Geopolitica Da Fome

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Transcript of Geopolitica Da Fome

  • 1

    Jean Ziegler

    Destruio massiva

    Geopoltica da fome

    Traduo de Jos Paulo Netto

    Preparao de Tiago Jos Risi Leme

    Cortez Editora

    So Paulo

    2012

  • 2

  • 3

    Autor: Jean Ziegler

    Ttulo original: Destruction massive Gopolitique de la faim

    ditions du Seuil Paris 2011

  • 4

    /KRPPHTXLYHXWGHPHXUHUILGqOHjODMXVWLFHGRLWse faire incessamment infidle aux injustices WRXMRXUVLQpSXLVDEOHPHQWWULRPSKDQWHV

    Charles Pguy

    2KRPHPTXHTXer manter-se fiel justia deve tornar-se incessantemente infiel s injustias sempre LQHVJRWDYHOPHQWHWULXQIDQWHV

  • 5

    Este livro dedicado memria de

    Facundo Cabral, assassinado na Cidade da Guatemala

    Michel Riquet, s.j.

    Didar Fawzy Rossano

    Sebastio Hoyos

    Isabelle Vichniac

    Chico Mendes, assassinado em Xapuri, Brasil

    Edmond Kayser

    Resfel Pino Alvarez

  • 6

    Sumrio

    Prlogo ..............................................................................................................................

    Primeira parte

    O massacre

    1. Geografia da fome ........................................................................................................ 2. A fome invisvel ............................................................................................................. 3. As crises prolongadas ..................................................................................................... Ps-escrito 1: O gueto de Gaza ...................................................................................... Ps-escrito 2: Os refugiados da fome da Coreia do Norte............................................. 4. As crianas de Crates .................................................................................................... 5. Deus no um campons ............................................................................................... 1LQJXpPSDVVDIRPHQD6XtoD 7. A tragdia da noma .........................................................................................................

    Segunda parte

    O despertar das conscincias

    1. A fome como fatalidade. Malthus e a seleo natural................................................... 2. Josu de Castro, primeira poca .................................................................................... 2SODQRIRPHGH$GROI+LWOHU 4. Uma luz na noite: as Naes Unidas ............................................................................ 5. Josu de Castro, segunda poca. Um caixo muito incmodo.....................................

    Terceira parte

    Os inimigos do direito alimentao

    1. Os cruzados do neoliberalismo ............................................................................... 2. Os cavaleiros do apocalipse .................................................................................... 3. Quando o livre-comrcio mata .............................................................................. 4. Savonarola s margens do Lman ..........................................................................

    Quarta parte

  • 7

    A runa do PAM e a impotncia da FAO

    1. A surpresa de um miliardrio .................................................................................. 2. A grande vitria dos predadores ............................................................................. 3. A nova seleo ........................................................................................................ 4. Jalil Jilani e suas crianas ....................................................................................... 5. A derrota de Diouf .................................................................................................

    Ps-escrito: A morte das crianas iraquianas .........................................................

    Quinta parte

    2VDEXWUHVGRRXURYHUGH

    1. A mentira ................................................................................................................ 2. A obsesso de Barack Obama ................................................................................. 3. A maldio da cana-de-acar ................................................................................

    Ps-escrito: O inferno de Gujarat .......................................................................... 4. Recolonizao .........................................................................................................

    Sexta parte Os especuladores

    1. 2VWXEDU}HV-WLJUH...................................... 2. Genebra, capital mundial dos especuladores agroalimentares .............................. 3. Roubo de terras, resistncia dos condenados da terra............................................ 4. A cumplicidade dos Estados ocidentais .................................................................

    Eplogo: A esperana ......................................................................................................... Agradecimentos ..................................................................................................................

  • 8

    Prlogo

    Recordo-me de uma manh clara, durante a estao seca, na pequena aldeia de

    Saga, a uns cem quilmetros ao sul de Niamey, no Nger. A misria impera em toda a

    regio. Para tanto, muitos fatores se conjugam: um calor jamais sentido, segundo a

    memria dos ancios, com picos de 47,5 graus sombra, uma seca de dois anos, uma

    m colheita de milho na invernagem precedente, o esgotamento das forragens, uma

    entressafra1 de mais de quatro meses e at um ataque de gafanhotos. As paredes das

    casas de banco,2 o teto de palha e a terra ardendo de calor. O paludismo e as febres

    castigam as crianas. Os homens e os animais sofrem com sede e fome.

    Espero diante do dispensrio das irms de Madre Teresa.3 O encontro foi

    marcado pelo representante do Programa Alimentar Mundial (PAM) em Niamey.

    Trs barraces brancos, cobertos com chapas metlicas. Um ptio com um

    enorme baob ao centro. Uma capela, depsitos e, rodeando tudo, um muro de cimento

    com um porto de ferro.

    Espero diante do porto, no meio da multido, cercado de mulheres.

    O cu est vermelho. O grande disco purpreo do sol levanta-se lentamente no

    horizonte.

    Diante do porto de metal cinzento, as mulheres se amontoam, os rostos

    marcados pela angstia. Algumas se agitam nervosamente, enquanto outras, com um

    olhar perdido, demonstram uma infinita lassitude. Todas trazem em seus braos uma

    criana, s vezes duas, coberta de farrapos. Estes trapos se levantam docemente ao ritmo

    das respiraes. Muitas dessas mulheres caminharam por toda a noite, algumas at por

    vrios dias. Vm de aldeias atacadas por gafanhotos, distantes de trinta a cinquenta

    quilmetros. Esto visivelmente exaustas. Diante do porto que no se abre, mal se

    mantm de p. Os pequenos seres esquelticos que tm nos braos parecem pesar-lhes

    1 Chama-se soudure o perodo que separa o esgotamento da colheita precedente da nova colheita, durante o qual os camponeses devem comprar o alimento. [Traduzimos priode de soldure por entressafra. (N.T.)] 2 Tijolos fabricados com uma mistura de terra argilosa, laterito arenoso, palha picada e excrementos de vaca. 3 Madre Teresa de Calcut (Agnes Gonxha Bojaxhiu, 1910-1997), missionria catlica nascida na Macednia e naturalizada indiana (1948). Fundou a congregao das Missionrias da Caridade, reconhecida pela Santa S em 1965. Prmio Nobel da Paz de 1979, foi beatificada em 2003. (N.T.)

  • 9

    demasiadamente. As moscas volteiam sobre os farrapos. Malgrado a hora matinal, o

    calor sufocante. Um co passa e levanta uma nuvem de poeira. Um cheiro de suor

    flutua no ar.

    Dezenas dessas mulheres estiveram uma ou mais noites abrigadas em covas que

    cavaram apenas com as mos no solo duro da savana. Desatendidas na vspera ou na

    antevspera, voltam agora, com uma infinita pacincia, para tentar a sorte.

    Enfim, ouo passos no interior do ptio. Uma chave gira na fechadura.

    Uma irm de origem europeia, com belos olhos graves, aparece e entreabre

    algumas dezenas de centmetros o porto. A massa humana se agita, move-se de um

    lado a outro, empurra, se aperta contra o porto. A irm levanta um trapo, depois outro e

    mais outro. Com um rpido golpe de vista, tenta identificar as crianas que ainda tm

    alguma chance de viver.

    Ela fala docemente, num hau4 perfeito, s mes angustiadas. Finalmente,

    quinze crianas e suas mes so admitidas. A religiosa alem tem lgrimas nos olhos.

    Uma centena de mes, desatendidas neste dia, permanecem silenciosas, dignas,

    totalmente desesperadas.

    Uma fila se forma sob o silncio. Estas mes abandonam o combate. Elas

    partiro pela savana. Retornaro sua aldeia, ainda que l faltem alimentos.

    Um pequeno grupo decide ficar em Saga, em recantos protegidos do sol por

    ramagens ou um pedao de plstico. A manh voltar. E elas voltaro amanh. O porto

    novamente se entreabrir por alguns instantes. E elas tentaro a sorte de novo.

    Com as irms de Madre Teresa, em Saga, uma criana que sofre de desnutrio

    aguda e severa se restabelece, no mximo, em doze dias. Deitada sobre uma esteira,

    recebe a intervalos regulares um lquido nutritivo por via intravenosa. Com uma infinita

    ternura, sua me, sentada a seu lado com as pernas cruzadas, espanta incansavelmente

    as grandes moscas brilhantes que zumbem no interior da edificao.

    As irms so risonhas, doces, discretas. Vestem o sri e a mantilha branca com

    as trs faixas azuis traje tornado clebre pela congregao das Missionrias da

    Caridade, fundada por Madre Teresa de Calcut.

    A idade das crianas varia de seis meses a dez anos. A maioria delas est

    esqueltica. Percebem-se os ossos sob a pele, algumas tm o cabelo vermelho e o ventre

    4 Lngua canito-semtica do grupo tchadiano falada em grande parte do Sudo, Nigria e Nger. Fonte: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa. (N.R.)

  • 10

    inchado pelo kwashiorkor,5 uma das piores doenas ao lado da noma causadas pela

    subalimentao. Algumas encontram foras para sorrir; outras, recurvadas sobre si

    mesmas, apenas murmuram sons pouco audveis. Sobre cada uma delas baloua uma

    ampola, que contm o lquido teraputico que, gota a gota, desce pelo tubo fino at a

    agulha cravada no pequeno brao.

    Cerca de sessenta crianas esto permanentemente em tratamento nas esteiras

    das trs edificaes. 4XDVHWRGaVVHUHVWDEHOHFHPGL]-me, orgulhosa, uma jovem irm

    do Sri Lanka, responsvel pela balana suspensa no meio do barraco central, onde as

    FULDQoDVKRVSLWDOL]DGDVVmRSHVDGDVGLDULDPHQWH

    Ela percebe a incredulidade do meu olhar. L fora, no ptio, ao lado da pequena

    capela branca, os tmulos so numerosos.

    1RHQWDQWRHODLQVLVWH1HVWHPrVVySHUGHPRVGR]HHQRPrVSDVVDGRRLWR

    Passando depois mais ao sul em Maradi, onde os Mdicos em Fronteiras6

    lutam contra o flagelo da subalimentao e da desnutrio infantis agudas , fui

    informado de que as perdas das irms de Saga so de fato muito baixas em comparao

    com a mdia nacional.

    As irms trabalham dia e noite. Algumas esto mesmo no limite extremo da

    exausto. Entre elas, no h hierarquia alguma; cada uma se ocupa da sua tarefa e

    nenhuma desfruta de poder de mando aqui, no h abadessa nem priora.

    No barraco, o calor sufocante. O sistema eletrgeno e os poucos ventiladores

    que ele alimentava esto em pane.

    Saio ao ptio. O ar vibra de calor.

    Da cozinha a cu aberto evola o cheiro do creme de milho que uma jovem irm

    prepara para o almoo. As mes das crianas e as irms comero juntas, sentadas sobre

    as esteiras do barraco central.

    5 Sobre esta enfermidade, endmica na frica e que atinge especialmente as crianas na primeira infncia, sabe-se que seus sintomas principais so a perda de peso e de massa muscular, edemas, atraso no crescimento e alteraes psicomotoras; ela se deve especialmente baixa relao protena/caloria na dieta. Quanto noma, mencionada a seguir, sobre ela o autor deter-se- mais adiante. (N.T.) 6 Fundada por jovens mdicos franceses em 1971, Mdicos Sem Fronteiras uma organizao sem fins lucrativos que se prope realizar a ajuda humanitria no campo da sade domnio no qual a mais importante ONG de mbito internacional. Entre 1979 e 1980, discusses no seu interior levaram a uma fratura, da qual surgiu com objetivos similares outra ONG, Mdicos do Mundo, que ser referida adiante por Ziegler. (N.T.)

  • 11

    A luz branca do meio-dia saheliano7 me cega.

    H um banco sob o baob. A religiosa alem que vi pela manh est,

    cansadssima, sentada nele. Ela conversa comigo em sua lngua no quer que as outras

    irms a compreendam: teme desencoraj-las.

    2VHQKRUYLX" pergunta-me ela, com voz lassa.

    Respondo que sim. Ela permanece em silncio, os braos envolvendo os

    joelhos.

    ,QGDJR1RVEDUUDF}HVREVHUYHLPXLWDVHVWHLUDVYD]LDV3RUTXHSHODPDQKm

    voc no deixou entrar maiVPmHVHFULDQoDV"

    $VDPSRODVWHUDSrXWLFDVFXVWDPFDURAt porque estamos longe de Niamey. As

    estradas so ruins, os caminhoneiros cobram fretes exorbitantes... Nossos recursos so

    mnimos.

    A destruio anual de dezenas de milhes de homens, mulheres e crianas pela

    fome constitui o escndalo do nosso sculo.

    A cada cinco segundos, morre uma criana de menos de dez anos. Em um

    planeta que, no entanto, transborda de riquezas...

    No seu estado atual, a agricultura mundial poderia alimentar sem problemas

    doze bilhes de seres humanos vale dizer, quase duas vezes a populao atual.

    Quanto a isto, pois, no existe nenhuma fatalidade.

    Uma criana que morre de fome uma criana assassinada.

    Diante desta destruio massiva, a opinio pblica responde com uma

    indiferena glacial. No mximo, concede uma breve ateno quando ocorrem

    FDWiVWURIHVSDUWLFXODUPHQWHYLVtYHLVFRPRDTXHODTXHGHVGHRYHUmRGHDPHDoD

    aniquilar a cifra exorbitante de doze milhes de seres humanos nos cinco pases do

    Corno da frica.8

    7 Relativo a Sahel, palavra que designa uma longa faixa de terra que vai do Atlntico ao mar Vermelho (com uma largura entre quinhentos e setecentos quilmetros), situada entre o deserto do Saara e as frteis terras mais ao sul. (N.T.) 8 O Corno (ou Chifre) da frica ou, ainda, a pennsula somali a regio do Nordeste africano que inclui a Somlia, a Etipia, a Eritreia, o Djibuti e parte do Qunia. (N.T.)

  • 12

    Apoiando-me na massa de estatsticas, grficos, relatrios, resolues e outros

    estudos aprofundados procedentes das Naes Unidas, mas tambm de organizaes

    no governamentais (ONGs), procurei, na primeira parte deste livro, descrever a

    extenso do desastre. Trata-se de considerar a escala dessa destruio massiva.

    Cerca de um tero dos 56 milhes de mortos civis e militares, no curso da

    Segunda Guerra Mundial, foram o resultado da fome e das suas consequncias

    imediatas.

    Metade da populao bielo-russa morreu de fome durante os anos de 1942 e

    1943.9 A subalimentao, a turberculose e a anemia mataram milhes de crianas,

    homens e mulheres em toda a Europa. Nas igrejas de Amsterd, Roterd e Haya, os

    caixes dos mortos pela fome se amontoaram durante o inverno de 1944-1945.10 Na

    Polnia e na Noruega, as famlias tentaram sobreviver comendo ratos e cascas de

    troncos de rvores.11 Muitos morreram.

    Como os gafanhotos do flagelo bblico, os saqueadores nazistas se lanaram

    sobre os pases ocupados, requisitando as reservas de alimentos, as colheitas e o gado.

    Para os detidos nos campos de concentrao, Adolf Hitler concebera, j antes da

    implementao do plano de extermnio de judeus e de ciganos, um Hungerplan (Plano

    Fome) cujo objetivo era liquidar o maior nmero possvel de detentos atravs da

    privao deliberada e prolongada de alimentos.

    Mas a experincia coletiva do sofrimento causado pela fome entre os povos

    europeus teve, no imediato ps-guerra, consequncias positivas. Grandes pesquisadores

    e profetas pacientes, a quem antes ningum prestava ateno, viram repentinamente

    como seus livros vendiam-se s centenas de milhares de exemplares e se traduziam a

    um grande nmero de idiomas.

    9 Timothy Snyder, Bloodland (Nova York: Basic Books, 2010). [Edio em portugus: Terras de sangue, Rio de Janeiro, Record, 2012.] 10 Max Nord, Amsterdam timjens den Hongerwinter (Amsterd, 1947). 11 (OVH0DUJUHWH 5RHG 7KH IRRG VLWXDWLRQ LQ 1RUZD\ in Journal of American Dietetic Association (Nova York, dezembro de 1943).

  • 13

    A figura universalmente conhecida desse movimento um mdico mestio,

    natural do miservel Nordeste brasileiro, Josu Apolnio de Castro12 seu livro

    Geopoltica da fome, publicado em 1951, deu a volta ao mundo. Tambm outros, de

    nacionalidades e geraes diferentes, exerceram uma influncia profunda sobre a

    conscincia coletiva ocidental dentre eles, Tibor Mende, Ren Dumont, o padre

    Pierre.13

    Fundada em junho de 1945, a Organizao das Naes Unidas (ONU) criou em

    seguida a Food and Agricultural Organization [Organizao para a Alimentao e a

    Agricultura] (FAO) e, um pouco mais tarde, o Programa Alimentar Mundial (PAM).

    Em 1946, a ONU lanou sua primeira campanha mundial de luta contra a fome. Enfim,

    em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU, reunida no palcio Chaillot,

    em Paris, adotou a Declarao Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 25 define o

    direito alimentao.

    A segunda parte deste livro resume esse formidvel momento do despertar da

    conscincia ocidental.

    Mas esse foi, lamentavelmente, um momento de curta durao. No interior do

    sistema das Naes Unidas e tambm no interior de muitos Estados-membros , os

    inimigos do direito alimentao eram (e continuam sendo, na atualidade) muito

    poderosos.

    A terceira parte do livro os desmascara.

    Privados dos meios adequados luta contra a fome, a FAO e o PAM sobrevivem

    hoje em condies difceis. E se o PAM, bem ou mal, consegue assumir uma parte da

    ajuda alimentar de urgncia s populaes que dela necessitam, em funo da misria, a

    FAO se encontra arruinada. A quarta parte do livro expe as razes dessa decadncia.

    12 Adiante, Ziegler fornecer indicaes biogrficas de Josu de Castro. (N.T.) 13 Tibor Mende (1915-1984), francs nascido na Hungria, foi um publicista voltado para as causas do Terceiro Mundo; da sua larga produo, est vertido ao portugus Ajuda ou recolonizao (Lisboa: D. Quixote, 1974). Ren Dumont (1904-2001), engenheiro agrnomo francs com experincias no Oriente, foi acadmico e homem de ao poltica; considerado o fundador da agro-ecologia na Frana; h obras suas vertidas ao portugus: Utopia ou morte (Lisboa: S da Costa, 1975); O crescimento da fome (Lisboa: Vega, 1977); Em defesa da frica, eu acuso (Lisboa: Europa-Amrica, 1989); em coautoria de Charlotte Paquet, Misria e desemprego. Liberalismo ou democracia (Lisboa: Instituto Piaget, 1999). O padre Pierre, conhecido como abb Pierre (Henri Antoine Grous, 1912-2007), foi uma das mais populares e polmicas personalidades francesas: participou da resistncia ocupao nazista, fez poltica institucional (1946-1951) e depois dedicou-se inteiramente ao Movimento Emas, de que foi um dos fundadores e a figura mais conhecida. (N.T.)

  • 14

    Desde ento, novos flagelos se abateram sobre os povos esfaimados do

    hemisfrio sul: os roubos de terras pelos trustes14 dos biocombustveis e a especulao

    burstil sobre os alimentos bsicos.

    O poderio planetrio das sociedades transcontinentais da agroindstria e dos

    hedge funds15 que especulam com os preos dos alimentos superior ao dos Estados

    nacionais e de todas as organizaes interestatais. Seus gestores, com suas aes,

    comprometem a vida e a morte dos habitantes do planeta.

    A quinta e a sexta partes deste livro explicam por que e como, hoje, a obsesso

    pelo lucro, o af do ganho, a cupidez ilimitada das oligarquias predadoras do capital

    financeiro globalizado prevalecem na opinio pblica e nos governos sobre todas as

    outras consideraes, obstaculizando a mobilizao mundial.

    Fui o primeiro relator especial das Naes Unidas sobre o direito alimentao.

    Com meus colaboradores e colaboradoras, homens e mulheres de uma competncia e

    um engajamento excepcionais, exerci esse mandato durante oito anos.16 Sem esses

    jovens universitrios, nada teria sido possvel.17

    Fao referncia, frequentemente, s misses que empreendemos em pases

    castigados pela fome ndia, Nger, Bangladesh, Monglia, Guatemala etc. Nossos

    relatrios de ento revelam, de forma esclarecedora, a devastao das populaes mais

    afligidas pela fome. Revelam tambm os responsveis por esta destruio massiva.

    Mas nem sempre tivemos uma vida fcil.

    14 Estrutura empresarial em que vrias empresas, que j detm a maior parte de um mercado, se ajustam ou se fundem para assegurar o controle, estabelecendo preos altos para obter maior margem de lucro. Fonte: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa. (N.R.) 15 Trata-se de instrumento financeiro que opera especulativamente (donde o seu alto risco) para SURWHJHU oferecendo superganhos vultosos investimentos (donde o seu acesso somente para grandes capitalistas rentistas) em ttulos da mais variada espcie. Mecanismo tpico da financeirizao do capitalismo contemporneo, que se desenvolveu especialmente aps os anos 1980 (embora tenha precedentes no imediato segundo ps-guerra), os hedge funds se beneficiaram largamente da GHVUHJXODPHQWDomRQHROLEHUDOTXHWHPSHUPLWLGRDPDis ampla mobilidade ao grande capital. (N.T.) 16 Entre 2000 e 2008. (N.T.) 17 Quero citar aqui os nomes de Sally-Anne Way, Claire Mahon, Ioanna Cismas e Christophe Golay. Nossa pgina na Internet: . Cf. tambm Jean Ziegler, Christophe Golay, Claire Mahon, Sally-Anne Way, The Fight for the Right to Food. Lessons Learned (Londres: Polgrave-Mac Millan, 2011).

  • 15

    Mary Robinson ex-presidente da Repblica da Irlanda e ex-alta comissria das

    Naes Unidas para os Direitos Humanos. Na ONU, poucos burocratas perdoam a essa

    mulher de belos olhos verdes, extrema elegncia e inteligncia aguda o seu humor

    feroz.

    9.923 conferncias internacionais, reunies de especialistas e sesses

    interestatais de negociaes multilaterais se realizaram em 2009 no palcio das Naes,

    o quartel-general europeu da ONU, em Genebra.18 O nmero foi maior em 2010. Vrias

    dessas reunies trataram dos direitos humanos e, notadamente, do direito alimentao.

    Durante o seu mandato, Mary Robinson demonstrou pouca considerao pela

    maioria dessas reunies. De acordo com ela, pareciam-se muito ao choral singing. A

    expresso quase intraduzvel refere-se ao costume ancestral irlands dos coros de

    aldeia que, no dia de Natal, vo de casa em casa cantando, monocordicamente, os

    mesmos refros ingnuos. que existem centenas de normas de direito internacional, de

    instituies interestatais, de organismos no governamentais cuja razo de ser

    combater a fome e a desnutrio.

    E, de fato, de um continente a outro, milhares de diplomatas, ao longo do ano, se

    entregam a um choral singing com os direitos humanos, sem que jamais algo mude na

    vida das vtimas. necessrio compreender as razes disso.

    Quando dos debates que se sucediam aps as minhas conferncias na Frana, na

    Alemanha, na Itlia, na Espanha, ouvi incontveis vezes objees do seguinte tipo:

    6HQKRUVHRVDIULFDQRVQmRIL]HVVHPILOKRVDWRUWRHDGLUHLWRQmRWeriam tanta fome.

    que as ideias de Thomas Malthus tm vida longa.19

    E o que dizer dos senhores dos trustes agroalimentares, dos ilustres dirigentes da

    Organizao Mundial do Comrcio (OMC), do Fundo Monetrio Internacional (FMI),

    dos diplomatas ocidentDLVGRVWXEDU}HV-WLJUHGDHVSHFXODomRHGRVDEXWUHVGRRXUR

    YHUGHTXHSUHWHQGHPTXHD IRPH que consideram um fenmeno natural, s pode ser

    derrotada pela natureza mesma um mercado mundial de algum modo autorregulado?

    Este criaria, como que por necessidade, riquezas de que se beneficiariam muito

    naturalmente as centenas de milhes de famlicos...

    18 Blaise Lempen, Genve. Laboratoire du XXe sicle (Genebra: ditions Georg, 2010). 19 Adiante, Ziegler tratar deste pensador e suas ideias. (N.T.)

  • 16

    O rei Lear sustenta uma viso pessimista do mundo. Dirigindo-se ao conde de

    Gloucester, cego, o personagem de Shakespeare descreve um mundo PLVHUiYHO

    (wrechet world), to evidentemente miservel que at um cego poderia ver o rumo da

    VXD PDUFKD a man may see how this world goes without eyes).20 O rei Lear est

    HQJDQDGR7RGDFRQVFLrQFLDpPHGLDWL]DGD2PXQGRQmRpself-evidentQmRVHGiD

    ver imediatamente tal qual mesmo a quem desfruta de uma boa viso.

    As ideologias obscurecem a realidade. E o crime, por seu turno, avana

    encapuado.

    Os velhos marxistas alemes da Escola de Frankfurt Max Horkheimer, Ernst

    Bloch, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin refletiram muito sobre a

    percepo mediatizada da realidade pelo indivduo, sobre os processos em virtude dos

    quais a conscincia subjetiva est alienada pela doxa de um capitalismo cada vez mais

    agressivo e autoritrio. Procuraram analisar os efeitos da ideologia capitalista

    dominante, o modo como ela forma o homem, desde a sua infncia, para aceitar a

    submisso da sua vida a fins que lhe so alheios, privando-o das possibilidades da

    autonomia pessoal pela qual se afirma a liberdade.

    AlJXQVGHVVHVILOyVRIRVIDODPGHXPDGXSODKLVWyULDGHXPODGRXPDKLVWyULD

    dos acontecimentos,21 visvel, cotidiana; de outro, a histria invisvel, a da conscincia.

    Eles assinalam que a conscincia modelada pela esperana na Histria, pelo esprito

    da Utopia, pela f ativa na liberdade. Tal esperana possui uma dimenso escatolgica

    laica. Ela alimenta uma histria subterrnea que ope justia real uma justia exigvel.

    1mRIRLVRPHQWHDYLROrQFLD LPHGLDWDTXHSHUPLWLXjRrdem manter-se, mas o

    fato de que os prprios homens aprenderam a aprov-ODHVFUHYHX+RUNKHLPHU.22 Para

    transformar a realidade, liberar a liberdade no homem, preciso retomar esta

    conscincia antecipadora (vorgelagertes Bewusstsein),23 esta fora histrica que tem por

    nome Utopia, revoluo.

    20 O dilogo referido por Ziegler encontra-se na cena VI do ato IV de O rei Lear. Na verso traduzida e anotada por lvaro Cunhal (Lisboa: Caminho, 2002), no se localizam literalmente essas expresses, mas apenas o seu sentido (cf. esp. p. 163ss.). (N.T.) 21 1RRULJLQDOKLVWRLUHpYpQHPHQWLHOOH. (N.T.) 22 Max Horkheimer, prefcio reedio de Thorie traditionnelle et thorie critique (Paris: Gallimard, 1971, p. 10-11). [Em portugus: Teoria crtica e teoria tradicional, in W. Benjamin, M. Horkheimer, Theodor W. Adorno e Jrgen Habermas, Textos escolhidos. 6mR 3DXOR $EULO &XOWXUDO FRO 2VSHQVDGRUHVYRO;/9,,,.] 23 Ernst Bloch, Das Prinzip Hoffnung (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1953). [Em portugus: O princpio esperana. Rio de Janeiro: Contraponto/EdUerj, 3 vols., 2005-2006.]

  • 17

    Ora, de fato, a conscincia escatolgica progride. No interior das sociedades

    dominantes do Ocidente, notadamente, mais e mais mulheres e homens se mobilizam,

    lutam enfrentam a doxa neoliberal da fatalidade das hecatombes. Mais e mais se vai

    impondo uma evidncia: a fome produto dos homens e pode ser vencida pelos

    homens.

    Mas permanece a questo: como vencer o monstro?

    Deliberadamente ignorado pelas opinies pblicas ocidentais, produz-se sob os

    nossos olhos um formidvel despertar das foras revolucionrias camponesas nas zonas

    rurais do hemisfrio sul. Sindicatos camponeses transnacionais, associaes de

    lavradores e criadores24 OXWDP FRQWUD RV DEXWUHV GR RXUR YHUGH H FRQWUD RV

    especuladores que tentam roubar suas terras. Essa a fora principal do combate contra

    a fome.

    No eplogo, retorno sobre esse combate e a esperana que ele alimenta. E sobre a

    necessidade que temos de apoi-lo.

    24 1R RULJLQDO pOHYHXUV traduzimos sempre assim para denotar criadores de vrios tipos de gado. (N.T.)

  • 18

    Primeira parte

    O massacre

    1

    Geografia da fome

    O direito humano alimentao, tal como se apresenta no artigo 11 do Pacto

    Internacional sobre os Direitos Econmicos, Sociais e Culturais,25 assim se define:

    25 Adotado pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 16 de dezembro de 1966.

  • 19

    O direito alimentao o direito a ter acesso regular, permanente e livre,

    diretamente ou por meio de compras monetrias, a um alimento qualitativo e

    quantitativamente adequado e suficiente, que corresponda s tradies culturais do

    povo de que originrio o consumidor e que lhe assegure uma vida psquica e

    fsica, individual e coletiva, livre de angstia, satisfatria e digna.

    Dentre todos os direitos humanos, o direito alimentao , seguramente, o mais

    constante e mais massivamente violado em nosso planeta.

    A fome assemelha-se ao crime organizado.

    L-se no Eclesistico Escasso alimento o sustento do pobre, quem dele o

    priva homem sanguinrio. Mata o prximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o

    que priva do salrio o diarista.26

    Pois bem: segundo as estimativas da Organizao das Naes Unidas para a

    Alimentao e a Agricultura, a FAO, o nmero de pessoas grave e permanentemente

    subalimentadas no planeta chegava, em 2010, a 925 milhes, frente aos 1.023 milhes

    em 2009. Assim, quase um bilho de seres humanos, dentre os 6,7 bilhes que vivem no

    planeta, padecem de fome permanentemente.

    O fenmeno da fome pode ser abordado de maneira simples.

    A comida (ou o alimento), seja de origem vegetal ou animal (s vezes, mineral),

    consumida pelos seres vivos com fins energticos e nutricionais. Os elementos

    lquidos (como a gua, de origem mineral) ou, dito de outra forma, as bebidas

    (consideradas alimento quando so sopas, caldos etc.) so ingeridos com a mesma

    finalidade. Todos esses elementos, em conjunto, compem o que se designa como

    alimentao.

    Essa alimentao constitui a energia vital do homem. A unidade energtica

    chamada reconstitutiva a quilocaloria. Ela permite avaliar a quantidade de energia

    necessria ao corpo para se reconstituir. Uma quilocaloria contm mil calorias. Aportes

    energticos insuficientes, uma carncia de quilocaloria, provocam a fome e, depois, a

    morte.

    As necessidades calricas variam em funo da idade: setecentas calorias dirias

    para um lactente, mil para um beb entre um e dois anos, 1.600 para uma criana de

    26 Eclesistico 34,25-27, in Bblia de Jerusalm (So Paulo: Paulus, 2012).

  • 20

    cinco anos. Quanto ao adulto, suas necessidades variam entre 2.000 e 2.700 calorias por

    dia, conforme o clima sob o qual vive e a natureza do trabalho que realiza.

    A Organizao Mundial da Sade (OMS) fixa em 2.200 calorias dirias o

    mnimo vital para um adulto. Abaixo desse mnimo, o adulto no consegue reproduzir

    satisfatoriamente a sua prpria fora vital.

    Dolorosa a morte pela fome. A agonia longa e provoca sofrimentos

    insuportveis. Ela destri lentamente o corpo, mas tambm o psiquismo. A angstia, o

    desespero e um sentimento pnico de solido e de abandono acompanham a decadncia

    fsica.

    A subalimentao severa e permanente provoca um sofrimento agudo e

    lancinante do corpo. Produz letargia e debilita gradualmente as capacidades mentais e

    motoras. Implica marginalizao social, perda de autonomia econmica e,

    evidentemente, desemprego crnico pela incapacidade de executar um trabalho regular.

    Conduz inevitavelmente morte.

    A agonia provocada pela fome passa por cinco estgios.

    Salvo raras excees, um homem pode viver normalmente trs minutos sem

    respirar, trs dias sem beber e trs semanas sem comer. No mais. Ento comea a

    agonia.

    Entre as crianas subalimentadas, a agonia se anuncia muito mais rapidamente.

    O corpo esgota primeiro as suas reservas de acar e depois as de gordura. As crianas

    entram num estado de letargia. Depressa perdem peso. Seu sistema imunitrio colapsa.

    As diarreias aceleram a agonia. Parasitas bucais e infeces das vias respiratrias

    causam sofrimentos espantosos. Comea ento a destruio da massa muscular. As

    crianas j no conseguem manter-se de p. Como alguns pequenos animais, encolhem-

    se sobre si mesmas no cho. Seus braos pendem sem vida. Seus rostos se assemelham

    queles dos idosos. Finalmente, sobrevm a morte.

    No ser humano, os neurnios do crebro formam-se entre zero e cinco anos. Se,

    nesse lapso, a criana no receber uma alimentao adequada, suficiente e regular,

    ficar lesionada por toda a vida.

    Em contrapartida, um adulto que, atravessando o Saara, tenha sofrido uma pane

    em seu carro e, por isso, foi privado de alimentao por algum tempo, antes de ser salvo

    in extremis, SRGHUi UHFXSHUDU VHP SUREOHPD VXD YLGD QRUPDO XPD UHQXWULomR

  • 21

    administrada sob controle mdico lhe permitir restabelecer a totalidade de suas foras

    fsicas e mentais.

    V-se, pois, que no esse o caso de uma criana de menos de cinco anos

    privada de alimento adequado e suficiente. Mesmo se, ulteriormente, ela desfrutar de

    condies milagrosamente favorveis que seu pai encontre trabalho, que seja adotada

    por uma famlia com recursos etc. , seu destino estar selado. Ser uma crucificada de

    nascimento, uma lesionada cerebral por toda a vida. Nenhuma alimentao teraputica

    poder assegurar-lhe uma vida normal, satisfatria e digna.

    Num grande nmero de casos, a subalimentao provoca as chamadas doenas

    da fome: a noma, o kwashiorkor etc. Ademais, ela debilita perigosamente as defesas

    imunitrias das suas vtimas.

    Peter Piot, em sua grande pesquisa sobre a AIDS, demonstra que milhes de

    vtimas que morrem aidticas poderiam ser salvas ou, ao menos, poderiam adquirir

    uma resistncia mais eficaz contra o flagelo se tivessem acesso a alimentos de forma

    UHJXODU H VXILFLHQWH 6HJXQGR VXDV SDODYUDV XPD alimentao regular e adequada

    constitui a primeira linha de deIHVDFRQWUDD$,'6.27

    Na Sua, a esperana de vida de um recm-nascido um pouco superior a 83

    anos, sem distino entre homens e mulheres; na Frana, igualmente, de 82 anos. Mas

    de 32 anos na Suazilndia, pequeno reino da frica Austral devastado pela AIDS e

    pela fome.28

    A maldio da fome se prolonga biologicamente. A cada ano, milhes de

    mulheres subalimentadas do luz crianas condenadas desde o nascimento. Estas j

    so vtimas de carncias antes mesmo de seu primeiro dia sobre a terra. Durante a

    gravidez, a me subalimentada transmite essa maldio sua criana. A subalimentao

    fetal provoca invalidez definitiva, danos cerebrais e deficincias motoras.

    Uma me esfaimada no pode aleitar seu beb, nem dispe dos recursos

    necessrios para comprar um sucedneo lcteo.

    Nos pases do Sul,29 500.000 mulheres morrem anualmente no parto, a maioria

    por falta prolongada de alimento durante a gravidez.

    27 Peter Piot, The First Line of Defense. Why Food and Nutrition Matter in the Fight Against HIV/AIDS (Rome: PAM, 2004). 28 Institut National de Dmographie (Paris, 2009). 29 Sempre que o original referir-se, FRPVXODRKHPLVIpULRVXOJUDIDUHPRVFRPDLQLFLDOPDL~VFXOD e o PHVPRFRPQRUWH17

  • 22

    A fome , pois, e de longe, a principal causa de morte e desamparo em nosso

    planeta.

    Como a FAO procede para coletar dados sobre a fome?

    Os analistas, estatsticos e matemticos da organizao so reconhecidos

    mundialmente por sua competncia. O modelo matemtico que construram em 1971 e

    vm afinando ano a ano de extrema complexidade.30

    Em um planeta no qual vivem 6,7 milhes de seres humanos, distribudos por

    194 Estados, est fora de cogitao realizar levantamentos individuais. Os estatsticos

    optam, portanto, por um mtodo indireto, que aqui simplificarei deliberadamente.

    Primeiro passo: para cada pas, eles recenseiam a produo de bens alimentares,

    a importao e a exportao de alimentos, especificando em cada caso seu contedo

    calrico. Verifica-se, por exemplo, que a ndia, embora abrigue quase a metade de todas

    as pessoas grave e permanentemente subalimentadas do mundo, exporta, alguns anos,

    centenas de milhares de toneladas de trigo entre junho de 2002 e novembro de 2003,

    foram dezessete milhes de toneladas.

    A FAO obtm, desse modo, a quantidade de calorias disponvel em cada pas.

    Segundo passo: os estatsticos estabelecem, para cada pas, a estrutura

    demogrfica e sociolgica da populao. As necessidades calricas, como vimos,

    variam segundo as faixas etrias. O sexo constitui outra varivel: por toda uma srie de

    razes sociolgicas, as mulheres queimam menos calorias que os homens. Tambm o

    trabalho executado por uma pessoa e sua situao socioprofissional constituem outra

    varivel: um operrio siderrgico que opera junto a um alto-forno necessita de mais

    calorias que um aposentado que passa os dias sentado num banco.

    Mesmo esses dados variam conforme a regio e a zona climtica consideradas.

    A temperatura do ar e as condies meteorolgicas geralmente influem sobre as

    necessidades calricas.

    Ao fim desse segundo passo, os estatsticos podem correlacionar os dois

    agregados de indicadores. Conhecem assim os dficits calricos globais de cada pas e

    podem, consequentemente, fixar a quantidade terica de pessoas permanente e

    gravemente subalimentadas.

    30 Nesta matria, vali-me da preciosa assessoria de Pierre Pauli, especialista do Departamento de Estatstica de Genebra.

  • 23

    Mas esses resultados nada dizem da distribuio das calorias no interior de uma

    populao determinada. Os estatsticos, ento, afinam o modelo mediante pesquisas

    dirigidas, base da amostragem. O objetivo identificar os grupos particularmente

    vulnerveis.

    Bernard Maire e Francis Delpeuch criticam esse modelo de clculo.31

    Questionam, em primeiro lugar, os parmetros. Argumentam que os estatsticos de

    Roma determinam os dficits em termos de calorias, isto , de macronutrientes

    (protenas, glucdios e lipdios) que fornecem calorias e, portanto, energia. Mas no

    consideram as deficincias das populaes em termos de micronutrientes a carncia de

    vitaminas, minerais e oligoelementos. Ora, a ausncia, na alimentao, de iodo, ferro,

    vitaminas A e C, entre outros elementos indispensveis sade, produz a cada ano

    cegueira, mutilaes e morte para milhes de pessoas.

    Vale dizer: a FAO, com essa metodologia, conseguiria recensear o nmero de

    vtimas da subalimentao, mas no as vtimas da m alimentao.

    Os dois pesquisadores questionam tambm a confiabilidade desse mtodo, que

    se baseia inteiramente na qualidade das estatsticas fornecidas pelos Estados. Ora,

    numerosos Estados do hemisfrio sul, por exemplo, no dispem de nenhum aparato

    estatstico, mesmo que precrio. E justamente nos pases do Sul que as vtimas da

    fome mais rapidamente enchem as valas comuns da morte.

    Apesar de todas as crticas ao modelo matemtico dos estatsticos da FAO cuja

    pertinncia reconheo , considero, por minha parte, que ele permite dar conta, a longo

    prazo, das variaes do nmero dos subalimentados e dos mortos pela fome no planeta.

    De qualquer forma, mesmo com cifras que subestimam o fenmeno, o mtodo

    atende exigncia de Jean-3DXO6DUWUH&RQKHFHURLQLPLJRFRPEDWHURLQLPLJR

    O objetivo atual da ONU reduzir metade, at 2015, o nmero de pessoas

    castigadas pela fome. Tomando solenemente essa deciso em 2000 trata-se do

    primeiro dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milnio (ODM)32 , a Assembleia

    Geral da ONU, em Nova York, teve como referncia o ano de 1990. Portanto, o

    nmero de famlicos de 1990 que deve ser reduzido metade.

    31 Francis Delpeuch e Bernard Maire, in Alain Bu e Franoise Plet (orgs.), Alimentation, environnement et sant (Paris: ditions Ellipses, 2010). 32 Millenium Development Goals MDG.

  • 24

    Esse objetivo, evidentemente, no ser alcanado. Porque a pirmide dos

    mrtires, longe de diminuir, tem crescido. A prpria FAO o admite:

    Segundo as ltimas estatsticas disponveis, alguns progressos se verificaram na

    realizao dos ODM as vtimas da fome passaram de 20% de pessoas

    subalimentadas em 1990-1992 a 16% em 2010. Entretanto, com a continuidade do

    crescimento demogrfico (ainda que mais lento que nos ltimos decnios), uma

    reduo do percentual dos esfaimados pode ocultar um aumento do seu nmero. De

    fato, os pases em desenvolvimento em seu conjunto viram aumentar a quantidade

    de esfaimados (de 827 milhes, em 1990-1992, a 906 milhes, em 2010).33

    Para melhor circunscrever a geografia da fome, a distribuio dessa destruio

    massiva sobre o planeta, preciso de incio recorrer a uma primeira distino, qual se

    UHIHUHPD218HVXDVDJrQFLDVHVSHFLDOL]DGDVDIRPHHVWUXWXUDOGHXPODGR, e, de

    RXWURDIRPHFRQMXQWXUDO

    A fome estrutural prpria das estruturas de produo insuficientemente

    desenvolvidas dos pases do Sul. Ela permanente, pouco espetacular e se reproduz

    biologicamente: a cada ano, milhes de mes subalimentadas do luz milhes de

    crianas deficientes. A fome estrutural significa destruio psquica e fsica, aniquilao

    da dignidade, sofrimento sem fim.

    A fome conjuntural, em troca, altamente visvel. Irrompe periodicamente nas

    telas da televiso. Ela se produz quando, repentinamente, uma catstrofe natural

    gafanhotos, uma seca ou inundaes assolam uma regio ou uma guerra destri o

    tecido social, arruna a economia, empurra centenas de milhares de vtimas aos

    acampamentos de pessoas deslocadas no interior do pas ou de refugiados para alm-

    fronteiras. Nessas circunstncias, no se pode semear nem colher. So destrudos os

    mercados, as estradas so bloqueadas e as pontes bombardeadas. As instituies estatais

    deixam de funcionar. Para os milhes de vtimas amontoadas nos acampamentos, a

    ltima salvao est no Programa Alimentar Mundial (PAM).

    Nyala, no Darfur, o maior dos dezessete campos de deslocados das trs

    provncias do Sudo Ocidental devastadas pela guerra e pela fome. Guardados pelos

    33 )$25HSRUWRQ)RRGLQVHFXULW\LQWKHZRUOGRoma, 2011).

  • 25

    capacetes azuis34 africanos, especialmente ruandeses e nigerianos, cerca de 100.000

    homens, mulheres e crianas subalimentados se comprimem num imenso acampamento

    de lona e plstico. Uma mulher que se aventure por quinhentos metros fora do campo

    para buscar lenha ou gua em poos corre o risco de ser capturada pelas janjawid, as

    milcias equestres rabes a servio da ditadura islmica de Cartum. Ela ser certamente

    violada, talvez assassinada.

    Se os caminhes Toyota brancos do PAM, com a bandeira azul da ONU, no

    chegassem a cada trs dias, com suas cargas piramidais de sacos de arroz e farinha,

    contineres de gua e caixas de medicamentos, os zaghawa, massalit e four,35

    protegidos pelos capacetes azuis atrs das cercas de arame farpado, morreriam em

    pouco tempo.

    Outro exemplo de fome conjuntural: em 2011, mais de 450.000 mulheres,

    homens e crianas gravemente subalimentados, procedentes sobretudo do Sul da

    Somlia, se apertavam no campo de Dadaab, estabelecido pela ONU em territrio

    queniano. Habitualmente, os funcionrios do PAM negam a outras famlias esfaimadas

    o acesso ao campo, dada a falta de recursos suficientes para socorr-las.36

    Quem so os mais expostos fome?

    Os trs grandes grupos de pessoas mais vulnerveis so, na terminologia da

    FAO, os pobres rurais (rural poors), os pobres urbanos (urban poors) e as vtimas das

    catstrofes j mencionadas. Detenhamo-nos sobre as duas primeiras categorias.

    Os pobres rurais. A maioria dos seres humanos que no tm o suficiente para

    comer pertence s comunidades rurais pobres dos pases do Sul. Muitos no dispem de

    gua potvel, nem eletricidade. Nessas regies, servios de sade pblica, de educao e

    higiene so em geral inexistentes.

    Dos 6,7 bilhes de seres humanos que habitam o planeta, pouco menos da

    metade vive em zonas rurais.

    Desde a noite dos tempos, as populaes camponesas agricultores e criadores

    (como tambm pescadores) esto na primeira fila das vtimas da misria e da fome:

    34 Capacetes azuis: designao por que so conhecidas as tropas de paz multinacionais da ONU que atuam em reas de conflitos blicos. (N.T.)

    35 Grupos tnicos da regio conflagrada. (N.T.) 36 Sobre o colapso do oramento do PAM, cf., infra, p. [217 no original].

  • 26

    atualmente, dos 1,2 bilho de seres humanos que, segundo os critrios do Banco

    Mundial YLYHPQDH[WUHPDSREUH]D RX VHMD FRPXPD UHQGDGLiULD LQIHULRU D

    dlar), 75% vivem nos campos.

    Inmeros camponeses vivem na misria por uma ou outra das trs razes

    seguintes. Uns so trabalhadores migrantes sem terra ou arrendatrios superexplorados

    pelos proprietrios. Assim, no Norte de Bangladesh, os arrendatrios muulmanos

    devem entregar a seus land lords [senhores da terra] indianos, que vivem em Calcut,

    quatro quintos da sua colheita. Outros, se tm a terra, no possuem ttulos de

    propriedade suficientemente slidos. o caso dos posseiros do Brasil, que ocupam

    pequenas superfcies de terras improdutivas ou vagas, fazendo uso delas sem possuir

    documentos que provem que elas lhes pertencem. Outros, ainda, se possuem terra

    prpria, a dimenso e a qualidade desta so insuficientes para que possam alimentar

    decentemente a sua famlia.

    O International Fund for Agricultural Development [Fundo Internacional para o

    Desenvolvimento Agrcola] (IFAD) estima o nmero de trabalhadores rurais sem terra

    em torno de 500 milhes de pessoas ou seja, cem milhes de famlias. Estes so os

    mais pobres entre os pobres da Terra.37

    Para os pequenos camponeses, os parceiros superexplorados e os trabalhadores

    rurais (migrantes ou no), o Banco Mundial recomenda doravante a Mark-Assisted Land

    Reform [Reforma Agrria Assistida], preconizada por ele, pela primeira vez, em 1997,

    para as Filipinas. O latifundirio seria levado a se desvencilhar de uma parte das suas

    terras, mas o trabalhador rural deveria comprar a sua parcela com a eventual ajuda de

    crditos do Banco Mundial.

    'DGD D FRPSOHWD LQGLJrQFLD GDV IDPtOLDV VHP WHUUD D UHIRUPD DJUiULD

    promovida em todo o mundo pelo Banco Mundial cheira hipocrisia mais evidente,

    raiando a indecncia pura e simples.38

    A libertao dos camponeses s pode ser obra dos prprios camponeses. Quem

    conheceu um assentamento ou um acampamento do Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra (MST) do Brasil experimentou emoo e admirao. O MST tornou-

    se o movimento social brasileiro mais importante, defendendo a reforma agrria, a

    37 ,)$'5XUDO3RYHUW\5HSRUW1RYD

  • 27

    soberania alimentar, a impugnao do livre-comrcio e do modelo de produo e

    consumo agroindustriais dominante, a promoo da agricultura de vveres, a

    solidariedade e o internacionalismo.

    O movimento internacional campons Via Campesina rene, em todo o mundo,

    200 milhes de meeiros, pequenos camponeses (1 hectare ou menos), trabalhadores

    rurais sazonais, criadores migrantes ou sedentrios e pescadores artesanais. Seu

    secretariado central sedia-se em Jacarta (Indonsia). A Via Campesina hoje um dos

    movimentos revolucionrios mais impressionantes do Terceiro Mundo. Voltaremos a

    ela.

    Poucos homens e mulheres na Terra trabalham tanto, em circunstncias

    climticas to adversas e por um ganho mnimo, como os camponeses do hemisfrio

    sul. Raros, entre eles, so os que podem poupar algo para precaver-se contra as sempre

    ameaadoras catstrofes naturais e as perturbaes sociais. Mesmo quando, durante

    alguns meses, h alimentao abundante, ressoam tambores em festa, celebram-se

    matrimnios em grandes cerimnias caracterizadas pela partilha, mesmo ento a ameaa

    continua onipresente.

    90% dos camponeses do Sul s tm, como instrumentos de trabalho, a enxada, a

    foice e o machete.

    Mais de um milho deles no tm animais de trao nem tratores. Se se duplica a

    fora de trao, duplica-se tambm a superfcie cultivada. Sem trao, os agricultores do

    Sul permanecero confinados na sua misria.

    No Sahel, um hectare semeado de cereais produz de seiscentos a setecentos

    quilos. Na Bretanha, em Beauce, em Baden-Wurtemberg, na Lombardia, um hectare de

    trigo produz dez toneladas (10.000 quilos). Essa diferena de produtividade no se

    explica, evidentemente, por disparidades de competncia. Os agricultores bambara,

    wolof, mossi ou toucouleurs39 trabalham com a mesma energia e a mesma inteligncia

    que seus colegas europeus. A diferena se deve s condies de que dispem. No

    Benim, em Burkina Faso, no Nger ou no Mali, a maioria dos agricultores no pode

    valer-se de nenhum sistema de irrigao, nem de insumos minerais, nem de sementes

    selecionadas, nem de defensivos contra predadores. Como h trs mil anos, eles

    SUDWLFDPDDJULFXOWXUDGDFKXYD

    39 Grupos tnicos africanos. (N.T.)

  • 28

    Somente 3,8% das terras da frica Subsaariana so irrigadas.40 A FAO estima

    em 500 milhes os agricultores do Sul que no tm acesso a sementes selecionadas e a

    insumos minerais nem mesmo a esterco (ou outros insumos naturais), uma vez que

    no possuem animais.

    A FAO avalia que, anualmente, 25% das colheitas mundiais so destrudas pelas

    intempries ou pelos roedores.

    Os silos so raros na frica Negra, no Sul da sia e nos altiplanos andinos. Por

    isso, as famlias camponesas do Sul so as que padecem primeiro e mais duramente os

    efeitos da destruio das colheitas.

    Outro grande problema o escoamento das colheitas para os mercados. Vivi na

    Etipia, em 2003, a seguinte situao absurda: em Makele, no Tigray, nos planaltos

    castigados pelos ventos, onde a terra poeirenta fica rachada, a fome devastava sete

    milhes de pessoas mas a seiscentos quilmetros a oeste, em Gondar, dezenas de

    milhares de toneladas de teff41 apodreciam em depsitos, pela falta de estradas e

    veculos para transportar o alimento salvador...

    Na frica Negra, na ndia, nas comunidades aimar e otavalo42 do altiplano

    peruano, boliviano e equatoriano, no existem bancos de crdito agrcola. Em

    consequncia, o campons no tem escolha: na maioria dos casos, tem que vender a sua

    produo no pior momento, isto , quando acaba de colh-la e os preos so mais

    baixos.

    Uma vez engolfado pela espiral do superendividamento endividando-se para

    poder pagar os juros de dvidas anteriores , tem de vender sua colheita futura para

    poder comprar, ao preo fixado pelos senhores do comrcio agroalimentar, o alimento

    necessrio sua famlia durante a entressafra.

    Nos campos, especialmente nas Amricas Central e do Sul, na ndia, no

    Paquisto, em Bangladesh, a violncia endmica.

    40 Contra 37% na sia. 41 Espcie de cereal rico em carboidratos e minerais, cultivado especialmente na Etipia e na Eritreia. (N.T.) 42 Grupo indgena nativo da provncia de Imbabura, na Regio Norte do Equador. (N.T.)

  • 29

    Entre 26 de janeiro e 5 de fevereiro de 2005, juntamente com meus

    colaboradores, realizei uma misso na Guatemala.43 Durante nossa estada, o comissrio

    dos direitos humanos do governo guatemalteco, Frank La Rue, ele mesmo um antigo

    resistente contra a ditadura do general Rios Montt,44 informou-me dos crimes que

    cotidianamente se cometem em seu pas contra os camponeses.

    Em 23 de janeiro, na fazenda Alabama Grande, um trabalhador agrcola furtou

    umas frutas. Trs guardas da segurana da fazenda o descobriram e o mataram. Na

    mesma noite, a famlia, vendo que o pai no regressava ao seu casebre que, como o de

    todos os pees, situava-se nos confins do latifndio , comeou a se preocupar.

    Acompanhado por alguns vizinhos, o filho mais velho dirigiu-se casa dos senhores. Os

    guardas os interceptaram; houve uma discusso; os nimos se exaltaram. Os guardas

    mataram o rapaz e quatro dos seus acompanhantes.

    Noutra fazenda, guardas capturaram um jovem com os bolsos cheios de cozales,

    uma fruta da regio. Acusando-o de hav-los furtado nas terras do senhor, levaram-no

    presena deste, que matou o jovem com um tiro de pistola.

    Diz-me Frank La Rue:

    Ontem, no palcio Presidencial, o vice-presidente da Repblica, Eduardo Stein

    Barillas, j lhe explicou: 49% das crianas com menos de dez anos so

    subalimentadas... Delas, no ano passado, 92.000 morreram de fome ou de doenas

    resultantes da fome... Como voc pode compreender, pais e irmos, s vezes,

    durante a noite, vo ao pomar da fazenda e furtam frutas, legumes...

    Em 2005, 4.793 assassinatos foram cometidos na Guatemala, 387 durante nossa

    estada. Entre as vtimas figuravam quatro jovens sindicalistas rurais trs homens e

    uma mulher que voltavam de um estgio de formao em Friburgo, na Sua. Os

    assassinos metralharam o carro em que viajavam, na serra de Chuacas, numa estrada

    entre San Cristbal Verapaz e Salama. 43 5HODWyULR'URLWjODOLPHQWDWLRQ0LVVLRQDX*XDWHPDOD(&1$GG

    44 Frank La Rue, posteriormente (2008), assumiu a funo de relator especial da ONU sobre a promoo e a proteo do direito liberdade de opinio e de expresso. J. Efran Rios Montt (nascido em 1926), com apoio norte-americano, chefiou um golpe de Estado em maro de 1982 e ficou no poder at meados de 1983; sua conduo da luta contra a guerrilha guatemalteca base da tortura e do massacre de populaes, especialmente camponesas, largamente documentados por organizaes internacionais justifica sua caracterizao como um dos mais brutais ditadores da Amrica Central. (N.T.)

  • 30

    Eu soube do fato num jantar na embaixada da Sua. O embaixador, um homem

    decidido, que amava a Guatemala e a conhecia bem, prometeu-me que no dia seguinte

    apresentaria um enrgico protesto junto ao Ministrio do Exterior.

    Tambm participou do jantar Rigoberta Mench, Prmio Nobel da Paz, uma

    extraordinria mulher maia que perdeu, durante a ditadura do general Lucas Garca,45 o

    pai e um irmo queimados vivos. sada, na porta, Rigoberta sussurou-PH2EVHUYHL

    o embaixador. Estava plido... suas mos tremiam. Irritou-se muito. um homem de

    EHP$SUHVHQWDUiRSURWHVWR0DVVHUiHPYmR

    Junto da fazenda Las Delicias, um latifndio de produo de caf situado no

    municpio de El Tumbador, fao perguntas a pees em greve e suas mulheres. H seis

    meses o patro no paga os salrios, pretextando a queda do preo do caf no mercado

    mundial.46 Uma manifestao organizada pelos grevistas foi violentamente reprimida

    pela polcia e pelos guardas patronais.

    O presidente da Pastoral Interdiocesana da Terra (PIT), Dom Ramazzini, bispo

    de San Marco,47 Mi PH DGYHUWLUD )UHTXHQWHPHQWH GHSRLV GH XPD PDQLIHVWDomR D

    polcia, noite, retorna ao local e prende ao acaso alguns jovens... Muitos deles

    desaparecem.

    Estamos sentados em um banco de madeira, diante de um casebre. Os grevistas e

    suas mulheres, de p, formam um semicrculo. No calor mido da noite, crianas de

    olhar grave nos observam. As mulheres e as jovens vestem roupas de cores vivas. Um

    co ladra ao longe. O firmamento est bordado de estrelas. O cheiro do cafezal se

    mistura com o perfume dos gernios vermelhos que crescem atrs do casebre.

    45 Rigoberta Mench (nascida em 1959) recebeu o Nobel em 1992, em reconhecimento de sua luta em defesa dos direitos humanos e dos povos indgenas; em 1991, participou da elaborao da Declarao dos Direitos dos Povos Indgenas, adotada pela ONU. Lucas Garca (1924-2006) presidiu a Guatemala entre 1978 e 1982, num perodo em que a luta contra a guerrilha assumiu caractersticas brutalssimas; faleceu exilado na Venezuela, que, apesar das acusaes de genocdio que pesavam contra ele, no permitiu sua extradio. (N.T.) 46 Em 2005, o salrio mnimo legal era de 38 quetzais por semana (1 dlar = 7,5 quetzais). [Quetzal, ave nativa do Mxico e da Amrica Central, era um smbolo sagrado de maias e astecas e d nome moeda da Guatemala. (N.T.)] 47 D. lvaro Ramazzini (nascido em 1947) um dos mais combativos prelados centro-americanos, internacionalmente reconhecido por entidades de defesa dos direitos humanos. Ordenado em 1971, doutor em Direito Cannico e esteve frente da diocese de San Marco entre 1989 e 2012, quando assumiu a de Huehuetenango. Presidiu a Conferncia Episcopal da Guatemala. odiado pelos latifundirios, que vrias vezes o ameaaram de morte. (N.T.)

  • 31

    Percebe-se claramente que estas pessoas esto amedrontadas. Em seus belos

    rostos morenos de ndios maias transparece a angstia... Certamente alimentada pelas

    prises noturnas e pelos desaparecimentos organizados pela polcia, de que me falou

    Dom Ramazzini.

    Muito desajeitadamente, distribuo meus cartes de visita da ONU. As mulheres

    os apertam junto ao peito, como um talism.

    No momento mesmo em que lhes falo dos direitos humanos e da eventual

    proteo da ONU, sinto que j os estou traindo. A ONU, evidentemente, nada far.

    Instalados nas suas casas na Cidade da Guatemala, os funcionrios da ONU contentam-

    se em administrar os carssimos programas ditos de desenvolvimento que, claro,

    favorecem os latifundirios. Mas provvel que Eduardo Stein Barillas,48 um antigo

    jesuta prximo a Frank La Rue, faa uma advertncia ao chefe da polcia de El

    7XPEDGRUFRQWUDHYHQWXDLVGHVDSDUHFLPHQWRVGHMRYHQVJUHYLVtas...

    Porm, a maior violncia cometida contra os camponeses , evidentemente, a

    desigual distribuio da terra. Na Guatemala, em 2011, 1,86% da populao possua

    57% das terras agricultveis. Nesse pas, 47 grandes propriedades detm, cada uma

    delas, 3.700 hectares ou mais, enquanto 90% dos produtores sobrevivem em reas de

    um hectare ou menos.

    No que toca violncia contra os sindicatos camponeses e os manifestantes

    grevistas, a situao no melhorou DR FRQWUiULR RV GHVDSDUHFLPHQWRV H RV

    assassinatos aumentaram.49

    Os pobres urbanos. Nas callampas de Lima, nos slums de Karachi, nas smoke

    mountains de Manila ou nas favelas de So Paulo, as mes de famlia, para comprar

    alimentos, tm de se limitar a um oramento familiar muito restrito. O Banco Mundial

    estima em 1,2 bilho DVSHVVRDVH[WUHPDPHQWHSREUHVTXHYLYHPFRPPHQRVGH

    dlar por dia.

    Em Paris, Genebra ou Frankfurt, uma dona de casa gasta, em mdia, de 10 a

    15% do oramento familiar na compra de alimentos. No oramento familiar da dona de

    48 Eduardo Stein Barillas (nascido em 1945), poltico e diplomata de carreira, foi vice-presidente da Guatemala entre 2004 e 2008. (N.T.) 49 Food Information and Action Network (FIAN), The Human Right to Food in Guatemala (Heidelberg, 2010).

  • 32

    casa de Manila, a parte destinada alimentao varia de 80 a 85% dos seus gastos

    totais.

    Na Amrica Latina, de acordo com o Banco Mundial, 41% da populao

    FRQWLQHQWDO YLYH HP EDLUURV LQIRUPDLV 2 PHQRU DXPHQWR GH SUHoRV QR PHUFDGR

    provoca, nas favelas, a angstia, a fome, a desintegrao familiar, a catstrofe.

    O corte entre os pobres urbanos e os pobres rurais no , evidentemente, to

    radical quanto parece primeira vista porque, na realidade, tambm 43% dos 2,7

    bilhes de trabalhadores sazonais, pequenos proprietrios e rendeiros que constituem a

    imensa maioria dos miserveis que vivem nos campos devem, em determinados

    momentos do ano, comprar alimentos no mercado da cidade ou da aldeia vizinhas j

    que a colheita anterior no foi suficiente para sustentar a famlia at a prxima. O

    trabalhador rural sofre, pois, com os preos elevados do alimento de que tem a mais

    absoluta necessidade para sobreviver.

    Yolanda Areas Blas, delegada vivaz e simptica da Via Campesina da

    Nicargua, d o seguinte exemplo: o governo da Nicargua, anualmente, define a cesta

    bsica, conjunto de vveres para a famlia. Ela contm os 24 alimentos essenciais

    mensalmente necessrios para a sobrevivncia de uma famlia de seis pessoas. Em

    maro de 2011, a cesta bsica custava, na Nicargua, 6.250 crdobas ou seja, 500

    dlares. Entretanto, o salrio mnimo legal do trabalhador agrcola (na realidade, poucas

    vezes pago pelos empregadores), no mesmo ano, era de 1.800 crdobas vale dizer,

    144 dlares...50

    A distribuio geogrfica da fome no mundo extremamente desigual.51 Em

    2010, ela se apresentava assim:

    [Reproduzir o grfico da pgina 41, com as seguintes tradues:]

    Total = 925 milhes

    Pases desenvolvidos 19

    Oriente Prximo e frica do Norte 37

    Amrica Latina e Caribe 53

    50

  • 33

    frica Subsaariana 239

    sia e Pacfico52 578

    O quadro abaixo permite fazer-se uma ideia das variaes no tempo do nmero

    total de vtimas no curso dos ltimos decnios:

    Evoluo do nmero (milhes) e do percentual de pessoas subalimentadas entre

    1969 e 2007

    2005-2007 848 milhes (13%)

    2000-2002 833 milhes (14%)

    1995-1997 788 milhes (14%)

    1990-1992 843 milhes (16%)

    1979-1981 853 milhes (21%)

    1969-1971 878 milhes (26%)

    O quadro seguinte mostra a evoluo do desastre nas diferentes regies do

    mundo entre 1990 e 2007 isto , na durao aproximada de uma gerao:

    Evoluo do nmero (milhes) de pessoas subalimentadas por regies do mundo

    entre 1990 e 2007

    Grupos de pases 1990-1992 1995-1997 2000-2002 2005-2007

    MUNDO 843,4 787,5 833,0 847,5

    Pases desenvolvidos

    16,7 19,4 17,0 12,3

    Mundo em desenvolvimento

    826,6 768,1 816,0 835,2

    sia e Pacfico53 587,9 498,1 531,8 554,5

    sia Oriental 215,6 149,8 142,2 139,5

    sia Sul-Oriental 105,4 85,7 88,9 76,1

    sia do Sul 255,4 252,8 287,5 331,1

    52 A includa a Oceania. 53 A includa a Oceania.

  • 34

    sia Central 4,2 4,9 10,1 6,0

    sia Ocidental 6,7 4,3 2,3 1,1

    Amrica Latina e Caribe

    54,3 53,3 50,7 47,1

    Amrica do Norte e Central

    9,4 10,4 9,5 9,7

    Caribe 7,6 8,8 7,3 8,1

    Amrica do Sul 37,3 34,1 33,8 29,2

    Oriente Prximo e frica do Norte

    19,6 29,5 31,8 32,4

    Oriente Prximo 14,6 24,1 26,2 26,3

    frica do Norte 5,0 5,4 5,6 6,1

    frica Subsaariana 164,9 187,2 201,7 201,2

    frica Central 20,4 37,2 47,0 51,8

    frica Oriental 72,6 84,7 85,6 86,9

    frica Austral 30,6 33,3 35,3 33,9

    frica Ocidental 37,6 32,0 33,7 28,5

    Esses dados, que chegam at 2007, devem ser correlacionados evoluo

    demogrfica no mundo, cujas cifras so, para o mesmo ano, por continente, as

    seguintes: sia, 4,03 bilhes (ou seja, 60,5% da populao mundial); frica, 965

    milhes (14%); Europa, 731 milhes (11,3%); Amrica Latina e Caribe, 572 milhes

    (8,6%); Amrica do Norte, 339 milhes (5,1%), e Oceania, 34 milhes (0,5%).

    Eis a evoluo do desastre global numa durao mais longa, entre 1969 e 201054

    isto , no curso de duas geraes:

    Nmero de pessoas subalimentadas no mundo entre 1969 e 1971 e 2010

    [Reproduzir o grfico da pgina 43]

    54 Os dados para 2009 e 2010 so estimativas da FAO, com a contribuio da Diviso de Pesquisa Econmica do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

  • 35

    Esse grfico requer vrios comentrios.

    Evidentemente, preciso confrontar estes nmeros com a evoluo demogrfica

    global nos mesmos decnios: em 1970, havia sobre o planeta 3,696 bilhes de homens;

    em 1980, 4,442 bilhes; em 1990, 5,279 bilhes; em 2000, 6,085 bilhes e, em 2010,

    6,7 bilhes.

    Depois de 2005, a curva global das vtimas da fome cresceu de forma

    catastrfica, enquanto o crescimento demogrfico, em torno de 400 milhes de seres a

    cada cinco anos, permaneceu estvel.

    O incremento maior do nmero de vtimas da fome registrou-se entre 2006 e

    2009, mesmo quando, segundo os dados da FAO, durante esses anos, registraram-se e

    armazenaram-se boas colheitas de cereais em todo o mundo. O nmero de

    subalimentados cresceu violentamente em razo da exploso dos preos dos alimentos e

    da crise analisada na sexta parte deste livro.

    O grfico que se segue oferece uma imagem mais afinada das variaes nos

    pases em vias de desenvolvimento entre 1990 e 2010:

    Nmero de pessoas subalimentadas (em milhes) 1990-1992 e 2010: tendncias

    regionais

    [Reproduzir o grfico da pgina 44, conforme a seguinte traduo dos elementos

    constituintes:]

    Nmero de pessoas subalimentadas (em milhes)

    sia e Pacfico frica Subsaariana Amrica Latina e Caribe Oriente Prximo e

    frica do Norte

    Os pases em desenvolvimento, nestes ltimos anos, abrigaram entre 98 e 99%

    dos subalimentados do planeta.

  • 36

    Em cifras absolutas, a regio que contabiliza a maior quantidade de esfaimados

    a sia e o Pacfico, mas, com uma baixa de 12% (de 658 milhes em 2009 para 578

    milhes em 2010), ela registrou a melhoria mais significativa em 2010. na frica

    Subsaariana que o percentual de pessoas subalimentadas, nessa data, permaneceu a mais

    alta 30% em 2010, isto , quase uma pessoa em cada trs.

    Se a maioria das vtimas da fome vive nos pases em vias de desenvolvimento, o

    mundo industrializado ocidental, porm, no escapa do espectro da fome. Nove milhes

    de pessoas grave e permanentemente subalimentadas vivem nos pases industrializados

    e outras 25 milhes nos pases ditos em transio (a Europa de Leste e a antiga Unio

    Sovitica55).

    Denominam-se alimentos de base o arroz, o trigo e o milho, que atendem, em

    conjunto, cerca de 75% do consumo mundial de cereais (apenas o arroz representa 50%

    desse volume). Nos primeiros meses de 2011, uma vez mais, e como em 2008, os

    preos dos alimentos de base explodiram no mercado mundial. Em fevereiro de 2011, a

    FAO acendeu a luz vermelha: oitenta pases se encontravam ento no umbral da

    insegurana alimentar.

    Em 17 de dezembro de 2010, o povo tunisino rebelou-se contra os predadores no

    poder em Cartago.56 Zine el-Abidine Ben Ali, que, com sua famlia ampliada e seus

    cmplices, aterrorizou e saqueou a Tunsia por vinte e trs anos, fugiu para a Arbia

    Saudita em 14 de janeiro de 2011. O efeito da rebelio tunisina sobre os pases vizinhos

    no tardou a se fazer sentir.

    No Egito, a revoluo comeou em 25 de janeiro, com a concentrao de quase l

    milho de pessoas no centro do Cairo, na praa Tahrir. Desde outubro de 1981, o

    brigadeiro do ar Hosni Moubarak reinara com a tortura, o terror policial e a corrupo

    no protetorado israelo-americano do Egito. Durante as trs semanas que precederam a

    sua queda, atiradores de elite da sua polcia secreta, postados nos prdios situados em

    torno da praa Tahrir, assassinaram mais de oitocentos jovens homens e mulheres e

    55 A, a situao particularmente grave em numerosos orfanatos, nos quais segundo algumas ONGs norte-americanas , os empregados deixam as crianas morrer de fome. Um exemplo: no orfanato de Torez, na Ucrnia, doze crianas em cada cem (especialmente crianas deficientes) morrem a cada ano. &I8NUDLQLDQRUSKDQDJHVDUHVWDUYLQJGLVDEOHFKLOGUHQ, in The Sunday Times (Londres). 56 Cartago, colnia fencia que na Antiguidade disputou com Roma o controle do Mediterrneo, constitui hoje um bairro de Tnis e , desde 1979, considerada pela UNESCO patrimnio da humanidade. (N.T.)

  • 37

    IL]HUDP GHVDSDUHFHU FHQWHQDV GH RXWURV QDV VXDV FkPDUDV GH WRUWXUD 2 SRYR

    sublevado derrocou Moubarak em 12 de fevereiro.

    O descontentamento estendeu-se a todo o mundo rabe, ao Magreb e ao

    Machrek:57 Lbia, ao Imen, Sria, ao Bahrein etc.

    As revolues do Egito e da Tunsia tm causas complexas, pois razes

    profundas sustentam a extraordinria coragem dos insurretos. Mas a fome, a

    subalimentao, a angstia diante dos preos vertiginosamente crescentes do po

    cotidiano constituram um forte motivo de revolta. Desde a poca do protetorado

    francs, a baguette de po o alimento de base dos tunisianos, assim como a ache o

    dos egpcios. Em janeiro de 2011, repentinamente, o preo da tonelada de farinha de

    trigo dobrou no mercado mundial, atingindo 270 euros.

    A enorme faixa que se estende da costa atlntica do Marrocos aos emirados do

    golfo rabe-persa constitui a principal regio importadora de cereais do mundo. Quer se

    trate de cereais, acar, carne bovina, aves ou leos comestveis todos os pases do

    Magreb e do golfo importam alimentos massivamente.

    Para alimentar seus 84 milhes de habitantes, o Egito importa anualmente mais

    de dez milhes de toneladas de trigo; a Arglia importa cinco milhes e o Ir, seis

    milhes. Tambm anualmente, o Marrocos e o Iraque importam, cada um, entre trs e

    quatro milhes de toneladas. A Arbia Saudita compra, a cada ano, no mercado

    mundial, cerca de sete milhes de toneladas de cevada.

    No Egito e na Tunsia, a ameaa da fome teve uma consequncia formidvel: o

    espectro da fome mobilizou foras desconhecidas, as que contriburam para a

    HPHUJrQFLD GD SULPDYHUD iUDEH0DV QDPDLRULD GRV RXWURV SDtVHV DPHDoDGRV SHOD

    insegurana alimentar iminente, o sofrimento e a angstia continuam sendo suportados

    em silncio.

    preciso acrescentar que, nas regies rurais da sia e da frica, as mulheres

    sofrem uma discriminao permanente, vinculada subalimentao. assim que,

    nalgumas sociedades sudaneso-sahelianas ou somalis, as mulheres e as crianas do sexo

    feminino s comem os restos da comida dos homens e das crianas do sexo masculino. 57 Denomina-se Magreb (em rabe, poente) o Noroeste da frica, envolvendo a Tunsia, a Arglia, o Marrocos, a Mauritnia e o territrio do Saara Ocidental; o Machrek (em rabe, levante) compreende a parte oriental do mundo rabe: o Egito, a Jordnia, o Lbano, a Sria e os territrios palestinos. A Lbia considerada ora um territrio de transio, ora parte do Magreb. (N.T.)

  • 38

    As crianas de pouca idade padecem a mesma discriminao. As vivas e as segundas e

    terceiras esposas suportam um tratamento discriminatrio ainda mais evidente.

    Nos campos de refugiados somalis em territrio queniano, os delegados do Alto

    Comissariado da ONU para os Refugiados lutam cotidianamente contra este costume

    detestvel: entre os criadores somalis, as mulheres e as meninas no tocam nas vasilhas

    de paino ou nos restos do cordeiro assado antes de os homens comerem58 os homens

    se servem, depois os filhos do sexo masculino; s quando eles se retiram da habitao,

    as mulheres e as meninas se aproximam da esteira sobre a qual esto as vasilhas com os

    restos do arroz, do bolo de trigo ou da carne deixados pelos homens. Se as vasilhas

    esto vazias, as mulheres e as meninas ficaro sem comer.

    Uma palavra a mais sobre as vtimas: esta geografia e estas estatsticas da fome

    designam como tais pelo menos um ser humano entre cada sete sobre a face da Terra.

    Porm, quando se adota um outro ponto de vista, quando no se considera a

    criana que morre como uma simples unidade estatstica, mas como o desaparecimento

    de um ser singular, insubstituvel, vindo ao mundo para viver uma vida nica e

    irrepetvel, ento a perpetuao da fome aniquiladora num mundo transbordante de

    ULTXH]DV H FDSD] GH DVVDOWDU D OXD DSDUHFH FRPR DLQGDPDLV LQDFHLWiYHO'HVWUXLomR

    massiva dos mais pobres.

    58 $IIDPDWLPDDFDVDORUR>(VIDLPDGRVPDVQDVXDSUySULDFDVD@in Negrizia (Verona, julho-agosto de 2009).

  • 39

    2

    A fome invisvel

    Ao lado dos seres destrudos pela subalimentao, vtimas da fome e

    contabilizados nesta geografia terrificante, esto os seres devastados pela m nutrio.

    A FAO no os ignora, mas os recenseia parte.

    A subalimentao provm da falta de calorias e a m nutrio, da carncia em

    matria de micronutrientes vitaminas e sais minerais. Vrios milhes de crianas de

    menos de dez anos morrem anualmente de m nutrio aguda e severa.59

    Ao longo de meu mandato de relator especial das Naes Unidas sobre o direito

    alimentao, por oito anos, percorri os territrios da fome. Nas ridas e geladas terras

    altas da serra de Jocotn, na Guatemala, nos planaltos desolados da Monglia, no

    59 +DQV .RQUDG %LHVDOVNL 0LFURQXWULPHQWV wound healing and prHYHQWLRQ RI SUHVVXUH XOFHUV in Nutrition, setembro de 2010.

  • 40

    corao das densas florestas do estado de Orisha, na ndia, nas aldeias castigadas pela

    fome endmica da Etipia e do Nger, vi mulheres desdentadas de pele acinzentada que,

    com trinta anos, pareciam ter oitenta; vi meninos e meninas de grandes olhos negros,

    atnitos e risonhos, mas cujos braos e pernas eram to frgeis como palitos de fsforo;

    vi homens de corpo descarnado, humilhados e de gestos lentos. Sua destruio era

    imediatamente perceptvel todos so vtimas da falta de calorias.

    A devastao provocada pela m nutrio, em troca, no imediatamente

    visvel. Um homem, uma mulher, uma criana podem ter um peso normal e, no entanto,

    estar mal nutridos ou seja, padecer da carncia permanente e grave de vitaminas e sais

    minerais indispensveis assimilao de macronutrientes. Vitaminas e sais minerais so

    GHVLJQDGRV FRPR PLFURQXWULHQWHV SRUTXH DSHQDV HP tQILPD TXDQWLGDGH VmR

    necessrios para que o corpo cresa, se desenvolva e se mantenha com boa sade. Mas

    eles no so produzidos pelo organismo e devem, imperativamente, ser aportados por

    uma alimentao variada, equilibrada e de qualidade.

    Carncias de vitaminas e minerais podem, de fato, provocar graves problemas de

    sade: grande vulnerabilidade a doenas infecciosas, cegueira, anemia, letargia, reduo

    das capacidades de aprendizado, retardo mental, deformaes congnitas, morte. As

    carncias mais frequentes so trs: de vitamina A, de ferro e de iodo.

    Para designar a m nutrio, as Naes Unidas utilizam habitualmente a

    H[SUHVVmR silent hunger IRPH VLOHQFLRVD No entanto, as vtimas clamam. De

    PLQKDSDUWHSUHILURIDODUHPIRPHLQYLVtYHOLPSHUFHSWtYHODRROKDUjVYH]HVWDPEpP

    ao olhar do mdico. Uma criana pode apresentar um corpo aparentemente bem

    alimentado, com peso correspondente ao das crianas de sua idade e, apesar disso, estar

    corroda pela m nutrio estado perigoso que, como a falta de calorias, pode levar

    agonia e morte. Mas essas mortes consecutivas no se contabilizam, como dissemos,

    nas estatsticas da fome da FAO, que s consideram as quilocalorias disponveis.

    No que toca s crianas de menos de quinze anos, o Fundo das Naes Unidas

    para a Infncia (UNICEF) e a Iniciativa Micronutrientes, uma organizao sem fins

    lucrativos especializada nas carncias, levam a cabo periodicamente, desde 2004,

    pesquiVDV FXMRV UHVXOWDGRV VmR SXEOLFDGRV QRV UHODWyULRV LQWLWXODGRV &DUrQFLDV de

    vitaminas e de PLQHUDLV $YDOLDomR JOREDO.60 Nelas se verifica que um tero da

    60 Vitamine and Mineral Deficiency. A Global Assessment.

  • 41

    populao mundial no pode desenvolver seu potencial fsico e intelectual como

    consequncia das carncias em vitaminas e minerais.

    A m nutrio devasta particularmente a faixa etria entre zero e quinze anos.

    A anemia uma das consequncias mais comuns da m nutrio. Ela resulta da

    carncia de ferro e se caracteriza especialmente por uma insuficincia de hemoglobina.

    mortal, sobretudo entre crianas e mulheres em idade de procriar. Para os lactentes, o

    ferro essencial: a maioria dos neurnios do crebro se forma durante os dois primeiros

    anos de vida. Ademais, a anemia desorganiza o sistema imunitrio.

    Cerca de 30% dos bebs nascem nos cinquenta pases mais pobres do mundo

    RVSDtVHVPHQRVGHVHQYROYLGRV30'VHJXQGRDWHUPLQRORJLDGD218$IDOWDGH

    ferro provoca neles danos irreparveis. Muitas das vtimas sero, por toda a vida,

    deficientes mentais.61

    No mundo, a cada quatro minutos, um ser humano perde a viso, torna-se cego,

    na maioria dos casos por deficincia alimentar.

    A carncia de vitamina A provoca cegueira. Quarenta milhes de crianas

    sofrem da falta de vitamina A. Delas, treze milhes se tornam a cada ano, por essa

    razo, cegas.

    O beribri enfermidade que destri o sistema nervoso deve-se falta

    prolongada de vitamina B.

    A ausncia da vitamina C na alimentao provoca o escorbuto e, para as crianas

    de pouca idade, o raquitismo.

    O cido flico indispensvel para as mulheres grvidas. A Organizao

    Mundial da Sade (OMS) estima em 200.000 por ano os recm-nascidos mutilados pela

    ausncia desse micronutriente.

    O iodo imprescindvel sade. Quase um bilho de seres humanos sobretudo

    homens, mulheres e crianas que vivem nos campos do hemisfrio sul, principalmente

    nas regies montanhosas e nos vales inundveis, onde os solos lavados e as guas

    apresentam um teor muito reduzido de iodo sofrem de uma carncia natural de iodo.

    Quando esta no compensada, sobrevm o bcio, graves transtornos de crescimento e

    desordens mentais (cretinismo). Para as mulheres grvidas (e, pois, para os fetos), a

    falta de iodo fatal.

    61 +DUWZLJGH+DHQ'DV0HQVFKHQUHFKWDXI1DKUXQJFRQIHUrQFLD(LQEHFN-Northheim, 26 de janeiro de 2011.

  • 42

    A carncia de zinco afeta as faculdades motoras e cerebrais: conforme um

    estudo do semanrio The Economist, causa cerca de 400.000 bitos por ano.62 A

    carncia de zinco provoca tambm diarreias frequentemente mortais nas crianas de

    pouca idade.63

    Cabe observar que mais da metade das pessoas que padecem de carncias

    micronutricionais apresentam carncias cumulativas. Vale dizer: sofrem,

    simultaneamente, com a falta de vrias vitaminas e vrios minerais.

    Metade dos bitos de crianas de menos de cinco anos no mundo tem por causa

    direta ou indireta a m nutrio. A grande maioria delas vive na sia do Sul e na frica

    Subsaariana, o que significa que um percentual muito pequeno de crianas mal nutridas

    tm acesso a tratamentos: as polticas nacionais de sade, em numerosos Estados do

    Sul, s excepcionalmente levam em conta a m nutrio aguda e severa quando esta

    poderia ser tratada com baixo investimento e sem colocar problemas teraputicos

    especficos.

    Centros especializados de realimentao escasseiam cruelmente. Em um

    documento de 2008, a Ao contra a Fome lamenta-VHFRPUD]mR$FDEDUFRPDPi

    nutrio infantil seria fcil. Basta converter esta luta em prioridade. Mas falta a

    numerosos Estados essa vontade.64 Muito provavelmente, essa situao vem se

    agravando desde 2008. Na frica Subsaariana, por exemplo, os servios primrios de

    sade no pararam de se degradar. Em Bangladesh, onde o nmero de crianas menores

    de dez anos mal nutridas ultrapassa 400.000, s existem dois hospitais capazes de

    oferecer os cuidados que permitem devolver vida um menino ou uma menina

    consumidos pela falta de vitaminas e/ou de sais minerais.

    E no nos esqueamos de que a m nutrio, como a subalimentao, opera

    tambm a destruio psicolgica. A falta de macro e de micronutrientes, com seu

    cortejo de doenas, produz, de fato, angstia, humilhao permanente, depresso e

    desespero em face do dia de amanh.

    Como uma me cujos filhos choram noite de fome e que consegue

    milagrosamente um pouco de leite emprestado por uma vizinha poder aliment-los no 62 +LGGHQKXQJHUin The Economist, 26 de maro de 2011. 63 Investigao de Nicholas D. Kristof, The New York Times, 24 de novembro de 2010. 64 $FWLRQFRQWUHOD)DLP(QILQLUDYHFODPDOQXWULWLRQXQHTXHVWLRQGHSULRULWp3DULV>$$&)puma ONG criada em 1979 e que atua internacionalmente em sistema de rede. (N.T.)]

  • 43

    dia seguinte? Como no se tornar louca? Qual pai incapaz de alimentar seus filhos pode

    no perder, a seus prprios olhos, toda dignidade?

    Uma famlia excluda do acesso regular a uma alimentao suficiente e adequada

    uma famlia destruda. As dezenas de milhares de camponeses que se suicidaram, na

    ndia, nos ltimos anos, so a trgica encarnao dessa realidade.

    3

    As crises prolongadas

    No centro das anlises da FAO se encontra o conceito de protracted crisis, uma

    expresso cuja traduo problemtica. Os servios da ONU traduzem-na por crise

    prolongada, expresso banal que no d conta dos dramas, contradies, tenses e

    fracassos implicados no conceito ingls. Porm, falta de uma expresso melhor, ns a

    utilizaremos aqui.

    'XUDQWH XPD FULVH SURORQJDGD D fome estrutural e a fome conjuntural

    conjugam seus efeitos. Uma catstrofe natural, uma guerra, um ataque de gafanhotos

    destroem a economia, de