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DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA: GESTÃO MERCANTILIZAÇÃO E QUALIDADE SOCIAL Jose Clovis de Azevedo 1 Ana Paula Escaroni Garcia 2 · Resumo O presente trabalho busca compreender as relações que articulam as questões conjunturais e estruturais que compõem o cenário da globalização, particularmente a hegemonia e mercado, com a questão democrática e sua incidência sobre as políticas educacionais, as práticas pedagógicas e a universalização do acesso ao Ensino Fundamental. Analisa-se a democratização da escola dentro do contexto de disputa do projeto de educação democrático e cidadã com o projeto de submissão da escola à mercantilização. Como elementos subjacentes aos respectivos projetos, discutimos os desdobramentos das concepções de uma gestão democrática, voltada à formação de sujeitos cidadãos e de uma gestão tecnocrática, associada aos parâmetros que ditam o processo de mercantilização do ensino, a introdução dos valores de mercado na escola e as 1 Professor, Doutor, pesquisador em Educação, docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Reabilitação e Inclusão e Coordenador de Pesquisa e Pós-graduação do Centro Universitário Metodista IPA. [email protected] 2 Pedagoga, mestranda do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Reabilitação e Inclusão do Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS, Brasil. [email protected] 1

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DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA: GESTÃO MERCANTILIZAÇÃO E QUALIDADE SOCIAL

Jose Clovis de Azevedo1

Ana Paula Escaroni Garcia 2

·

Resumo

O presente trabalho busca compreender as relações que articulam as questões

conjunturais e estruturais que compõem o cenário da globalização, particularmente a

hegemonia e mercado, com a questão democrática e sua incidência sobre as políticas

educacionais, as práticas pedagógicas e a universalização do acesso ao Ensino

Fundamental. Analisa-se a democratização da escola dentro do contexto de disputa do

projeto de educação democrático e cidadã com o projeto de submissão da escola à

mercantilização. Como elementos subjacentes aos respectivos projetos, discutimos os

desdobramentos das concepções de uma gestão democrática, voltada à formação de

sujeitos cidadãos e de uma gestão tecnocrática, associada aos parâmetros que ditam o

processo de mercantilização do ensino, a introdução dos valores de mercado na escola e

as formas de organização empresarial que condicionam o objeto da formação escolar:

conteúdo, procedimentos pedagógicos e avaliação. Examinamos a democratização da

escola vinculada à qualidade social, considerando a dimensão do acesso, gestão e acesso

ao conhecimento como condição necessária para que a escola responda as necessidades

educativas dos excluídos, superando a seriação como forma organizativa do ensino.

Constata-se a universalização do acesso ao Ensino Fundamental o que colocou o povo

na escola, determinando necessidades à formação de educadores que trabalhem com

perspectivas epistêmicas com capacidade de articular cuidado e acolhimento com

desenvolvimento cognitivo.

Palavras-chave: Democratização da Educação; Gestão; Mercantilização; Qualidade

Social; Exclusão.1 Professor, Doutor, pesquisador em Educação, docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Reabilitação e Inclusão e Coordenador de Pesquisa e Pós-graduação do Centro Universitário Metodista IPA. [email protected] 2 Pedagoga, mestranda do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Reabilitação e Inclusão do Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS, Brasil. [email protected]

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Introdução

O nosso objetivo neste trabalho é o exame de alguns elementos que

transversalizam o debate sobre a democratização da escola, na dimensão da gestão e da

qualidade do ensino.Desenvolvemos o debate estabelecendo a contradição entre os

projetos opostos que estão em disputa no quadro conjuntural: a educação para a

cidadania e a educação para a mecantilização.Com essa intencionalidade delimitamos o

campo de abordagem, dirigindo o foco de análise ao ensino público, nível de Educação

Básica, com ênfase no Ensino Fundamental.

A discussão das questões pertinentes à gestão da educação provoca reflexões

sobre as políticas da educação, pois a gestão é a forma de colocar em prática todas as

metas e objetivos educacionais traçados pelas políticas. As leis são desdobramentos dos

arranjos sociais e políticos que produzem a estrutura legal que suporta a educação. A

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), art. 14, propõe alguns desdobramentos do

principio constitucional da gestão democrática da educação, estabelecendo que

profissionais da educação, comunidade escolar e local deverão participar da elaboração

do Projeto Político Pedagógico (PPP), de acordo com a peculiaridade de cada instituição

e comunidade a qual pertence. A Constituição de 1988 e a LDB consagraram o

princípio da gestão democrática, sem regulamentá-la, utilizando-se da expressão “na

forma da lei” para que o princípio fosse regulamentado nas instâncias federativas,

União, Estados e Municípios. O que pode ser constatado na lei Orgânica Municipal de

Porto Alegre, por exemplo, que reafirmou o princípio da democratização, normatizado

nas leis: n° 7365, que define a eleição direta de diretores e vices pela comunidade

escolar3; a lei nº 292 que define a eleição dos conselhos escolares, com a participação de

pais, alunos, professores e funcionários, e com atribuições administrativas, pedagógicas

e financeiras, constituindo-se no órgão máximo da escola; a lei nº 8198 que define a

criação do sistema municipal de ensino de Porto Alegre, tendo como órgão máximo o

Conselho Municipal de Educação (CME).

3 Lei Complementar n° 292 art.1°. Entende-se por comunidade escolar, para efeito deste artigo, o conjunto de alunos, pais ou responsáveis por alunos, membros do magistério e demais servidores públicos, ambos em efetivo exercício da Unidade Escolar.

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Os projetos pedagógicos, de forma explícita ou não, estão fundamentados em

concepções de cidadania e de mundo. Estas concepções são subjacentes às práticas

pedagógicas e implicam em fazeres escolares que buscam a concretização do tipo de

formação e da idéia de sujeito e de cidadania que é desejada. Por isso faz-se necessário

definir com clareza pressupostos filosóficos, sociais e educacionais que evidenciem a

finalidade da escola, explicitando seus compromissos com o tipo de ser humano que se

quer formar e o tipo de sociedade que se quer construir.

Para o entendimento da democratização da escola buscamos compreender os

elementos macroestruturais condicionantes das concepções que hegemonizam e

orientam as práticas concretas das ações do Estado, através de suas políticas e suas

repercussões na oferta da educação pública, entendida como um direito universal que

deve ser garantido à cidadania. O pano de fundo, caracterizado pelo processo de

globalização4, vem composto pela decomposição das alternativas políticas do Estado do

Bem Estar Social e a imposição da lógica do mercado, da desconstituição gradativa das

fronteiras nacionais, da acelerada mutação dos padrões tecnológicos, da revolução nas

comunicações e na transferência de atribuições do Estado ao chamado Terceiro Setor,

operado pelas organizações não governamentais.

Essas transformações solidificam o império do mercado que passa a ser “a

medida de todas as coisas”, onde a noção de cidadania é substituída pela de cliente, ou

seja, reduzida à condição de consumidor. Neste quadro, não só o conceito de cidadania

é afetado pelo ideário de mercado, mas, sobretudo, a idéia de democracia perde

substância como possibilidade histórica de realização de direitos, de emancipação social

e individual. Projetos com objetivos antagônicos reivindicam-se democráticos. Há os

que entendem democracia como a liberdade de comprar e vender serviços sociais no

mercado. De outro lado, estão os que a entendem como processo de garantia de direitos,

como o acesso universal aos serviços públicos garantidos pelo Estado. Ambos utilizam

o mesmo vocabulário, mas com conteúdos distintos e contraditórios. Para essas visões

há uma diferença na essencialidade do conceito de democracia. Desta forma,

participação, descentralização, competência, eficiência, gestão democrática têm

conteúdos distintos cujos significados vinculam-se ao conceito de democracia, de

Estado e de sociedade (MARICATO, 2007). A democratização da escola implica em

4 Sobre os efeitos sociais do processo de globalização e a hegemonia dos postulados neoliberais que subordinam a sociedade à lógica do mercado é recomendável a (re)leitura da obra Viviane Forrester. Horror Econômico. São Paulo: Unesp, 1997.

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um processo de democratizar a gestão e o acesso ao conhecimento. A universalização

do Ensino Fundamental exige relações democráticas das escolas com seus entornos,

como forma de construir identidades entre escola e comunidade.Demanda educadores

formados para a competência de interagir com os diferentes contextos culturais e

sociais, dispostos e capazes de transformar a escola em um espaço de inclusão pela

aprendizagem.

A educação gestão e mercantilização

O grande desafio para que os educadores avancem na construção de teorias e

prática para uma educação democrática começa pela necessidade de compreensão das

questões macro-econômicas e macro-políticas que atravessam a realidade e o dia a dia

da.educação. Há uma transformação conservadora que está em curso na educação cujo

sentido deve ser melhor precisada e validada pelos educadores. Podemos identificar

duas ordens de mudanças que estão afetando, já há alguns anos, a escola pública

tradicional. A primeira delas está associada à agenda imposta pela transformação

conservadora, ditada pela hegemonia das políticas neoliberais e da ofensiva dos

mercados sobre o setor educacional. Essa transformação está dando origem a um novo

tipo de escola, a "mercoescola" (AZEVEDO, 2007a), voltada fundamentalmente para

atender aos interesses do mercado. Que interesses são esses? Prioritariamente formar

cidadãos clientes e consumidores. Não se trata propriamente de privatizar a escola

pública, enquanto instituição, mas de privatizar a cultura escolar, substituindo a

formação de valores solidários, humanistas, pela cultura competitiva, baseada nos

valores do consumismo e do individualismo.

A segunda ordem de mudanças é definida pelo fato de que as diretrizes

educacionais passaram a ser formulada por agências internacionais, como o Banco

Mundial. Essas diretrizes transformam direitos universais em serviços disponibilizados

no mercado, na forma mercadoria, transformados em novas fontes de lucro.

O debate configurado na expressão “educação para todos”, desencadeado nos

anos 1990, carrega as tensões e conflitos do dilema educacional. De um lado a tendência

democratizante, defensora da universalização da educação pública em todos os níveis,

de acesso universal, como direito. De outro, a retórica da “educação para todos”

entendida como política de garantir, nos sistemas públicos, um mínimo de escolaridade

para os mais pobres e para as camadas com poder aquisitivo oferecer, no mercado, uma

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educação mais qualificada e abrangente. Ou seja, educação de qualidade para quem

possa comprar no mercado. Como atenuante aos mais pobres proliferam as chamadas

políticas focadas, ações assistencialistas que substituem políticas públicas de caráter

universal por assistência pontual a segmentos dos empobrecidos. No caso da educação

essas políticas expressam-se, principalmente, pelos programas de bolsas.

Nesta perspectiva quem determina qual o conhecimento prioritário é o mercado.

Neste contexto, as políticas públicas deixam de ser públicas, deixam de atender a

interesses gerais da população, e tornam-se subordinadas a estratégias empresariais.

As políticas educacionais tendem a ser induzida por esse modelo. Nesta direção

estão as ações políticas que procuram contaminar ou transferir diretamente para as

instituições educacionais os métodos organizacionais e gerenciais de gestão das

empresas.Através desse processo, nos últimos anos, temos assistido à absorção de uma

série de conceitos que sempre foram progressistas - descentralização, autonomia,

participação - por uma ideologia empresarial conservadora que os redirecionou,

mudando seu conteúdo e significado (AZEVEDO, 2007b). Essas mudanças são

aderentes à proliferação de instrumentos de avaliação no ensino brasileiro. A escola é

identificada como empresa, a educação como produto, Trata-se, portanto de avaliar

produtos e não processos de desenvolvimento humano, formação de cidadãos

autônomos com capacidade de emancipar-se. As noções de eficácia, eficiência,

mensuração quantitativa, busca de qualidade total, passaram a fazer parte das políticas

educacionais, sendo incorporadas inclusive por governos com pretensões progressistas.

Trata-se de substituir a dimensão pedagógica pelos princípios administrativos.

Desde os anos 1990, têm sido investidas vultuosas somas nos sistemas de

avaliação. Os dados do Enade, Saeb, Sinaes acumulam-se5. Não faltam diagnósticos. Os

diagnósticos indicam que precisamos investir em políticas públicas que aumentem o

salário, melhorem as condições de trabalho e a qualificação dos professores. Que sejam

melhoradas as condições estruturais de funcionamento das escolas. No entanto, as

avaliações são muito pouco utilizadas nesta direção. As receitas traduzidas da inferência

de seus resultados sugerem, quase sempre, como solução, a introdução dos métodos de

gestão empresarial como parâmetro para a qualidade de ensino preconizada pela

ideologia de mercado cujo objetivo é comercializar todas as dimensões da vida:

"quando até mesmo o amor e a sexualidade são pensadas como categorias econômicas,

5 Enade, Sistema Nacional de Avaliação do Estudante; Saeb, Sistema de Avaliação da Educação Básica; Sinaes, Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior.

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a comercialização da alma parece irresistível".(KURZ,2002,p.14-15).

Outra faceta dessa onda de mercantilização é o crescimento de práticas e

discursos em defesa de projetos serviços voluntários e de organizações não

governamentais como: “Amigos da Escola”, “Cidadã legal”, Parceiros Voluntários “e

tantos outros. São projetos ligados a fundações de grandes empresas ou organizações

não governamentais financiadas por ”mecenas” que aproveitam-se de incentivos fiscais

para distribuir migalhas a escolas de periferia, substituindo o estado e privatizando

recursos públicos. Ao mesmo tempo em que substitui o sujeito coletivo por “soluções”

individuais que dispensam a ação coletiva (AZEVEDO, 2007a). Essas ações evidenciam

o surgimento e a consolidação de um novo aspecto da ideologia de mercantilização da

escola. A relação da escola deixa de ser através de canais de participação coletiva

estabelecidos entre escola e comunidade, passando a ser mantida com indivíduos

“altruístas”, aposentados, trabalhadores voluntários que vão ser utilizados como

referência na tentativa de demonstrar que os problemas podem ser resolvidos

individualmente, em lugar do poder público, considerado ineficaz e

incompetente.Identifica-se nestas práticas a materialização da versão mais sofisticada

das teorias do Estado mínimo e da desconstituição do direito universal aos serviços

públicos em favor do mercado.

Democracia e educação

A democracia clássica, formal, baseada nos princípios liberais dos chamados

direitos naturais, reduz o cidadão a uma igualdade formal, cujo desdobramento é a

consolidação das desigualdades, pois, aos desiguais, em nome dos direitos iguais, nada

pode ser feito, a não ser apontá-los o caminho da “liberdade” de competição, onde as

desvantagens estão consolidadas. Nesta concepção o papel do cidadão é exercer o

direito de voto, elegendo representantes, sobre os quais não terá nenhum controle. A

partir do voto encerra-se a sua participação e as deliberações estão delegadas aos seus

“representantes”, que quase sempre estão muito mais sensíveis e comprometidos com os

centros do poder, econômico, social e político.

Ao transitarmos para o capitalismo global a democracia formal liberal adquire

força e atualidade, pois face aos novos padrões de desigualdade, procura-se construir

uma visão consensual onde desemprego, pobreza e exclusão são naturalizados. Apesar

de impor-se como alternativa, a forma neoliberal de acumulação capitalista, cada vez

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mais perde capacidade de distribuir riqueza social, podendo conduzir-nos, como diz

(SANTOS, 2002), para regimes politicamente liberais, mas socialmente fascistas. Trata-

se de desaparelhar o estado para o atendimento dos direitos sociais, promovendo a sua

adequação ao papel de viabilizador do mercado, removendo todo e qualquer obstáculo à

consecução da mercadoria, mesmo que esses obstáculos sejam os direitos sociais ou

salvaguardas ambientais. A grande mídia ao vincular-se com esses interesses veicula a

versão padronizada da realidade. Nesta versão a política reduz-se aos grandes

escândalos e a corrupção torna-se uma atraente mercadoria que ocupa os espaços nobres

dos grandes veículos de comunicação. “A política-espetáculo personaliza

vergonhosamente as questões, fascina os cidadãos, atomiza-os, massifica-os, não lhes

propicia influência alguma [...]”. (LÈVY, 1988, p-76).

Na contra mão da democracia liberal estão as tentativas de resgate do princípio

da participação, onde formas representativas combinam-se com mecanismos de

participação direta da cidadania nos processos decisórios do Estado.Opõe-se a redução

da vida ao mercado, à economia. Como afirma Marco Aurélio Nogueira:

Trata-se de um sistema complexo e sofisticado. Depende, portanto de

um vasto e permanente processo de educação para a cidadania:

seu sujeito, o cidadão, põe-se em cena como sujeito racional,

capaz de analisar, refletir, ponderar e escolher de modo criterioso.

(NOGUEIRA, 2001, p. 186).

Esta visão de democracia concebe um estado ativo, orientador do processo do

desenvolvimento, responsável por políticas públicas que garantam os direitos sociais, o

acesso universal aos serviços sociais como forma de assegurar a todos os cidadãos as

condições mínimas de dignidade.

Realiza-se como síntese da representação e da participação, acionando

um circuito em que o votar é apenas parte de uma contínua pressão em

favor da interferência coletiva na formação e implementação das

decisões que governarão a sociedade. Trata-se de um sistema de

liberdades e autonomia que depende essencialmente de sujeitos

esclarecidos e de um rol de direitos políticos, individuais e sociais

garantidos e devidamente associados a um sistema de regras, normas e

obrigações válidas para todos. (NOGUEIRA, 2001, p. 188).

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A consideração dessas formas de conceber e praticar a democracia provoca a

necessidade de definição sobre qual democracia estamos nos reportando quando

falamos em democratização da educação ou gestão democrática. A democracia como

processo de descentralização de obrigações e responsabilidades a partir de decisões

centralizadas? A democracia como transferência às comunidades de responsabilidades e

obrigações próprias do Estado? Democracia como realização de objetivos manipulados

ou monopolizados por privilégios particularizados que não correspondem às

necessidades da maioria? Ou a democracia como um processo de descentralização das

decisões, de controle social do Estado pela cidadania? De incidência da cidadania na

elaboração e aplicação das políticas públicas através da articulação entre representação

e participação direta? A resposta a estas questões significará uma opção sobre qual a

democracia que se quer na educação. A escolha da concepção de democracia implicara

no entendimento de democratização da escola, de formação de professores, de gestão,

de avaliação, de participação e das referências metodológicas e epistemológicas

adotadas.

Uma das condições essenciais para uma educação de qualidade social é a

democratização da escola e dos sistemas educacionais. Democratizar a educação pública

significa enfrentar e formular uma critica radical à escola, cujo padrão de organização

baseia-se na forma hierarquizada, verticalizada, fragmentada, reproduzida da

organização do trabalho fabril. Essa organização positivista de caráter cartesiano,

autoritário, reproduziu na educação o tayloriamo-fordismo, fazendo da escola um lugar

de ritos, de repetição, de rotinas e de distribuição de tarefas, num figurino piramidal de

relação autoridade-obediência.

Na educação comprometida com a formação do sujeito cidadão a

democratização da escola é considerada em três dimensões, (AZEVEDO, 2004). A

democratização da gestão, a democratização do acesso à escola e a democratização do

acesso ao conhecimento para os que estão na escola.

A democratização da gestão necessita da construção de canais de participação

com processos eleitorais formalizados, regrados por normas legais, produto de

consensos construídos. Entre os principais mecanismos estão: a eleição de diretores e

vices, constituição de conselhos escolares com participação de pais, alunos,

funcionários e professores, comissões de trabalho, assembléia por segmentos,

assembléia geral, orçamento participativo nas escolas, escola de pais, espaços de

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formação dos conselheiros eleitos e outras experiências possíveis de constituição de

espaços de participação democrática.

A democratização do acesso implica na garantia de acesso universal à educação

básica, não só para os que estão em idade própria, mas também para os adultos com

defasagem de escolarização, para os portadores de deficiência para as populações

indígenas, quilombolas e segmentos sociais empobrecido que necessitem de políticas

específicas para garantias do acesso. A democratização do acesso ao conhecimento

implica na permanência com aprendizagem, o que tem se constituído no grande desafio

a ser atingido, pois a não aprendizagem tem como conseqüência a reprovação, a evasão

e a consumação da exclusão social pela escola. Ou seja, a escola confirma a exclusão

dos que já são excluídos antes de chegar á escola, desta forma os sistemas de ensino

acabam reproduzindo a pirâmide social ao invés de constituir o ensino como uma

possibilidade e mobilidade social para as camadas populares da sociedade.

As propostas de políticas educacionais têm trabalhado com políticas

compensatórias, visando garantir a permanência. Contudo são raras as tentativas de

questionamento da estrutura tradicional da escola. Essa estrutura é adaptada a uma

concepção de conhecimento tratado como conteúdo pronto e acabado, que pode ser

repassado, reproduzido, independente de sentido e significado. A tendência é embotar a

criatividade de professores e estudantes, consolidar relações verticalizadas, excluir os

segmentos mais pobres pela não assimilação destes conteúdos descontextualizados. As

políticas educacionais têm se caracterizado por propostas quantitativas que não incidem

qualitativamente sobre os sujeitos da educação. Em geral as medidas anunciadas

restringem-se a ações administrativas que não tocam nas questões estruturais.

A gestão e a qualidade do ensino

O debate da educação concentra-se hoje na temática da qualidade do ensino. A

universalização do Ensino Fundamental está sendo viabilizada e o desafio da

democratização do acesso está finalmente se materializado. Tratá-se agora de buscar a

qualidade para os que estão na escola. Essa é a síntese do diagnóstico senso comum

sobre a situação do Ensino Fundamental. Mas a partir deste diagnóstico começa um

grande debate sobre como alcançar a qualidade e o que é mesmo qualidade de ensino.

Um caminho natural é valer-se do recurso comparativo. É comum buscar

as virtudes da escola pública brasileira do início da segunda metade do século passado.

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E deste método de pensar surge uma expressão forte: “como era boa a escola pública de

antigamente”. A “boa escola de antigamente“ seria um modelo a ser resgatado para

superar a má qualidade da escola atual. A visão que se reporta à qualidade da escola

pública tradicional desconsidera os limites de abrangência da educação pública nas

épocas evocadas. Admitindo a qualidade desta escola, torna-se inevitável considerar

que, neste período, metade da população brasileira era analfabeta, e da outra metade,

apenas uma minoria permanecia e concluía a educação básica. Portanto era uma escola

de qualidade para poucos, o povo não tinha acesso a essa escola, que era, em sua

essência, elitista e excludente, de duvidosa qualidade social. Nesta compreensão as

decisões são tomadas pela autoridade educacional, externa à escola, e a democracia da

gestão é uma preocupação secundaria ou não incorporada.

Avançando em relação à visão tradicional, outra perspectiva discute a qualidade

a partir dos modelos empresarias: do modelo de gestão da empresa, dos métodos de

organização do trabalho na produção e das necessidades reais de mercado, tendo como

objetivo a formação do cidadão prioritariamente, consumidor, cliente e empreendedor.

A alternativa de mercantilizar a escola, introduzindo na formação os valores de

mercado, associa a gestão e a qualidade ao estímulo à competição, aos valores que

promovem o individualismo e a visão da formação como treinamento, como um

adestramento ideológico que sustenta o fundamentalismo de mercado, reduzindo a

escola à visão empresarial. O culto do individualismo, da competição irrestrita e da

meritocracia institui-se como justificativa da derrota do outro. Nesta visão justificam-se

as avaliações pontuais que se restringem ao exame do produto, desconsiderando-se ou

secundarizando-se os processos. Justificam-se também as pedagogias da premiação, das

compensações pecuniárias como forma de estímulo à aprendizagem. O prêmio e o

castigo são resgatados, inclusive como incentivos às instituições e como instrumentos

de gestão. Os que obtiverem melhores resultados serão compensados financeiramente.

Nesta compreensão a gestão associa-se às práticas tecnicistas, reduzindo-se a

um conjunto de instrumentos e técnicas gestionárias que pairam de forma assépticas

sobre os aspectos políticos e culturais que envolvem uma gestão. O perfil do diretor de

escola é o do gerente que domina a tecnologia referenciada na gestão empresarial.

Trata-se de indicar as competências desejadas, definir desempenho, estabelecer metas

mensuráveis, quantificáveis, dentro dos padrões de eficiência, eficácia e produtividade,

preconizados pela administração científica. Demandam um gestor imune aos processos

políticos, onde as soluções técnicas são apresentadas como possibilidades únicas,

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dotadas de neutralidade, pois a eficiência técnica da gestão “beneficia a todos”. Daí a

dispensa da comunidade como sujeito político e a sua redução a operadora de ações

descentralizadas, previamente definidas, sem espaço para mediações políticas. A

indicação do gestor é escolha do governante ou é feita em uma pré-seleção, através de

um curso de capacitação para gestores. Os “capacitados” podem submeter seus nomes à

escolha da comunidade escolar. A comunidade perde o direito de escolher seus gestores

segundo seus critérios políticos e conforme suas percepções das lideranças e das

competências expressas nas relações desenvolvidas no contexto da comunidade escolar.

Uma terceira posição, crítica às duas anteriores, centra a concepção de qualidade

na consideração dos valores ligados à formação do sujeito histórico, à formação integral

do indivíduo, incluindo as dimensões das competências e habilidades para o trabalho,

considerando o trabalho como ação emancipatória e realizadora da humanização do ser

humano. Compreende qualidade numa dimensão de humanização do ser humano. Situa

a educação como um processo de socialização e recriação da cultura, onde cada geração

insere-se num processo mutante a partir da herança cultural socialmente acumulada. O

conhecimento é mais do que repetir informações ou repetir operações básicas. O

conhecimento é detentor de uma qualidade social intrínseca, cuja finalidade é

desenvolver habilidades inerentes ao trabalho complexo, (KUENZER, 2007), como a

capacidade de criar, resolver problemas, responder a desafios imprevisíveis,

compreender as relações entre as partes e o todo, formular soluções inovadoras e

diversificadas. Esses atributos exigem uma concepção de qualidade para além do

treinamento de habilidades restritas, cujo objetivo é o de responder as avaliações

externas. Trata-se de entender qualidade como qualidade social, de educação como

processo de desenvolvimento humano, de formação de sujeitos históricos, cidadãos

críticos, autônomos, portanto não como meros reprodutores das condições dadas, mas

capazes de forjar a sua emancipação na dialética da relação do sujeito como ser único,

mas que tem sua singularidade formada nos processos interativos do sujeito indivíduo e

do sujeito social (VYGOTSKY, 1984). O sujeito cidadão é aquele capaz de interferir na

história, de transformar a sua existência.

Trata-se da qualidade que forma o sujeito cidadão, o que só é possível com uma

educação cidadã, ou seja, em uma educação de qualidade social. A finalidade da

educação é ensinar e aprender um conhecimento para a cidadania. E assim como a

qualidade, a cidadania também pode ter diferentes conceitualizações.

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Para além da cidadania centrada na ordem jurídica dos

direitos e deveres, derivada da filosofia positivista,

preocupada apenas com a cidadania civil, busca-se o

desenvolvimento de uma cidadania que, além da

dimensão civil, desenvolva as dimensões econômica,

cultural e política. Ou seja, a conquista dos direitos

pessoais e sociais indispensáveis à ordem democrática e

à construção da cidadania plena. (BORDIGNON;

GRACINDO, 2000, p. 156).

A cidadania é um estado de participação do sujeito, é um processo de estar

“com” o contexto, e não apenas estar no contexto. Ou seja, formar cidadania coloca um

desafia para educação, percebido na exigência de um ensino capaz de possibilitar a

vivência e a experiência da participação, onde cada indivíduo vivencia a sua

autoconstrução na relação com o “outro” indivíduo e o coletivo. A educação cidadã

ensina a convivência solidária, a construção da igualdade com a preservação das

diferenças. A igualdade de direitos, a igualdade das necessidades humanas, dos deveres

sociais, da dignidade humana e as diferenças do sujeito como ser único, com

potencialidades distintas e formas singulares de interagir com o mundo da cultura e da

sociedade.

Neste entendimento de qualidade a gestão é concebida como construção da ação

coletiva, como empoderamento do protagonismo político da comunidade, reconhecendo

suas lideranças, seus processos políticos e suas competências. O gestor credencia-se

pelo seu reconhecimento como liderança do projeto comunitário, como representante

das mediações políticas hegemônicas na comunidade escolar. Os critérios de eficiência

subordinam o instrumental técnico gerencial à qualidade social dos resultados. Esta

perspectiva não dispensa e não se realiza sem os mecanismos de participação

democrática como a eleição direta dos dirigentes e dos conselhos de escola, opondo-se

de forma inconciliável a mecanismos de pré-seleção e a nomeações que retiram ou

restringem a decisão da comunidade escolar.

A diversidade conceitual do que seja qualidade e seus vínculos com as

concepções de gestão é uma decorrência dos paradigmas epistemológicos subjacentes

ao discurso da qualidade. Na realidade o conceito de qualidade, na sua dimensão

prática, valida a expressão na educação de diferentes concepções de mundo.

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Não é um conjunto de critérios que hermeticamente a

delimita. Isto porque ela é freqüentemente definida como

reflexo de uma concepção de mundo e de sociedade, retratada

na busca de formação de um tipo de indivíduo que seja

compatível com aquela concepção. A partir de então a

escola procura desenvolver conhecimentos habilidades e

atitudes que irão encaminhar a forma através da qual os

indivíduos vão se relacionar com a sociedade, com a

natureza e consigo mesmo. (GRACINDO, 1994, p. 253).

Desta forma é necessário admitir a existência de muitos entendimentos sobre

gestão e qualidade de ensino, tantos quanto é a diversidade de concepções de ser

humano, de sociedade e de mundo. A gestão democrática com qualidade social só pode

configurar-se com o entendimento da escola como um espaço público coletivo, onde o

gestor incorpora na ação administrativa e o protagonismo dos sujeitos, tendo em vista a

realização da essencialidade da escola, a ensinagem e a aprendizagem de todos.

Conhecimento para todos: parâmetro de qualidade social e da gestão democrática

Outra dimensão de qualidade social como pressuposto da gestão democrática

situa-se na formação dos educadores.Em geral, os educadores não estão preparados para

atender o “novo” publico que freqüenta a escola pública. Novo por que, na tradição

brasileira, o povo foi excluído do acesso à escola. Pela primeira vez em nossa história

chegamos nos marcos da universalização do acesso ao ensino fundamental (OLIVEIRA,

2007), e com avanços significativos no acesso à Educação Infantil e ao Ensino

Médio.Nunca é demais assinalar: mudou o público da escola pública, o povo está na

escola, portanto faz-se necessário pensar uma escola para o povo.

Diante desta realidade apresenta-se um novo desafio aos educadores. Ou seja, a

exigência de mudar a escola. Porem, a transformação da escola excludente, elitista, em

uma escola democrática, inclusiva, não será uma mudança espontânea. Não acontecerá

sem que também os educadores estejam convencidos da necessidade destas mudanças.

Isto significa que a formação de professores é fator de grande peso para viabilizar uma

escola pública democrática e de qualidade, pois esta demanda uma determinada

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concepção epistemológica, ou determinadas concepções de conhecimento que somente

se viabilizam em processos democráticos com gestão participativa, com construção de

espaços coletivos, públicos e de controle social.

A formação de professores tem múltiplas dimensões, todas elas interligadas,

com especificidades imprescindíveis ao processo formador. Mas uma das insuficiências

da formação docente, revelada nas práticas pedagógicas, localiza-se na dificuldade dos

educadores em lidar com concepções epistemológicas produtoras de posturas e práticas

pedagógicas que respondam à diversidade cultural e às condições sociais de parcelas

significativas da população que chegam á escola já marcados pela exclusão.

Uma das questões centrais para resgatar o sentido e o significado do que se faz

na escola encontra-se nas interrogações: a partir de onde e com que pensamento se

constrói o conhecimento? E com quais referências teóricas? E quem é o sujeito

educando? A partir destes primeiros passos e atitudes pode-se, grosso modo – e o

fazemos via de regra –, percorrer dois caminhos epistemológicos com pressupostos

distintos. Um deles baseado numa investigação especulativa, idealista, onde conhecer

deriva para sistematização de uma lógica formal que passa ao largo do contexto cultural

socialmente produzido com pressupostos que tendem a negar ou subestimar o sujeito

real. È o viés mecanicista subjacente às práticas pedagógica. A partir da crítica a essa

visão é inevitável a busca de um segundo caminho, baseado em uma postura crítica ao

caráter artificial, domestificador e reprodutor das práticas escolarizadas. O viés

mecanicista que artificializa e coisifica a educação escolar não acontece por acaso, pois

esse é o parâmetro ainda dominante na formação dos educadores. Sendo a escola feita

pelos educadores mudar a escola significa modificar as concepções e as práticas dos

educadores, possibilitando-lhes o diálogo com concepções críticas, criativas e

transformadoras.

Os desdobramentos de uma prática pedagógica democrática e crítica implicam

em admitir que todos os homens e mulheres são portadores de concepções de mundo,

significa considerar que todos homens e mulheres são portadores de saberes gerados

pela criação cultural na produção da sua existência. Também quer dizer que fora do

espaço escolar preexiste um conhecimento produzido pela vida comunitária que

necessita ser acolhido e considerado pela escola.

O conhecimento fruto do viver cultural e da experiência adentra as escolas com

seus portadores. Assim, chega-se a uma questão chave para o trabalho pedagógico. Ou a

escola desconhece esses saberes e tenta ensinar com base no raciocínio especulativo,

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idealista, descolada do contexto cultural real, ou parte da articulação do conhecimento

da vida social com o conhecimento sistematizado, orgânico e coerente. Neste caso,

trata-se de construir o conhecimento a partir do “senso comum”. Ou seja, no que

(GRAMSCI, 1981) chama de núcleo “racional do senso comum”, ou “bom senso” como

caminho de produção de um “senso comum diferenciado”. Ou seja, percepções mais

complexas da realidade, o conhecimento novo.

Esta postura epistêmica, acolhedora das diferenças, identifica-se com práticas

pedagógicas compatíveis com a nova composição da população escolar brasileira, o que

pode lhe conferir sensibilidade para a necessidade das ações pedagógicas inclusivas,

pertinentes aos processos de construção e socialização democrática do conhecimento.

Nesta direção está a visão pedagógica freiriana que concebe a produção do

conhecimento como processo de transformação da curiosidade ingênua para a

curiosidade epistemológica. A curiosidade ingênua é a que caracteriza o senso comum.

O desafio do educador é a critização e a superação do senso comum, passando da

desrigorosidade para a rigorosidade. Neste trânsito de superação, o educador deve ter

“[...] respeito e estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da

educadora com a consciência crítica do educando cuja promoção da ingenuidade não se

faz automaticamente”. (FREIRE, 1997, p. 32-33).

As referências teóricas e a identidade com uma teoria do conhecimento são,

portanto, pressupostos e ferramentas indispensáveis à reflexão das práticas. Contudo, é

preciso considerar a produção de uma outra dimensão do conhecimento necessária à

formação do educador, ou seja, aquela gerada pela reflexão da prática, pelo

experimento, pela ousadia da mudança na reinvenção do conteúdo e da forma da

organização do ensino e do funcionamento da instituição escola. Para concretizar essa

perspectiva os mecanismos de gestão democrática são essenciais para o fluxo dos

processos que impactam a cultura escolar com os saberes populares.

Conclusão

O impacto da globalização com seus ingredientes característicos, ao criar o

mercado mundial tensiona no sentido da mercantilização e da transposição dos valores

de mercado e da organização da empresa para o interior da escola. Esse processo é

coincidente com o crescimento do numero de desempregados e empobrecidos. Ao

mesmo tempo, universaliza-se o acesso ao Ensino Fundamental e as escolas recebem

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uma massa de crianças e adolescentes já marcados pela exclusão, vitimados pelo

empobrecimento, pelo desemprego, pela desestruturação familiar, pelo abuso sexual e

por outras formas de violência e de discriminação e exclusão.

O estabelecimento de políticas públicas calcadas em medidas compensatórias ou

na meritocracia, tendem a não melhorar ou até piorar a qualidade do ensino.Aplicam-se

instrumentos de avaliação externas que produzem diagnósticos repetitivos, já sabidos,

como verificação dos índices de reprovação em determinadas séries. As intervenções

sobre os problemas reais são modestas, investindo-se muito pouco e difundindo índices

comparativos de aprendizagens com países desenvolvidos que realizam grandes

investimentos em educação.Estes índices são pautados por padrões meritocráticos,

calcados na visão empresarial de avaliação de produtos e nos modelos de gestão

tecnocráticos, portadores da ideologia de mercado.

A resposta às necessidades educacionais dos empobrecidos tem sido, não raro, a

confirmação da exclusão, operada pela distância dos processos pedagógicos em relação

às necessidades educacionais destes segmentos sociais. A escola como instituição e o

tipo de formação que os educadores recebem predominantemente nas escolas de

formação, trabalha com um modelo de estudante idealizado, configurado nas

características dos setores médios. O sujeito real que freqüenta a escola pública é

marcado pelos processos de exclusão, estando distante dos parâmetros do “educando

desejável” o que distancia a escola das soluções educacionais necessárias às classes

populares.O que desafia a escola pública atual é a necessidade de superar os entraves

para acolher e cuidar de um universo de empobrecidos e excluídos, que não alcançarão

progressos cognitivos sem a precedência do cuidado e do acolhimento. Nestas

circunstâncias, cuidado e acolhimento precisam ser entendidos como tarefas

pedagógicas que devem ser incorporadas pelos processos educativos.

A incorporação de práticas e fazeres que dialoguem com as necessidades

educacionais das massas populares que adentram a escola não acontecerá sem a

superação do engessamento dos espaços e tempos escolares do sistema seriado. Estes

espaços estão vinculados a concepções e práticas hierarquizadas e autoritárias, tratando

o conhecimento como pacotes que podem ser transferidos para um aprendiz objeto. A

reorganização dos espaços e tempos escolares associados às teorias de desenvolvimento

humano, a espaços coletivos de planejamento e ação pedagógica que levem em conta a

diversidade social e cultural, os tempos de aprendizagem dos estudantes pressupõe

também uma gestão democrática. Ou seja, uma gestão legitimada pela comunidade,

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entendendo a dimensão administrativa como um meio para realização da dimensão

pedagógica, colocando os sujeitos atores da comunidade escolar na condição de

protagonistas reais, viabilizadores da função da escola como espaço de aprendizagem

para todos.

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