GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo - NIETZSCHE - Perspectivismo, Genealogia, Transvaloração
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NIETZSCHE*
Perspectivismo, Genealogia, Transvaloração
Oswaldo Giacoia Junior**
Afilosofia de Nietzsche está tão imbricada com sua veia polêmica que até mesmo a
tentativa de circunscrever seus temas centrais tem sido uma tarefa não isenta de disputa entre as
diversas correntes de interpretação - isso vale tanto para a identificação quanto para a
compatibilidade entre esses mesmos temas. Limito-me aqui a observar que duas interpretações
contemporâneas emblemáticas, embora concordando parcialmente quanto à identificação dos
temas, divergem quanto à sua harmonização possível no interior de um mesmo sistema.
Martin Heidegger e Karl Löwith concordam parcialmente em que a vontade de poder, o
niilismo, o eterno retorno do mesmo, o além-do-homem e a justiça sejam as doutrinas mais
importantes da filosofia nietzscheana. Porém, enquanto para Löwith a manifesta
incompatibilidade entre a vontade de poder e o eterno retorno do mesmo implode o edificio
metafísico nietzscheano, Heidegger vislumbra na co-pertença entre essas "lições capitais" o
cabal atestado de legítima filiação de Nietzsche à ancestral tradição do pensamento metafisico.
Tendo em vista esse debate, minha tarefa consistirá discernir um núcleo sistemático na
reflexão de Nietzsche, sem necessariamente tomar como ponto de partida os temas
metafisicamente mais "nobres"; por outro lado, gostaria de sugerir que a existência desse
vínculo sistemático entre conjuntos de problemas e questionamentos não exige o inclusão de
Nietzsche na galeria tradicional da metafisica.
Parto, pois, de figuras e imagens aparentemente enigmáticas - como a metáfora
feminina da verdade -, noções e conceitos como perspectivismo, genealogia, transvaloração -
perifericamente vinculados às grandes doutrinas acima aludidas. Supostamente desprovidos
de idêntica densidade e "dignidade" metafisica, eles podem fornecer pistas preciosas que,
sem déficit teórico, nos colocam em sendeiros que demandam ao centro nevrálgico da
reflexão nietzscheana: a idéia de um mundo pensado a partir do conceito de vontade de
poder. Para demonstrá-lo, tomo como fio de Ariadne a metáfora atrevida, pela qual verdade
e feminilidade se identificam.
Para podermos compreender o significado da metáfora, é necessário considerar, antes
de tudo, seu lugar estratégico: o prefácio ao livro Para de Bem e Mal, isto é, o pórtico da
obra que realiza, a um tempo, a desconstrução fulminante da tradição metafísica e a primeira
exposição das noções de vontade de poder e do perspectivismo.
De acordo com esse libelo antidogmático, o pior, o mais persistente e perigoso erro
da da filosofia foi um erro de dogmáticos, a saber, a invenção por Platão de um espírito puro
e de um bem em si'. Erro que coincide com a instauratio do modo tipicamente metafisico
de pensar, isto é, a partilha e a oposição entre forma inteligível e matéria sensível, essência e
* Texto publicado na Revista Cult 37 - Revista Brasileira de Literatura - Ano IV. São Paulo. ** Professor, livre docente de filosofia da Unicamp, autor de Labirintos da Alma: Nietzsche e a Auto-supressão da
Moral (Edunicamp) e Folha Explica Nietzsche.
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aparência, verdade e falsidade, origiinal e cópia, eterno e efêmero, ser e vir a ser, espírito
(alma) e corpo.
No horizonte instituído por esse dualismo, os. dados fornecidos pela experiência
sensível, bem como nosso conhecimento de senso comum, nos apresentam apenas sombras e
imagens imperfeitas da verdadeira realidade. Essa é essencialmente constituída por
estruturas inteligíveis (formas, essências ou idéias) que a razão discerne para além das
aparências (meta physika). Elas constituem o elemento substancial e permanente por detrás
da fugacidade das aparências.
Nosso intelecto só é capaz de ascender até a contemplação (esse o significado
original de teoria) dessas formas puras porque, participe da essência inteligível, é aparentado
a elas; e é tanto mais capaz de fazê-lo quanto mais se liberta dos grilhões que o aprisionam
ao insubsistente mundo das aparências enganosas: as cadelas do desejo, das paixões, da
corporeidade. Filosofia, enquanto verdadeira sabedoria, é uma forma transfigurada de
ascese, cuja destinação consiste em elevar seus iniciados à intelecção da mais sublime das
idéias. Essa idéia é a causa originária de todas as outras formas inteligíveis: a idéia do Bem
(ou de Deus, em termos cristãos), essencialmente vinculada às idéias de Verdade e de
Beleza.
Gerada pela pura forma do Bem, a Verdade corresponde à vocação essencial do
espírito e não pode estar atrelada à indigência do parecer subjetivo, à inconstância do meu e
do teu, que condena a opinião e o conhecimento fundado nos simulacros sensíveis aos
descaminhos da imaginação delirante. Como o próprio espírito, a verdade tem a
propriedade da universalidade, da necessidade e da objetividade -- de ambos fica excluída a
distorção subjetiva, escrava da particularidade dos interesses, das inclinações e dos apetites.
Fruto do espírito puro, a verdade seria a transparência plena, desvelamento (aletheia), a
realidade nua da essência, iluminada pela potência do espírito.
Nietzsche sustenta que esta figura da verdade se encontra na raiz de toda a metafísica
dogmática; a despeito de suas distintas modalizações nos diferentes sistemas, ela subsiste
como ideal sagrado da própria filosofia, uma vez que até mesmo o ceticismo -- valoroso
combatente do dogmatismo filosófico -- se limita a deplorar a impotência de nosso
conhecimento para alcançar esta verdade, sem, contudo, renunciar a seu ideal.
A verdade como realidade desvelada -- como conhecimento das formas universais e
necessárias de todos os objetos possíveis -- se apresenta, pois, como correlato daquela
invenção platônica do espírito puro e do Bem em si, que está na origem da metafísica e
acompanha toda a história de seu desdobramento.
Nietzsche, porém, pretende que conceber o espírito como o fizeram Platão e os
metafísicos de todos os tempos, implica "colocar a verdade de cabeça para baixo", inverter
seu sentido, transformá-la em seu avesso. E justamente o caminho para essa "tese" é
argumentativamente pavimentado pela metáfora da verdade como mulher.
Como vimos, o essencial da operação platônica consiste na instauração de um conceito
objetivo de verdade - a verdade como ultrapassamento do simulacro e desvelamento das
essências. Se, com isso, a verdade foi posta de "cabeça para baixo", então o avesso da verdade
platônica consistirá precisamente na valorização positiva da aparência, dos véus, do disfarce, da
sedução, das paixões, do corpo e do desejo - isto é, de tudo aquilo que, ao longo da tradição
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metafisica ocidental esteve associado com o feminino, com o perigoso, com a carne, as paixões,
o mundo sensível.
Suposto que a verdade seja uma mulher - assim se inicia o prefácio de Para além de
Bem e Mal -, então está explicado porque nenhum dogmático jamais pode conquistá-la, pois a
verdade estaria sempre no inverso do que procuram os dogmáticos. Essa operação de inversão,
que anima a metáfora, promove no texto a ocasião necessária para apresentar ao leitor a noção
de perspectivismo. A inversão que a introduz não se restringe a marcar com um sinal positivo
aquilo que a tradição indiciara com o estigma do negativo.
Se, em virtude do erro de Platão e dos dogmáticos, inverteu-se a imagem da verdade,
isso ocorre porque, de acordo com Nietzsche, não é possível um conhecimento desvinculado de
condicionamentos subjetivos, da incontornável particularidade dos interesses de manutenção e
ampliação de posições alcançadas de força e de poder. Esse é o ângulo perspectivo que
nenhum olhar pode elidir, a forma de avaliar que determina os conteúdos valorativos que dela
se originam.
E, se os metafisicos obtiveram êxito em apresentar seus sistemas como expressão
objetiva do conhecimento racional puro, derivado de um Bem em si, é porque souberam
dissimular a limitação perspectiva e a idiossincrasia das circunstâncias a que devem seu
surgimento e desenvolvimento.
Nesse sentido, o perspectivismo, como teoria, consiste no esforço para trazer à luz o
permanente antagonismo -- vigente tanto no plano do conhecimento teórico quanto no do juízo
estético e moral -- entre as pretensões de validez objetiva e os diversos contextos particulares
em que se enraízam as condições que suscitaram tais pretensões.
Tendo esse antagonismo em vista, Nietzsche escreve, no epílogo de Nietzsche contra
Wagner: hoje em dia não acreditamos mais que a verdade ainda permaneça verdade se lhe
subtraímos os véus, pois talvez a verdade seja mulher, e, portanto, tenha fundamentos para não
deixar espiar os seus fundos. O perspectivismo opõe, portanto, à imparcialidade de um
conhecimento desinteressado a inexorabilidade das determinações históricas, sociais, culturais,
psicofisiológicas e lingüísticas que condicionam o conhecer, o julgar e o agir humanos.
Afirmar o caráter perspectivo de todo conhecimento implica dizer que nosso
aparelho cognitivo não pode ter acesso às coisas em si mesmas, que sua atividade está
necessariamente condicionada por formas e categorias estruturantes, que configuram toda
realidade como fenomênica, isto é, tal como aparece para nós, sob as condições subjetivas
desse mesmo quadro categorial.
Pode-se objetar, a esse respeito, não haver aqui diferença substancial com o idealismo
presente na crítica kantiana da razão. Para Nietzsche, entretanto, as formas categoriais não
configuram um esquema a priori universal e necessário, comum à racionalidade humana
entendida como um sujeito genérico. Para ele, essas categorias constituem uma espécie de a
priori empírico, pois estão condicionadas aos avatares da história e às funções gramaticais
comuns à raiz lingúistica de determinadas civilizações.
Isso transforma essencialmente todo conhecer num interpretar, vedando qualquer acesso
possível a fatos brutos, que seriam como que os textos a serem interpretados: a interpretação é
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tudo - tanto o conhecimento teórico como a produção artística são interpretações, formas
distintas da poiesis (criação) humana.
Nietzsche considera, além disso, que seu perspectivismo é a conseqüência radical e
inexorável da filosofia transcendental de Kant e do ulterior desenvolvimento do idealismo
alemão; portanto, ele o pensa como a teoria do conhecimento mais compatível com o estado
atual da moderna cultura científica. Por essa razão, nenhum recurso tradicional -- nem mesmo
a referência a um horizonte categorial a priori -- pode pôr fim ao conflito das interpretações: o
universo se torna novamente infinito, em virtude da multiphcldade das perspectivas possíveis
em que se resolve agora esse mesmo universo.
Àquilo que apresentei até esse ponto, gostaria de vincular outro aspecto dessa mesma
questão: o perspectivismo se liga essencialmente à arte da interpretação e constitui a teoria do
conhecimento mais adequada a uma filosofia que concebe o mundo sob a ótica da vontade de
poder.
Para tornar plausível essa afirmação, faz-se necessário antes recordar que, para
Nietzsche, a vontade de poder deve ser entendida como elemento fundamental da realidade,
pois tudo aquilo que sucede no universo pode e deve ser explicado a partir de alianças e
oposições entre forças, com vistas à manutenção e incremento de formas organizadas de
relações de poder.
Tal esquema interpretativo vigora, para Nietzsche, no reino inorgânico de matéria e
gravidade, no plano dos organismos e das forças vitais, assim como no âmbito das motivações
humanas e das formas de organização social. Mesmo as mais refinadas esferas da cultura
superior (Ciência, Fúosofia, Religião, Arte, Morafidade) não são senão formações sublimadas
de vontades de poder em relações permanentes de dominação e sujeição.
Ora, vontades de poder se efetivam em forças cuja essencia reside em seu exercício ou
descarga. Esta, por sua vez, não pode ocorrer senão a partir de resistências sustentadas por
outras forças, pois a força só se exerce contra a força. Sendo assim, aquilo que vale para as
vontades de poder, em geral, vale também para suas configurações espiritualizadas, isto é, vige
também no âmbito das teorias científicas, filosóficas, no plano da arte e da moral. Por
conseguinte, as distintas interpretações globais da existência, em que consistem os sistemas
filosóficos, se opõem e se combinam com outras tantas que lhe são afins, opondo-se às
incompatíveis, sem que possa haver recurso a um tertius genus que pudesse solucionar o
conflito, exterior ao atuar ao atuar conjunto das múltiplas interpretações; isto é, não há recurso
ao texto, ou à realidade objetiva, independente das interpretações.
Por essa razão, o caráter agonístico é inseparável da constituição das diversas teorias e
sistemas. Como toda teoria é interpretação, ela é também perspectiva que se afronta e compõe
com outras perspectivas, de modo que a esse concerto e oposição pertence necessariamente uma
andição tanto dialógica quanto polêmica.
Por conseguinte, não se pode abrir espaço para interpretações legitimáveis senão a partir
da refutação polêmica do dogmatismo metafísico, de tipo platônico, pois esse sempre se nutriu
da crença na possibilidade de dirimir, em última instância, o conflito das interpretações, ainda
que a resolução efetiva tivesse de permanecer indefinidamente em suspenso.
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Em outras palavras, era necessário recolocar a verdade sobre seus pés, revertendo a
inversão platônica da razão pura e do Bem em si. Era necessário, pois, resgatar a verdade da
mansão celeste das formas puras e atemporais, devolvendo-a ao solo pantanoso e sangrento da
história de sua origem, que ela tem boas razões para dissimular com véus e máscaras.
Na medida, porém, em que a verdade vale, no mundo moderno, como o derradeiro
resíduo de valor incondicional e sagrado, essa operação de inversão do platonismo se apresenta
como transvaloração de todos os valores, pois que põe em questão o valor supremo, o último
remanescente do absoluto ainda legitimado. Não sendo a verdade um absoluto, Nietzsche
pode, então, perguntar: supondo que queiramos a verdade, já que não é isso que está em
questão, por que não, antes, a não verdade, o erro, a incerteza?
Para concluir, torna-se necessário observar que essa dissolução do valor absoluto da
verdade não pode ser feita de um ponto de vista externo à tradição histórica da metafisica
ocidental. Pelo contrário, é preciso que esta tenha se esgotado ao realizar todas as suas
virtualidades. Nietzsche interpreta nesse sentido a tarefa da transvaloração: ela consiste em
levar nossa tradição à sua plenitude, extraindo a derradeira conseqüência da lógica de seus
próprios valores.
Ao fazê-lo, ele a conduz à sua catástrofe isto é, à sua auto-superação. Desse modo,
Nietzsche se compreende como herdeiro e realizador da mais autêntica vocação da históra da
filosofia: como aquele que a eleva à auto-reflexão e, portanto, à compreensão do sentido de seu
desenvolvimento. Uma radical disciplina do espírito sob a perspectiva de justificação
imanente do sentido do sofrimento e da morte, desprovida do consolo metafísico de um final
apocalíptico da história, é o caminho que conduz ao Além-do-Homem.
O procedimento metódico a que Nietzsche recorre é também o mais adequado à sua
teoria do conhecimento: o procedimento genealógico. Esse consiste em reconstituir as
condições de surgimento, transformação, deslocamento de sentido e desenvolvimento dos
supremos valores de nossa civilização. À genealogia nietzscheana, como método de
investigação, compete desvendar as condições e circunstâncias de surgimento de nossos
supremos valores e ideais - portanto imiscuir-se no que neles existe de interesses, parcialidade,
"imoralidade" -; inclusive e sobretudo naqueles ainda aptos a legitimar pretensões de validez
objetiva para juízos e processos cognitivos.
Sob o crisol da Genealogia, revela-se todo valor como histórico e culturalmente
emergente em configurações de poder -- sejam elas de indivíduos, grupos, povos ou
civilizações -- e, portanto, essencialmente como interpretações. Esse é um resultado que a
moderna consciência científica é compelida a extorquir de si mesma, pois ele é o fruto mais
legítimo e contraditório do progresso das Luzes e da própria ciência. Por essa razão, a crítica
nietzscheana da razão é também auto-supressão da metafísica e da moral.
Todo meu esforço consistiu em mostrar como se pode percorrer o labirinto do
pensamento de Nietzsche, chegar mesmo à caverna do minotauro, seguindo o fio de Ariadne de
questões e figuras aparentemente desprovidas da gravidade metafisica dos assim chamados
temas nobres.