com HERDOTO (484-425 a.C.). Os gregos no s fizeram descries dos lugares (as chamadas topografias) como tambm procuraram explic-las:

    Os fatos ocorrem, e os lugares existem, em pontos especficos da superfcie terrestre. Os gregos concluram que a terra era esfrica, e mais tarde Eratstenes (276-194 a.C.) calculou-lhe a circunferncia com uma preciso notvel. Sua contribuio realmente geogrfica, porm, foi a criao de um sistema de linhas de latitude e longitude, sobre as quais ele dispunha a localizao dos mares, terras, montanhas, rios e cidades. Nasceu assim o verdadeiro mapa - em contraste com o simples esboo: a ordem geogrfica substituiu a descrico desordenada (BROEK, 1967: 20-21).

    Mas somente na Alemanha do incio do sculo XIX que vo surgir as primeiras colocaes no sentido de uma geografia sistematizada, com Alexandre von HUMBOLDT e Karl RITTER. Ao contrrio de HUMBOLDT, que via na contemplao da universalidade das coisas a definio do objeto geogrfico (MORAES, 1981: 46), o trabalho de RITTER que vem ressaltar a experinia humana no contexto regional:

    Ritter considerava a terra como a casa do homem. Dividia-a em regies naturais - principalmente de acordo com as formas dos acidentes - e examinava seu sentido para a sociedade que ocupava, ou havia ocupado, cada unidade (...)

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    Julgava que a vontade divina havia criado a Terra como uma escola para o homem, na qual ele progrediria da brbarie crua para a grandeza espiritual (BROEK, 1967: 27).

    Com a obra de Friedrich RATZEL, publicada no ltimo quartel do sculo XIX, o processo de sistematizao da Geografia ganha novas foras. Surge com ele a noo de espao vital, que representaria uma proporao de equilbrio, entre a populao de uma dada sociedade e os recursos disponveis para suprir suas necessidades, determinando assim suas potencialidades de progredir e suas premncias territoriais:

    O solo pode favorecer ou impedir o crescimento dos estados (...) Um territrio inspito no pode alimentar nenhum estado, um deserto histrico (...) Um sentimento de unidade com o territrio mais forte naqueles lugares onde as fronteiras so claras e definidas, onde h mais facilidade de dominao e explorao dos recursos naturais (RATZEL, 1974: 2-3).

    Entre os gegrafos foi Friedrich RATZEL quem mais explorou as influncias do ambiente fsico sobre a humanidade:

    A essncia de sua argumentao era que o homem uma criatura do seu ambiente, tal como Darwin provara a adaptao e sobrevivncia dos mais aptos no mundo animal (BROEK, 1967: 30).

    Portanto, no campo da geografia, o conceito dominante era, ao final do sculo XIX, o de regio natural, originado do determinismo ambiental. Para RATZEL, o territrio representaria as condies de trabalho e existncia de uma sociedade e sua perda seria a maior prova de decadncia desta sociedade (LEITE, 1994: 21).

    Tambm Vidal de LA BLACHE definiu o objeto da Geografia como a relao homem-natureza, s que sob a perspectiva da paisagem:

    A teoria de Vidal concebia o homem como hspede antigo de vrios pontos da superfcie terrestre, que em cada lugar se adaptou ao meio que o envolvia, criando, no relacionamento constante e cumulativo com a natureza, um acervo de tcnicas, hbitos, usos e costumes, que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponveis. A este conjunto de tcnicas e costumes, construdo e passado socialmente, Vidal denominou gnero de vida, o qual exprimiria uma relao entre a populao e os recursos, uma situao de equilbrio, construda historicamente pelas sociedades. A diversidade dos meios explicaria a diversidade dos gneros de vida (MORAES: 1981: 68-6 9).

    Em contraponto ao determinismo prussiano de RATZEL, surge a teoria possibilista e a escola francesa de Geografia. O objeto da teoria possibilista a regio, porque a organizao espacial resultante de um determinado gnero de vida tem extenso territorial e limites razoavelmente identificveis. Uma regio seria, portanto, uma escala de anlise, uma unidade espacial dotada de individualidade com relao s suas reas limtrofes (LEITE, 1994).

    O homem criou para si diversos gneros de vida. Com a ajuda de materiais extradas da natureza circundante, ele conseguiu, progressivamente, atravs da transmisso hereditrio de tcnicas e costumes, construir qualquer coisa de metdico que assegura sua existncia e que adequa o meio material s suas necessidades (LA BLACHE, 1948: lIS).

    Discpulo direto de Vidal de LA BLACHE, BRUHNES escreveu uma volumosa geografia humana, onde prope uma classificao dos fatos geogrficos, dividindo-os em trs grandes grupos: os fatos de ocupao improdutiva do solo (casas e caminhos), fatos da conquista vegetal e animal e fatos de ocupao destrutiva:

    O gegrafo deve se preocupar antes de tudo do fato predominante, que ao mesmo tempo o fato modesto, o tipo mais representativo de uma regio determinada. A habitao que resulta de um capricho individual no deve contar para ele(...) Tudo que excepcional tem para os estudos de geografia humana menos valor que tudo aquilo que se aproxima da noo de tipo (BRUHNES, 1925: 100).

    Para MORAES, a noo de regio originou-se na Geologia onde aparece como uma parcela da superfcie terrestre dotada de uma unidade natural, com a sua individualidade estabelecida atravs de elementos da natureza:

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    Com Vidal, e de forma progressiva a partir dele, o conceito de regio foi humanizado; cada vez mais, buscava-se sua individualidade nos dados humanos, logo, na histria. Apesar de muitos autores terem associado os processos histricos de povoamento e organizao de uma regio s condies naturais a existentes (...) a regio foi sendo compreendida como um produto histrico, que expressaria a relao dos homens com a natureza (MORAES, 1981: 76).

    HARTSHORNE, na dcada de 1940, props a regio como uma rea que apresenta individualidade, resultado da integrao, de natureza nica, entre fenmenos heterogneos. O instrumento de anlise da proposta de Hartshorne no uma regio previamente identificada, mas uma rea de integrao construda no decorrer do processo de investigao:

    Os sistemas comuns de regies climticas, regies de solos, ou tambm os de regies agrcolas ou regies industriais, no implicam a integrao de elementos. Trata-se de generalizaes meramente descritivas de um ou mais elementos que variam independentemente atravs de uma rea (...) Desde que no implica inter-relaes de reas, uma diviso do mundo em regies desse tipo no passar de uma classificao de lugares, cada qual considerado independentemente dos outros (...) Sem dvida, quando todos os lugares houverem sido classificados e as classificaes assinaladas num mapa, emergir uma configurao de reas distintas. Mas a extenso e a forma de cada rea depender dos critrios limitadores que o pesquisador houver escolhido (HARTSHORNE, 1978: 117).

    Penetrando em um mar de relaes: Santos, Lipietz e Kayser

    Para SANTOS, estudar uma regio significa penetrar num mar de relaes, formas, funes, organizaes, estruturas etc., com seus mais distintos nveis de interao e contradio:

    Se o espao se torna uno para atender s necessidades de uma produo globalizada, as regies aparecem como as distintas verses da mundializao. Esta no garante a homogeneidade, mas, ao contrrio, instiga diferenas, refora-as e at mesmo depende delas. Quanto mais os lugares se mundializam, mais se tornam singulares e especficos, isto , nicos (...) A regio torna-se uma importante categoria de anlise, importante para que se possa captar a maneira como uma mesma forma de produzir se realiza em portes especficas do planeta ou dentro de um pas, associando a nova dinmica s condies preexistentes(SANTOS, 1994: 46-47).

    J LIPIETZ acha que s poder haver um certo tipo de regies que ganham (ou de preferncia uma certa maneira de ganhar para uma regio) no quadro de um certo tipo de Estado nacional (ou confederal) e esses Estados s ganharo na competio econmica internacional se souberem suscitar este tipo de regies que ganham:

    E as regies ou pases que perdem sero condenados marginalizao, ou a uma subordinao cada vez mais estrutural (por exemplo via contratao), em relao s regies que ganham (LIPIETZ,1994: 18).

    Isto acontece porque, com a difuso dos transportes e das comunicaes, cria-se a possibilidade da especializao produtiva. Regies se especializam, no mais precisando produzir tudo para sua subsistncia, pois, com os meios rpidos e eficientes de transporte, podem buscar em qualquer outro ponto do pas e mesmo do Planeta, aquilo de que necessitam (SANTOS, 1994).

    Vemos, portanto, que a organizao espacial dos diferentes lugares j no se explica em si mesma, porque o centro de deciso das atividades desenvolvidas em determinado lugar situa-se muitas vezes a milhares de quilmetros dali. De acordo com isso, a definio de regio deve ir alm da descrio dos padres espaciais, procurando ver as relaes dialticas entre formas espaciais e processos histricos que modelam os grupos sociais (LEITE, 1994: 26).

    KAYSER procura definir os aspectos essenciais da realidade regional. Para o autor, o carter concreto e a relatividade histrica da regio devem ser logo de incio nitidamente afirmados (KAYSER, 1980: 280). Uma regio se define pelos laos

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    existentes entre seus habitantes, sempre se organiza em torno de um centro e s existe como parte integrante de um conjunto:

    Uma regio , sobre a terra, um espao precisa. mas no imutvel, inscrito em um quadro natural determinado, e que responde a trs caractersticas essenciais: os laos existentes entre seus habitantes, sua organizao em torno de um centro dotado de certa autonomia, e sua integrao funcional em uma economia global. Ela resultado de uma associao de fatores ativos e passivos de intensidades variveis, cuja dinmica prpria est na origem dos equilbrios internos e da projeo espacial (KAYSER, 1980: 282).

    Sempre que o processo produtivo do momento impe tcnicas de trabalho estranhas regio onde vo ser utilizadas, inicia-se a desestruturao de sua organizao, que tem nas migraes o seu mais importante reflexo (LEITE, 1994):

    As regies so organismos vivos e complexos. Nascem, isto , tomam corpo e se cristalizam - desenvolvem-se, isto , se estruturam de uma maneira cada vez mais firme, ganham coeso. Tambm podem morrer bruscamente, devido interveno de um agente exterior, ou por lenta desintegrao. A geografia, porque examina as situaes regionais, portanto as regies num determinado momento de seu dinamismo, d uma clara conscincia desses mecanismos vitais. Mas ela no pretende estabelecer categorias definidas, leis abstratas ou frmulas rgidas para encerrar essa realidade em movimento; ela se baseia sobre o conhecimento de situaes anlogas, de um lado, e sobre a apreenso do conjunto de fatores, de outro lado, para diagnosticar o estdio da evoluo (KAYSER, 1980: 283).

    Espao Absoluto versus Espao Relativo

    Bernard KAYSER afirma que somente ao nvel da regio e no interior de uma entidade nacional ou de um agrupamento de pases, que se pode, de maneira vlida, analisar as disparidades geogrficas:

    De um ponto a outro de uma pequena rea, de uma casa a outra da aldeia, a diferena de situaes freqentemente considervel, e provm de fatores diversos: naturais, histricos, psicolgicos, sociais, culturais... De uma cidadezinha comercial, de um porto, de uma cidade industrial rea rural circunjacente, considerado globalmente, as diferenas so ainda mais acentuadas. Mas em ambos os casos trata-se de fenmenos locais, de desequilbrios eventualmente remediveis por uma organizao econmica ou social. Em compensao, de um conjunto regional a outro, as disparidades, quando aparecem, so, para seu estudo e para a preparao de sua reduo, do domnio da competncia do gegrafo (KAYSER, 1980: 313).

    Note-se que no estamos mais aqui diante da noo de espao absoluto, que tem suas origens no pensamento de KANT e que dele chegou a HUMBOLDT, HETTNER e HARTSHORNE, mas sim diante do conceito de regio como espao relativo, entendido a partir de relacionamentos entre objetos e que s existe porque os objetos existem e se relacionam mutuamente:

    No pensamento geogrfico o conceito de espao absoluto aparece associado, como indica Harvey, s idias de rea ou regio e de unicidade, e assim associado geografia regional proposta por Hartshorne (CORRA, 1993: 27).

    Ainda que se possa criticar o uso do conceito de espao relativo pelos gegrafos, no h dvidas de que o problema da localizao aparece em qualquer sociedade, e, sobretudo na sociedade capitalista, como um problema fundamental, desde que a relao custo-benefcio apresenta uma componente espacial, onde a localizao deve ser pensada em termos de espao relativo:

    o movimento de pessoas, bens, servios e informaes verifica-se em um espao relativo porque custa dinheiro, tempo e energia para se vencer a frico da distncia (CORRA, 1993: 27).

    Uma regio , na verdade, o locus de determinadas funes da sociedade total em um momento dado:

    Dentro de uma regio, os capitais fixos so geografizados segundo uma lgica

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    que a do momento de sua criao. Isso tem um inegvel papel de inrcia (...) Sua velhice, em relao a novas formas tcnicas, no , obrigatoriamente, um fator de perda relativa de seu valor produtivo ou de sua capacidade de participar no processo de acumulao geral e dentro do ramo respectivo. E a incidncia, sobre essas formas envelhecidas, das relaes sociais, que lhes assegura um lugar na hierarquia dos papis (...) A regio se definiria, assim, como o resultado das possibilidades ligadas a uma certa presena, nela, de capitais fixos exercendo determinado papel ou determinadas funes tcnicas e das condies do seu funcionamento econmico, dados pela rede de relaes (SANTOS, 1992: 67).

    Dentro da lgica atual, somente nessa perspectiva que se pode falar de uma nova Geografia Regional. Ao contrrio do que pensava VALLAUX, que no havia conexo possvel entre a Geografia Geral e a Geografia Regional, as duas podem ajudar-se mutuamente, caso a primeira seja renovada, e a segunda subordinada ao conhecimento de contextos mais amplos:

    Porque se uma fornece a outra um inventrio das possibilidades entrevistas no presente, de que vai ela servir-se como ponto de partida para suas investigaes, recebe, por outro lado, atravs de estudos in concreto um novo subsdio, de qualquer forma, para as suas novas dedues. A geografia geral um captulo introdutrio indispensvel e de sua renovao depende a capacidade de afastarmos o risco de explicaes deterministas (SANTOS, 1994: 109).

    A noo de regio cultural

    Como a economia de um povo est intimamente interligada com os sistemas de valor, tradies e organizao social, em suma, com a sua cultura, h talvez um mrito em dispor o mundo segundo as regies culturais. Os gregos provavelmente pensaram nisso quando distinguiram a Europa da sia e frica. Na geografia moderna ela ganhou fora com a aplicao da cultura aos problemas geogrficos:

    A pesquisa deve necessariamente restringir-se s investigaes passo a passo de tpicos especiais, ou de reas de propores bastante limitadas, mas (...) podemos (...) empregar uma diviso provisria da Terra em amplas regies culturais. Vrios autores, na Europa e Estados Unidos, propuseram os seus esquemas individuais. Todos so semelhantes. Em essncia, distinguem as seguintes regies: ocidental, ou oeste; islmica, ou frica do Norte-Sudeste asitico; indica, ou indiana; leste-asitica, ou oriental; Sudeste da sia; Meso-africana ou negro-africana. O grupo ocidental pode ser dividido ainda no bero europeu, terrestre, e em suas alas de alm-mar da Amrica inglesa e latina. frica do Sul, Austrlia e Nova Zelndia, e sua ala oriental, a Unio Sovitica (BROEK, 1967: 78).

    Se a nfase recai sobre os prprios traos ou complexos culturais e no sobre os grupos sociais, deve-se falar de uma geografia cultural, expresso que conquistou ampla aceitao nos Estados Unidos. Esse campo incluiria, por exemplo, a distribuio de religies, lnguas, tcnicas, animais domsticos e plantas, tipos de casa e formas de aldeamento:

    A geografia cultural e a social confundem-se forosamente. E difcil imaginar um trao cultural sem os povos que o possuem, difundem ou recebem. E no podemos imaginar a sociedade sem seus atributos culturais (BROEK, 1967: 39).

    O reconhecimento da importncia dos fatos culturais introduz, para Richard HARTSHORNE, um elemento bsico de confuso na anlise geogrfica dominada por um contraste terico entre os fatores humanos e os fatores naturais:

    A anlise cientfica, em geral, consiste em descrever a maneira pela qual um fenmeno particular se relaciona com outros determinados fenmenos, ou, em outras palavras, na busca dos fatores causais que produzem um efeito conhecido. A anlise clara exige uma ntida separao entre os dois lados da proposio. Se nos for simultaneamente exigido se parar os elementos humanos e os no humanos, a combinao dessas duas exigncias fora a presumir-se que tais elementos se correspondem, isto , que os fatores humanos devem ser estudados

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    como efeitos de causas naturais. Se, porm, for reconhecido que os fatores culturais desempenham um papel causal nesta relao, cumpre situ-los como causativos ao lado das causas naturais, e o formulao feita no mais separar os fatores humanos dos fatores no humanos (HARTSHORNE, 1978: 55).

    Estudar os fatores humanos como efeitos de causas naturais pode levar a equvocos e busca de evidncias empricas para teorias formuladas a priori:

    A geografia proposta por Ratzel privilegiou o elemento humano, (...) valorizando questes referentes histria e ao espao, como a formao dos territrios, a difuso dos homens no Globo, a distribuio dos povos e das raas na superfcie terrestre, o isolamento e suas conseqncias, alm de estudos monogrficos das reas habitadas. Tudo tendo em visto o objeto central que seria o estudo das influncias, que as condies naturais exercem sobre a evoluo das sociedades (...) Os discpulos de Ratzel radicalizaram suas colocaes, constituindo o que se denomina (...) doutrina do determinismo geogrfico (MORAES, 1981: 57).

    Na verdade, os autores dessa corrente partiram da definio ratzeliana do objeto da reflexo geogrfica e simplificaram-na. Seus representantes mais conhecidos foram SEMPLE e HUNTINGTON:

    A primeira, gegrafa americana, aluna de Ratzel, foi a responsvel pela divulgao das teses deste nos EVA. Um exemplo das formulaes de Semple, pode ser obtido na sua teoria, que relaciona a religio com o relevo: nas regies planas, predominariam religies monotestas; nas regies acidentadas, predominariam religies politestas. Huntington concebia um determinismo invertido, isto , para ele, as condies naturais mais hostis seriam as que propiciariam o maior desenvolvimento. O autor defende a idia de que os rigores do inverno explicariam, pelas necessidades impostas (abrigo, estocagem de comida), o desenvolvimento das sociedades europias (MORAES, 1981: 58).

    Em termos de mtodo, a proposta de Vidal de LA BLACHE no rompeu com as formulaes de RATZEL, foi antes um prosseguimento destas. Vidal era, porm, mais relativista, negando a idia de causalidade e determnao de RATZEL:

    Na perspectiva vidalina, a natureza passou a ser vista como possibilidades para a ao humana; da o nome de Possiblismo dado a esta corrente por Lucien Febvre (MORAES, 1981: 68).

    Para Yves LACOSTE, a regio-personagem, fruto do pensamento vidaliano e considerada a representao espacial fundamental da sntese harmoniosa e das heranas histricas, tornou-se um poderoso conceito-obstculo que impediu a considerao de outras representaes espaciais e o exame de suas relaes:

    Os gegrafos, de algum moda, acabaram por naturalizar as idias de regio: no falam eles das regies calcreas, de regies gramticas, de regies frias, de regies florestais? Eles utilizam a noo de regio, que fundamentalmente poltica, para designar todas as espcies de conjuntos espaciais, quer sejam topogrficos, gelgicos, climticos, botnicos, demogrficos, econmicos ou culturais (LACOSTE, 1993:65-6 6).

    O autor acha que a consagrao pelos gegrafos da regio-personalidade forneceu a garantia, a prpria base, de todos os geografismos que proliferam no discurso poltico. Exemplos de geografismos: a Lorena luta, a Crsega se revolta, a Bretanha reivindica, o Norte produz. Evidentemente esses geografismos designam os homens que vivem nestas cidades ou regies da Frana:

    Mas esses malabarismos de estilo no so assim to inocentes como podem parecer primeira vista, pois eles permitem escamotear as diferenas e as contradies entre os diversos grupos sociais que se encontram nesses lugares ou sobre esses territrios. E a razo pela qual esses geografismos so to utilizados nos discursos patriticos, quer se trate do Estado-nao ou da regio, que alguns consideram como mininaes ou como naes em potencial (LACOSTE, 1993: 65).

    Os seres humanos, individualmente ou em grupos, tendem a perceber o mundo

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    com o self, como o centro. O egocentrismo e o etnocentrismo parecem ser traos humanos universais, embora suas intensidades variem grandemente entre os indivduos e os grupos sociais:

    Os egpcios antigos, separados pelo deserto e pelo mar, dos seus pares na Mesapotmia, estavam certos que eram superiores aos povos que encontraram alm das bordas do vale do Nua. Conscientes de sua prpria sofisticao, acreditavam que seus vizinhos eram rsticos e leigos. Eles faziam a distino entre homens, de um lado e lbios, asiticos ou africanos, de outro. Os egpcios eram homens e de certa maneira estava implcito que os estrangeiros no alcanavam a completa estatura humana. Nas pocas de tenso nacional, quando a ordem estabelecida havia sido destruda, uma queixa comum dos egpcios era de que os estrangeiros em todas as partes tinham se tornado pessoas (TUAN, 1980: 34-35).

    Ainda na obra de Vidal de LA BLACHE possvel observar o sutil argumento que, num mesmo discurso, critica o expansionismo germnico, avalizado pela obra de RATZEL, ao mesmo tempo em que resguarda uma legitimao da ao colonial francesa:

    As fronteiras europias definiriam domnios de civilizao, solidamente firmadas por sculos de histria. Assim, qualquer tentativa de no respeit-las significaria uma agresso, na medida em que estes limites seriam fruto de um longo processo de civilizao. Note-se que a ao imperial francesa no se concentrava na Europa; era principalmente um expansionismo colonial, que tinha por espao a sia e a frica (...) estes dois ltimos continentes abrigariam sociedades estagnadas, imersas no localismo, comunidades vegetando lado a lado, sem perspectivas de desenvolvimento. Aqui, o contato seria necessrio para romper este equilbrio primitivo. Ao definir o progresso como fruto de relaes entre sociedades com gneros de vida diferentes, num processo enriquecedor, Vidal de La Blache abriu a possibilidade de falar da misso civilizadora do europeu na frica. E, assim, legitimara ao colonialista francesa. Dessa forma, uma legitimao indireta, onde o tema da expanso e do domnio territorial (assim como os demais assuntos diretamente polticos) no so sequer mencionados (MORAES: 1981:70-71).

    Yi-fu TUAN acha que a iluso de superioridade e centralidade provavelmente necessria para a manuteno da cultura:

    Quando a crua realidade despedaa essa iluso, possvel que a prpria cultura decline. No mundo moderno das comunicaes rpidas difcil para as pequenas comunidades acreditarem que estejam, em qualquer sentido literal, no centro das coisas, embora algo desta f seja necessrio se elas desejam prosperar (...) Pode no nos parecer estranho que a China, por um longo tempo, se considerasse como o Imprio Central, nem que a Gr-Bretanha no sculo dezenove e atualmente os Estados Unidos, se vejam como o centro do mundo. Entretanto, o fato que esta perspectiva etnocntrica prevalece entre a maioria, ou todos os povos, enquanto ficam isolados e no tm que enfrentar a existncia de outros povos mais numerosos ou superiores a eles. Graas ao conhecimento atual, estamos certos em denominar o etnocentrismo uma iluso, mas no passado, a experincia muitas vezes apoiou esta crena (TUAN, 1980: 36).

    A viso eurocntrica bvia na idia de Europa. Na poca das grandes navegaes martimas, os termos Europa e sia tornaram-se muito teis. Os dois continentes eram separados pela grande pennsula da frica, que os marinheiros tinham que circunavegar. Mas Europa adquiriu uma vez mais significado poltico e cultural:

    Quase no fim do sculo dezessete, os povos do mundo ocidental sentiram a necessidade de um nome coletivo para designar a sua civilizao. O termo tradicional Cristandade Ocidental pareceu inapropriado, aps as Guerras de Religio. Europa serviu ao propsito. Servia a uma rea que fora unificada por razes comuns na histria, raa, religio e lngua. Europa tem substncia; sia simplesmente aquilo que no Europa. Ela foi definida negativamente e sob a perspectiva europia: deste modo temos o Oriente Prximo, o Oriente

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    Mdio e o Extremo Oriente. A sia nunca foi uma entidade. Os seus povos diferem grandemente em tipo racial, lngua, religio e cultura. Os rabes, os indianos, os chineses e os balineses no sabiam que eram todos asiticos, at que os europeus lhes disseram, A sia era a sombra subjacente da conscincia da Europa (TUAN, 1980: 48-4 9).

    Yi-fu TUAN observa ainda que h um artifcio cartogrfico moderno que notoriamente etnocntrico e que lembra os mapas circulares gregos centrados na Grcia e os mapas medievais traados com Jerusalm em seu ponto central:

    O artificio mostra todo o mundo em uma projeo que est centralizada no sul da Gr-Bretanha ou noroeste da Frana. Um crculo traado para incluir a metade da rea do globo. Este o hemisfrio continental. Inclui quase toda a massa continental da Eursia, toda a frica do Norte e o tero setentrional da Amrica do Sul. Fora do crculo est o hemisfrio ocenico. Com exceo dos planaltos gelados inabitveis da Antrtida e Groelndia, aproximadamente nove dcimos da rea das terras esto situados no hemisfrio continental, onde se localiza 95% da populao mundial. O mapa desfruta de certa popularidade na Gr-Bretanha, a que compreensvel (TUAN, 1980: 49).

    O surgimento de movimentos nacionalistas, disseminados pelo Globo, responsvel por um processo de fragmentao evidente. O Estado moderno muito grande, sua rea muito heterognea para infundir o tipo de afeio que surge da experincia e do conhecimento ntimo. A formao de blocos e a integrao econmica mundial so contrabalanadas por foras contrrias, de origem sobretudo poltica e social, e de carter predominantemente local, que podem ser identificadas preliminarmente, nas formas seguintes (VASCONCELOS, 1993: 48-50):

    a) Criao de novos estados: em 1993, o nmero de estados independentes j alcanava 189, incluindo mini-estados, que seriam considerados inviveis anteriormente, como as ilhas de Caribe e do Pacfico, tendo algumas caractersticas de Parasos Fiscais; b) Novos desmembramentos de estados: aps a desagregao da Unio Sovitica e da Iugoslvia, a Tchecoslovquia separa-se em duas repblicas; a Eritria separa-se da Etipia aps longa guerra; c) Novas tentativas separatistas: na Rssia, na Gergia, na Etipia e no Sri Lanka. Esses movimentos so baseados no crescimento do nacionalismo, no agravamento das questes tnicas ou nas especificidades religiosas, e vo juntar-se a movimentos separatistas mais antigos como o de Quebec (Canad), dos flamengos/vales (Blgica) e dos bascos (Espanha/Frana); d) Desagregao de estados nacionais: o estado central perde o controle do territrio para fraes, tribos, grupos tnicos ou religiosos. Exemplos: Afeganisto, Lbano, Libria, Somlia; e) Povos sem estado: ciganos, palestinos, curdos; f) Ampliao dos movimentos integristas: islmicos (como na Arglia); industas (na lndia ocidental).

    O patriotismo significa amor pela ptria ou terra natal. Nos tempos antigos era estritamente um sentimento local. Os gregos no usavam patriotismo indiscriminadamente para todas as terras de lngua grega, mas para pequenas reas como Atenas, Esparta, Corinto e Esmirna. O patriotismo dos fencios se reduzia a Tiro, Sidon ou Cartago; no Fencia em geral. A cidade despertava emoes profundas, especialmente quando era atacada. Quando os romanos procuraram punir os cartagineses pela desobedincia, arrasando a sua cidade, os cidados de Cartago suplicaram aos seus conquistadores que poupassem a cidade fsica, suas pedras e templos, que no tinham nenhuma culpa e em lugar disso, se necessrio, exterminassem toda a populao (TUAN, 1980).

    Talvez esteja aqui o significado mais profundo do que se convencionou chamar regio cultural. O homem moderno conquistou a distncia, mas no o tempo. Durante a sua vida, o homem agora - como no passado - somente pode estabelecer razes profundas em uma pequena parte do mundo (TUAN, 1980).

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    Regio e Lugar De acordo com Edward RELPH, no h limites precisos a serem traados entre

    espao, paisagem e lugar, como fenmenos experienciados, nem a relao entre eles constante: lugares tm paisagens, e paisagens e espaos tm lugares. O autor considera o lugar como sendo talvez o mais fundamental dos trs, pois focaliza a paisagem e o espao em torno das intenes e experincias humanas. Os lugares clamam nossas afeies e obrigaes, conhecemos o mundo atravs dos lugares nos quais vivemos. Lugares so existenciais e uma fonte de auto-conhecimento e responsabilidade social (RELPH, 1979).

    O mesmo autor admite a dificuldade de tecer generalizaes a respeito dos modos pelos quais as pessoas se relacionam com o lugar ou os lugares. Para RELPH, os lugares que conhecemos e gostamos so todos lugares nicos e suas particularidades so determinadas por suas paisagens e espaos individuais e por nossos cuidados e responsabilidade, ou ainda pelo nosso desgosto, por eles:

    Se conhecemos lugares com afeio profunda e genealgica, ou como pontos de parada numa passagem atravs do mundo, eles so colocados a parte porque significam algo para ns e so os centros a partir dos quais olhamos, metaforicamente pelo menos, atravs dos espaos e para as paisagens. E se nos encontramos aprisionados pelas circunstncias ou ambientes de nossa prpria escolha, estamos sempre dentro dum lugar que colorido por nossas intenes e experincias, que tambm as modificam (RELPH, 1979: 18).

    TUAN afirma que o lugar pode ser definido de diversas maneiras. Por exemplo, como qualquer objeto estvel que capta nossa ateno. Quando olhamos uma cena panormica, nossos olhos se detm em pontos de interesse, podemos deliberadamente procurar um referencial, ou um aspecto no horizonte pode ser to notvel que chama nossa ateno. Entretanto, muitos lugares, altamente significantes para certos indivduos e grupos, tm pouca notoriedade visual. So conhecidos emocionalmente, e no atravs do olho crtico ou da mente (TUAN, 1983).

    Para TUAN, seria impossvel discutir o espao experiencial sem introduzir os objetos e os lugares que definem o espao. Nessa direo, o autor afirma que a distncia um conceito espacial inexpressivo separado da idia de objetivo ou lugar. Todavia, possvel descrever o lugar sem a utilizao explcita de conceitos espaciais:

    Aqui no envolve necessariamente l (...) Movemo-nos das experincias diretas e ntimas para aquelas que envolvem cada vez mais apreenso simblica e conceitual. As experincias ntimas jazem enterradas no mais profundo do nosso ser, de modo que no apenas carecemos de palavras para dar-lhes forma, mas freqentemente no estamos sequer consciente delas (TUAN, 1983: 151).

    Eric DARDEL acha que, para o ser humano, a realidade se mostra primeiramente atravs do lugar em que se est, os lugares de infncia, o ambiente que lhe chama sua presena:

    Antes de mais nada, h esse lugar que no escolhemos, onde as bases de nossa existncia mundana e da nossa condio humana se estabelecem. Ns podemos trocar de lugares, mudar, mas isso ainda a procura de um lugar; precisamos de uma base para estabelecer nossa existncia e realizar nossas possibilidades, um aqui a partir do qual descobrir o mundo, um acol para o qual ir (DARDEL. 1952, in: RELPH, 1979: 16).

    As diversas experincias de espaos podem relacionar-se de um modo particular no lugar. Visto assim, o lugar pode ser identificado a partir de trs componentes que se interrelacionam: traos fsicos, atividades e funes observveis, bem como os significados ou smbolos. So estes componentes que do autenticidade aos lugares. Estudar a autenticidade dos lugares significa examinar um fenmeno especfico do mundo vivido, elucidando a diversidade e intensidade de nossas experincias de lugar (RELPH, 1976, in: HOLZER, 1996).

    E fundamental entender tambm que o lugar existe em escalas2 diferentes, como nos lembra TUAN:

    Em um extremo, uma poltrona preferida um lugar; em outro extremo, toda a terra. A ptria um tipo importante de lugar em escala mdia. E uma regio

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    (cidade ou interior) grande o suficiente para garantir a subsistncia de um povo (TUAN, 1983: 165).

    Vista como lugar, a regio adquire novos sentidos e significados: Uma noo de regio calcada na idia de lugar tira esta palavra dos escritrios dos analistas e urbanistas e joga-a de volta vida cotidiana. D a ela novamente a fluidez e a flexibilidade das coisas comuns, criadas e modificadas quase ao sabor do vento, naquelas conversas e divagaes que ocorrem nos portes das casas e que vo reunindo sempre mais gente diante de uma discusso sem fim de onde comea e onde termina aquele bairro, ou qual a origem do nome do referido lugar. Uma vez dispersadas as pessoas, l se vo as verses mais desconexas de um mesmo tema. A oralidade encarrega-se de manter o fio condutor num dinamismo do qual a cincia escrita no capaz (OLIVEIRA JNIOR, 1996: 77).

    Regio e Identidade

    Concorda-se aqui com a afirmao do gegrafo Rogrio HAESBAERT de que os smbolos que compem uma identidade social no so construes totalmente arbitrrias ou aleatrias, j que sempre mantm determinados vnculos com a realidade concreta (HAESBAERT, 1997). Ao mesmo tempo que determina aspectos da vida em sociedade, o simbolismo est repleto de interstcios e de graus de liberdade (CASTORIADIS, 1982, in: HAESBAERT 1997).

    A questo das identidades regionais mantm-se insuficientemente explorada. No entanto, parece consensual que identidades constrom-se sempre a partir do reconhecimento de uma alteridade. Isso, no entanto, s pode acontecer onde h interao, transaes, relaes ou contatos entre grupos diferentes (BARTH, 1969, in: URIARTE, 2001).

    Para o socilogo Pierre BOURDIEU, o mundo social tambm representao e vontade, e existir socialmente tambm ser percebido como distinto:

    As lutas a respeito da identidade tnica ou regional (...) so um caso particular das lutas das classificaes, lutas pelo monoplio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definio legtima das divises do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer grupos. Com efeito, o que nelas est em jogo o poder de impor uma viso do mundo social atravs dos princpios de diviso que, quando se impem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo (BOURDIEU, 2000: 113).

    Particularmente interessantes so as colocaes de BOURDIEU a respeito das fronteiras e limites espaciais:

    A fronteira nunca mais do que o produto de uma diviso a que se atribuir maior ou menor fundamento na realidade segundo os elementos, que ela rene, tenham entre si semelhanas mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes (...) Cada um est de acordo em notar que as regies delimitadas em funo dos diferentes critrios concebveis (lngua, habitat, tamanho da terra, etc.) nunca coincidem perfeitamente (...) a realidade, nesse caso, social e as classificaes mais naturais apoiam-se em caractersticas que nada tm de natural e que so, em grande porte, produto de uma imposio arbitrria, (...) de um estado anterior da relao de foras no campo das lutas pela delimitao legtima. A fronteira, esse produto de um ato jurdico de delimitao, produz a diferena cultural do mesmo modo que produto desta (BOURDIEU, 2000: lIS).

    E, portanto, no sistema de relaes com o que lhe externo, ou seja, com a alteridade, que a territorialidade regional pode ser definida. Ela est impregnada de laos de identidade, que tentam de alguma forma homogeneizar esse territrio, dot-lo de uma rea/superfcie minimamente igualizante, seja por uma identidade territorial, seja por uma fronteira definidora de alteridade (HAESBAERT, 1 997).

    Importante tambm a distino entre diferente e desigual. Enquanto a desigualdade exige um parmetro comum, classificatrio, que permita uma comparao global, em rede, a diferena stricto sensu o no sentido de alteridade, no havendo, a

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    princpio, a possibilidade de hierarquizao, j que se manifesta quando confrontada com outra identidade (HAESBAERT, 1997).

    Para Denis COSGROVE, se a cultura o centro dos objetivos de uma geografia que busca compreender o mundo vivido dos grupos humanos, uma geografia baseada na dialtica marxista precisa reconhecer tambm que o mundo vivido, mesmo que simbolicamente constitudo, tem expresso material, no devendo-se negar sua objetividade (COSGROVE, 1983).

    A cultura no algo que funciona atravs dos seres humanos, pelo contrrio, tem que ser constantemente reproduzida por eles em suas aes; muitas das quais so aes no reflexivas, rotineiras da vida cotidiana (...) o estudo da cultura est intimamente ligado ao estudo do poder. Um grupo dominante procurar impor sua prpria experincia de mundo, suas prprias suposies tomadas como verdadeiras, como a objetiva e vlida cultura para todas as pessoas. O poder expresso e mantido na reproduo da cultura. Isto melhor concretizado quando menos visvel, quando as suposies culturais do grupo dominante aparecem simplesmente como senso comum. Isto s vezes chamado de hegemonia cultural. H, portanto, culturas dominantes e subdominantes ou alternativas, no apenas no sentido poltico (...) mas tambm em termos de sexo, idade e etnicidade (COSGROVE, 1998: 101-lOS).

    Visto assim, o discurso regionalista performativo, impondo como legtima uma nova definio das fronteiras e fazendo reconhecer a regio assim delimitada contra a definio dominante reconhecida e legitima que a ignora:

    Mas o efeito de conhecimento que o fato da objetivao no discurso exerce no depende apenas do reconhecimento consentido quele que o detm; ele depende tambm do grau em que o discurso, que anuncia ao grupo a sua identidade, est fundamentado na objetividade do grupo a que ele se dirige, isto , no reconhecimento e na crena que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades econmicas e culturais que eles tm em comum, pois somente em funo de um princpio determinado de pertinncia que pode aparecer a relao entre estas propriedades. O poder sabre o grupo que se trata de trazer existncia enquanto grupo , a um tempo, um poder de fazer o grupo impondo-lhes princpios de viso e diviso comuns, portanto, uma viso nica da sua identidade, e uma viso idntica da sua unidade (BOURDIEU, 2000:117).

    Guisa de Concluso: E o Mtodo Regional?

    Concorda-se aqui com ROCHA (1999) que, antes de mais nada, a regio a ser estudada deve apresentar fundamentalmente uma justificativa histrica, j que a partir das condices histricas de produo deste dado espao que o delineamento se consubstancia (ROCHA, 1999: 63). Acrescente-se que a regio no apenas o espao, mas tambm o tempo, a histria (BOIS, 1960, in: BOURDIEU, 2000).

    ROCHA nos lembra ainda que, normalmente, o espao regional apresenta como unidade quantificvel o municpio e dele que podemos, a partir de variveis compiladas pelos censos ou outras pesquisas institucionais, comparar situaes e estabelecer algumas relaes, aqui utilizando uma tcnica quantitativa (ROCHA: 1 999: 64). Mas, aplicar o mtodo regional, pensando a regio como lugar, muito mais que agrupar dados quantitativos de diferentes municpios em busca de uma unidade (ou identidade) regional pressuposta pelo pesquisador. O mtodo regional deve buscar a regio em cada lugar, em cada cidade, em cada bairro:

    O espao deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da prpria sociedade que lhe d vida. Todavia, consider-lo assim uma regra de mtodo cuja prtica exige que se encontre, paralelamente, atravs da anlise, a possibilidade de dividi-lo em partes. Ora, a anlise uma forma de fragmentao do todo que permite, ao seu trmino, a reconstituio desse todo (SANTOS, 1992: 5).

    A reconstituio do todo, como prope SANTOS, pressupe o abandono das velhas dicotomias (Geografia Humana versus Geografia Fsica, tcnicas qualitativas

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    versus tcnicas quantitativas, fenomenologia versus dialtica marxista) e, no caso especfico da aplicao do mtodo regional, a busca no s das semelhanas, mas tambm das diferenas entre os lugares que compem uma mesma regio. E preciso sobretudo pensar a regio como algo dinmico e mutvel, reflexo e produto da ao dos seres humanos, como espao vivido e, por isso mesmo, representvel, algo passvel de apropriao3

    A aplicao do mtodo regional deve, portanto, tentar construir, a partir das representaes dos diferentes grupos e indivduos produtores do espao, uma representao coletiva para a regio pesquisada, a partir da identificao das redes de relaes sociais4, agrupando-se as representaes em nveis diferenciados at se chegar a uma representao coletiva sntese da regio.

    A vida regional, segundo Bernard KAYSER, tende a nascer e a tomar corpo em um espao cada vez mais amplo do nosso Globo. Por outro lado, os quadros e as dimenses das regies constitudas modificam-se continuamente, em virtude da ao combinada de processos dinmicos e de foras de inrcia: as transformaes de ordem tcnica e econmica de um lado, e as presses humanas e as resistncias de outro (KAYSER, 1980). A regio estaria, de acordo com essa tica, em perptua evoluo5.

    Da a relevncia de uma avaliao profunda e consistente da historicidade das regies. Para SOUZA (1989), buscar essa historicidade equivale a procurar aqueles traos comuns, que a despeito das transformaes ao longo do tempo e das diferenas interespaciais permitem que enxerguemos uma certa unidade na diversidade, garantida pela permanncia de alguns aspectos ao longo da evoluo das cidades, bairros e regies. 1 Este artigo uma reviso bibliogrfica comentada sobre o papel da Geografia Regional no contexto da cincia geogrfico contempornea, resultado das reflexes e experincia como professor, desde 1997, das disciplinas Geografia Regional I e II (do curso de graduao em Geografia) e Evoluo e Organizao do Espao Regional (do curso de Mestrado em Geografia), na Universidade Federal da Bahia. 2 O conceito de escala um dos pilares da cincia geogrfica. Mais do que um recurso matemtico fundamental para a cartografia, a escala um modo de aproximao do real, uma maneira de ver o mundo e de tornar visveis os fenmenos scio-espaciais. Quando a escala muda, mudam tambm os fenmenos e as perspectivas de anlise do espao. Para CASTRO, a escala a escolha de uma forma de dividir o espao, definindo uma realidade percebido/concebida, dando-lhe uma figurao, uma representao (CASTRO, 1995: 136), que. em ltima instncia, substitui o espao real observado. 3 De acordo com o conceito de apropriao, tal como definido pelo socilogo e filsofo francs Henri LEFEBVRE, um processo efetivo de territorializao deve reunir, ao mesmo tempo, uma dimenso concreta, de carter predominantemente funcional, e uma dimenso simblica e afetiva; A dominao tende a originar territrios puramente utilitrios e funcionais, sem que um verdadeira sentido socialmente compartilhado e/ou uma relao de identidade com o espao possa ter lugar (citado por HAESBAERT 1997). 4 no nvel local, onde os fragmentos das redes ganham uma dimenso nica e socialmente concreta, ensina o Professor Milton Santos (SANTOS, 1996): Aos tempos rpidos das redes tecnolgicas se contrapem os tempos lentos das populaes urbanas segregadas, articuladas em redes sociais cotidianas que refletem as diferentes relaes de vizinhana, de parentesco, de amizade e solidariedade. 5 A regio uma criao humana. No de surpreender, pois, que o homem desempenhe um papel determinante na sua evoluo. Por sua ao e sua vontade social, o homem age sobre a regio como produtor. transportador, distribuidor, organizador etc. Coletivamente, por sua simples presena como habitante da regio (KAYSER, 1980).

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