gerações infancia

download gerações infancia

of 18

Transcript of gerações infancia

  • 7/30/2019 geraes infancia

    1/18

    361Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    GERAES E ALTERIDADE:INTERROGAES A PARTIR DA SOCIOLOGIA

    DA INFNCIA*

    MANUEL JACINTO SARMENTO**

    RESUMO: A sociologia da infncia prope-se a constituir a infnciacomo objecto sociolgico, resgatando-a das perspectivas biologistas, quea reduzem a um estado intermdio de maturao e desenvolvimento hu-mano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianas como in-divduos que se desenvolvem independentemente da construo socialdas suas condies de existncia e das representaes e imagens histori-camente construdas sobre e para eles. Porm, mais do que isso, a socio-logia da infncia prope-se a interrogar a sociedade a partir de um pon-to de vista que toma as crianas como objecto de investigao sociolgicapor direito prprio, fazendo acrescer o conhecimento, no apenas sobreinfncia, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada. Ainfncia concebida como uma categoria social do tipo geracional pormeio da qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da es-trutura social. O desafio a que nos propomos interrogar o modo comoconstructos tericos como gerao e alteridade se constituem comoportas de entrada para o desvelamento dos jardins ocultos em que as cri-anas foram encerradas pelas teorias tradicionais sobre a infncia e decomo esse conhecimento se pode instituir em novos modos de constru-

    o de uma reflexividade sobre a condio de existncia e os trajectos devida na actual situao da modernidade.

    Palavras-chave: Infncia. Gerao. Sociologia da infncia. Criana.Alteridade.

    * Este texto tem por base uma verso da comunicao ao 5 Congresso Portugus de Sociologia,na Universidade do Minho (Braga), de 12 a 15 de maio de 2004 (no publicada).

    ** Doutor em Estudos da Criana (rea de conhecimento em estudos scio-educativos) pela Uni-versidade do Minho e professor do Instituto de Estudos da Criana da mesma Universidade(Portugal). E-mail: [email protected]

  • 7/30/2019 geraes infancia

    2/18

    362

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    GENERATIONSANDALTERITY:QUESTIONSTOTHESOCIOLOGYOFCHILDHOOD

    ABSTRACT: The sociology of childhood intends to establish child-hood as a sociological object, rescuing it from the biological viewpoint,which reduces it to an intermediate maturation and human develop-ment stage, and from the psychological approach, which tends to lookat children as individuals who develop independently from the socialframework of their conditions of existence and from the different rep-resentations and pictures that have historically been built about andfor them. Moreover, the sociology of childhood proposes to questionsociety from a point of view that considers children as a per se object

    of sociological investigation, increasing knowledge on both childhoodand society as a whole. Childhood is thus conceived as a generationalcategory that reveals the possibilities and constraints of the socialstructure. The challenge we address is to question how such theoreti-cal constructs as generation and alterity are set up as gateways to thehidden gardens in which children have been confined by the tradi-tional theories on childhood and how such knowledge can create newways of building up reflexivity on both the conditions of existenceand the paths of life in the current situation of modernity.

    Key words: Childhood. Generation. Sociology of childhood. Chil-dren. Alterity.

    constituio e legitimao do campo cientfico da sociologia dainfncia est em curso em todo o mundo, desde h pouco maisde uma dcada. O desenvolvimento recente desse campo de es-

    tudos acompanha os progressos verificados no plano internacional, emque a sociologia de infncia foi reconhecida como o mais recente Comit

    de Pesquisa da Associao Internacional da Sociologia (ISA) e um dos lti-mos grupos de trabalho a serem criados no interior da Associao Inter-nacional de Socilogos de Lngua Francesa (AISLF). Tambm em Portugalo campo se encontra em constituio, tendo j originado os primeiroscursos de ps-graduao e produzido teses, nmeros temticos de revis-tas cientficas (Frum Sociolgico, 2000, e Educao, Sociedade e Culturas,2002) e projectos de investigao na rea. A constituio do campo con-cretiza-se na definio de um conjunto de objectos sociolgicos especfi-cos (no caso vertente, a infncia e a criana como actor social pleno), um

    conjunto de constructos tericos de referncia e um conjunto de investi-gadores implicados no desenvolvimento emprico e terico do conheci-mento.

  • 7/30/2019 geraes infancia

    3/18

    363Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    A sociologia da infncia prope-se a constituir a infncia comoobjecto sociolgico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a re-

    duzem a um estado intermdio de maturao e desenvolvimento huma-no, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianas como indiv-duos que se desenvolvem independentemente da construo social dassuas condies de existncia e das representaes e imagens historicamen-te construdas sobre e para eles. Porm, mais do que isso, a sociologia dainfncia prope-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vistaque toma as crianas como objecto de investigao sociolgica por direi-to prprio, fazendo acrescer o conhecimento, no apenas sobre infncia,

    mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada. A infncia concebida como uma categoria social do tipo geracional por meio daqual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura so-cial. O desafio a que nos propomos interrogar o modo como constructostericos como gerao e alteridade se constituem como portas de en-trada para o desvelamento dos jardins ocultos em que as crianas foramencerradas pelas teorias tradicionais sobre a infncia e de como esse co-nhecimento se pode instituir em novos modos de construo de umareflexividade sobre a condio de existncia e os trajectos de vida na actualsituao da modernidade.

    Gerao

    A primeira tarefa a que se prope a sociologia da infncia a deconsiderar a gerao uma categoria estrutural relevante na anlise dosprocessos de estratificao social e na construo das relaes sociais (porexemplo, Qvortrup, 2000; Alanen, 2001; Mayall, 2002). Essa tarefa nose realiza sem esforo, considerando a crtica a que o conceito de gera-o foi submetido, pela sua eventual diluio dos principais factoresde estratificao e, especialmente, por ocultar numa designao comumas diferenas e desigualdades de classe.

    O resgate do conceito de gerao impe a considerao da com-plexidade dos factores de estratificao social e a convergncia sincrnicade todos eles; a gerao no dilui os efeitos de classe, de gnero ou deraa na caracterizao das posies sociais, mas conjuga-se com eles, numa

    relao que no meramente aditiva nem complementar, antes se exercena sua especificidade, activando ou desactivando parcialmente esses efei-tos.

  • 7/30/2019 geraes infancia

    4/18

    364

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    A reentrada do conceito de gerao na anlise sociolgica impea sua reconceptualizao. A tradio mais forte da anlise do conceito de

    gerao radica na obra de Karl Mannheim (1993[1928]). Para o socilo-go hngaro, o conceito de gerao entronca na sociologia do conhecimen-to que se props a levar a cabo e corresponde a um fenmeno cuja nature-za essencialmente cultural: a gerao consiste num grupo de pessoasnascidas na mesma poca, que viveu os mesmos acontecimentos sociais du-rante a sua formao e crescimento e que partilha a mesma experincia his-trica, sendo esta significativa para todo o grupo, originando uma consci-ncia comum, que permanece ao longo do respectivo curso de vida. A aco

    de cada gerao, em interaco com as imediatamente precedentes, originatenses potenciadoras de mudana social. A mudana social interpretadapor Mannheim fundamentalmente como evoluo intelectual da socie-dade.

    O conceito que aqui est patente atribui gerao uma forte iden-tidade histrica, visvel quando nos referimos, por exemplo, geraodo ps-guerra, identificando nela o conjunto de pessoas que nasceram ecresceram nas condies histricas da reconstruo europeia, aps a Se-

    gunda Guerra Mundial, ou, numa perspectiva mais acentuadamente cul-tural, quando evocamos a gerao de 70, para referenciar o conjuntode intelectuais portugueses do sculo XIX que, nascidos em pleno pero-do romntico, afirmaram a sua diferena em face da gerao anterior pormeio de uma atitude artstica realista, socialmente implicada com amodernizao cultural e social do pas e intelectualmente crtica dos va-lores sociais dominantes na poca.

    Jens Qvortrup (1991, 2000), na sua apropriao do conceito de

    gerao como categoria social estruturante da infncia, mobiliza deMannheim fundamentalmente a dimenso estrutural da respectiva defi-nio, ou seja, des-historiza o constructo para acentuar os aspectos pre-dominantemente estruturais. Gerao assumida como uma varivelindependente, trans-histrica, estando prioritariamente ligada aos aspec-tos demogrficos e econmicos da sociedade. A infncia independentedas crianas; estas so os actores sociais concretos que em cada momentointegram a categoria geracional; ora, por efeito da variao etria dessesactores, a gerao est continuamente a ser preenchida e esvaziada

    dos seus elementos constitutivos concretos. A gerao o que permane-ce, como categoria estrutural, sendo prioritariamente definida porfactores igualmente estruturais: a estabilidade e a mudana demogrfica

  • 7/30/2019 geraes infancia

    5/18

    365Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    (por exemplo, Saporiti, 1994); o impacto que sofre das polticas sociais;os efeitos que recebe e que produz nos movimentos de longo curso e na

    sustentabilidade dos sistemas constitutivos do Estado-Providncia; aafectao especfica do produto e a respectiva distribuio; o envolvi-mento nas relaes de produo e de consumo etc. Esta perspectiva es-truturalista tende a privilegiar na anlise as relaes intergeracionais e asecundarizar as relaes intrageracionais e os aspectos culturais e simbli-cos da infncia.

    Num comentrio crtico s posies estruturalistas na sociologiada infncia, Leena Alanen (2001) procura resgatar a conceptualizao

    mannheimiana, sublinhando a potencialidade heurstica do conceito degerao como varivel dependente, isto , como grupo de idadeconstrudo pelos respectivos actores, no quadro das respectivas interacese dos processos de construo simblica dos seus referenciais de existn-cia. Sem abandonar as dimenses estruturais, mas cruzando-as com asrelaes internas gerao e os respectivos processos de simbolizao doreal, a autora prope-se a interpretar o complexo dispositivo de proces-sos sociais por meio dos quais as crianas so construdas na sua identi-dade social e diferenciadas dos adultos, o que envolve a aco social(agency) das crianas, sendo um processo que se estabelece na prticasocial (Alanen, 2001, p. 20-21). Desse modo, a autora tematiza a gera-o simultaneamente como varivel dependente de aspectos estruturaismais vastos e como varivel independente, pelos efeitos estruturantes daaco das crianas como actores sociais, e como tpico de anlise externada infncia, pela abordagem das relaes intrageracionais com a geraoadulta, e tpico de anlise interna sobre as relaes intrageracionais emque a infncia (tambm ) se (auto)constitui.

    Alargando as perspectivas interaccionistas de Alanen, julgamos serpossvel a reconstruo do conceito de gerao, considerando, para almdas suas dimenses externas e internas e de varivel independente ou de-pendente, os elementos sincrnicos e diacrnicos presentes na respectivaconstruo social. O objectivo historicizar o conceito de gerao, semperder de vista as dimenses estruturais e interaccionais.

    A infncia historicamente construda, a partir de um processo delonga durao que lhe atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases

    ideolgicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade. Esse pro-cesso, para alm de tenso e internamente contraditrio, no se esgotou. continuamente actualizado na prtica social, nas interaces entre crian-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    6/18

    366

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    as e nas interaces entre crianas e adultos. Fazem parte do processo asvariaes demogrficas, as relaes econmicas e os seus impactos dife-

    renciados nos diferentes grupos etrios e as polticas pblicas, tanto quan-to os dispositivos simblicos, as prticas sociais e os estilos de vida decrianas e de adultos. A gerao da infncia est, por consequncia, numprocesso contnuo de mudana, no apenas pela entrada e sada dos seusactores concretos, mas por efeito conjugado das aces internas e exter-nas dos factores que a constroem e das dimenses de que se compe.

    A variao de todas estas dimenses assncrona, isto , no decor-re sempre no mesmo sentido, sendo diferente, em cada momento, o peso

    de cada uma das variveis em presena. Por exemplo: a alterao das po-lticas pblicas no que respeita ao alargamento da escolaridade tem im-pactos tanto nos cotidianos das crianas quanto na conceptualizao quedelas temos, por efeitos correlativos na entrada no mundo do trabalho,na possibilidade de condies autnomas de existncia e no peso das res-ponsabilidades sociais; alis, isso significativo em Portugal, onde nas trsltimas dcadas ocorreram importantes mudanas nos anos de frequnciae nas taxas de abandono da escolaridade obrigatria, colocando a posio

    estrutural das crianas que actualmente frequentam este nvel de escola-ridade numa posio muito distinta com relao dos seus pais, ao tra-balho escolar, expectativa de frequncia, s aspiraes de emprego etc.Um outro exemplo: a introduo dos jogos vdeos e informticos alterouparcialmente o tipo de brinquedos e o uso do espao-tempo ldico dascrianas, gerou novas linguagens e desenvolveu apetncias de consumo,que no podem deixar de ser considerados na anlise contempornea dasculturas e das relaes de pares das crianas, nomeadamente pelos efeitosno aumento da assimetria do poder de compra e nas desigualdades soci-ais, com impactos na composio de uma infncia global, consumido-ra dos mesmos produtos, sobretudo os emanados da indstria culturalpara a infncia, mas com profunda heterogeneidade interna.

    Relaes intra e intergeracionais historicizadas

    Em suma, o conceito de gerao no s nos permite distinguir oque separa e o que une, nos planos estrutural e simblico, as crianas

    dos adultos, como as variaes dinmicas que nas relaes entre crian-as e entre crianas e adultos vai sendo historicamente produzido e ela-borado. Por outras palavras, a gerao um constructo sociolgico

  • 7/30/2019 geraes infancia

    7/18

    367Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    que procura dar conta das interaces dinmicas entre, no planosincrnico, a gerao-grupo de idade, isto , as relaes estruturais e sim-

    blicas dos actores sociais de uma classe etria definida e, no planodiacrnico, agerao-grupo de um tempo histrico definido, isto o modocomo so continuamente reinvestida de estatutos e papeis sociais e de-senvolvem prticas sociais diferenciadas os actores de uma determinadaclasse etria, em cada perodo histrico concreto. So as mtuas impli-caes da infncia como grupo de idade nas sucessivas infncias histo-ricamente datadas e suas relaes com os adultos (eles prpriosdefinveis pelo estatuto histrico contemporneo e pelas formas hist-

    ricas de adultez que se foram fazendo, refazendo e consolidando) o que,em sntese se inscreve no projecto cientfico da sociologia da infncia.Esse projecto no pode deixar de ser iniciado pela anlise da

    construo histrica da infncia. Longe de ser meramente constitudapor factores biolgicos, correspondentes ao facto de ser integrada porum grupo de pessoas que tm em comum estarem nos seus primeirosanos de vida, a infncia deve a sua natureza sociolgica, isto , o cons-tituir-se como um grupo com um estatuto social diferenciado e no

    como uma agregao de seres singulares, construo histrica de umconjunto de prescries e de interdies, de formas de entendimento emodos de actuao, que se inscrevem na definio do que admissvele do que inadmissvel fazer com as crianas ou que as crianas faam.Em primeiro lugar, a gnese do(s) sentimento(s) da infncia (Aris,1973), desenvolveu uma conscincia de alteridade das crianas em re-lao aos adultos, que decisiva para essa construo histrica, com umcontnuo, dinmico e distinto (em face da Antiguidade) processo dedesenvolvimento desde o dealbar da modernidade.

    A construo moderna da infncia correspondeu a um trabalho deseparao do mundo dos adultos e de institucionalizao das crianas.Nessa separao, a criao de creches e da escola pblica (Ramirez, 1991)teve um papel determinante, configurando-se, uma e outras, como asprimeiras instituies da modernidade directamente orientadas para umgrupo geracional (at ento, as escolas conventuais e os colgios religiososeram indistintamente frequentados por crianas e adultos). A generaliza-o da escola e a sua transformao como escola de massas promoveram,

    num movimento comum, a institucionalizao da infncia e da escolapblica (idem, ibid.), movimento este que no deixou de se expandircontinuamente at hoje; a escola, com extenso no espao-mundo, gene-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    8/18

    368

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    ralizao progressiva ainda que longe de atingir a universalizao doacesso para todos e para todas e alargamento dos anos de escolaridade

    e do tempo efectivo de frequncia; a infncia, por meio da universalizaode estatutos e direitos, no mbito quer do direito internacional, quer daconstituio de uma infncia global (Toms & Soares, 2004). A separa-o das crianas relativamente s outras geraes no ocorreu, porm, ape-nas nem primordialmente por meio da criao de instituies para ascrianas. A par disso, com fortes vinculaes nesse processo de institu-cionalizao, desenvolveu-se um trabalho de construo simblica da in-fncia, tambm ele enraizado em condies histricas complexas (Becchi

    & Julia, 1998), que promoveu, progressivamente, um conjunto de ex-cluses das crianas do espao-tempo da vida em sociedade.H uma negatividade constituinte da infncia, que, em larga medi-

    da, sumariza esse processo de distino, separao e excluso do mundosocial. A prpria etimologia encarrega-se de estabelecer essa negatividade:infncia a idade do no-falante, o que transporta simbolicamente o lugardo detentor do discurso inarticulado, desarranjado ou ilegtimo; o aluno o sem-luz; criana quem est em processo de criao, de dependncia, de

    trnsito para um outro. Como consequncia, as crianas tm sido sobretu-do lingustica e juridicamente sinalizadas pelo prefixo de negao (soinimputveis; juridicamente incompetentes) e pelas interdies sociais (novotar, no eleger nem ser eleitos, no se casar nem constituir famlia, notrabalhar nem exercer uma actividade econmica, no conduzir, no con-sumir bebidas alcoolcicas etc.). Certamente que estas interdies se sus-tentam numa prtica de proteco, constituem, quase todas elas, avanoscivilizatrios e no est em causa a sua radical abolio. Apenas se subli-nha, aqui, um efeito simblico de conceptualizao e representao scio-jurdica da infncia pela determinao dos factores de excluso e no,prioritariamente, pelas caractersticas distintivas ou por efectivos direitosparticipativos: em ltima anlise, a negatividade constitutiva da infnciaexprime-se na ideia da menoridade: criana o que no pode nem sabedefender-se, o que no pensa adequadamente (e, por isso, necessita deencontrar quem o submeta a processos de instruo), o que no tem va-lores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moral-mente).

    A interdio simblica de pensar as crianas a partir da positividadedas suas ideias, representaes, prticas e aces sociais por outras pala-vras, a ruptura dos adultos com o pensamento infantil, no como pensa-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    9/18

    369Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    mento distinto, mas como pensamento ilegtimo, incompetente, impr-prio e inadequado , sendo filosfica e pedagogicamente construda, teve

    efeitos considerveis historicamente na regulao das relaes sociais e nomodo de funcionamento das instituies, especialmente no Ocidente.Importa aqui ressalvar que um olhar sobre prticas culturais e sociais deoutras formaes sociais no Oriente e no Hemisfrio Sul, ou de grupostnicos minoritrios na Europa, pode permitir encontrar representaesda infncia que no se caracterizam pela excluso das crianas da vidacolectiva e que, inclusive, incluem as crianas em prticas sociaiscomumente consideradas como adultas, nomeadamente no que respeita

    ao trabalho, ao casamento e participao cvica (por exemplo, Silva etal., 2001).Os efeitos deste processo resultaram numa considervel ambiva-

    lncia: a separao da infncia do mundo dos adultos permitiu criar me-didas de proteco, que garantiram condies sem precedentes de defesae de segurana das crianas, a par da instaurao de uma norma de defe-sa da criana constitutiva de uma imagem de criana-rei (Aris, 1986),em torno da qual se organiza a vida familiar, se projectam as aspiraes

    parentais, se sustentam polticas pblicas direccionadas para a famlia; aomesmo tempo, as posies paternalistas estabeleceram condies de de-pendncia que favorecem uma efectiva menorizao das crianas,potenciam a assimetria de poderes nas relaes intergeracionais e consti-tuem fortes constrangimentos de exerccio de uma vida social plena pelascrianas. No obstante, importa sublinhar que as medidas de protecono apenas no foram capazes de se declararem perfeitas, universais ecompetentes na efectiva salvaguarda dos direitos das crianas como a re-lao de dependncia tem gerado situaes abusivas que reforam avulnerabilidade estrutural das crianas, nomeadamente em cenrios deguerra, em face de calamidades como a fome ou a doena, ou ainda nasformas trgicas de explorao sexual, da escravatura, da militarizao oudas piores formas de trabalho infantil (cf., por exemplo, Annan, 2001).As desigualdades sociais associadas ao processo de globalizao hegem-nica em curso no tm seno acentuado estas condies.

    Em sntese, a construo simblica da infncia na modernidadedesenvolveu-se em torno de processos de disciplinao da infncia

    (Foucault, 2000), que so inerentes criao da ordem social dominantee assentaram em modos de administrao simblica, com a imposiode modos paternalistas de organizao social e de regulao dos cotidia-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    10/18

    370

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    nos, o desapossamento de modos de interveno e a desqualificao davoz das crianas na configurao dos seus mundos de vida e a coloniza-

    o adultocentrada dos modos de expresso e de pensamento das crian-as. Este processo se encontra incompleto e o seu curso tem vindo aacentuar os paradoxos da condio social da infncia contempornea. Naverdade, a histria da infncia no se extingue com a modernidade tar-dia, nem as contradies sociais contemporneas se estabelecem como ohorizonte temporal da morte da infncia (Postman, 1983). Bem pelocontrrio, as encruzilhadas da infncia contempornea no fazem senorealar a sua diferena como categoria geracional distinta, nos planos es-

    trutural e simblico (Sarmento, 2004). essa diferena que compete sociologia da infncia esclarecer. No entanto, torna-se prioritrio esclare-cer, no plano terico-analtico, que, dentro de um modelo comum dedesenvolvimento danormada infncia, absolutamente indispensvelconsiderar a diversidade das condies de existncia das crianas e seusefeitos e consequncias sociais.

    Diversidade

    As condies sociais em que vivem as crianas so o principal factorde diversidade dentro do grupo geracional. As crianas so indivduoscoma sua especificidade biopsicolgica: ao longo da sua infncia percorremdiversos subgrupos etrios e varia a sua capacidade de locomoo, de ex-presso, de autonomia de movimento e de aco etc. Mas as crianas sotambm seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos diversos modosde estratificao social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raa, ognero, a regio do globo onde vivem. Os diferentes espaos estruturais

    diferenciam profundamente as crianas.Uma criana da classe mdia europeia, do gnero masculino, do gru-

    po etrio, por exemplo, dos 6 aos 12 anos, da etnia dominante e raa bran-ca tem muito mais possibilidades de viver com sade, de aceder educa-o escolar, de ter tempo para brincar e de aceder a alimentos, roupas,condies de habitao, jogos e espaos de informao e lazer que uma cri-ana do mesmo grupo etrio, mas que tenha nascido em frica ou na Am-rica do sul, pertencente a meios populares e que integre o gnero femini-

    no: so muito menores, neste caso, as possibilidades de estudar, brincar eaceder a bens de consumo, e muito maiores as possibilidades de estar do-ente e de ter sobre os ombros as responsabilidades e os encargos domsti-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    11/18

    371Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    cos. Esta comparao, um pouco trivial, ilustrativa da diversidade socialdas crianas, que ocorre se tomarmos cada um dos factores de estratificao

    por si, ou se considerssemos a todos no seu conjunto.A sociologia da infncia tem vindo a assinalar a presena destas va-

    riaes intrageracionais e recusa uma concepo uniformizadora da in-fncia. No obstante, considera, para alm das diferenas e desigualda-des sociais que atravessam a infncia, que esta deve ser considerada, noplano analtico, tambm nos factores de homogeneidade, como uma ca-tegoria social do tipo geracional prpria. Isso significa que se considera ainfncia nos factores sociais posio de classe, ao gnero, etnia, raa,

    ao espao geogrfico de residncia. As crianas, todas as crianas, no tmdireito de voto, nem de ser eleitos para funes polticas de governao so mesmo o nico grupo social interditado de participar nos poderesconstitudos pelos regimes democrticos. As crianas, todas as crianas,so socialmente compungidas frequncia escolar em praticamente to-dos os pases do mundo (com efeito, so residuais os pases que no pro-clamaram a obrigatoriedade escolar) e a escola, pelo menos a escola ele-mentar, configura-se como uma instituio que se disseminou no espaomundial segundo formas muito similarmente estruturadas, orientadapara um nico grupo geracional. As crianas, pelo menos nos seus anosiniciais de vida, so incapazes de sobreviver sozinhas, impondo o cuida-do dos adultos, os quais, por isso, com elas contraem uma obrigaotendencial e progressivamente regulada de proteco jurdica e de defesaante a vulnerabilidade constitutiva. As crianas, finalmente, possuem mo-dos diferenciados de interpretao do mundo e de simbolizao do real,que so constitutivos das culturas da infncia, as quais se caracterizampela articulao complexa de modos e formas de racionalidade e de aco.

    Por isso a sociologia da infncia costuma fazer, contra a orientaoaglutinante do senso comum, uma distino semntica e conceptual entreinfncia, para significar a categoria social do tipo geracional, e criana, re-ferente ao sujeito concreto que integra essa categoria geracional e que, nasua existncia, para alm da pertena a um grupo etrio prprio, sempreum actor social que pertence a uma classe social, a um gnero etc.

    Alteridade

    , fundamentalmente, sobre as condies e caractersticas que fa-zem a diferena do grupo geracional infncia que se debrua a sociolo-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    12/18

    372

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    gia da infncia. Esta, com efeito, no uma mera anlise sociolgicaaplicada a um grupo etrio definido. Ao circunscrever o objecto teri-

    co, constri as condies da sua especificidade.Entronca aqui uma questo epistemolgica importante: a diferen-

    a do objecto terico reside no acto constitutivo da cincia que opera so-bre o real uma operao de inscrio de categorias constitutivas, ou, aocontrrio, essa diferena resulta de elementos empiricamente verificveis,anteriores e externos interrogao questionadora no campo, ainda ques reconhecveis pelo trabalho de categorizao que o trabalho cientficooperou? Esta questo epistemolgica possui uma grande actualidade so-

    ciolgica e por ela que passa a diferena entre a razo escolstica e osaber prtico, para utilizar os termos de Bourdieu (1997).

    A proposta mais consistente a de que a alteridade da infncia cons-titui um elemento de referenciao do real que se centra numa anlise con-creta das crianas como actores sociais, a partir de um ponto de vista querecusa as lentes interpretativas propostas pela cincia moderna, a qualtematizou as crianas predominantemente como estando numa situaode transitoriedade e de dependncia. Neste domnio, a psicologia do de-

    senvolvimento tem sido a mais consistente promotora de uma represen-tao social da infncia sustentada na incompletude, na incompetncia ena imperfeio das formas de pensamento, que, por isso mesmo, necessi-ta de acompanhamento e promoo nas sucessivas etapas de desenvolvi-mento, legitimando no apenas o controlo adulto mas a assimetria radi-cal de poderes intergeracionais na conduo da vida das crianas, mesmoapesar de as metodologias construtivistas que preconiza afirmarem a indis-pensabilidade da participao das crianas nas tarefas de assimilao e aco-

    modao de conhecimentos e de valores (para uma crtica psicologia dodesenvolvimento, cf., por exemplo, Burnan, 1994).O que se preconiza, em alternativa, uma mudana de perspecti-

    va no campo interdisciplinar dos estudos da criana, em especial no cam-po sociolgico. A investigao das crianas com base na infncia comocategoria geracional prpria, o reconhecimento crtico da alteridade dainfncia (a par do esclarecimento dos diversos sentidos em que essa alte-ridade se exprime, no quadro de um reconhecimento das crianas como

    os mltiplos-outro, perante os adultos, por efeito da variedade de condi-es sociais) e ainda o balano crtico das perspectivas tericas que cons-truram o objecto infncia como a projeco do adulto em miniatura ou

  • 7/30/2019 geraes infancia

    13/18

    373Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    como o adulto imperfeito em devir, tudo isso o que aqui se preconiza,num esforo simultaneamente desconstrucionista de constructos pr-fi-

    xados e de investigao emprica. Esta mudana de perspectiva ou, sepreferirmos esta mudana paradigmtica (James et al., 1998) consti-tui o esforo terico principal da sociologia da infncia.

    A porta de entrada para o estudo da alteridade da infncia a acodas crianas e as culturas da infncia.

    As culturas das crianas so um conjunto estvel de actividadesou rotinas, artefactos, valores e ideias que as crianas produzem e parti-lham em interaco com os seus pares (Corsaro & Eder, 1990). Estasactividades e formas culturais no nascem espontaneamente; elas consti-tuem-se no mtuo reflexo das produes culturais dos adultos para ascrianas e das produes culturais geradas pelas crianas nas suasinteraces. No so, portanto, redutveis aos produtos da indstria paraa infncia e aos seus valores e processos, ou aos elementos integrantes dasculturas escolares. So aces, significaes e artefactos produzidos pelascrianas que esto profundamente enraizados na sociedade e nos modosde administrao simblica da infncia (de que o mercado e a escola so

    integrantes centrais, a par das polticas pblicas para a infncia).As culturas da infncia so resultantes da convergncia desigual de

    factores que se localizam, numa primeira instncia, nas relaes sociaisglobalmente consideradas e, numa segunda instncia, nas relaes intere intrageracionais. Essa convergncia ocorre na aco concreta de cada cri-ana, nas condies sociais (estruturais e simblicas) que produzem a pos-sibilidade da sua constituio como sujeito e actor social. Este processo criativo tanto quanto reprodutivo. O que aqui se d visibilidade, neste

    processo, que as crianas so competentes e tm capacidade de formu-larem interpretaes da sociedade, dos outros e de si prprios, da natu-reza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distin-to e de o usarem para lidar com tudo o que as rodeia.

    O desafio hermenutico colocado sociologia da infncia consistena compreenso deste processo de reproduo interpretativa (Corsaro,1997), constitutivo das identidades individuais de cada criana e do es-tatuto social da infncia como categoria geracional. Esse desafio com-

    partilhado por outras cincias sociais, nomeadamente a antropologia, ascincias da educao e mesmo a psicologia, em vrias das suas formula-es mais recentes sobre a infncia. No entanto, impe um trabalho de

  • 7/30/2019 geraes infancia

    14/18

    374

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    desconstruo de muitas das bases tericas com que as crianas foram sis-tematicamente tematizadas nas cincias sociais.

    E em primeiro lugar na sociologia, onde o conceito de socializa-o, com razes na obra de Emile Durkheim, remeteu as crianas para acondio de seres pr-sociais, assim tematizadas como objecto de um pro-cesso de inculcao de valores, normas de comportamento e de saberesteis para o exerccio futuro de prticas sociais pertinentes. O conceito,nas suas mltiplas reinterpretaes futuras, incorpora sedimentalmente ahistria de uma produo terica sociolgica que se ocupou sempre dascrianas como objectos manipulveis, vtimas passivas ou joguetes cultu-

    ralmente neutros, subordinados a modos de dominao ou de controlosocial, que assumiam a garantia da sua continuidade precisamente poresse trabalho de conduo para os lugares, os comportamentos, as atitu-des ou as prticas sociais pertinentes. A desconstruo do conceito de so-cializao inerente emancipao da infncia como objecto terico e interpretao das crianas como seres sociais plenos, dotados de capaci-dade de aco e culturalmente criativos (para a reviso da literatura crti-ca ao conceito de socializao, cf. Jenks, 1996; Corsaro, 1997;

    Montandon, 1998; Sirota, 1998).De modo idntico, a reviso dos fundamentos teleolgicos e dolinearismo evolutivo da tradio psicolgica desenvolvimentista tem per-mitido abrir novas perspectivas interpretativas da aco infantil, conside-rando-a na sua complexidade e na sua dimenso de competncia espec-fica, isto , como dotada de um sentido prprio, pertinente e adequadoaos contextos de vida das crianas. Em especial, a reviso da psicologia(seja piagetiana, seja freudiana) pe em causa a concepo dominante da

    criana como um ser essencialmente narcsico e egocntrico, para consi-derar a dimenso relacional e interaccional constitutiva da aco infantil.No entanto, se a evoluo das cincias sociais que estudam a in-

    fncia seguiu no sentido do reconhecimento da autonomia das formasculturais, a inventariao dos princpios geradores e das regras das cul-turas da infncia uma tarefa terica e epistemolgica que se encontra,em boa medida, por realizar.

    Noutros textos (Sarmento, 2003 e 2004), procurei enunciar al-

    guns traos identificadores da gramtica das culturas da infncia, isto dos princpios de estruturao do sentido que lhe so caractersticos.Como hiptese a explorar, pode avanar-se a ideia de que as crianas es-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    15/18

    375Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    tabelecem uma deslocao sobre os princpios lgicos estruturantes dasgramticas culturais adultas (sobretudo s culturas ocidentais de matriz

    europeia; as culturas no-ocidentais no se estruturam necessariamentesobre os mesmos princpios lgicos) e, especialmente, sobre os princpiosda identidade e da sequencialidade. Para as crianas, no mbito do jogosimblico, o objecto referenciado no perde a sua identidade prpria e ,ao mesmo tempo, transmutado pelo imaginrio: a criana veste a per-sonagem da me, do beb, do mdico ou do cientista maluco sem per-der a noo de quem e transforma os objectos mais vulgares nos maisinverossmeis artefactos a caixa de carto no automvel, o lpis de cera

    no baton, uma caixa de bolachas no tesouro escondido dos piratas Domesmo modo, a criana funde os tempos presente, passado e futuro,numa recursividade temporal e numa reiterao de oportunidades que muito prpria da sua capacidade de transposio no espao-tempo e defuso do real com o imaginrio (Walter Benjamin, por exemplo, tem p-ginas admirveis sobre esta capacidade de transmutao infantil, cf. Ben-jamin, 1992). A alterao da lgica formal no significa que as crianastenham um pensamento ilgico. Pelo contrrio, essa alterao, estandopatente na organizao discursiva das culturas da infncia (especialmenteno que respeita ao jogo simblico), coexistente com uma organizaolgico-formal do discurso, a qual permite que a criana simultaneamentenavegue entre dois mundos o real e o imaginrio explorando as suascontradies e possibilidades (Harris, 2002, p. 232). Em contrapartida,os princpios lgicos alterados tambm no so exclusivamente integran-tes das culturas da infncia, sendo inerentes aos processos de construoda linguagem potica, na qual a subverso do princpio da identidade eda sequencialidade so constitutivos dos respectivos processos de signifi-

    cao. De algum modo, as culturas da infncia e a poesia tm afinidades,de que, de resto, muitos poetas se aperceberam: crianas so as letras an-tigas com que se escreve a nica palavra insuportavelmente viva (HerbertoHlder, Poesia toda).

    Concluso

    A incluso do conceito de gerao na anlise das relaes sociais

    contemporneas parece ser uma indisfarvel necessidade, no apenasporque os processos de estratificao social tm uma dimenso (tambm)geracional, mas tambm porque as relaes intergeracionais tm consti-

  • 7/30/2019 geraes infancia

    16/18

    376

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    Disponvel em

    tudo um aspecto vital na mudana social. A reconceptualizao da ge-rao, operada pela sociologia da infncia com base em referncias cls-

    sicas, visa tornar patente o processo scio-histrico de constituio dasgeraes, de relao entre diferentes grupos geracionais, e os aspectos sim-blicos constitutivos da diferena entre geraes, seja no plano diacrnico,seja no plano sincrnico.

    As mudanas sociais que a infncia tem sofrido, como categoria es-trutural, bem como o modo como as crianas contribuem pela sua acopara a sociedade contempornea esto no centro desse trabalho de recon-ceptualizao. A cincia coloca a si mesma problemas que so suscitados

    pela prtica social. Como repetidamente tem sido dito, a entrada das cri-anas na primeira pgina dos jornais e o progressivo interesse da sociolo-gia pela infncia no so fenmenos que caminhem separadamente. A si-tuao da infncia contempornea convida interrogao sociolgicasobre as promessas incumpridas da modernidade ante a infncia comefeito, como afirma Qvortrup (2000), est por fazer o balano dos gan-hos da modernidade, e de alguns dos seus mitos fundadores (o progres-so, a racionalidade, o individualismo), a partir do ponto de vista das cri-anas , assim como a reflexividade social continuamente alimentadapela produo terica, nomeadamente a sociolgica, constitutiva de ima-gens, representaes sociais e orientaes da aco das crianas. Entroncaaqui, uma vez mais, a responsabilidade social da sociologia.

    Responsabilidade esta tanto maior quanto sabemos que, ao falar-mos de crianas, no estamos verdadeiramente apenas a considerar as ge-raes mais novas, mas a considerar a sociedade na sua multiplicidade, aonde as crianas nascem, se constituem como sujeitos e se afirmam comoactores sociais, na sua diversidade e na sua alteridade diante dos adultos.

    Recebido em novembro de 2004 e aprovado em maro de 2005.

    Referncias bibliogrficas

    ALANEN, L. Explorations in gerational analysis. In:ALANEN, L.; MAYALL,B. (Org.). Conceptualizing child-adult relations. London: Routledge,

    2001. p. 11-22.ANNAN, K.A. We the children: meeting the promises of the WorldSummit for Children. New York: UNICEF, 2001.

  • 7/30/2019 geraes infancia

    17/18

    377Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Manuel Jacinto Sarmento

    ARIS, P. Lenfant et la vie familiale sous lAncien Rgime. Paris: Seuil, 1973.

    ARIS, P. La infncia. Revista de Educacin, Madrid, n. 281, p. 5-17, 1986.BECCHI, DE.; JULIA, D. (Dir.). Histoire de lenfance en Occident. Paris:Seuil, 1998. 2v.

    BENJAMIN, W. Rua de sentido nico e infncia em Berlim por volta de1900. Lisboa: Relgio de gua, 1992.

    BOURDIEU, P. Mditations pascaliennes. Paris: Seuil, 1997.

    BURMAN, E. Deconstructing development psychology. New York: Plenum,1994.

    CORSARO, W.A. The sociology of childhood. London: Pine Forge, 1997.

    CORSARO, W. A.; EDER, D. Childrens peer cultures.Annual Review ofSociology, 16, p. 197-220, 1990.

    EDUCAO, SOCIEDADE E CULTURAS, Porto, n. 17, 2002. N-mero temtico: Crescer e aparecer ou para uma sociologia da infncia.

    FRUM SOCIOLOGICO, Lisboa, n. 3/4 (2 srie), 2000. Dossier: Ascores da infncia.

    FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 2000.

    HARRIS, P. Penser ce qui aurait pu arriver si... Enfance, Paris,vol. 54(Le monde fictif de lenfant), p. 223-239, 2002.

    JAMES, A.; JENKS, C.; PROUT, A. Theorizing childhood. Cambridge:

    Polity, 1998.JENKS, C. Childhood.London: Routledge, 1996.

    MANNHEIM, K. Ideologia e utopia: introduccin a la sociologia del cono-cimiento. Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1993 [1928].

    MAYALL, B. Towards a sociology for childhood: thinking from childrens lives.Buckingham: Open University, 2002.

    MONTANDON, C. La sociologie de lenfance: lessor des travaux enlangue anglaise. Education et Socits, n. 2, p. 91-118, 1998.

    POSTMAN, N. The disappearance of childhood. London: Penguin, 1983.

  • 7/30/2019 geraes infancia

    18/18

    378

    Geraes e alteridade: interrogaes a partir da sociologia da infncia

    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005

    QVORTRUP, J. Childhood as a social phenomenon: an introduction to aseries of national reports. Vienne: European Centre, 1991.

    QVORTRUP, J. Generations: an important category in sociological re-search. In: CONGRESSO Internacional dos Mundos Sociais e Culturaisda Infancia, Braga, 2000. Actas... Braga: Universidade do Minho,Instituto de Estudos da Criana, 2000. v.2 p. 102-113.

    RAMIREZ, F.O. Reconstitucin de la infncia: extensin de la condicinde persona y ciudadano. Revista de Educacin, Madrid, n. 194, p. 197-220, 1991.

    SAPORITI, A. A methodology for making children count. In: QVORTRUP,J. (Ed.). Childhood matters. Aldershot: Avebury, 1994.

    SARMENTO, M.J. Imaginrio e culturas da infncia. Cadernos de Educa-o, Pelotas,v. 12, n. 21, p. 51-69, 2003.

    SARMENTO, M.J. As culturas da infncia nas encruzilhadas da 2 mo-dernidade. In:SARMENTO, M.J.; CERISARA, A.B. (Org.). Crianas e midos:perspectivas scio-pedaggicas da infncia e educao. Porto: Asa, 2004.p. 9-34.

    SILVA, A.L; MACEDO, A.V.L.S.; NUNES, A. Crianas indgenas: ensaiosantropolgicos. So Paulo: Global, 2001.

    SIROTA, R. Lemergence dune sociologie de lenfance: evolution delobjet, evolutions du regard. Education et Socits, n. 2, p. 9-33, 1998.

    TOMS, C.A.; SOARES, N.F. Cosmopolitismo infantil: uma causa (so-

    ciologicamente) justa. Disponvel em: Acesso em: 2004.