Germano nogueira...

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Germano Nogueira Prado Mestrando em Filosofia [UFRJ; Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica] [email protected] O escândalo do escândalo da filosofia: Heidegger como refutador do idealismo Caso o "cogito sum" deva servir como ponto de partida da analítica existencial, então é preciso não apenas uma reversão, mas uma comprovação ontológico-fenomenal de seu conteúdo. A primeira proposição seria então "sum" e na verdade no sentido de eu-sou-em- um-mundo. (Heidegger, Ser e Tempo, §43b) resumo O interesse do artigo é investigar o problema do acesso do sujeito às "coisas" (ao ente como tal, ao "mundo") tal como este é encaminhado na analítica existencial do Dasein, desenvolvida por Heidegger sobretudo em Ser e Tempo. A nossa tese é a de que a interpretação de Heidegger a respeito daquele problema se constitui em diálogo com uma posição que, pelos termos em que coloca a questão do acesso ao "mundo", denominamos de "interpre- tação moderna". Em linhas gerais, tal posição consiste em uma interpretação mais ou menos consciente do ser do sujeito e do "mundo" que, estabelecendo uma cisão entre estas duas instâncias, liga a questão do acesso ao ente ao chamado "problema do mundo externo". Sobre a base desta interpretação sur- giriam as posições extremas tradicionalmente compreendidas pelas desig- nações de "idealismo" e "realismo". Em correspondência a isso, propomos o seguinte exercício: seguir a discussão de Heidegger a respeito do problema do mundo externo para ver em que medida é possível falar que ele, ao encami- rvcrífící riMmprn I 10 9 0 0 « 137 artigo

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G e rm a n o N o g u e ira P radoM estrando em Filosofia [UFRJ; Program a de Pós-G raduação em Lógica e M eta fís ica ] ech tnussbaum @ yahoo .com .b r

O escâ n da lo d o e scânda lo da f i losofia: H e id e g g e r c o m o refutador d o idea lism o

C aso o " c o g ito sum " deva se rv ir com o pon to de p a rtid a d a a n a lít ica

e x is te n c ia l, en tão é p rec iso não apenas uma reve rsão , mas uma c o m p ro v a ç ã o o n to ló g ico -fe n o m e n a l d e seu con teúdo . A p rim e ira

p ro p o s iç ã o seria en tão "su m " e na v e rd a d e no sen tido de eu-sou-em-

um -m undo. (H e idegge r, Ser e Tempo, § 4 3 b )

resumo O interesse d o a r t ig o é inves tig a r o p ro b le m a d o acesso d o su je ito às

"c o is a s " (ao ente com o ta l, a o "m u n d o ") ta l com o este é e n c a m in h a d o na

a n a lít ic a ex is tenc ia l do Dasein, d e se n vo lv id a p o r H e id e g g e r sob re tudo em Ser

e Tempo. A nossa tese é a de que a in te rp re ta çã o de H e id e g g e r a respe ito d a q u e le p ro b le m a se constitu i em d iá lo g o com uma p o s içã o que, pe los term os

em que co lo ca a questão d o acesso a o "m u n d o ", d en om in am o s de " in te rp re ­

ta çã o m o d e rn a ". Em linhas g e ra is , ta l p o s iç ã o consiste em um a in te rp re ta çã o m ais ou m enos consc ien te d o ser d o su je ito e d o "m u n d o " que , es tabe lecendo

uma c isã o entre estas duas ins tânc ias, lig a a questão d o acesso a o ente a o c h a m a d o "p ro b le m a d o m undo e x te rn o ". S obre a base desta in te rp re ta çã o sur­

g ir ia m as pos ições extrem as tra d ic io n a lm e n te c o m p re e n d id a s pelas d e s ig ­nações de " id e a lis m o " e " re a lis m o ". Em co rre sp o n d ê n c ia a isso, p rop om os o

segu in te e xe rc íc io : segu ir a d iscussão de H e id e g g e r a respe ito d o p ro b le m a d o

m undo ex te rno p a ra ver em que m e d id a é possível fa la r que ele, a o encam i-

rvcrífící riMmprn I 10 9 0 0 « 137

artigo

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Germano Nogueira Prado

nhar o problema do acesso às "coisas mesmas", pretende "refutar o idealismo" - e, na verdade, também o realismo. Com isso, o trabalho divide-se em duas partes. A primeira faz uma caracterização da "interpretação moderna". A segunda trata do modo como a analítica pretende colocar em questão esta posição interpretativa. A esse respeito, Heidegger procura demonstrar que o "problema do mundo externo" é um problema sem sentido, na medida em que está fundado em uma concepção "inadequada" de sujeito, "mundo" e da relação entre estes entes. Tal "crítica" estaria fundamentada, por sua vez, na demonstração fenomenológica de certa "mesmidade" entre sujeito e mundo, expressa na estrutura ser-no-mundo, e que resulta na idéia de que o ente, não obstante "outro" com relação à subjetividade, em certo sentido só é o que é no horizonte de compreensibilidade aberto pelo Dasein.pa lav ras-chave sujeito; mundo; acesso às "coisas mesmas"; Heidegger; inter­pretação moderna

No prefácio à segunda edição da Critica da Razão Pura, Kant form ula da seguinte maneira o que constitu iria , para ele, "um escândalo da filoso fia": "per­manece um escândalo da filosofia e da razão humana em geral te r que adm i­t ir a existência das coisas fora de nós (...) com base apenas na fé e, ao ocorrer a alguém colocar essa existência em dúvida, não lhe poder contrapor nenhu­ma prova satisfatória [genugthuenden Beweis]". Reconhecendo como legítima a exigência de ta l prova, Kant pretende tê -la fo rnecido na sua “ Refutação do Idealismo" - prova esta que ele considera não só "satisfatória", mas também "a única possível" (KANT, 1987, p.18).

Em sua "crítica fenom enológica" a esta refutação, Heidegger nos dá sua própria versão do que seria escandaloso na exigência de uma prova da "existência das coisas fora de m im", isto é, da "existência de um mundo exter­no": " 0 'escândalo da filoso fia ' não reside no fa to de essa prova inexistir e sim no fa to de sempre ainda se esperar e buscar ta is provas [solche Beweise]" (HEIDEGGER, 2002a, p.271; 2001, p.205)1. 0 problem ático desta busca e desta espera residiria, por sua vez, no fa to de que elas partem de uma interpretação

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"inadequada" ou, ao menos, suspeita do modo de ser dos entes ai envolvidos (isto é, nós mesmos e as "coisas"), bem como da relação que vige entre eles. Pelos term os em que coloca a relação entre sujeito e mundo, chamaremos essa interpretação de "in terpretação moderna".

Com essa expressão visamos à referida interpretação ta l como ela aparece nos textos de Heidegger, sem nos comprometermos, em princip io, com o fa to de ela ser ou não a maneira mais correta de se compreender o que costuma ser chamado de "modernidade" - período que se estenderia, pelo menos, de Descartes a Kant. Não pretendemos também que aquilo que denominamos "in terpretação moderna" esgote a compreensão de Heidegger a respeito da época moderna e dos filósofos que a compõem - pretensão que, diga-se de passagem, cairia por terra com um simples passar de olhos pelas obras dele2.

0 interesse aqui é, em certo sentido, mais modesto: trata-se, antes, de de lim ita r o in te rlocu to r ou a posição em diálogo com a qual Heidegger procu­ra in terpretar a relação entre "nós” e as "coisas" no âm bito da analítica do Dasein para, assim, compreender em que consiste esta interpretação. De modo mais preciso, trata-se de esclarecer em que sentido a maneira pela qual Heidegger encaminha o problema do acesso às “coisas elas mesmas" (ao ente enquanto tal, ao "m undo") se constitu i procurando colocar em questão a referida posição interpretativa. Esperamos que fique claro ao longo deste tra ­balho em que medida o predicado "m oderna" faz justiça a esta.

A respeito da "in te rp re tação m oderna", a prim eira coisa a considerar é que ela liga o re ferido problema da acessibilidade ao chamado "problem a do mundo externo" e, com isso, aos posicionamentos referidos pelos títu los "idea­lism o" e “ realismo". Em correspondência a isso, propomos o seguinte exercí­cio: seguir a discussão de Heidegger a respeito do problema do mundo e x te r­no para ver em que medida é possível fa la r que ele, ao encam inhar o p ro ­blema do acesso às "coisas mesmas", pretende "re fu ta r o idealismo" - e, a bem dizer, tam bém o realismo.

Nesse sentido, veremos que longe de te n ta r en fren ta r o idealista no campo de batalha e segundo as regras e armas prescritas por este - como em p rin c í­pio parece ser a pretensão de Kant ele procura esvaziar de sentido o cham a-

O escânda lo d o escânda lo da filosofia : H e ide g ge r com o refutador doidealism o

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do "p rob lem a do in u n d o e x te rno " questionando a in te rp re tação o n to ló g ica com base na qua l esse prob lem a seria levantado . Por consegu inte, se podemos d izer que há a lgo com o uma "re fu ta ção do idea lism o" em Heidegger, ela con­siste não em provar que há um m undo exte rno , mas em dem onstrar por que a in te rp re tação à base da busca de provas para a realidade deste é " in co rre ta " ou, ao menos, "desvia" o prob lem a da relação en tre "nós" e as "coisas" para uma p rob lem ática sem sentido.

Dessa m aneira, tra ta -se , em p rim e iro lugar, de ve rifica r em que consiste ta l in te rp re taçã o para, em seguida, ver em que sen tido Heidegger pretende te r dem onstrado que ela não se "adéqua" aos entes que procura com preender.

1. O in te r locu to r d e H e id e g g e r

0 que cham am os de in te rp re tação m oderna p riv ileg ia uma determ inada relação entre "nós" e as "coisas" ou, mais precisam ente, um de te rm inado com ­p o rta m e n to do su je ito para com o o b je to - a saber, o conhecim ento - a p a rtir do qua l se de te rm ina ria em que consiste ta l relação. Se deixarm os de lado a carga o n to ló g ica que Heidegger te n ta rá fla g ra r pos te rio rm en te na e tim o log ia desses term os, a idéia do conhecim ento com o "re lação entre su je ito e o b je to " é, em p rinc íp io , ind ife re n te . O decisivo reside no m odo com o ta l relação e, desse m odo, os e lem entos nela envo lv idos são concebidos.

Segundo Heidegger, na in te rp re taçã o em questão, o o b je to que se dá [ is t gegeben) a conhecer em p rim e iro luga r é um ente d e te rm inado , a saber, a "natureza". Não cabe agora re co n s titu ir a análise desse ente no â m b ito da a na lítica ex is tenc ia l - a qua l vai desde uma discussão com a noção de res extensa em Descartes a té uma caracterização do m odo com o a natureza é encon trada no m undo c ircu n da n te . Para o o b je tiv o do tra ba lho , interessa ape­nas destacar o segu in te : em bora a natureza seja a qu ilo que é conhecido, o co nh e c im e n to não se dá na natureza, não é uma caracte rís tica que pertença a esse ente. Q uando se dá, o conh e c im e n to pertence un icam en te ao ente que conhece, ao su je ito .

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0 m odo com o o conhecim ento se dá no su je ito não é, co n tud o , in d ifç retlte De fa to , consta ta -se que o conhecim ento não subsiste [ is t vo rhanden) r ia q ^ le que conhece com o uma propriedade externa, co rpora l, consta távç| sentidos. Ora, se o conhecim ento não é nada que pertença a nós ao uma característica externa, deduz-se daí que ele é "a lgo" de in te rn o . Parçce oClesse "ra c io c ín io " que Heidegger pretende surpreender por trás da caractçr ^ a ção do conhecim ento com o algo que está "n o su je ito ", ou seja, “ no ¡nte ri0 r ^ 3

m ente", "d e n tro da alm a", "na esfera da consciência”. Em con traposição 9o nhecim ento , 0 o b je to a ser conhecido perm anece com o 0 que, em Priticfpj0

subsiste ou ao menos pode subsistir "fo ra " do su je ito (HEIDEGGER, 2 0 0 1

S ituado , em p rin c íp io , " fo ra " da esfera da consc iênc ia , a "esfera" â m b ito em que 0 o b je to subsiste é ca rac te rizado com o a esfera do rça| ̂realidade ou do m un d o ex te rno . De m odo m ais d e te rm in a d o , podem os ^ que 0 ente ou 0 c o n ju n to dos entes a serem conhecidos c o n s titu i 0 real (re^ e 0 seu ser é, por isso, designado pelo te rm o rea lidade [R e a litä t) . Corno tra ta do en te ou do c o n ju n to dos entes que subsistem fo ra da consciêncja q re fe rido â m b ito é tam bém conhecido com o "m u n d o externo". Nesse conhecer consiste em ou, ao menos, supõe um acesso à esfera do rea|; etn verdade, H e idegger d irá que um " t ip o " de c o n h e c im e n to , a saber, 0 “conhç, c im e n to in tu it iv o " [anschauende Erkennen) va leu "desde sem pre " [vo n je/7Çr) com o "m odo de e xp e rim e n ta r" [E rfa h ru n g sa rt) 0 real (HEIDEGGER, 2Q02a p.268; 2 0 0 1 , p .2 0 2 ).

A determ inação fu n d a m e n ta l do ser das "coisas" (res), da real idade, serja por seu tu rno , a "substanc ia lidade" (HEIDEGGER, 2002a, p.267 ; 2001, p,2 o ij No â m b ito da ana lítica existencia l, 0 m odo de ser das "coisas" a p a r t ir doqU£, podem ser "experim entados" ta is caracteres de ser é ca rac te rizado , ainda q ^ sem um rig o r te rm in o ló g ic o e s trito , com 0 te rm o V o rh a n d e n h e it; 0 entç qUç tem esse m odo de ser, com o Vorhanden. Este te rm o é um dos m u ito s dç qUf, dispõe a língua a lem ã para s ig n if ic a r 0 “e x is te n te ", a "existência" [Vorhandensein). A nuance por ele ind icada é a de e x is tir no sentido dç "d isponível em um de te rm inado m om en to no te m po em d e te rm in a d o lugar* (KEMPCKE, 2000, p. 1167). Daí as traduções possíveis de Vorhanden p0f

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"d ispon íve l", "ser s im p lesm ente dado", “en te subsistente". A decom posição da palavra leva á tdéia de a lgo "ao alcance", "d ia n te " (Vor) da "m ão" (H a n d ].

Duas outras das re feridas palavras para existência são u tilizad a s por He idegger para s ig n if ic a r o ente que nós mesmos somos e o seu ser - a saber, Dasein e Existenz, respectivam ente . Ele reserva Vorhanden e derivados para a in te rp re taçã o dos entes que não têm nosso m odo de ser, isto é, para aqueles entes que v iem os d enom inando "as coisas". Todavia, não é o que ocorre ria no â m b ito da in te rp re taçã o m oderna : ta n to o m odo de ser do su je ito com o o m odo de ser do o b je to do co nh e c im e n to e, assim, os entes em gera l tendem a ser in te rp re tad o s a p a rtir dessa idéia de ser. Nesse sen tido , na perspectiva dessa in te rp re tação , "ser" s ign ifica ta n to q u a n to "rea lidade" (expe rim entado a p a rtir das "coisas" e nq u an to vorhanden) ou "substanc ia lidade " (constanc ia da V o rhandenhe it) (HEIDEGGER, 2002a, p .142; 2001, p.96).

Pode-se acrescentar a inda que, acom panhando a “o p in iã o gera l", o co nh e ­c im e n to seria c o n s titu íd o pelas representações do su je ito a respeito do ob je to . M ais precisam ente, o co nh e c im e n to cons is tiria nas representações verdade iras a respe ito do ob je to , o que, nesse caso, costum a querer d izer: adequadas ao ob je to , na m edida em que correspondem ao o b je to (e, assim, o representam ) ta l com o ele é, ou seja, correspondem ao o b je to em seu ser, ao real em sua rea­lidade. Em geral, o ju ízo é to m ad o com o a representação que pode ser v e r­dadeira ou fa lsa no sen tido ind icado (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p .101; 2001, §13, p.62; além de 2001, §44, a, e 2002a, p.63; 2001, p.33).

É a p a r t ir dessa caracte rização do processo de conh e c im e n to e dos entes envo lv idos neste, apa ren tem en te isenta de pressupostos, que se costum a c o lo ­car o cham ado "p rob lem a do co nh e c im e n to " ou, de m aneira mais am pla, o "p rob lem a da transcendência". E é a p a rtir dessa m aneira de e ncam inhar ta l p rob lem á tica que su rg iria , em conexão com o prob lem a mais geral da rea li­dade, o prob lem a específico da realidade do m undo externo. Vejam os com o isso acontece.

De m aneira m eram ente fo rm a l, pode-se d izer que o problem a do conheci­m en to é o problem a das condições e lim ites segundo os quais o conhec im en to pode ocorrer. Form ulado segundo a concepção de conhecim ento acim a esboça-

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da, o problem a passa a ser se e em que m ed ida é possível ao su je ito "sa ir” da (isto é, transcender) sua esfera in te rna , em que se depara apenas com suas re­presentações do ob je to , e te r acesso a este ta l com o ele é "na rea lidade"3.

Ora, v is to que a questão do co nh e c im e n to d iz respeito à possib ilidade de acesso ao real em seu ser, o p rob lem a da co n s titu içã o da rea lidade estará d ire ­ta m en te re lac ionado com ela. No â m b ito da in te rp re taçã o m oderna, estes dois prob lem as se a rtic u la m da segu in te m ane ira : som ente sobre a base de um aces­so ao real, ou seja, ao en te que subsiste fo ra da esfera da consciência, é pos­sível d e te rm in a r qual é a co n s titu iç ã o do seu ser, a rea lidade - acesso este que, com o vim os, seria dado pelo co nh e c im e n to ( in tu it iv o ) .

Todavia, essa co locação do p rob lem a supõe ou, pelo menos, é acom panha ­da por um a de te rm inada caracterização, ainda que "m in ím a", do ser d aq u ilo a que se pretende te r acesso: o real é o ente ou o c o n ju n to dos entes que podem, em p rinc íp io , subs is tir fo ra da consciência. Êsse ser fo ra da consciência é in te r­pretado, por seu tu rn o , com o ser independente das representações que a cons­c iência fo rm a a respeito dele. D is tinguem -se assim o que seriam dois m odos de ser do o b je to de conhec im en to . Por um lado, tem os o seu ser para a consc iên­cia, presente nas representações do su je ito a respe ito do real; ev iden tem en te esse ser representado só caracteriza o real na m edida em que este está re la­c ionado com um su je ito e co n fig u ra , assim, uma caracte rização de seu ser e nq u an to dependente deste - e não de seu ser "enquanto tal". Temos, desse m odo, d e lim ita d o n eg a tiva m e n te face ao ser do real para a consciência, o ser que o c o n s titu i independen tem en te desse se r-ap reend ido : o seu ser-em -s i. Independência e se r-em -s i são, assim, as duas determ inações m u tu a m e n te so lidárias da realidade, ou seja, do ser do real enq u an to ta l (Cf., sobre tudo , HEI­DEGGER, 2006, p.273 e 274, mas tam bém 2001, §43).

Uma vez que o acesso ao real se faz por m eio das representações que sub­sistem no in te r io r da m ente, pode-se en tão pergun ta r, p rim e iram en te , se ta is representações de fa to correspondem ao real e se, assim, o su je ito tem acesso ao ente ta l com o este subsiste fo ra da m ente, ao en te ta l com o ele é em si m esmo - ou seja, ao real ta l com o ele é, a inda que não haja s u je ito a lgum com o qual ele tenha a lgum a relação. C on tudo , ta l questão parece supor que existe

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o ente ou o c o n ju n to de entes que tem seu ser fo ra da consciência. A vançando mais um passo, pode-se en tão p e rg u n ta r: dado que o su je ito tem acesso tão só à qu ilo que se dá no â m b ito da consciência, será que o ente a ser conhecido de fa to subsiste em si m esm o fo ra e in d e p e n de n tem e n te da consciência? Em o u ­tras palavras: há um m undo exte rno?

Dessa m aneira, a realidade do m undo e x te rn o to rna-se p rob lem ática . Por consegu inte , a a firm ação de que há um m undo exte rno te rá que ser provada po r aquele que a sustenta - seja por m eio de a rgum en tos que procurem esta­belecer d ire ta m en te a existência do m undo ex te rno , seja por m eio de a rgum en­tos que te n te m ju s t if ic a r a fé que tem os na ex is tênc ia das coisas fo ra de nós ou a pressuposição "inco n sc ie n te " que fazem os a respeito de ta l existência.

Com isso, p rocuram os estabelecer a p a rtir de seu nexo in te rn o as questões que H e idegger reúne sob a rubrica do p rob lem a da realidade, as quais por sua vez d e lim ita m a p rob lem á tica a respeito da re lação entre "nós” e as "coisas" levantada a p a rtir do que cham am os de in te rp re ta çã o m oderna e, assim, c ir ­cunscrevem o p rob lem a do m undo e x te rn o :

Com o título problem a da rea lid ad e , entrelaçam -se diferentes questões:1. se é (real) o ente supostamente "transcendente à consciência"; 2 . se

essa re a lid a d e do "m undo externo" pode ser provado (bew iesen ); 3 .

caso esse ente seja real, até que ponto pode ser conhecido em seu ser- em-si?; 4 . qual o sentido desse ente, a rea lid ad e? (HEIDEGGER,

2 0 0 2 a , p .2 6 7 ; 2 0 0 1 , p .2 0 1 )

Nesse sen tido , a in te rp re ta ç ã o da re fe rida re lação que dá base a essa c o lo ­cação do p rob lem a pode ser s in te tiza da nos pon to s que seguem. P rim eiro , grosso m odo, para ela há duas instânc ias de "rea lidade" d e fin id a s em fu n ção da sua re lação com a co nsc iênc ia (ou a m en te , a a lm a etc.) e com o que, de in íc io , separadas e n tre si: um a im a n e n te à consc iênc ia , em que o s u je ito se depara com suas represen tações s u p o s ta m e n te a respe ito das "co isas", e o u tra su po s ta m en te tra n sce n d e n te à consc iênc ia , em que estas "coisas", os entes que nós m esm os não somos, subsis tem em si mesmas. S egundo, dado

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o ch o ris m ó s e n tre su je ito e "m u n d o ", a sua re lação é ta l que aquele precisa co m p ro va r se este subsiste em si e ind e pe n de n te daque le e n te que procura c o n h e cê -lo e se e em que m ed ida o su je ito tem acesso ao "m u n d o " ta l com o este é em si e “ fo ra " da sua re lação com aquele. Terceiro, que "m u n d o " é um su b s tra to dado e c o n s titu íd o em seu ser in d e p e n d e n te m e n te do su je ito , que supos tam en te perm anece sendo e sendo o que é a inda que não exista um su je ito , e a que este pode ou não te r acesso, caso se com prove que o "m u n d o e x te rn o " subsiste em si e p o r si mesmo.

2 . D o a r g u m e n to ad hominem co n tra o in te r lo c u to r m o d e r n o a o "cogito" d e H e id e g g e r 4:

Por consegu inte , fic o u es tabe lec ido que e com o a in te rp re ta çã o m oderna, com a qual a ana lítica d ia loga ao in te rp re ta r a re lação e n tre "nós mesmos" e as "coisas", a tre la o prob lem a do acesso do su je ito às "coisas" ao p rob lem a do m undo externo. Vejam os agora com o Heidegger p re tende co locar em questão aquela in te rp re tação e, com isso, a le g itim id a d e deste prob lem a.

Conform e já a nu n c ia do mais acim a, a "c rítica fe n o m e n o ló g íca " da a n a lít i­ca existencia l à " in te rp re ta çã o m oderna" é a de que o p rob lem a do m undo e x te rno que, segundo esta in te rp re taçã o , estaria em ín tim a conexão com a questão do acesso às "coisas", é um fa lso prob lem a. Em linhas gerais, isso quer d ize r que, de acordo com Heidegger, o que se "deve dem o ns tra r" não é que um "m u nd o e x te rno ' 1 subsiste e que podem os te r acesso a este com o substra to dado e constitu ído ; mas sim com o a co n s titu içã o de ser5 do ente que nós mes­mos somos é ta l que sempre já estamos em uma re lação com o en te que nós mesmos não somos.

0 "argum ento" de Heidegger para re je ita r o e s ta tu to de prob lem a a u tê n ti­co à questão do m un d o e x te rno é sim ples e p rob le m á tico : o ente que na co lo ­cação desse prob lem a é apreend ido com o su je ito e com relação ao qual o "m undo" tem que se com prova r independente e subsistente em si mesmo recusa, em seu m odo de ser, essa m aneira de co locar a questão. De m odo mais

O e s c â n d a lo d o e s c â n d a lo d a filo s o fia : H e id e g g e r c o m o re fu ta d o r d oid e a lis m o

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Germano Nogueira Prado

preciso, a recusa por parte do m odo de ser do ente que nós somos se vo lta para os segu in tes aspectos do que viem os cham ando de in te rp re taçã o m oderna : a) o m odo com o o su je ito , em sua relação com o "m u nd o ", é aí com preend ido ; b) o m odo com o o co nce ito mesmo de m undo é aí com preend ido ; c) o m odo com o o conhecim ento , e nq u an to relação en tre su je ito e real, é conceb ido em ta l in te rp re taçã o ; d) o p riv ilé g io dado por esta ao conhec im en to enquan to m odo de acesso ao real.

Para ver de que m aneira se dá essa recusa, ve jam os os passos que e s tru tu ­ram o re fe rido "a rgu m e n to ".'E i-los : i) o p rob lem a do m undo ex te rno põe em dúvida se nos re lacionam os de fa to com o real, com o "m u n d o 11 ta l com o ele é em si mesmo e se de fa to este subsiste independentem en te dessa relação conosco; ¡i) o prob lem a é co locado a p a rtir de um de te rm inado co m p o rta m e n ­to que, supostam ente , seria um m odo de acesso p riv ile g ia do ao real - o co­nhe c im e n to ; iii) ora, o conhec im en to , co n fo rm e dem onstrou a ana lítica exis­te n c ia l, é um m odo derivado de acesso ao real, fu n da d o na e s tru tu ra fu n d a ­m enta l de ser do su je ito (com preend ido e nq u an to Dasein), o s e r-n o -m u n d o ; iv) esta es tru tu ra poss ib ilita o acesso o r ig in á r io ao real em sua realidade, "antes" de qua lqu e r relação de conh e c im e n to para eom este - acesso este que o co ­n hec im en to mesmo com o que pressupõe; v) logo, se "antes", e sobre tudo "antes", do co nh e c im e n to a nossa relação com o "m u nd o " é ta l que já podemos te r acesso a ele em sua realidade (ao ente em seu ser) e se o prob lem a da rea li­dade do m undo e x te rno é levantado a p a rtir do conhecim ento , este problem a é d e s titu íd o de sen tido (HEIDEGGER, 2002a, p .268; 2001, p.202).

A respe ito dessa reconstrução "d e d u tiv a " do “a rg u m e n to " de H e idegger é preciso ressaltar duas coisas. P rim e iro , que a noção de c o n h e c im e n to em questão é am bígua : ela va le ta n to para o co n h e c im e n to no m odo com o ele é co m p re en d id o pela in te rp re ta çã o m oderna, q u a n to o co n h e c im e n to ta l com o ele é conceb ido no in te r io r da a na lítica ex is tenc ia l. Com relação ao co nh e c i­m en to to m a d o na p rim e ira acepção, m ais do que m odo de acesso derivado ao ente, ele é rechaçado com o caracte rização possível da re lação e n tre o su je ito e o "m u n d o " tão logo se aceita , com Heidegger, que ta l ca rac te rização está a tre lada a uma concepção "in adequada " do m odo de ser de su je ito na sua

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re lação com o "m u n d o ", bem com o do m odo de ser deste. Tal concepção não é senão a que já assinalam os com o c o n s titu t iv a da in te rp re ta ç ã o m oderna, qua l seja: a cisão e separação de s u je ito e "m u n d o " em duas esferas de "re a li­dade" d is tin ta s e, em p rin c íp io , já co n s titu íd a s e subsis tentes em si e por si mesmas. A essa concepção, H e idegger opõe a e s tru tu ra que expressa a m esm idade v ig e n te e n tre a c o n s titu iç ã o do nosso ser e a do ser do "m u n d o " "co rre tam e n te com p re en d id a " (HEIDEGGER, 2002a, p .271 ; 2001, p.205), e que, nesse sen tido , serv irá de guia para nossas considerações daqu i em d ia n te - a e s tru tu ra s e r-n o -m u n d o .

Em segundo lugar, a re ferida reconstrução não faz senão aparecerem os pon tos do a rgu m en to que necessitam de dem onstração, a saber: os pon tos de ii) a iv). Investigarem os o m odo com o Heidegger p retende dem onstra r os p on ­to s iii) e iv), para, com isso, chegar a uma dem onstração do p o n to ii). Esperemos que f iq u e c la ro ao longo da discussão o porquê dessa estra tég ia .

Tese de Heidegger, exposta no p o n to iii) : o conh e c im e n to é um m odo de ser do ente que nós somos, m odo de ser este que está fu n da d o na e s tru tu ra deste ente, a e s tru tu ra se r-n o -m u n d o . Para nós, a dem onstração de Heidegger para essa tese pode ser fo rm u la da , ao menos no â m b ito de uma “ re fu taçã o " do que viem os cham ando de in te rp re taçã o m oderna, nos te rm os do que se pode cham ar de um a rgu m en to ad hom inem - no sen tido de um a rg u m e n to que con trapõe ao in te r lo c u to r as im p licações das teses por ele aceitas (Cf. ABBAG- NANO, 2003, p .17, ve rbe te "Ad H om inem 1'; LOCKE, 1998, IV, p.203 (xxvii, 2 1 )). Isso é verdade desde que se faça a ressalva de que por um a rgu m en to desse tip o não se com preenda um a rg u m e n to de v a lo r "co n tin g e n te " ou “s in g u la r1' (Cf., por ex., JAPIASSÚ e MARCONDES, 1998, p.13; LA LANDE, 1999, p.29; MORA, 1998, t. I, p .47 ) 6 d ir ig id o a um ind iv ídu o d e te rm inado , mas sim um a rgum en to que parte do que é ace ito por um in te r lo c u to r h ip o té tic o v isando m ostrar que as condições de possib ilidade do que ele aceita co n tra ria m as co n ­clusões que ele p re tende t ira r dessa mesma aceitação.

Em uma p rim e ira aproxim ação, o sen tido da tese de He idegger é o mais "espontâneo" e "com um " possível: conhecer o "m u nd o " é um m odo pelo qual estamos no "m u nd o ", pelo qua l existim os, isto é, um m odo en tre ou tros de

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estar em relação com as "coisas"7, ao lado de outros modos como trabalhar, escrever e brincar, por exemplo. Heidegger denomina esses diversos modos de estar no m undo, mais precisamente no que diz respeito à relação com as "coisas", de ocupação (Besorgen) (HEIDEGGER, 2002a, p.95; 2001, p.56-57). Conhecer é um modo de ocupar-se com o ‘'m undo": ora, em princíp io parece que nenhum in te rlo cu to r deixaria de conceder esse dado elem entar do fenô­meno do conhecim ento - de início, parece que isto é verdade mesmo no caso em que a investigação das possibilidades desse modo de estar no "m undo" con­sista justam ente em pôr em questão a "realidade e fe tiva" desse mesmo "mundo". Se, ao fim e ao cabo, ta l investigação m ostrar que aquilo com que nos ocupamos nada mais são que "conteúdos mentais", não obstante não há como negar que nos ocupam os com isso. Essa investigação, por sua vez, não é senão uma maneira de estar no m undo; e, caso se compreenda "conhecer" no senti­do amplo de "assumir uma a titude teórica d iante de a lgo" (e é assim que o compreendemos aqui), ta l investigação nada mais é do que um modo concre­to de conhecim ento.

Mas o reconhecim ento desse dado fenom énico não está isento de proble­mas. É razoável pensar que o in te rlocu to r de Heidegger (sobretudo se cético ou idealista) só o concederia se isso não implicasse (ao menos não no âm bito teórico) a suposição ou a crença sem provas de que o "m undo externo" sub­siste cm si e por si mesmo. Ainda que no âm b ito do “senso com um " ou da "a ti­tude natura l" a gente aja "como se” a subsistência efetiva do m undo externo não fosse problem ática, a mesma a titude não poderia ser assumida no âm bito teórico. Tampouco Heidegger, como por vezes pode parecer, recorre ou pre­tende recorrer à "obviedade existenciária (existenzie ll), ôntica" da "presença" das "coisas" na lida cotid iana como argum ento para "com provar" a subsistên­cia de um "m undo externo" - seja porque isso atentaria contra o próprio sen­tido da argum entação de Heidegger, que não visa de form a alguma provara a ta l subsistência, seja porque essa "obviedade ôntica" não dispensa uma in te r­pretação ontológica, antes a exige (HEIDEGGER, 2006, p.271). Por isso, uma vez que não está claro o que significa reconhecer o dado o rig inário de que o co­nhecer é um modo de ser-no-m undo, não só o esclarecimento do que é co-

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nhecer, como tam bém o re ferido reconhecim ento exigem uma interpretação que, para além de uma com preensão "espontânea" e "com um ", determ ine mais precisamente o que se m ostra em ta l dado.

De fa to , a aceitação do dado re ferido não sign ifica a aceitação de uma prova do "m undo exte rno", a suposição dogm ática da existência efetiva deste ou a crença nesta existência. Em princíp io , o argum ento de Heidegger depende apenas de que o in te r lo c u to r adm ita estar tem atízando o fenômeno do co­nhecim ento - com isso, ele te ria que reconhecer, como dado fenom énicam ente ligado ao que está em causa, que im p lic ita m en te ele mesmo está em um modo de estar no m undo e está tem atizando um m odo de estar no m undo. E isso vale mesmo se ta l tem atização se faz desde a in te rp re tação moderna do fenôm eno do conhecim ento ou, antes, p rinc ipa lm ente para esta8. Em princip io , isso im p li­ca apenas que o conhecer é apenas um com portam en to possível diante de "algo que se m ostra" (a lgo que com um ente chamamos de “as coisas") e que, portan to , tem uma "es tru tu ra re lacional" - e não im plicaria , de saída, em ne­nhum "compromisso o n to ló g ic o " com re lação ao ser disso que se mostra.

Com isso, o in te r lo c u to r que adm itiu q ue o conhecer é um modo de ser do ente que nós somos, é levado a ace ita r concom itan tem en te que o conhecim en­to é um modo de ser derivado , ao menos em um sentido do te rm o "derivado": o conhecer é derivado na medida em que um modo de ocupar-se eom as "coisas" e não o modo dc fazê-lo , ou seja, ele não caracteriza o ocupar-se enquanto tal. A bem dizer, não é possível e n c o n tra r na nossa existência “con ­creta", isto é, "fac tícam en te ", ta l "ocupar-se enquanto ta l", v isto que a ocu­pação "sempre já " se d ispersou em diversos modos de lid a r com o "mundo" (HEIDEGGER, 2002a, p.95; 2 0 0 1 , p.56-57). Evidentem ente, isto não impede que se procure uma caracterização do fenôm eno do ocupar-se enquanto tal e que a interpretação dos modos de ocupação suponha uma compreensão do que sign ifica ocupar-se com o m undo.

Desse modo, a d m itir q u e o conh e c im e n to é um modo derivado de o cu ­pação, ou, de modo mais am p lo , um modo de rivado de estar no mundo, s ig ­n ifica adm itir que é preciso com preender es te estar no m undo mesmo para poder compreender "p rop riam e n te " o que é conhecer. Nesse sentido, quem

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investiga o conhecer sem atentar para esse dado fenom énico, ou bem pres­supõe uma determ inada idéia a respeito do que é, para o ente que nós somos, existir (estar no mundo), ou bem determ ina, expressamente ou não, esta idéia a pa rtir de um modo do existir, o conhecim ento. No prim eiro caso, a investi­gação não chega a compreender aquilo que ela investiga desde o seu funda ­mento, o que pode levar a uma interpretação "inadequada" do fenôm eno do conhecim ento, se a idéia de existência em causa se m ostrar "inadequada" para caracterizar o ente que nós somos - o que parece só poder ser decidido em uma investigação desse ente mesmo. Mais im portan te : a rigor, não podemos dizer que nesse prim eiro caso houve uma interpretação "adequada" do fenô ­meno em causa, v isto que um dado que se reconheceu como pertencente ao fenôm eno fo i negligenciado na interpretação. No segundo, o existir como tal é com preendido a p a rtir do que se reconheceu ser um modo e, nesse sentido, algo derivado do existir, o que configura uma clara inversão do nexo de fu n ­dam entação dos fenôm enos em causa.

Em ambos os casos, o in te rlocu to r é levado a a d m itir que o dado orig inário a ser investigado é o fenôm eno do estar no m undo como ta l ou, nos term os de Heidegger, a estrutura ser-no-m undo. E o que seria adm itido com isso é que, existindo facticam ente, cada um de nós "sempre já " está em uma ou outra relação com as "coisas", o mundo "sempre já está aí". Com bastante cuidado e pelo menos algumas aspas, podemos chamar o fenôm eno do ser-no-m undo, assim compreendido, de "co g ito de Heidegger” , no sentido de que ele seria o pon to de partida inegável e inelutável (não obstante m uitas vezes velado ou "inadequadam ente" negligenciado) de toda e qualquer investigação ou, antes, de todo e qualquer com portam ento possível.

A vantagem de recorrer ao te rm o “ cog ito " para designar a estru tura ser- no-m undo está, por um lado, em m anter a v incu lação de Heidegger com a trad ição moderna, com a qual, como pretendem os te r mostrado, ele expressa­m ente discute. Por ou tro , em ind ica r que, nessa discussão, Heidegger procura co locar em questão o p riv ilég io ou, antes, o sentido do p riv ilég io que o in te r­lo cu to r m oderno concede à subjetiv idade como pon to de partida radical da problem ática filosó fica .

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Com efe ito, em Heidegger9, a "subjetiv idade" continua desempenhando um papel fundam enta l na medida em que a investigação sobre o sentido do ser tem como ponto de partida m etodológ ico o ente que compreende ser, isto é, o ente que nós mesmos somos. A decisão por esse ponto de partida não é gra­tu ita , mas estaria fundada, de acordo com o sentido do método fenom eno lóg i- co, nas "coisas mesmas" em causa.

Todavia, há pelo menos duas diferenças essenciais no que concerne ao reconhecimento do prim ado da subjetiv idade em Heidegger e no in te rlocu to r moderno. Em prim eiro lugar, d iferentem ente do que acontece com o moderno, o priv ilég io da "subje tiv idade" em Heidegger não vem atrelado a um primado da problem ática epistem ológica sobre a problem ática onto lógica. Grosso modo, esse prim ado pode ser fo rm ulado nos seguintes term os: a investigação do ser dos objetos deve ser precedida por uma investigação sobre a possibili­dade e os lim ites do nosso conhecim ento de objetos. A esse respeito, pre­tendemos mostrar, com Heidegger, que a colocação do problema do conheci­m ento diz respeito à caracterização do modo de ser do ente que conhece e que, com isso, ta l investigação está, queira ou não, carregada pressupostos onto lógicos e, assim, precisa se reconhecer, por pressão das "coisas mesmas", como investigação o n to ló g ica 10, a fim de que se lhe abra a possibilidade de apreender de maneira autêntica o fenôm eno por ela tem atizado11.

Em segundo lugar, Heidegger se d iferencia do moderno no que concerne à caracterização mesma da "subjetividade". Entre as diferenças que se pode indicar nessa caracterização, destacamos, em consonância com o interesse do presente trabalho, a que se segue. Falando de modo um tan to vago, o "su je ito de Heidegger" não "pretende ser", como "su je ito do conhecim ento", o funda ­m ento ú ltim o , "absoluto" e au tônom o (isto é, independente do ente, do mundo, do ser) do conhecer e m uito menos da constitu ição mesma dos obje­tos, do sentido e da "validade" do ser destes - fundam ento para além do qual "não se pode recuar". Antes, se ele pode ser denom inado "su je ito", ele o é no sentido de estar, em seu ser, "su je ito o O u tro " 12 (ao ente, ao mundo, ao ser), no sentido de que ele é constitu tivam en te esse ser em relação... a "algo que lhe vem ao encontro", às "coisas". Pretendemos mostrar, com Heidegger, que é esse

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dado o rig iná rio que é negligenciado pelo moderno, seja porque este não reconhece sua própria investigação como onto lóg ica, seja porque, ainda que possa fazê-lo , os pressupostos onto lógicos a p a rtir dos quais se move são "inadequados" para a caracterização do referido dado. Esse ú ltim o ponto mostra que reconhecer, por assim dizer, “ fo rm a lm en te " (ser em relação a... “algo que se mostra"), o dado orig inário e sua "evidência", em nada garante a "correta compreensão" desta e daquele, antes exige uma interpretação que explic ite seu s ign ificado - interpretação que, como veremos, não pretende estar livre de pressupostos, mas que pretende elaborá-los de modo a que o in terpretado apareça a p a rtir dele mesmo. A evidência do "co g ito de Heidegger" não dispensa interpretação, antes a exige; ela só pode aparecer em seu autên tico s ign ificado a pa rtir dos pressupostos que lhe são próprios.

Retomemos o fio de nossa argumentação. O in te rlocu to r moderno tinha sido levado a adm itir que o dado orig inário a ser investigado é o fenôm eno do estar no m undo como ta l, ou seja, a estrutura ser-no-m undo. Com isso, teria adm itido que, existindo facticam ente, cada um de nós "sempre já " está em uma ou outra relação com as "coisas", o mundo "sempre já está aí". Todavia, não parece m uito claro em que sentido, ao a dm itir que o conhecer é um modo de existir, no sentido de ser um modo de estar no mundo, o in te rlocu to r seria le­vado a reconhecer que o mundo "já está aí". Não obstante, as seguintes palavras de Heidegger parecem apontar para a “ necessidade" de, a pa rtir do fenôm eno do conhecim ento, "insistir" nesse dado fenom enal:

Se perguntarmos, agora, o que se mostra nos dados fenomenais [phänomenalen Befund] do próprio conhecer, é preciso admitir [/sf festzuhalten] que o conhecer em si mesmo se funda previamente em um já ser ¡unto ao mundo [Schon-sein-bei-der-Welt] como o qual o ser do Dasein se constitui essencialmente. (HEIDEGGER, 2 0 0 2 a , p. 100;2 0 0 1 , p .ó l)

No fim , não se quer introduzir, por baixo dos panos e contrariam ente ao que ficou estabelecido mais acima, a tese da subsistência de um "m undo exte r-

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no"? 0 que sign ifica esse "já ser ju n to ao m undo" em que se funda o conhecer? Com esta ú ltim a pergunta chegamos ao pon to iv) da nossa reconstrução dedu­tiva do argum ento de Heidegger. Em que consiste esse "já ser ju n to ao m undo" que constitu i o Dasein enquanto ta l e parece consistir em um acesso p ré -teó ri- co e p ré-cogn itivo às "coisas"?

Para responder a essa pergunta, s intetizem os o que extraímos até aqui da assunção do in te rlo cu to r moderno de que ele está tem atizando o fenóm eno do conhecim ento. Em prim eiro lugar, esta assunção im plicaria que ele deve assumir, como dado fenom énicam ente ligado ao que está em questão, que o conhecer é um modo de estar no m undo entre ou tros (ainda que possa ser um modo priv ileg iado). Estar no m undo s ign ifica ria ocupar-se de, estar em relação com... algo que se mostra (grosso modo, as "coisas") sem que haja, em princíp io, um compromisso a respeito do e s ta tu to on to lóg ico daqu ilo com que se está em relação. Nesse sentido, não só aqu ilo que ele investiga, mas sua própria posição teórica de investigador são modos de estar no mundo ou, nos term os de Heidegger, de se r-no-m undo. Em segundo lugar, reconhecer isso é a d m itir que o conhecer é derivado da estrutura se r-no -m undo , no duplo sen­tid o de ser um modo possível de se r-no -m undo e de só ser possível porque a estrutura do ente que nós somos é se r-no -m undo . Em terceiro, que, assim, a investigação do conhecim ento im plica e /ou supõe compreender o que é ser- no-m undo, o qual se mostra como o " cog ito de Heidegger", o dado o rig inário e " indub itáve l" de onde, queira ou não, parte toda investigação, pois propicia não só o tema para esta, mas, em ú ltim a instancia, que a investigação mesma, enquanto modo de existir, seja. E esse dado o rig in á rio que procuraremos dis­c u tir agora, no lim ite da questão do acesso do "su je ito " às "coisas" e no ám bito da analítica existencial.

Heidegger caracteriza a nossa relação com o m undo através de duas expressões: ser-em (In-sein ) e ser ou estar ju n to (Sein be/]. Tais expressões cor­respondem, respectivamente, aos dois sentidos com uns da palavra mundo que ele leva em conta ao tra ta r do fenóm eno da m undanidade do m undo: mundo enquanto o ám bito em que o Dasein vive e "m undo" enquanto o ente mesmo que nós não somos ou enquanto o todo dos entes - m orm ente dos entes que

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nós não somos; o que, em um sen tido sempre bem vago, viem os cham ando de "as coisas". No p rim e iro sentido, m undo é t id o com o um e lem ento c o n s titu tiv o do ser do ente que eu mesmo sou, o Dose/n; é p rim o rd ia lm en te nesse sentido que a expressão m undo fig u ra na es tru tu ra se r-n o -m u n do . Parece estar de a lgum m odo ligado a esse sentido de m undo o fa to de Heldegger caracterizar a m aneira com o, de iníc io , estamos em ta l m undo (ou seja, o ser-em ) com o um morar, um hab ita r, um ser fa m ilia r a, um estar acostum ado com (HEIDEGGER, 2002a, p.92; 2001, p.54).

Na ana lítica existencia l, a relação en tre os fenôm enos expressos por cada uma dessas s ign ificações da palavra m undo é a segu in te : em ce rto sentido, só "há " acesso ao "m u nd o " enquan to ente que nós não somos na m edida em que "há " m undo enq u an to c o n s titu tiv o do Dasein, isto é, na m edida em que há ser- n o -m u nd o . Esse nexo de fundam en tação dá azo a uma crítica de Heídegger à in te rp re tação m oderna (crítica à qual já fizem os referência mais acim a): ao levan ta r o problem a do m undo externo, ela não d is tingue esses dois sentidos de m undo e, assim, não concebe adequadam ente o fenôm eno do m undo (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p.267; 2001, p.203). Em verdade, podemos acrescentar que, com o vimos, ela considera o m undo apenas enquan to ente ou c o n ju n to dos entes que nós mesmos não somos.

Nesse sentido, o prob lem a do acesso ao ente enquan to ta l está ligado ao problem a da co ns titu ição da m undan idade do m undo. Nos lim ite s do nosso traba lho , abordarem os essa questão apenas na m edida em que procurarem os d e te rm in a ra m aneira como, para Heidegger, nos re lacionam os com o "m undo " tom ado na segunda acepção, isto é, com as "coisas” : o ser ou estar ju n to ou, com o fo rm u la d o mais acima, "o já ser ju n to ao mundo".

Antes mais nada, há que d is t in g u ir duas m aneiras de com preender o "já ser ju n to ao m undo" sobre o qual o conhecim ento estaria fundado. A prim e ira m aneira é com preendê-lo com o uma caracterização do estar no m undo em geral. Nesse sentido, o conhecim ento se fu n da no estar no m undo no sentido v is to mais acim a: o conhecer é um m odo e n tre ou tros de ocupar-se com o m undo. Que o conhecim ento é um m odo fu n da d o no se r-n o -m u n d o nesse sen­tido , parece que o in te r lo c u to r m oderno pode a d m itir ; o prob lem a é se e em

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que m edida isso im p lica em reconhecer que o conhecim ento está fundado em um "já ser ju n to ao mundo".

Antes de abordar esse problem a, vejam os a segunda in te rp re tação possível para a expressão "já ser ju n to ao mundo". 0 conhecim ento pode ser fundado na ocupação no sentido de que há um m odo de ocupação que é a n te r io r ao conhecer. M u itas vezes Heidegger não u tiliza nenhum te rm o específico para essa m oda lidade de ocupação e costum a cham á-la s im plesm ente de ocupação. A explicação para essa "im precisão te rm in o ló g ica " pode estar, p rim e iro , no fa to de que a ocupação, com o já assinalamos, sempre já se dispersou em modos (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p.95; 2 0 0 1 , p .56-57) e ta l m odo de ocupação é a maneira pela qual "de in íc io e na m aioria das vezes" (isto é, no co tid iano ) nos ocupam os com as "coisas" - m odo que se caracterizaria fu n da m en ta lm e n te pelo m anu­seio e uso daqu ilo com que lidamos. Segundo, no fa to de que, sendo conheci­m ento e lida co tid iana os dois modos fundam en ta is de ocupação que a a n a lít i­ca existencia l reconhece, aquele estaria com o que fu n da d o nesta - o que aponta para certa precedencia da lida co tid iana sobre o conhecer. Nesse se n ti­do, dado que o conhecim ento é, de um m odo ou o u tro , um com p o rta m e n to derivado ou fun da d o , não há m o tivo para conceder a ele o p riv ilé g io na c o lo ­cação do problem a da acessibilidade ás coisas em d e trim e n to daqu ilo que o funda . Logo, damos por dem onstrado o p on to ¡i).

Todavía, v is to que ta n to a lida qua n to o conhec im en to são modos de ocu ­pação, a dem onstração do sentido em que a lida precede o conhecer supõe uma compreensão do que s ign ifica , em geral, ocupar-se com, ser em, ser ju n to a "m undo". Para o nosso o b je tivo , verem os que basta com preender mais de perto com o se dá o nexo de fu ndam en tação entre o conhecer e o se r-n o - m undo com o ta l; por isso, deixarem os o q ues tionam en to da precedência da lida sobre o conhecer para ou tra ocasião.

A té o m om ento , dísso que reconhecemos com o dado o rig in á rio tem os ape­nas os seguintes ind íc ios: que consiste em uma relação com a lgo que se m ostra (as "coisas"), que esta relação é co n s titu tiva do ser do ente que nós somos e que é um dado o r ig in á r io porque a re ferida relação es tru tu ra to d o e qua lque r m odo de existir. 0 p rim e iro pon to que se pode avançar a p a rtir desses dados é

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o de que, ao se compreender este "estar em relação com algo que se m ostra" como caracterizando o modo de ser ente que nós somos (do "suje ito"), reco­nhece-se, com isso, que ele não é cons titu tivo daqu ilo que não tem nosso modo de ser (do "ob je to"). Com isso, não se decide ainda se o "ob je to " (as "coisas") tem uma "subsistência on to lóg ica" "separada" do "suje ito", mas nos atemos simplesm ente ao que se mostra (ao fenôm eno): aquilo que se mostra (as "coisas"), se mostra como sendo d ife rente daquele para quem ele se mostra. Disso resulta que, não obstante se m ostrando como sendo diferentes, ambos os "pólos" do dado o rig iná rio têm em comum o fa to de que, justam ente por se mostrarem como sendo algo, são compreendidos desde uma mesma noção: a noção de ser (Se/n). Nesse sentido, ta n to "nós" como as "coisas" somos entes (Seiende: "sendos") e a investigação do conhecer como modo de estar no m undo assume, queira ou não, o caráter de uma investigação ontológica.

0 fa to de que ta n to "nós" como as "coisas" somos com preendidos a p a rtir da noção de ser não é um fa to exclusivo do com portam en to teórico para com as "coisas"; mesmo na lida co tid iana experim entam os aqu ilo com que lidamos com o algo que é desse je ito e não de o u tro (é uma porta e não uma janela, não obstante ambos sejam), nos compreendemos como sendo dessa maneira e não de outra (como sendo professores e não filósofos). Desse modo, pode- se d izer que o estar no m undo enquanto ta l se caracteriza pelo fa to de que é a p a rtir da compreensão de ser que se compreende aqu ilo com o que se entra em relação e, po rtan to , pela compreensão de tu d o com que lidamos como algo que é, isto é, como um ente. Se o in te rlo c u to r m oderno aceita o dado de que o conhecer é um modo de estar no m undo, ele é, assim, de acordo com os fenôm enos, levado a aceitar que a compreensão do ser, ainda que "vaga e m ediana” , não só é um fa to (HEIDEGGER, 2002a, p.31; 2 0 0 1 , p.5), como ta m ­bém é co ns titu tiva de todo e qua lquer com portam en to e, assim, da existência mesma do "sujeito".

Parece ser para esse fa to que Heidegger aponta ao d izer que “ente é tudo aqu ilo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos com portam os dessa ou daquela maneira, o ente é tam bém o que e com o nós mesmos somos” (HEIDEGGER, 2002a, p.32; 2001, p.6-7) e que " ta n to no 'm ero ' saber do con-

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te x to on to lóg ico de um ente, num 'm ero ' representá-lo, num 'm ero ' pensar em algo, quan to numa apreensão o rig in á ria estou fora no m undo, ju n to ao ente" (HEIDEGGER, 2002a, p .101; 2 0 0 1 , p.62, g rifo do autor). Nesse sentido, chega- se a uma resposta à questão de em que sentido há um acesso pré-teórico a£> ente: isso é assim porque ser ente nada mais é, em princíp io , do que se mostrar no horizon te de compreensib ilídade aberto pela existência do Dasein - hori­zonte este que nada mais é do que a idéia, o sentido (ou uma idéia, um sen­t id o 13) de ser. E, na medida em que "m undo" s ign ifica o mesmo que ente, o "acesso" ao m undo, assim como o seu "ser", estão, desse modo, "garantidos". Mais precisamente, eles estão isentos de te r que apresentar uma prova que garanta sua "subsistência on to lóg ica", uma vez que é um dado orig inário que o m ovim ento pelo qual o Dasein se compreende (isto é, existe) em urna pos' s ib ilidade de seu ser é o mesmo m ov im en to 14 pelo qual o ente aparece, to rn a ' se fenôm eno e, assim, vem ao encontro do Dasein. Eis o "sentido ú ltim o" do "co g ito " de Heidegger.

Ora, mas se a interpretação moderna pôde acompanhar Heidegger até aqui, em que consiste seu "erro” , isto é, sua "inadequação" aos entes que ela procura compreender? De fa to , enquanto modo possível de ser-no-m undo, ela consiste em uma compreensão dos entes que procura in terpretar; e o faz tendo como horizonte uma determ inada idéia de ser. Com isso, ela não deixa de, a seu modo, fazer com que "su je ito" e "m undo" se mostrem no âm bito da compreensão, inaugurado pela existência do Dasein. Por conseguinte, onde está o problema?

Ao assumir que está tem atizando o fenôm eno do conhecimento, parece razoável supor que isso s ign ifica que o in te rlocu to r moderno assumiu que, para que ta l tem atização seja autêntica, não se pode in troduz ir nenhum dado que não se comprove no ou que não seja procedente do fenôm eno mesmo em causa. Todavia, segundo Heidegger, não é isso que ocorre: para interpretar o dado o rig iná rio do "sempre já estar no m undo", ela partiria de um pressupos­to não verificado no fenôm eno. Como compreensão onto lóg ica que, enquanto modo de ser-no-m undo, a in terpretação moderna não pode deixar de ser, essa pressuposição só poderia ser a respeito do ser dos entes que ela visa investigar. Tal pressuposto ou pon to de partida não é senão aquele que assinalamos no

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fim da seção 1 : a cisão entre "suje ito" e "m undo” e a concepção de ambos a partir de uma mesma idéia de ser. Por um lado, temos um "su je ito" a princip io isolado do "m undo" e concebido como um substrato dado e constitu ido ou, em princip io, que poderia se cons titu ir e subsistir em si e por si mesmo, isto é, independentem ente do "mundo". Por outro, a concepção do "m undo '1 como um substrato dado e constitu ido ou, em princip io, que deveria poder se cons titu ir e subsistir em si e por si mesmo, isto é, independentem ente do "sujeito".

Precisamente nesse ú ltim o ponto pode recair mais incisivamente a crítica de Heidegger: o ente ao qual duvidamos te r acesso já está previamente deter­m inado em seu ser - é o ente que atende aos caracteres ontológicos de ser um substrato dado, constitu ído independentem ente do suje ito e que permanece sendo e sendo o ente que é ainda que o su je ito não subsista ou que ta l ente não tenha conta to algum com o sujeito. Da "coisa em si mesma" à qual pre­tensamente não sabemos se temos acesso, temos, não obstante, uma idéia pre­cisa, caso pudéssemos, por assim dizer, "um dia" te r acesso a ta l coisa.

Ao decidir-se previamente por uma determ inada idéia de ser e "prescrevê- la" aos entes a que pretende te r acesso, ela vedaria, justam ente aí, o seu aces­so ao dado o rig inário que, pretensamente, reconhece. Por se apoiar na idéia, "velada em sua origem e não demonstrada em sua leg itim idade", de "ser como constância do ser simplesmente dado (ständige Vorhandenheit)" (HEIDEGGER, 2002a, p.142; 2001, p.96)15, ela consideraria um "não ente", por exemplo, as coisas tais como elas se mostram na visão instável, sujeita a equívocos e ilusões e marcada por variações de hum or (Stimmung), a que estamos sujeitos no co tid iano (Heidegger, 2 0 0 2 a, p.192; 2001, p. 138) - ou, caso assim se queira, ela consideraria um “ não ente” as coisas tais como se nos oferecem aos "sentidos". Como ta l idéia não tem respaldo fenom énico (isto é, nas "coisas mesmas" em causa) e como, em ú ltim a instância, é a partir dela que se fo rja o cenário em que pode aparecer o problema do mundo externo ta l como o viemos com ­preendendo até aqui, não há base no fenôm eno para levantar este problema que, assim, perde o esta tu to de problema autêntico.

Convém deixar claro que, no âm bito da analítica existencial, o problema da interpretação moderna não é o de "ir às coisas" munida de pressupostos e não

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deixar que tais coisas se manifestem em sua "pureza", livres de toda con­tribu ição "subjetiva" (se não subjetiva no sentido "lógico-transcendenta l", ao menos no sentido "psicológico"). Novamente isto iria contra o dado o rig inário do ser-no-m undo: enquanto compreensão daquilo que se mostra a p a r t ir de uma idéia de ser, todo e qualquer com portam ento do "su je ito ” sempre está "carregado de pressupostos” (HEIDEGGER, 2001, §32). A questão está em a interpretação não tom ar como pressupostos ou não se deixar guiar por "idéias g ratu itas e opiniões [E infa lle und Volksbegriffe]" (HEIDEGGER, 2 0 0 2 a, p.2 1 0 ; 2001, p.153)1G, mas procurar "assegurar o tema c ien tifico [isto é, o tema da interpretação filosó fica] a pa rtir das coisas elas mesmas [do fenôm eno em causa]"(/oe. c/f). E, na medida em que a compreensão do ente sempre se dá a pa rtir de uma idéia (conceito, sentido) de ser, todo e qualquer com portam en­to do Dasein está exposto a duas possibilidades extremas: ele "pode haurir con­ceitos pertencentes ao ente a ser interpretado a pa rtir dele próprio ou então força conceitos contra os quais o ente pode resistir em seu modo de ser" (HEI­DEGGER, 2002a, p.207; 2001, p.150). Heidegger diz que essas possibilidades são constitu tivas de toda e qualquer interpretação; nesse sentido, todo e qualquer estar no mundo possível é constitu ído por interpretação. Em certo sentido, este trabalho não faz mais que procurar dem onstrar essa constitu ição da in terp re ­tação a pa rtir do que se mostra em dois exemplos concretos nos quais se assume explic itam ente a tarefa de in te rp re tar a relação entre "nós" e as "coisas", relação que, segundo nos mostra o que vimos até aqui, seria, ela mesma, constitu ída de interpretação.

3 . À guisa de conclusão: um H e id e g g e r idealista?

À guisa de conclusão gostaríamos de d iscu tir brevemente um m a l-en tend i- do que pode haver na compreensão do que chamamos "sentido ú ltim o " do "cog ito " de Heidegger. 0 resultado fo i que "ente" é aquilo que se mostra no horizonte da compreensão de ser; e a compreensão de ser é o elemento cons­t itu tiv o fundam enta l do ente que nós somos. Ora, se só "há" ente onde há

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compreensão de ser, o ente seria constitu ido pelo "sujeito". Logo, só "há" ente se “há" "suje ito", isto é, o ente depende do sujeito. Donde se segue urna patente contradição: onde se procurava uma re fu tação do idealismo, encon- trou-se um idealism o crasso. Corrobora para essa conclusão o fa to de o próprio Heidegger “e log iar" o idealismo, ao dizer que "com relação ao realismo" ele possui "uma prim azia fundam ental". E o "e log io" vai mais longe: "se o títu lo idealismo s ign ifica r o mesmo que a impossibilidade de esclarecer o ser pelo ente, mas que, para todo ente, o ser já é o 'transcendental', então é no idea­lismo que reside a única possibilidade adequada de uma problem ática filo s ó fi­ca" (HEIDEGGER, 2002a, p.274; 2001, p.207).

Todavia, essa objeção tende a deturpar o "cog ito " de Heidegger. O pano de fundo dela é novam ente o pressuposto que Heidegger recusa como uma in te r­pretação não fundada nos fenôm enos: o da cisão entre o "su je ito" e o “ mundo". Ela supõe um suje ito que, se não está já constitu ído, ao menos pode se consti­tu ir desde si e única e exclusivamente a p a rtir de si mesmo. É precisamente o oposto o que se mostra no "cog ito " de Heidegger: se, por um lado, a possibili­dade da existência a cada vez em causa oferece ocasião para que o ente se instaure como ente, por o u tro lado, esta possibilidade mesma só se instaura na referência, ainda que por vezes p rob lem ática17, a este outro , o ente que nós mesmos não somos.

A compreensão de ser não é um con jun to de "idéias" e "conceitos" sobre o ser do ente que cada um de nós "fo rja " em seu ín tim o e depois projeta nas "coisas”. Tampouco o ente é algo "produzido", "fabricado" ou "inventado" por um sujeito. A compreensão de ser é o caráter de ser funda mental de um ente, em v irtude do qual esse ente é o ente que é - e não algo su je ito à sua vontade e que poderia ou não ocorrer a ta l ente. E, sendo compreensão de ser, o Dasein é a condição de possibilidade para que algo venha a ser, isto é, se revele como ente (como um sendo). Porque o Dasein é, fundam enta lm ente , compreensão de ser, o que lhe vem ao encontro é, fundam enta lm ente , ente.

Mas, por ou tro lado, o que se mostra no "cog ito " de Heidegger é justam ente que nenhum com portam ento do "su je ito" e, com isso, nem o próprio "sujeito", se constitu i sem a referência a esse que ou tro que se mostra. Isso sign ifica que

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o com portam ento do Dasein não põe o ente; o "m áxim o" que ele pode fazer é propiciar ( lassen, deixar e fazer) o ám bito em que algo pode v ir-a -ser ente, isto é, se m ostrar desde ser - o âm bito da compreensão de ser. No mais, ela já sem­pre "depende" do (h a t sich angewiesen aufj (HEIDEGGER, 2002a, p.132; 2001, p.8 6 ) ente, de que este mesmo se ponha (sich eigens ste llen ) (HEIDEGGER, 1995a, p.26) no dom ín io aberto pelo com portam ento do Dasein. Esta dependência (Angewiesenheit) (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p. 132, p.94, p. 1 9 3 ; 2 0 0 1 , p.8 6 , p.56 (ve rha fte t)) do Dasein com relação às "coisas" se expressa de modo mais agudo pelo fenôm eno da disposição, que constitu í o ser-em ju n to com o compreender. Ela possibilitaria que algo atin ja, acometa, afete, venha ao encontro do Dasein (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p.193; 2001, p.137).

Mas não é preciso ir tão longe: a possibilidade mesma de uma interpretação se guiar por um dado, isto é, por algo que se mostra, que se oferece por si mesmo, parece aponta r para o fa to de que a dependência aqui é de mão dupla: não só o ente "depende" da compreensão e da interpretação (para se mostrar e, assim, ser ente), mas também estas medem sua "adequação" em função daquele, em função do que e/e mostra. Não obstante, o ente não está disponí­vel como um referente externo, anterior à interpretação; e isso é verdade sobretudo se se compreende por referente externo um "m undo externo" - ao menos se entendemos o term o "m undo externo" ta l como o viemos compreen­dendo aqui. Pois as "coisas mesmas", em referência às quais a interpretação e a compreensão devem se medir, se constituem no m ovim ento mesmo da sua compreensão e interpretação.

Por isso, o e logio de Heidegger ao idealismo não vem sem a ressalva de que essa primazia se dá "por mais oposto [à analítica existencial] e insustentável que seja no que diz respeito aos resultados" e "desde que ele próprio não se compreenda equivocadamente como idealismo 'psicológico '"; e o acréscimo de que "Se, porém, idealismo s ign ificar a recondução de todo ente a um sujeito ou uma consciência (...) então, do ponto de vista do método, esse idealismo se mostra tão ingênuo quanto o realismo mais grosseiro" (HEIDEGGER, 2002a, p.274 e 275; 2001, p.207 e 208, respectivamente). Por ou tro lado, a analítica existencial, apesar de toda crítica ao realismo, concordaria com este, "por assim

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dizer doxograficam ente", na medida em que para ambos as "coisas" de fa to "estão ai", "se dão" (HEIDEGGER, 2002a, p.274; 2001, p.207).

Como no realismo, as "coisas estão aí". Como no idealismo, a condição para que elas se mostrem é algo que constitu i a estrutura do "suje ito" (a compreen­são). Essa estrutura, por sua vez, só é condição de possibilidade do tornar-se fenôm eno das "coisas" por se re ferir a "algo" que "transcende as 'coisas'", algo que é o horizonte em que elas se manifestam (o ser). A analítica existencial - "idealismo (transcendental)" e "realismo (empírico?)"?

Os dois, mas, no fundo, nenhum deles - seja como for, nisso consiste o estranho estatu to da analítica existencial de Heidegger face à interpretação moderna: ela nem pretende te r provado que o mundo externo existe (como pretende o realismo), nem pretende m anter que a existência das "coisas fora de nós" é dubitável ou mera ficção (como no caso do idealismo). Antes, se Heidegger pretende re fu tar não só o idealismo, mas também o realismo, ele procura fazê-lo apontando para o reconhecimento da sinton ia e sincronia 18

que sempre já vige entre a constitu ição do meu próprio ser e a constitu ição do ser das “coisas".

1 Em itá lico no original. Sobre a expressão "crítica fenom enología", c f HEIDEGGER, 2002b, p.115, nota; 2001, p.321.

2 Cf., por ex., a aproximação que ele procura fazer entre seu pensamento e a filosofía de Kant em HEIDEGGER, 1996.

3 Na medida em que esse "sair“ é compreendido como a atividade do sujeito de transcen­der a esfera imanente da consciência em direção ao objeto que estaria além dessa esfera, o problema do conhecimento se transforma no problema da possibilidade da trans­cendência - sobretudo se considerarmos os elementos através dos quais o conhecimento é comumente caracterizado como constitu tivos de todo e qualquer com portam ento que venhamos a assumir em nossa existência. Todavia, se, por um lado, considerarmos o co­nhecimento como um com portam ento específico que podemos por vezes realizar e que o modo de acesso ao ente por ele possibilitado não é o único e nem mesmo o primeiro; e, por outro, que a noção de transcendência, no sentido em que Heidegger a toma, se refe­re a todo e qualquer com portam ento nosso com relação ao ente e ao seu ser, fica claro em que sentido podemos dizer que a problemática envolvida com esta noção é mais ampla que o problema do conhecimento.

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4 A interpretação da relação de Heidegger com seu in te rlocu tor nos termos de uma "re fu­tação do idealismo", bem como a form ulação desta a p artir das idéias de "cogito™ e de argumento ad hominem, devo-as inte iram ente a sugestões do meu orientador, prof. Dr. Pedro Costa Rego. Se, no que segue, não estive à altura das discussões que tivemos a respeito, evidentemente a responsabilidade é toda minha.

5 É assim que o term o Seinsverfassung é vertido pela tradução brasileira (cf. entre ou­tros lugares, HEIDEGGER, 2002a, p.91 e 92; 2001, p.53 e 54). 0 term o Verfassung pode s ign ifica r também "condição, estado, situação", term os que podem levar à idéia de que a estrutura "ser-no-m undo'', que é a Seinsverfassung do Dasein é uma característica que esse ente pode ou não ter. Pelo con trário : tra ta-se do caráter do ser fundam ental do Dasein.

6 Ao contrário das duas definições de argumento ad hominem citadas na nota anterior, as definições dadas nesses três dicionários expressamente citam e/ou afirm am o caráter "contingente", "pessoal” e/ou "singular” do tipo de argumento em questão. Se é verdade que as ressalvas que fizemos, a rigor, não se encontram em nenhum dos lugares citados, também é verdade que ao menos as definições de Locke e Abbagnano parecem poder com portá-la como um "subtipo" de argumento ad hominem. De resto, uma vez esclare­cido o que entendemos por tal argumento, a discussão pode prosseguir, já que para isso pouco importa se a definição tradicional concorda ou não com a nossa.

7 No âm bito da analítica existencial, a rigor dever-se-ia dizer "com as 'coisas', com os ou­tros e consigo mesmo” ; mas por amor à brevidade e porque o que nos interessa é, p rim or­dialmente, a relação de acesso aos entes que não têm o nosso modo de ser, nos lim itare­mos a dizer "relação com as 'coisas'”. A questão que estamos encaminhando poderia ser, em certo sentido, estendida aos entes que têm nosso modo de ser, uma vez que o acesso de cada "eu" aos "outros sujeitos" também é um problema para a filosofia. Todavia, parece-me que tal "extensão” da abrangência da questão demandaria desenvolvimentos ligados especificamente a nossa relação com nossos semelhantes. Por outro lado, isso não impede, a princípio, que aquilo que desenvolvemos aqui contribua para o encaminhamen­to do que se pode chamar a "questão da intersubjetívidade". Em suma: o trabalho será d irig ido prim ordialm ente para a relação entre o "sujeito" e as "coisas" e deixa em aberto se ele contém alguma contribu ição para o problema da relação entre “sujeitos".

8 "Partindo dessa suposição [isto é, partindo da interpretação moderna], não se vê [b le ib t man blind] o que está im plicitam ente co-d ito [m itgesagt] em toda tematização do co­nhecimento, a saber, que conhecer é um modo de ser do Dasein enquanto ser-no-m undo" (HEIDEGGER, 2002a, p. 100; 2001, p.61).

9 Ou, ao menos, em Ser e Tempo e nos cursos e conferências cujas "teses" estão intrinse­camente de acordo com essa obra.

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10 Convém deixar claro que, em Heidegger, isso não resulta um prim ado da disciplina "o n to log ia " sobre a d isc ip lina "ep istem ología'' den tro do género de investigação "filoso fia ", mas sim na dissolução destas distinções disciplinares tradic ionais e "não o ri­g inárias” nas questões mesmas surgidas do questionam ento dos fenômenos. Os títu los "epistem ología” e "on to log ia " são usados aqui para d e lim ita r âm bitos de questões e não disciplinas definidas de maneira estanque.

11 0 que está em questão aqui, em certo sentido, não é senão a discussão entre Heidegger e Husserl sobre se o lugar de constitu ição dos entes, o "lugar do transcendental", é ele mesmo um ente. Em linhas gerais, para Heidegger sim, ainda que este seja um ente p riv i­legiado; já para Husserl o "lugar do transcendenta l" seria "on to log icam ente neutro" - enquanto lugar de posição do sentido do ser dos entes ele é não-posicional. Sobre essa questão, cf. ONATE, 2007.

12 Sobre essa expressão, cf. VALENTIM, 2007. p. 113, entre outros lugares.

13 Tomando os term os "idé ia ” e "sentido" de um modo um ta n to vago, já que uma expli­cação satis fa tória do que se entende por idéia de ser ou sentido de ser demandaria ou tro trabalho. Não se deve supor que essa idéia ou sentido de ser precise de uma elaboração teórica para então estru turar o com portam ento do Dasein, uma vez que a lida cotid iana sempre já opera a p a rtir dela. Trata-se do fa to de que o Dasein, em toda e qualquer relação com o ente, sempre já possui um "saber prévio", uma compreensão prévia sempre já esboçada, projetada (Entwerfen ), im p líc ita e não tem ática do ser do ente com o qual está se relacionando, bem como do seu p róprio ser-em -relação-a esse ente. 0 term o "sen­tid o " é um term o técn ico usado por Heidegger para designar essa estru tura "em que se sustenta a com preensibilidade de a lgo" (HEIDEGGER, 2002a, p.208; 2001, p .151). Já o te rm o "idéia" não é usado sistem aticam ente em Ser e Tempo para tal, mas aparece uma ou outra vez para designar o horizonte de compreensão/interpretação de um ente, seja este "adequado" ou "inadequado", (cf. por ex, HEIDEGGER, 2002a, §21, p. 142 ss., para o prim eiro caso; HEIDEGGER, 2001, ibid., p.96 ss., 2002b, §63, p. 106 ss. e 2001, ibid., p.314 ss., para o segundo caso) Evidentemente, é uma possibilidade da existencia do Dasein to rna r o sentido de ser dos entes tema de uma investigação explícita.

14 "M ovim ento", pois o exis tir do Dasein é um acontecer (Gesc/ieben); e “ mesmo m ovi­m ento", pois, enquanto um transcender que ultrapassa o ente e a ele retorna a p a rtir do ser, esse exis tir é "hora e d ia" de um acontecer "com " o “ente": a "entrada no m undo" deste (W elteingang), isto é, o seu v ir-a -se r no âm bito de compreensibilidade aberto pelo "irrom per" do Dasein no meio do ente. (HEIDEGGER, 1995b, p.39)

15 A decomposição e tim o lóg ica dos term os vorhanden e Vorhandenheit nos dá uma indi cação para uma explicação, por assim dizer, "heideggerianam ente elegante" de por que Heidegger não vê com bons olhos o priv ilég io dado ao conhecim ento: existencialm ente,

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o conhecim ento supõe certo d istanciam ento com relação àquilo que se visa conhecer. Tal d istanciam ento é o rom pim ento de uma proxim idade prévia (da lida cotid iana) e mostra as "coisas" como “algo aí d iante, ao alcance da mão" (vor-Hand). Assim, o vorhandert visa, etim o lóg icam ente , a uma a titu d e com relação às “coisas". Estando ao alcance da mão dessa maneira, elas estão ao mesmo tem po separadas dela e como que assentadas sobre sl mesmas, passíveis de serem manuseadas, mas nâo dependentes desse manuseio. Daí até a tendência de a tr ib u ir uma subsistência separada a todas as "coisas" parece ser só um "pulo", mas um “ pu lo" d ifíc il de interpretar. A esse respeito, o que parece indubitáve l é que Heidegger d iria que ta l "pu lo " "esquece" que ele só fo i possível com base em um com ­portam ento do Dasein para com as "coisas" e que, além disso, este é um com portam ento baseado em uma proxim idade prévia que não pode ser negligenciada. Donde se vê que o problema de Heidegger é menos com o priv ilég io do conhecim ento, como seu argum en­to mesmo pode fazer parecer, do que com a in terpre tação onto lóg ica que está ligada a esse priv ilég io.

'6 Sobre essa tradução dos dois termos entre colchetes, c f. REGO, 2004, p. 113, nota 22.

17 Problemática porque o ente pode se m ostrar como algo que ele não é, quando a in te r­pretação "fo rça conceitos", conform e assinalamos no fin a l da ú ltim a seção. A esse respeito, cf. a noção de aparência como modo possível de o ente mostrar-se (a saber, mostrar-se com o o que ele não é) em HEIDEGGER, 2002a, §7 a) e HEIDEGGER, 2001, ib i- dem. Obviamente, essa tese demanda m aior desenvolvimento.

18 "S inton ia e s incronia": term os emprestados da apresentação fe ita pelo prof. Pedro Costa Rego no III Encontro PROCAD - Ética e Metafísica na Filosofia Moderna, realizado na UFPR (Curitiba/PR), nos dias 08, 09 e 10 de novem bro de 2007.

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