Gestão Financeira Entre as lasses de aixa Renda no rasil · modalidades de crédito—mais...

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Gestão Financeira Entre as Classes de Baixa Renda no Brasil : Abrangente, Diversificada, Engajada Plano CDE e Bankable Frontier Associates 1 Maio 2012 Sumário Famílias brasileiras de baixa renda possuem hábitos financeiros complexos e ativos, utilizando uma ampla gama de instrumentos financeiros para gerenciar o fluxo de caixa diário. O crédito, quando comparado com a poupança, parece dominar em termos do número de instrumentos regularmente utilizados e a intensidade de seu uso. O amplo acesso ao crédito sem dúvida, ajudou a muitos adquirirem ativos que tornam a vida mais fácil, mas o crédito fácil também promove uma maior tentação e carrega riscos. Muitos brasileiros das classes C, D e E sonham em comprar sua casa ou carro próprios, mas muito poucos estão conseguindo guardar dinheiro para metas de longo prazo. Em vez disso, as aspirações de mudança de vida são muitas vezes relegadas as loterias e sorteios, nos quais jogar é extremamente comum, mas ganhar não é. Um marco no acesso financeiro no Brasil, o correspondente bancário, permitiu que milhões pagassem contas—incluindo pagamentos para essas numerosas e variadas modalidades de crédito—mais rapidamente e facilmente, mudando radicalmente o tempo gasto e a distância percorrida para o pagamento de contas. O acesso aos serviços bancários mais abrangentes por meio de correspondentes, no entanto, varia conforme o tipo de região e município, sendo que as pessoas no Norte e Nordeste utilizam os correspondentes para uma maior variedade de serviços. A pesquisa quantitativa, bem como investigações mais profundas em carteiras financeiras individuais são necessárias para melhor entender o impacto dos correspondentes e como esta rede pode ser aproveitada para fornecer uma ampla gama de serviços financeiros para os brasileiros de baixa renda. O conhecimento sobre como os brasileiros de baixa renda gerenciam o seu dinheiro tem sido limitado. Pesquisas anteriores tendiam a se concentrar em áreas geográficas específicas (como favelas 2 do Rio ou a Amazônia), serviços específicos (como crédito ou correspondentes bancários) 3 ou percepções sobre os bancos. 4 Existem poucos dados de pesquisa ou análise antropológica abrangente sobre comportamentos financeiros e de portfólios 5 dos brasileiros. Com o patrocínio da Bill & Melinda Gates Foundation, Bankable Frontier Associates e Plano CDE empreenderam uma série de exercícios de pesquisa qualitativa que acabará culminando em uma pesquisa nacional de acesso financeiro em 2012. Ao analisar os dados qualitativos que nós coletamos até agora, começamos a entender como os brasileiros de baixa renda nas classes econômicas 6 C, D e E - 85% da população 1 Com a mais sincera gratidão, os autores gostariam de agradecer os assistentes de pesquisa Dahlia Domian, Felipe Szabzon, e Juliana Estrella, tradutor Paulo Takaki, e também todos os entrevistados que compartilharam tão abertamente detalhes íntimos de suas vidas financeiras. 2 Estrella, Juliana. O efeito do microcrédito como uma política de redução de desigualdade de oportunidades e melhoria de bem-estar. 2008. Tese de doutorado. Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Rio de Janeiro. 3 Kumar, A., et al. 2006. Expanding Bank Outreach through Retail Partnerships Correspondent Banking in Brazil. Washington DC: O Banco Mundial , e CGAP e FGV. “Branchless Banking in Brazil: Building viable networks” Apresentação feita em 16 de fevereiro , 2010. Disponível : http://www.cgap.org/gm/...1.9.../Branchless_Banking_Agents_in_Brazil.pdf 4 IPEA. Sistema de Indicadores de Percepção Social. Bancos: Exclusão e Serviços. 11 de janeiro, 2011. 5 Para uma exceção veja o trabalho de Eduardo Diniz com a Fundação Getulio Vargas. 6 As classes sociais brasileiras são divididas em cinco grupos, de A a E, onde A inclui os de renda mais elevadas, e E a mais baixa. As classes C, D e E contêm 85% da população, aqueles indivíduos com renda familiar inferior a R$ 3.180 ou 10 múltiplos do salário mínimo. As classes sociais brasileiras são definidas de acordo com dois critérios diferentes. Um deles, aplicado pela ABEP (Associação

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Gesto Financeira Entre as Classes de Baixa Renda no Brasil : Abrangente, Diversificada, Engajada

Plano CDE e Bankable Frontier Associates1 Maio 2012

Sumrio Famlias brasileiras de baixa renda possuem hbitos financeiros complexos e ativos, utilizando uma ampla gama de instrumentos financeiros para gerenciar o fluxo de caixa dirio. O crdito, quando comparado com a poupana, parece dominar em termos do nmero de instrumentos regularmente utilizados e a intensidade de seu uso. O amplo acesso ao crdito sem dvida, ajudou a muitos adquirirem ativos que tornam a vida mais fcil, mas o crdito fcil tambm promove uma maior tentao e carrega riscos. Muitos brasileiros das classes C, D e E sonham em comprar sua casa ou carro prprios, mas muito poucos esto conseguindo guardar dinheiro para metas de longo prazo. Em vez disso, as aspiraes de mudana de vida so muitas vezes relegadas as loterias e sorteios, nos quais jogar extremamente comum, mas ganhar no . Um marco no acesso financeiro no Brasil, o correspondente bancrio, permitiu que milhes pagassem contasincluindo pagamentos para essas numerosas e variadas modalidades de crditomais rapidamente e facilmente, mudando radicalmente o tempo gasto e a distncia percorrida para o pagamento de contas. O acesso aos servios bancrios mais abrangentes por meio de correspondentes, no entanto, varia conforme o tipo de regio e municpio, sendo que as pessoas no Norte e Nordeste utilizam os correspondentes para uma maior variedade de servios. A pesquisa quantitativa, bem como investigaes mais profundas em carteiras financeiras individuais so necessrias para melhor entender o impacto dos correspondentes e como esta rede pode ser aproveitada para fornecer uma ampla gama de servios financeiros para os brasileiros de baixa renda.

O conhecimento sobre como os brasileiros de baixa renda gerenciam o seu dinheiro tem sido limitado. Pesquisas anteriores tendiam a se concentrar em reas geogrficas especficas (como favelas2 do Rio ou a Amaznia), servios especficos (como crdito ou correspondentes bancrios)3 ou percepes sobre os bancos.4 Existem poucos dados de pesquisa ou anlise antropolgica abrangente sobre comportamentos financeiros e de portflios5 dos brasileiros. Com o patrocnio da Bill & Melinda Gates Foundation, Bankable Frontier Associates e Plano CDE empreenderam uma srie de exerccios de pesquisa qualitativa que acabar culminando em uma pesquisa nacional de acesso financeiro em 2012. Ao analisar os dados qualitativos que ns coletamos at agora, comeamos a entender como os brasileiros de baixa renda nas classes econmicas6 C, D e E - 85% da populao

1 Com a mais sincera gratido, os autores gostariam de agradecer os assistentes de pesquisa Dahlia Domian, Felipe Szabzon, e Juliana Estrella, tradutor Paulo Takaki, e tambm todos os entrevistados que compartilharam to abertamente detalhes ntimos de suas vidas financeiras. 2 Estrella, Juliana. O efeito do microcrdito como uma poltica de reduo de desigualdade de oportunidades e melhoria de bem-estar. 2008. Tese de doutorado. Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Rio de Janeiro. 3 Kumar, A., et al. 2006. Expanding Bank Outreach through Retail Partnerships Correspondent Banking in Brazil. Washington DC: O Banco Mundial , e CGAP e FGV. Branchless Banking in Brazil: Building viable networks Apresentao feita em 16 de fevereiro , 2010. Disponvel : http://www.cgap.org/gm/...1.9.../Branchless_Banking_Agents_in_Brazil.pdf 4 IPEA. Sistema de Indicadores de Percepo Social. Bancos: Excluso e Servios. 11 de janeiro, 2011. 5 Para uma exceo veja o trabalho de Eduardo Diniz com a Fundao Getulio Vargas. 6 As classes sociais brasileiras so divididas em cinco grupos, de A a E, onde A inclui os de renda mais elevadas, e E a mais baixa. As classes C, D e E contm 85% da populao, aqueles indivduos com renda familiar inferior a R$ 3.180 ou 10 mltiplos do salrio mnimo. As classes sociais brasileiras so definidas de acordo com dois critrios diferentes. Um deles, aplicado pela ABEP (Associao

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- conseguem fechar suas contas. A imagem que surge fascinante e nica, especialmente em comparao com pases como o Qunia e a frica do Sul, onde mais pesquisas sobre os comportamentos financeiros das famlias de baixa renda tm sido realizadas. CONVERSAS COM CONSUMIDORES BRASILEIROS

Para melhor entender como as famlias nas classes C, D, E gerenciam o seu dinheiro, optamos por conversas com consumidores, individualmente e em grupo, buscando suas descries de gesto financeira a partir da sua experincia vivida. Em abril de 2011, facilitamos sete grupos focais e realizamos 14 entrevistas individuais com 49 beneficirios do Bolsa Famlia em reas urbanas, periurbanas e comunidades rurais do estado do Rio de Janeiro. Ao longo de Outubro de 2011, realizamos oito grupos focais nas reas metropolitanas de So Paulo, Recife e Belm, conversando com um total de 64 pessoas pertencentes s classes econmicas C, D, e E. Tambm em outubro de 2011, realizamos uma srie de entrevistas em profundidade em reas urbanas, periurbanas e domiclios rurais no sudeste, centro e norte do Brasil. Ao todo, conversamos com cerca de 160 indivduos, sondando as suas experincias sobre como ganhar e gastar dinheiro. Maiores detalhes sobre as metodologias de pesquisa utilizadas podem ser encontrados no Apndice A no final deste documento. Descobrimos que os brasileiros de menor renda so gestores financeiros ativos, que utilizam uma grande variedade de instrumentos financeiros. No entanto, se por um lado, seu oramento familiar bastante ativo em relao ao uso de instrumentos de poupana e de crdito; por outro lado os passivos parecem ter um peso maior do que os ativos existentes, pois encontramos muitas famlias que acumularam dvidas significativas. A regularidade da renda familiar, a flexiblidade de conseguir complementar a renda, o risco financeiro minimizado por redes sociais e a disponibilidade generalizada de crdito com parcelas que cabem no bolso criam o cenrio onde as famlias compem seu oramento considerando tambm a multiplicidade de limites de crdito que tm a seu dispor. No entanto, enquanto esta flexibilidade do crdito adaptvel parece ter ajudado famlias a adquirir ativos pequenos e mdios tais como televisores, eletrodomsticos, telefones celulares e at motos, so poucas aquelas que esto acumulando ativos financeiros de longo prazo. Uma das maneiras que imaginam adquirir um bem de alto desembolso, como uma casa ou carro, ganh-lo atravs da loteria ou um sorteio ligado a um ttulo de capitalizao. Dado que os brasileiros possuem dezenas de contas a pagar por ms em qualquer canal bancrio (incluindo os correspondentes bancrios) pagamentos so a operao bancria de maior frequncia. Portanto, no de surpreender que 75% das transaes realizadas na rede de 149.000 correspondentes bancrios do pas so para fazer pagamentos ao invs de realizar outras transaes bancrias.7 Uma coisa certa: entre os pobres do Brasil, o crdito, ao invs da poupana, reina.8 E os bancos, mesmo sendo vistos como seguros, no so usados primordialmente para poupanas mas como canais para crdito e pagamentos.

CLASSES SOCIAIS E O CRESCIMENTO DA CLASSE MDIA NO BRASIL

No Brasil, o entusiasmo e o otimismo em torno do crescimento da nova classe mdia, tanto em populao quanto em volume de ativos, claramente visvel. O Brasil utiliza uma classificao socioeconmica que varia de A (os muito ricos) a E (os muito pobres).

Brasileira de Empresas de Pesquisa) que considera a estrutura familiar, posse de bens e nvel de escolaridade. Outra, aplicada pela FGV, considera a renda familiar, seguida das faixas de salrios mnimos definidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Economia). Ns utilizamos a definio da FGV / IBGE. 7 Banco Central do Brasil, 2008, como citado em CGAP e FGV. Branchless Banking in Brazil: Building viable networks Apresentao feita em 16 de fevereiro , 2010. Disponvel : www.cgap.org/gm/...1.9.../Branchless_Banking_Agents_in_Brazil.pdf 8 Economistas admitem que para muitos propsitos , poupanas e crditos so substitutos: Basu, Kaushik, 1997, Analytical Development Economics: The Less Developed Economy Revisited, Cambridge, MA: MIT Press. Bewley, Truman, 1977, The Permanent Income Hypothesis: A Theoretical Formulation, Journal of Economic Theory, 16(2): 252-292.

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Conforme ilustrado pela Figura 1, esta classificao baseada em faixas do salrio mnimo que vo de 0 a 20 salrios, com a classe E cobrindo a faixa de renda familiar mensal de 0 a 2 salrios mnimos (at cerca de R$ 635 por domiclio por ms), e a classe A a faixa de mais de 20 salrios mnimos (acima de R$ 6.353 por ms). Porm, a partir do incio dos anos 90, houve uma transformao na estrutura de classes socioeconmicas que at ento era representada no formato de uma pirmide com uma larga base de desprovidos e passou a ser representada em uma forma de diamante, como representado na Figura 2. Figura 1: Classes sociais brasileiras descritas como uma pirmide por renda domiciliar mensal

Fonte: Plano CDE Estudo baseado na consolidao de informaes do IBGE e do ( PNAD 2002 e 2009), com valores deflacionados pelo IPCA com a inflao de Julho 2009. Valores de salrio mnimo so de 2002, indexados pelo IPCA. Dados de renda so por nvel de domiclio por ms

Figura 2: A Ascenso das Classes Mdias: C, D e E

Fonte: Plano CDE Estudo baseado na consolidao de informaes do IBGE e do ( PNAD 2002 e 2009).

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Desde a dcada de 90 a estabilizao da economia e as polticas pblicas destinadas aos mais pobres, institudas pelo governo de FHC e Lula contribuiram para um forte crescimento econmico no Brasil e permitiram o florescimento de uma nova classe mdia. O nmero de brasileiros classificados como classe C era de 25% em 1992 e subiu para 34% em 2009.9 Esta mobilidade social pode ser atribuda em parte expanso do emprego formal, que aumentou cerca de 8% (15 milhes de postos de trabalho), principalmente nos segmentos de baixa renda, nos ltimos 10 anos. No s o nmero desses empregos expandiu, mas tambm houve um aumento dos salrios no setor formal. O salrio mnimo aumentou 100% em termos reais, entre 1995 e 2010. O aumento no emprego formal, juntamente com a expanso de programas de proteo social de transferncia de renda para os muito pobres, criou mais estabilidade e uma base previsvel de renda entre os mais pobres.10 Simultaneamente, o poder aquisitivo das famlias das classes mais baixas foi aumentando medida que as taxas de natalidade e os preos dos alimentos reais caram, como mostra a Figura 3.11 Grupos de baixa renda ganharam rendimentos mais estveis e tambm mais espao em seus oramentos para investir em ativos.

Tambm parece existir um componente redistributivo para esta reorganizao dos estratos sociais. A massa de renda disponvel para consumo da classe A caiu 6 pontos percentuais de 1992-2009, enquanto a massa de renda da classe C aumentou em 5 pontos percentuais. Embora o crescimento do tamanho da classe mdia seja impressionante, a desigualdade entre as classes de maior e menor renda parece estar reduzindo em um ritmo mais lento.12 Outro aspecto a ser considerado a distribuio das classes sociais entre as diferentes regies do pas. Enquanto a classe C representa a maior parte no total da populao do pas. Em algumas regies, como a Norte e Nordeste as classes D e E tm uma representatividade maior, pois que juntas representaram 53% da populao no Norte e 64% no Nordeste em 2009.13 Figura 3: Evoluo do salrio mnimo e preo dos alimentos 1990-2010

Fonte: Plano CDE Estudo baseado na consolidao de dados do IBGE e do Ministrio do Trabalho do Brasil 2010. INPC o ndice Nacional de Preos ao Consumidor.

9 Plano CDE clculos baseados em dados do IBGE e PNAD. 10 Esses repasses sociais aumentam a renda familiar (Bolsa Famlia e aposentadoria rural ) e tambm reduzem o custo de assistncia mdica (SUS Sistema nico de Sade), educao (escola pblica) e alimentao (Merenda Escolar) . 11 A taxa de natalidade no Brasil caiu abaixo da taxa de reposio (1.85) em 2009. Fonte: IBGE/PNAD 2009. 12 Apesar do crescimento econmico que ocorreu no Brasil nos anos recentes, a desigualdade est caindo lentamente. O coeficiente GINI brasileiro atual 0.543. Seguindo as mesmas tendncias econmicas, at 2030 o pas espera alcanar um coeficiente GINI prximo ao da Argentina de 2006 (0.488) e, em um cenrio mais otimista, igual ao dos Estados Unidos em 2000 (0.408). Fonte : Clculos realizados pelo Plano CDE basedos no IPEADATA e World Bank Database. 13 Clculos realizados pelo Plano CDE baseados em dados do IBGE e PNAD.

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A EVOLUO DOS SERVIOS FINANCEIROS NO MERCADO DE BAIXA RENDA NO BRASIL

Em conjunto com estas mudanas sociais, a relao dos prestadores de servios financeiros com as classes mdias e baixas mudou substancialmente. Ansiosos para ampliar sua participao em novos mercados e capitalizar com o crescimento da renda disponvel nas classes mdias e baixas, os bancos pblicos e privados comearam a desenvolver estratgias para atender a esses clientes. No setor pblico, a Caixa Econmica e o Banco Popular comearam a abrir contas bancrias para os segmentos mais pobres. No Brasil, os anos entre 2003 e 2004 foram marcados por uma recuperao econmica, acompanhda por uma queda nos ndices de pobreza em consequncia das polticas sociais implementadas at ento.14 Durante este perodo, 1,1 milho de novas contas foram abertas na Caixa, dos quais 85% pertenciam a pessoas com renda mensal inferior a R$ 500.15

Os bancos privados e as financeiras capitalizaram com a crescente parcela de trabalhadores formais e pensionistas, oferecendo emprstimos de baixo risco descontados em folha de pagamento (crdito consignado) e uma srie de outros emprstimos fornecidos atravs de financeiras, e instituies de crdito, muitas vezes apoiadas pelos bancos. Para ter acesso a clientes de baixa renda, muitos bancos formaram parcerias com varejistas, particularmente para a concesso de crdito ao consumidor.16 Essas parcerias proporcionaram aos bancos a oportunidade de compartilhar informaes sobre o histrico de crdito de clientes de baixa renda com os varejistas. Com informaes sobre os consumidores em mos e com o apoio dos bancos, esses varejistas alvejaram os segmentos de baixa renda, tornando-se os principais emissores de cartes de crdito no pas,

atingindo 127 milhes de usurios de cartes contra 91 milhes de cartes de banco emitidos em 2004.17 At 2010, os brasileiros detinham 628 milhes de cartes em mos (incluindo cartes de crdito emitidos por lojas).18 A Figura 4 mostra o crescimento do uso de cartes de dbito e crdito e o declnio de cheques de 2006 a 2010. Figura 4: Instrumentos no monetrios (utilizao) Bilhes de transaes/semestre, 2010

Fonte: Banco Central do Brasil e Deban Hoje, quase todos os grandes varejistas oferecem algum tipo de crdito formal ou informal para o cliente final, inclusive em alimentos.19 Para as famlias de baixa renda em particular, h uma percepo de que a obteno de

14 PNAD, Dieese e Centro de Polticas Sociais da FGV, 2004. 15 Carvalho, Carlos Eduardo and Abramovay, Ricardo. O difcil e custoso acesso ao sistema financeiro. Em Santos, Carlos Alberto dos, org. Sistema Financeiro e as micro e pequenas empresas Diagnsticos e perspectivas SEBRAE . Braslia: SEBRAE. 2004. pp. 17-45. 16 Alguns exemplos so C&A e Banco IBI (recentemente adquiridos pelo Bradesco), Grupo Po de Acar e Ita, Casas Bahia e Bradesco. Outros varejistas como Pernambucanas e Maganize Luiza criaram seus prprios bancos. 17 O Brasil possui uma extensa penetrao de cartes de crdito quando comparado a outros pases na Amrica Latina. Em 2004, o Brasil possuia uma penetrao de 0,293 unidade de carto de crdito per capita, enquanto o Chile, que possui uma renda per capita mais alta possuia uma penetrao de 0,166 per capita. Zouain, D. M. e BARONE, F. M. Mercado dos cartes de crdito no Brasil e sua relao com micro e pequenas empresas. Braslia: Sebrae/FGV. Julho 2007. 18 Febraban, 2010. 19 Necessrio para o consumidor , o crdito tambm aumenta e diferencia os servios para o varejista , facilitando as compras e criando um canal de comunicao e promovendo a relao com o consumidor. Santos, A.M. and Costa, C.S. Caractersticas Gerais do Varejo no Brasil. BNDES, 1997.

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crdito por meio de varejistas mais fcil e menos burocrtica. Entre os grandes varejistas como as Casas Bahia, por exemplo, os consumidores de baixa renda respondem por 80% das vendas, e a loja tem uma carteira ativa de 11 milhes de tomadores de crdito. As Casas Bahia no exigem prova de renda ou fiador para fornecer crdito.20 Em alguns casos, os varejistas adotam medidas como a entrega obrigatria dos produtos para confirmar os endereos dos clientes e exigem referncias de vizinhos.21 Estas redes de varejo possuem alcance extraordinrio e so capazes de estender o crdito at mesmo em reas remotas do pas.

Desvendando uma forma de gerenciamento financeiro nica no Brasil

Atravs da aplicao de uma variedade de mtodos de pesquisa de campo em vrios pases,22 encontramos evidncias de que os brasileiros de baixa renda tm acesso e usam uma grande variedade de instrumentos financeiros. De fato, tm uma maior diversidade de tipos de ferramentas do que aquelas utilizadas pelo mesmo pblico no Qunia ou na ndia. Enquanto famlias de baixa renda de todas as partes do mundo poupam e pedem emprstimos utilizando uma ampla gama de estratgias financeiras formais e informais, o nosso trabalho de campo sugere que os brasileiros de baixa renda tm um nmero particularmente grande de dispositivos financeiros disponveis. No Brasil, foram identificados 46 instrumentos financeiros diferentes, formais e informais (ver Apndice B), enquanto foram identificados 35 na frica do Sul, 36 no Mxico, 37 na Colmbia, 39 no Qunia, e 42 na ndia.23 Figura 5: Exemplos dos instrumentos financeiros existentes no Brasil

20 Prahalad C. K.and Hart, S. The Fortune at the Bottom of the Pyramid. Wharton School Publishing, 2004. 21 Spers, Wright and Castro. Mapeamento do potencial de consumo da populao de baixa renda no Brasil: uma anlise do setor de crdito e de bens de consumo. FEA/USP 2006. 22 Isso inclui no apenas o trabalho qualitativo feito para esta informe, mas tambm se baseia em pesquisas quantitativas feitas pela BFA para bancos na frica do Sul, Mxico, Colmbia, Qunia e ndia, em nome do programa GAFIS. Veja GAFIS Focus Note 2. Na frica do Sul e na ndia, tambm utilizamos a pesquisa Financial Diaries, conforme relatado em Collins, D et al (2009) Portfolios of the Poor. Princeton, NJ: Princeton University Press. 23 O nmero de instrumentos financeiros determinado atravs da agregao de todos os instrumentos formais e informais mencionados nos questionrios piloto e de campo, especialmente atravs de perguntas especficas sobre onde as pessoas buscariam um emprstimo numa emergncia. O mesmo critrio por ser um instrumento nico foi utilizado ao redor de todos os pases. Por exemplo, uma conta de depsito bancrio um tipo de instrumento, cartes de crdito um outro tipo ao redor de todos os pases.

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Nota: Para uma explicao mais detalhada por favor veja o Apndice B.

Alm disso, a Figura 5 sugere que h uma ampla gama de instrumentos financeiros formais e informais, de curto e longo prazo, tais como a poupana, crdito e ferramentas de emergncia que os brasileiros usam para administrar seus fluxos de caixa. Vrios destes produtos tais como ttulos de capitalizao, consrcios, e uma variedade de tipos de seguros tambm so usados unicamente pelos brasileiros, o que contrasta a ampla variedade de tipos de produtos similares que existem em outros mercados. Os brasileiros de baixa renda so gestores de dinheiro experientes e criativos, pois utilizam desde instrumentos financeiros sofisticados tais como aplicaes em renda fixa e ttulos de capitalizao mas tambm costumam compartilhar salrios entre duas famlias para esticar o dinheiro em dois contracheques. E como sugerimos a seguir, embora o crdito seja uma alavanca importante para o uso de instrumentos financeiros no Brasil, as pessoas que encontramos tambm usam uma parafernlia de dispositivos de poupana, listados no lado esquerdo da Figura 5. Os brasileiros com quem conversamos - mesmo aqueles com baixa escolaridade - tambm tm um bom conhecimento sobre esses diferentes dispositivos. A classe C, em particular, apresenta uma certa sofisticao e habilidade em administrar o uso destes produtos. Por exemplo, em Recife, entrevistados da classe C conheciam os detalhes dos juros cobrados em cartes de lojas diferentes de acordo com o nmero de pagamentos que seriam feitos. As pessoas da classe C- entrevistadas em So Paulo informaram que selecionavam bancos tomando como base a melhor oferta dos ttulos de capitalizao. Enquanto outros comparavam as taxas de juros sobre emprstimos e sobre o cheque especial, utilizando um ou outro produto em cada banco, chegando a se relacionar com at quatro bancos. Uma possvel explicao para a presena de portflios to amplos parece ser a presena de rendimentos estveis. Nosso trabalho sugere que muitas famlias brasileiras tm uma fonte bsica de renda regular e bastante confivel, mesmo quando trabalham no setor informal. Embora o emprego formal (com "carteira assinada") seja altamente cobiado por garantir um trabalho regular com remunerao estvel e benefcios, descobrimos que os trabalhadores informais tm rendimentos muito mais previsveis no Brasil do que em outros pases que estudamos, incluindo o Mxico ou a ndia. No Brasil, mesmo os mais pobres tm suas rendas complementadas por pagamentos mensais do Bolsa Famlia que garantiu o aporte de um valor mdio de R$ 115 por ms em 2010. Mas, alm de ter acesso a este alicerce estvel de renda, as famlias tendem a ter tambm um componente varivel na renda. Curiosamente, os rendimentos de muitos domiclios pobres costumam ser variveis para cima. Muitas famlias de baixa renda recebem uma renda extra gerando oportunidades de trabalho informal ("bicos"), como, por exemplo, cozinhando nos finais de semana, limpando casas, vendendo roupas, cortando cabelo, ou vendendo produtos de beleza. Observamos que os pobres de outros pases onde o trabalho escasso recorrem a poupana e ao emprstimos para cobrir as interrupes da renda e os gastos inesperados, enquanto muitos brasileiros tentam a ganhar mais a partir da fontes de renda irregulares, muitas vezes informais, para satisfazer seus desejos de consumo. A presena de servios pblicos abrangentes e razoavelmente eficazes, bem como as redes de segurana sociais tambm garantem que os riscos financeiros de grandes propores se tornem menos comuns, minimizando assim a presso psicolgica sobre as famlias pobres. Por exemplo, ao contrrio de outros pases, os custos de sade de emergncia - incluindo os custos de transporte e vrios meses de salrios perdidos esto cobertos pelo sistema pblico de sade e pelas redes de segurana sociais. O servio de seguridade social paga penses para aqueles que contriburam para o INSS e a constituio garante uma penso mnima, mesmo para aqueles que atingem a idade de aposentadoria sem nunca terem contribudo para a previdncia social. A garantia deste rendimento regular e a presena de redes de proteo social parecem diminuir a presso para que as famlias de menor renda acumulem ativos financeiros para cobrir suas necessidades financeiras comuns o que motiva a acumulao de ativos em outras partes do mundo, principalmente para cobrir acidentes srios, doenas graves, garantir a aposentadoria ou a perda do trabalho.

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OS PASSIVOS DO ORAMENTO FAMILIAR: Consumidores de baixa renda amam, odeiam, e convivem intimamente com uma ampla variedade de instrumentos de crdito

Se o crdito sempre uma maldio e uma beno para as famlias de baixa renda, o Brasil um exemplo de seus excessos. Os Brasileiros com quem falamos tinham uma grande variedade de fontes de crdito para recorrer, as utilizavam com frequncia e, muitas vezes, as consideravam como parte do seu oramento mensal.

Moderador do grupo focal: O limite do cheque especial do banco ... no para uma emergncia ? Resposta: No, se tornou uma rotina, parte do salrio. So Paulo, Classe D

Os tipos de crdito disponveis so amplos e facilmente disponveis para os segmentos de menor renda Mesmo as famlias de menor renda tm acesso a emprstimos formais e informais em dinheiro por meio de uma enorme diversidade de modalidades de crdito ao consumidor. Quase todas as compras podem ser feitas com crdito formal, com pagamentos feitos em parcelas no carto de crdito ou no carto de loja, tambm podem ser parcelados em carn para poderem acompanhar melhor a quitaao das prestaes. Como mostra a Figura 6, mesmo entre as pessos da classe E e beneficirios do Bolsa Famlia, observamos o uso intenso do crdito formal com carns e cartes de loja atingindo as classes mais baixas para compras de consumo e de pequenos bens. H tambm uma importante atividade no universo do crdito informal entre os varejistas locais, emprstimos entre amigos e familiares, e emprstimos de cartes de crdito de terceiros quando as pessoas no podem ter acesso ao prprio. As facilidades de emprstimos bancrios e cheque especial tambm atingem as faixas de renda mais baixas. Entrevistados da classe D afirmam ser capazes de acessar os emprstimos em dinheiro nos bancos. Quase todos com emprego formal podem fazer uso dessas facilidades atravs de sua conta corrente ou podem mesmo acessar o emprstimo consignado com desconto em folha atravs de bancos ou outras instituies financeiras. Os participantes dos grupos focais relataram contratar emprstimos bancrios para valores to baixos quanto R$ 100 (US$ 55). Vrios entrevistados em nossa amostra do Bolsa Famlia relataram tomar emprstimos de R$ 200 (US$ 110) do banco para ajud-los a lidar com doenas na famlia. Os tipos de crdito mais comuns so de curto e mdio prazos, utilizados para financiar compras e fechar as despesas do dia a dia. Estes no so grandes emprstimos de longo prazo. Apenas na classe C verificamos um endividamento maior com emprstimos de longo prazo para adquirir bens como habitao e automveis. A seguir, a Figura 6 mostra os diferentes instrumentos, formais e informais, utilizados pelos entrevistados das classes socioeconmicas mais baixas. Famlias mais pobres s vezes conseguem obter grandes emprstimos, particularmente para capital de giro, mas geralmente usam fontes informais para obter esses emprstimos. Por exemplo, um pescador em Manaus nos explicou como ele pede emprestado R$ 6.000 (US$ 3.313) de um comerciante na cidade cada vez que ele leva o seu barco para uma viagem de pesca. Duas vezes por ms, ele recolhe esta quantia para pagar seus funcionrios, o aluguel do barco, os suprimentos e o combustvel. O valor do emprstimo - sem juros - deduzido do valor da pesca. Enquanto ele gerencia enormes quantias de dinheiro para o seu negcio, ele s consegue ficar com cerca de R$ 1.200-1.500 (US$ 662-828) por ms para si prprio.

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Figura 6: As modalidades de crdito disponveis para cada classe social at mesmo para as classes mais baixas permitem o acesso formal ao crdito para consumo, se no aos emprstimos em dinheiro.

As famlias brasileiras de baixa renda convivem intimamente com o crdito, cuidando para que o oramento se ajuste dentro dos limites de crdito disponiveis

O crdito no apenas um instrumento pouco frequente usado para adquirir bens ou lidar com grandes emergncias. Em vez disso, ele usado regularmente para muitas compras para facilitar pagamentos de consumo e parcelar os pagamentos de forma que caibam em seus fluxos de caixa.

"O mximo que podemos fazer tentar comprar em parcelas para conseguir algo. Acabei de quitar uma coisa , ento eu compro outra no lugar e assim por diante. desse jeito que vai, n? " Ibina, Classe E

Muitos dos nossos entrevistados, particularmente nas classes C e D, estavam gastando at os limites de suas rendas e utilizando as linhas de crdito a que tem acesso como parte regular dos seus oramentos: "Eu pego o meu salrio, e a primeira coisa que fao pagar o carto de crdito para que eu possa gastar novamente. Eu pago para gastar dinheiro. Hoje fui ao Banco do Brasil e depositei R$ 530 (US$ 292) em minha conta corrente ... Paguei meu carto de crdito com um dbito em conta corrente, R$ 283 (US $ 156), de modo imediato,R$ 283 dos R$530 (US$ 156 do US$ 292) foram retirados para pagar o carto de crdito do Banco do Brasil. Ento, eu usei o saldo para pagar o meu cheque especial e retirei o limite de cheque especial em dinheiro ali mesmo para us-lo novamente. Eu pago as pequenas taxas de R$ 20 (US$ 11) ... Eu pago para pegar emprestado novamente. "-So Paulo, Classe C Da mesma forma, uma professora de So Paulo nos explicou que ela utilizava o limite total do cheque especial do banco todos os meses para pagar as contas, pois ela sabia com antecedncia que iria exceder o seu salrio. Seu marido geralmente a ajudava a preencher a lacuna no oramento, caso contrrio, ela rolava a dvida e o pagamento dos juros para o ms seguinte. Como ela, muitos sabem de antemo que as suas despesas iro exceder os seus rendimentos. Ativamente e habilmente as familias equilibram os pagamentos e as fontes de crdito para esticar seus rendimentos ao mximo que podem, e costumam se referir a esta prtica como a habilidade de fazer o salrio render (fazer mais com menos renda). Tambm comum elaborarem uma lista de prioridades entre as contas a serem pagas, atrasando os pagamentos que cobram juros mais baixos. Esta forma de utilizar instrumentos financeiros demonstra uma capacidade de lidar com as caractersticas complexas de produtos e

Classe

E Formal

Cartes de loja

Compras parceladas

Informal Pedir emprestado o carto de crdito de terceiros

Pedir emprestado de amigos e familiares

Fiado em loja

Agiotas nas emergncias

Classe

C

Formal Emprstimos bancrios (inclusive para habitao e

automveis)

Carto de crdito

Cheque especial

Financeiras

Compras parceladas

Informal

Pedir emprestado a amigos e familiares

Fiado em loja nas emergncias

Classe D

Formal

Cheque especial

Cartes de lojas

Compras parceladas

Consrcios

Informal Pedir emprestado o carto de crdito de

terceiros

Pedir emprestado de amigos e familiares

Fiado em loja

Agiotas nas emergncias

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regras financeiras a fim de maximizar o fluxo de caixa, sem perder o acesso aos bens. Os entrevistados referem-se a esta complexa habilidade financeira de "jogar com o salrio", o que implica em criar estratgias, como se estivessem jogando um jogo para maximizar os gastos com uma renda limitada e parcialmente incerta. Descobrimos tambm que as famlias procuram bens de consumo com pagamentos parcelados justamente para que possam caber e se ajustar aos seus rendimentos. Esse comportamento, sem dvida, permitiu que muitas famlias brasileiras adquirissem bens que tornam a vida cotidiana mais fcil e confortvel. Porm, por terem uma parte to grande da renda destinada ao pagamento de dvidas, qualquer reduo ou perda da renda de um membro da famlia - mesmo que pequena e casual como dos "bicos", torna a situao impossvel de ser mantida, e facilmente leva muitas pessoas a sujar seu nome.

Para alguns, ficar com o nome sujo nos cadastros de restrio ao crdito quase esperado. Em um estudo recente conduzido pelo Plano CDE em Recife e em So Paulo com diferentes classes sociais24, os entrevistados indicaram situaes que so tpicas entre indivduos de sua classe social. Os segmentos D e E relataram que ter o nome sujo tpico entre os indivduos de suas classes sociais. Como pode ser visto na Figura 7, a proporo tambm alta 34 - 41% na classe C, particularmente na classe C-, onde muitos chefes de famlia esto informalmente empregados.25 Figura 7: Quais prticas voc associa com as pessoas de sua classe social?

Fonte: Plano CDE, 2010. Amostra: Recife 609, So Paulo 1006 (dados no ponderados)

TRS VISES DE CRDITO:

A boa: o crdito que cabe no bolso facilita a aquisio de bens que seriam inatingveis

A complementao da renda irregular para pagar despesas adicionais comum entre as classes C, D, E. Muitas famlias tm uma pessoa cuja renda seja do setor formal ou informal serve como um alicerce do oramento

24 Plano CDE, 2010. 25 Quando os nomes dos consumidores so colocados na lista negra do SPC ou Serasa, so chamados de "negativados" e so impossibilitados de utilizar as fontes formais de crdito at que sua situao de crdito seja regularizada com o pagamento das dvidas ou aps cinco anos, o que acontecer primeiro. O comerciante avisa ao indivduo que ele esta inadimplente antes que seu nome siga para o Servio de Proteo ao Crdito (SPC) ou Serasa. O cliente possui 10 dias para restituir e limpar o nome. Se no o fizer, o comerciante tem um prazo de 5 dias para enviar o nome ao SPC ou Serasa. No Brasil, ainda no h bureau de crdito positivo para ajudar as classes mais baixas a construir um histrico de pagamentos. (Dos Bancos De Dados E Cadastros De Consumidores. Disponvel 28/02/2012: http://jus.com.br/revista/texto/4263/bancos-de-dados-e-cadastros)

70%

54%

41%

34%

21%

17%

0% 20% 40% 60% 80%

Classe E

Classe D

Classe C-

Classe C+

Classe B

Classe A

Nome sujo no cadastronacional de crdito

http://jus.com.br/revista/texto/4263/bancos-de-dados-e-cadastros

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familiar e suplementada com distribuies regulares de programas sociais como o Bolsa Famlia ou a aposentadoria e ganhos irregulares de pequenos negcios e trabalhos ocasionais. O emprego regular, especialmente de carteira assinada, muito valorizado pela estabilidade, enquanto que a renda suplementar facilita o maior acesso ao crdito. "Meu marido ganha R$ 1.200, e ele tem uma moto. Ele me disse: Agora que voc est vendendo Avon, vamos ver se podemos comprar um carro. Voc me ajuda em casa pagando algumas contas e com o meu dinheiro eu vou pagar o carro. " Eu disse que tudo bem. A parcela do carro de R$ 700, e eu o ajudo; com todo o dinheiro que eu ganho eu o ajudo "- So Paulo, Classe C2 Quando perguntamos por que o crdito to importante quando comparado poupana, os entrevistados afirmaram que o crdito torna os bens que so caros mais acessveis. E se por um lado alguns bens comprados via crdito parecem no essenciais, por outro estes bens trazem melhorias tangveis significativas na qualidade de vida das pessoas. Afinal, estes bens podem abrir novas oportunidades de trabalho ou facilitar a mobilidade, tais como comprar roupas adequadas para uma entrevista no contexto brasileiro onde a noo de estilo importante, ou mesmo economizar o tempo de transporte dirio utilizando uma moto no lugar do transporte pblico.

"Consegui mobiliar a minha casa inteira. Comprei mveis atravs de um financiamento parcelado ... Agora eu estou pagando parcelas mensais, mas se eu tentasse comprar todos os mveis vista, eu nunca conseguiria. " Ibina, Classe E

Tal uso extensivo de crdito no uma consequncia da falta de compreenso ou da baixa escolaridade. Muitos entrevistados mantm um controle cuidadoso dos valores e do nmero de parcelas devidas e registram mentalmente um grande nmero de bens adquiridos via crdito. O conhecimento dos produtos financeiros e de suas mecanicas de funcionamento aumenta com a experincia pessoal e com a aprendizagem com outros, sobretudo a famlia e os amigos. Mesmo entre as pessoas menos escolarizadas que no completaram o ensino fundamental e pertencem classe E, existe uma boa compreenso dos mecanismos de crdito:

Se for R$300 (US$ 165), so R$300 em 30 dias, sem juros. Isto chamado de promissria, o imposto j esta embutido no preo das mercadorias. Goiana, Classe E

E, no final das contas, muitos vem o crdito como sendo barato se no deixar acumular demais:

De vez em quando juros so cobrados no carto de crdito, mas pouco, muito pouco. Eles acrescentam uma pequena taxa ... uma taxa de R$ 2-3 (US$ 1,10-1,65), mas isso no faz muita diferena. Goiana, Classe E

A Ruim: Utilizar o limite total de crdito significa que ele no est disponvel para emergncias Considerando que as pessoas atingem com frequncia seu limite de crdito com as compras do dia-a-dia, muitas vezes o crdito no est disponvel durante emergncias. "Eu penso assim, para mim e para a maioria das pessoas ... O seu carto esta no limite, mas voc paga a sua fatura, e isso o libera em dois, trs dias, ou mesmo em 24 horas. Voc comear a comprar de novo, mas voc j esta devendo no ms. Nunca h dinheiro sobrando. " Recife, Classe C Desta forma, nas emergncias as pessoas buscam pelos amigos e familiares para obter o dinheiro de que necessitam.

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"O dinheiro se foi, minha moto quebrou, eu bati em um carro, os reparos foram de R$ 300. Eu no tinha dinheiro, meu carto estourou, cheio de dvidas. Eu pedi ajuda a minha me, e ela me emprestou o carto dela. Eu dividi o pagamento em trs parcelas. A fatura veio, e eu no fui capaz de pagar. Ento ela pagou, e eu estou pagando a ela de volta lentamente. " So Paulo, Classe C

Quando todas as outras opes de crdito se esgotam, recorrem aos agiotas para os emprstimos de emergncia. Estes emprstimos vm com altas taxas de juros. Porm, a demora em pagar um emprstimo do agiota significa esgotar uma fonte de recursos de emergncia no curto prazo.

Facilitador do grupo focal : Que taxa de juros ele cobra? Resposta: 30, Eu pego 100 e pago 130. Facilitador do grupo focal: Para fazer o qu, para pagar o qu, que emergncia voc teve? Resposta: Normalmente as contas de gua e eletricidade, ou s vezes voc tem algo inesperado: remdio para febre. Ento eu vou l e pago depois ( Nota: esta pessoa pegou emprestado R$ 300, e teve que pagar R$390 em um ms, 30% de juros ao ms26). Belm, Classe D

E A Pior: Na falta de controle, o crdito pode fechar as possibilidades e comprometer as relaes pessoais tambm verdade que algumas pessoas evitam o crdito. Estas pessoas parecem estar menos preocupadas com custo e tm medo que o crdito os tornem mais propensos tentao de gastar; temem perder o controle e o privilgio de ter acesso a emprstimos, correndo o risco de ter o nome sujo nos cadastros de crdito.

"Eu no podia limpar meu nome. Foi a minha irm que me colocou na lista negra. Agora eu no tenho a coragem de tentar pagar com um carto. Em vez disso, eu divido os pagamentos e pago com o carn." Recife, Classe D Por um lado, entre os mais pobres existe a percepo de que as alternativas informais de crdito, independentemente dos custos e riscos, so preferveis s fontes formais, pois h menos burocracia no acesso aos emprstimos e porque as regras sempre podem ser negociadas. Por outro lado, essas relaes podem se tornar suscetveis ao abuso e levar a um endividamento em grupo. Por exemplo, tambm bastante comum entre as classes C, D, e E o pagamento de despesas com os cartes de crdito de amigos e familiares. Esta prtica pode ser para uma necessidade de uma s vez, mas particularmente comum nas compras em parcelas.27 Nos pagamentos parcelados os juros costumam ser menores quando o pagamento com o carto de crdito, pois o risco de crdito parcialmente partilhado com o emissor do carto de crdito e no se restringe apenas ao comerciante. As pessoas que no tm acesso a um carto de crdito costumam pedir emprestado o carto de amigos para parcelar as compras e pagar os amigos mensalmente em dinheiro. Embora esta dependncia de instrumentos financeiros de terceiros possa ser til para a aquisio de ativos e nos momentos de emergncia, esta prtica tambm costuma resultar no rompimento de relacionamentos e em riscos morais, pois podem impedir amigos ou parentes de ter acesso a crdito, levando-os muitas vezes a sujar seus nomes.

26 Taxas de juros e comportamentos equivalentes de agiotas em torno destes emprstimos foram descobertos na frica do Sul e descritos em detalhes no Captulo 5 de Portfolios of the Poor, citado acima. 27 Essa atitude tambm comum em outros pases. Veja por exemplo Ossandn, J. et al. 2011. The financial ecologies and circuits of commerce of retail credit cards in Santiago de Chile. Disponnvel: www.imtfi.uci.edu/imtfi_2011_ossandon para uma anlise de compartilhamento de cartes de crdito no Chile.

http://www.imtfi.uci.edu/imtfi_2011_ossandon

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OS ATIVOS DO ORAMENTO FAMILIAR: Os brasileiros de baixa renda ficam presos na ciranda do crdito raramente conseguindo enxergar a necessidade de construir um patrimnio

A cultura do crdito ao consumidor no Brasil parece criar formas distintas de adminsitrar o fluxo de caixa entre as famlias de baixa renda. Este padro de comportamento muito diferente daqueles que observamos em outras partes do mundo. Entre as famlias brasileiras de baixa renda, muitas vezes a renda j foi comprometida antes mesmo de ser recebida. Como uma entrevistada da classe D explicou em Belm, "O dinheiro apenas passa pelas nossas mos." Assim sendo, o dia do pagamento permite apenas que as dvidas sejam quitadas e que novas dvidas sejam novamente acumuladas. O hbito de economizar para atender s necessidades dirias do fluxo de caixa pouco comum no Brasil. Em contrapartida, verificamos na frica do Sul que quando as familias recebem um grande aporte de renda, como um salrio mensal ou o pagamento de um subsdio do governo, elas costumam poupar e gastar lentamente medida em que surgem as necessidades de consumo ao longo do ms. A Figura 8 representa graficamente a diferena entre os padres de despesas domsticas entre os dois pases. Figura 8: Padres de gasto no Brasil so significativamente diferentes daqueles encontrados entre famlias com a mesma faixa de renda na frica do Sul.

Para ilustrar estas diferenas com situaes da vida real, vamos examinar o comportamento financeiro de uma mulher Sul-Africana, Mimimi, e de uma mulher brasileira, Rosa. Em que pese as diferenas estruturais entre os contextos scio econmicos destes dois pases, estas mulheres de baixa renda compartilham algumas semelhanas significativas.28 Em primeiro lugar, a renda familiar mensal de ambas comparvel. Mimimi uma mulher de 46 anos de idade,morando na periferia da Cidade do Cabo e que administra um shabeen (bar de municpio) enquanto o seu marido trabalha como jardineiro. Mimimi uma mulher de negcios extremamente experiente e consegue em mdia uma renda de R$ 588 mensalmente com a venda de cerveja e o dinheiro que arrecada sobre o uso da jukebox e da mesa de sinuca no shabeen.. Seu marido ganha um salrio de R$ 335 por ms como jardineiro em uma casa particular, recebendo seu salrio diretamente em sua conta bancria. A Mimimi tem trs filhos, mas dois moram na rea rural com a sua me. O mais novo mora com ela, e ela recebe um subsdio de apoio criana do governo no valor de cerca de R$ 54 por ms. Apesar de ter uma renda familiar de apenas R$ 977 por ms, Mimimi consegue economizar todo ms quase 60% do que ganha em dois consrcios informais. Como nos explicou, o casal desejava construir uma casa na rea rural para ter uma "casa da famlia", onde eles podem organizar festas tradicionais e funerais. Durante o ano em que a conhecemos, Mimimi e o marido conseguiram economizar um pouco mais de R$ 6.516 e boa parte deste valor foi utilizado para a construo da casa.

28 De acordo com o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto per capita, ajustado pela PPC era US $10.360 na frica do Sul e $11.000 no Brasil em 2010. Ver http://data.worldbank.org/country.

-1000

-600

-200

200

600

1000

1st 5th 10th 15th 20th 25th 30th

Brasil

0

200

400

600

800

1000

1st 5th 10th 15th 20th 25th 30th

frica do Sul

Pagamento

Pagamento Gasto ao longo do ms

Acmulo de novas dvidas para pagar despesas do dia a dia

1. 5. 10. 15. 20. 25. 30. 1. 5. 10. 15. 20. 25. 30.

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Rosa mora em Belford Roxo, Rio de Janeiro, e tem aproximadamente o mesmo rendimento que Mimimi. Porm suas fontes de renda so mais diversificadas. Rosa junta o salrio do trabalho como empregada domstica, com a comisso que recebe pela venda de cosmticos e pelo recolhimento de latas para reciclagem. O pagamento do subsdio do Bolsa Famlia de R$ 91 que Rosa recebe para seu filho ajuda a cobrir o oramento quando sua renda mensal de cerca de R$ 706 acaba. Apesar de Rosa e seu marido estarem separados, eles continuam a viver juntos porque nenhum pode arcar com o custo de viver por conta prpria. Durante muitos anos, o casal juntou recursos para construir a prpria casa e, pouco a pouco, investem neste projeto sempre que o oramento permite. A Rosa gasta mais do que ela ganha, desejando adquirir eletrodomsticos novos e finalizar o divrcio com o marido. No momento da nossa entrevista, Rosa devia R$ 1.508 a um amigo que pagou as parcelas dos seus eletrodomstidos nas Casas Bahia e pagou os honorrios do seu advogado. O que orieenta o comportamento de Rosa neste caso, no o saldo devedor dos emprstimos, mas o valor das parcelas e o nmero delas a quitar: trs no fogo e nove na mquina de lavar. Quando um parcelamento termina, Rosa costuma assumir um novo. Caso Rosa encontre uma oferta tentadora que no consiga adiar, ao invs de deixar de consumir, ela ir aumentar a sua renda naquele ms com a venda de cosmticos no porta em porta para conseguir pagar. A Figura 9 mostra as diferenas no comportamento financeiro entre Mimimi e Rosa. Embora Mimimi tambm use a linha de crdito oferecida pelo seu fornecedor de cerveja a cada ms, ela tem poucas opes de crdito disponveis. Por esta razo e para realizar o sonho da sua casa, Mimimi costuma poupar uma boa parcela de sua renda mensal no seu consrcio informal. Rosa, pelo contrrio, foca boa parte da sua energia no pagamento das parcelas para comprar um fogo e uma mquina de lavar roupa para tornar sua vida mais fcil. Figura 9: As diferenas entre ativos e passivos nos portflios financeiros no Brasil e na frica do Sul

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29 Deve-se notar que para uma comparao mais completa dos balanos, deveramos considerar o valor dos ativos no financeiros, incluindo os bens que Rosa comprou. Infelizmente no temos esses dados.

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Mimimi uma poupadora muito hbil que se destacou entre as famlias entrevistadas na pesquisa de domiclios Financial Diaries da frica do Sul. Mas, mesmo assim a maioria destas famlias pouparam um pouco das suas rendas mensais, em mdia de 21% a cada ms.30 Os populares consrcios informais existentes na frica do Sul servem como principal impulsionador destas elevadas taxas de poupana. Enquanto Mimimi parece encontrar conforto e segurana com seus ativos financeiros, Rosa prefere, como outras brasileiras, antecipar o acesso aos bens de consumo antes mesmo de conseguir pagar o preo vista. Apesar dos balanos financeiros brasileiros apresentarem maior relevncia aos passivos, os ativos tambm foram acionados entre os entrevistados. Como acontece com famlias de baixa renda em vrios contextos, uma das maneiras mais comuns de economizar esconder dinheiro em casa, o que permite o acmulo de pequenas somas. Mas, raramente esta estratgia ir servir para acumular grandes somas de dinheiro:

"Eu guardo dinheiro em casa para uma eventualidade. Se eu precisar pegar um txi no meio da noite ... Este dinheiro em casa s para comprar um pouco de carne, po, remdio para as crianas ". Recife, Classe D

As contas bancrias, que tambm competem com a poupana, raramente acumulam saldos elevados. Ao contrrio, estas contas so abertas apenas com a finalidade de receber o pagamento de salrios, aposentadoria, penso alimentcia ou benefcios do governo (como o Bolsa Famlia) - ou para acessar uma linha de crdito.

"Eu abri [a conta bancria] precisamente para receber esta penso criana, para ele depositar, entenderam? ... Porque os juzes ordenaram a ele. E eu abri uma conta para ele depositar o dinheiro. " Varre Sai, Classe E "Eu abri porque eles lhe do a oportunidade de receber um carto com um limite e voc tem a oportunidade de tomar um emprstimo se voc precisar de um. Ento isso nos ajuda muito." So Paulo, Classe D

Nas poucas ocasies em que os entrevistados abriram contas bancrias com a finalidade de poupar ou pelo menos guardar algum dinheiro era porque tinham recebido ou esperavam receber um quantia de dinheiro, como um pacote de demisso (fundo de garantia) ou mesmo um presente. Em geral, as pessoas recebem pagamentos regulares nessas contas, mas raramente deixam um saldo de um ms para o outro. Mesmo tendo o desejo de poupar, os entrevistados acham muito tentador gastar.

"Eu fao planos com base no valor que me pagam. Se eu receber R$ 500, eu planejo para um custo total de R$ 500. Mesmo se eu quiser economizar R$ 20, eu acabo usando. Estes R$ 20 so extra. E seriam para qu? Eu acabaria levando a minha filha para comer fora no fim de semana. Se eu mantivesse no banco, no ia ficar l por muito tempo. " Natividade, Classe E

Em nosso trabalho de campo, foi raro encontrar algum que utilizava o banco para poupar. Quando algum o fazia, costumava ter uma disciplina excepcional. Encontramos uma mulher em uma rea periurbana do Rio que economizava em uma conta do Bradesco para fazer uma grande viagem para a Paraba, a sua terra natal, a cada dois anos. Uma viagem como esta normalmente custa cerca de R$ 3.000-4.000 (US$ 1.656-2.208). Outra poupadora que encontramos foi uma comerciante que conseguia poupar direcionando todas as transaes em cartes de crdito e de dbito para uma conta bancria que ela nunca tocava, criando assim uma poupana para ela e a sua famlia. Como Mimimi na frica do Sul com seus consrcios informais, algumas pessoas no Brasil utilizaram mecanismos de comprometimento da renda para conseguir guardar dinheiro para as compras que no podem ser parceladas. Esta uma prtica comum que vemos em todo o mundo em comunidades pobres, e que

30 Ver Daryl Collins, Jonathan Morduch, Stuart Rutherford, e Orlanda Ruthven. Portfolios of the Poor: How the World's Poor Live on $2 a Day. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2009

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encontramos tambm no Brasil. Entrevistamos uma mulher de So Paulo que contava com a ajuda de um "guardador de dinheiro", que em geral um amigo, parente ou at mesmo um lojista ou empregador que guardava seu dinheiro para que ela conseguisse economizar. "Deixei dinheiro economizado para viajar no final do ano. Eu disse a ela, guarde estes 300 reais, porque seno eu vou acabar gastando isso antes, e precisamos economizar para ir praia. Ento eu peguei e dei a ela para guardar. Depois adicionei mais 200. Eu acabei economizando 500 reais para ns gastarmos na praia. Se eu tivesse ficado com ele, eu teria gasto isso. "- So Paulo, Classe D

Ironicamente, o parcelamento dos pagamentos funciona tambm como um compromisso que em geral incorporado no comportamento. Precisamente serem vistos como uma obrigao, os parcelamentos de crdito, ao contrrio da poupana, impem a disciplina de trabalhar pouco a pouco para alcanar um objetivo, neste caso a conquista de um bem. "[Parcelas] se tornam uma obrigao. Elas pesam na sua conscincia: Eu fiz esse compromisso, eu tenho que pagar. A poupana no assim. Com a poupana, eu invento desculpas: No neste ms, os juros so to baixos, eu pego uma refeio no McDonalds em vez disso, ou a tentao est me matando, ento eu compro uma roupa para minha filha. A poupana desaparece. So Paulo, Classe E

Esta demanda por compromisso em produtos financeiros no uma particularidade unicamente brasileira, pois ela tambm est presente em outros contextos. Por exemplo, Jonathan Morduch et al encontrou nas reas rurais da India uma preferncia clara por instrumentos financeiros de comprometimento da renda para microfinanas.31 Jogos, sorteios, e sonhos alimentam o otimismo Brasileiros de baixa renda tambm usam uma srie de estratgias originais para formar e manter ativos financeiros. Embora existam alguns consrcios informais, esta prtica no era particularmente comum entre os entrevistados. No entanto, quando esses grupos existem, muitas vezes eles incorporam um elemento de sorte, como um sorteio para definir quem ser o primeiro a levar o dinheiro. Tais grupos so frequentemente constitudos quando todos os membros querem comprar algo de valor similar, como uma moto ou um forno de microondas. Prestadores de servios financeiros formais - bancos, financeiras32 e seguradoras de automveis oferecem este tipo de produto para financiar as compras de ativos, em uma modalidade conhecida como "consrcio".33 Os grandes sonhos das pessoas e o Silvio Santos, um magnata carismtico da TV, tem atrado milhes de brasileiros de baixa renda para concorrer a prmios, conhecidos como ttulos de capitalizao, das quais a mais popular a Tele Sena. Por um investimento muito pequeno, como R$ 8, a pessoa compra um pequeno ttulo, atrelado a mini-poupanas, que tambm serve como um bilhete de loteria, permitindo ao seu titular participar de vrios sorteios. Uma vez que o ttulo vence, o valor pago pode ser resgatado e, s vezes com seus valores corrigidos. A Tele Sena, deprecia ao longo do tempo, mas muitos bancos, incluindo a Caixa Econmica e Bradesco, tambm oferecem ttulos com sorteios e pagamentos de pequenos juros.34

31 Bauer, Michal, Chytilov, Julie and Morduch, Jonathan, Behavioral Foundations of Microcredit: Experimental and Survey Evidence from Rural India. IZA Discussion Paper No. 4901 32 Financeiras so empresas de emprstimos, muitas vezes parcerias de grandes bancos. 33 As pessoas interessadas em comprar uma televiso, moto, ou carro comeam a pagar parcelas para a compra do bem, e um sorteio interno determina se eles vo receber o bem no primeiro pagamento, no ltimo pagamento, ou em algum pagamento entre eles. 34 Por exemplo, de acordo com bancrios em Braslia. Longo prazo (24 meses ou mais) ttulos de capitalizao Ourocap do Banco do Brazil pagam 0.5% de juros.

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Chama a ateno o fato deste instrumento financeiro no ser melhor utilizado como uma ferramenta de pequenas poupanas, considerando o seu apelo junto ao pblico e tambm a sua mecnica que de uma certa forma cria um hbito de poupar. As nossas entrevistas sugerem que a Tele Sena - embora extremamente popular - vista mais como um jogo do que um investimento. Quando encontramos pessoas nas classes C e D que investiram mais pesadamente e intencionalmente nos ttulos de capitalizao de bancos, o componente do sorteio teve maior atratividade do que os juros (que so bastante pequenos, neste contexto). Na realidade, ttulos de capitalizao so instrumentos lucrativos para os bancos, mas oferecem pouco em troca para os clientes, que tem retornos muito baixos. Apesar da atratividade do formato de sorteio para o pblico, este tipo de produto pouco atraente como forma de poupar ou investir em ativos. O informal e ilegal35 jogo do bicho uma outra maneira popular dos brasileiros testarem a sua sorte, buscando um bom prmio. Especialmente popular no Rio de Janeiro, os bilhetes do jogo do bicho so vendidos em muitos negcios informais e por organizadores individuais.36 Mesmo ofercendo um pequeno retorno, muitas pessoas jogam o jogo do bicho, mas raro poder ganhar um prmio que de fato mude suas vidas.

"Eu ganhei no jogo do bicho uma vez ! ... Eu sonhei com uma criana, ento eu sabia que tinha que jogar no coelho. Depois dessa eu nunca mais joguei ... mas eu ganhei um bom dinheiro daquela vez."- Belford Roxo, Classe E No entanto, jogar ou praticar a venda do jogo arriscado: um entrevistado do grupo focal em Recife foi preso por exercer o jogo. Ele teve que pedir emprestado a um agiota para pagar multas, e isso o levou a uma espiral de dvidas.

O planejamento financeiro de longo prazo esta centrado na construo de ativos e sustentado pela previdncia A necessidade financeira de longo prazo, poupana para a aposentadoria, amenizada por um forte sistema pblico de previdncia. Aqueles com trabalho regular partilham destas despesas com seus empregadores37. Alguns proprietrios de pequenas empresas tambm contribuem de forma independente. Aqueles nas classes mais baixas que no conseguem contribuir, no entanto, tambm tm a garantia de um salrio mnimo de aposentadoria, acessando a aposentadoria por idade. Poucos expressam preocupao sobre como lidar com as despesas quando envelhecerem. Valorizam o sistema de previdncia e a maioria considera este recurso adequado para as suas necessidades financeiras na aposentadoria. Alm de previdncia social, as pessoas com trabalho formal recebem um Fundo de Garantia.,38. Ao resgatarem seus fundos de garantia, os valores que em geral so grandes, raramente so poupados, mas so usados para fazer uma grande compra ou investimento em uma casa ou veculo. Vemos muito pouco o uso de contas de poupana programadas, poupanas de longo prazo em bancos, ou compras de aes. Nossos entrevistados, particularmente aqueles das classes D e E, no enxergaram valor em instrumentos financeiros como as contas correntes e os investimentos. Por esta razo, preferem converter rapidamente os montantes de dinheiro em ativos fsicos que os fazem se sentir seguros com relao ao futuro. Em primeiro lugar, isso significa possuir uma casa. Em segundo lugar, significa possuir um carro. importante lembrar que possvel que o uso excessivo do

35 Paraiba o nico estado onde o jogo legal e regulado pelo estado. 36 Muitas vezes inspirados pelos seus sonhos, os jogadores devem escolher um animal da sorte ou um nmero associado a esse animal e fazem a aposta - to pequena quanto um centavo - nele a partir de um carto desenhado ou pintado. Aqueles que escolhem o animal vencedor dividem o lucro proporcionalmente. 37 O empregado contribui com um valor de 8 a 11% proporcional ao seu salrio de contribuio e o empregador contribui com o restante. 38 O FGTS um fundo do trabalhador que serve com um peclio disponibilizado quando da aposentadoria ou morte do trabalhador, e representa uma garantia para a indenizao do tempo de servio, nos casos de demisso. Formado por depsitos mensais, efetuados pelas empresas em nome de seus empregados, no valor equivalente ao percentual de 8% do salrio; em se tratando de contrato temporrio de trabalho com prazo determinado, o percentual de 2%.

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crdito de pequena escala mantenha as famlias pobres constantemente se esforando para adquirir bens sem que isto as leve a incrementar de fato seu capital, isto correm muito sem sair do lugar , pois nunca adquirem de fato um patrimnio ou no conseguem acessar um crdito de longo prazo para conseguir adquirir uma casa.39 A dona de casa brasileira prtica e percebe que pode ter uma mquina de lavar roupa hoje pagando em suaves prestaes mensais , mas ela s poder ter uma casa se ganhar muito dinheiro. neste contexto que se insere o apelo de jogar na loteria, ter ttulos de capitalizao, e concorrer a sorteios informais . Mesmo pobre, a dona de casa brasileira pode ter acesso aos bens de consumo que deseja em parcelas. Por isso, no de se admirar que esta consumidora ceda tentao que est presente a cada esquina, desconsiderando o valor de se poupar. Quando o crdito no atende s necessidades, as pessoas confiam nas relaes sociais e instrumentos financeiros de crdito para continuar Com economias to pequenas, o que as famlias de baixa renda fazem quando se deparam com uma catstrofe no coberta pelas redes de segurana social? A maioria pede emprestado ou se volta para a sua rede de amigos e familiares com alguma forma criativa para angariar fundos.40 Os entrevistados mencionaram com freqncia sobre as "vaquinhas", em que todos ajudam com um pouco para juntar uma quantia. Rifas de pertences prprios ou doados e bingos tambm so comuns e algumas vezes realizados para levantar dinheiro para algo importante. Enquanto vaquinhas, rifas, e bingos so mais frequentemente realizados para fins comunitrios, como o financiamento de uma festa da comunidade, o apoio a uma igreja local, ou a manuteno de espao pblico, tambm podem ser usados eventualmente para ajudar algum que passa por alguma dificuldade. Um entrevistado lembrou:

"No meu caso, minha filha faleceu. Tudo aconteceu muito rpido. Para os medicamentos dela e o funeral eu pedi algum dinheiro para a minha irm e os meus irmos me ajudaram. Ento ns fizemos uma vaquinha: todos contriburam com R$ 300 (US$ 165) cada, o que ajudou. Mas o resto das despesas do funeral eu paguei com o carto de crdito em parcelas ". So Paulo, Classe D

Encontramos tambm algumas evidncias de que, ao invs de acumularem ativos financeiros, as famlias costumam adquirir bens fsicos, como eletrodomsticos e eletrnicos. Para algumas pessoas, esta estratgia serve para ajud-los nas emergncias, pois se os entrevistados enfrentassem momentos muito difceis, tais coisas poderiam ser penhoradas ou vendidas. Como na frica do Sul, os funerais podem ser eventos caros para se organizar no Brasil. Ao invs de guardarem um valor para lidar melhor com esse tipo de despesas, observamos que as pessoas so pegas de supresa e acabam por ter que juntar dinheiro entre amigos e parentes, ou colocam despesas nos seus cartes de crdito para pagar lentamente com pequenos pagamentos mensais. A aquisio de um seguro funeral que antes era pouco freqente, hoje se torna uma realidade para os segmentos de menor renda.41 Neste estudo, identificamos uma mudana na maneira como as pessoas se relacionam com este instrumento, pois vrios entrevistados em Recife, Ibina e So Paulo estavam contribuindo para um seguro funeral. Uma famlia muito pobre rural de Gois pagava R$ 17 (US$ 9,38) por ms pela cobertura do seguro funeral. Isto aconteceu a partir da constatao da

39 Uma entrada geralmente necessria para se garantir um terrenomesmo um sem uma boa documentao. Esta uma grande barreira para aquisio da casa prpria nas classes mais baixas. No entanto, uma vez que o terreno obtido, muitas vezes as pessoas tendem a construir e dar acabamento pouco a pouco, comprando tijolos, telhas, eletrodomsticos , etc em pequenos incrementos e muitas vezes parcelando tambm. 40 Abramovay, Ricardo, org. Laos financeiros na luta contra a pobreza. So Paulo: Annablume/FAPESP, 2004. 41 Em outros projetos, a Plano CDE tem observado que o uso do seguro funeral entre os segmentos de baixa renda aumentou nos ltimos cinco anos, provavelmente devido falta de conhecimento anterior sobre o produto e uma percepo de preo elevado.

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famlia de que o preo dos caixes tinha subido e queriam ter a certeza de que seus familiares podero ser enterrados com dignidade quando chegar a hora.

CORRESPONDENTES BANCRIOS AUMENTAM A FACILIDADE DE SE PAGAR CONTAS. PORM, SEU IMPACTO NO USO MAIS AMPLO DOS SERVIOS FINANCEIROS AINDA AMBGUO Na compreenso do comportamento financeiro, no so apenas quais instrumentos as pessoas usam, mas o que realmente importa como eles os usam. Um fator decisivo para a incluso financeira no Brasil tem sido o correspondente bancrio um canal bancrio que cresce cada vez mais. Esta foi uma mudana recente e rpida, sobretudo nas regies mais perifricas e pobres do Brasil: enquanto o nmero de agncias bancrias permaneceu estvel de 2000 a 2007, o nmero de correspondentes bancrios aumentaram significativamente a partir de uma mdia de 1,1 por municpio em 2000 para 15 por municpio em 2007. Dos 5.507 municpios pesquisados em 2007, apenas 117 no tinham um correspondente bancrio.42 O Brasil um pas nico no que diz respeito ao tamanho da rede de correspondentes, mas ainda restam dvidas sobre o impacto dos correspondentes bancrios para alm do pagamento de contas. Este tema ser melhor abordado na seo final deste informe. Correspondentes, em geral, so pessoas jurdicas que atuam tambm como agentes intermedirios entre os bancos e instituies financeiras. Em geral, atuam como correspondentes de grandes bancos como Caixa Econmica, Bradesco e Banco do Brasil, servindo como um canal de acesso a servios bancrios em farmcias, supermercados, correios e as sempre presentes lotricas. Existem dois grandes tipos de correspondentes: os correspondentes transacionais que permitem o pagamento de contas e s vezes a abertura de contas, depsitos e retiradas. Tambm existem os correspondentes de crdito, onde os clientes podem solicitar crdito, receber o dinheiro e pagar emprstimos, principalmente de crdito consignado. Bancos de pequeno e mdio porte dependem fortemente de promotores de crdito fixos e suas "pastinhas" para vender produtos de crdito. Dada a diversidade dos servios oferecidos pelos diferentes tipos de correspondentes, difcil isolar a compreenso e a utilizao dos consumidores em relao aos correspondentes de um modo mais geral. At o momento, a pesquisa teve como foco os correspondentes transacionais e concluimos que esses correspondentes so usados mais frequentemente para pagamentos. Esta constatao no significa, pela perspectiva do usurio, que isto seja ruim. Ao contrrio, as pessoas adoram a economia de tempo e transporte que os correspondentes proporcionam. Nem to pouco significa que os correspondentes no conseguiram ampliar o acesso aos servios financeiros. Na verdade, muitas das contas a serem pagas esto vinculadas s modalidades de crdito ao consumidor concedidas aos segmentos mais pobres da populao brasileira. Nossos dados indicam que os correspondentes so utilizados para uma gama mais ampla de propsitos em Belm e Recife e nas pequenas cidades sem acesso a agncias bancrias. Benefcio # 1: Os consumidores apreciam a convenincia de pagar contas nos correspondentes bancrios A esmagadora maioria das pessoas com quem conversamos utilizaram correspondentes - casas lotricas, supermercados, farmcias, drogarias, e os correios para pagar as suas contas. Estas contas no foram apenas as contas de servios pblicos, mas tambm os pagamentos de outros servios, como o ensino superior e tambm os servios financeiros como parcelas devidas s redes varejistas, contas de carto de crdito, e seguros. As famlias podem ter entre duas a uma dzia de contas para pagar todo ms e conseguem fazer esses pagamentos em uma grande variedade de locais. A convenincia que oferecem encontra-se na economia de tempo, pelo fato das filas serem menores e na reduo dos gastos com transporte.

42 Assuno, Juliano. Draft, January 2012 Eliminating Entry Barriers for the Provision of Banking Services: Evidence from Banking Correspondents in Brazil. According to the 2010 census, there are 5,561 municipalities in Brazil.

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Os entrevistados mencionaram a longa espera em filas para fazer pagamentos quando s era possvel utilizar agncias bancrias, em alguns casos, levavam o dia todo. Em Belm, relataram que ainda costumam esperar at quatro horas nas filas de banco principalmente prximo aos dias de pagamento. Contudo, identificamos reclamaes sobre as longas filas nas casas lotricas (particularmente em reas periurbanas densamente povoadas e s vezes quando a Mega Sena tem um grande prmio acumulado). Este problema tem menor importncia, ao menos quando se trata do pagamento de contas para os moradores dos centros urbanos, porque existe uma maior variedade de locais de pagamento de contas que tambm so rpidos, convenientes e abertos depois do horrio comercial. Em geral, nossos entrevistados levaram cerca de 10 minutos para pagar as contas, que podem ser pagas enquanto esto na rua fazendo outras compras:

"Agora voc vai padaria para comprar po - e para pagar algumas contas". Belm, Classe D

Benefcio # 2: Correspondentes so utilizados para vrios servios nas pequenas cidades e nas regies Norte e Nordeste

Alm de pagar as contas, os entrevistados dentre as cidades e classes esto muitas vezes cientes de que as lotricas podem ser utilizadas para resgatar benefcios do governo, em particular, os pagamentos do Bolsa Famlia. Mas, na maior cidade do pas, So Paulo, observamos que o uso de correspondentes que no seja para o pagamento de contas e retirada de benefcios bastante raro. Em contrapartida, o uso de correspondentes para outros servios muito mais comum no Norte e Nordeste, onde as longas distncias entre os vilarejos e os centros urbanos tornam os correspondentes mais atraentes. Nestas regies, os varejistas (em parcerias com bancos) tambm tendem a ser bastante sofisticados na oferta de servios financeiros. Alm disso, no Norte e Nordeste do Brasil, onde h uma concentrao de segmentos de baixa renda e populaes sem conta bancria43, a cobertura das agencias bancrias 46% menor que a mdia nacional.44 Nestas regies, os correspondentes bancrios ampliaram o alcance do sistema bancrio brasileiro, e com isto os bancos tm alavancado o uso dos seus correspondentes em maior proporo.45, As pessoas abrem contas, fazem depsitos, depositam nas contas de seus credores informais ou familiares que moram em outras localidades, e retiram dinheiro nos correspondentes, particularmente nas lotricas que so correspondentes da Caixa Econmica. As lotricas so vistas como sendo mais rpidas e menos burocrticas do que as agncias bancrias e os usurios esto satisfeitos por ter as suas necessidades bancrias atendidas por este canal. Curiosamente, na nossa pequena amostra a geografia e o tipo do municpio parecem ter um papel maior do que a classe socioeconmica na definio dos tipos de servios que as pessoas usam em correspondentes. A figura 10 explora as diferenas que observamos no uso do correspondente por tipo de praa. Nas reas urbanas que estudamos em Belm e Goiana, os entrevistados do grupo focal de classe D tinham usado as casas lotricas para pagar contas, comprar ttulos de capitalizao, sacar e depositar dinheiro e abrir contas. O Banco Postal tambm foi utilizado para abertura de contas e saques. Em Recife, nossos entrevistados, das classes C2 e D estavam cientes da ampla gama de servios da Caixa disponveis em lotricas, mas poucos sabiam sobre os servios de correspondentes disponibilizados em lojas de varejo ou mesmo em correspondentes de qualquer outro banco. Nas reas urbanas como Belm e Recife as pessoas pareciam ser mais bem informadas sobre a bandeira do banco associado a cada correspondente, at mesmo em supermercados e farmcias, o que menos comum entre os moradores das grandes cidades e nas classes mais altas.

43 71% da populao do Nordeste pretence as classes sociais D e E (IBGE 2009). 44 A cobertura de filiais bancrias distribudas por 10.000 adultos para o norte e nordeste de 0,75 e 0,72 respectivamente, enquanto que a media nacional de 1,36. Fonte: Banco Central do Brasil, Relatrio de incluso financeira, 2010. 45 O Sudeste possui um maior nmero de correspondents bancrios, seguido das regies Sul e Nordeste. Fonte: Banco Central do Brasil, Relatrio de incluso financeira, 2010.

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Residentes em reas periurbanas de So Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba mencionaram que embora a localizao e os horrios de atendimento dos correspondentes sejam melhores, eles costumam estar lotados. Nem todos os servios oferecidos pelos correspondentes foram bem avaliados pelos entrevistados, pois eles tinham outras opes de escolha nas cidades vizinhas. As pessoas tambm percebiam que os correspondentes no so muito bem informados e, muitas vezes, podem no ter conhecimento suficiente para realizar transaes mais complicadas. Nas cidades pequenas, dos estados de Gois, So Paulo, Pernambuco e Rio de Janeiro descobrimos que as pessoas mesmo quando informadas sobre os servios dos correspondentes, preferiam fazer suas transaes em uma agncia bancria disponvel, com exceo do pagamento de contas. Em geral a preferncia pelas agncias em detrimento do correspondente acontece quando elas esto vazias e os funcionrios do banco so solcitos. Moradores de pequenas cidades mencionaram que os correspondentes nem sempre conseguem responder s suas perguntas, mas na agncia, provavel que consigam encontrar as respostas corretas e um bom servio. Os entrevistados no estado do Rio de Janeiro explicaram que eles aprenderam a usar os caixas eletrnicos pedindo ajuda aos atendentes nas agncias da Caixa. Valorizavam o fato deste banco, ter atendentes vestindo camisetas dizendo: "posso ajudar?" que oferecem uma orientao sobre o passo a passo para usar caixas eletrnicos. No entanto, quando a agncia fica lotada, esta ateno se torna improvvel. Embora os entrevistados de Goiana e do estado de Pernambuco (capital e interior) relatarem que realizam saques em correspondentes bancrios, recorrente a queixa de que no incio do dia os correspondentes no terem dinheiro suficiente para atender a realizao de saques. Isto sugere que o Brasil no est imune aos desafios de liquidez que afetam os correspondentes bancrios em todo o mundo, sendo esta uma das razes que podem inibir a utilizao de correspondentes para as transaes de saque.46 Pesquisas sugerem que, em algumas reas, os correspondentes bancrios reduziram os custos de transao e o tempo de viagem, estimulando o crescimento econmico em cidades pequenas ao disponibilizar o acesso a dinheiro em reas remotas.47 Porm, mesmo com uma ampla capilaridade, os correspondentes no atingem a todos. Algumas pequenas cidades que visitamos nos estados de Gois e do Rio de Janeiro no tinham nenhum correspondente bancrio. Em uma cidade, os moradores costumavam pagar suas contas de energia eltrica sempre com atraso uma vez que as contas chegam s teras-feiras com data de vencimento de apenas 2 dias (ou seja quinta-feira), mas s h nibus disponvel para a cidade mais prxima s sextas-feiras, o que impede seu pagamento em dia. Da mesma forma, moradores de reservas indgenas no Amazonas precisavam percorrer longas distncias para acessar servios financeiros. Nossos entrevistados costumavam entregar suas contas e cartes de pagamento do Bolsa Famlia para uma nica pessoa que ficava responsvel por fazer todos os pagamentos e recolhimento dos benefcios de toda a aldeia. Uma vez que essas pessoas precisavam viajar para acessar servios financeiros, eles tinham uma certa ambivalncia sobre sua preferncia entre utilizar um correspondente ou uma agncia bancria.

Estes resultados podem sugerir que o conhecimento e a utilizao dos canais de correspondentes bancrios corresponde demanda. Provavelmente as pessoas utilizem os correspondentes para uma maior diversidade de tipos de transaes, uma vez que elas no tm maior facilidade de acesso s agncias bancrias. Um estudo da CGAP-FGV-PlaNET Finance de 2010 sugeriu que o pagamento de contas responsvel por 88% das transaes em correspondentes urbanos, mas apenas 40% em reas rurais onde depsitos e saques tambm so bastante comums.48 Talvez o uso elevado de correspondentes para o pagamento de contas seja reflexo de uma

46 Os desafios do gerenciamento da liquidez no Qunia, produto do M-Pesa de transferncia de dinheiro por celular esto amplamente documentados em:Bridges to Cash: The Retail End of M-PESA. 47 Veja por exemplo: CGAP. Banking Agents Fuel Economic Growth in the Amazon Basin. http://www.cgap.org/p/site/c/template.rc/1.26.13408/ 48 CGAP and FGV. Branchless Banking in Brazil: Building viable networks Presentation given 16 February, 2010. Available : www.cgap.org/gm/...1.9.../Branchless_Banking_Agents_in_Brazil.pdf

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realidade enfrentada com frequncia entre famlias que tm muitas contas para pagar todos os meses, principalmente em reas urbanas onde o crdito formal no varejo ainda mais acessvel. Figura 10: A Experincia e uso dos correspondentes bancrios por regio visitada

Questes pendentes: Conhecimento dos servios e segurana

Um obstculo para uma maior utilizao dos correspondentes bancrios para outras transaes alm do pagamento de contas aparenta ser a falta de conhecimento sobre todos os servios disponveis tais como saques, depsitos, solicitao de emprstimos - oferecidos neste canal. Soma-se a isto, o fato das pessoas no identificarem os correspondentes como um bom lugar para obter informaes sobre servios bancrios. Correspondentes no so vistos como especialistas bancrios, particularmente nas grandes cidades. Nossos entrevistados apontaram as agncias bancrias como o nico lugar onde podem encontrar informaes sobre produtos, taxas, e verificar saldo. Alm disso, enquanto nossos entrevistados em Ibina, no estado de So Paulo, e Varre Sai, no estado do Rio de Janeiro, comearam a utilizar os correspondentes porque precisavam receber os benefcios do Bolsa Famlia, outros mencionaram que no tm necessidade de utilizar os servios bancrios para alm do pagamento de contas de servios pblicos. Isto , essas pessoas contraram e pagaram emprstimos e deram emprstimos aos amigos em dinheiro. Elas pagaram as suas contas com cartes de crdito emprestados e pagaram as suas prestaes diretamente s lojas.

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Quando existem muitos canais disponveis para realizar transaes bancrias, a espera, segurana e conforto tornam-se fatores decisivos na escolha de um canal ou outro. Muitas pessoas tiveram a percepo de que os correspondentes bancrios costumam atrair menos criminosos, mas tambm so mais desprotegidos do que as agncias bancrias. Neste caso, alguns entrevistados preferiam fazer transaes bancrias em um correspondente que tinha adotado algumas medidas de segurana. Neste caso, as pessoas sentem que as agncias dos correios, por exemplo, geralmente tm maior segurana do que as lotricas. Um exemplo deste fato, foi relatado por uma entrevistada de Belm por saber que ter um longo tempo de espera para pagar contas em uma agncia bancria e em uma casa lotrica, preferia a agncia onde, "H ar condicionado, voc tem gua, uma xcara de caf, voc pode se sentar. Eles no tm isso nas casas lotricas. Voc fica de p, mas te atendem rpido, mais rpido afinal." Correspondentes podem ser melhorados, e se sim, de que forma? Podemos nos perguntar se o sistema de correspondentes bancrios, o qual administrado pelos bancos49, pode ser melhorado. Segundo o que aprendemos com nossos entrevistados, parece que as pessoas se beneficiariam de um melhor entendimento das transaes que podem ser executadas em correspondentes. Com mais acesso informao,as pessoas poderiam tomar suas decises com maior propriedade e usar correspondentes com mais sucesso para satisfazer suas necessidades bancrias. Como j foi referido, alguns entrevistados manifestaram preferncia em obter informaes sobre servios bancrios atravs de agncias bancrias. Segundo tais opinies, correspondentes no possuiriam conhecimento suficiente a ponto de justificar a ausncia do cliente no banco. Portanto, um passo importante para melhorar os servios promovidos pelos correspondentes e a forma em que so vistos pelo pblico seria melhorar o conhecimento bancrio dos correspondentes. Isto poderia ser feito atravs de, por exemplo, investir mais em treinamento. Ademais, se os correspondentes no so percebidos como seguros, h pouca esperana que haja expanso destes servios, por correspondentes, para alm de pequenas transaes de baixa complexidade. Para aumentar o apelo aos correspondentes e possibilitar a expanso de servios, seria necessrio tambm investir em segurana adequada. Deveramos estar desapontados pelo fato das transaes realizadas nos correspondentes serem predominantemente para fazer pagamentos? Pensamos que no. Esses pagamentos tambm refletem uma forma de incluso financeira - fortemente dominada por crdito - em uma escala bastante ampla. Correspondentes so bastante eficazes em facilitar o acesso a um estilo de vida voltado para o crdito-consumo, tornando o pagamento das contas mensais mais fcil, rpido e conveniente para todos. O fato de no serem utilizados para muito mais, pode no ser uma falha de marketing ou de informaes, mas uma lacuna na cultura financeira - uma lacuna na demanda por uma gama mais ampla de servios financeiros. Em outros pases, a melhora na utilizao de servios bancrios formais muitas vezes envolve a captura das economias que so armazenadas em reservas informais, em casa, em rebanho, ou em consrcios informais. Mas no Brasil o concorrente para os depsitos, por meio de correspondentes ou no, muitas vezes o crdito. Com a facilidade de acesso ao crdito para emergncias e com o apoio da rede de relacionamento para pequenos emprstimos ou emprstimo do carto de crdito, o aumento dos depsitos em poupana parece no ser uma prioridade para os brasileiros das classes C, D, e E, e talvez no precise ser neste momento. O crdito serve a um propsito no Brasil que muitas vezes tido pela poupana em outros pases ou seja, permite que as pessoas de baixa renda se envolvam em aens para alm daquelas de subsistncia. Enquanto isto, o credito parece estar funcionando de forma eficiente dado a presena de redes de segurana pblicas e scias. Entretanto, endividamento excessivo continua a trazer riscos a longo prazo.

49

Convm lembrar que os correspondents bancarios so um canal bancrio e no uma entidade em si. Portanto, a possvel falta de adequao dos servios oferecidos neste canal para a populao de mais baixa renda deve ser imputada aos bancos, e no ao canal.

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EM BUSCA DA COMPREENSO DAS NUANCES DA GESTO FINANCEIRA NO BRASIL

O trabalho de campo qualitativo que realizamos com brasileiros de baixa renda revelou histrias fascinantes sobre uma gesto financeira ativa e criativa. No entanto, mais dados so necessrios para entender melhor como a populao em geral est a gerindo seus pequenos rendimentos, que proporo tm os ativos quanto comparados quantitativamente com os ativos, e como varia o conhecimento e o uso de servios financeiros entre os diferentes segmentos scio-econmicos, por regio e por tipo de municpio. At agora, podemos concluir que a presena de uma rede de segurana social relativamente generosa, de fontes de renda relativamente regulares e estveis, e da uma cultura instituda pelo varejo de poder pagar mais tarde, os brasileiros fazem malabarismos com suas carteiras - com portflios de muito crdito e transaes frequentes. Mesmo entre os muito pobres, o acesso ao crdito formal coloca os brasileiros de baixa renda em contato com o setor financeiro, especialmente atravs dos correspondentes. Esta uma conquista que parece estar ampliando o acesso a servios financeiros teis e inovadores de forma mais ampla e eficaz do que em qualquer outro lugar do mundo. A rede de correspondentes brasileira alcanou uma abrangncia geogrfica notvel, resolvendo em uma grande medida o desafio da proximidade aos pontos de acesso, tradicionalmente vistos como uma barreira para a incluso financeira. Mais do que em outros pases que estudamos, esta incluso parece ter significado um maior acesso a uma ampla gama de instrumentos financeiros inovadores. As pessoas entrevistadas na fase qualitativa deste estudo nos mostraram como o uso de uma variedade de dispositivos de crdito os ajudam particularmente a esticar seus oramentos e a melhorar as suas vidas. Mas eles tambm nos mostraram que sob certas circunstncias, as dvidas podem levar a um estresse significativo e que a experincia comum de ter seu nome negativado junto s instituies de crdito pode excluir as pessoas de um conjunto expressivo de ferramentas teis de gesto financeira. Ainda falta averiguar quo difundidas essas experincias esto entre a populao brasileira. Na verdade, h muito mais a aprender sobre como os consumidores de baixa renda gerenciam as suas finanas de forma mais abrangente, os riscos reais e o estresse que enfrentam, e como entendem, selecionam e utilizam toda a gama de ofertas de produtos disponveis no dinmico mercado brasileiro.

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APNDICE A: METODOLOGIA

Este informe se baseia principalmente em dados qualitativos coletados a partir de trs fontes: grupos focais e entrevistas em profundidade realizadas em conjunto com o CGAP em um estudo sobre pagamentos de incluso financeira do governo, realizados em abril de 2011; informaes coletadas em um teste de um instrumento de pesquisa contendo perguntas detalhadas sobre instrumentos financeiros, comportamento, e correspondentes bancrios em setembro e outubro de 2011; Soma-se a isto, discusses em grupos focais sobre o comportamento financeiro e a utilizao de correspondentes bancrios realizado em outubro de 2011.

Como parte de um estudo nacional sobre polticas de transferncia de renda governamentais e de incluso financeira, o BFA realizou 7 grupos focais com 49 indivduos e 14 entrevistas individuais (com indivduos selecionados a partir dos grupos focais) ao longo de duas semanas em abril de 2011. Os grupos focais abrangeram quatro locais no estado do Rio de Janeiro: um bairro de baixa renda no corao do Rio de Janeiro, uma cidade grande de baixa renda na periferia do Rio de Janeiro, uma cidade de mdio porte no extremo norte do estado do Rio de Janeiro e uma cidade muito pequena no norte da fronteira do estado do Rio de Janeiro. As questes investigativas principais dizem respeito a como os beneficirios do Bolsa Famlia que recebem o pagamento atravs de uma conta bancria interagem com essa conta e com outros produtos financeiros - tanto formais como informais. A tabela abaixo fornece mais detalhes sobre os grupos focais. Resumo dos participantes dos grupos focais - Estudo CGAP dos pagamentos de incluso financeira governamentais

Localizao Nmero de Homens

Nmero de Mulheres

Nmero Total

Idade Mdia Tamanho Mdio de Domiclio

So Carlos (urbano) 0 10 10 39 4

So Carlos (urbano) 0 10 10 33 4

Natividade (pequena cidade) 0 6 6 35 3.5

Natividade (pequena cidade) 0 5 5 32 4

Varre Sai (cidade muito pequena)

1 7 8 35 4

Belford Roxo (periurbana) 0 3 3 38 4

Belford Roxo (periurbana) 0 7 7 40 4

TOTAL 1 48 49 36 4

O BFA, em parceria com a Bill & Melinda Gates Foundation e parceiros brasileiros, est planejando uma pesquisa de representatividade nacional sobre incluso financeira e as perspectivas do lado da demanda em correspondentes bancrios. Em preparao para a pesquisa, e para aumentar o nosso conhecimento sobre o comportamento financeiro entre as classes econmicas C, D e E realizamos cerca de 50 entrevistas individuais com indivduos selecionados propositalmente em torno de Pirenpolis (GO), Manaus, Curitiba e So Paulo em setembro e outubro de 2011. Estas entrevistas em profundidade resultaram em investigaes bastante abrangentes sobre as carteiras financeiras domsticas, cobrindo fontes e fluxos de renda, bem como o uso de uma ampla gama de instrumentos financeiros.

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Finalmente, para melhor entender a experincia dos clientes de baixa renda especificamente em relao aos correspondentes bancrios, o Plano CDE em parceria com a BFA realizou oito grupos focais adicionais em grandes e pequenas cidades das regies sudeste, norte e nordeste do Brasil. Como retratado na tabela abaixo, os pesquisadores conversaram com 63 homens e mulheres entre 21-50, com fontes de renda formais e informais pertencentes s classes scio-econmicas C, D e E. Estas entrevistas foram conduzidas nas cidades de So Paulo e Ibina no estado de So Paulo, Recife e Goiana em Pernambuco, e Belm no Par.

Resumo dos participantes dos grupos focais

Localizao Classe Scio econmica

Nmero de Homens

Nmero de Mulheres

Nmero Total

Idade Mdia Tamanho Mdio de Domiclio

So Paulo (SP) C2 3 4 7 36 4

So Paulo (SP) D 4 4 8 36 1

Ibina E 3