Geopolítica:Fronteiras Marítimas

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João Miguel Aleixo Zamith POLÍTICA MARÍTIMA EUROPEIA Uma política à medida de Portugal ? Faculdade de Letras Universidade de Coimbra 2011

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Uma análise sobre uso territorial do mar

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  • Joo Miguel Aleixo Zamith

    POLTICA MARTIMA EUROPEIA

    Uma poltica medida de Portugal ?

    Faculdade de Letras

    Universidade de Coimbra

    2011

  • II

    Joo Miguel Aleixo Zamith

    POLTICA MARTIMA EUROPEIA

    Uma poltica medida de Portugal ?

    Dissertao de Mestrado em Estudos Sobre a

    Europa: Europa As Vises do Outro, rea de

    especializao em Estudos Europeus, apresentada

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a

    orientao da Professora Doutora Maria Manuela de

    Bastos Tavares Ribeiro e do Dr. Tiago de Pitta e Cunha.

    Faculdade de Letras

    Universidade de Coimbra

    2011

  • III

    Que imprprio chamar Terra a este planeta de oceanos!

    Sir Arthur C. Clarke cit. no Livro Verde Para uma futura poltica

    martima da Unio : uma viso europeia para os oceanos e os mares

    (2006).

    Portugal encontra-se na periferia da Europa, mas est

    no centro do mundo. () Possumos uma vasta linha de

    costa, beneficiamos da maior zona econmica exclusiva

    da Unio Europeia. Poderemos ser uma porta por onde a

    Europa se abre ao Atlntico, se soubermos aproveitar as

    potencialidades desse imenso mar que se estende diante

    dos nossos olhos, mas que teimamos em no ver ()

    Cit. no discurso de Sua Excelncia o Presidente da Repblica

    Portuguesa, Professor Doutor Anbal Cavaco Silva durante a 36

    Sesso Comemorativa do 25 de Abril de 2010 na Assembleia da

    Repblica.

  • IV

    in memoriam

    Professor Doutor Ernni Rodrigues Lopes

    (1942 2010)

  • V

    Resumo

    Sabemos que dois teros do planeta Terra so ocupados pelos Oceanos. Logo,

    premente ocuparmo-nos deles da forma mais sustentvel possvel.

    E os mares foram desde sempre a seiva da Europa. Os europeus desde h muito

    tempo tiveram propenso para se libertarem do mare incognitum. Essa ousadia trouxe

    retorno econmico, cultural e cientfico notveis para a Humanidade.

    Os espaos martimos e o litoral europeu, so essenciais para o bem-estar e

    prosperidade, ligam continentes atravs de rotas comerciais, regulam o clima, so fonte

    de alimento, de energia, e de inmeros recursos (muitos ainda desconhecidos) e so

    tambm locais privilegiados de residncia e lazer para os cidados.

    A Europa preconiza actualmente uma Poltica Martima Integrada reflectindo e

    projectando a nossa relao com os oceanos e mares. Esta abordagem inovadora e

    holstica refora a capacidade da Europa face aos desafios da globalizao e da

    competitividade, s alteraes climticas, autonomia energtica, segurana martima,

    entre outras. O leme da Poltica Martima Europeia Integrada foi tomado, em 2005, pelo

    Presidente da Comisso Europeia, Duro Barroso, e est ancorada na Agenda de Lisboa

    (apela ao crescimento econmico e emprego) e na Agenda de Gotemburgo (apela ao

    desenvolvimento sustentvel ambiental, econmico e social).

    A nossa longa histrica martima, a lngua e cultura portuguesa, e, o facto de existir

    uma Estratgia Nacional para o Mar, em consonncia com a Poltica Martima Europeia

    Integrada, podem ser os factores-chave para Portugal concretizar um dos seus maiores

    desgnios para o sculo XXI o Mar. Importa referir que iminente o alargamento da

    zona econmica exclusiva (equivalente a 43 vezes rea de Portugal Continental), e,

    caso seja aceite, teremos seguramente uma nova oportunidade de estar no centro do

    mundo.

    Esta investigao tem portanto, como objectivo, analisar a poltica martima

    europeia e os seus desenvolvimentos em Portugal.

    PALAVRAS-CHAVE:

    EUROPA, MAR, POLTICA, PORTUGAL, SUSTENTVEL

  • VI

    Lista de abreviaturas

    BEI Banco Europeu de Investimento

    BRIC Brasil, Rssia, ndia e China

    CCDR-N Comisso de Coordenao de Desenvolvimento Regional do Norte

    CdR Comit das Regies

    CE Comisso Europeia

    CEO Comisso Estratgica dos Oceanos

    CESA Associao dos Estaleiros Europeus de Construo e Reparao Naval

    CETMAR Centro Tecnolgico del Mar

    CIEJD Centro de Informao Europeia Jacques Delors

    CIIMAR Centro Interdisciplinar de Investigao Marinha e Ambiental

    CLPC Comisso de Limites para a Extenso da Plataforma Continental

    CO 2 Dixido de Carbono

    COMPETE Programa de Factores de Competitividade

    CRPM Conferncia das Regies Martimas da Europa

    DEM Dia Europeu do Mar

    EBA European Boating Association

    EFTA Associao Europeia de Livre Comrcio

    EM Estados Membros

    EMAM Estrutura de Misso para os Assuntos do Mar

    EMEPC Estrutura de Misso para a Extenso da Plataforma Continental

    EMODNET Rede Europeia de Observao e de Dados do Meio Marinho

    EMSA Agncia Europeia da Segurana Martima

    ENM Estratgia Nacional para o Mar

    ESPO Organizao dos Portos Martimos Europeus

    EuDA European Dredging Association

    EUROMIG European Union Recreational Marine Industry Group

  • VII

    FAO Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura

    FEDER Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

    FEM Frum Empresarial da Economia do Mar

    FSE Fundo Social Europeu

    GIZC Gesto Integrada das Zonas Costeiras

    I&D Investigao e Desenvolvimento

    I&D&I Investigao, Desenvolvimento e Inovao

    IDTI Investigao e Desenvolvimento das Tecnologias de Informao

    OEM Ordenamento do Espao Martimo

    OGP International Association of Oil and Gas Producers

    ONG Organizao No Governamentais

    ONU Organizao das Naes Unidas

    NEA 2 Nautisme Espace Atlantique 2

    PAC Poltica Agrcola Comum

    PALOP Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa

    PCP Poltica Comum da Pesca

    PIB Produto Interno Bruto

    PME`S Pequenas e Mdias Empresas

    PMIE Poltica Martima Integrada Europeia

    POCTEA Programa de Cooperao Transnacional do Espao Atlntico

    POCTEP Programa de Cooperao Transfronteirio Espanha-Portugal

    POEM Plano Ordenamento do Espao Martimo

    QREN Quadro de Referncia Estratgico Nacional

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura

    TIC Tecnologias da Informao e da Comunicao

    UE Unio Europeia

    ZEE Zona Econmica Exclusiva

  • VIII

    Nota prvia

    A realizao desta investigao no teria sido possvel sem a colaborao de

    diversas pessoas e entidades, pelo que, lhes dirijo os devidos agradecimentos.

    A primeira palavra de agradecimento vai para a minha Orientadora Professora Doutora

    Maria Manuela Tavares Ribeiro. Grato pela sua disponibilidade e destreza em aceitar a

    tarefa de orientao. Aproveito para a felicitar pelas inmeras iniciativas que organiza e

    em que participa elevando o prestgio da nossa Faculdade de Letras a nvel nacional e

    internacional.

    A segunda palavra, e no menos relevante, vai para o meu co-Orientador, na

    qualidade de especialista, Dr. Tiago de Pitta e Cunha. A sua notvel experincia

    nacional (Coordenador da Comisso Estratgica dos Oceanos) e europeia (ex-Membro

    do Gabinete do Comissrio Europeu para os Assuntos Martimos e as Pescas), aliada a

    uma cooperao profcua, diria mesmo perfeita, permitiram que neste trabalho tenhamos

    procurado a profundidade e a transversalidade que o tema proposto exige.

    O reconhecimento extensvel a todos os Professores da parte curricular pelo

    conhecimento adquirido nas aulas, memorveis. Uma palavra particular para o Professor

    Doutor Antnio Martins da Silva e outra para o meu colega e amigo Asdrbal

    Sotomaior, pois sem eles no teria sido possvel conseguir este objectivo.

    Agradeo aos funcionrios do Centro de Informao Europeia Jacques Delors, em

    Lisboa, pela simpatia e competncia com que sempre me receberam.

    O meu justo agradecimento ainda ao Comit das Regies pelo convite, feito em

    2008, para visitar e participar in loco nas sesses plenrias das principais instncias

    europeias (Parlamento, Comisso e CdR). Participaram neste evento 27 alunos, em

    representao de todos os Estados Membros da UE, oriundos de cursos de 2. Ciclo em

    Estudos Europeus.

    Finalmente, o meu obrigado sentido aos que esto mais prximos. Agradeo aos

    amigos de sempre, Teresinha, ao meu Irmo e ao meu Pai pelos incentivos que sempre

    me deram na vida. minha Me sinto-me sempre grato pela sua sabedoria, pacincia e

    carinho.

    minha futura sobrinha Maria dedico este trabalho.

  • IX

    ndice

    Resumo ............................................................................................................................ V

    Lista de abreviaturas .................................................................................................... VI

    Nota prvia .................................................................................................................. VIII

    Introduo ....................................................................................................................... 1

    Cap. I Principais talassocracias europeias breve retrospectiva histrica ........... 4

    1.1 Repblicas Martimas Italianas .............................................................................. 6

    1.2 O papel de Portugal o pioneiro da globalizao .................................................. 9

    1.3 Siglo de oro espanhol ........................................................................................... 13

    1.4 O ciclo holands e a hegemonia inglesa ............................................................... 16

    1.5 A Burguesia e a Revoluo Industrial .................................................................. 19

    Cap. II O Livro Verde da Poltica Martima Integrada Europeia ......................... 21

    2.1 Fundamentos da Poltica Martima Integrada Europeia ....................................... 21

    2.2 Potencialidades das principais actividades martimas da Unio Europeia ........... 23

    2.3 Livro Verde uma viso para os oceanos e os mares ...................................... 27

    2.4 reas-chave no Livro Verde ................................................................................. 29

    2.5 Participao dos europeus no processo de construo da PMIE .......................... 38

    Cap. III O Livro Azul, plano de aco e instrumentos financeiros ........................ 40

    3.1 Condies polticas do processo de deciso ......................................................... 40

    3.2 Livro Azul e o plano de aco .............................................................................. 43

  • X

    3.3 Instrumentos econmico-financeiros de apoio PMIE ........................................ 51

    3.3.1 A poltica de coeso e a poltica regional europeia ....................................... 51

    3.3.2 Fundos estruturais .......................................................................................... 53

    3.3.3. Outras fontes de financiamento .................................................................... 55

    3.3.4. Programa de apoio ao aprofundamento da PMIE ......................................... 56

    Cap. IV Orientaes estratgias para o futuro da PMIE ...................................... 58

    4.1 Breve balano ....................................................................................................... 58

    4.2 Governao martima e participao das partes interessadas ............................... 59

    4.3 Instrumentos transectoriais ................................................................................... 62

    4.4 Perspectivas e viso futura da PMIE .................................................................... 65

    Cap. V Estratgia Nacional para o Mar .................................................................. 68

    5.1 Princpios e objectivos .......................................................................................... 73

    5.2 Pilares estratgicos ............................................................................................... 73

    5.3 Aces e medidas ................................................................................................. 75

    5.4 O Hypercluster da economia do mar .................................................................... 81

    5.5 Plano de ordenamento do espao martimo .......................................................... 83

    5.6 Programa Polis do Litoral ................................................................................. 85

    Cap. VI Agenda Regional do Mar (Norte de Portugal) ......................................... 87

    6.1 Pacto regional para a competitividade da regio Norte 2015 ........................... 87

    6.2 Linhas estratgicas de desenvolvimento .............................................................. 90

    6.3 Modelo de governao para a Agenda Regional do Mar ..................................... 95

    6.4 Oceano XXI - Cluster do conhecimento e da economia do mar ..................... 95

    6.5 A Nutica como factor de desenvolvimento regional .......................................... 99

    Concluses ................................................................................................................... 101

    Fontes e bibliografia ................................................................................................... 105

  • 1

    Introduo

    A minha relao com o Mar comeou desde h muito.

    Foi graas s actividades nuticas, em ambiente martimo, que aprendi a valorizar e

    a respeitar a natureza, a partilhar valores sociais, a estabelecer novas amizades e at a

    conhecer novos continentes. Tudo comeou por prazer/lazer e hoje em dia o MAR faz

    parte da minha profisso e ser sempre, seguramente, uma fonte de inspirao e energia

    para a vida.

    Depois da formao na rea da engenharia e cincias econmicas decidi matricular-

    me no Curso de Mestrado Estudos Europeus na Faculdade Letras da Universidade de

    Coimbra, de forma de aprofundar os meus parcos conhecimentos (histricos, polticos e

    institucionais) sobre a Europa. Foi uma experincia enriquecedora e gratificante que

    ultrapassou largamente as minhas aspiraes iniciais.

    Contudo, confrontado com a necessidade de elaborar uma tese de dissertao, no

    mbito do Mestrado, ocorreu-me explorar uma temtica actual e transversal que se

    espera poder unir os europeus a uma causa o Mar.

    Assim, este trabalho de investigao intitulado Poltica Martima Europeia Uma

    poltica medida de Portugal ? pretende ser um contributo para a pesquisa e reflexo

    sobre as questes europeias e a sua relao com o mar e os oceanos, matria que, como

    todos nos temos vindo a aperceber cada vez mais, se reveste de grande importncia para

    Portugal.

    Foi com o esprito de para antever o futuro temos de conhecer o passado que

    procurei, ao longo do primeiro captulo, debruar-me sobre as fontes de riqueza material

    e imaterial que, estando relacionadas com o mar, contriburam para a formao e

    desenvolvimento da Europa. Neste mbito, debruo-me sobre as expedies martimas

    italianas que, apesar de confinadas ao mediterrneo, foram extremamente importantes

    para os descobridores que se seguiram. Entre estes ltimos destacarei o papel de

    Portugal, o siglo de oro espanhol, o ciclo holands e a hegemonia martima inglesa.

    Para terminar o enquadramento histrico, fao referncia emergncia da burguesia

    europeia e s suas origens nas actividades martimas.

  • 2

    No segundo captulo, procuro analisar transversalmente o Livro Verde da Poltica

    Martima Integrada Europeia. Assim, apresentarei os fundamentos e as potencialidades

    da Europa no domnio martimo, a viso europeia para o futuro dos oceanos e os

    mares, e ainda, as rea-chave nele apontadas. No final deste captulo, abordarei a

    consulta pblica que possibilitou aos europeus participarem, directa e activamente, no

    processo de construo da PMIE.

    Saliento que, pela primeira vez, a dimenso martima da Europa assumiu a posio

    de real prioridade poltica, ou seja, na histria da Unio Europeia, os oceanos e os mares

    como um todo, tornaram-se assunto de foco poltico ao mais alto nvel. A PMIE foi uma

    iniciativa de Jos Manuel Duro Barroso aquando da sua primeira nomeao para a

    Presidncia da Comisso Europeia em 2004. No programa Barroso I, a PMIE foi

    apresentada como uma necessidade premente, chegando mesmo a ser instituda, em

    2004, a pasta dos Assuntos Martimos atribuda, na altura, ao malts Joe Borg (ex-

    Comissrio Europeu).

    No terceiro captulo, comearei por salientar as condies polticas, ao nvel das

    instncias europeias, que permitiram a consolidao da PMIE. Este destaque poltico

    concedido ao Mar o reconhecimento do seu valor estratgico em diferentes dimenses:

    econmica, ambiental, cultural, de segurana, de investigao e de lazer. Desta vontade

    poltica declarada emergiu o Livro Azul acompanhado de um plano de aco. No final

    deste captulo sero apresentados os instrumentos financeiros comunitrios de suporte

    PMIE.

    Apesar da jovem idade - cinco anos - a PMIE j conseguiu obter resultados notveis

    escala europeia. Por isso, no quarto captulo proponho-me fazer uma breve anlise s

    actividades decorrentes da PMIE tendo em conta a governncia martima. E as aces

    estratgicas para o futuro da poltica martima europeia sero ainda apresentadas neste

    captulo.

    No quinto captulo, passarei a analisar a Estratgia Nacional para o Mar (ENM),

    resultante do apelo da Unio Europeia (UE) aos Estados-membros (EM) no sentido de

    aplicarem abordagens holsticas e transversais para o uso sustentvel dos oceanos.

    Realo que Portugal, a par de Espanha e Frana, foi um dos principais impulsionadores

    da poltica martima europeia. Destacarei ainda a importncia do Hypercluster da

  • 3

    Economia do Mar, o plano de ordenamento do espao martimo (POEM), actualmente

    em discusso pblica, e tambm o programa Polis do Litoral.

    No captulo seguinte, o sexto, destacarei a Agenda Regional para o Mar que, para

    alm de ser enquadrada na ENM e PMIE, responde visivelmente s especificidades

    latentes na regio Norte de Portugal. No final deste captulo, sero abordados ainda a

    plataforma Oceano XXI e o estudo estratgico intitulado A Nutica como factor de

    desenvolvimento da regio Norte.

    Neste trabalho procuro dar um contributo acadmico sobre a PMIE, registando a

    ausncia de estudos sobre esta matria, congratulo-me com o estudo que to

    entusiasticamente me comprometeu e espero que o mesmo possa servir de

    inspirao/orientao a TODOS aqueles que se revejam no todo ou em parte do exposto

    ou, simplesmente, aos que se interessem pelas temticas abordadas.

  • 4

    Cap. I Principais talassocracias europeias breve retrospectiva histrica

    Como forma de introduzir a influncia dos assuntos martimos na formao da

    Europa, resolvi reflectir sobre os aspectos histricos que considero mais relevantes,

    protagonizados no perodo compreendido entre os sculos XIV e XX, pelas maiores

    potncias de ento.

    Sero abordadas neste captulo, primeiramente, as repblicas italianas (Gnova e

    Veneza), seguindo-se a expanso portuguesa, passando pela aventura castelhana e

    terminando com a aco holandesa e inglesa. No final deste captulo, fao uma

    abordagem formao de uma nova classe social a burguesia oriunda das

    actividades martimas mercantis que foi o motor de arranque para a Revoluo

    Industrial.

    Os maiores imprios at ao sculo XV foram de dois tipos:

    Continentais, como o imprio Alexandrino (euro-asitico, no sculo IV

    a.C.) e o Mongol (no sculo XIII, que se estendia do Oceano Pacfico ao Mar

    Negro);

    Outros, centrados estrategicamente numa bacia martima que j foi tida

    como o centro econmico do mundo. A este tipo pertenciam o imprio Romano

    (com o apogeu nos sculos I e II a.C., em que o Mediterrneo chamado Mare

    Internum era um lago romano, o Mare Nostrum), e o imprio Islmico (que

    teve o seu apogeu entre os sculos VIII e XIII, que se estendia desde a Pennsula

    Ibrica ndia) e permitiu transformar o Oceano ndico num lago muulmano

    at ao momento da chegada dos portugueses.

    Houve tambm outros imprios, tais como:

    Egpcio (com o apogeu no sculo XV a.C.);

    Persa (sculos VI a IV a.C., que se estendia da ndia Grcia);

    Chins (o Chin do sculo III a.C., o Han do sculo II ou o Tang do

    sculo VIII);

  • 5

    Como nota comum, todos estes imprios ocupavam uma extenso continental

    contgua.

    No entanto, outros modelos de expanso surgiram ainda na Antiguidade incluindo

    as colonizaes mediterrneas dos cretenses, fencios e gregos, assentes numa rede

    litoral e descontnua da orla do Mediterrneo e do mar Negro. De referir, entre estes

    casos, a importncia do imprio ateniense (com o auge no sculo V a.C.), uma

    talassocracia1 por excelncia, baseada na projeco naval e na descontinuidade

    continental.

    Este ltimo tipo de expanso naval replicou-se mais tarde nas projeces

    mediterrnicas das repblicas martimas italianas, com destaque para Gnova e Veneza

    e na monarquia dual catalo-aragonesa.

    Apesar das diferenas, havia um denominador comum nestas talassocracias

    europeias o mar Mediterrneo. Como sublinha a historiadora genovesa Gabriela

    Airaldi2, a actividade martima era o elemento que interligava e dinamizava a

    civilizao mediterrnica.

    A esse ambiente mediterrnico peculiar associou-se, na Idade Mdia:

    Uma revoluo comercial e financeira, com uma economia de mercado

    predominantemente virada ao exterior, assente numa dispora de mercadores e

    banqueiros;

    Uma projeco geopoltica criando imprios martimos descontnuos;

    A disponibilidade para alianas polticas operativas, pragmticas,

    libertas dos preconceitos ideolgico-religiosos da poca.

    Ora, como refere Airaldi3, esta interdependncia estratgica entre a Europa do Sul e

    o lago mediterrnico originou um novo tipo de estado as repblicas martimas

    assentes numa oligarquia mercantil-financeira, distintas do sistema monrquico-

    senhorial dominante na Europa medieval.

    1 O termo vem do grego e uma juno do vocbulo mar (thlassa) e de poder (krcia). Aplica-se a

    todos os Estados no qual o poder se exerce baseado na expanso martima, garantida por uma projeco

    naval. 2 AIRALDI, 2007: 9

    3 AIRALDI, ibidem: 99

  • 6

    Os muulmanos e os chineses tinham, no entanto, criado uma inovao que o

    historiador Felipe Fernndez-Arnesto4 sintetiza na diferenciao entre civilizaes:

    Civilizaes da beira-mar ou no meio do mar moldadas pelo elemento

    martimo (assim eram as talassocracias at ento existentes);

    Civilizaes que domesticaram os grandes mares, que geravam

    verdadeiras civilizaes ocenicas. Como aquele historiador demonstra em

    Civilizations, o Islo foi a primeira civilizao a projectar-se poltica e

    economicamente usando os caminhos ocenicos, transformando o ndico num

    lago seu, domnio secular que foi beliscado pela curta expanso chinesa do

    inicio do sculo XV5.

    Essa confluncia dos dois movimentos tornou o ndico num espelho precoce da

    revoluo que ocorreria mais tarde e que foi a razo pela qual a histria de Portugal se

    inscreveu na Histria universal.

    1.1 Repblicas Martimas Italianas

    Os genoveses, venezianos e catales dominavam o Mediterrneo, com destaque

    para as duas Repblicas italianas que lideraram o mundo poltico euromediterrnico a

    partir do final do sculo XIII.

    Gnova perderia o poder hegemnico em 1380 na batalha naval de Chioggia,

    entrada da grande laguna veneziana, o que a levou sair do Adritico e a perder a

    liderana mediterrnea para Veneza, conhecida como a Serenissima Repubblica.

    Gnova, La Superba, havia dominado a regio desde que derrotara Pisa, em 1320, e

    criara um imprio mediterrnico e uma rede comercial e financeira transnacional.

    Perderia, em 1397, a autonomia poltica, passando a ser uma zona de confronto entre a

    4 Felipe Fernndez-Arnesto exerce actualmente o magistrio na ctedra Prncipe das Astrias na

    Universidade de Tufts, Departamento de Histria, e membro do claustro de Queen Mary, na

    Universidade de Londres. 5 FERNNDEZ-ARNESTO, Felipe 2001: 381

  • 7

    Frana e o Ducado de Milo ao longo do sculo XV. No entanto, nunca se apagou a

    chama empreendedora pioneira.

    A individualidade genovesa foi, de facto marcante o seu esprito de orizzonti

    aperti (horizontes abertos) foi pioneiro no sculo XIII. Foi nesta repblica martima que

    mais transparente se tornou o choque entre, por um lado, o lobby das cruzadas e da

    bandeira poltica da recuperao de Jerusalm e, por outro lado, a burguesia mercantil

    mais arrojada, ligada ao Banco di S. Giorgio (criado em 1407) e s 28 famlias

    poderosas que compunham os Albergui6. A Escola genovesa de almirantado, onde

    sobressai a figura de Emanuele Pessagno (conhecido pelo portugueses como Manuel

    Peanha7), criou fama e uma gerao marinai erranti (marinheiros errantes). No

    entanto, veio para Portugal no incio do sculo XIV para servir as navegaes de

    outros em Quatrocentos e Quinhentos.

    A nsia genovesa de projeco para alm do lago mediterrnico ficou conhecida.

    As navegaes de Benedetto Zacaria, em 1277, abriam oficialmente a rota

    mediterrnico-atlntica para a Flandres, anulando o significado das feiras de

    Champagne e valorizando estrategicamente o estreito de Gibraltar bem como a costa

    portuguesa e galega. Mais tarde, os irmos Ugolino e Valdino Vivaldi, com duas gals

    armadas por Tedisio Doria, em 1291, aventuraram-se no Mar Oceano (o Atlntico) para

    circum-navegarem frica e chegarem s partes da ndia e trazerem mercadorias

    lucrativas, mas nunca mais houve notcias deles. Especula-se que eles teriam como

    objectivo, provavelmente, no a verdadeira ndia das especiarias, mas a regio do ouro

    da frica Ocidental, que, na Idade Mdia, muitos incluam na designao genrica de

    ndia8.

    Nos genoveses sentiu-se precocemente a necessidade de procurar chegar s fontes

    asiticas de commodities de alto valor, por via do Ocidente, em oposio ao domnio

    que os venezianos e rabes detinham sobre as vias mediterrnicas do Levante para o

    Oriente. E o sentido de risco dos cls financeiros genoveses daria corpo ao primeiro elo

    do que viria a designar de Repubblica Internazional del Denaro.

    6 Agregao artificial de vrias famlias da oligarquia genovesa. Os Alberghi teriam entre 1600 a 1700

    membros, 40% dos quais estavam regularmente expatriados. 7O monarca D. Dinis, em 1317, tornaria Manuel Peagno de Gnova Almirante-mor do reino, um cargo

    hereditrio. 8 ALBUQUERQUE, 2001: 148

  • 8

    Mais prximos geograficamente dos portugueses, os catales, apesar da sua

    expanso mediterrnica entre 1229 e 1412 (um imprio que no seu auge inclua as

    Baleares, Malta, Sardenha, Siclia e os Ducados de Atenas e Neoptria, na Grcia, bem

    como um relacionamento especial com o Chipre) e de se terem afirmado como uma

    potncia martima mediterrnica, dispunham de um dos centros cartogrficos mais

    importantes da poca, situado em Maiorca, onde deu cartas a escola de cartgrafos da

    famlia judia Cresques9 e a quem atribudo um Atlas de 1375. Estes nunca desafiaram

    a hegemonia genovesa e posteriormente a veneziana. Mas como os italianos, os catales

    tambm fundaram colnias mercantis muito fortes em Alexandria, Beirute, Damasco e

    em diversos pontos do Magrebe.

    Os venezianos, por seu lado, consumada a paz com Gnova, em 1381, e

    secundarizao geopoltica desta repblica rival, expandiram os seus domnios de mar

    atravs da ocupao de pontos estratgicos na costa adritica, grega e no Mediterrneo

    (ilhas como Chipre, Corfu ou Creta). Tambm estabeleceram fortes comunidades

    mercantis os fundaci nos portos e placas giratrias comerciais estratgicas (como

    Constantinopla, Tana, Sinope, Tebisonda, Alexandria e Damasco) dos pases com que

    negociavam.

    A partir dessa rede dominaram o comrcio do que ento chamavam mercanzie

    sottili (mercadorias finas), as commodities de alto valor da poca que vinham da ndia,

    da China, do Ceilo e das Molucas que chegavam a Veneza trazidas pelas mude,

    comboios martimos que vinham das placas giratrias que eram Constantinopla,

    Alexandria e os portos da Sria. Este comrcio internacional movimentava 20 milhes

    de ducados por ano. A frota veneziana dispunha de 300 grandes navios, 45 gals e 3.000

    pequenos barcos e envolvia 36.000 marinheiros.

    A Europa vivia literalmente enfeitiada pelas especiarias, dominada por

    fetichismo das commodities de luxo, como ironizou o historiador Fernand Braudel.

    Paradoxalmente, os europeus medievos consumiam produtos made in Oriente mas

    desconheciam de todo onde ficavam exactamente e como eram os pases e as gentes de

    onde se importavam tais luxos. Da a propagao de mitos e contos fantsticos sobre as

    ndias e China. Apenas alguns viajantes aventureiros chegavam s fontes Marco Polo

    fora um deles.

    9 Um dos filhos desta famlia catal, Jafuda Cresques, cristianizado como Jaume (Jaime) Ribes, seria um

    dos expoentes mximos do grupo conselheiro do Infante Henrique.

  • 9

    Veneza soube gerir tambm o saco de gatos que era a Europa do final da Idade

    Mdia. O grande cisma no papado entre 1378 e 1417, num perodo em que chegou a

    haver mais do que um centro de poder papal (Roma e Avignon), com pontfices em

    conflito apoiados por diferentes potncias deu uma ajuda a esta cidade-Estado que

    cultivava teimosamente a sua independncia. De referir tambm a intermitente Guerra

    dos Cem Anos (1337-1453) que consumia as candidatas potenciais de ento ao

    hegemonismo da Europa continental, a saber Inglaterra e Frana10

    .

    No demais sublinhar que o conhecimento acumulado e as inovaes geopolticas

    surgidas com a expanso das repblicas martimas mediterrnicas seriam aprimoradas, a

    uma escala global, pelos portugueses.

    1.2 O papel de Portugal o pioneiro da globalizao

    O facto geopoltico que abriria, nas dcadas seguintes, a janela de oportunidade aos

    portugueses, ocorreria bem longe do Mediterrneo Oceano ndico considerado o

    centro econmico do mundo.

    Ainda o Infante D. Henrique no fazia jus ao seu cognome de Navegador, j os

    chineses da dinastia Ming haviam lanado, a partir de 1405, sete expedies em

    direco ao ndico, muito para alm da sua tradicional esfera de influncia ocenica. Foi

    seu Almirante-Mor era Zheng He (1371-1433), a cujo nome ficou associado a

    navegaes de longa distncia anteriores s portuguesas. Aquele movimento de

    expedies era o que chamaramos hoje de projeco de poder, sublinhou Edward

    Dreyer na sua obra Zheng He11

    . O argumento utilizado era um cruzamento hbil de

    diplomacia e demonstrao do seu poder naval, sem ser necessrio exerc-lo, a no ser

    excepcionalmente: a sua armada era suficientemente intimidante e raramente

    necessitava de combater de facto, mas estar preparada para o fazer era a sua misso

    primria, diz Dreyer.

    As navegaes chinesas acabariam abruptamente em 1433. A expanso foi travada

    por um movimento reaccionrio da burocracia de Beijing e ocorreu no meio de uma

    10

    RODRIGUES & DEVEZAS, 2009: 53-59 11

    DREYER, 2007: 3

  • 10

    crise de hiperinflao, com o colapso do papel-moeda chins to generosamente

    espalhado pela sia. Este recuo deixaria a porta aberta para os navegadores que, a

    seguir, chegassem ao ndico12

    .

    Assim, Portugal aproveitou uma janela de oportunidade nica no incio de

    Quatrocentos, pois a China, ento a maior economia do mundo, recuou no seu projecto

    de expanso ocenica. As Repblicas Italianas (nomeadamente Veneza, ento potncia

    hegemnica) e a Catalunha no dispunham de estratgias ou de inovaes para irem

    alm do seu espao tradicional de projeco de poder, que era o Mediterrneo. E as

    potencias regionais e os poderes locais, que dominavam os checkpoints e as rotas de

    commodaties de alto valor em frica, no prximo e Mdio Oriente e no ndico, no

    dispunham de poder naval para enfrentar um intruso expansionista.

    Alavancado o mito do Preste Joo, a elite portuguesa de Quatrocentos, em

    particular os dois irmos infantes Henrique o Navegador e Pedro o Cosmopolita

    e o monarca D. Joo II (considerado um Prncipe exemplar do Renascimento)

    idealizaram uma estratgia tenaz de cerco pelas traseiras ao elo mais fraco da poca: o

    arco muulmano fragmentado, que dominava as rotas de commodities at Alexandria,

    principal porto do Mediterrneo, agora nas mos dos mamelucos e com quem Veneza

    negociava. Esta estratgia portuguesa foi evolutiva e de geometria varivel: ora

    procurando vias pela costa e rios de frica Ocidental ao encontro do potencial aliado

    Preste Joo e do estratgico Nilo, ora recorrendo ao uso de espionagem e intelligence,

    at procura de um rota martima alternativa para uma das fontes de especiarias (a

    ndia).

    A procura do Preste Joo pelos navegadores portugueses foi infrutfera durante

    longas dcadas. Apenas entre 1508 e 1514, se realizaram os primeiros encontros oficiais

    entre as cortes etope e lisboeta. Entretanto, dois caminhos se abriram, dois ciclos

    sucessivos de uma nova especializao econmica portuguesa internacional, onde

    entrou o ouro, o ignbil trfico de escravos, e as especiarias. Esta nova especializao

    mudou o padro tradicional da economia do pas e foi responsvel por uma revoluo

    no comrcio internacional.

    12

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 60-61

  • 11

    O sucesso no estabelecimento da nova rota martima para a ndia deveu-se tanto a

    inovaes tcnicas e cientficas (como a caravela e a nova cartografia), como gesto

    do conhecimento global da poca (o centro de aco do Infante Henrique e o war room

    de D. Joo II), e tambm a inovaes estratgicas para a projeco de poder (rede das

    primeiras feitorias e fortificaes, de plataformas ocenicas e de novas cidades, e de um

    modelo de colonizao) e ainda jurdicas (estabelecimento da doutrina do Mare

    Clausum e assinatura dos primeiros tratados de diviso do mundo em zonas de

    influncia). Foi este conjunto de inovaes que permitiu o surgimento de um novo e

    longo ciclo geopoltico e substituir Veneza na liderana mundial13

    .

    Portugal criou, portanto, um novo tipo de imprio o imprio ocenico em rede

    baseado na mobilidade e poder naval, pois viabilizou o domnio de uma vasta rea do

    planeta e uma forma de comrcio verdadeiramente internacional. Este network lanou as

    bases para a criao da aldeia global, fenmeno hoje sobejamente conhecido como

    globalizao.

    Os portugueses introduziram o uso sistemtico do conhecimento cientfico como

    um activo indispensvel para alcanar objectivos polticos geoestratgicos. Tal facto

    gerou os alicerces do Renascimento cientfico europeu, e transformou radicalmente a

    viso do mundo como um planeta composto por massas continentais banhadas por um

    conjunto de oceanos interligados. Foi graas expanso martima portuguesa que surgiu

    a concepo de um globo terrestre e uma nova cartografia14

    .

    Apesar das fortes razes empricas da expanso portuguesa, do carcter pragmtico

    e do forte improviso, os lderes de Quatrocentos e de Quinhentos desenvolveram a

    gesto de conhecimento de forma eficiente. Este foi o capital intelectual que afirmou

    um esplio singular que destacou Portugal, elevando-o escala mundial. So exemplos

    deste perodo os primeiros centros de aco de expanso martima, uma vaga de

    publicaes cientficas originais, a revoluo na cartografia e na cincia da construo

    naval e uma evoluo da arte militar.

    A construo da hegemonia portuguesa foi, claramente, um processo evolutivo de

    aprendizagem que abarcou vrias geraes. Isto foi sucedendo desde a poca inicial dos

    infantes D. Henrique e D. Pedro com a chegada Costa da Mina e linha do Equador,

    13

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 175-176 14

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 184-185

  • 12

    mais tarde com a passagem do Cabo da Boa Esperana, at chegada ndia, Brasil,

    China e Japo.

    Concluda a chegada ndia (1498), j no tempo do rei D. Manuel I, a estratgia de

    projeco mundial foi tripla:

    Afirmao de um poder naval sem contestao mundial no Atlntico e

    ndico;

    Concluso da maior rede mundial de checkpoints existentes at ento;

    Campanha de marketing internacional junto do papado (poder

    transnacional reconhecido pelos europeus).

    Portugal caiu num dilema entre a focalizao num espao controlvel do ndico

    (ligado rota das especiarias) e a tentao de uma extenso rpida, incluindo um

    projecto imperial universal, embebido numa ideologia cruzadista e de expanso

    messinica.

    A capacidade inovadora dos portugueses foi de tal forma abrangente que se pode

    afirmar que nos sculos XV e XVI Portugal inovou na arte de inovar. Isto provocou

    uma ruptura tectnica na histria do mundo e no foi um mero acidente, relegado para

    segundo plano por muitos historiadores e analistas face ao mediatismo criado em torno

    das viagens de Colombo Amrica Central15

    .

    Segundo Daniel Boorstin16

    () como empreendimento organizado e de longo

    prazo, a conquista dos Portugueses foi a mais moderna, mais revolucionria, do que as

    largamente celebradas exploraes de Colombo (...).

    15

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 331 16

    BOORSTIN, 1986: 83 Daniel Boorstin faleceu em 2004. Estudou em Oxford, Harvard e Yale, foi autor de 20 livros e

    bibliotecrio do Congresso norte-americano de 1975 a 1987. Foi director do Museu Nacional de Histria

    e Tecnologia e da Smithsonian Institution, entidades norte-americanas. A Trilogia sobre a Histria

    Mundial que escreveu ficou clebre. E nela incluiu Os Descobridores. Foi um dos acadmicos que

    destacou a originalidade portuguesa de Quatrocentos e Quinhentos.

  • 13

    1.3 Siglo de oro espanhol

    O sculo de ouro foi o apogeu da cultura espanhola desde o Renascimento do

    sculo XV at ao perodo Barroco do sculo XVII. Marcado por acontecimentos-chave,

    abrangeu o perodo desde a publicao da gramtica Castellana de Nebrija em 1492 at

    a morte de Caldern de la Barca em 1681.

    Nos finais do sculo XVIII j se havia popularizado a expresso Sculo de Ouro,

    com a qual Lope de Vega aludia a si prprio e que suscitava a admirao de Don

    Quixote de la Mancha no seu famoso discurso sobre a Idade de Ouro.

    Com a unio dinstica, os Reis Catlicos, Fernando e Isabel, delinearam um Estado

    politicamente forte que foi consolidado posteriormente, cujos xitos foram invejados

    por alguns intelectuais contemporneos, como por exemplo o italiano Nicolau

    Maquiavel. Porm, esse Estado politicamente forte esteve ideologicamente dominado

    pela inquisio eclesistica. Os judeus que no se cristianizaram foram expulsos em

    1492 e dispersaram-se, fundando colnias hispnicas pela Europa, sia e Norte de

    frica. A cultivaram a sua lngua e escreveram livros em castelhano, emergindo figuras

    notveis como o economista e escritor Jos Penso de La Vega, Miguel de Barrios, Juan

    de Prado, Isaac Cardoso, Abraham Zacuto, Isaac Orobio e Manuel de Pina. Em Janeiro

    de 1492 Castela conquista o bastio mouro de Granada, finalizando a etapa poltica

    muulmana peninsular, ainda que uma minoria mourisca a continuasse a habitar, mais

    ou menos tolerada, at ao reinado de Felipe III.

    Em Outubro desse mesmo ano, Cristvo Colombo chega Amrica. A chegada s

    ndias por ocidente foi considerado, pelo historiador Pierre Vilar17, o gesto mais

    extraordinrio da histria da Humanidade. Ainda nesse ano foi celebrado o Tratado de

    Tordesilhas entre D. Joo II e os Reis Catlicos. Como o nome indica, este Tratado foi

    assinado na povoao castelhana de Tordesilhas, a 7 de Junho de 1494, celebrado entre

    o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para dividir as terras "descobertas e por

    descobrir". Este tratado surgiu na sequncia da contestao portuguesa s pretenses da

    Coroa espanhola resultantes da viagem de Cristvo Colombo, que ano e meio antes

    17

    Pierre Vilar foi um historiador francs. Est considerado uma das mximas autoridades no estudo da

    Histria de Espanha, tanto no perodo do Antigo Regime como na Idade Contempornea.

  • 14

    chegara ao chamado Novo Mundo, reclamando-o oficialmente para Isabel a Catlica. O

    tratado foi ratificado pela Espanha a 2 de Julho e por Portugal a 5 de Setembro de 1494.

    Durante o apogeu cultural e econmico desta poca, Espanha alcanou prestgio

    internacional e influenciou culturalmente a Europa. Tudo quanto provinha de Espanha

    foi amide imitado, e divulgou-se a aprendizagem e estudo do castelhano.

    As reas culturais mais cultivadas foram a literatura, as artes plsticas, a msica, e a

    arquitectura. O saber foi-se acumulando e disseminado pelas prestigiadas universidades

    de Salamanca e Alcal de Henares.

    As cidades mais importantes foram Sevilha, por receber as riquezas coloniais e dos

    comerciantes e banqueiros europeus, Madrid, como sede da corte, e ainda as cidades de

    Toledo, Valncia e Saragoa.

    Com a anexao dinstica e a formao da monarquia dual ibrica, sob a coroa dos

    Habsburgo, a dinastia dos Felipes tenta criar o maior imprio global no final do sculo

    XVI e primeira metade do sculo XVII18

    .

    Com o nascimento do mito do El Dorado (um suposto rei de uma regio aurfera,

    inventado pelos nativos colombianos), em 1538 acelerou-se a corrida aos metais

    preciosos da Amrica pelos conquistadores espanhis. Em 1547, o famoso mineiro de

    Potosi, nos Andes, comeava a sua explorao intensiva de prata e, em 1560, a inveno

    de um novo mtodo de refinao com mercrio, vindo das minas espanholas, levou ao

    disparo do negcio superando a produo de ouro.

    O pico da importao de prata para Espanha ocorre no quinqunio de 1591-159519

    .

    No Oriente, os castelhanos estabeleceram-se em Cebu desde 1565 e dois Navios da

    Armada Miguel Lopez de Legazpi conseguiram estabelecer uma nova rota transpacfica

    mais a norte para o Mxico. Em 1571 ocupavam a baa de Manila e em 1574

    exploravam as ilhas Bornu e a Nova Guin. A carreira regular entre o Mxico e as

    Filipinas, entre Acapulco e Manila, pretendeu pr em xeque a carreira da ndia

    portuguesa20

    .

    Felipe II sofreu, em larga medida, do messianismo de seu av portugus D. Manuel

    I e viu em seu redor desenvolver-se uma retrica imperialista e universalista herdada de

    seu pai Carlos V. O poeta-soldado Hernando de Acua anunciara, num poema dirigido a

    18

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 358 19

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 348-349 20

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 349

  • 15

    Carlos V, que estava prximo o dia em que se realizaria a mxima universal: um

    monarca, um imprio e uma espada.

    Espanha atingia, ento, o auge de seu Siglo de Oro, com um imprio onde el Sol

    no se pona, desde o Virreinato de Nueva Espaa (Amrica Norte e Central) at s

    Filipinas, o que levava os estrategos da Corte dos Felipes a sonhar com uma monarquia

    mundial. Mais tarde, o aristocrata andaluz Gaspar Felipe de Gzman, o famoso Conde-

    Duque de Olivares, adoptando uma expresso de Gil Vicente, afirmou Dios es espaol

    y est de parte de la nacin estos dias (Deus espanhol e faz parte da nao nos dias de

    hoje).

    Ainda na vigncia do reinado de Felipe II (1556-1598), so de salientar os

    acontecimentos que iriam dar incio ao processo de decadncia deste siglo:

    Incio dos ataques sistemticos dos corsrios ingleses s possesses

    espanholas das Amricas;

    O desastre da Grande y Felicssima Armada (mais conhecida como

    Invencvel Armada), que partira de Lisboa em 1588 (levando boa parte da

    armada portuguesa, que no regressou) para invadir e subjugar a Inglaterra;

    A derrota frente aos ingleses na batalha naval do estreito de Gibraltar em

    159021

    .

    Depois da morte de Felipe II, uma atmosfera de desengao, de desiluso nacional,

    apoderou-se de Espanha segundo Elliot, a obra imortal El Inginioso Hidalog Don

    Quixote de La Mancha (1605 e 1614), de Miguel de Cervantes Saavedra, ,

    provavelmente, o expoente dessa poca de declnio estratgico que se iria estender pelo

    reinado do filho e neto de Felipe II22

    .

    Na realidade, o Siglo de Oro espanhol durou menos de sessenta anos. A decadncia

    comeou na aclamao de Felipe II, em 1581, como rei portugus nas Cortes de Tomar

    e termina nas dcadas de 1630 e 1640 com Felipe IV (III em Portugal). Este ltimo,

    coroado aos dezasseis anos de idade, entregou o governo do imprio ao Conde-Duque

    de Olivares. Durante o vintnio compreendido entre 1623 e 1643, o Conde-Duque de

    Olivares que exercer o controlo efectivo sobre o Estado espanhol. A notria rivalidade

    com o cardeal de Richelieu (Frana) arrastou a Espanha para a Guerra dos Trinta Anos,

    e a diversos conflitos paralelos com a Itlia e com os Pases Baixos. O desgaste causado

    21

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 358-360 22

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 373

  • 16

    pelos vrios conflitos, o declnio da indstria e do comrcio devido ao esgotamento dos

    recursos das colnias espanholas, e a restaurao da coroa portuguesa (em 1640),

    desacreditaram a sua gesto. Destitudo do cargo, exilou-se no norte de Espanha e

    passou seus ltimos anos submetido s investigaes da Inquisio, at seu falecimento,

    em 1645.

    Sucedeu-se ainda um quadro de desaires no final da Guerra dos Trinta Anos (1618-

    1648) de que passo a citar os mais importantes:

    As derrotas infligidas na batalha naval ao largo de Downs no canal da

    Mancha; Esta derrota naval considerada, pelos prprios estrategos espanhis,

    como o momento de perda da hegemonia naval;

    Em 1639, a infligida pelos holandeses comandados por Maarten Tromp;

    Em 1643, em Rocroi, derrotados pelos franceses;

    A reconquista da Independncia dos portugueses em 1640;

    A revolta da Catalunha, que se converte num protectorado francs;

    A derrota de Lens, em 1648, de novo s mos dos franceses.

    1.4 O ciclo holands e a hegemonia inglesa

    Se Portugal de Quinhentos foi o pioneiro do verdadeiro comrcio internacional,

    foram os hegemonistas seguintes, holandeses e ingleses, que souberam inovar para dele

    tirar proveito efectivo.

    Alguns historiadores desenharam esta imagem sugestiva o papel dos portugueses

    foi, ento, o de lanarem ces para espantarem a caa, que depois foi apanhada por

    outros23.

    No foi por acaso que os holandeses ficaram conhecidos no sculo XVII como os

    carreteiros do mar, com uma frota que era o dobro da de Inglaterra e Frana juntas24.

    Lanaram-se ao mar e tornaram-se os transportadores das mercadorias mundiais. Os

    23

    BOXER, 2001: 32 Imagem atribuda por Charles R. Boxer ao capito holands Willem Bosman. 24

    RODRIGUES, 1997: 280 (volume I)

    O contraste, no perodo de 1600-1700, foi brutal: a frota comercial portuguesa baixou de uma mdia de

    700 navios (no perodo de Quinhentos) para quase metade e a holandesa disparou de menos de 100 para

    1770, contra 811 ingleses e 155 franceses.

  • 17

    barcos holandeses iam a toda a parte levando mercadoria de todo o mundo, a todo o

    lugar, dizia Leo Huberman25.

    Aos holandeses e ingleses caberia inovarem no empreendorismo capitalista,

    justamente onde falhou o capitalismo monrquico portugus, o que gerou a crnica

    desvantagem competitiva, que marcaria a evoluo do comrcio a partir dos comeos do

    sculo XVII.

    A esse conjunto de inovaes anglo-holandesas, entre 1600 e 1700, poderemos

    chamar de revoluo de softpower mais poderoso do que o militarismo religioso

    apelidado de dilatao da f que os portugueses e espanhis pretenderam usar como

    arma ideolgica de consolidao das Descobertas26.

    O primeiro aspecto inovador do softpower da potncia emergente foi jurdico27

    . A

    doutrina do Mare Clausum, defendida e aplicada pelos portugueses, foi contestada. O

    holands Hugo Grotius formulou em De Jure Pradae28

    (1604) e Mare Liberum (1609),

    a ideia de que haveria um direito natural de navegao livre no mar alto. O oceano seria

    um bem pblico comum, onde no se aplicavam os direitos de conquista nem a lei

    consuetudinria. Em virtude deste direito (de mar livre), o comrcio est aberto a toda

    a gente, afirma Grotius, que termina a sua obra Mare Liberum dizendo que preciso

    no recuar perante a guerra, se os portugueses mantiverem a sua doutrina do Mare

    Clausum. Grotius respondia tambm a uma deciso de James I de Inglaterra que, no

    incio de 1609, decretara a obrigatoriedade de licenas nos mares, em redor das costas

    inglesas, o que prejudicou seriamente os holandeses.

    O segundo aspecto foi poltico-comercial. Foram, por sua vez, os ingleses que

    criaram um novo tipo de companhia trading, baseada numa sociedade por aces, em

    que a prpria rainha da altura, Elizabeth I, participava como accionista, e sem a

    dependncia do circuito dos banqueiros alemes e italianos. A primeira dessas

    companhias, em finais de 1600, tinha o estranho nome de Governador e Companhia

    dos Aventurosos Mercadores para a descoberta de regies, domnios, ilhas e lugares

    desconhecidos e contava, em Londres, com 240 accionistas que investiram 25 libras

    25

    HUBERMAN, 1970: 45 26

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 397 27

    O debate entre o Mare Clausum e o Mare Liberum est muito bem documentado no livro de Wilhelm

    Grewe intitulado The Epochs of International Law, republicado pela editora Walter de Gruyer, em 2000,

    Berlim e Nova York. 28

    Grotius refere nesta obra supracitada a captura em Malaca de um barco portugus por um navio da

    companhia holandesa VOC.

  • 18

    cada um (na poca uma soma de certa importncia29

    ). Esta deu origem, mais tarde, ao

    aparecimento da famosa Companhia Inglesa das ndias Orientais Honourable East India

    Company. Em 1602 foi a vez de os holandeses criarem a Companhia das Indias

    Orientais, a conhecida VOC (acrnimo de Verenidge Oost-indische Compagnie), que

    agrupou nove companhias por aces, depois do ensaio com a inicial Compagnie Van

    Verre (Companhia das Terras Longnquas), criadas em 1594.

    Estas companhias no eram meramente comerciais, eram bem mais do que isso.

    Funcionavam como uma ferramenta poltica multifuncional, pois no s criavam a

    infra-estrutura para o comrcio internacional, como tambm serviam de arma poltico-

    ideolgica (exercendo softpower), coerciva (cobrando impostos) e militar (aplicando o

    hardpower)30

    . Por alguns so consideradas exemplos de actores no estaduais, com

    dimenso multinacional, a quem os monarcas atribuam poderes soberanos nas regies

    de expanso, ao contrrio dos ibricos que exerciam o poder ultramarino atravs de

    vice-reis. Posteriormente, os franceses copiaram o modelo anglo-holands na sua

    projeco nas Amricas e na ndia, mas com menos sucesso devido sua inferioridade

    na projeco ocenica.

    Em 1609, os holandeses fundaram o Amesterdamsche Wisselbank (Banco de

    Amesterdo), sobre o qual Adam Smith escreveu vrios pargrafos na sua obra mais

    clebre31

    e, em 1694, surgiu o Bank of England32

    .

    De salientar ainda a mudana no exerccio de hardpower nos mares. um aspecto a

    que muitos historiadores designaram revoluo militar ocorrida ao longo da primeira

    metade do sculo XVII, visto que os ingleses e holandeses inovaram em termos de

    velocidade, flexibilidade (aperfeioamento da capacidade de bolinar) e posicionamento

    da artilharia a bordo dos navios33

    .

    29

    HUBERMAM, ibidem: nt 12 30

    HUTTON, 2006: 70 31

    SMITH, 1776: livro IV, captulo 3, parte I 32

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 398-400 33

    RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 402

  • 19

    1.5 A Burguesia e a Revoluo Industrial

    O incremento do comrcio martimo permitiu que os produtos do Oriente

    chegassem Europa e vice-versa. Este comrcio, apesar do risco implcito nas viagens,

    era altamente rentvel (bastava uma caravela chegar do Oriente com especiarias para

    cobrir os custos totais da frota).

    As transaces comerciais realizadas pelos europeus, atravs das suas rotas

    martimas, permitiram o enriquecimento das classes sociais vigentes e contriburam

    ainda, em grande escala, para o aparecimento de uma nova classe social endinheirada

    a Burguesia.

    Os burgueses eram os habitantes dos burgos, que eram pequenas cidades

    protegidas por muros. Eram gentes de elevado estatuto econmico, embora de baixo

    nvel cultural e social. Por isso se compreende, luz da poca, que tenham sido

    ostracizados pela nobreza.

    Com o mundo e o comrcio ligado em rede mercado global a procura mundial

    disparou e, consequentemente, tornou-se mais premente aumentar a oferta.

    O negcio martimo, indissocivel da burguesia, favoreceu a acumulao de

    capitais na Europa. Posteriormente, esta acumulao de capital serviu de suporte

    financeiro Revoluo Industrial.

    A Revoluo Industrial consistiu num conjunto de mudanas tecnolgicas34

    com

    profundo impacto no processo produtivo que se reflectiu no desenvolvimento

    econmico e social na Europa. A era industrial provocou uma ruptura com o passado.

    Foi iniciada em Inglaterra em meados do sculo XVIII e rapidamente se expandiu a

    partir do sculo XIX.

    Entre as novas aplicaes tecnolgicas saliento a importncia da aplicao do

    motor a vapor em navios, que veio encurtar a distncia entre os portos e,

    simultaneamente, aumentar a capacidade de circulao de pessoas e mercadorias. Este

    momento marcou o declnio do ciclo de navegao comercial vela.

    A Revoluo Industrial o ponto culminante de uma evoluo tecnolgica,

    econmica e social, que se vinha processando na Europa desde a Idade Mdia, com

    34

    James Watt, em 1765, introduz na Gr-Bretanha o condensador na mquina de Newcomen, componente

    que aumenta, consideravelmente, a eficincia da mquina a vapor.

  • 20

    maior nfase nos pases onde a Reforma protestante tinha conseguido destronar a

    influncia da Igreja Catlica. Nos pases fiis ao catolicismo, a Revoluo Industrial

    eclodiu, em geral, mais tarde.

    O sculo XIX, no plano das relaes internacionais, foi marcado pela hegemonia

    mundial britnica de expanso colonialista e pelo aparecimento das primeiras lutas e

    conquistas dos trabalhadores. O trono britnico foi ocupado pela rainha Vitria (1837-

    1901), razo pela qual, esse perodo denominado por Era Vitoriana. No final deste

    sculo, a busca de novas regies, para colonizar e descarregar os produtos (maciamente

    produzidos pela revoluo industrial), levou a uma acirrada disputa entre as potncias

    industrializadas, causando diversos conflitos e um crescente esprito armamentista que

    culminou, mais tarde, na ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914).

    Statue of Prince Henry the Navigator Belgrave Square London35

    35

    Esttua em homenagem ao Infante D. Henrique, Belgrave Square, em Londres

  • 21

    Cap. II O Livro Verde da Poltica Martima Integrada Europeia

    2.1 Fundamentos da Poltica Martima Integrada Europeia

    Partimos da definio de fundamento: o que d consistncia e segurana, o que

    d coeso s partes do todo que ele mesmo estrutura e sustenta36

    .

    No captulo precedente, dedicado a um breve enquadramento histrico, destaquei as

    principais naes europeias que contriburam fortemente para identidade martima da

    Europa. Facto que hoje em dia, em pleno sculo XXI, inconcebvel olhar para

    Europa e imagin-la sem mar, ou negar a sua importncia no quotidiano dos europeus.

    De referir que na Unio Europeia a 27, apenas 5 Estados-membros no so pases

    costeiros, o que demonstra, desde logo, a importncia da temtica martima no contexto

    europeu. Este , sem dvida, um dos desafios que a Europa enfrenta e que passo a

    apresentar neste captulo dedicado ao Livro Verde da Poltica Martima Integrada

    Europeia.

    Qualquer cidado europeu se lembrar dos relatos das grandes viagens de

    descobrimentos que revelaram aos nossos antepassados a vastido, a diversidade de

    culturas e a riqueza de recursos do nosso planeta. O xito destas viagens, que na sua

    maioria eram martimas, exigia quase sempre esprito de abertura a ideias novas e um

    planeamento meticuloso, alm de extraordinria coragem e forte determinao. Graas a

    elas, no s foram sendo desvendadas ao longo do tempo regies do mundo antes

    desconhecidas, como tambm apareceram novas tecnologias, como por exemplo: o

    astrolbio (instrumento naval usado para medir a altura dos astros acima da linha do

    horizonte), o cronmetro martimo (destinado a calcular a longitude exacta) e a turbina a

    vapor (que permitiu escapar tirania dos ventos dominantes).

    A densidade populacional nas zonas do litoral europeu foi sempre elevada. No mar

    encontraram um meio de subsistncia pescadores e marinheiros, mas tambm sade e

    prazer, novos horizontes para sonhar e um rico reportrio de vocbulos e metforas

    36

    Enciclopdia Luso Brasileira, vol. 8: 1794

  • 22

    presentes tanto na literatura como no quotidiano. Fonte de romance, de unio, mas

    tambm de separaes, perigos desconhecidos e sofrimento, o mar um desafio

    permanente e suscita em ns uma vontade profunda de melhor o conhecer.

    A Europa possui mais de 70.000 km de orla costeira, est rodeada por numerosas

    ilhas, por quatro mares (Mediterrneo, Bltico, do Norte e Negro) e por dois oceanos

    (Atlntico e rctico). O continente europeu uma pennsula com uma orla costeira de

    milhares de quilmetros maior do que a de outras grandes massas continentais, como

    os Estados Unidos ou a Federao da Rssia. Dada esta configurao geogrfica, mais

    de dois teros das fronteiras da UE so de orla martima. E os espaos martimos sob

    jurisdio dos Estados-Membros so mais vastos do que os seus espaos terrestres.

    Graas s suas regies ultraperifricas, para alm do Oceano Atlntico, a Europa est

    igualmente presente no Oceano ndico e no mar das Carabas. Os desafios colocados por

    estas regies no plano martimo so numerosos e afectam a Unio Europeia no seu todo.

    A Europa desde tempos imemoriais, essencialmente devido sua geografia, sempre

    teve uma relao privilegiada com os oceanos, sendo estes determinantes no

    desenvolvimento da sua cultura, identidade e histria.

    Assim continua a ser hoje em dia. Num momento em que a Unio Europeia procura

    veementemente revitalizar a economia, importante reconhecer o potencial econmico

    da dimenso martima. Estima-se que 3% a 5% do produto interno bruto (PIB) europeu

    gerado pelas indstrias e servios do sector martimo, sem contar com o valor de

    matrias-primas como o petrleo, o gs ou o pescado. As regies martimas europeias

    representam mais de 40% do PIB da Unio Europeia.

    No obstante, os cidados europeus nem sempre esto bem conscientes da

    importncia dos oceanos e mares na sua vida. Embora saibam que a gua um bem

    crucial, podero desconhecer que provm dos oceanos sob a forma reciclada de chuva

    ou de neve, por exemplo. Preocupam-se com as alteraes climticas, mas nem sempre

    sabem at que ponto so moduladas pelos oceanos. Beneficiam da possibilidade de

    comprar produtos baratos de todo o mundo, sem se aperceberem da complexidade da

    rede logstica que o torna possvel37

    .

    37

    COM (2006) 275 final, vol. II: 3

  • 23

    O desenvolvimento sustentvel, como se sabe, ocupa um lugar preponderante na

    agenda de trabalhos da Unio Europeia. O desafio consiste em assegurar o reforo

    mtuo do crescimento econmico, da coeso social e da proteco do ambiente.

    Ora, a PMIE tem a oportunidade de aplicar aos oceanos o princpio do

    desenvolvimento sustentvel. Para esse efeito, pode tirar partido dos trunfos que sempre

    estiveram na base da supremacia no domnio martimo: conhecimento dos oceanos,

    larga experincia e capacidade para enfrentar novos desafios, conjugados com um forte

    empenho na proteco dos seus recursos38

    .

    A Europa depois de sculos de ligao aos mares e oceanos assume, a partir de

    2007, a coordenao das polticas pblicas ligadas ao espao martimo e costeiro

    europeu. Todavia, o objectivo de alcanar uma poltica martima mais integrada no

    exclusivo da Europa, algo que tem vindo a ser implementado igualmente por pases de

    outras regies do mundo, como a Austrlia, o Canad ou os Estados Unidos.

    2.2 Potencialidades das principais actividades martimas da Unio Europeia

    A Unio Europeia a primeira potncia martima mundial, especialmente no que

    diz respeito ao transporte martimo, s tcnicas de construo naval, ao turismo costeiro,

    energia offshore, incluindo as energias renovveis e servios associados. No futuro,

    segundo um estudo do Irish Marine Institute39

    , os sectores com maior potencial de

    crescimento sero o sector dos cruzeiros e porturio, a aquicultura, as energias

    renovveis, as telecomunicaes submarinas e a biotecnologia marinha.

    O transporte martimo e os portos so essenciais para o comrcio internacional, pois

    90% do comrcio externo da Unio Europeia e mais de 40% do seu comrcio interno

    efectuado por via martima. A Unio Europeia, com 40% da frota mundial,

    incontestavelmente o lder deste sector global. Anualmente, 3,5 mil milhes de

    toneladas de mercadorias e 350 milhes de passageiros transitam pelos portos martimos

    europeus. Cerca de 350.000 pessoas trabalham nos portos e nos servios associados,

    38

    COM (2006) 275 final, vol. II: 4 39

    Para mais informaes sobre o Irsih Marine Institute: http://www.marine.ie

  • 24

    que, no seu conjunto, geram um valor acrescentado de aproximadamente 20 mil milhes

    de euros40

    .

    Com o aumento do volume do comrcio mundial e o desenvolvimento do

    transporte martimo de curta distncia e das auto-estradas martimas, as perspectivas

    para estes sectores so de crescimento contnuo. O transporte martimo um catalisador

    para outros sectores, nomeadamente a construo naval e os equipamentos martimo-

    porturios.

    Os servios martimos associados como os seguros, a banca, a intermediao, a

    classificao e a consultoria, so mais um domnio em que a Europa deve manter a sua

    liderana.

    Os oceanos e os mares geram igualmente receitas graas ao turismo. Estima-se que

    o volume de negcios directo do sector do turismo martimo na Europa tenha sido de 72

    mil milhes de euros em 2004. Os turistas que passam frias no litoral usufruem do mar,

    da praia e da zona costeira de formas muito diversas. Muitos destinos tursticos devem a

    sua popularidade proximidade do mar e dependem da qualidade ambiental deste. Para

    a sustentabilidade do turismo em geral e, em particular, do ecoturismo, sector que se

    encontra em rpida expanso , pois, crucial prever um elevado nvel de proteco das

    zonas costeiras e do meio marinho. O turismo gera ainda trabalho para a indstria da

    construo naval.

    O sector europeu dos cruzeiros tambm se desenvolveu fortemente nos ltimos

    anos, registando uma taxa de crescimento anual superior a 10%. Os navios de cruzeiro

    so praticamente todos construdos na Europa. O turismo de cruzeiro contribui para o

    desenvolvimento das zonas costeiras e insulares.

    O sector da nutica de recreio registou igualmente um aumento constante nos

    ltimos anos, prevendo-se que o seu crescimento anual na Unio Europeia seja de 5 a

    6%41

    . Nenhuma outra forma de lazer colectivo abrange um leque to grande de idades,

    interesses e locais42

    .

    O mar desempenha um papel essencial na competitividade, no desenvolvimento

    sustentvel e na segurana do aprovisionamento energtico, os quais constituem

    40

    Contributo da Organizao dos Portos Martimos Europeus (ESPO) para o Livro Verde. 41

    Contributo da European Union Recreational Marine Industry Group (EURMIG) para o Livro Verde.

    Este sector inclui, nomeadamente, a construo de embarcaes, a electrnica de ponta para fabrico de

    motores e equipamentos martimos, o financiamento e a construo e explorao de infra-estruturas. 42

    Contributo da European Boating Association (EBA) para o Livro Verde.

  • 25

    objectivos essenciais, identificados pela Comisso Europeia43

    e pelos Chefes de Estado

    e de Governo44

    . O mar do Norte , depois da Rssia, dos Estados Unidos e da Arbia

    Saudita, a quarta maior fonte de petrleo e de gs no mundo45

    . Os mares em torno da

    Europa desempenham tambm um importante papel no sector da energia, na medida em

    que permitem o transporte, por um nmero crescente de navios-tanque, de uma grande

    parte do petrleo e do gs consumidos na Europa.

    Por outro lado, o vento, as correntes ocenicas, as ondas e mars representam uma

    vasta fonte de energia inesgotvel. Convenientemente explorados, estes tipos de

    energias poderiam assegurar uma importante parte do abastecimento de electricidade em

    muitas zonas costeiras da Europa, e contribuir assim para o desenvolvimento econmico

    e a criao de emprego, com carcter duradouro.

    As empresas europeias desenvolvem know-how na rea das tecnologias marinhas,

    no s no domnio da explorao de hidrocarbonetos no mar, como tambm nos dos

    recursos marinhos renovveis, das actividades em guas profundas, da investigao

    oceanogrfica, dos veculos e robs subaquticos, das obras martimas e da engenharia

    costeira. Essas tecnologias so cada vez mais utilizadas e estimularo o crescimento do

    sector europeu das tecnologias marinhas, especialmente nos mercados mundiais de

    exportao.

    Por fim, a Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura

    (FAO)46

    indica que caber aquicultura satisfazer a nova procura mundial no mercado

    de consumo de pescado. A dificuldade consiste em gerir este aumento de procura de

    uma forma sustentvel e compatvel com o ambiente. A competio pelo espao pode

    tambm constituir um importante problema em algumas zonas costeiras. A aquicultura

    poder distanciar-se da costa o que exigir novos trabalhos de investigao e

    desenvolvimento da tecnologia de cultura em jaulas offshore47

    .

    A Unio Europeia uma das principais potncias de pesca ao nvel mundial, e o

    maior mercado de produtos transformados base de peixe. Embora o nmero de

    pescadores na Unio Europeia tenha vindo a baixar ao longo dos anos, o sector das

    43

    COM (2006) 105 final 44

    Concluses da Presidncia do Conselho Europeu de 23 e 24 de Maro de 2006. 45

    Contributo da International Association of Oil and Gas Producers (OGP) para o Livro Verde. 46

    O estado das pescas e da aquicultura no mundo, FAO 2004. 47

    COM (2002) 511 final

  • 26

    pescas, no seu conjunto, emprega ainda cerca de 526.000 pessoas48

    . So proporcionados

    numerosos postos de trabalho, no s no sector da captura, como na indstria da

    transformao, acondicionamento, transporte e comercializao, bem como nos

    estaleiros, fbricas de artes de pesca, empresas de abastecimento e de manuteno. Estas

    actividades tm uma importncia considervel no tecido econmico e social das zonas

    pesqueiras. A transio gradual para pescarias mais sustentveis, prevista pela Unio

    Europeia, e o aumento da procura de peixe enquanto alimento saudvel, conduzem a

    uma maior estabilidade, rentabilidade e, inclusiv, crescimento econmico em certos

    segmentos do sector das pescas49

    .

    Como verificamos, as actividades martimas ainda que dispersas ou dvidas por

    sectores, so efectivamente importantes para o desenvolvimento econmico da Europa.

    No entanto, sendo a Europa um continente proeminentemente martimo, questiono-

    me porque que s a partir de 2006 surge uma inteno de abordar os assuntos

    martimos como um todo e de forma integrada? A resposta complexa. Talvez seja o

    reflexo de uma Europa tradicionalmente sectria, baseada nos interesses individuais dos

    Estados-membros e com a dificuldade em falarem a uma s voz. Apesar de tardia a

    PMIE pode ser uma referncia para a Europa, na forma como desenvolve e implementa

    polticas axiolgicas e integradas, contribuindo simultaneamente para uma Europa de

    direitos e com valores50

    dando assim, a todos, uma melhor perspectiva de futuro.

    48

    Factos e nmeros sobre a Poltica Comum da Pesca (PCP), CE 2004. 49

    COM (2006) 275 final, volume II: 7-9 50

    A dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de Direito, o respeito pelos

    direitos do Homem so os valores fundamentais da UE consagrados no Prembulo do Tratado de Lisboa.

    So comuns a todos os EM e qualquer pas europeu que queira tornar-se membro da UE tem de os

    respeitar. Defender estes valores, bem como a paz e o bem-estar dos povos da Unio so agora os

    objectivos principais da UE. Estes objectivos gerais so complementados por objectivos mais especficos,

    como a promoo da justia e da proteco sociais e a luta contra a excluso social e as discriminaes.

  • 27

    2.3 Livro Verde uma viso para os oceanos e os mares

    () torna-se especialmente necessrio termos uma poltica martima abrangente,

    orientada para o desenvolvimento de uma economia martima florescente e para a

    plena explorao do potencial das actividades centradas no mar, e de uma forma

    sustentvel para o ambiente. Esta poltica deve assentar na excelncia da investigao

    cientfica, da tecnologia e da inovao martima. Cit. nos objectivos estratgicos da

    Comisso Europeia para 2005-2009.

    A Comisso Europeia, em Junho de 2006, apresentou um Livro Verde sobre os

    diferentes aspectos de uma futura poltica martima comunitria. Esta obra realou a

    identidade e a supremacia martimas da Europa que devem ser preservadas, num

    perodo em que as presses sobre o ambiente comprometem a perenidade das

    actividades martimas. A poltica martima deve, consequentemente, ter por objectivo a

    formao de um sector martimo inovador, competitivo e respeitador do ambiente. Para

    alm das actividades martimas, a abordagem proposta integra tambm a qualidade de

    vida nas regies costeiras. O Livro Verde teve como objectivo lanar um debate sobre

    uma futura poltica martima para a Unio Europeia, caracterizado por uma abordagem

    holstica dos oceanos e dos mares.

    Ele tornou claro que, num perodo em que os recursos esto ameaados por

    presses fortes e pela crescente capacidade tecnolgica de os explorar, s uma atitude

    de profundo respeito pelos oceanos e pelos mares nos permitir continuar a desfrutar

    dos benefcios que eles nos oferecem. A reduo acelerada da biodiversidade marinha

    devido, nomeadamente, poluio, ao impacto das alteraes climticas e sobrepesca

    , desde j, um sinal de alarme inequvoco que no se pode ignorar.

    Assim, o Livro Verde baseou-se nas polticas e iniciativas da UE existentes e

    insere-se no contexto da Estratgia de Lisboa, procurando estabelecer o justo equilbrio

    entre as dimenses econmica, social e ambiental.

    Como tal, contribuiu largamente para que os europeus adquirissem uma nova

    conscincia da grandeza do seu patrimnio martimo, da importncia dos oceanos e do

    potencial dos oceanos para melhorar o bem-estar e aumentar as oportunidades

    econmicas.

  • 28

    A Comisso Europeia postulou que a poltica martima comunitria deve alicerar-

    se em dois pilares fundamentais.

    Em primeiro lugar, deve estar ancorada na Estratgia de Lisboa, estimulando o

    crescimento e a criao de mais e melhores empregos. O investimento permanente no

    conhecimento e nas competncias um factor essencial para manter a competitividade e

    garantir empregos de qualidade.

    Em segundo lugar, deve manter e melhorar o estado do recurso em que se baseiam

    todas as actividades martimas, ou seja, o oceano propriamente dito.

    Embora a utilizao destes pilares como base para a nova poltica martima possa

    parecer relativamente simples, h que no descurar duas caractersticas especficas do

    meio marinho.

    A primeira consiste na natureza global dos oceanos, que faz com que as relaes

    entre pases sejam, ao mesmo tempo, complementares e concorrenciais. Para regular as

    actividades martimas, no interesse do desenvolvimento sustentvel ao nvel mundial,

    necessrio elaborar regras aplicveis universalmente. Contudo, cada parcela de oceano e

    de mar singular e pode exigir as suas prprias regras e uma gesto mais especfica.

    Esta aparente contradio ilustrativa do motivo pelo qual a natureza global dos

    oceanos representa um to grande desafio para os decisores polticos.

    O outro desafio que se oferece a uma boa governao martima, directamente

    ligado ao aspecto anterior, prende-se com a multiplicidade dos intervenientes.

    Numerosas so as polticas sectoriais que surgiram e que existem a todos os nveis de

    poder: comunitrio, nacional, regional e local. Pode acontecer que intervenientes de

    agncias e pases diferentes ou organizaes internacionais estejam melhor colocados

    para adoptar as propostas de aco. Contudo, para que as decises sejam tomadas a um

    nvel mais prximo dos interessados, cumprindo-se o princpio da subsidiariedade, s

    devem ser desenvolvidas aces ao nvel da Unio Europeia, se tal conferir valor

    acrescentado s actividades de outros51

    .

    51

    COM (2006) 275 final, volume II: 5-6

  • 29

    2.4 reas-chave no Livro Verde

    Do Livro Verde constam diversas reas-chave que passamos a analisar.

    Meio marinho

    O meio marinho enfrenta, nomeadamente, os seguintes problemas: diminuio

    acelerada da biodiversidade (consequncias na realizao do potencial da

    biotecnologia azul), explorao excessiva dos recursos (consequncias para a pesca),

    alteraes climticas (consequncias para a pesca e para o turismo costeiro), poluio

    com origem terrestre, acidificao da gua do mar e a poluio provocada pelas

    descargas dos navios e os acidentes martimos (na falta de melhor segurana martima).

    Para diminuir o impacto destes fenmenos no meio-ambiente marinho dever reforar-

    se a legislao no domnio da segurana martima, introduzir-se a avaliao de riscos na

    elaborao das polticas e aplicar novas tecnologias ao nvel do tratamento de guas de

    lastro52

    .

    Investigao

    A investigao essencial para se poder definir estratgicas e tomar decises com

    conhecimento de causa. Todavia, os EM podem ir mais longe, coordenando os seus

    programas de investigao nacionais, a fim de realizar uma investigao pan-europeia e

    racionalizando meios. A cooperao entre investigadores e criadores de novas

    tecnologias assume tambm especial importncia.

    Inovao

    A inovao pode ajudar a encontrar solues em domnios em franca mutao,

    como o caso das energias e das alteraes climticas. As solues encontradas podem

    tambm beneficiar pases terceiros, quando estes optarem por um desenvolvimento

    sustentvel, e assim, podero constituir uma vantagem competitiva para estes. A energia

    52

    gua de lastro a gua do mar captada pelo navio para garantir a segurana operacional e estabilidade

    do mesmo. Em geral, os tanques so preenchidos com maior ou menor quantidade de gua para aumentar

    ou diminuir o calado dos navios durante as operaes porturias. A gua de lastro um risco pelo facto de

    transportar espcies exticas dentro dos tanques dos navios. Os seres vivos introduzidos pela gua de

    lastro podem variar entre organismos milimtricos at peixes com 30 centmetros. So inmeros os

    registos de bioinvaso por meio da gua de lastro no mundo inteiro.

  • 30

    elica, as turbinas movidas pelas correntes de mar e os recursos de gs e de petrleo

    dos grandes fundos marinhos podem representar novas fontes de energia.

    Mo-de-obra saber-fazer

    As actividades martimas precisam de atrair pessoas altamente qualificadas. No

    entanto, embora, no seu conjunto, o emprego no sector martimo europeu seja estvel53

    ,

    o nmero de martimos europeus est a diminuir. Ou seja, apesar de diminuir o nmero

    de trabalhadores no sector das pescas, o sector foi compensado por pujantes servios

    martimos tais como turismo e transporte martimo.

    O recrutamento, em nmero suficiente, de martimos e outros profissionais bem

    formados e competentes essencial para garantir a sobrevivncia do sector martimo,

    assim como para manter a vantagem concorrencial da Europa.

    O ensino e a formao no domnio martimo, devem ter por objectivo conferir aos

    potenciais candidatos as mais elevadas competncias, que possam abrir mltiplas

    perspectivas profissionais.

    A excelncia dos candidatos a emprego s ser garantida se se conseguir atrair para

    o ensino e formao no domnio martimo os jovens mais capazes. nesse quadro que

    importa lutar contra a imagem do sector. essencial oferecer aos martimos, homens e

    mulheres, condies de vida e de trabalho adequadas, ao nvel das expectativas a que os

    europeus se habituaram, com toda a legitimidade.

    Formao de clusters54

    O desenvolvimento de uma percepo comum das articulaes possveis entre os

    diferentes sectores martimos permitir melhorar a imagem e aumentar a atractividade e

    produtividade destes. Estes agrupamentos de empresas e de profissionais, que abrangem

    todos os sectores de actividade, podem assumir diversas formas. Assim, no domnio

    martimo preciso distinguir os clusters nacionais que servem frequentemente de

    53

    Ver o documento Employment, social and training aspects of maritime and fishing industries and related sectors http://ec.europa.eu/maritimeaffairs/pdf/SEC(2006)_689%20_2.pdf 54

    Remetendo em ingls para a noo de conjunto, o termo cluster designa um agrupamento de empresas do mesmo sector, presentes na maior parte das vezes numa mesma bacia de emprego. Mais

    precisamente, segundo Michael E. Porter, da Universidade de Harvard, um cluster uma concentrao de empresas ligadas entre si, de fornecedores especializados, de prestadores de servios e de instituies

    associadas (universidades, associaes comerciais, etc.).

  • 31

    transmissores de opinio para certos ramos ou profisses martimas dos clusters

    regionais. Estes ltimos consagram-se ao desenvolvimento da economia martima

    atravs da inovao e da aproximao entre investigao, formao e a indstria55

    .

    Os clusters podem contribuir para estimular a competitividade de todo um sector ou

    grupo de sectores. o que acontece se se partilhar conhecimentos, realizar projectos

    comuns de investigao e inovao (desenvolvimento de produtos), unir esforos no

    ensino e na formao, partilhar mtodos de organizao inovadores dentro de um grupo

    de empresas (aquisio e distribuio em comum) ou estratgias de promoo comuns,

    nomeadamente em matria de marketing e publicidade.

    A explorao do potencial oferecido pela formao de clusters pertinente em

    sectores com cadeias de abastecimento complexas, que envolvem produo e servios, e

    tambm com um grande nmero de pequenas e mdias empresas. esse o caso da

    construo naval. Na construo naval moderna, mais de 70% do navio acabado

    resulta do trabalho de uma vasta rede de fornecedores de sistemas, equipamentos e

    servios56

    . possvel disseminar as boas prticas ligando estes sectores entre si e

    transformando-os em redes de excelncia martima, que abranjam todos os sectores

    martimos, incluindo o dos servios.

    Qualidade de vida nas regies costeiras

    O litoral europeu foi em tempos povoado por comunidades que viviam da pesca.

    Com o desenvolvimento do transporte martimo local e internacional, foram-se

    construindo portos e emergiram novas actividades nas periferias. A procura de uma vida

    beira-mar, apenas pelo prazer que da decorre, um fenmeno relativamente recente.

    A Conferncia das Regies Perifricas Martimas da Europa (CRPM) sublinha que

    a atractividade natural (paisagem, horas de insolao e benefcios para a sade) d

    igualmente origem a um forte crescimento demogrfico, que no apresenta sinais de

    abrandamento57

    . Por exemplo, Portugal, com 75% da populao a viver no litoral,

    enfrenta neste domnio, indubitavelmente, grandes desafios e novas exigncias.

    55

    BERNARD-BRUNET, Patrick, 2007: 23 56

    Contributo da Associao dos Estaleiros Europeus de Construo e Reparao Naval (CESA) para o

    Livro Verde. 57

    Contributo da CRPM para o Livro Verde.

  • 32

    A concentrao demogrfica nas regies costeiras acarreta presses sobre o espao

    e o ambiente. Exige uma maior acessibilidade, em especial das pequenas ilhas, e uma

    maior mobilidade no seu interior, que passa pela melhoria das infra-estruturas de

    transporte. Obriga oferta de servios de interesse geral (sade, educao,

    abastecimento de gua e energia, telecomunicaes, servios postais, tratamento das

    guas residuais e dos resduos), a fim de promover a qualidade de vida nas zonas

    costeiras, especialmente durante as estaes altas do turismo. Nas regies rurais e

    remotas, as tecnologias da informao e da comunicao tm um papel a desempenhar

    no fornecimento de servios em linha: sade, ensino, acesso pblico Internet,

    actividade econmica, ajuda s empresas e teletrabalho58

    . Ao planear o

    desenvolvimento do litoral, h que ter em conta o seu impacto ambiental a fim de obter

    um resultado sustentvel.

    As zonas costeiras e as ilhas so elementos essenciais da atractividade e do xito do

    turismo costeiro. Para que a Europa permanea o primeiro destino turstico ao nvel

    mundial, tem que apoiar um turismo sustentvel nessas regies. O turismo sustentvel

    pode contribuir para o desenvolvimento das zonas costeiras e das ilhas, melhorando a

    competitividade das empresas, satisfazendo as necessidades sociais, promovendo o

    patrimnio natural e cultural e valorizando os ecossistemas locais. Para um nmero

    crescente de destinos tursticos, a necessidade de melhorar ou manter a sua atractividade

    constitui um incentivo para adoptar prticas e estratgias mais sustentveis e mais

    compatveis com o ambiente.

    Muitos desses destinos j realizam esforos para efectuar uma gesto integrada da

    qualidade, definindo estratgias com os seus parceiros, aplicando boas prticas e

    desenvolvendo instrumentos de acompanhamento e avaliao para ajustar a sua aco.

    A sua experincia poder ser utilizada para formular recomendaes destinadas a todos

    os destinos tursticos costeiros.

    A diversificao dos produtos e servios tursticos pode contribuir para a

    competitividade dos destinos costeiros e insulares, especialmente quando aos turistas

    oferecida a oportunidade de desfrutarem de locais de interesse cultural e natural,

    situados no litoral ou no hinterland rural ou urbano, bem como de uma variedade de

    58

    Iniciativa do Comit das Regies (CdR) de 12.10.2005 Poltica Martima da Unio Europeia: uma questo de desenvolvimento sustentvel para as autoridades locais e regionais.

  • 33

    atraces ligadas ao mar (observao dos mamferos marinhos, mergulho e arqueologia

    subaqutica, actividades nuticas e talassoterapia). Esta diversificao apresenta

    inmeras vantagens, designadamente uma menor presso nas praias, fontes alternativas

    de rendimento para antigos pescadores nas comunidades costeiras, e criao de novas

    actividades destinadas a apoiar a preservao e o desenvolvimento do patrimnio local.

    No caso de Portugal, para alm de possuir uma oferta turstica diversificada deve

    tirar partido da sua localizao geogrfica, como pas costeiro por excelncia, da forte

    tradio martima e de clima ameno que o caracteriza (lidera a lista de pases europeus

    em dias sol por ano).

    Estas mais-valias intrnsecas permitem o prolongamento da estao turstica

    gerando, assim, mais crescimento econmico e aumento do nmero de empregos a

    tempo inteiro. Desta forma, diluindo os picos de concentrao turstica, reduz o impacto

    ambiental das ac