Giambattista Vico - Poesia e Ciência Nova, Ana Cláudia Ramalho dos Santos

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    UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

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    BBAA

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    ANA CLUDIA RAMALHO DOS SANTOS

    MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA

    2008

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    Universidade de LisboaFaculdade de Letras

    Programa em Teoria da Literatura

    Giambattista Vico:Poesia e Cincia Nova

    Ana Cludia Ramalho dos Santos

    Dissertao orientada pelo Professor Doutor Joo R. Figueiredo

    Mestrado em Teoria da Literatura

    2008

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    Agradecimentos

    O meu primeiro, sincero, agradecimento dirigido ao professor Joo

    Figueiredo, cuja orientao disponvel, atenta e rigorosa foi determinante para

    a realizao desta tarefa.

    Ao professor Miguel Tamen, agradeo especialmente a confiana que me

    transmitiu no momento em que tive a irreflectida ideia de escrever uma tese

    sobre a Cincia Nova.

    Esta tese beneficiou ainda da generosidade dos meus colegas do

    Seminrio de Orientao, qualidade que nem sempre se encontra em

    companheiros de academia. Desses, destaco o kafkiano Nuno Amado, pela

    amizade e por todas as perguntas.

    Agradeo minha amiga e colega Joana Meirim, pelo apoio de sempre.

    Finalmente, agradeo ao meu pai e minha me, na verdade, por tudo!

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    Esta dissertao estuda o papel da poesia no mtodo e na estrutura da Cincia

    Nova, de Giambattista Vico. Considerada a chave-mestra da obra, a poesia

    relacionada com o conceito de sabedoria potica, a partir do qual Vico constri

    uma teoria das origens poticas da humanidade. Perceber como se articula a

    teoria das origens de Vico com o propsito de fundar uma nova cincia um dos

    principais objectivos deste estudo. Argumentar-se- que a novidade da Cincia

    se encontra no seu mtodo e numa forma de conhecimento que pode ser vista

    como potica.

    This dissertation studies the role of poetry in the method and structure of

    Giambattista Vicos New Science. Considered the works master key, poetry is

    related to the concept of poetic wisdom, which Vico uses to build his theory of

    the poetic origins of mankind. Understanding how to articulate Vicos theory of

    origins with the goal of founding a new science is one of this studys main

    objectives. It will be argued that the newness of the Science lies in its method

    as well as in a form of knowledge that can be regarded as poetic.

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    Great are the myths I too delight in them

    Walt Whitman

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    NDICENDICENDICENDICE

    Os princpios da tese 7

    I Cincia e mtodo . 9

    II A chave mestra de uma obra 22

    III Uma teoria das origens 34

    IV A sabedoria potica de Homero . 45

    V Cincia e poesia . 54

    Bibliografia . 65

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    OOOOS PRINCPIOS DA TESES PRINCPIOS DA TESES PRINCPIOS DA TESES PRINCPIOS DA TESE

    Poetry is indeed something divine. It is at once the centre and circumference of

    knowledge; it is that which comprehends all science, and that to which all science

    must be referred.

    Percy Bysshe Shelley

    Quando decidi iniciar-me na leitura da Cincia Nova de Vico, fui aliciada

    por descries promissoras de gigantes poticos e de sbios divinos, que tinham

    fundado com a rude lngua da primeira poesia a humanidade de que fazemosparte. Fascinou-me constatar que havia mais do que isso no monumental livro

    de Vico. E, no entanto, aps leituras diferentes, aqueles homens poticos

    permaneciam os mais aliciantes. Esta uma tese sobre as origens da poesia

    segundo Vico, onde se defende que tudo o que dito na Cincia Nova integra

    uma reflexo maior sobre a prioridade da poesia na histria das coisas

    humanas. Por isso, a leitura da Cincia Novaque aqui apresento pressupe que

    reflectir sobre a poesia nessa obra no se distingue de apresentar uma descrio

    geral da mesma. Com efeito, Vico faz depender da descoberta da natureza

    potica dos primeiros homens (isto , a descoberta de que eles eram poetas) o

    desenvolvimento da sua teoria sobre a evoluo ideal e recorrente das naes.

    Para Vico, as origens da humanidade esto necessariamente ligadas ao

    nascimento da poesia. Porm, associar a poesia a um estado primordial da

    histria humana no significa encerr-la nesse perodo. Ao longo desta tese,

    procurarei demonstrar que a teoria das origens da poesia de Vico pode ser lida

    como uma teoria sobre a poesia de todos os tempos e, de forma mais ampla,

    como uma teoria sobre o conhecimento humano. Argumentarei que, para Vico, a

    poesia se identifica com a prpria noo de humanidade. Assim, a cincia das

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    coisas humanas fundada na Cincia Nova surge associada a um modo de

    conhecimento definvel como potico.

    Dois autores se revelaram particularmente influentes na compreenso

    da teoria da poesia viquiana: Harold Bloom e Ralph Waldo Emerson. Bloom,

    que afirma que essa a teoria das origens poticas que mais o convence mas

    tambm a que mais o repudia, sente-se, contudo, encorajado por considerar que

    Emerson igualmente viquiano nas suas ideias sobre poesia. Em Bloom,

    encontrei uma viso de sabedoria potica que se estende poesia num sentido

    amplo, e que coloca a teoria da poesia de Vico numa posio favorvel, porque

    no historicista. J nos extraordinrios ensaios de Emerson, senti uma

    confiana semelhante quela conhecida em Vico a respeito da possibilidade de

    aceder aos pensamentos humanos mais remotos pelas faculdades poticas da

    mente: a memria e a imaginao. Em Emerson vi tambm a correspondncia

    viquiana da poesia com a memria lingustica do mundo.

    Esta tese pressupe ainda que para Vico a poesia a experincia

    humana por excelncia. Por esse motivo, a certa altura fui levada a pensar que

    Vico poderia estar a realizar a sua prpria defesa da poesia na Cincia Nova,

    semelhana de Shelley no seminal Defence of Poetry. Percebi, no entanto, que o

    programa de Vico mais vasto, j que procura conter na sua obra toda a

    histria da humanidade. A nova Cincia lida, enfim, como uma recoleco das

    memrias do mundo, de que a poesia todo o poder de criao concedido aos

    homens a chave de acesso.

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    I.I.I.I.CCCCINCIAINCIAINCIAINCIA EEEE MTODOMTODOMTODOMTODO

    Ican find Greece, Asia, Italy, Spain and the Islands, - the genius and the creative

    principle of each and of all eras, in my own mind.

    Ralph Waldo Emerson

    Sobre a Cincia Nova, escreveu Isaiah Berlin que h demasiadas ideias

    novas que batalham por abrir caminho ao mesmo tempo; Vico esfora-se por

    dizer coisas de mais sobre demasiadas coisas1. Num tom semelhante, Peter

    Burke concede que a Cincia Nova um livro to atulhado de ideias que quase

    rebenta pelas costuras2. De facto, Vico no pretendeu dizer s uma coisa na

    obra a que dedicou aproximadamente os ltimos vinte anos de vida, e que rene

    o resultado de investigaes desenvolvidas nos campos da filosofia da histria,

    da retrica, da jurisprudncia, da metafsica e da teologia. Num captulo

    aparentemente descontextualizado da obra, Vico apresenta os seus aspectos

    principais, que funcionam como definies ou hipteses de leitura. O primeiro

    aspecto uma teologia civil reflectida da providncia; o segundo aspecto

    uma filosofia da autoridade; o terceiro uma histria das ideias humanas; o

    quarto uma crtica filosfica, que nasce da histria das ideias antes

    mencionada; o quinto uma histria ideal eterna sobre a qual decorrem no

    tempo as histrias de todas as naes; o sexto um sistema do direito natural

    das gentes; o ltimo aspecto o dos princpios da histria universal3. Embora

    Vico os distinga, todos os aspectos indicados se encontram relacionados com o

    1 Isaiah Berlin. O Poder das Ideias (traduo de Miguel Serras Pereira). Lisboa: Relgio d gua,2006, p. 82.2Peter Burke. Vico. New York: Oxford University Press, 1985, p. 32.3Giambattista Vico. Cincia Nova(traduo de Jorge Vaz de Carvalho). Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 2005, pargrafos 385-399. As citaes da Cincia Novasubsequentes sero retiradas da

    edio portuguesa existente, sendo referidas a abreviatura da obra (CN) e a indicao do respectivopargrafo. Alguns aspectos desta traduo foram ligeiramente modificados, quando tal se achoujustificvel.

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    projecto de estabelecer os princpios universais e eternos, tal como devem ser

    de toda a cincia, sobre os quais surgiram todas as naes e todas se

    conservam (CN, 332) isto , os princpios sobre a natureza comum das

    naes, determinados a partir da anlise de trs costumes observados

    universalmente: as religies, os matrimnios e as sepulturas. Perante a

    multiplicidade de aspectos de leitura apresentados, existir uma forma de

    entender a Cincia Nova que conceda uma unidade ao seu ambicioso programa,

    cujas primeiras intuies comearam a germinar em Vico ainda antes da ideia

    da necessidade de uma nova cincia ganhar forma?

    Numa das proposies axiomticas ou dignidades que percorrem a obra,

    Vico declara que as doutrinas devem comear desde que comeam as matrias

    de que tratam (CN, 314). possvel assinalar como um dos grandes objectivos

    da sua Cincia a recuperao das origens da sociedade civil, a partir do

    momento em que os primeiros homens comearam a pensar humanamente

    (CN, 338). Sendo a matria da Cincia Novao mundo das naes (a sociedade

    civil, as instituies e os costumes), este deve comear a ser estudado das

    origens, a noite de trevas de que est coberta para ns a primeira antiguidade

    (CN, 331). Vico procede, ento, a uma crtica metafsica sobre a histria da

    mais obscura antiguidade, que , na verdade, uma explicao das ideias que

    as naes mais antigas foram naturalmente elaborando (CN, 905). Giuseppe

    Mazzota observa que Vico faz do mtodo da Cincia Nova o caminho para os

    tempos mais arcaicos e incertos da histria e que, nesse sentido, o mtodo e o

    propsito da Cincia so coincidentes4. Vico dedica o maior nmero de pginas

    aos perodos remotos da histria da humanidade e severa anlise dos

    4 Giuseppe Mazzotta. The New Map of the World. The Poetic Philosophy of Giambattista Vico.Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1999, p. 97.

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    pensamentos humanos (CN,347). Assim, como conclui Mazzotta, o mtodo de

    estudar o homem e a sociedade a partir das suas origens torna-se o prprio fim

    da Cincia Nova. Vico diz coisas de mais sobre demasiadas coisas porque a

    extenso das matrias estudadas alargada s origens da humanidade. A

    possvel unidade na Cincia Novapode estar, ento, na novidade do mtodo.

    Uma primeira observao a fazer que o mtodo est necessariamente

    ligado noo de cincia e daquilo que pode ser conhecido. A Cincia Nova

    pretende instituir uma nova concepo de cincia e no pode, por isso, ser

    entendida independentemente de uma teoria do conhecimento. Para Vico, as

    disciplinas a ser estudadas so as que dizem respeito aos factos humanos,

    sociedade civil. Numa das primeiras obras que publicou, De nostri temporis

    studiorum ratione(1709), Vico determina como grande retrocesso nos mtodos

    educacionais modernos a excessiva confiana depositada nas cincias naturais,

    em detrimento da tica e da cincia poltica. Escreve Vico que o facto de se

    considerar que a natureza dos fenmenos fsicos menos ambgua do que a

    natureza do homem (esta difcil de determinar devido ao seu livre arbtrio)

    contribuiu para que os filsofos dedicassem todos os seus esforos investigao

    das cincias naturais5.

    Tambm na Cincia Nova podemos ler como que uma apologia da

    superioridade das cincias humanas. Vico reprova que os filsofos modernos se

    tenham dedicado apenas decifrao dos mistrios do mundo natural e

    descurado o estudo das coisas humanas. A cincia das coisas humanas, que

    pressupe sempre uma proximidade especial entre o homem e os fenmenos

    5Giambattista Vico. On the Study Methods of Our Time(translated by Elio Gianturco, with a prefaceand a translation of The Academies and the Relation between Philosophy and Eloquenceby Donald

    Phillip Verene). Ithaca: Cornell University Press, 1990, p. 33. Para Verene, De nostri a obra que,dentro do corpusde Vico, pode servir de introduo sua filosofia, nomeadamente Cincia Nova(ibid., p. xvii).

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    estudados, indistinguvel do mtodo usado para consegui-la. Sobre este, Vico

    afirma ser digno de admirao como todos os filsofos se esforaram

    seriamente por conseguir a cincia deste mundo natural, do qual, porquanto

    Deus o fez, s ele possui deste a cincia; e negligenciaram o meditar sobre este

    mundo das naes, ou seja, mundo civil, do qual, porque o haviam feito os

    homens, dele podiam os homens conseguir a cincia (CN, 331). E conclui, numa

    das passagens mais clebres da Cincia Nova:este mundo civil foi feito pelos

    homens, pelo que se podem, porque se devem, descobrir os princpios [desta

    Cincia] dentro das modificaes da nossa prpria mente humana (CN, 331).

    As modificaes de que fala Vico dizem respeito no apenas

    capacidade de imaginar o que outros homens pensaram, isto , de recordar as

    origens da humanidade partindo da aproximao imaginativa ao modo de

    pensar dos primeiros homens, mas tambm de reflectir sobre isso com distncia

    crtica. esse o mtodo de anlise metafsico que caracteriza a abordagem de

    Vico cincia da histria, em que so usadas expresses como descer destas

    nossas naturezas humanas civilizadas quelas completamente ferozes (CN,

    339), retroceder a uma metafsica vulgar ou repetir o pensamento dos

    primeiros homens (CN, 340). necessrio recuperar o primeiro modo de

    pensamento porque a metafsica da mente humana comeou no momento em

    que os primeiros homens comearam a pensar humanamente, no j desde que

    os filsofos comearam a reflectir sobre as ideias humanas (CN, 347). O

    retorno aos primrdios do pensamento humano parte de dois pressupostos,

    como observa Mark Lilla: 1) que existe uma relao de sincronia entre os factos

    e as mentes, uma vez que a ordem das ideias deve proceder segundo a ordem

    dos objectos (CN, 238); 2) que possvel aceder s mentes dos homens do

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    passado6. Collingwood atenta justamente no facto de Vico ter percebido que a

    histria uma espcie de conhecimento em que os problemas respeitantes s

    ideias e os problemas respeitantes aos factos no so distinguveis7. No

    possvel estudar a antiguidade com a mentalidade do perodo em que vive o

    historiador; essa espcie de anacronismo que Vico pretende combater.

    A anlise das modificaes da mente humana permitir, ento,

    esclarecer os acontecimentos histricos mais remotos. Uma vez que estes esto

    naturalmente distantes no tempo e as fontes disponveis para apur-los so

    obscuras, recuperando o modo de pensar dos homens de outras pocas atravs

    das obras que nos deixaram (as lnguas, as leis, a poesia), possvel chegar a

    um conhecimento histrico verdadeiro. Por mais difcil que seja recriar em ns o

    pensamento dos primeiros homens e identificarmo-nos com a sua natureza,

    estamos aptos a descodificar qualquer fenmeno humano atravs do mtodo que

    Isaiah Berlin designou por reconstruo imaginativa ou simptica8, e Donald

    Phillip Verene por fantasia recolectiva9, pelo simples facto de que somos

    homens.

    A esse respeito, assinalvel a afinidade entre Vico e Ralph Waldo

    Emerson, na ideia de que o homem explicvel apenas pela sua histria, e na

    confiana na capacidade humana de compreender qualquer homem, por mais

    distante que se encontre. Emerson, como Vico, considera que a mente que

    escreveu a histria aquela que deve l-la, segundo a lei fundamental da

    crtica, exposta no ensaio Nature, de que qualquer escrito deve ser

    6Mark Lilla. G. B. Vico. The Making of an Anti-Modern. Cambridge: Harvard University Press, 1994,p. 128.7R. G. Colingwood.A Ideia de Histria(traduo de Alberto Freire). Lisboa: Editorial Presena, 1972,p. 91.8 Isaiah Berlin. Vico and Herder: Two Studies in the History of Ideas. London: Chatto & Windus,1980, p. 30.9Donald Phillip Verene. Vicos Science of Imagination. Ithaca: Cornell University Press, 1981, p. 99.

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    interpretado pelo mesmo esprito que o originou10. Ilustrando essa lei, no ensaio

    History, Emerson escreve que o verdadeiro poema a mente do poeta, tal

    como o verdadeiro navio o seu construtor11, lembrando a teoria viquiana de

    que s podemos conhecer aquilo que criamos, isto , aquilo que homens como

    ns criaram. Por muitas modificaes que os homens tenham experimentado ao

    longo da sua evoluo, une-os uma espcie de mente universal, de que a histria

    o repositrio.

    Para Vico, a imaginao que abre as portas ao mundo das origens,

    razo pela qual devemos ter a capacidade de ver no nascimento da humanidade

    as nossas prprias origens, parte integrante da nossa natureza. A intuio de

    Vico que a nica forma de conhecer os homens e o pensamento humano

    apropriarmo-nos deles, repeti-los na nossa mente imaginativamente. Um dos

    aspectos particulares da Cincia de Vico, como o prprio indica, a coincidncia

    entre a origem das coisas, os modos particulares do seu nascimento, e a sua

    natureza (CN, 346), de acordo com a seguinte proposio: Natureza das coisas

    no seno o seu nascimento em certos tempos e em certas circunstncias que,

    sempre que so tais, as coisas nascem tais e no outras (CN,147). Existe uma

    relao de necessidade entre as instituies, os costumes e os artefactos de uma

    determinada poca e as circunstncias histrico-sociais que determinaram a

    sua criao. Reflectir sobre a natureza comum das naes no se distingue,

    assim, de reflectir sobre as suas origens; reflectir sobre as origens da

    humanidade , afinal, descobrir a nossa prpria natureza. O esforo de

    imaginao requerido para reproduzir o modo do primeiro pensamento um

    10Ralph Waldo Emerson. Nature and Selected Essays. New York: Penguin Books, 2003, p. 54.11Ralph Waldo Emerson. ibid., p. 158.

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    esforo de auto-anlise e de auto-conhecimento. A nova Cincia tem de comear

    no incio das coisas humanas que, como veremos, Vico identifica com a poesia.

    A segunda observao a fazer sobre o mtodo na Cincia Nova diz

    respeito inteno de reunir numa s obra as competncias prprias dos

    filsofos e dos fillogos, ou historiadores, para chegar verdadeira cincia das

    coisas humanas. Vico anuncia que, com uma nova arte crtica, a filosofia se

    dedica a examinar a filologia (ou seja, a doutrina de todas as coisas que

    dependem do arbtrio humano, como so todas as histrias das lnguas, dos

    costumes e dos factos) () e tradu-la em forma de cincia, ao revelar nela o

    desenho de uma histria ideal eterna, sobre a qual transcorrem no tempo as

    histrias de todas as naes (CN, 7). A Cincia Nova , assim, uma obra

    construda a partir da reunio de provas filosficas e filolgicas. Sem o

    testemunho da filologia (sem as referncias etimolgicas, os mitos, as

    descobertas arqueolgicas), nenhuma teoria filosfica pode ser deduzida, o que

    no implica, porm, que o ponto de partida da Cincia seja a anlise emprica

    de factos histricos, uma vez que so estes que tm de ser determinados e

    esclarecidos com certeza12. As investigaes de teor filolgico e as teorias

    filosficas apoiam-se e justificam-se mutuamente, pelo que o mtodo de Vico

    no propriamente indutivo nem dedutivo.

    Vico desejava que, por um lado, tal como todas as cincias, tambm a sua

    tivesse como objecto as coisas universais e eternas, luz do pensamento

    aristotlico (CN,163). Por outro lado, como qualquer investigao filolgica, a

    Cincia Nova analisa factos e costumes humanos particulares. Nas palavras de

    Vico, a filosofia contempla a razo, donde provm a cincia do verdadeiro; a

    12 Leon Pompa discute amplamente esta questo na obra Vico. A Study of the New Science,Cambridge: Cambridge University Press, Second Edition, 1990, pp. 87-96 e 128-141.

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    filologia observa a autoridade do arbtrio humano, donde provm a conscincia

    do certo (CN, 138). Unir a cincia do verdadeiro e a conscincia do certo ,

    ento, o principal objectivo metodolgico da Cincia Nova. A filosofia eleva a

    filologia condio de cincia, convertendo certeza o arbtrio humano (CN,

    390) e proporcionando um conhecimento universal esclarecido dos costumes e

    das leis. Vico procura introduzir fundamentos cientficos (de necessidade e

    universalidade) em factos histricos, isto , transformar ideias incertas em

    princpios de cincia (CN, 118), tendo como referncia o mtodo de Francis

    Bacon, cogitare videre pensar e ver (CN, 359). Como Vico escreve na

    Autobiografia, a partir de certa altura percebeu que no existia ainda um

    sistema que reunisse o melhor da filosofia (que seria a filosofia de Plato

    subordinada f crist) e uma investigao filolgica caracterizada pela

    necessidade cientfica, quer ao nvel da histria das lnguas quer da histria das

    coisas13. Vico constata que, por isso, ficaram a meio caminho tanto os filsofos,

    que no acertaram as suas razes com a autoridade dos fillogos, como os

    fillogos, que no cuidaram de certificar a sua autoridade com a razo dos

    filsofos, acrescentando que, caso o tivessem feito, teria sido mais til s

    repblicas e ter-nos-ia prevenido o meditar desta Cincia (CN, 140). Na

    Cincia Nova, a filosofia esclarece a filologia que, reciprocamente, confere

    autoridade s teorias filosficas deduzidas.

    No ser precipitado afirmar que o mtodo de Vico funda uma nova

    concepo de conhecimento cientfico, a partir da necessidade de pensar

    metafisicamente o problema histrico das origens. A sua revoluo intelectual

    pode ser, de certo modo, comparada que Descartes procurou realizar, ao

    13Giambattista Vico. The Autobiography of Giambattista Vico(translated by Max Harold Fisch andThomas Goddard Bergin). Ithaca: Cornell University Press; Cornel Paperbacks ed., 1975, p. 155.

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    lanar as bases para uma nova cincia feita de princpios verdadeiros

    intemporais. Ser quase inevitvel associar Vico e Descartes, se considerarmos

    que, na verdade, Vico foi cartesiano at quase aos quarenta anos de idade,

    sendo o seu pensamento progressivamente definido em confronto com o

    racionalismo que predominava nos crculos intelectuais europeus do sculo

    XVIII. No captulo Nova scientia tentatur, inserido na obra Il diritto

    universale(1721), Vico observa que em toda a sua vida usara mais a razo do

    que a memria, e que quanto mais a sua erudio filolgica crescia, mais

    ignorante se sentia14. A poca em que se deu em Vico a ruptura com o

    pensamento de Descartes coincidiu precisamente com o despertar para a

    conscincia da necessidade de desenvolver uma nova cincia, expandindo o

    estudo da filologia e reduzindo-a a princpios filosficos. Vico percebera que

    negar a importncia da filologia seria equivalente a menosprezar o estudo da

    jurisprudncia, da teologia no fundo, a ignorar toda a histria dos estados

    cristos.

    A crtica ao racionalismo cartesiano e aos mtodos das cincias

    modernas, implcita na Cincia Nova, surge pela primeira vez expressa j em

    De nostri temporis studiorum ratione.Na introduo edio inglesa da obra, o

    tradutor Elio Gianturco observa que os anos formadores de Vico foram

    marcados pela relao polmica com o filsofo a quem este, com orgulho e

    conscincia de independncia intelectual, chama Renato15. A, retomando uma

    clssica polmica renascentista, Vico compara as vantagens e desvantagens dos

    sistemas ou mtodos de estudos dos antigos e dos modernos. A respeito da

    14Giambattista Vico. The Autobiography of Giambattista Vico(translated by Max Harold Fisch andThomas Goddard Bergin). Ithaca: Cornell University Press; Cornel Paperbacks ed., 1975, p. 37.15 Giambattista Vico. On the Study Methods of Our Time (translated by Elio Gianturco, with apreface and a translation of The Academies and the Relation between Philosophy and EloquencebyDonald Phillip Verene). Ithaca: Cornell University Press, 1990, p. xxv.

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    aplicao do mtodo geomtrico a outras cincias pelos filsofos modernos, como

    a fsica, escreve Vico que, no campo da geometria, os raciocnios dedutivos

    constituem excelentes formas de demonstrar verdades matemticas mas que,

    quando o assunto no pode ser tratado com dedues, os critrios de evidncia

    geomtricos podem revelar-se uma forma de pensamento falaciosa16.

    Lembramos que, no Discurso do Mtodo, Descartes valorizara somente o

    conhecimento de tipo matemtico e procurara aplicar o mtodo geomtrico a

    todos os campos do saber humano. O que Vico defende que podemos

    demonstrar as proposies geomtricas porque as criamos, o que no acontece

    com as proposies da fsica, que no so criadas por ns ex nihilo, e logo,

    indemonstrveis17. Como vem expresso na Cincia Nova, podemos produzir

    conhecimento verdadeiro apenas acerca daquilo que crimos: a sociedade civil,

    as leis, a poesia. Por essa razo, Vico afirma que a sua Cincia procede como a

    geometria que constitui o seu prprio mundo das grandezas, enquanto sobre os

    seus elementos o constri ou o contempla (CN, 349). Embora o conhecimento

    das coisas humanas seja comparado ao conhecimento matemtico, aquele

    superior, porque mais real: mas com tanta mais realidade quanto mais a tm

    as ordens referentes aos assuntos dos homens, que no possuem pontos, linhas,

    superfcies e figuras (CN,349).

    Para Vico, conhecer qualquer coisa ser capaz de demonstrar as suas

    causas, de saber como que aquilo que procuramos conhecer se tornou um

    facto. A possibilidade de alcanarmos um conhecimento histrico certo e

    verdadeiro depende da relao de proximidade que existe entre o nosso esprito

    16 Giambattista Vico. On the Study Methods of Our Time (translated by Elio Gianturco, with a

    preface and a translation of The Academies and the Relation between Philosophy and EloquencebyDonald Phillip Verene). Ithaca: Cornell University Press, 1990, p. 22.17Giambattista Vico. ibid., p. 23.

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    e os espritos do passado que investigamos. Ao contrrio do que sucede no

    mtodo cartesiano, no se verifica, assim, uma verdadeira distncia entre o

    sujeito conhecedor e o objecto que conhecido, porque os factos que se conhecem

    foram feitos ou criados pelo mesmo esprito que os investiga, tal como Vico

    escreve na sua Cincia: porque, quando acontece que quem faz as coisas o

    mesmo que as narra, no pode a ser mais certa a histria (CN,349). A certeza

    histrica depende, ento, da identidade entre quem faz e quem narra; essa

    identidade estabelecida, j sabemos, imaginativamente. A consequncia do

    postulado de Vico que a histria mais certa aquela onde quem narra as

    coisas se identifica de forma mais eficaz com quem as faz, onde a imaginao

    histrica do narrador maior se quisermos, onde existe um talento ou

    habilidade especial para a narrao.

    A questo do talento para narrar na Cincia Nova, que ser discutida

    mais aprofundadamente no captulo final deste trabalho, conduz-nos a um

    aspecto fulcral na ruptura de Vico com o cartesianismo: Vico e Descartes no

    podiam estar mais afastados quanto importncia atribuda ao papel da

    memria e da imaginao no processo do conhecimento. Tal sucede porque eles

    entendem o homem de forma essencialmente distinta. Enquanto para Vico

    podemos conhecer a natureza humana atravs dos costumes e do senso comum,

    Descartes descreve o homem como apenas uma coisa que pensa, isto , um

    esprito, um entendimento ou uma razo18. A possibilidade de conhecer algo

    que no seja o prprio pensamento , por isso, extremamente limitada no

    Discurso do Mtodo, Descartes resolvera no procurar outra cincia alm da

    18Ren Descartes. Meditaes Metafsicas(traduo de Regina Pereira). Porto: Rs-Editora, 2003, p.27.

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    que se encontrava em mim mesmo19. O mundo , ento, percebido com o

    entendimento, no com a imaginao. Na Meditao II, Descartes enuncia:

    Reconheo certamente que nada do que posso compreender atravs da

    imaginao pertence ao conhecimento que tenho de mim prprio20; e, no

    Discurso do Mtodo: nunca nos devemos deixar persuadir seno pelo que

    nossa razo parecer evidente21. Descartes defende que somente graas

    faculdade de julgar que compreendemos aquilo que vemos com os olhos,

    queixando-se inclusivamente da impreciso de dizermos eu vejo x, quando

    deveramos dizer eu julgo que x22, porque a viso menos certa do que o juzo.

    Para Vico, os raciocnios claros e evidentes do homem cartesiano reflectem a

    conscinciade estar na mente e de pensar, mas no so condio suficiente para

    a construo de uma verdadeira cincia, que em Vico corresponde sempre ao

    conhecimento das causas. Quando Descartes defende que h mais certeza em

    pensar do que em ver ou andar, pois tambm podemos ver e andar em sonhos,

    elegendo como primeiro princpio da filosofia Eu penso, logo existo, est

    apenas a descobrir a conscincia da mente de si prpria, mas no a sua gerao.

    Ao contrrio de Vico, Descartes rejeita o estudo de qualquer matria

    relacionada com a vontade humana por consider-la incerta e incapaz de

    resultar num conhecimento sistemtico e rigoroso. Tem, por isso, em pouca

    conta o estudo das lnguas, da histria, da retrica e da eloquncia, que

    abandonou ainda jovem. No Discurso do Mtodo, escreve: Eu pensava que a

    cincia dos livros () no se encontra to prxima da verdade como os

    19Ren Descartes. Discurso do Mtodo (traduo de Pinharanda Gomes). Lisboa: Guimares Editores,

    2004, p. 17.20Ren Descartes. Meditaes Metafsicas(traduo de Regina Pereira). Porto: Rs-Editora, 2003, p.28.21

    Ren Descartes. Discurso do Mtodo (traduo de Pinharanda Gomes). Lisboa: Guimares Editores,

    2004, p. 41.22 Ren Descartes. Meditaes Metafsicas (traduo de Regina Pereira). Porto: Rs-Editora, 2003,p.34.

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    raciocnios simples que um homem de bom senso pode fazer naturalmente

    acerca das coisas que se lhe deparam23. Para Vico, o erro de Descartes foi

    pensar que se podia chegar ao conhecimento sem recorrer ao senso comum,

    histria, poesia. Ao afirmar quando se gasta muito tempo a viajar, tornamo-

    nos estrangeiros no nosso pas, e quando se muito curioso das coisas que se

    praticam nos sculos passados, tornamo-nos fortemente ignorantes das que se

    fazem na nossa poca24, Descartes est longe de perceber o que para Vico

    claro: que ter acesso ao passado e, principalmente, s origens, a melhor forma

    de conhecer o momento actual. Viajar para o estrangeiro ou ler as obras que

    outros homens nos deixaram igualmente a melhor forma de entender o nosso

    pas e a nossa prpria mente. O resultado do programa racionalista de

    Descartes , enfim, a completa solido da mente.

    A concepo viquiana de uma cincia do homem e a convico na

    superioridade desta sobre qualquer cincia natural baseia-se, para Leon

    Pompa, na ideia de que os homens podem chegar ao auto-conhecimento e, nesse

    sentido, ao conhecimento de outras mentes25. Embora Vico reconhea que a

    mente humana possui diferentes atributos ao longo dos vrios tempos e

    estdios sociais, partilhamo-lha com os homens do passado. Atravs dela

    conhecemo-los e, com eles conhecemo-nos. Essa ideia o cerne do mtodo de

    Vico e possivelmente a maior novidade da sua Cincia.

    23Ren Descartes. Discurso do Mtodo (traduo de Pinharanda Gomes). Lisboa: Guimares Editores,2004, p. 20.24Ren Descartes.ibid., p. 15.25Leon Pompa. Vico. A Study of the New Science. Cambridge: Cambridge University Press, SecondEdition, 1990, p. 185.

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    II.II.II.II.AAAACHAVECHAVECHAVECHAVE----MESTRA DE UMA OBRAMESTRA DE UMA OBRAMESTRA DE UMA OBRAMESTRA DE UMA OBRA

    Poets, according to the circumstances of the age and nation in which they

    appeared, were called, in the earlier epochs of the world, legislators or prophets: a

    poet essentially comprises and unites both these characters.

    Percy Bysshe Shelley

    Na Cincia Nova, no so raras as passagens em que Vico intervm

    enquanto intrprete do seu trabalho. Ele expe detalhadamente a ideia da obra

    a partir de uma gravura colocada no frontispcio, apresenta os principais

    aspectos que a constituem, d indicaes repetidas sobre o mtodo utilizado,

    fornece mais do que uma definio desta nova Cincia e, logo no incio, concede-

    nos a sua chave interpretativa, que designa por chave mestra. Segundo Vico,

    a chave-mestra da Cincia Nova, ento, a descoberta de os primeiros povos

    da gentilidade, por uma demonstrada necessidade de natureza, terem sido

    poetas e falarem por caracteres poticos (CN, 34). Para apreender de forma

    plena o pensamento de Vico na Cincia Nova, h que perceber por que razo a

    poesia nomeada a chave-mestra da obra, esclarecendo o significado da

    afirmao de que os primeiros povos eram poetas, ou de natureza potica (CN,

    34), repetida em diversas passagens: todas as naes gentias () foram nos

    seus comeos poticas (CN,200); o mundo criana foi de naes poticas (CN,

    216).

    A comear pela expresso povos da gentilidade, de referir que, para

    Vico, o mundo das naes antigas est dividido em duas espcies de povos, os

    Hebreus e os Gentios; s a estes ltimos atribuda a funo de poetas (CN,

    168). Por terem sido escolhidos por Deus e acedido palavra revelada, os

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    Hebreus ficaram excludos do padro de evoluo psicolgica e desenvolvimento

    ideal por que passam todos os homens e todas as naes. Harold Bloom

    reconhece que, na Cincia Novas os Gentios esto ligados histria e poesia

    atravs do medium da linguagem26. Concomitantemente, Vico associa a

    ignorncia e brutalidade dos primeiros homens, assim como a sua natureza

    potica, a uma dimenso corporal gigantesca, estabelecendo uma distino

    entre esta e a estatura comedida de homens mais civilizados: devem constituir-

    se dois gneros de todo o primeiro mundo dos homens, ou seja, um dos homens

    de corpulncia justa, que foram apenas os Hebreus, e outro de gigantes, que

    foram os autores das naes gentias (CN, 372). Assim, quando se refere aos

    primeiros homens, os gentios, Vico tem em mente homens de grande dimenso,

    utilizando, por vezes, a expresso poetas gigantes para os designar.

    Diz-nos Vico que a descoberta da natureza potica dos primeiros homens,

    assim como a respectiva expresso em caracteres poticos, contribuiu de forma

    decisiva para a investigao dos princpios das lnguas e das letras na Cincia

    Nova (CN, 34), esclarecidos na seco Lgica Potica do Livro II. Da se

    conclui que a origem do homem e da sociedade civil est sempre ligada ao

    nascimento das lnguas e das letras da poesia. As letras surgiram por

    necessidade no momento em que se formaram as lnguas, uma vez que a

    primeira forma de expresso humana foi muda, por hierglifos: todas as naes

    primeiro falaram escrevendo (CN, 429). Os primeiros homens so chamados

    poetas, em primeiro lugar, por terem inventado as lnguas de forma

    espontnea, sendo a poesia considerada a primeira forma de linguagem

    humana.

    26Harold Bloom. Poetry, Revisionism, Repression. In Critical Inquiry. Vol. 2, N 2, Winter 1975, p.236.

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    Ao afirmar que as primeiras naes foram poticas, Vico est a referir-se

    aos poetas telogos, os primeiros sbios da humanidade, que compreendiam o

    falar dos deuses () e foram denominados propriamente divinos, no sentido

    de adivinhos, de divinari (CN, 381). Segundo Vico, a primeira forma de

    sabedoria foi a musa, que foi depois chamada adivinhao (), pelo que a

    musa deve ter sido a cincia em divindade de auspcios (CN, 365). Esta

    primeira forma de sabedoria, propriedade dos poetas telogos, era uma

    sabedoria tradicional vulgar, prpria de homens pr-civilizados, e tambm ela

    qualificada de potica. A cincia dos poetas telogos descrita no Livro II da

    Cincia Nova, intitulado Da Sabedoria Potica, onde Vico expe, com base em

    provas filosficas e filolgicas, as descobertas sobre a histria das origens de

    todas as coisas humanas e divinas e onde so tambm encontrados os

    princpios da poesia.

    Vico serve-se da metfora da rvore do conhecimento (usada por

    Descartes, no prefcio aos Princpios da Filosofia)para explicar o conceito de

    sabedoria potica e as suas divises: a partir de uma metafsica potica (o

    tronco, as origens grosseiras da humanidade), nascem dois ramos; um deles

    contm a lgica, a moral, a economia e a poltica poticas (as artes da

    humanidade), enquanto o outro tem como constituintes a fsica, a cosmografia,

    a astronomia, a geografia e a cronologia poticas (as cincias da humanidade).

    Possuidores de sabedoria vulgar (potica), os poetas telogos imaginaram os

    deuses a partir de uma metafsica potica, com a sua lgica inventaram as

    lnguas, com a moral geraram os heris, com a economia fundaram as famlias,

    com a poltica as cidades; com a sua fsica estabeleceram os princpios de todas

    as coisas divinas, com a fsica particular do homem geraram-se de um certo

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    modo a si mesmos, com a sua cosmografia fingiram um universo seu pleno de

    deuses, com a astronomia levaram da terra ao cu os planetas e as constelaes,

    com a cronologia deram incio aos tempos, e com a geografia os Gregos, para dar

    um exemplo, descreveram o mundo dentro da sua Grcia (CN,367).

    A sabedoria potica abrange propriamente uma sabedoria divina e uma

    sabedoria herica, que correspondem s primeiras duas idades do mundo, a

    idade dos deuses e a idade dos heris, segundo a diviso tripartida dos tempos

    herdada dos Egpcios e que Vico adopta ao longo da sua Cincia (CN, 52).

    Assim, a sabedoria divina definida como a cincia dos falares divinos, por se

    fundamentar na adivinhao dos auspcios. Os poetas telogos eram os

    intrpretes dos deuses, traduo de Horcio do grego mystae, designando os

    primeiros sbios, decifradores dos mistrios divinos. Vico imagina que dessa

    cincia da adivinhao resultou o primeiro e prprio interpretari, dito quase

    interpatrari, isto , penetrar nesses pais, como foram primeiramente

    denominados os deuses (CN, 938), sendo que patrare deve ter significado

    primeiro o fazer, que prprio de Deus (CN, 448). A sabedoria associada

    criao e interpretao dos deuses pelos poetas telogos tambm referida

    como uma teologia mstica, e pertinente contrastar essa designao com a

    definio de misticismo apresentada por Emerson no ensaio The poet:

    Mysticism consists in the mistake of an accidental and individual symbol for

    an universal one27. Essa precisamente a descrio dos caracteres poticos, o

    resultado de um erro de raciocnio dos primeiros homens, que fantasiavam

    imagens de entidades universais a partir da apreenso de fenmenos

    particulares: uniam as propriedades, ou qualidades, ou relaes, por assim

    27Ralph Waldo Emerson. Nature and Selected Essays. New York: Penguin Books, 2003, p. 279.

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    dizer, concretas dos indivduos ou das espcies, e com elas formavam os seus

    gneros poticos (CN, 495).

    A descoberta de que os primeiros homens falavam em caracteres poticos

    torna-se basilar na investigao metafsica da mente que constitui o mtodo da

    Cincia Nova, mas tambm na construo de uma teoria das origens da poesia,

    como se ver no captulo seguinte. Os caracteres poticos eram imagens ou

    retratos ideais, principalmente de deuses e heris, nascidos da fantasia dos

    primeiros homens, que eram naturalmente imitativos e possuam a faculdade

    da imaginao extraordinariamente desenvolvida. No entanto, como o seu

    raciocnio era dbil e o poder de abstraco diminuto, no conseguiam reduzir

    os particulares a gneros inteligveis (os verdadeiros universais). Por isso,

    tinham uma natural necessidade de fingir os caracteres poticos, que so

    gneros ou universais fantsticos, de referir a eles, como a certos modelos, ou

    ento retratos ideais, todas as espcies particulares a cada um dos seus gneros

    semelhantes (CN,209). Esta lgica potica, que tem como base os caracteres

    poticos, anterior a uma organizao categorial do pensamento. O facto de os

    primeiros homens se exprimirem segundo uma mentalidade potica no ,

    defende Donald Phillip Verene, resultado de ingenuidade ou de inexperincia

    lingustica; a expresso potica constitui uma forma de pensamento que contm

    a sua prpria verso de lgica de classe28.

    Os primeiros homens concebiam o mundo e expressavam-se atravs dos

    mitos que criavam, smbolos de instituies e detentores de uma sabedoria

    prpria, de acordo com uma ordem mental que no era racional mas fantstica.

    essa ideia que leva Vico a afirmar que todo o direito romano antigo foi um

    28Donald Phillip Verene. Vicos Science of Imagination. Ithaca: Cornell University Press, 1981, p. 74

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    srio poema, que era representado pelos Romanos no foro, e a jurisprudncia

    antiga foi uma severa poesia (CN, 1037). Os autores do direito romano criaram

    um teatro da lei, ao simularem e fingirem factos nunca acontecidos, por no

    terem a capacidade de conceber abstraces. Aquilo que une a poesia e a

    jurisprudncia a imaginao, a utilizao de universais fantsticos como modo

    de criar inteligibilidade. As fbulas jurdicas conferiam gravidade s leis, pelo

    que todas as fices da antiga jurisprudncia foram verdades mascaradas

    (CN, 1036), uma vez que essas fbulas dramticas eram representadas com

    mscaras to verdadeiras quanto severas, que foram denominadas personae

    (CN, 1037) isto , fices foram smbolos de factos. A respeito do carcter

    potico da antiga jurisprudncia, toda fundada na prtica, Vico observa ainda

    que as frmulas em que se expressavam as primeiras leis, por serem to rgidas

    e ritualizadas, devido s suas circunscritas medidas de tantas e tais palavras

    nem mais, nem menos, nem outras foram chamadas carmina(CN, 1036).

    Veja-se a concluso que Vico retira sobre a primeira forma de legislao:

    se os povos se fundaram com as leis, e as leis em todos eles foram ditadas em

    versos, e as primeiras coisas dos povos tambm em versos se conservaram,

    necessria coisa que todos os primeiros povos tenham sido de poetas (CN,

    470). Dizer que as naes foram poticas no seu incio dizer, ento, que as

    naes foram fundadas por poetas. Vico chama a ateno para o facto de poeta

    significar, em primeiro lugar, criador. Os primeiros homens foram chamados

    poetas, que em grego significa o mesmo que criadores (CN, 376) e a

    primeira natureza () foi uma natureza potica, ou seja, criadora (CN, 916).

    Foi a sabedoria potica que fundou o gnero humano da gentilidade atravs das

    fbulas, nas quais, como embries ou matrizes, estavam toscamente

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    descritos, atravs de sentidos humanos, os princpios deste mundo de cincias,

    que depois nos foi esclarecido, com raciocnios e com mximas, pela reflexo

    particular dos doutos (CN, 779). No desfecho do livro II da Cincia Nova,Vico

    conclui que os poetas foram o sentido e os filsofos foram o intelecto da

    sabedoria humana (CN, 779).

    curiosa a distino introduzida por Isaiah Berlin entre ser poeta em

    sentido normal e ser poeta em sentido viquiano29. Podemos, com efeito,

    diferenciar poetas que so autores de poemas (o sentido normal) de poetas que

    se definem mais correctamente por homens poticos ou de natureza potica (o

    sentido viquiano). Estes ltimos so criadores mas no necessariamente

    artistas, uma vez que, como nos ensina Vico, a locuo potica, que corresponde

    primeira forma de linguagem, nasceu na idade dos deuses, enquanto aquilo a

    que chamamos a arte da poesia s se verificou na idade dos heris: O primeiro

    verso deve ter nascido () adequado lngua e idade dos heris () e nasceu

    das paixes violentssimas de espanto e de jbilo, como a poesia herica no

    trata seno de paixes perturbadssimas (CN, 463). Foram os homens poticos,

    igualmente grandes filsofos, legisladores, capites, historiadores, oradores e

    poetas (CN,779), os fundadores das naes, pois coube-lhes a criao no s

    das lnguas, mas tambm de formas primitivas de instituies e leis,

    simbolizadas por mitos e fbulas.

    De acordo com a formulao da histria ideal eterna, ao longo da idade

    dos deuses, dos heris e dos homens, as naes experimentam trs respectivas

    espcies de naturezas, de costumes, de direitos naturais, de jurisprudncias ou

    sabedorias, de autoridades, de lnguas e caracteres (CN, 915). Na idade dos

    29Isaiah Berlin. Vico and Herder: Two Studies in the History of Ideas. London: Chatto & Windus,1980, p. 43.

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    deuses e da lngua hieroglfica, a primeira natureza do homem , para Vico,

    potica, e tem nos caracteres poticos o seu modo de expresso. Os poetas em

    sentido viquiano observam-se especialmente na idade dos deuses, quando o

    intelecto humano no est ainda completamente desenvolvido e a imaginao

    regula todas as operaes mentais. Vico designa de potica a sabedoria e a

    mentalidade imaginativa desses homens, sendo a poesia a actividade em que

    intervm a fantasia. O adjectivo potico adquire o sentido de primrio e

    primitivo, qualificando a forma de pensar e de ver o mundo dos primeiros

    homens e reportando-se a um perodo da histria em que predomina a fantasia

    e as capacidades da razo esto ainda subdesenvolvidas. Eric Auerbach chama

    a ateno para o facto de Vico escolher o adjectivo potico para qualificar um

    tipo de mentalidade e de natureza humana que tambm podia ser qualificado

    com o adjectivo mgico, ou fantstico, ou primitivo, ou mesmo mtico30.

    Esclarecidos os sentidos de poeta, homem de natureza potica e

    caracteres poticos, resta perceber em que medida so estas descobertas

    importantes na Cincia Nova. No projecto de Vico, a poesia desempenha

    essencialmente uma funo de testemunho arqueolgico ou prova filolgica na

    elaborao da histria ideal eterna. Podemos conhecer o mundo civil nos seus

    primrdios porque os primeiros homens foram os poetas e criadores desse

    mundo. Vico reconhece que a poesia no apenas um talento do esprito, como

    julgava Descartes no Discurso do Mtodo. Por ser a criao da mente que

    fornece os dados para a construo de uma histria da humanidade a partir das

    suas origens mais remotas, o seu estudo pode contribuir para a Cincia das

    coisas humanas. Compreende-se, nesse sentido, que a descoberta da natureza

    30Eric Auerbach. Vico and Aesthetic Historism. In The Journal of Aesthetics and Art Criticism. Vol.8, N 2, December 1949, p. 116.

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    potica dos primeiros homens seja considerada a chave-mestra da Cincia

    Nova, o acesso ao conhecimento. Para analisar as mentes dos homens do

    passado e, atravs da ordem das ideias, aceder obscura ordem dos factos, Vico

    vai procurar descodificar os mitos das primeiras sociedades criados pelos poetas

    telogos. Estes so analisados com a inteno expressa de lhes restituir os

    sentidos histricos originais, de acordo com a nova arte crtica ou metafsica

    exposta no mtodo. Como Vico anuncia, os grandes fragmentos da

    humanidade, at agora inteis para a cincia porque tinham jazido miserveis,

    mutilados e deslocados, traro grandes luzes, uma vez tersos, recompostos e

    colocados nos seus lugares (CN, 356), isto , interpretados luz da

    mentalidade dos seus criadores.

    A primeira das provas filolgicas em que se baseiam todas as descobertas

    da Cincia Nova , ento, o estudo das mitologias, as histrias civis dos

    primeiros povos, os quais se comprova terem sido por toda a parte

    naturalmente poetas (CN,352). Definida como a cincia da interpretao das

    fbulas, Vico diz-nos que a mitologia deve ser a primeira cincia a ser

    aprendida, porque todas as histrias gentlicas tm princpios fabulosos (CN,

    51). Os princpios da mitologia, derivados dos princpios da poesia que Vico

    descobre, permitem chegar concluso de que as fbulas eram inicialmente as

    histrias rigorosas e verdadeiras dos costumes dos homens, e que os mitos

    tiveram no seu incio significados polticos. Os mitos so interpretados, por isso,

    como smbolos de factos histricos e sociais.

    Tal como o estudo dos mitos, tambm o estudo das etimologias pode

    lanar luz sobre a ordem dos factos, contribuindo para a reconstruo da vida

    mental dos primeiros povos, j que a ordem das ideias acompanha igualmente a

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    ordem da evoluo lingustica como escreve Vico, os falares vulgares devem

    ser os testemunhos de maior peso dos antigos costumes dos povos, pois que se

    celebraram no tempo em que eles formaram as lnguas (CN, 151). Com base

    nos estudos etimolgicos, Vico concebe um vocabulrio mental comum a todas

    as naes de que se compem as diferentes lnguas (CN, 161 e 162), que julga

    necessrio para conhecer a lngua da histria ideal eterna e confirmar com

    autoridade cientfica as concluses das investigaes filolgicas. Esse

    vocabulrio ou dicionrio mental constitudo pelas concepes do senso

    comum (o pensamento prtico e irreflectido dos homens) e comprovado pela

    existncia dos provrbios, observados sob a mesma forma em lugares distantes

    e em vrias lnguas. Para Leon Pompa, a concepo do dicionrio mental

    comum paradigmtica da unio realizada por Vico na Cincia Novaentre os

    estudos filosficos e filolgicos31.

    As etimologias, que narram as histrias das coisas que as palavras

    significam (CN, 354), permitem reproduzir a ordem das lnguas, que deve

    proceder segundo a ordem das ideias, existindo uma sincronia de factos, ideias e

    lnguas. A ordem das ideias corresponde ordem dos factos e progride da

    seguinte forma: primeiro existiram as florestas, depois os campos cultivados e

    os tugrios, em seguida as pequenas casas e as vilas, logo as cidades,

    finalmente as academias e os filsofos (CN, 22 e 240). possvel estudar o

    desenvolvimento dos factos a partir das lnguas e das ideias porque a histria

    ideal eterna pela qual passam todas as naes representa exactamente as fases

    da evoluo da natureza humana: A natureza dos povos, primeiro, cruel;

    depois, severa; logo, benigna; em seguida, delicada; finalmente, dissoluta (CN,

    31Leon Pompa. Vico. A Study of the New Science. Cambridge: Cambridge University Press, SecondEdition, 1990, p. 129.

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    242). Assim, uma natureza delicada est para as academias como uma natureza

    severa para os tugrios.

    Na Cincia Nova, a lngua potica vista como uma das mais preciosas

    reminiscncias dos homens do passado, por isso doce e rica, como Vico sugere:

    a lngua () transcorre por um perodo to longo dentro do tempo histrico

    quanto os grandes e rpidos rios se derramam muito dentro do mar e

    conservam doces as guas levadas com a violncia do seu curso (CN, 412). As

    riquezas da antiguidade conservadas nas lnguas conferem poesia o seu valor

    enquanto chave para as mentes de homens do passado. possvel encontrar

    tambm um ponto pertinente de aproximao entre Vico e Emerson na ideia de

    que as etimologias confirmam a origem potica das lnguas. Para Emerson, a

    poesia a memria lingustica do pensamento humano e um testemunho da

    histria. No ensaio The Poet, afirma que os poetas fizeram todas as palavras,

    adquirindo a linguagem o predicado de arquivo histrico (ou, mais

    poeticamente, de tmulo das musas)32. Aos arquivos da histria, a linguagem

    potica, Vico vai buscar a chave para a interpretao da mente dos primeiros

    homens, a chave para a sua Cincia. Tambm Emerson define o poeta como o

    criador das lnguas, eliminando partida qualquer dualismo entre linguagem e

    poesia: o poeta o nomeador, nomeando as coisas por vezes pela sua aparncia,

    por vezes pela sua essncia, e dando a cada uma o nome apropriado e no

    outro33. Anos antes, Vico imputara aos primeiros homens a funo de poetas por

    darem nome s coisas com natureza e propriedade (CN, 494).

    , pois, a partir da anlise da metafsica potica dos primeiros homens

    que decorre a investigao da ordem dos factos e das ideias na Cincia Nova. O

    32Ralph Waldo Emerson. Nature and Selected Essays. New York: Penguin Books, 2003, p. 271.33Ralph Waldo Emerson. ibid., p. 271.

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    conhecimento da metafsica, da lgica e de todos os ramos da sabedoria potica

    no exterior mas interior, porque vem de dentro das modificaes da prpria

    mente de quem a medita (CN, 374). Esse conhecimento interior o auto-

    conhecimento, que define a disciplina da histria e a investigao das origens

    associadas nova cincia; na sua base est a imaginao potica, que tambm

    a chave do acesso a outras mentes. A compreenso da natureza humana deve

    comear no prprio incio do pensamento, ou seja, na sua fase potica, embora

    nos seja completamente negado imaginar e apenas com grande custo nos [seja]

    permitido compreender (CN, 338) a mentalidade dos primeiros homens,

    descritos como estpidos, insensatos e horrveis bestiagas (CN, 374). Ainda

    que falhemos, porm, ao tentar regressar aos primrdios do pensamento

    humano, devemos ser capazes de ver na nossa natureza racional uma extenso

    do pensamento potico dos primeiros homens34. A chave-mestra da Cincia

    Nova representa, no fundo, a convico de que existe uma relao entre

    conhecer e criar ou fazer que Vico identifica com a poesia, fundando um

    modo de conhecimento definvel como potico.

    34 Leon Pompa. Human Nature and Historical Knowledge: Hume, Hegel and Vico. Cambridge:Cambridge University, 1990, p. 146.

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    III.III.III.III.UUUUMA TEORIA DAS ORIGENMA TEORIA DAS ORIGENMA TEORIA DAS ORIGENMA TEORIA DAS ORIGENSSSS

    In the beginning was the trope, is in effect Vicos formula for pagan poetry.

    Harold Bloom

    Vico tem duas intuies essenciais quando fala de poesia na Cincia

    Nova: a de que quem poeta o por natureza e a de que a poesia nasceu

    sublime por consequncia de um defeito do raciocnio e da linguagem humanas.

    A descoberta dos princpios da poesia confunde-se, assim, com a descoberta da

    primeira forma de pensamento. Ao conceber uma teoria das origens poticas do

    homem, Vico reconstri simultaneamente a ordem das ideias, das lnguas e dos

    factos, que confirmam a histria ideal eterna de todas as naes com certeza e

    autoridade.

    No livro II, Da Sabedoria Potica, a poesia , em primeiro lugar,

    considerada luz de uma metafsica potica, pela qual os poetas telogos

    imaginaram serem os corpos, na maioria dos casos, substncias divinas (CN,

    400). A esses corpos, extensos como o cu, a terra e o mar, conferiram sentido e

    propriedades humanas, temendo-os como se fossem deuses: os poetas telogos,

    no podendo fazer uso do entendimento, com um trabalho sublime totalmente

    contrrio, atriburam aos corpos sentidos e paixes (CN, 402). Depois, a poesia

    considerada luz de uma lgica potica, atravs da qual as substncias

    divinas se convertem em signos, marcando o incio da linguagem humana:

    reduzindo-se to vastas fantasias e fortalecendo-se as abstraces, [os corpos]

    foram tomados como seus pequenos signos (CN, 402).

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    luz da teoria viquiana, o nascimento da poesia associado gerao

    espontnea dos deuses na mente dos primeiros homens, a partir da atribuio

    de sentido aos fenmenos naturais. semelhana das lnguas, os deuses foram

    gerados espontaneamente por uma imaginao vigorosa. A poesia comeou por

    ser divina, uma vez que os primeiros homens imaginavam serem deuses a

    causa das coisas que sentiam e admiravam (CN, 375). Jpiter foi a sua

    primeira criao, nascido do medo dos relmpagos e dos troves e da

    necessidade de dar um significado ao que era desconhecido e temido. Por

    possurem uma mente imaginativa e por viverem imersos nos sentidos, aqueles

    homens atriburam ao fenmeno natural observado propriedades humanas; a

    sua imaginao era de tal modo excessiva que acreditaram na prpria entidade

    que criaram. Os homens poticos encaravam a natureza fsica como um

    conjunto de enormes corpos por possurem uma conscincia corprea

    excessivamente desenvolvida. Imaginaram que o som dos troves lhes queria

    dizer alguma coisa, e gritando, rugindo, expressavam as suas paixes

    violentssimas (CN, 377). Desse modo, despertou neles uma ideia confusa de

    divindade e com o pavor desse divino imaginado, comearam a submeter-se a

    uma certa ordem (CN, 178).

    Jpiter foi, ento, fantasiado em atitude de fulminador, temido e

    respeitado como um deus pelos primeiros homens, que por sua natureza

    acreditaram que os raios e os troves seriam sinais de Jpiter (), que Jpiter

    ordenaria atravs dos sinais e que esses sinais seriam palavras reais, e que a

    natureza seria a lngua de Jpiter (CN, 379). Inspirado pelo verso das

    Buclicas de Virglio, Iovis omnia plena (todas as coisas esto cheias de

    Jpiter),Vico conclui que os primeiros homens acreditavam que eles prprios e

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    as suas coisas pertenciam todos por direito aos deuses, e que tudo era ou o

    faziam os deuses (CN, 922). Estes, cujas mentes em nada eram abstractas, em

    nada eram subtis, em nada espiritualizadas, porque estavam todas imersas nos

    sentidos, todas reprimidas pelas paixes, todas sepultadas nos corpos (CN,

    378), atribuam s coisas que imaginavam substncias da sua prpria ideia, de

    acordo com a seguinte proposio: Os homens ignorantes das causas naturais

    que produzem as coisas, quando no as podem explicar nem mesmo por coisas

    similares, atribuem s coisas a sua prpria natureza (CN, 180).

    A metafsica potica que criou a primeira fbula divina, Jpiter, definida

    como uma metafsica fantasiada, caracterizada pela identidade entre criar e

    no compreender. Para Vico, os primeiros homens fizeram todas as coisas

    partindo de uma ignorncia robusta. Nos primrdios da sociedade civil, a no

    compreenso das causas dos fenmenos torna-se, assim, condio necessria

    para a verdadeira criao. Enquanto vigorando uma metafsica reflectida o

    homem abre a sua mente e compreende racionalmente o mundo, quando vive de

    acordo com uma metafsica potica ou fantasiada, ele constri com a imaginao

    uma resposta para as coisas que no entende. Ao no entender, faz de si essas

    coisas e, ao transformar-se nelas, vem a s-lo (CN, 405). Esse processo

    descreve a criao da linguagem e da poesia na Cincia Nova, onde se

    pressupe um percurso da fantasia ao discurso racional, tidos como

    mutuamente exclusivos segundo o axioma inspirado por Spinoza: A fantasia

    tanto mais robusta quanto mais dbil o raciocnio (CN, 185). Vico defende

    que a robustez da fantasia e a debilidade do raciocnio destes primeiros homens

    no limitaram o seu conhecimento do mundo; eles no s procuraram

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    compreend-lo, como se apropriaram dele e comearam a celebrar a

    curiosidade natural, que filha da ignorncia e me da cincia (CN, 377).

    Foi devido ao medo, ignorncia e curiosidade dos homens poticos que

    os troves foram imaginados uma personificao divina, iniciando-se desse

    modo as religies, o direito e a primeira forma de poesia a prpria

    humanidade: relampejou o cu, e Jpiter deu incio ao mundo dos homens

    (CN, 689). Com efeito, Vico atribui o incio do sentimento religioso e da

    moralidade ao terror dos relmpagos e dos troves. A ideia de divindade que os

    poetas telogos criaram no menos que aos corpos, aterrorizou as suas mentes,

    ao inventar-se tal ideia to espantosa de Jpiter, que () produziu neles a

    moral potica ao faz-los pios (CN, 502). A moral dos primeiros homens, uma

    moral potica, marcada por um formalismo rigoroso, ou rude, que Eric

    Auerbach designa por formalismo mgico. A piedade, que define o sentimento

    religioso e condio necessria para a criao da humanidade, nasceu da

    resposta dos poetas telogos a uma divindade fulminante. Nas ltimas linhas

    da Cincia Nova, Vico afirma mesmo: de tudo isto que nesta obra se reflectiu,

    deve-se finalmente concluir que esta Cincia traz indivisivelmente consigo o

    estudo da piedade, e que, se no se piedoso, no se pode em verdade ser sbio

    (CN, 1112). Jpiter contribuiu para o nascimento do direito, que comeou por

    ser divino, j que os primeiros homens se regiam e disciplinavam pela

    interpretao dos auspcios: ns comeamos a reflectir sobre o direito a partir

    deste primeiro antiqussimo ponto de todos os tempos, denominado pelos

    Latinos ius, contraco do antigo Ious (CN, 398).

    Ao conferir ordem a uma experincia mental catica, a criao de Jpiter

    teve ainda um papel cognitivo fundamental na vida dos primeiros homens, que

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    viam o mundo como um conjunto informe de foras, de corpos animados.

    Necessitavam, por isso, de uma divindade que ordenasse o caos em que estavam

    absortos: no seu imane orgulho e desregrada liberdade bestial no existia

    outro meio para domesticar aquele e refrear esta seno um pavoroso

    pensamento de uma qualquer divindade (CN, 338). importante sublinhar

    que o tempo da sabedoria potica no de homens inocentes e cndidos, mas

    sim de homens dominados por um fanatismo de superstio, selvagens,

    orgulhosos, ferocssimos, com um forte pavor de uma divindade por eles

    imaginada (CN, 518). Os factos da natureza adquirem para eles um significado

    estvel graas criao dos universais fantsticos, permitindo-lhes superar o

    fluxo desorganizado das sensaes imediatas. Por exemplo, estabelecendo uma

    identidade entre os troves e Jpiter, o fenmeno natural explicado e o seu

    significado fixado. A partir do momento em que gerado na mente dos

    primeiros homens, o signo de Jpiter sobrevive sensao imediata do corpo (o

    medo dos troves). Eric Auerbach observa que a imaginao dos homens

    primitivos no procurou desenvolver a liberdade mas sim estabelecer limites

    fixos, enquanto forma de proteco contra o caos do mundo35. A criao de

    deuses pela atribuio de sentido a corpos inanimados pode ser vista como uma

    forma de conferir inteligibilidade natureza e, simultaneamente, de orden-la

    simblica e linguisticamente.

    Como foi sugerido, uma das ideias fortes de Vico sobre poesia a de que

    os primeiros poetas o foram naturalmente por causa de um defeito do raciocnio

    humano: a incapacidade de pensar abstractamente e a compensao dessa

    incapacidade com a criao dos universais fantsticos ou caracteres poticos.

    35Eric Auerbach, Vico and Aesthetic Historism, The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 8,N 2, Dezembro 1949, p. 116.

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    Vico conclui: em poesia, de facto, est privado de alcan-la com arte todo

    aquele que no a possui por natureza (CN, 213). Os caracteres poticos

    nasceram de uma necessidade de natureza, isto , a incapacidade de abstrair

    as formas e as propriedades dos assuntos (CN, 816). Aquilo que os primeiros

    homens no puderam fazer com a abstraco por gneros foi feito com a

    fantasia, por meio de retratos ideais (CN, 933). Os caracteres poticos

    constituam o modo de generalizao disponvel para a mente dos primeiros

    homens. essa a razo que leva Vico a afirmar que a poesia e a lngua humana

    articulada nasceram com a criao de Jpiter, associada locuo das

    onomatopeias imitativas Jpiter, do fragor do trovo, foi primeiro

    denominado pelos Latinos Ious (CN, 447) , a que se seguiram as interjeies

    palavras articuladas pelo mpeto de paixes violentas (CN, 448) , os

    pronomes, os nomes e, em ltimo lugar, os verbos. Como j foi esclarecido,

    Jpiter foi simultaneamente o primeiro carcter potico e a primeira fbula

    divina, uma vez que, segundo Vico, a essncia das fbulas se encontra nos

    caracteres poticos (CN, 209). O conceito de carcter potico, associado ao

    pensamento em universais fantsticos dos poetas telogos, est na base da

    explicao das origens da poesia na Cincia Nova.

    A criao das coisas a partir das prprias ideias comparada

    actividade das crianas, que humanizam e do vida a coisas inanimadas. A essa

    prtica, Vico chama imitao, que define para si a poesia, como vem expresso

    na Cincia Nova:o mundo criana foi de naes poticas, no sendo a poesia

    outra coisa seno imitao (CN, 216). Os homens poticos so comparados s

    crianas, que so boas a imitar, a partir do pressuposto de que homens

    primitivos, selvagens e crianas partilham o mesmo tipo de mentalidade. Vico

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    elege como o mais sublime trabalho da poesia () dar s coisas insensatas

    sentido e paixo (CN, 186). Sabendo que propriedade das crianas tomar

    coisas inanimadas entre as mos e, divertindo-se, falar-lhes como se elas fossem

    pessoas vivas (CN, 186), ou seja, dar-lhes tambm sentido e paixo, da se

    segue que os homens do mundo infantil foram, por natureza, sublimes poetas

    (CN, 187). O excesso de fantasia e a ignorncia desses homens determinam que

    eles produzam imagens dos fenmenos apreendidos, sendo essa a nica forma

    de se relacionarem com o mundo. Os princpios da sociedade civil e de todas as

    instituies encontram-se, assim, nas imagens poticas criadas pela mente

    imitativa dos primeiros homens, pelo que a teoria da poesia presente na Cincia

    Novapode ser lida como uma esttica fundamentada na imaginao.

    Vico toma como corolrio da sua descrio da metafsica e da lgica

    poticas a histria dos primeiros tropos. Uma das originalidades da Cincia

    Nova a ideia de que os tropos nasceram por necessidade, como resultado do

    referido defeito de raciocnio humano. Desse modo, estes no so engenhosas

    invenes de escritores, mas sim o modo de expresso original das naes

    poticas (CN, 409). Para Vico, a lngua potica est assente nos tropos e

    nasceu toda da pobreza da lngua e da necessidade de se exprimir (CN, 456).

    Dos quatro tropos analisados (a metfora, a metonmia, a sindoque e a ironia),

    Vico selecciona como o mais luminoso, necessrio e frequente a metfora, que

    ento tanto mais louvada quanto s coisas insensatas ela d sentido e paixo

    (CN, 404). Podemos concluir que a funo da poesia para Vico dar sentido s

    coisas insensatas se confunde com a funo da metfora, que nasce da

    incapacidade de exprimir as coisas de uma forma correcta, tal como a poesia

    nasce da ignorncia das causas dos fenmenos. Vico observa que a metfora

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    constitui a base do pensamento dos primeiros homens, que se expressavam por

    meio de um falar fantstico por substncias animadas, a maior parte

    imaginadas divinas (CN, 401), como j se comentou. Cada metfora , assim,

    uma pequena fabulazinha (CN, 404), em que coisas inanimadas ganham vida

    e sentido, isto , em que os corpos so imaginados como mentes. Assim, a teoria

    das origens que Vico prope confirmada pela seguinte propriedade eterna da

    poesia: que a sua prpria matria o impossvel credvel, enquanto

    impossvel que os corpos sejam mentes (CN, 383).

    Donald Phillip Verene, que coloca os caracteres poticos no centro da sua

    interpretao do pensamento de Vico, prope que estes sejam estudados como

    uma teoria da metfora36. Os caracteres poticos podem ser justamente

    considerados metforas naturais ou metforas da intuio, segundo a

    formulao de Nietzsche37. A linguagem figurada ou metafrica (construda a

    partir de imagens) precedeu a linguagem organizada em gneros e conceitos,

    deixando nela alguns vestgios, no entanto, como escreveu Nietzsche no seu

    estudo sobre verdade e linguagem: o conceito, descarnado e octogonal como um

    dado e deslocvel como este, apesar de tudo como o resduo de uma

    metfora38.

    Quando aos restantes tropos, Vico estabelece como princpio universal da

    etimologia que, em todas as lnguas, os vocbulos so levados a significar as

    coisas da mente e do nimo a partir dos objectos e das propriedades dos

    objectos (CN, 237), pelo que os primeiros poetas deram os nomes s coisas a

    partir das ideias particulares e sensveis (CN, 406) seria essa a origem da

    36Donald Phillip Verene. Vicos Science of Imagination. Ithaca: Cornell University Press, 1981, p. 68.37Friedrich Nietzsche. Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral (traduo de HelgaHoock Quadrado). Lisboa: Relgio dgua, 1997, p. 222.38Friedrich Nietzsch. ibid.,p. 223.

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    metonmia e da sindoque. J a ironia s comeou a ser usada na idade dos

    homens, porque ela formada a partir do falso em virtude de uma reflexo que

    toma mscara de verdade (CN, 408). Vico defende que os homens poticos

    eram demasiado simples e verdadeiros para fingir, sendo que a mentira

    depende de um acto de reflexo. As metforas, as metonmias e as sindoques

    no representam um uso secundrio da linguagem, que se afasta da sua funo

    bsica, mas sim uma caracterstica essencial da prpria natureza da linguagem.

    A lngua potica foi uma fala por semelhanas, imagens, comparaes, nascida

    da inpia de gneros e de espcies, que so necessrios para definir as coisas

    com propriedade (CN, 832).

    Devido fantasia excessiva dos primeiros poetas, o corpo e a natureza

    (feita de corpos) eram imaginados como propriedades da mente, ou seja, eram

    metforas da mente. Na Cincia Nova, Vico descobre que todas as palavras

    comearam por ser smbolos e signos de factos naturais, ideia defendida

    tambm por Emerson, no ensaio Nature. Emerson considera que a linguagem

    foi originalmente feita de imagens e de tropos derivados do mundo natural,

    sendo a natureza o smbolo do esprito. Existe, ento, uma correspondncia

    necessria entre as coisas naturais e os pensamentos humanos. Em The Poet,

    Emerson escreve que as coisas admitem ser usadas como smbolos porque a

    prpria natureza um smbolo, no todo e nas suas partes39. Assim, tal como

    Vico, Emerson defende que as crianas e os selvagens partilham o mesmo tipo

    de mentalidade, usando apenas nomes de coisas, que convertem em verbos e

    aplicam a actos mentais anlogos40. Emerson imagina que a linguagem se torna

    mais pitoresca medida que andamos para trs na histria, at chegarmos

    39Ralph Waldo Emerson. Nature and Selected Essays. New York: Penguin Books, 2003, p. 266.40Ralph Waldo Emerson. ibid.,p. 49.

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    sua infncia, onde pura poesia41. O poeta nomeia os objectos porque os v ou

    porque se aproxima mais deles do que qualquer outro homem; essa expresso

    ou nomeao no arte, mas uma segunda natureza, que cresce da primeira

    como a folha da rvore42. As passagens citadas, retiradas do ensaio The poet,

    caracterizam a poesia tal como Vico a concebe na Cincia Nova. Quando a

    poesia nasceu no era arte, mas uma segunda natureza, e a reside a diferena

    entre os poetas e os homens poticos; nestes, a poesia uma segunda natureza.

    Quanto mais singularizada e aplicada aos particulares, mais sublime a

    poesia: como os primeiros homens do gentilismo tinham mentes

    singularssimas, pouco menos que de animais, s quais cada nova sensao

    apaga, de facto, a antiga (que razo pela qual no podiam combinar e

    discorrer), deviam ser, por isso, todas as sentenas singularizadas por quem as

    sentia (CN, 703). Na idade dos deuses, os homens concebiam o mundo em

    estreita relao com a natureza e com tudo o que corpreo. A fala potica foi

    criada com ideias particulares; mais tarde, os povos contraram em cada

    palavra as vrias ideias de que se compunha aquela, como Vico exemplifica com

    o verso Ferve-me o sangue no corao, que fala por propriedade natural,

    eterna e universal a todo o gnero humano, em que do sangue, da fervura e do

    corao fizeram uma depois uma s palavra, como um gnero (CN, 460): ira

    em Latim e colleraem Italiano.

    Num artigo sobre textos e corpos indisciplinados, Edward Said chama a

    ateno para a relao que Vico estabelece entre a dimenso gigantesca dos

    primeiros homens e a sua sublimidade potica, qualidades que so associadas

    41Ralph Waldo Emerson. Nature and Selected Essays. New York: Penguin Books, 2003, p. 50.42Ralph Waldo Emerson.ibid., p. 271.

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    na Cincia Nova espontaneidade artstica e vitalidade da infncia43. A

    admirao de Vico por esses homens poticos encontra um eco, sugere Said, no

    estilo digressivo, na excntrica organizao e nas delirantes descries da

    Cincia Nova. Said conclui que, tal como os primeiros homens viam Jpiter em

    tudo, Vico a tudo confere uma substncia animada e vital. interessante

    observar que, de acordo com a teoria viquiana, a poesia originalmente o

    produto da imaginao torrencial de homens bestiais, imersos em paixes

    violentssimas, que nada tm de comedido, a comear pelo tamanho do prprio

    corpo. Assim, a sublimidade das criaes dos homens poticos intrnseca sua

    irracionalidade, que por sua vez surge associada a uma excessiva dimenso

    fsica. medida que vo caminhando para a racionalidade e as paixes se vo

    disciplinando, estes homens vo ganhando tamanhos mais justos, proporcionais

    a uma imaginao mais refreada.

    Para Vico, um ganho em ordem fsica e mental parece equivaler a uma

    perda de faculdades poticas. Mas se a poesia nasceu sublime por uma

    necessidade de natureza, possvel que os homens tenham guardado em si a

    memria dessa gerao sublime. A poesia est sempre associada a uma

    condio original, a um estado de infncia lingustica (o infante aquele que

    no fala) que antecede o estado adulto de prolixidade; a poesia sobrevive por

    lei eterna, porque sempre reaparecero nos cursos da Histria as

    possibilidades de usar figurativamente a linguagem44. No possumos j a

    natureza potica dos primeiros homens, mas ela encontra-se em ns em

    potncia, e o acesso a ela -nos concedido pela imaginao, que tem a

    propriedade de fluir.

    43Edward Said. Vico on the Discipline of Bodies and Texts. In MLN. Vol. 91, N 5, Centennial Issue:Responsibilities of the Critic, Outubro 1976, pp. 819 e 821.44

    Alfredo Bosi. O Ser e o Tempo da Poesia. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 241.

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    IV.IV.IV.IV.AAAASABEDORIA POTICA DSABEDORIA POTICA DSABEDORIA POTICA DSABEDORIA POTICA DEEEE HHHHOMEROOMEROOMEROOMERO

    Nem filosofias nem artes poticas e crticas, que surgiram depois, puderam

    produzir um poeta que, mesmo por curtos espaos, pudesse seguir Homero.

    Giambattista Vico

    primeira vista, o livro III da Cincia Nova, Da descoberta do

    verdadeiro Homero, pode ser apreciado como uma admirvel digresso no

    argumento de Vico. Depois de no livro I estabelecer os princpios da nova

    Cincia e de no livro II, de acordo com esses princpios, investigar as origens de

    todas as coisas humanas e divinas, desvendando a sociedade da sabedoria

    potica, nos livros IV e V (Do curso que fazem as naes e Do retorno das

    coisas humanas no ressurgimento das naes) Vico reconstri a ordem ideal e

    eterna da histria da humanidade, revelando em todas as naes um padro

    cclico de ideias e factos. Como justificar, ento, a integrao na Cincia Nova

    de um captulo cujo propsito corrigir erros antigos e recentes que se foram

    assumindo sobre Homero, e especialmente examinar se este alguma vez teria

    sido filsofo, uma vez que Plato nos deixou notavelmente impressa a opinio

    de que ele estaria provido de sublime sabedoria secreta (CN, 780)?

    NaAutobiografia, Vico declara que procurou ler os poemas de Homero

    luz dos seus prprios princpios de filologia e que, pelos cnones de mitologia

    que concebera, lhes pretendeu dar um aspecto diferente daquele que estes at

    ento assumiram, expondo a forma sublime com que o poeta introduzira nos

    temas desenvolvidos dois grupos de fbulas gregas, um do perodo obscuro, o

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    outro do perodo herico45. Considerando esta passagem, possvel enquadrar o

    livro III no projecto da Cincia Nova, lendo-o, em primeiro lugar, como uma

    demonstrao particular da teoria de interpretao histrica de Vico e, em

    segundo lugar, como a concluso das investigaes sobre os princpios da poesia

    levada a cabo no livro II. No que diz respeito ao primeiro desses pontos de

    relao, B. A. Haddock defende que o livro Da descoberta do verdadeiro

    Homero um trabalho genuno de reconstruo histrica, e o corolrio do

    mtodo cientfico de Vico46. As pginas dedicadas a Homero denotam o objectivo

    viquiano de fundar uma Cincia histrica baseada na reunio de provas

    filosficas e filolgicas. Haddock observa ainda que, ao revelar a verdade sobre

    Homero e os seus poemas luz do novo mtodo crtico ou metafsico, Vico

    comprova que a interpretao de documentos e artefactos depende sempre de

    consideraes tericas sobre o carcter dos homens que os produziram47. Esta

    ltima observao leva-nos ao segundo ponto da relao entre o livro III da

    Cincia Nova e os restantes. a viso do homem potico de Da Sabedoria

    Potica que guia as descobertas de Da descoberta do verdadeiro Homero, isto

    , para Vico, a Ilada e a Odisseia so representaes da sabedoria potica,

    correspondendo a duas fases poticas distintas, mitificadas ambas na figura de

    Homero.

    Uma das grandes questes colocadas por Vico na Cincia Nova recupera

    uma dvida lanada por Horcio na sua Arte Potica: Como que Homero,

    tendo sido anterior s filosofias e s artes poticas e crticas, foi o mais sublime

    de todos os mais sublimes poetas? (CN, 807). A resposta parece encontrar-se

    45Giambattista Vico. The Autobiography of Giambattista Vico(translated by Max Harold Fisch andThomas Goddard Bergin). Ithaca: Cornell University Press; Cornel Paperbacks ed., 1975, p. 160.46B. A. Haddock. Vicos Discovery of the True Homer: A Case-Study in Historical Reconstruction.In Journal of the History of Ideas.Vol. 40, N 4, Oct. - Dec. 1979, p. 586.47B. A. Haddock. ibid., p. 589.

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    na prpria origem dos poemas homricos e naqueles que so os seus

    verdadeiros autores, para Vico: os gregos primitivos, que viviam de acordo com

    os princpios da sabedoria potica. Tendo sido j demonstrado que a sabedoria

    potica foi a sabedoria vulgar dos povos da Grcia, primeiro poetas telogos e,

    depois, hericos, tal deve trazer como consequncia necessria que a sabedoria

    de Homero em nada tenha sido de espcie diferente (CN, 780), escreve Vico. Os

    poemas de Homero reflectem os costumes e os sentimentos de uma Grcia

    brbara, porque tais sentimentos e costumes vulgares fornecem aos poetas as

    matrias prprias (CN, 781). As matrias prprias de Homero provinham das

    fbulas antigas, originalmente verdadeiras e severas, uma vez que serviam

    para conservar as memrias desses povos48.

    Vico conclui que as primeiras fbulas foram histrias (CN, 817) e que,

    como tal, estas devem ser interpretadas de acordo com os seus sentidos

    histricos naturais, sendo importunos todos os sentidos msticos de altssima

    filosofia que lhes foram dados pelos doutos (CN, 384). Escreve Vico: As

    fbulas hericas foram histrias verdadeiras dos heris e dos seus hericos

    costumes, que se verifica terem florescido em todas as naes no tempo da sua

    barbrie (CN, 7). O carcter histrico das primeiras fbulas fundamentado a

    partir do prprio mtodo de anlise metafsica da mente humana. Assim, as

    fbulas eram no seu incio narraes verdadeiras porque os brbaros carecem

    de reflexo, a qual, mal usada, me da mentira (CN, 817), ou seja, o carcter

    rude das primeiras fbulas atribudo prpria natureza da barbrie, que por

    defeito de reflexo no sabe inventar, pelo que ela naturalmente verdadeira,

    aberta, fiel, generosa e magnnima (CN, 817).

    48Vico define fbula como vera narratio(CN, 401) sem, contudo, apresentar fundamentos para talcorrespondncia.

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    Segundo Vico, teriam existido duas idades de poetas que antecederam

    Homero, dos quais este teria recebido as fbulas: a dos poetas telogos e a dos

    poetas hericos. Os primeiros cantaram as fbulas verdadeiras e severas (CN,

    905), enquanto os segundos as corromperam; por essa razo que Homero as

    recebeu tortas e indecentes (CN, 808). Por indecentes Vico no est a

    designar determinados comportamentos imprprios dos deuses, como fez

    Plato, mas sim a justificar a representao desses comportamentos, que

    resultam no da falta de virtude de Homero mas dos costumes dissolutos dos

    homens. Na idade dos poetas telogos, os Gregos, de to pios, religiosos, castos,

    fortes, justos e magnnimos, fizeram semelhantes os deuses; e, depois, com o

    longo passar dos anos, tendo-se obscurecido as fbulas e corrompido os

    costumes (), por si imaginaram dissolutos os deuses (CN, 889). Assim,

    Homero recebe a matria dos seus poemas, as fbulas verdadeiras e severas, j

    adulterada pelo passar do tempo e pela dissoluo dos costumes.

    Na Cincia Nova, Vico descobre que o verdadeiro autor dos poemas

    homricos , afinal, a mente criadora dos gregos antigos. Podemos ler a Ilada e

    a Odisseiacorrectamente se nos aproximarmos imaginativamente da mente de

    quem os criou, luz da ideia emersoniana de que o verdadeiro poema a mente

    do poeta, tal como o verdadeiro navio o seu construtor. No cerne dessa

    descoberta est uma leitura dos caracteres dos poemas homricos segundo o

    novo mtodo anunciado na Cincia. Sobre esses caracteres, Vico conclui que,

    tendo-os formado toda uma nao, no podiam ser inventados seno

    naturalmente uniformes (uniformidade na qual, adequada ao senso comum de

    toda uma nao, consiste unicamente o decoro, ou seja, a beleza e elegncia de

    uma fbula) (CN, 809). Para alm disso, interessantemente, Vico sugere que o

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    prprio Homero seria tambm uma ideia, ou seja, um carcter herico de

    homens gregos (CN, 873). Foram os gregos que criaram as histrias que

    integram a Ilada e a Odis