GESTÃO PÚBLICA E A QUESTÃO SOCIAL NA GRANDE CIDADE

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GESTO PBLICA E A QUESTO SOCIAL NA

GRANDE CIDADE*

Raquel Raichelis

Como se expressa a questo social no cenrio urbano? Que impactos produz na gesto pblica e na vida daqueles que vivem e trabalham nas cidades?

A partir destas indagaes, este texto pretende oferecer subsdios para a anlise das novas expresses da questo social nas grandes metrpoles contemporneas, especialmente na cidade de So Paulo, no sentido de identificar conflitos, desafios e novas demandas para a gesto democrtica da cidade e das polticas sociais pblicas. Pretende, tambm, trazer ao debate o discurso das agncias multilaterais sobre pobreza e desigualdade social no Brasil (e na Amrica Lati-na), cotejando as propostas de polticas pblicas formuladas para o seu enfrentamento, particularmente aquelas voltadas para a problemtica urbana das grandes cidades.

(Novas) mediaes com a mundializao do capitalismo

Para problematizar a questo social na sociedade brasileira

* Este artigo integra o I Relatrio Cientfico da Pesquisa Temtica Gesto Pblica e Insero Internacional das Cidades, em parceria entre Cedec, PUC-SP, Unesp, FGV-SP, financiada pela Fapesp. So Paulo, fevereiro de 2006.

Lua Nova, So Paulo, 69: 13-48, 2006

Gesto pblica e a questo social na grande cidade

contempornea, em especial na cidade de So Paulo, toma-se como ponto de partida a anlise da questo social, sob a tica histrico-conceitual, uma vez que ela no unvoca, ensejando diferentes entendimentos.

Do ponto de vista da sua gnese histrica universal, segundo Donzelot (1987), a questo social emerge na Fran-a em meados do sculo XIX, mais precisamente em 1848 diante das lutas operrias e da violenta represso que a elas se segue; sua intensificao relaciona-se ao radical antagonis-mo entre o direito propriedade e o direito ao trabalho.

Para Netto (2001), a expresso questo social passou a ser utilizada por volta de 1830 (cf. tambm Castel, 1998) para evidenciar um fenmeno novo, fruto da primeira eta-pa de industrializao na Europa ocidental o pauperismo

que atingia em larga escala a populao trabalhadora no contexto da emergncia do capitalismo urbano-industrial.

Se a polarizao entre ricos e pobres no constitua

nenhuma novidade, era radicalmente nova a dinmica da pobreza que se ampliava e generalizava entre a grande mas-sa da populao. Pela primeira vez, a pobreza no era resul-tado da escassez, mas, ao contrrio, era fruto de uma socie-dade que aumentava a sua capacidade de produzir riqueza.

A designao desse pauperismo pela expresso questo social relaciona-se diretamente aos seus desdobramentos scio-polticos (Netto, 2001: 154), quando essa massa de trabalhadores pobres, organizada das mais diferentes for-mas, passa a manifestar seu protesto contra a destituio material e moral a que era submetida. O espetculo da pobreza (Bresciani, 1985) nas cidades de Londres e Paris do sculo XIX est fartamente documentado em obras de natureza histrica e sociolgica, tanto clssicas, como a de Engels (1975), como em textos sociolgicos mais recentes, como o de Castel (1998), quando traa um amplo painel da emergncia do pauperismo na transio para a sociedade sala-rial francesa, analisando esse fenmeno novo gerado, no

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pela falta de trabalho, mas pela nova organizao que passa

a presidir o prprio trabalho.

Desse longnquo contexto histrico at os nossos dias,

a questo social no desapareceu nem foi equacionada, mas

certamente foi assumindo diferentes configuraes e mani-

festaes relacionadas histria particular de cada socieda-

de nacional, de suas instituies, de sua cultura. impor-

tante observar que foram as lutas sociais que transformaram

a questo social em uma questo poltica e pblica, transitan-

do do domnio privado das relaes entre capital e trabalho

para a esfera pblica, exigindo a interveno do Estado no

reconhecimento de novos sujeitos sociais como portadores

de direitos e deveres, e na viabilizao do acesso a bens e

servios pblicos pelas polticas sociais.

Nos termos assim colocados, o tratamento analtico a

ser concedido questo social no a identifica como sinni-

mo de problema social ou da pobreza remetida ao indiv-

duo isolado ou a certos grupos sociais, responsabilizados ou15culpabilizados pelo conjunto de carncias e privaes por

ela produzidas.

Tambm no se confunde com o termo excluso social,

que vem se generalizando amplamente na literatura e no

discurso de diferentes atores sociais, e que se presta a varia-das interpretaes.

Por vezes, utilizado como um eufemismo de explora-o, sem que sejam indicados os nexos entre a situao de excluso e os processos estruturais responsveis que instau-ram essa condio. comum, tambm, sua adoo para evi-denciar a situao daqueles que esto fora da sociedade, que supostamente no possuem nenhuma utilidade social.Castel (1995), em suas anlises sobre a questo social na Frana, adverte para a armadilha contida no uso do conceito, que pode dificultar a anlise sobre as dinmicas sociais globais geradoras da excluso social, ocultando a configurao atual da questo social. Observa que o termo

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excluso vem se tornando uma espcie de mot-valise para definir todas as modalidades de misria do mundo.

Tambm Martins (1997: 15) verifica certa fetichizao da idia de excluso e certo reducionismo interpretativo que supri-me as mediaes que se interpem entre a economia propria-mente dita e outros nveis e dimenses da realidade social.

Trata-se de um uso abusivo do termo que pretende ser auto-explicativo, que tudo e nada explica. Para Martins, a rigor, no existe excluso, mas sim incluso precria e inst-vel, marginal, e esse o grande dilema da contemporaneida-de, que metamorfoseia conceitos para designar uma velha questo, analisada sob a tica de diferentes teorias como as da marginalidade social, da cultura da pobreza, e agora enfocada por meio do conceito de excluso.Sendo um trao prprio do capitalismo excluir, desenrai-zar, para incluir de outro modo, segundo suas prprias regras, o problema agora que o perodo de passagem do momento da

excluso para o momento da incluso est se transformando num modo de vida, est se tornando mais do que um perodo transitrio

(Martins, 1997: 33). O discurso da excluso revela o sinto-ma grave de uma mudana social que vem transformando, rapidamente, uma imensa maioria em seres humanos descar-tveis e parte de uma sociedade paralela, que includente do ponto de vista econmico e excludente do ponto de vista social, moral e at poltico. Ou seja, esto todos inseridos de algum modo, decente ou no, legal ou no, no circuito repro-dutivo das atividades econmicas. A questo da desigualdade social, portanto, permanece na base desta sociedade que se duplica para abrigar uma outra sociedade, que uma sub-humanidade incorporada atravs do trabalho precrio, do trambique, do pequeno comrcio, no setor de servios mal pagos ou, at mesmo, excusos (Martins, 1997: 35-36). A reflexo de Castel (1998: 30), embora com refern-cias tericas distintas, caminha no mesmo registro quando define a questo social como uma aporia fundamental a

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partir da qual uma sociedade se interroga sobre sua coeso e tenta conjurar o risco de sua fratura. Ela um desafio que interroga, que pe em questo a capacidade de uma sociedade (que em termos polticos se chama nao) existir como um todo.

No sendo nosso objetivo desenvolver a polmica em torno do conceito de excluso, apenas indicamos que o uso do termo nesse contexto, parte do suposto que, embo-ra a excluso social expresse um conjunto de carecimentos materiais, culturais, polticos e morais, seus elementos cons-titutivos s so desvelados se remetidos anlise no cora-o mesmo dos processos de produo e da repartio das riquezas sociais, como bem assinala Castel (1998: 30).

Nesses termos, a questo social, tal como a entendemos, a expresso das desigualdades sociais produzidas e repro-duzidas na dinmica contraditria das relaes sociais, e, na particularidade atual, a partir das configuraes assumidas

pelo trabalho e pelo Estado, no atual estgio mundializado 17 do capitalismo contemporneo.

No sendo uma questo recente, como vimos, mas ins-crita na dinmica histrica das relaes sociais capitalistas, sua (re)produo, formas de permanncia e metamorfoses precisam ser apreendidas a partir das novas configuraes e mediaes sociopolticas nacionais e internacionais pr-prias da sociedade contempornea.

Como analisa Wanderley (1997: 59), a questo social latino-americana [e brasileira] se pe, no espao e no tem-po, diferentemente da realidade europia, na instituio da nacionalidade, da esfera estatal, da cidadania, da implanta-o do capitalismo.Essa observao adverte para o cuidado de no trans-ferir mecanicamente interpretaes acerca da questo social europia para a realidade sociopoltica e cultural da Amri-ca Latina e tampouco tratar o continente como um bloco homogneo.

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Tambm preciso evitar as armadilhas que fragmen-tam e pulverizam a questo social, tpica da tica liberal as mltiplas questes sociais desconsiderando sua gnese comum e a perspectiva de totalidade dos processos sociais responsveis pela sua origem e continuidade (Iamamoto, 2005(I): 82).

Torna-se necessrio, portanto, maior compreenso da dinmica da questo social no movimento da realidade, envolvendo a pesquisa de situaes concretas que articulem sujeitos e estrutura, abrangendo as expresses peculiares que ela assume em cada sociedade particular, na conforma-o das subjetividades e das sociabilidades da vida cotidiana e das representaes dos indivduos e sujeitos sociais.

Assim sendo, a questo social est na base dos movimen-tos sociais da sociedade brasileira e remete luta em torno do acesso riqueza socialmente produzida. So essas lutas que se encontram na origem da constituio das polticas

pblicas e que mobilizam o Estado na produo de respos-tas s demandas de sade, trabalho, educao, habitao, como tambm so elas que impulsionam o movimento pol-tico das classes populares pela conquista da cidadania na esfera pblica.

As complexas mediaes sociais, com clivagens de clas-se, gnero, tnico-raciais, geracionais fazem da questo social um fenmeno complexo e multifacetado, que historica-mente produzido e assume novas configuraes e determi-naes no contexto atual de reestruturao da economia mundial.

So inmeras as anlises sobre os processos de mundiali-zao da economia e sua financeirizao na generalizao das relaes mercantis para todas as esferas da vida social, pro-duzindo redefinies profundas nas manifestaes da questo social, nas formas de sociabilidade, nas relaes entre econo-mia, poltica e mercado, determinando novas e complexas configuraes nos mbitos do Estado e da sociedade civil.

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Francisco de Oliveira (2004), referindo-se financeiri-zao e mundializao do capitalismo e violncia do capi-tal que no se deixa institucionalizar, aponta nosso prprio aprisionamento pela agenda neoliberal. Para ele, o campo da poltica foi modificado e as classes foram excludas da poltica. Vivemos, assim, uma era de indeterminao, para quem a metamorfose do capital produtivo em capital finan-ceiro busca retirar o conflito da agenda.

O agravamento da questo social produto desse amplo processo e indissocivel da responsabilidade pblica dos governos de garantir trnsito livre para o capital especu-lativo, transferindo lucros e salrios do mbito da produ-o para a esfera da valorizao financeira. Para Iamamoto (2005: 25), a mundializao unifica, dentro de um mesmo movimento, processos que tendem a ser tratados pelos inte-lectuais de forma isolada e autnoma: a reforma do Esta-do, a reestruturao produtiva, a questo social e a ideolo-

gia neoliberal e concepes ps-modernas. 19 A adoo, nos anos 1990, do receiturio neoliberal e das

chamadas medidas de ajuste estrutural preconizadas pelos organismos multilaterais com base no que ficou conhecido como o Consenso de Washington desencadeia um forte movi-mento de regresso dos direitos e das polticas pblicas, especialmente nos pases capitalistas dependentes como o Brasil e Amrica Latina, embora tambm se expresse, com grau e intensidade variados, nos pases capitalistas centrais.

O resultado desse processo tem sido o agravamento das desigualdades sociais e o crescimento de enormes segmentos populacionais excludos do crculo da civilizao, isto , dos mercados, uma vez que no conseguem transformar suas necessidades sociais em demandas monetrias. As alternativas que se lhes restam so a violncia e a solidariedade (Iamamoto, 2005: 97).

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Diante do esvaziamento do espao pblico contempor-neo e do crescimento de demandas sociais no atendidas, o risco o de fragmentao da sociedade civil e a ausncia de projetos coletivos capazes de criar novas agregaes sociais.Sabemos que a condio essencial para a cidadania a mediao dos conflitos pela sociedade poltica, pela nego-ciao e luta pela hegemonia. A esfera pblica espao de lutas sociais entre diferentes projetos, por vezes antagni-cos, e revela a insuficincia da esfera privada para processar novas relaes sociais.

Mas vivemos tempos de despolitizao da poltica, de reduo da esfera pblica, que vem acompanhada da supresso dos conflitos que lhe so prprios, do desenten-dimento, no sentido que desenvolve Rancire (1996), quan-do se refere ao dissenso estabelecido no momento em que o povo, a plebe, aqueles que no tm parcela, resolvem estabelecer a poltica do litgio, produzindo o escndalo de20querer falar, de cobrar a sua parcela.

Francisco de Oliveira, referindo-se ao neoliberalismo no Brasil, afirma que ocorre apenas a privatizao do pbli-co e no a publicizao do privado. Para o autor, h em curso uma destruio do pblico para as classes dominadas, significando para elas a destruio de sua poltica, o roubo da fala, sua excluso do discurso reivindicativo e, no limi-te, sua destruio como classe; seu retrocesso ao estado de mercadoria, que o objetivo neoliberal (1999: 79).

Essa dinmica societria vem implicando a desmonta-gem das instituies de representao coletiva em todos os nveis, a progressiva diminuio do alcance e da qualidade das polticas sociais, a reduo dos espaos de negociao com diferentes atores da sociedade civil, com amplos rebati-mentos na conformao da esfera pblica

Na sociedade brasileira, mais alm do conjunto de des-tituies, o que est em curso o esvaziamento da prpria noo de direitos, traduzindo-se pelo encolhimento do

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horizonte de legitimidade dos direitos, como analisa Vera Telles (2001), quando chama ateno para a perversa tra-ma que transforma direito em privilgio em nome de uma suposta modernizao da economia que tem no mercado sua mais completa traduo.

Esse contexto expressa profundas transformaes no movimento de produo e reproduo da vida social, deter-minadas pelas mudanas na esfera do trabalho, pela reforma do Estado (ou contra-reforma nos termos de Behring, 2003) e pelas novas formas de enfrentamento da questo social, com grandes alteraes nas relaes pblico/privado.De um lado, as condies estruturais do capitalismo que, com a globalizao do sistema de produo e dos mer-cados e o vertiginoso desenvolvimento tecnolgico e infor-macional, promove profundas mudanas nos processos de trabalho, impulsionadas pela intensificao da competio intercapitalista gerando terceirizao ou subcontratao,

trabalho temporrio, parcial, e as diferentes formas de pre- 21 carizao do trabalho, para destacar apenas alguns dos ele-mentos presentes nesse processo.

Para Francisco de Oliveira (2004), a chamada flexibi-lizao do contrato de trabalho significa muito concreta-mente uma informalizao que penetra todas as ocupaes e redefine por inteiro as relaes de classe. Mais do que um mero jogo de palavras, para o autor, a informalizao o tra-balho sem forma que se expande e, com isso, as relaes entre classe, representao e poltica sofrem um intenso processo de eroso.

Ao mesmo tempo, o retraimento do Estado em relao aos gastos sociais vem contribuindo para a sua desresponsa-bilizao em relao s polticas sociais universais e o conse-qente retrocesso na consolidao e expanso dos direitos sociais, sob o argumento da crise fiscal.Esse processo desencadeia, ao mesmo tempo, estrat-gias de descentralizao intergovernamental, de reviso

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do pacto federativo, de transferncia de aes do governo federal para estados e municpios, que passam a assumir um conjunto de novas competncias e atribuies no processo de produo e execuo dos servios pblicos, na maioria das vezes, sem a necessria estrutura institucional, geren-cial, de recursos humanos e financeiros para assumir essas novas responsabilidades.

Trata-se de uma dinmica que refora a dualizao exis-tente no campo das polticas sociais e da gesto pblica: ao Estado cabe garantir o mnimo ao conjunto da populao excluda do mercado de trabalho ou em situao de inclu-so extremamente precria e desprotegida, por meio de polticas compensatrias, focalizadas e seletivas, para atenuar o impacto negativo das medidas econmicas de ajuste estru-tural a pobre poltica para os pobres. E ao mercado cabe a venda de servios aos trabalhadores formais, cada vez em menor nmero, promovendo a remercantilizao dos servios

sociais consagrados como direitos no decorrer das lutas his-tricas do movimento dos trabalhadores.

Esse mesmo movimento desencadeia a privatizao dos servios urbanos, reconfigurando a produo das cidades e dos seus territrios, transformando simultaneamente as relaes entre cidados e espaos das lutas por acesso cidade e a melhorias na qualidade da vida urbana. Esse cenrio expressa-se no Brasil exatamente no con-texto das mudanas polticas e institucionais que se tornaram visveis a partir da promulgao da Constituio de 1988, que, com todos os seus limites, avanou na definio e mesmo na extenso de direitos sociais e polticos. Mas so avanos que vieram na contramo de um movimento internacional o qual gerou o aumento da pobreza e da desigualdade social e o fortaleci-mento de ideologias contrrias universalizao dos direitos sociais legalmente definidos pela Carta Constitucional. O movimento de (contra-)reformas constitucionais que vem se efetivando desde ento desencadeia um processo

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peculiar de reduo e perda de direitos que nem sequer foram postos em prtica. Todo esse contexto atinge o embrio de esfera pblica na sociedade brasileira, desencadeado pelo proces-so de democratizao e delineado na Constituio Federal.

Como observa Dagnino (2002), a dinmica sociopo-ltica dos anos 1990 expressou um movimento de grande complexidade em funo da confluncia perversa entre os objetivos do Estado e os da Sociedade Civil. No mbito do projeto participativo que vem sendo construdo desde os anos 1980, tratou-se de um processo que difundiu novos discursos e prticas sociais relacionados com a democra-tizao do Estado e com a partilha de esferas de deciso estatal entre os segmentos organizados da sociedade civil. A inveno de novos desenhos e formas de implementa-o das polticas pblicas animaram diferentes sujeitos sociais, empenhados na experimentao de mecanismos democratizadores da gesto das polticas sociais, como

fruns da sociedade civil em defesa das polticas pblicas, 23 plenrias populares, conferncias nos trs nveis de gover-

no, oramento participativo, audincias pblicas, ouvido-rias sociais e conselhos de direitos e gestores de polticas pblicas que, nesses ltimos dez anos, foram adquirindo importncia peculiar como espao pblico de exerccio do controle social.

No mbito do Estado, simultaneamente e em direo oposta, os anos 1990 foram palco do complexo processo de reduo da esfera pblica, no contexto de crise e reorgani-zao do capitalismo em escala internacional e de fortaleci-mento das polticas neoliberais, como j expusemos ante-riormente.

A confluncia perversa que ambos os projetos exigem o fortalecimento da sociedade civil, uma sociedade civil ativa e propositiva, mas em direes opostas e antagnicas. E esse o grande desafio da participao na esfera pblica: trata-se de um terreno minado, pois o que est em permanente

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conflito e disputa o avano ou o recuo de cada um desses projetos societrios.

A anlise de Soares (2000: 35) sintetiza muito bem esse processo quando afirma que o pas foi pego a meio cami-nho na sua tentativa tardia de montagem de um Estado do Bem-Estar Social num processo que foi atropelado pelo ajuste neoliberal, em que a seguridade social pblica ocu-pa uma posio francamente secundria.

Nesse modelo, o social fortemente constrangido e determinado pelo econmico. Este o pesado legado a ser enfrentado: o da subordinao do social aos interesses do capital financeiro. Restringem-se as possibilidades redistri-butivas e as polticas sociais reduzem-se a aes pontuais e compensatrias dos efeitos deletrios provocados pela pol-tica econmica.

Essa orientao reforada pelas agncias multilate-rais, a exemplo do Banco Mundial, que prevem redes de

segurana ou de proteo social para as vtimas do ajuste inevitvel, introduzindo, inclusive, clusulas sociais nos acordos de emprstimos ao Terceiro Mundo, como fez o FMI com o Brasil, em 1999 (Behring, 2003: 253).

A atual redefinio das formas de regulao estatal vem se traduzindo em um processo crescente de transferncia de responsabilidades pblicas para a comunidade, compre-endida seja pela famlia, seja pelas entidades assistenciais, pelas organizaes no-governamentais histricas ou pela verso moderna da assim chamada filantropia empresarial ou responsabilidade social das empresas.

Tambm nesse contexto emerge uma nova concepo de sociedade civil, muito mais restritiva e despolitizada, em que se observa o reforo de uma verso comunitarista. A sociedade civil passa a ser sinnimo de terceiro setor, nem pblico nem privado, composta por um conjunto indiferenciado de organizaes, que passa por cima das cli-vagens de classe, da diversidade dos projetos polticos, dos

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conflitos sociais, para valorizar a idia da comunidade abs-trata, das relaes de ajuda mtua, de solidariedade social processo denominado por Yazbek (2000) refilantropizao da questo social e despolitizao da poltica para Francisco de Oliveira.

Trata-se de uma comunidade sem sujeitos polticos, sem processamento e mediao dos conflitos por princpios uni-versalistas do direito e da igualdade social, qual compare-cem os excludos, os vulnerveis, no raro culpabiliza-dos pela sua situao de pobreza.

Essa perspectiva comunitarista estimulada tambm pela cooperao internacional que exige cada vez mais a presena das organizaes comunitrias e das ONGs na implementao dos programas financiados pelas agncias de cooperao. Intensifica-se o discurso das parcerias e das transferncias de responsabilidades pblicas para as inicia-tivas da sociedade civil, de repasse da prestao de servios

para organizaes no-governamentais (um campo cada vez 25 mais heterogneo), e muitas ONGs passam a implementar projetos e assumem funes executivas na prestao de ser-

vios a pblicos especficos

Se isso, de um lado, responde a necessidades sociais concretas e, em muitos casos, projetos so realizados com compromisso e qualidade, na atual conjuntura, contribuem para reforar a perda de protagonismo do Estado e a eroso da noo de bem pblico.

Portanto, a partir dos anos 1990, o campo das polticas sociais e da luta por direitos ficou muito mais complexo, especialmente se considerarmos que, apesar de todos os desmontes e desmanches que tm atingido a esfera estatal, o Estado permanece sendo a forma mais efetiva de univer-salizao dos direitos.

Nesses anos, tornaram-se evidentes as inspiraes neo-liberais da poltica social brasileira, em face das necessida-des sociais da populao. Um retrospecto analtico dessas

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polticas sociais revela sua direo compensatria e seletiva, centrada em situaes-limite em termos de sobrevivncia e seu direcionamento aos mais pobres dos pobres, incapazes de competir no mercado. Essas polticas e seus programas (muitos dos quais permaneceram no governo atual) apro-fundaram o efeito fragmentrio da questo social e sequer cumpriram o papel de amenizar as condies de pobreza da populao brasileira.

H uma clara prevalncia na poltica social brasileira contempornea dos programas de transferncia de renda, cujas primeiras experincias tiveram incio em 1995, no mbito de vrios municpios brasileiros, e que apresenta-ram um significativo nvel de expanso com a implantao de programas de iniciativa do governo federal em todos os municpios brasileiros a partir de 2001.

Segundo Silva e Silva (2004: 38), o debate e a implanta-o de programas de transferncia de renda no Brasil situa-

se no contexto de hegemonia do projeto neoliberal, com o desmonte do frgil Sistema Brasileiro de Proteo Social, quando a Constituio Federal de 1988 parecia abrir espa-o para a universalizao dos direitos sociais. Esse momento marcado pela restrio aos programas sociais em mbito nacional, pelo debate sobre a descentralizao dos progra-mas sociais, verificando-se demanda crescente de polticas para o enfrentamento da pobreza, agravada com a crise eco-nmica dos anos 1980 e com as medidas de ajuste da econo-mia nacional s exigncias do capital internacional, adotadas nos anos 1990.

O estudo de Molina (2005) sobre poltica social na Amrica Latina chama ateno para o fato de que estaria em curso um novo modelo de poltica social denominado Modelo de Poltica de Proteo para Pobres (MPPP), em funo da persistncia da pobreza, da ineficcia das insti-tuies e organizaes pblicas, das conseqncias sociais negativas do modelo econmico adotado, e da perda do

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protagonismo do Estado ante os setores privados, externo e o chamado terceiro setor.

Esse modelo concentra-se em atender a parte da popu-lao pobre (os mais pobres) por meio de um conjunto de servios pblicos financiados e garantidos pelo Estado. Trata-se de um modelo de proteo que busca, em primeiro lugar, amenizar as urgncias da pobreza. Para isso, o Estado con-centra-se em atender a parcelas da populao situadas abai-xo da assim denominada linha de pobreza, enquanto os no pobres devem procurar resolver suas necessidades direta-mente no setor privado, sem a ajuda ou participao do Esta-do. A populao pobre identificada por mecanismos cada vez mais sofisticados de focalizao, e a situao de pobreza de seus beneficirios condio de acesso aos servios. O cri-trio dominante para esse reconhecimento o da renda do indivduo ou de sua famlia, claramente insuficiente, j que a pobreza no se resume ausncia de renda, mas envolve

um conjunto de elementos que expressa sua complexida- 27 de e multidimensionalidade, entre os quais a destituio de poder, trabalho e informao, a ausncia nos espaos pbli-

cos, o (no-)acesso e usufruto dos servios pblicos bsicos. A pobreza, mais do que medida monetria, relao social que define lugares sociais, sociabilidades, identidades.O modelo de proteo social para pobres, no qual se inserem os programas de transferncia direta de renda, uma resposta necessria diante das urgncias sociais, mas pontual e transitria diante de uma questo estrutural, portanto, persistente. Responde ao presente, atendendo a necessidades imediatas, adota uma perspectiva reducionista da pobreza como expresso monetria, mas no ataca os seus determinantes estruturais, especialmente os relaciona-dos poltica econmica e ao modelo de desenvolvimento, mantendo inalterados os ndices de desigualdade social no Brasil, que esto entre os mais altos do mundo. Nas refle-xes de Vera Telles (2004), como se vivssemos um pre-

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sente inteiramente capturado pelas urgncias do momento, e no nos restasse muito mais do que a sua gesto cotidiana, sem conseguir figurar e nomear as expectativas e esperan-as que lanam as linhas de fuga de futuros possveis.

Leituras da cidade transformaes no cenrio urbano

H uma vasta literatura sobre a questo urbana e os pro-cessos de mudana social nas cidades relacionada s novas formas de pobreza urbana e segregao espacial e social1.

O contexto dos anos 1970 e 1980 pode ser considera-do inaugural no que se refere constituio dos campos temticos dos estudos urbanos e da sociologia urbana na literatura brasileira (Marques e Torres, 2005). Nesse uni-verso, a temtica central e mais significativa que emergiu dos estudos urbanos foi, certamente, a noo de periferia entendida como espao de reproduo da fora de trabalho no contexto do capitalismo perifrico e dependente.

28 Um ponto de inflexo na anlise das questes urbanas como expresso dos conflitos e das lutas sociais na cidade foi o livro So Paulo, crescimento e pobreza (Kowarick e Brandt, 1975), publicado h exatamente trs dcadas, como resulta-do de um estudo promovido pela Comisso de Justia e Paz, com grande repercusso e penetrao.

Apresentando uma leitura inovadora sobre a configura-o da problemtica urbana, o trabalho apia-se na anlise da centralidade do processo de explorao do trabalho como motor da pauperizao, questiona o mito da marginalida-de social (cf. Janice Pearlman, 1981) e remete a anlise da pobreza urbana s relaes entre acumulao e pobreza.Ao buscar explicitar as determinaes da questo social e urbana na sociedade brasileira, o estudo teve o

1 Um panorama abrangente da literatura sobre estudos urbanos, desde a dcada de 1970 at o momento atual, pode ser encontrado em Marques e Torres (2005), especialmente Parte I, item 1.

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mrito de elucidar que crescimento econmico, mesmo em nmeros expressivos, pode ter como conseqncia a ampliao dos nveis de pobreza e desigualdade sociais, como aconteceu no Brasil com o milagre econmico no contexto da ditadura militar. A partir desse marco, a intro-duo das noes de periferia e de segregao urbana abre um leque amplo de temas relacionados s carncias e aos problemas urbanos das grandes cidades.

O conceito de espoliao urbana, cunhado por Kowarick em 1979, forneceu a pista para a compreenso das contra-dies urbanas nas grandes metrpoles brasileiras. A espo-liao urbana foi definida como ausncia e precariedade de servios de consumo coletivo que, conjuntamente com o acesso terra, se mostram necessrios reproduo urba-na dos trabalhadores. Implcita nessa noo a presena de uma somatria de extorses como resultado das mltiplas excluses que sofrem os moradores e trabalhadores das

cidades da periferia capitalista. 29 A partir dos anos 1970-1980, o tema das lutas urba-

nas eclode na Amrica Latina e no Brasil, e so inmeros os estudos e pesquisas sobre a dinmica dos movimentos sociais urbanos, e o processo que se desencadeia nos bair-ros populares em torno de bens e equipamentos de consu-mo coletivo, como gua, luz, creche, transporte, moradia etc., no contexto da luta pela democratizao do Estado e da sociedade.

Nos anos 1980 intensificaram-se os estudos sobre a din-mica das aes coletivas e suas formas de organizao e mobilizao, que destacavam o cotidiano dos moradores das periferias das cidades, suas formas de vida e de trabalho, seus modos de associao e de luta. A centralidade do debate era dirigida para os sujeitos das lutas coletivas (cf. Singer e Brant, 1981, e Sader, 1988), que sofriam tanto a espoliao como moradores quanto a explorao como trabalhadores, embora nem sempre as conexes entre as lutas que se pro-

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cessavam nas fbricas e nos bairros da periferia fossem iden-tificadas pelas pesquisas da poca (Kowarick, 2000).

Em textos anteriores (Rosa e Raichelis, 1982 e 1985), escritos nessa dcada com base em pesquisas desenvolvidas para o movimento de loteamentos clandestinos da cidade de So Paulo, anotvamos que verifica-se na dinmica do crescimento urbano um intenso processo de expulso da populao trabalhadora do centro das cidades para a peri-feria, em funo da valorizao do solo urbano e da espe-culao imobiliria; proliferam loteamentos clandestinos, favelas, desprovidos de infra-estrutura urbana e dos servios necessrios vida na cidade (Rosa e Raichelis, 1982: 72).Quanto emergncia da periferia como objeto que canalizava as reflexes sobre os conflitos e as lutas urbanas, afirmvamos que a periferia o cenrio para onde con-vergem as inmeras demonstraes da insatisfao popular quanto s suas condies de vida e, portanto, tambm

onde emergem as condies propcias para a mobilizao e organizao popular em mltiplas frentes de reivindicao e luta contra o poder pblico, identificado como a instncia responsvel pelo processo de espoliao e excluso a que submetida (Rosa e Raichelis, 1982: 72-73).

A riqueza das anlises e pesquisas apontava as relaes entre as contradies urbanas e o processo de transforma-es sociais, enfatizando o potencial de mudana dos novos movimentos sociais urbanos.

No incio dos anos 1990, o clssico texto de Valladares (1991), apoiado em ampla literatura, trabalhava a idia de que a evoluo das concepes de pobreza urbana guar-da estreita relao com a prpria trajetria do processo de urbanizao; com as transformaes que ocorrem no merca-do de trabalho urbano; com a insero espacial/residencial da populao pobre nas cidades; e ainda com o papel de ator social e poltico que vem sendo atribudo s camadas populares ao longo do tempo (Valladares, 1991: 82-83).

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A associao desenvolvida pela autora entre as repre-sentaes e os discursos sobre a pobreza e a forma espacial tpica de insero da populao pobre no tecido urbano, a partir de determinados perodos histricos da sociedade brasileira, continua a oferecer um referencial importante para as reflexes atuais.

O quadro a seguir sintetiza as principais idias desen-volvidas por Valladares at os anos 1980:

Virada doTrabalhadores vadiosCortio

Sculo XXClasses perigosas

Dcadas dePopulao marginal

SubempregoFavela

1950-1960

Populao de baixa renda

Dcadas deSetor informal

Estratgias de sobrevivnciaPeriferia

1970-1980Moradores

Trabalhadores pobres bandidos

31

No livro Escritos urbanos, Kowarick (2000) retoma o rico percurso da sua produo intelectual sobre um conjunto de temas sintetizados na questo urbana e, em uma anlise cr-tica (e autocrtica), distante dos determinismos estruturais que marcaram as reflexes nos anos 1970-1980, reconstri a mirade de questes que marcaram as conjunturas socio-polticas de recrudescimento dos movimentos operrio e sindical e dos novos movimentos sociais, bem como a vigorosa produo terica do perodo.

Kowarick reafirma a importncia das relaes, sempre dinmicas e contraditrias, entre sujeitos e estruturas, sub-jetividade e objetividade na anlise da trama complexa do tecido urbano das cidades, e a impossibilidade de deduzir as lutas sociais das determinaes macroestruturais, j que no h uma relao linear entre a precariedade das con-dies de vida e as lutas desencadeadas pelos sujeitos que as vivem.

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Para o autor, no se trata de desconsiderar os condicio-nantes estruturais objetivos, mas de reconhecer que em si, a pauperizao e a espoliao so apenas matrias-primas que potencialmente alimentam os conflitos sociais: entre as contradies imperantes e as lutas propriamente ditas h todo um processo de produo de experincias que no est, de antemo, tecido na teia das determinaes estrutu-rais (Kowarick, 2000: 69).

A anlise da pobreza urbana e do modelo de urbaniza-o por expanso da periferia remetia s articulaes entre classes sociais, o trabalho e o acesso cidade, destacando-se o protagonismo do Estado na criao da infra-estrutura necessria ao crescimento industrial e gesto dos servi-os de consumo coletivos relacionados s necessidades de reproduo da fora de trabalho.

Embora o Estado nos pases capitalistas perifricos, e o brasileiro em particular, ao contrrio do que aconteceu

historicamente nos pases centrais, no tenha criado condi-es para a reproduo da totalidade da fora de trabalho, nem tenha estendido ao conjunto da classe trabalhadora os direitos de cidadania, o parmetro do trabalho e suas regu-laes estavam presentes como fora estruturadora e socia-lizadora das relaes sociais. E por essa razo era o Estado o alvo das reivindicaes e presses dos movimentos popu-lares pela melhoria das condies de vida e de trabalho na cidade. Neste sentido, o Estado politiza-se ao tornar-se alvo de acirradas presses e reivindicaes: por causa desse tipo de oposio (de classes) ele se torna o ncleo dos conflitos (Kowarick, 2000: 100).

A reestruturao produtiva em curso no Brasil desde os anos 1990 implode exatamente esses parmetros do tra-balho e as possibilidades de mobilidade social na cidade, ao menos como projeto de futuro que mobilizava o sonho de modernizao e progresso das famlias trabalhadoras.

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Isso que se convencionou chamar de desregulao neoliberal em tempos de globalizao, financeirizao da economia e revoluo tecnolgica pode ser lido como a desmontagem do diagrama de referncias que conferia sentido, dava ressonncia e qualificava a potncia poltica das mil faces do problema urbano (Vera Telles, 2004: 9).

A cidade passa a ser o cenrio de reconfigurao dos espaos urbanos, redesenhados pelo agravamento da ques-to social, pelo encolhimento do trabalho, segundo a regra fordista (cidadania regulada, nos termos de Wanderley Gui-lherme dos Santos), pelas diferentes formas de precarizao do trabalho e exploso do desemprego, deteriorao dos espaos coletivos, privatizao dos servios pblicos, pelo estabelecimento de novas formas de segregao e violn-cia urbana, pelos novos circuitos de pobreza e riqueza, que redefinem os tradicionais modelos de centro e periferia.

Em entrevista Folha de S.Paulo (13.11.2005), Caldeira 33 afirma que os conflitos urbanos hoje tomaram o lugar das antigas lutas trabalhistas ocorridas nas fbricas, e o espao

da cidade passou a ser o foco tanto da organizao poltica quanto da revolta. O que eram a fbrica e as condies de trabalho industrial, que davam o simbolismo para as revol-tas, hoje a cidade e as condies de vida nelas.

Os conflitos urbanos, em suas diferentes manifestaes no espao pblico e privado, ganham expresses diversas na vida dos diferentes grupos sociais e provocam efeitos deses-truturadores nas suas relaes com a cidade. A concentra-o territorial das camadas empobrecidas participa ativa-mente do seu processo de destituio como atores sociais e polticos na cidade. A ausncia de mobilidade social e a falta de perspectiva de futuro atingem muito fortemente os jovens das famlias pobres, trazendo ao debate as novas rela-es que estabelecem com a cidade, mediadas pelo crime e pela violncia. preciso considerar ainda as profundas

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transformaes que se processam hoje na esfera familiar, nos novos arranjos familiares que desconfiguram os tradi-cionais papis de homens e mulheres e instalam novas e conflitivas dinmicas geracionais e de gnero.

Caldeira (2000: 211), apoiada em ampla pesquisa emp-rica realizada na cidade de So Paulo entre 1988 e 1998, analisa a forma pela qual o crime, o medo violncia e o desrespeito aos direitos de cidadania tm se combinado com as transformaes urbanas para produzir um novo padro de segregao espacial nas duas ltimas dcadas.

Para a autora, a segregao tanto espacial quanto social uma caracterstica importante das cidades, pois as regras que organizam o espao urbano so apoiadas basi-camente em padres de diferenciao social e de separa-o. Trata-se de regras que variam cultural e historicamen-te, revelam os princpios que estruturam a vida pblica em cada sociedade e indicam como os grupos sociais se inter-34relacionam no espao da cidade.

Na anlise histrica dos padres de segregao social em So Paulo, Caldeira identifica pelo menos trs formas dife-rentes no espao urbano da cidade ao longo do sculo XX:

do final do sculo XIX at os anos 1940, era uma cidade con-centrada em que os diferentes grupos sociais se comprimiam numa rea urbana pequena e estavam segregados por tipos de moradia;

dos anos 1940 aos anos 1980, dominou o desenvolvimento da cidade a segunda forma urbana, a centro-periferia: os diferen-tes grupos esto separados por grandes distncias; as classes mdia e alta concentram-se nos bairros centrais com boa infra-estrutura, e os pobres vivem nas precrias e distantes periferias

desde os anos 1980, e convivendo com o padro centro-peri-feria, uma terceira forma urbana vem se configurando e mudando consideravelmente a cidade e sua regio metropo-litana. Essas transformaes recentes esto gerando espaos

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nos quais os diferentes grupos sociais esto muitas vezes pr-ximos, mas separados por muros e tecnologias de segurana, e tendem a no circular e/ou interagir em reas comuns.

O principal instrumento desse novo padro de segrega-o espacial denominado por Caldeira de enclaves fortifica-dos: espaos privatizados, fechados e monitorados para resi-dncia, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justifica-o o medo do crime violento. Esses novos espaos atraem pessoas das classes mdia e alta, que esto abandonando a esfera pblica tradicional das ruas para os pobres, os mar-ginalizados e os sem-teto, modificando profundamente o panorama da cidade e as relaes pblicas entre as classes sociais no territrio.

Essa nova cartografia social da cidade expressa a emergn-cia de um novo padro de organizao das diferenas no espa-o urbano, que redefine os processos de interao social e de

sociabilidade coletiva, promove acessos diferenciados infor- 35 mao, diversidade de oportunidades e aos equipamentos

e bens pblicos, transformando as concepes de pblico e os parmetros de convivncia pblica, que contradizem os ideais de heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espao pblico moderno quan-to as modernas democracias (Caldeira, 2000: 12)

Trata-se de um modelo que se disseminou amplamen-te nas cidades contemporneas, atingindo tanto as socieda-des europias, bero dos ideais democrticos republicanos, como as recm-sadas do jugo colonial ou de sistemas pol-ticos autoritrios. Para a autora, o fato de esse novo tipo de organizao do espao urbano espalhar-se vigorosamen-te pelo mundo inteiro no momento em que muitas dessas sociedades protagonizam movimentos de democratizao poltica, de queda de regimes racistas e de intensos fluxos imigratrios, revela a complexidade das relaes entre for-mas urbanas e processos polticos.

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Wacquant (2001), em instigante estudo comparativo entre os guetos norte-americanos e as periferias francesas, analisa a nova realidade da pobreza e da destituio social existentes nas grandes metrpoles do Primeiro Mundo, em pases como a Frana e os Estados Unidos. Refere-se mar-ginalidade avanada para caracterizar as novas formas de encarceramento social excludente e de marginalizao que surgiram ou intensificaram-se na cidade ps-fordista como resultado no do atraso, mas das transformaes desiguais e desarticuladas dos setores mais avanados das sociedades e economias ocidentais, medida que estas repercutem nos estratos mais baixos da classe trabalhadora e nas categorias etnorraciais dominadas, bem como nos territrios que estas ocupam na metrpole dividida (Wacquant, 2001: 187).Sob o pano de fundo das transformaes econmicas, sociais e polticas do incio dos anos 1970, o autor proble-matiza os impactos regressivos da decomposio do salariat e

de suas formas de socializao nos territrios das metrpoles em desindustrializao que concentram as fraes vulner-veis do proletariado urbano. Observa que, no caso dos gue-tos norte-americanos, eles perderam o carter comunitrio e transformaram-se em espaos de privao e de abandono; no caso das periferias das cidades francesas, elas perderam o seu papel de substrato da sociabilidade e da identidade da classe operria e se tornam o lugar do purgatrio social2.

Um dos objetivos do estudo de Wacquant oferecer ferramentas analticas para repensar os processos de mar-ginalizao que se desenvolvem hoje, no apenas nas socie-dades de Primeiro Mundo, e para animar a realizao de estudos comparativos da polarizao social e mudana urba-

2 As recentes manifestaes de violncia dos jovens moradores do banlieu parisien-se e de outras cidades do interior da Frana atestam o agravamento dos conflitos urbanos provocados pela combinao explosiva de pobreza, segregao racial, cul-tural e econmica e destituio de direitos de cidadania de crescentes segmentos sociais, especialmente de imigrantes ou de seus descendentes.

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na no Brasil e em outros pases da Amrica Latina. Adverte, ao mesmo tempo, para a necessidade de distin-

guir as diferentes formas de segregao espacial diante dos sistemas hierrquicos de cada sociedade e suas funes na organizao social de cada metrpole. Referindo-se ao Brasil, o autor observa que o mesmo rtulo de favela pode conter reas estveis que continuam a oferecer abrigos slidos de integrao da classe trabalhadora dentro da cidade, zonas nas quais as vtimas da desindustrializao regressiva so entregues ao seu prprio destino na economia informal nas ruas, cada vez mais dominadas por atividades criminosas, e com enclaves de marginais definidos pela experincia de estigma do grupo e de mancha coletiva (Wacquant, 2001: 17). Tambm h dife-renas marcantes entre as favelas do Rio de Janeiro e de So Paulo, entre aquelas localizadas nas reas centrais ou perifri-cas das grandes cidades, que precisam ser consideradas.

So reflexes importantes tambm porque colocam em

xeque anlises comparativas e concluses, por vezes apressa- 37 das, sobre a guetificao das favelas brasileiras, como resultado socioterritorial dos processos de globalizao da economia.

O autor chama ateno ainda para o novo discurso moralizador e higienista que organiza as representaes sobre a pobreza e as interaes sociais nas metrpoles con-temporneas, o que tambm pode ser observado na socie-dade brasileira, especialmente nas concepes que vm orientando certas propostas de gesto das polticas sociais pblicas na cidade de So Paulo3.

Wacquant refere-se concepo moralista e moraliza-dora que hoje organiza as formas pelas quais so enuncia-

3 O que tem sido amplamente destacado pela imprensa e mdia locais, por exem-plo, em relao s intervenes municipais na assim chamada Cracolndia, regio localizada no centro de So Paulo, construo de rampas antimendigo na rea da Avenida Paulista, a expulso de camels e do comrcio informal das ruas, ou ainda o projeto de reforma da Praa da S para dificultar a permanncia da popu-lao moradora de rua no seu entorno, processos que alguns autores denominam de arquitetura da pobreza.

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das as ameaas representadas pelas manifestas e crescentes distncias sociais e culturais entre os deserdados e os ven-cedores da sociedade de mercado, ao responsabilizarem os pobres pela sua pobreza e excluso, reintroduzindo no discurso pblico a tica estigmatizadora que diabolizou as camadas populares no sculo XIX.

O medo social das classes perigosas retorna ao ima-ginrio coletivo, e, no caso do Brasil, trazendo de volta as representaes sobre a pobreza urbana na virada do sculo XX, veiculada pelo discurso higienista que apontava o corti-o como locus da doena e do contgio, alm de espao da desagregao social e bero do crime; e a rua prolonga-mento do cortio como o lugar da mendicncia, da vadia-gem, da violncia (Da Mata, 1985; Valladares, 1991).

Frgoli Jr. (2000), analisando o processo de requalifica-o do centro de So Paulo, refere-se nova higienizao que se processa com a expulso das classes populares dos

espaos pblicos para promover a atrao de capitais e de pessoas, especialmente das classes mdias, configurando-se o fenmeno conhecido como gentrification4.

Considerando essas reflexes, retomamos o esquema proposto por Valladares para a anlise da pobreza urbana at os anos 1980 e, a ttulo de ensaio, esboamos o seguinte quadro para as dcadas de 1900-2000.

Observando o quadro sntese a seguir e, se confirma-das algumas das pontuaes analticas desenvolvidas neste ensaio, constata-se no cenrio urbano atual sinais inquie-tantes da dinmica social explosiva presente nas grandes metrpoles brasileiras como So Paulo.

4 Segundo Leite, no h ainda um consenso estabelecido para a traduo em portu-gus desse neologismo derivado do ingls gentry. Alguns tradutores ou autores ado-tam a expresso enobrecimento; em outros casos, optou-se pelo neologismo gentri-ficao. Mantivemos o termo em ingls, tal como adota Leite, para designar a trans-formao dos significados de uma localidade histrica em um segmento do mercado, considerando a apropriao cultural a partir dos fluxos de capitais (2004: 19-21) .

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Trabalhador desocupadoModelo centro-periferia

Desemprego, precarizao ee emergncia de novas

centralidades

informalizao do trabalho

Periferizao acentuada

Dcadas deNaturalizao da pobreza e

(casas precrias, loteamentos

banalizao da violncia

1990-2000

clandestinos, cortios da

Pobres e miserveis subcidados

periferia, ocupaes de

Criminalizao da pobreza retorno

terra) rua cortio favela

das classes perigosas, violncia,enclaves fortificados

pobreza e bandidagemdistantes do centro

As novas formas de segregao e estigmatizao espaciais e sociais, a escalada da violncia, a crescente presena do narcotrfico e do trfico de armas nas favelas e nos bair-ros populares das grandes cidades brasileiras, o isolamento social das elites, a disseminao da cultura do medo apon-tam para a necessidade de aprofundamento de estudos e pesquisas sobre os rebatimentos da presena (ou ausncia)do Estado nacional e das instncias subnacionais na imple-39mentao das polticas pblicas que tenham como centrali-dade a (re)significao e a (re)construo do tecido social no territrio urbano das grandes metrpoles.

A realidade urbana de So Paulo revela, como nenhu-ma outra cidade brasileira, a sntese das contradies mais dramticas da questo social contempornea.

Aqui, nesse imenso territrio, a partir do qual se orga-niza a dinmica do capitalismo no Brasil, se expressa mais claramente do que em qualquer outra metrpole do pas a espoliao urbana, a subcidadania, a dinmica das lutas e reivindicaes por melhores condies de moradia e de trabalho. Verdadeiro laboratrio social, a Grande So Pau-lo com seus cortios, suas favelas, suas invases e mora-dias autoconstrudas, seus bairros ricos, seus condomnios fechados continua nesse final de sculo XX e incio do XXI como o grande desafio compreenso dos problemas urbanos no pas (Valladares, 2000).

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As agncias multilaterais e o enfrentamento da pobreza

Na dcada de 1990, as propostas das principais agncias multilaterais como Bird, Pnud, BID e Cepal para a retoma-da do crescimento e o enfrentamento da pobreza organiza-ram-se em torno de trs idias centrais5:

desenvolvimento das economias da Amrica Latina sob a ti-ca da competitividade; crescimento econmico com eqidade;

redimensionamento dos servios sociais com eficincia e eficcia.

Mesmo ressalvando certas diferenas entre as agncias,

possvel verificar a presena de propostas comuns:

programas de estabilizao monetria, de ajuste estrutural, de reformulao do papel do Estado e de alterao do dese-

nho das polticas sociais, especialmente nos chamados siste-mas pblicos de proteo social;

subordinao da poltica social poltica macroeconmica;

a soluo da pobreza empurrada para fora do Estado, sen-do a sociedade civil e o mercado responsabilizados pelas suas solues e enfrentamento.

Para o Banco Mundial, o papel do Estado fundamen-tal para o processo de desenvolvimento econmico e social, mas no como agente direto de crescimento, seno como scio, elemento catalisador e impulsionador desse proces-so. Cabe ao Estado o papel de coordenador, articulador e impulsionador do desenvolvimento, em conjunto com a sociedade civil e o mercado.

Na esfera da proteo social ocorre uma inverso das premissas do pacto keynesiano, sendo as polticas pblicas vis-

5 Essas anlises esto diretamente referenciadas em Simionato e Nogueira (2001).

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tas como forma de assegurar que o crescimento seja com-partilhado por todos e contribua para reduzir a pobreza e a desigualdade (Banco Mundial, 1997).

O deslocamento de bens e servios de natureza pbli-ca para o setor privado apresenta-se, na viso das agncias internacionais, como sada para aliviar a crise fiscal, buscar maior racionalidade de recursos e benefcios, repassando para instituies filantrpicas, organizaes comunitrias e no-governamentais a produo e distribuio de bens e servios, principalmente sade e educao.

O papel do Estado traduzido pela trilogia: descentra-lizao, focalizao e privatizao. As exigncias de comple-mentaridade entre Estado e mercado vm sendo reafirma-das em todas as propostas como imprescindveis para dimi-nuir a pobreza e a excluso social. Mesmo as propostas do Pnud e da Cepal, indo alm dos programas emergenciais pela via de transformao produtiva com eqidade, no

superam o iderio de modernizao neoliberal.41

O discurso dominante que a pobreza passou a represen-tar uma ameaa em termos de fratura social oriunda da gran-de brecha entre pobres e ricos. As polticas macroeconmicas recomendadas pelos organismos internacionais de financia-mento, como o FMI, incluem em seus objetivos o combate pobreza. Para eles, os servios sociais devem ser reduzidos e adequadamente focalizados para os segmentos de extrema pobreza, caracterstica assumida pelas polticas sociais na Am-rica Latina, e no Brasil, como analisamos anteriormente, com destaque para os programas de transferncia direta de renda

No que se refere ao discurso do urbano na agenda da globalizao neoliberal, o novo diagnstico destaca que a origem dos problemas urbanos conseqncia da dissocia-o entre a cidade e a economia global, fruto da incapaci-dade dos governos em torn-las competitivas na atrao dos capitais internacionais (Ribeiro, 2001: 153). Para tornar as cidades atrativas para o capital, necessrio que os gover-

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nos assumam a lgica da razo instrumental do mercado e tenham a capacidade de mobilizar as foras locais econmi-cas, sociais e polticas em torno de projetos desenvolvidos por meio da parceria pblico-privado.

Ribeiro observa que no por acaso que no debate sobre as manifestaes da crise urbanada sociedade brasilei-ra encontramos um novo vocabulrio, no qual freqente o uso de termos como miserveis, pobres, etc. para nomear aqueles que antes eram identificados e reconhecidos como os novos sujeitos da cit, ou seja, os trabalhadores, os movi-mentos populares, etc. que buscavam entrar na cidade, no contrato social, fazendo coincidir no imaginrio social, nas instituies e nas prticas polticas o citadino com o cidado. Hoje, crescentemente, as manifestaes da sua existncia, seja na forma do crescimento das favelas, dos ambulantes nos centros urbanos, das invases de terrenos vazios ou nas revol-tas dos moradores de favelas contra o arbtrio, so designa-

das como expresses da desordem social, conseqncias das dificuldades tcnicas e passageiras da fazer integrar todos no condomnio urbano da cidade (Ribeiro, 2001: 155).

As agncias de cooperao internacional continuam atuando fortemente no sentido de provocar a racionaliza-o dos investimentos estatais e ampliar as aes de natu-reza privada, inclusive como condio para a obteno de emprstimos dos organismos internacionais.

Ao mesmo tempo, vrios organismos internacionais tm ressaltado a importncia de integrar as populaes marginalizadas cidade legal, o que vem caracterizando, por exemplo, a poltica de habitao em diferentes pases da Amrica Latina, inclusive no Brasil6.

6 Para Marques e Saraiva (in Marques e Torres, 2005), a prioridade do governo na rea de habitao social foi relacionada a aspectos legais, como a aprovao do Plano Diretor em 2002, e de regularizao, com a desafetao de reas municipais para repass-las a seus moradores. Destaca-se o programa Mananciais, nas represas Guarapiranga e Billings, com a regularizao de lotes e a urbanizao de favelas, programas que contaram com financiamentos internacionais.

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Essas agncias multilaterais tambm foram responsveis pela difuso de discursos, polticas e programas que propaga-ram a idia de desenvolvimento sustentvel, processo que ganhou grande repercusso devido s Conferncias da ONU, entre as quais destacam-se a Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, e a Conferncia das Naes Unidas sobre Assentamentos Humanos Habitat II, realizada em Istambul em 1996.

A concepo de sustentabilidade que passa a ser veicu-lada pretende ser mais ampla do que a de preservao do meio ambiente, envolvendo a articulao entre as dimen-ses ambiental, social e econmica, na perspectiva de incor-porar segmentos mais amplos ao usufruto dos bens e servi-os que a cidade deve tornar acessvel.

Apesar das grandes ambigidades que cercam a concep-o e os programas voltados ao desenvolvimento susten-tvel, em muitos casos associados ao city marketing (Leite,

2004: 18) e ao acirramento da competio entre as cidades 43 mundiais, esse debate gerou um confronto entre diferen-

tes projetos e uma luta pela apropriao de novas dimen-ses e sentidos levados a cabo pela agenda internacional progressista.

Para Saule Jr. (2005), o Frum Social Mundial (FSM) emerge como um ator de grande peso poltico no proces-so de internacionalizao do debate sobre direito cidade como um novo direito humano. Para ele, este o objetivo central da Carta Mundial do Direito Cidade, resultante das mobilizaes do FSM, visando influenciar os governos nacionais e subnacionais no processo de reverso do cen-rio de pobreza e de desigualdades socais.

Em 2005, o Frum Social Mundial realizado em Porto Alegre Outra Cidade Possvel apresenta uma nova ver-so da Carta Mundial de Direito Cidade, destacando-se ini-cialmente em seu texto a compreenso do que uma cidade e o que so cidados da cidade, propondo medidas a serem

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pactuadas e efetivadas pelos vrios setores da sociedade civil, organismos internacionais e governos nacionais e locais.

Destacam-se os princpios de sustentabilidade e justia social, que devem pautar a utilizao das cidades de forma igualit-ria por todos seus moradores. E, para tanto, as escolhas pol-ticas devem recair sobre a utilizao social da propriedade, o desenvolvimento de polticas de habitao para as classes populares e a implementao de mecanismos democrticos de gesto por meio da participao no oramento e da defi-nio das prioridades das polticas pblicas.

Nesse sentido, internacionalizar o debate sobre a ges-to das cidades deve significar no somente a discusso sobre a importncia dos investimentos externos para o seu desenvolvimento, numa perspectiva econmica, mas acima de tudo refletir sobre os fenmenos urbanos na tica dos seus habitantes e, conseqentemente, considerando as desi-guais oportunidades de usufruto das potencialidades que a

cidade oferece. O processo do Oramento Participativo, o funcionamento de milhares de conselhos de polticas pbli-cas e de defesa de direitos, as mltiplas experincias de ges-to democrtica e popular realizadas por vrios municpios em diferentes regies brasileiras so reveladores da ampla mobilizao dos segmentos organizados da sociedade civil na defesa do direito cidade para todos.

So processos que ocorrem na confluncia contradit-ria do movimento que impulsiona a pauta internacional em sentidos diversos. A Conferncia Habitat II teve como princi-pal objetivo adotar uma agenda, denominada Agenda Habi-tat, estabelecendo um conjunto de princpios, metas, com-promissos e um plano global de ao para orientar esforos nacionais e internacionais no que diz respeito s polticas de habitao e de intervenes urbanas (Gomes, 2005: 155).

Segundo Gomes, nessa agenda, ganham centralidade os princpios de descentralizao, fortalecimento do poder local e parcerias do Estado com a sociedade civil para o

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enfrentamento da problemtica urbana. O documento aprovado em Istambul assume claramente essa perspectiva, destacando a importncia da promoo do desenvolvimen-to dos assentamentos humanos sustentveis com a ativa par-ticipao das comunidades locais na definio de polticas e programas e na alocao dos recursos.Em vrios pases, incluindo o Brasil, vm ocorrendo mudanas significativas nas formas de interveno estatal, especialmente no mbito da gesto pblica e no desenho das polticas sociais, tendo como orientao as diretrizes e determinaes emanadas das agncias multilaterais.

Movimentos como o Frum Nacional de Reforma Urba-na obtiveram significativas conquistas institucionais, como a inscrio do captulo da poltica urbana na Constituio, a lei nacional Estatuto da Cidade e, mais recentemente, a criao do Ministrio das Cidades e a aprovao do Fundo Nacional de Habitao, abrindo possibilidades para a con-

quista e consolidao de polticas pblicas que respondam 45 a demandas coletivas de vida digna na cidade.

Finalmente, h um movimento que se desenvolve no tecido social urbano que transcende a lgica das polticas oficiais e da racionalidade privatista do mercado. Trata-se da poltica dos usos e contra-usos da cidade no cotidiano do espao pblico que demarca diferenas e cria transgres-ses na paisagem urbana ao subverter os usos esperados

constitui lugares que configuram e qualificam os espaos urbanos como espaos pblicos, na medida em que os torna locais de disputas prticas e simblicas sobre o direito de estar na cidade, de ocupar seus espaos, de traar itinerrios, de pertencer, enfim: ter identidade e lugar (Leite, 2004: 25).

Raquel Raichelis

professora do Programa de Estudos Ps-Graduados em Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)

Lua Nova, So Paulo, 69: 13-48, 2006

Gesto pblica e a questo social na grande cidade

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Lua Nova, So Paulo, 69: 13-48, 2006

Resumos / Abstracts

GESTO PBLICA E A QUESTO SOCIAL NA GRANDE CIDADE

RAQUEL RAICHELIS

O artigo oferece subsdios para a anlise das novas expres-

ses da questo social e urbana nas grandes metrpoles con-

temporneas, especialmente na Cidade de So Paulo, no

sentido de identificar conflitos, desafios e novas demandas

para a gesto democrtica da cidade e das polticas sociais

pblicas. Traz tambm ao debate o discurso das agncias

multilaterais sobre pobreza e desigualdade social, cotejan-

do as propostas de polticas pblicas formuladas para o seu

enfrentamento, particularmente as voltadas para a proble-

mtica urbana das grandes cidades.

Palavras-chaves: Questo social; Cidade; Espao urbano; Polti-

cas pblicas; Gesto pblica; Agncias multilaterais.

PUBLIC ADMINISTRATION AND THE SOCIAL QUESTION IN THE207LARGE CITY

The article presents some points to the analysis of new expressions of the social and urban issues in todays large metropolis, especially Sao Paulo, aiming at identifying conflicts, challenges and new demands for the democratic administration of the city and for public social policies. It also seeks to debate the multilateral agencies discourse on poverty and social inequality, exploring public policy proposals conceived to target those issues, particularly the ones focused on the urban question in large cities.

Keywords: Social question; Cities; Urban Space; Public policies; Public administration; Multilateral agencies.

Lua Nova, So Paulo, 69: 205-213, 2006