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GIANNA FILGUEIRAS MOHANA PINHEIRO A LATÊNCIA HOJE: Reflexões acerca da organização psíquica da sexualidade em crianças de 9 anos PUC/ SP SÃO PAULO 2006

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GIANNA FILGUEIRAS MOHANA PINHEIRO

A LATÊNCIA HOJE: Reflexões acerca da organização psíquica da sexualidade

em crianças de 9 anos

PUC/ SP

SÃO PAULO 2006

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GIANNA FILGUEIRAS MOHANA PINHEIRO

A LATÊNCIA HOJE: Reflexões acerca da organização psíquica da sexualidade

em crianças de 9 anos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica, sob a orientação da Prof. Livre-docente Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo.

PUC/ SP SÃO PAULO

2006

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BANCA EXAMINADORA

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

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São Paulo, ____/_____/______

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Dedico este trabalho aos meus queridos e amados pais que, como estrelas, iluminam o meu caminho.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me dar forças nos momentos em que tudo parecia tão escuro e impossível.

À PUC, por possibilitar a realização desta pesquisa.

A querida Leila Cury Tardivo, que com grande disponibilidade, carinho e sabedoria me

orientou nesse difícil processo de construção de um pensamento.

À Professora Maria Emília Lino Silva, por me abrir as portas do mundo da pesquisa.

À Professora Gohara Yvette, pelas suas valiosas contribuições no exame de qualificação.

À Gina Khafif Levinzon, que, em meus turbulentos momentos de aflição, foi continente da

minha angústia, sabendo transformá-las em palavras e guiando-me com sabedoria pelas

curvas da estrada.

Às crianças que fizeram parte desta pesquisa, pela confiança, carinho, e por dividirem comigo

o seu instigante mundo interno.

Às diretoras e professoras do colégio em que a pesquisa foi realizada, pela calorosa acolhida.

Aos meus queridos irmãos, pelo amor, paciência e compreensão.

Aos meus avós pela doçura e aconchego.

À querida Dinda, pela sua amizade e lealdade.

A Holídice, amigo, namorado e companheiro nas horas mais difíceis.

As afetuosas e queridas amigas, Tia Antônia e Tia Helena, pelo amor de mãe que demonstram

ao longo da minha caminhada.

A minha analista, pela esperança presente nas entrelinhas da nossa conversa.

Às amigas do curso de pós-graduação da USP: Célia Koike, Helena Benese, Helena Dias,

Elza e Silvia Karacristo, pela convivência, pelas palavras de incentivo e amizade.

Às amigas da PUC: Raquel, Kátia, Daniela e Gina, pelas nossas conversas, pelo café, pelas

experiências compartilhadas.

A Hayleno, pela preciosa ajuda na área da computação.

A Raquel, pela cuidadosa revisão do meu texto.

Às amigas Juliana, Fernanda, Isabela e Rafaela, por estarem sempre perto, mesmo quando

distantes.

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“Desejo que você, sendo jovem

Não amadureça depressa demais,

E que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer

E que, sendo velho, não se dedique ao desespero.

Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e

É preciso deixar que eles escorram por entre nós”

Vitor Hugo

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RESUMO

Este é um estudo qualitativo que tem como objetivo refletir sobre a organização psíquica da

sexualidade em crianças de nove anos. Para tanto, foi utilizado o Procedimento de Desenhos-

Estórias (D-E), técnica de investigação clínica da personalidade, introduzida por Walter

Trinca em 1972. Esta pesquisa contou com a participação de dez crianças de nove anos,

sendo cinco meninas e cinco meninos, de uma escola particular em São Luís do Maranhão. A

interpretação do material clínico, obtido por meio do Procedimento de Desenhos-Estórias, foi

realizada a partir do referencial teórico da psicanálise. Ao analisar os desenhos e as estórias de

cada criança procurou-se investigar: a) indícios de erotização precoce; b) a solidez do ego

para lidar com as demandas pulsionais; c) a existência de um psicodinamismo que

caracterizasse uma adolescência precoce; d) a utilização do mecanismo de repressão na

intensidade própria ou característica do período de latência. Os resultados obtidos nessa

pesquisa revelaram indícios de erotização precoce em apenas uma das crianças estudadas. Por

outro lado, a análise do D-E, revelou que as crianças empregam a repressão para evitar a

intensa angústia que viveriam se os estímulos sexuais genitais invadissem o ego nesse

momento do desenvolvimento. As crianças revelam que a sexualidade poderia ser vivida de

uma forma destrutiva , uma vez que o ego nesta fase da vida não tem capacidade para elaborar

o surgimento abrupto de estímulos sexuais genitais. Foi possível verificar também, que a

erotização precoce poderia acarretar dificuldades relacionadas com as capacidades de

aprender e de pensar tendo como conseqüência a substituição do pensamento pela atuação. A

erotização precoce em crianças de nove anos implicaria, de outro lado, em dificuldades na

preparação do ego para lidar com os conflitos característicos da adolescência. Esse estudo

mostra que cada fase de desenvolvimento deve ser vivida com suas características próprias.

Confirmou-se o valor ,já evidenciado em outros trabalhos, do Procedimento de Desenhos-

Estórias, no diagnóstico clinico e também como mediador no contato com as crianças.

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ABSTRACT

This is a qualitative study which has as objective reflecting about the psychic organization of

sexuality in nine-year-old children. For that, it was used the Drawing-and-Story Procedure

(D-E), a technique for a clinical investigation of personality, introduced by Walter Trinca in

1972. Ten children at the age of nine took part of the research, among them five girls and five

boys, from a private school in São Luís, Maranhão. The interpretation of clinical material,

obtained through the Drawing-and-Story Procedure was accomplished from a psychoanalysis

theoretical reference. By analyzing the drawings and stories from each child, we tried to

investigate: a) traces of early erotization; b) the ego´s solidity to deal with the pulsional

demands; c) the existence of a psychodynamism that characterizes an early adolescence; d)

the usage of a repression mechanism in an appropriate intensity or characteristic of latency

period. The results obtained in this research revealed traces of early erotization only in one of

the children observed. On the other hand, the analysis of the Drawing-and-Story Procedure

disclosured that the children use the mechanism of repression to avoid the intense anguish

they would live if genital sexual estimulations invaded the ego at this moment of

development. The children reveal that sexuality might be lived in a destructive way since the

ego in this period of life doesn’t have capacity to elaborate the abrupt appearing of genital

sexual estimulations. It was possible to verify, as well, that the early erotization might cause

difficulties related to capacity of learning and capacity of thinking in children which has as

consequence the replacement of thought by acting out. The early erotization in nine-year-old

children would implicate, on the other side, difficulties in ego´s preparation to deal with

characteristic conflicts of adolescence. This study shows that each phase of development

must be lived with their appropriated characteristics. It was confirmed the value, already

noticed in other researches, of the Drawing-and-Story Procedure, in clinical diagnosis and

also as intermediation in the contact with children.

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SUMÁRIO

PALAVRAS INICIAIS................................................................................................... 1 CAPÍTULO UM............................................................................................................... 1.1 Pegando o trem da História: reflexões sobre a contemporaneidade............................ 1.2 O desenvolvimento infantil e a sexualidade................................................................ 1.3 O conceito de período latência em Freud.................................................................... 1.4 O conceito de período de latência em Melanie Klein................................................. 1.5 O conceito de período de latência segundo a teoria do desenvolvimento de Erik

Erikson........................................................................................................................... 1.6 As pesquisas de Berta Bornstein sobre o período de latência................................... 1.7 Reflexões sobre o período de latência hoje: novas perspectivas.................................. 1.8 Sobre a puberdade e a adolescência: Considerações................................................... 2 CAPÍTULO DOIS............................................................................................................ 2.1 Sobre o Procedimento de Desenhos-Estórias: fundamentação teórica.................... 2.2 Aplicação e avaliação.................................................................................................... 2.3 Algumas pesquisas realizadas com o Procedimento de Desenhos-Estórias............. 3 CAPÍTULO TRÊS............................................................................................................ 3.1 Objetivos e Justificativa................................................................................................ 4CAPÍTULO QUATRO..................................................................................................... 4.1 Metodologia.................................................................................................................... 4.1.1 A Pesquisa qualitativa em psicanálise.......................................................................... 4.1.2 O método clínico-qualitativo como guia...................................................................... 4.2 Sujeitos............................................................................................................................ 4.3 Local em que a pesquisa foi realizada......................................................................... 4.4 Instrumentos e Procedimentos..................................................................................... 4.4.1 O contato com a escola................................................................................................. 4.4.2 O contato inicial com as crianças................................................................................. 4.4.3 Aplicação dos Procedimentos de Desenhos-Estórias.................................................. 4.4.4. Avaliação do Procedimento de Desenhos-Estórias..................................................... 5 CAPÍTULO CINCO......................................................................................................... 5.1 Apresentação e Análise dos casos clínicos................................................................... 5.1.1 Caso 1........................................................................................................................... 5.1.1.1 Sobre o contato com a criança................................................................................... 5.1.1.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................... 5.1.1.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.2 Caso 2.......................................................................................................................... 5.1.2.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.2.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.2.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.3 Caso 3......................................................................................................................... 5.1.3.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.3.2 Aplicação e análise do Desenho Estória..................................................................

9 13 14 22 26 30 32 36 38 47 51 52 54 56 61 62 64 65 65 66 68 69 73 73 74 75 76 77 78 78 78 79 87 88 88 89 96 97 97 97

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5.1.3.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.4 Caso 4.......................................................................................................................... 5.1.4.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.4.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.4.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.5 Caso 5.......................................................................................................................... 5.1.5.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.5.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.5.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.6 Caso 6......................................................................................................................... 5.1.6.1 Sobre o contato com a criança................................................................................ 5.1.6.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.6.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.7 Caso 7.......................................................................................................................... 5.1.7.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.7.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.7.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.8 Caso 8.......................................................................................................................... 5.1.8.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.8.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.8.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.9 Caso 9.......................................................................................................................... 5.1.9.1 Sobre o contato com a criança................................................................................. 5.1.9.2 Aplicação e análise do Desenho Estória.................................................................. 5.1.9.3 Síntese do caso.......................................................................................................... 5.1.10 Caso 10..................................................................................................................... 5.1.10.1 Sobre o contato com a criança............................................................................... 5.1.10.2 Aplicação e análise do Desenho Estória................................................................ 5.1.10.3 Síntese do caso........................................................................................................ 6 CAPÍTULO SEIS............................................................................................................. 6.1 Discussão dos Casos Clínicos e Considerações Finais................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................... ANEXOS...............................................................................................................................

103 103 103 104 112 112 112 113 118 118 118 118 122 123 123 123 129 129 129 130 134 134 134 135 138 139 139 139 143 145 146 161 170

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PALAVRAS INICIAIS

Iniciar uma pesquisa de mestrado é lançar-se em uma longa viagem repleta de

encontros, desencontros, angústias, alegrias, descobertas. Não sabemos aonde vamos chegar.

Nós, pesquisadores-viajantes, fazemos e re-fazemos o roteiro diariamente. Não sabemos o fim

da estrada e nem se a estrada terá um fim. Ao longo dessa caminhada conhecemos diferentes

autores, pesquisadores e idéias. E, assim, começo a narrativa da minha viagem.

Quando ingressei no mestrado da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São

Paulo, tinha como objetivo estudar o período de latência nos dias de hoje. Não sabia muito

bem por onde começar. Li artigos e entrevistas que falavam sobre a erotização infantil, a

influência da mídia na subjetividade da criança, as novas constituições familiares e a sua

influência na formação do psiquismo infantil, as novas patologias modernas. Ou seriam pós-

modernas? Todos esses temas me interessavam muito e comecei a pensar qual era a relação da

latência com tudo isso.

Em uma de minhas leituras, me deparei com a seguinte reflexão: Uma das maneiras pelas quais o ‘extrapsicanalítico’ se impõe à psicanálise é o surgimento de novas patologias, inexistentes ou talvez pouco notadas na época em que a psicanálise se estabeleceu como prática e como teoria (o estresse, certas formas de depressão, etc). Outra deriva da evolução dos costumes: será que ainda existe, nos dias de hoje, uma fase de latência? E, se existir, terá ou não as mesmas características que tinha em 1905, quando Freud a descreveu pela primeira vez? (MEZAN, 2002, p. 317-318).

Eureca! Era essa a pergunta ou inquietação que estava rondando a minha cabeça -

saber se hoje ainda existe uma fase de latência, ou melhor, se a fase de latência hoje ainda é

igual como Freud a descreveu em 1905. Afinal, um século se passou e várias transformações

sociais, culturais e tecnológicas ocorreram. Sobre essas mudanças, Bezerra Júnior (1997, p. 9)

faz a seguinte consideração: Ora, o mundo que compartilhamos com nossos contemporâneos tem sofrido mudanças drásticas, inesperadas em seus efeitos sobre as subjetividades, e é isso que estamos vendo no dia a dia da clínica e da cena social. Não creio que algum psicanalista atento duvide disso. Todos estamos às voltas com essas transformações, e com seu impacto sobre a clínica. A psicanálise defronta-se com a estranheza de novos modos de subjetivação, novas modalidades de construção identitária, novos caminhos do desejo, e modalidades de sofrimento decorrentes dessas trajetórias.

No entanto, a pergunta que estava propondo como norteadora de minha

investigação clínica parecia muito ampla e complexa para o que se propõe uma pesquisa de

mestrado. Querer saber se hoje ainda existe uma fase de latência, se esta diminuiu ou como se

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caracteriza, parecia ser uma idéia um tanto ambiciosa. A estrada parecia longa e difícil.

Contudo, estava disposta a começar essa pesquisa-viagem.

E, ao longo da minha caminhada, fui descobrindo vários autores que

compartilhavam das mesmas inquietações que possuía. Um desses autores foi José Outeiral

que, com suas valiosas considerações sobre a clínica na contemporaneidade, me ajudou a ir

formulando de forma mais clara o meu tema de pesquisa. Outeiral (2005, p. 71) convidou-me

a refletir quando escreveu: A observação clínica me permite conjecturar que o período de latência, essencial ao desenvolvimento e tal como descrito por Sigmund Freud, se abrevia, invadido por uma adolescência cada vez mais precoce. [...] A abreviação do período de latência resulta em dificuldades que repercutirão, é evidente, em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no desenvolvimento normal, tanto na área da conduta como nos processos afetivos e cognitivos. Num contraponto à ‘invenção’ da infância pela modernidade, temos, hoje, a ‘des-invenção’ da infância pela pós-modernidade.

A minha hipótese de pesquisa começou a ganhar contornos mais definidos. Estaria

a puberdade começando mais cedo? O período de latência estaria, então, diminuindo? Como

afirma Mezan (2002, p. 359), Quase cem anos depois do artigo1 que estamos comentando, as condições sociais mudaram muito, e a área em que mais ocorreram transformações é certamente a dos costumes sexuais: a vida erótica no início do século XXI é incomparavelmente menos secreta do que seu equivalente no século XIX. A exposição do corpo, a possibilidade de satisfação de tendências voyeristas e sádicas por meio de filmes, da televisão, de fotografias impactantes nos jornais – ou seja, o espetáculo do sexo de formas muito pouco indiretas, para dizer o mínimo – é onipresente na publicidade e na mídia.

Vale a pena perguntar como essas mudanças que estão ocorrendo na sociedade

afetam a subjetividade infantil, ou mais especificamente, a sexualidade infantil. Muitos

autores estão discutindo essa questão por meio de artigos, palestras, mas constatei que

praticamente não existem pesquisas científicas sobre esse tema.

Nesta pesquisa de mestrado não tenho como objetivo esgotar esse tema. Pretendo

estudar o período de latência, tendo como foco principal a organização psíquica da

sexualidade. Foi no artigo de 1905 que Freud postulou, pela primeira vez, o conceito de

período de latência, observando que A atividade sexual da criança não se desenvolve no mesmo passo que as demais funções, mas sim, após um breve período de florescência entre os dois e cinco anos, entra no chamado período de latência. Neste a produção de excitação sexual de modo algum é suspensa, mas continua e oferece uma provisão de energia que é empregada, em sua maior parte, para outras finalidades que não as sexuais, ou seja, de um lado, para contribuir com os componentes sexuais para os sentimentos

1O artigo a que o autor se refere é um trabalho de Freud intitulado: “A moral sexual civilizada e o nervosismo

moderno” de 1908.

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sociais, e de outro (através do relacionamento e da formação reativa), para construir as barreiras posteriores contra a sexualidade (FREUD, 1996, p. 219).

O tema da pesquisa já estava se definindo, mas algo ainda me inquietava. Não

estava nos meus planos fazer uma pesquisa apenas teórica. No consultório, não atendia

pacientes que estivessem nessa faixa etária, logo não tinha material proveniente de casos

clínicos. Como fazer? Queria ir a campo, usar o método clínico e fazer uma pesquisa

qualitativa. Pensei em fazer entrevistas com pais e professores, mas não teria um contato

direto com as crianças, logo desisti dessa idéia. Em seguida, fui apresentada pela professora

Gina Khafif Levizon ao Procedimento de Desenhos-Estórias.

Este procedimento foi idealizado em 1972 por Walter Trinca. É uma técnica de

investigação clínica e tem por base os desenhos livres e o emprego do recurso de contar

estórias, com o objetivo de obter informações sobre a personalidade dos sujeitos em aspectos

que não são facilmente detectáveis pela entrevista psicológica nos moldes tradicionais.

Interessei-me, então, pelo Procedimento de Desenhos-Estórias por me proporcionar um fácil

acesso ao material latente proveniente do psiquismo infantil. O procedimento de Desenhos-estórias revela a particularidade de facilitar a expressão de aspectos inconscientes relacionados a pontos focais de angústias presentes em determinado momento ou em determinada situação de vida da pessoa. Muitas vezes, verifica-se na situação atual detectada pelo D-E uma reinscrição de angústias pregressas, que são indicadas por focos profundos fomentadores de perturbações. Nesse caso, a função principal do D-E não é realizar um inventário horizontal e extensivo da personalidade, e sim um exame vertical e intensivo de certos pontos nos quais se representam, como fatos selecionados, os focos conflitivos e as perturbações emergentes (TRINCA, 1997, p. 22-23).

Acidentes, dificuldades, mudanças de roteiros acontecem ao longo de uma

viagem. Durante o meu percurso fez-se necessário uma troca de orientador. Iniciei a pesquisa

orientada pela professora doutora Maria Emília Lino Silva, no entanto, por motivos

institucionais, a referida professora não pôde dar continuidade à orientação. Neste momento

difícil, a coordenação do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica mostrou-se

sensível à minha situação. Solicitei à coordenadora um orientador externo, no caso a

professora livre-docente da Universidade de São Paulo – USP Leila Tardivo, por motivos de

compatibilidade de linhas de pesquisa.

A professora Leila Tardivo tem amplas pesquisas e estudos relacionados ao uso

do Procedimento de Desenhos-Estórias. Em sua dissertação de mestrado, Tardivo (1985)

estudou oitenta crianças normais de cinco a oito anos, sendo dez de cada sexo e dez de cada

faixa etária, com o objetivo de estabelecer normas brasileiras para avaliação do Desenhos-

Estórias que permitissem comparar o desempenho de crianças avaliadas com crianças

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normais. Em sua tese de doutorado, Tardivo (1992) estabeleceu normas para a população

paulistana relativas aos testes projetivos CAT-A e Fábulas de Duss, comparando os resultados

obtidos com o Procedimento de Desenhos-Estórias baseado nas semelhanças e diferenças

existentes. Na sua pesquisa de livre-docência, Tardivo (2004) utilizou o Procedimento de

Desenhos-Estórias com tema, buscando compreender o grande número de suicídios, tentativas

de suicídio e homicídios que estavam acontecendo entre jovens indígenas aculturados na

cidade de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas.

Ao solicitar orientação à professora Leila Tardivo explicitando os motivos da

mesma, fui recebida de forma acolhedora, obtendo todo o suporte e apoio necessário para que

esta pesquisa pudesse ter continuidade. Retomei à minha caminhada. Fui apresentada a novas

idéias e possibilidades. E, assim, esta pesquisa começou a ganhar formas mais definidas.

Você, leitor, irá encontrar ao longo destas páginas um estudo sobre a organização

psíquica da sexualidade de dez crianças de nove anos da terceira série de um colégio

particular em São Luís do Maranhão. Um estudo baseado na análise de material clínico,

proveniente da aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias. A partir dessa análise,

pretendo investigar: a) se existem indícios de erotização precoce; b) a solidez do ego para

lidar com as demandas pulsionais; c) a existência de um psicodinamismo que caracterizasse

uma adolescência precoce; d) a utilização do mecanismo da repressão na intensidade própria

ou característica da fase de latência.

Para não nos perdermos ao longo desta viagem, é importante traçar uma espécie

de roteiro, um plano de vôo. Desse modo, esta dissertação encontra-se assim organizada: no

primeiro capítulo discutirei o conceito de período de latência partindo de Freud e caminhando

em direção a alguns autores contemporâneos como Melanie Klein e Erik Erikson; visitando,

também, trabalhos e pesquisas mais recentes. Ainda no primeiro capítulo, serão discutidas

algumas características referentes à puberdade, à adolescência e a sociedade contemporânea.

O segundo capítulo trata de uma reflexão acerca do Procedimento de Desenhos-Estórias. O

terceiro capítulo é dedicado aos objetivos e à justificativa. No capítulo quatro discorrerei

sobre a metodologia utilizada. No capítulo quinto, será feita a apresentação e análise de cada

caso. O capítulo seis será dedicado à discussão dos casos e considerações finais.

A estrada percorrida foi sendo construída a cada leitura, a cada supervisão, nos

encontros com as crianças, através da troca de idéias com os amigos da pós-graduação, com

as professoras e diretoras da escola onde realizei a coleta do material clínico. A estrada, no

entanto, não acaba com esta pesquisa. Ela é apenas o começo de uma reflexão.

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1.0 CAPITULO UM

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1.1 Pegando o trem da História: reflexões sobre a contemporaneidade

Comemora-se um século da publicação dos “Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade”. Percebe-se, cem anos depois, que as cidades, as famílias, as formas de

relacionamento, as escolas e os meios de comunicação pouco se parecem com o que existia na

famosa Viena de Freud. Muitas mudanças aconteceram no decorrer desse tempo. Para fazer

uma reflexão sobre a organização psíquica da sexualidade no período de latência nos dias de

hoje, é necessário recorrer não somente à psicanálise, mas também à sociologia e a autores

que convidam a refletir sobre as mudanças que ocorreram e que continuam acontecendo na

sociedade e na cultura. Afinal, a cultura e o meio em que se vive deixam marcas profundas

nos modos de subjetivação do ser humano. A sociedade atual se caracteriza por uma incessante aceleração dos avanços tecnológicos nas comunicações, na informática e na produção industrial. Isso se faz acompanhar por um predomínio significativo de valores que privilegiam o individualismo, a imagem, o poder, os progressos vertiginosos, o aumento da violência e a tendência à regressão. Como não pensar que tudo isso incida sobre os conflitos que o homem atual tem que enfrentar, bem como sobre as possibilidades e limitações na elaboração psíquica dos mesmos? O que temos que levar em conta é que o paciente neurótico de hoje, que chega aos nossos consultórios, não é igual àquele de cem anos atrás, quando Freud investigou as características da histeria (SCHKOLNIK, 1998, p. 10).

Afirmei acima que as cidades, as famílias, as escolas, os meios de comunicação e

as formas de relacionamento hoje se parecem pouco com aqueles que existiam há um século

atrás. O que os diferencia? Qual a relevância dessa diferença? Na tentativa de responder a

essas perguntas, convido o leitor a pegar o trem da história e a fazer uma viagem, que se

iniciam séculos antes de Freud postular a existência de uma sexualidade infantil. Vamos

iniciar essa viagem pela concepção acerca da criança, que se modifica ao longo da história.

Com Ariès começamos o nosso passeio pelo tempo. Em seu famoso livro

“História Social da Criança e da Família”, faz um amplo estudo por meio da iconografia da

época sobre o conceito de infância e a representação da criança desde o século XII até o

século XIX. Ele considera que, “até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a

infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à

incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a

infância nesse mundo” (ARIÈS, 1981, p. 50).

Ariès defende a ausência dessa representação na Idade Média como uma ausência

efetiva do lugar da criança nesse momento da sociedade européia e sugere que a morte

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prematura das crianças levava as pessoas a adotarem uma postura de indiferença em relação

às mesmas.

O anonimato da criança vai se alterando, segundo o historiador, a partir do século

XIII, com o aparecimento de três tipos de representação na iconografia religiosa – o anjo, o

menino Jesus e a Nossa Senhora Menina e, ainda, a criança nua. No final da Idade Média, o

menino Jesus seria desnudado, mas antes aparecia “castamente enrolado em cueiros ou

vestido com uma camisa ou uma camisola” (ARIÈS, 1981, p. 53).

Após essa iconografia religiosa da infância, destaca-se uma iconografia leiga nos

séculos XV e XVI. Não era ainda a representação da criança sozinha. Ariès evidencia que as

cenas de gênero e as anedóticas começaram a substituir as representações estáticas de

personagens simbólicas. Neste momento, a criança se torna uma das personagens mais

freqüentes das pinturas anedóticas.

O século XVII é importante no que diz respeito ao início da representação da

criança como um ser dotado de individualidade e características próprias. Ariès (1981, p. 65)

esclarece: Foi no século XVII que os retratos de crianças sozinhas se tornaram numerosos e comuns. Foi nesse século também que os retratos de família muito mais antigos tenderam a se organizar em torno da criança, que se tornou o centro da composição. [...] A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII.

Até este momento, não havia a noção de individualidade da criança. Como não

existia uma diferenciação entre as categorias adulto/criança, a criança participava de todas as

atividades dos adultos: festas, jogos sexuais, bebidas. O sentimento de infância restringia-se

apenas à paparicação. O respeito devido às crianças era, então, no século XVI algo totalmente ignorado. Os adultos se permitiam tudo diante delas: linguagem grosseira, ações e situações escabrosas; elas ouviam e viam tudo. Essa ausência de reserva diante das crianças, esse hábito de associá-las a brincadeiras que giravam em torno de temas sexuais para nós é surpreendente: é fácil imaginar o que diria um psicanalista moderno sobre essa liberdade de linguagem, e mais ainda, essa audácia de gestos e esses contatos físicos. Esse psicanalista, porém, estaria errado. A atitude diante da sexualidade, e sem dúvida a própria sexualidade, variam de acordo com o meio, e, por conseguinte, segundo as épocas e as mentalidades. (ARIÈS, 1981, p. 128-129)

Acreditava-se, até o século XVII, que as crianças impúberes eram alheias e

indiferentes à sexualidade. Assim, para os adultos, os gestos e as brincadeiras não tinham

nenhuma influência sobre as mesmas, pois a noção de uma inocência infantil ainda não

existia.

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No entanto, no fim do século XVI, começa a se esboçar uma mudança na

concepção vigente. Alguns educadores, destacando-se Gerson, iniciaram um movimento que

pregava uma mudança nos hábitos educacionais, propondo um novo comportamento em

relação às crianças. Dessa forma, uma grande transformação começa a ocorrer – nasce o

conceito da inocência infantil.

Durante todo o século XVII, essa nova maneira de ver as crianças foi se

consolidando. A cerimônia da primeira comunhão é a forma de manifestação mais visível do

sentimento de infância entre os séculos XVII e XIX, pois celebrava, ao mesmo tempo, a

inocência da infância e a apreciação racional dos mistérios sagrados.

Surge, com o nascimento da inocência infantil, o segundo sentimento da infância:

a preocupação com a educação e com a transmissão de valores morais. Este sentimento

proveio de uma fonte exterior à família, tendo a sua origem nos eclesiásticos ou homens da

lei.

Não obstante, essa evolução que se deu do século XV ao século XVIII não

aconteceu sem resistências. Os traços peculiares da Idade Média persistiram por algum tempo,

principalmente no que se refere à escola e às camadas mais baixas da população. A escola era

considerada, pode-se afirmar, a porta de entrada para o mundo dos adultos. Assim que ingressava na escola, a criança entrava imediatamente no mundo dos adultos. Essa confusão, tão inocente que passava despercebida, era um dos traços mais característicos da antiga sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida em que correspondia a algo enraizado na vida (ARIÈS, 1981, p. 168).

Durante quase toda a Idade Média, não existia uma correspondência entre as

classes escolares e as idades dos alunos. Crianças de sete anos freqüentavam aulas juntamente

com adultos de vinte anos. No entanto, o sentimento de repugnância pela precocidade, como

ressalta Ariès (1981), marcou a diferenciação, por meio do colégio, de uma primeira camada –

a da primeira infância, prolongada até cerca de dez anos. As classes começaram a ser

divididas, principalmente as que estavam relacionadas às crianças menores, criando assim um

novo conceito: o de particularidade do infantil. Dessa forma, a escola teve uma importância

fundamental para o desenvolvimento da noção de idade e para a separação da infância do

mundo adulto. A infância foi prolongada além dos anos em que o garotinho ainda andava com o auxílio de ‘guias’ou falava seu jargão, quando uma etapa intermediária, antes rara e daí adiante cada vez mais comum, foi introduzida entre a época da túnica com gola e a época do adulto reconhecido: a etapa da escola, do colégio. As classes de idade em nossa sociedade se organizam em torno de instituições. Assim, a adolescência mal percebida durante o Ancien Régime se distinguiu no século XIX e já no fim do século XVIII através da conscrição e mais tarde do serviço militar. O écolier - o

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escolar – e esta palavra não existia até o século XIX foi sinônimo de estudante, sendo ambas empregadas indiferentemente: a palavra colegial não existia – o écolier do século XVI ao XVIII estava para uma infância longa assim como os conscritos dos séculos XIX e XX está para a adolescência (ARIÈS, 1981, p. 187)

Com o fim da Idade Média e a chegada da Idade Moderna, os conceitos de

infância, de família e de escola foram se aproximando, com algumas ressalvas, do modelo

vigente dos dias atuais. Foi uma mudança lenta que levou séculos para se consolidar, tendo

como disparador fatores sociais, culturais e econômicos. Era o fim de um sistema feudal, de

uma visão teológica e mágica do mundo. Nascia a Idade Moderna, trazendo consigo o

Capitalismo, a ciência e a burguesia.

Devido ao fato da concepção de infância ter passado por transformações ao longo

da história, o conceito, a organização e o sentimento de família também sofreram

modificações e reestruturações ao longo do tempo. Conforme demonstra Lasch (1991), a

mudança na concepção da infância foi fundamental para a criação da chamada família nuclear

burguesa. Uma nova concepção de infância colaborou no surgimento da nova idéia da família. A criança deixou de ser considerada simplesmente como um pequeno adulto e passou a ser uma pessoa com atributos característicos – suscetibilidade, vulnerabilidade, inocência – os quais exigiam um período de formação afetuosa, protegido e prolongado. Enquanto anteriormente as crianças se misturavam com liberdade na sociedade dos adultos, agora os pais buscavam sua segregação prematura do contato com empregados e outras influências corruptoras. Os educadores e moralistas começaram a destacar a necessidade de brincar, de amor, de compreensão por parte da criança e de que seu desenvolvimento fosse gradual e suave. Como resultado, a sua criação se converteu em algo mais exigente e os laços emocionais entre pais e filhos se intensificaram à medida que se debilitavam os vínculos com familiares não pertencentes ao núcleo imediato (LASCH, 1991, p. 27).

A partir do século XVIII, surge a família moderna, berço do amor romântico,

detentora da responsabilidade de criar e educar os filhos, propiciadora de modelos

identificatórios sólidos e de relações baseadas no amor e na reciprocidade dos laços afetivos.

A família moderna nasce como o lugar privilegiado para o domínio da intimidade, sendo

também o agente a quem a sociedade confia a tarefa de transmissão da cultura. Esse

sentimento de família teve início em meados do século XV, consolidando-se no século XVIII.

“A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a

intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças, da qual se

excluíam os criados, os clientes e os amigos” (ARIÈS, 1981, p. 267).

Dessa forma, o advento da Modernidade trouxe mudanças significativas na

estrutura da sociedade e na concepção de homem. Rouanet (1993) afirma que o projeto

civilizatório da Modernidade tem como ingredientes principais os conceitos de

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universalidade, individualidade e autonomia. A Modernidade foi uma época no ocidente, em

que os processos de racionalização se aceleraram. A Revolução Francesa de 1779, com seus

ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, abriu as portas para a consolidação da

Revolução Industrial e, conseqüentemente, do Capitalismo. No projeto moderno a ciência

passa a ocupar o lugar que anteriormente era dado à religião. Vale dizer, a modernidade é a produção histórica e a revelação maior dos valores investidos pelo Iluminismo. Valores éticos e políticos, certamente, que materializaram o ideário iluminista e que transformaram radicalmente a face do mundo. Fundado nesses valores, o Iluminismo enunciou discursos sobre a ciência e a religião que traçaram uma concepção de cultura na qual nos inserimos desde o século XIX (BIRMAN, 1997, p. 71).

Para iniciar uma reflexão sobre a contemporaneidade, (re)visitar alguns momentos

históricos tem importância fundamental. O objetivo não é fazer uma profunda análise

sociológica, mas, para compreender o indivíduo, precisa-se entender também o contexto

social, cultural e econômico em que ele está inserido. De acordo com Gilberto Safra (2001,

p.18): “A observação do contexto sociocultural e suas ideologias permite que possamos

compreender o mal-estar do nosso tempo e a maneira pela qual ele é portado pelos indivíduos

em nossa época”.

Na tentativa de entender o “mal-estar” do nosso tempo e suas possíveis

repercussões sobre a organização psíquica da sexualidade no período de latência, algumas

perguntas se tornam necessárias: Quais são as características da sociedade contemporânea?

Em que ela se diferencia do momento histórico no qual foi criada a Psicanálise ou, mais

especificamente, do momento em que Freud postulou a sua teoria da sexualidade?

Há uma grande discussão entre sociólogos, historiadores e antropólogos sobre

como denominar o presente momento histórico. Seria Modernidade ou Pós-modernidade?

Em 1979, o conceito de Pós-modernidade foi postulado por Jean-François

Lyotard. “[...] Este termo define um estado da cultura. As sociedades modernas baseavam

seus discursos na verdade, na justiça e em grandes metanarrativas históricas e científicas. A

crise atual é precisamente a crise desses discursos” (LYOTARD, 1998, p. 12).

Por outro lado, o importante sociólogo inglês, Anthony Giddens (1991), acredita

que a sociedade está vivendo a radicalidade dos paradigmas da modernidade. Hoje, no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para além da própria modernidade [...] para analisar como isto veio a ocorrer, não basta meramente inventar novos termos, como pós-modernidade a qual, por certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até agora pelas ciências sociais. Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes (GIDDENS, 1991, p. 11-12).

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Entretanto, não se irá entrar no mérito dessa discussão. Mais do que discutir

Modernidade ou Pós-modernidade, pretende-se neste momento pontuar as características e

especificidades da cultura e da sociedade contemporâneas. Alguns autores estudados irão

referir-se a esse momento atual como pós-modernidade. Outros irão dizer que estamos em um

momento de transição. Essa discussão, portanto, auxiliará a entender melhor o que

permaneceu e o que se modificou no decorrer do tempo.

Uma das características da Modernidade, ressaltada por Figueiredo (2003), é uma

dinâmica que impõe a constituição de um sujeito reflexivo. Um sujeito capaz de pensar sobre

si mesmo, sobre o mundo que o cerca, capaz de produzir uma linguagem de auto-referência.

Segundo esse autor, não é por acaso que a Psicanálise é um dos principais exemplos dessa

dinâmica moderna. Sobre a questão da reflexividade na Modernidade, Giddens afirma: “A

reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são

constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias

práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 43).

O pensar e o refletir aparecem como uma das características intrínsecas da

Modernidade, que tem seu alicerce na crença iluminista do poder da razão. No entanto, hoje

vive-se em uma época na qual se valoriza a satisfação imediata em detrimento da reflexão.

Uma sociedade que tolera cada vez menos o adiamento do prazer e da satisfação.

Ahumada (1988, p. 26 apud ENGEL, 2000, p. 471) destaca o papel dos meios de

comunicação visuais sobre a evolução emocional e sobre o pensamento - a ação substituindo a

reflexão; a imagem substituindo a palavra escrita. Segundo ele, estamos sendo testemunhas de

uma crise na própria capacidade de pensar sobre si mesmo.

Para Outeiral (2005), essa velocidade com que as informações são oferecidas, o

bombardeamento de imagens e essa nova condição da sociedade em que tudo é fast,

fragmentado, têm uma influência relevante na constituição subjetiva dos adolescentes

contemporâneos. Nas palavras do autor: Esse contraste na referência velocidade/tempo entre a geração dos adultos e dos adolescentes me leva a inferir que um dos vetores que nos levam a encontrar ‘hoje’, mais do que ‘ontem’, adolescentes ‘atuadores’ se deve a essa quebra de paradigma: a tradicional, ou moderna, cadeia impulso-pensamento-ação cede lugar a um modelo novo caracterizado pela supressão do pensamento que demanda elaboração e, por conseguinte tempo, e que se configura ‘pós - modernamente’ como impulso-ação, baixa tolerância à frustração, dificuldades em postergar a realização dos desejos e busca de descarga imediata dos impulsos. Há um frenético não paro, se paro penso, se penso dói [...] (OUTEIRAL, 2005, p. 80).

Essa velocidade pode ser sentida e vivenciada também no âmbito das relações. Os

relacionamentos estão ficando cada vez mais fugazes. Observa-se a busca incessante pelo

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prazer instantâneo em detrimento de uma relação mais profunda. O corpo torna-se um dos

maiores objetos de desejo, mas não se trata de qualquer corpo. A busca é por um corpo

idealizado, perfeito, massificado e, por que não dizer, mutilado por tantas cirurgias com fins

estéticos. O outro, em sua alteridade, é esquecido. O narcisismo, assim como o consumismo,

o uso abusivo de drogas (incluindo-se os psicofármacos) e a solidão são considerados

características do sujeito contemporâneo. A valorização do sexo e a trivialização das relações pessoais, a condenação do ciúme e da possessividade, a cuidadosa evitação dos compromissos duradouros, a fuga ao sentimento por meio da promiscuidade sexual, tudo isto que em conjunto transformou-se em uma cultura do narcisismo (ENGEL, 2000, p. 469)

Nessa breve análise da sociedade contemporânea, não se poderia deixar de pensar

qual é a influência da mídia, principalmente da televisão, nos processos de subjetivação. Safra

(2001) alerta para a importância de se refletir sobre a forma como o mundo vem sendo

apresentado para as crianças.

O IBOPE , em pesquisa realizada no ano de 1995 com crianças na faixa etária de

dois a nove anos (apud RIBEIRO, 1984, p. 75), demonstrou que as telenovelas são os

programas mais assistidos pelo público dessa idade. Consultor da UNICEF (Fundo das

Nações Unidas para a Infância) e professor da Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro,

Márcio Schiavo coordenou uma pesquisa que tinha como objetivo quantificar a incidência de

cenas e situações eróticas presentes na programação infantil. Para tanto, foram analisadas 150

horas de programas infantis exibidos em canais abertos. Os resultados2 da pesquisa mostram

que 308 estímulos e referências ao sexo foram registrados no período pesquisado entre 25 a

31 de maio de 1997. Nesta mesma pesquisa foram ouvidas 150 crianças, das quais 60,6%

disseram que vêem tudo o que querem na televisão.

Por meio desses dados pode-se perceber como a televisão está presente na vida

das crianças e das famílias contemporâneas. O psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli (2001)

afirma que não se pode ignorar a participação da televisão na construção social, na formação

de mentalidades e no desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente.

Assim, no cenário contemporâneo, tem-se, de um lado, uma televisão que cada

vez mais invade os lares e as mentes dos cidadãos brasileiros, ditando em cores e em alto e

bom som o modelo “ideal” de homem, de mulher, de erotismo. Sobre esses modelos, Mello

ressalta: Hoje vemos o imaginário infantil, povoado de loiras do Tchan e Tiazinha, modelos aos quais as meninas procuram imitar, utilizando roupas, cabelo e gestos (...) Podemos observar que, aparentemente, nesses modelos há um apelo à sexualidade

2Resultados publicados na Revista Cláudia, edição de novembro de 1997, p. 24-31.

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genital, no entanto, na verdade o que se dá é uma sobre-estimulaçào à sexualidade anal. As ‘bundinhas são destacadas, tanto na coreografia como na linguagem verbal, os aspectos sádicos anais estão em evidencia (MELLO, 2000, p. 6).

Do outro lado dessa estória, a família não apresenta modelos identificatórios tão

sólidos como outrora. Nesse contexto, Moreno (2004) alerta para o fato de que as crianças são

cada vez menos controladas pela moldura familiar, e a mídia, percebendo esse vazio, tenta

preenchê-lo.

Cada vez mais a família contemporânea se diferencia do ideal moderno de

família. O tão tradicional “álbum de família” está se modificando. Outeiral mostra como essa

mudança foi ocorrendo ao longo das últimas três décadas. Na década de 70, as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem da família patriarcal para a família nuclear. A família patriarcal constituída por grupos familiares de vários graus de parentescos (avós, tios, primos etc.) oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de proteção [...]. Com a rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a família nuclear constituída por um casa e um ou dois filhos [...] Na década de 80 as questões diziam respeito às novas configurações familiares: famílias reconstituídas, com filhos de casamento anteriores e de novo casamento, tendo esse fato social o reconhecimento da lei do divórcio [...] Na última década temos a possibilidade de uma mulher ter um filho sem relações genitais com um homem, através da fertilização assistida: o desenvolvimento tecnológico nos aporta novas estruturas familiares (OUTEIRAL, 2005, p. 73).

Assim, além de uma nova organização familiar, presencia-se o nascimento de

novas estruturas familiares. O desenvolvimento veloz da engenharia genética possibilita que

hoje uma mulher possa comprar um filho em um banco de esperma. Crianças vão sendo

geradas sem que relações sexuais entre um homem e uma mulher aconteçam, o que provoca

uma mudança radical na estrutura familiar. Algumas décadas atrás mulheres na menopausa

não poderiam engravidar. Com o advento tecnológico, isto já se torna possível.

Dois anos atrás, o programa Fantástico da Rede Globo exibiu uma matéria em

que, devido à impossibilidade de engravidar, uma mulher e seu marido recorreram à

inseminação artificial. Tiveram que escolher uma barriga de aluguel. No entanto, a mulher

escolhida para gestar a criança foi a mãe da esposa. A mulher foi fertilizada pelo sêmen do

genro tornando-se, deste modo, ao mesmo tempo, avó e mãe do nascituro. Este fato algumas

décadas atrás pareceria ter saído de um filme de ficção científica.

Outra característica da sociedade contemporânea que vem sendo discutida por

muitos psicanalistas é o predomínio das patologias narcisistas em detrimento das neuroses,

isto é, o predomínio do princípio de prazer em detrimento do princípio de realidade. As

histerias, tão freqüentes na época de Freud, hoje estão praticamente em extinção. O que temos que levar em conta é que o paciente neurótico de hoje, que chega a nossos consultórios, não é igual àquele de cem anos atrás, quando Freud investigou

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as características da histeria [...] é inevitável destacar a importância que têm atualmente as atuações, que muitas vezes assumem modalidades de funcionamento mental muito regressivas, levando a tendências perversas e autodestrutivas. A problemática vinculada ao campo sexual aparece intricada com o narcisismo ligado à pulsão de morte (SCHKOLNIK, 1998, p. 10).

Essa rápida viagem pela história, tendo como ponto de chegada a sociedade

contemporânea, não foi realizada em clima de nostalgia. Ceccarelli (2001) esclarece que, para

ter uma compreensão psicológica da criança na sociedade digital, não se pode cair em

posições nostálgicas. Cada momento histórico tem suas especificidades, seu “mal-estar”.

Concorda-se com o psicanalista gaúcho Eizirik (2004, p. 92), quando afirma que “os tempos

não são bons nem maus, são o que são em cada contexto histórico. Nosso desafio é buscar

entender esse tempo e sua linguagem assim como os figurinos e as roupagens que a

sexualidade assume para exprimir-se”.

Tendo em vista todas as mudanças que vêm ocorrendo na sociedade e na cultura,

principalmente nas últimas décadas; muitos psicanalistas, educadores, pais e cidadãos, em

geral, têm-se perguntado sobre os efeitos de todas essas mudanças no psiquismo infantil.

Na análise dos desenhos-estórias, será compreendido como está se constituindo a

organização psíquica da sexualidade das dez crianças que participaram desta pesquisa e que se

encontram na fase final do período de latência, levando em consideração as características e

especificidades da cultura e da sociedade contemporâneas que, como foi visto acima, é bem

diferente da época em que Freud (1905) escreveu os “Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade”.

1.2 O desenvolvimento infantil e a sexualidade

A psicanálise, há um século atrás, deu à infância um outro status quo, afirmando

que a pulsão sexual, ao contrário do que a maioria das pessoas acreditava, estava presente nas

crianças. O que antes era considerado uma aberração ou manifestações isoladas, agora faz

parte da constituição normal de qualquer ser humano. Nas palavras de Freud (1925): A infância era encarada como ‘inocente’ e isenta dos intensos desejos do sexo, e não se pensava que a luta contra o domínio da ‘sexualidade’ começasse antes da agitada idade da puberdade. Tais atividades sexuais ocasionais, conforme tinha sido impossível desprezar nas crianças, eram postas de lado como indícios de degenerescência ou de depravação prematura, ou como curiosa aberração da natureza. Poucos dos achados da psicanálise tiveram tanta contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo

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na infância. E, contudo, nenhum outro achado da análise pode ser demonstrado de maneira tão fácil e completa (FREUD, 1996, p. 38-39).

Assim, em meio a uma sociedade burguesa e moralista, Freud começa a construir

um novo jeito de se compreender a infância e a sexualidade humana. Amplia o conceito de

sexualidade, explicitando que essa vem a ser algo que não se reduz à genitalidade e que não

tem a reprodução como objetivo principal. Primeiramente, a sexualidade está atrelada a uma

função vital, como a alimentação, e só depois se torna independente dela. Freud (1908) faz a

seguinte consideração: Novas perspectivas se nos oferecem ao considerarmos que no homem o instinto sexual não serve originalmente aos propósitos da reprodução, mas à obtenção de determinados tipos de prazer. Manifesta-se desse modo na infância do homem, período em que atingi sua meta de obter prazer não só dos genitais, mas também de outras partes do corpo (zonas erógenas), podendo, portanto prescindir de qualquer outro objeto menos cômodo. (FREUD, 1996, p. 174-175)

Em 1905, quando escreve os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud

começa a descrever as aberrações da pulsão sexual a respeito de seu objeto e seu alvo. Afirma

que a predisposição para as perversões deve antes fazer parte da constituição normal do

desenvolvimento de todo ser humano, estando presente inclusive nas crianças. Ou seja, tanto a

sexualidade “normal” como as perversões têm as suas raízes na sexualidade infantil.

Freud (1905) faz uma declaração que choca toda uma época ao afirmar que a

criança é um “perverso polimorfo”, ou seja, não possui um objeto definido para a satisfação

da pulsão sexual, caracterizando-se por uma obtenção de satisfação em diferentes zonas

erógenas. Estas zonas possuem uma correspondência com as fases do desenvolvimento

psicossexual, definidas por ele como sendo as seguintes: oral, anal-fálica, latência e genital.

Nesse mesmo artigo de 1905, Freud conceituou zona erógena como qualquer região do corpo

capaz de se tornar sede de uma excitação de caráter sexual. Dentre elas, pode-se destacar a

boca, a pele, a mucosa anal, o pênis, o clitóris, sendo que em cada idade específica,

teoricamente, predomina a hegemonia de uma determinada zona.

Para entender melhor o conceito de período de latência, foco principal desta

pesquisa, é necessário percorrer o caminho do desenvolvimento psicossexual formulado por

Freud. Mas antes de começar o percurso, acredito ser de grande importância a citação da

seguinte reflexão de Mezan (1985, p. 105-106): O que há de escandaloso nas idéias freudianas é que elas colocam o sexo não apenas na esfera do orgânico, mas também no domínio do psíquico. Isto é decisivo: a causalidade difusa e misteriosa atribuída ao sexo, a crença de que as aberrações sexuais poderiam provocar moléstias de todos os tipos, é afastada desde a ‘Comunicação Preliminar’, em que a histeria é concebida como resultado da não-absorção, pelo psiquismo, de um trauma sexual. Ora, postular uma atividade psíquica como sede dos transtornos sexuais – ou vice-versa, pois deste ponto de

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vista as coisas se equivalem – abre uma primeira brecha nas categorias ideológicas, borrando sensivelmente as fronteiras entre o corpo e a alma, atribuindo ao sexo um papel na vida anímica que a moral da época não poderia suportar.

Para Freud (1905), desde o nascimento já existe uma atividade sexual, ou seja, a

sexualidade surge ligada à satisfação de uma necessidade orgânica, primeiramente a nutrição,

para em seguida desligar-se desta, procurando satisfação no próprio corpo, o que ele

denominou auto-erotismo. Dessa forma, o investimento libidinal está dirigido para o próprio

corpo do bebê. Nos primeiros meses de vida há o predomínio da fase oral. A sucção dos

dedos e dos lábios desligada de qualquer absorção de alimentos seria, segundo Freud, uma

manifestação tipicamente sexual. A boca é, portanto, a zona erógena, ou seja, a região do

corpo que, ness momento, provoca uma sensação prazerosa de determinada intensidade e

qualidade. Diz Freud (1905): A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em seus substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os lábios da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. (FREUD, 1996, p.171)

No curso do desenvolvimento, por volta de um ano e meio de idade, primazia é da

zona anal. As sensações de prazer-desprazer se associam tanto com a expulsão quanto com a

retenção das fezes. Esses processos ligados ao funcionamento do corpo são as atividades

infantis que, nessa fase, mais se relacionam com as frustrações e gratificações sexuais.

Por volta do terceiro ano de vida, o papel sexual começa a ser assumido pelos

órgãos genitais. Este momento do desenvolvimento psicossexual é conhecido como fase

fálica. Segundo Freud (1905), chama-se essa fase de fálica, principalmente, porque o pênis é o

principal objeto de interesse da criança em ambos os sexos. As fantasias infantis giram em

torno de ter ou não ter um pênis. De ser ou não vir a ser castrado.

É durante a fase fálica que se desenvolve o complexo de Édipo, momento em que

a criança estabelece com os pais uma relação ambivalente de amor (desejos amorosos) e de

ódio (desejos hostis). Freud (1910) construiu suas primeiras elaborações sobre o complexo de

Édipo a partir do menino, defendendo a idéia de que poderia ser transposto para as meninas.

Ele distinguia dois momentos do complexo de Édipo, um positivo e outro negativo. No

complexo de Édipo positivo, simplificadamente, o menino dirige seus desejos amorosos para

mãe e os hostis para o pai. O pai assume a postura de um rival, alguém que, de posse de uma

lei, busca interditar o incesto. No complexo de Édipo invertido, o menino identifica-se com a

mãe para obter o amor do pai. Esses dois momentos acontecem de forma dinâmica.

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Concomitantemente ao desenvolvimento edipiano, surge nos meninos um medo

de ser castrado pelo pai em resposta aos desejos sexuais dirigidos à figura materna. Essa

angústia de castração vai se tornando cada vez mais ameaçadora na medida em que o menino

visualiza o órgão genital da mãe ou de uma menina. Na sua fantasia, a mãe ou a menina foi

castrada, e ele, dessa forma, poderá ser o próximo. Assim, o amor narcísico pelo pênis leva o

menino a abandonar seus desejos incestuosos dirigidos para a mãe. Nesse momento, é

inaugurada a fase de latência no menino e, conseqüentemente, a formação de seu superego.

Diferentemente dos meninos, o complexo de castração impele a menina ao

complexo de Édipo. Partindo da fantasia de que todas as pessoas possuem um pênis, a menina

ao se perceber sem um culpa a mãe por tê-la feito vir ao mundo tão desprovida e mutilada.

Assim, a menina volta seus desejos amorosos para a figura paterna. Ela deseja ter o pênis do

pai.

Nos escritos de Freud (1924), a sexualidade feminina é algo obscuro. Fica difícil

delinear de forma tão precisa, como no menino, o declínio do complexo de Édipo feminino.

Ele considera que o desejo de possuir o pênis do pai se transforma, na menina, em um desejo

de ter um filho dele. Está formada, então, uma equação simbólica “pênis-fillho”. O complexo

de Édipo feminino é sucedido pelo período de latência e deixa como herdeiro o superego.

Freud (1924) postula que o Édipo, embora seja vivido por cada um como uma

experiência individual, é determinado e estabelecido hereditariamente. Então, esse complexo

chegaria ao fim, “porque chegou a sua hora assim como chega a hora de cair os dentes de

leite” (FREUD, 1996, p. 193). Tanto na menina quanto no menino o fim do complexo de

Édipo ocasiona um abandono das catexias objetais, que são substituídas por identificações. A

autoridade dos pais é introjetada no ego, formando o núcleo do superego. Este, por sua vez, se

torna o representante da lei, da ordem e da moral, perpetuando a proibição do incesto e

defendendo o ego do retorno da catexia objetal libidinal. Por isso, as tendências libidinais do

Édipo são, em parte, dessexualizadas e sublimadas. Este momento do desenvolvimento

psicossexual é conhecido como período de latência.

O desenvolvimento dessas três fases não ocorre de maneira mecânica ou abrupta,

ao contrário, os objetos e as modalidades de gratificação são abandonados de forma gradativa

e sua catexia libidinal persiste ainda que de forma menos intensa. Além dessas manifestações

da sexualidade, existem outras sobre as quais vale a pena comentar. Uma delas é o desejo de

olhar que, assim como o seu equivalente – o desejo de se exibir –, se encontra mais acentuado

na fase fálica. Freud (1938) esclarece:

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Seria um erro supor que essas três fases se sucedem de forma clara. Uma pode aparecer em adiamento a outra; podem sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado. Nas primeiras fases, os diferentes componentes dos instintos empenham-se na busca de prazer independente uns dos outros; na fase fálica, há os primórdios de uma organização que subordina os outros impulsos à primazia dos órgãos genitais e determina o começo de uma coordenação do impulso geral em direção ao prazer na função sexual. A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta fase, a genital (FREUD, 1938, p. 168).

Seguindo à fase fálica, inicia-se o período de latência, foco de estudo da presente

pesquisa. Segundo Freud (1905), é nesse momento que acontece uma parada no

desenvolvimento libidinal infantil. Posteriormente, esse conceito será discutido mais

detalhadamente.

A última fase do desenvolvimento psicossexual é a genital. Nessa fase, os

impulsos sexuais estão dirigidos para um objeto definido. As pulsões parciais se juntam e as

zonas erógenas estão subordinadas à primazia dos genitais. A pulsão sexual coloca-se agora a

serviço da reprodução. Pode-se dizer que esta fase inicia-se na puberdade. Assim, pois, pode-se dividir a sexualidade pré-adulta, de modo geral, em três períodos principais: o período infantil, o período de latência e a puberdade. Hoje em dia se conhecem muito bem o começo e o fim do período infantil, ao passo que aquilo situado no meio ainda requer muita pesquisa; possivelmente, neste período intermediário, ocorrem variações acidentais mais importantes do que as que se dão nas fases inicial e terminal (FENICHEL, 2004, p. 56).

Considero importante a ressalva feita por Fenichel sobre a importância de serem

realizados estudos sobre o período de latência. Durante o levantamento bibliográfico, percebi

o quanto é pequeno o número de livros, dissertações e teses escritas sobre esse período do

desenvolvimento psicossexual infantil.

Para melhor compreender o conceito de período de latência, foi importante

percorrer o caminho traçado por Freud sobre o desenvolvimento psicossexual infantil e, dessa

forma, entender como surgiu o conceito freudiano de sexualidade que difere muito do senso

comum. Afinal, esta pesquisa tem como objetivo estudar a organização psíquica da

sexualidade em dez crianças de nove anos, tendo como pano de fundo as mudanças sociais e

culturais que ocorreram neste último século.

1.3 O conceito de período latência em Freud

Freud refere-se ao período de latência como um tempo em que ocorre a

diminuição das manifestações sexuais infantis, que se mostravam tão vivas e atuantes até mais

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ou menos os cinco anos de idade. Segundo ele, durante esse período os impulsos sexuais são

suprimidos pela repressão, surgindo atitudes na criança como o asco, a vergonha, a repulsa.

Freud entendeu esse momento evolutivo como sendo resultante de uma combinação de

processos biológicos, de influências culturais e da educação.

Após o declínio do complexo de Édipo e o surgimento do superego irrompe o

período de latência. É nesse momento do desenvolvimento que ocorre a substituição das

catexias objetais, antes dirigidas para os pais, pelas identificações; as tendências sexuais que

pertenciam ao complexo de Édipo são, em parte, dessexualizadas e sublimadas.

Classicamente, a latência é uma fase do desenvolvimento que se estende desde o declínio da

sexualidade infantil até o início da puberdade. Nas palavras de Freud (1925): Dir-lhe-ei, então, que o fato mais notável sobre a vida sexual das crianças, segundo me parece, passa por todo o seu desenvolvimento mais amplo nos cinco primeiros anos de vida. A partir desse ponto até a puberdade estende-se o que se conhece como período de latência. Durante ele a sexualidade normalmente não avança mais; pelo contrário, os anseios sexuais diminuem de vigor e são abandonadas e esquecidas muitas coisas que a criança fazia e conhecia. Nesse período da vida, depois que a primeira eflorescência da sexualidade feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, que estão destinadas a fazer frente à tempestade ulterior da puberdade e a alicerçar o caminho dos desejos sexuais que se vão despertando. (FREUD, 1996, p. 204).

O medo da castração mobiliza a entrada da criança no período de latência. A

criança na latência abandona seus desejos incestuosos e dirige sua atenção para atividades

sociais, principalmente as escolares. Nesse momento, a criança procura ser admirada e

reconhecida pelos pais e professores. Ela busca o amor dos pais e educadores através de

renúncias instintivas. Nesse período meninos e meninas tendem a ter atividades diferentes e a

formar grupos separados. A tendência dos meninos de excluir as meninas e vice-versa está

relacionada a defesas contra a bissexualidade. Vivendo em um ambiente só de homens ou só

de mulheres, as crianças procuram reforçar, respectivamente, suas características masculinas

ou femininas.

Ao longo da obra de Freud (1905, 1923, 1938) pode-se perceber a importância

que ele dá ao período de latência como um momento que está intrinsecamente relacionado ao

desenvolvimento cultural e à função de hominização. Outro aspecto relevante é que nessa

etapa do desenvolvimento infantil se consolida a formação do caráter, incluindo também a

formação dos ideais éticos e estéticos pelo ego. Há, igualmente, o abandono de defesas mais

primitivas, como a cisão e a negação, e o uso de defesas mais evoluídas, como a repressão, a

sublimação e a formação reativa. Freud (1905) escreve: A instauração bitemporal do desenvolvimento sexual nos seres humanos, ou seja, sua interrupção pelo período de latência, pareceu-nos digna de uma atenção especial. Ela se afigura como uma das condições de aptidão do homem para o

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desenvolvimento de uma cultura superior, mas também de sua tendência à neurose (FREUD, 1996, p. 220-221).

Embora acredite na diminuição da atividade sexual durante a latência, Freud

(1905) assinalou também que, apesar da repressão e das formações reativas, manifestações da

sexualidade podem irromper: “[...] vez por outra irrompe um fragmento de manifestação

sexual que se furtou à sublimação, ou preserva-se alguma atividade sexual ao longo do

período de latência, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade [...]” (FREUD,

1996, p. 168).

Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” Freud (1905) escreve sobre os

fatores constitucionais e acidentais, que poderiam influenciar no desenvolvimento sexual

infantil. Um desses fatores seria a precocidade sexual demonstrável na etiologia das neuroses.

De acordo com Freud, essa precocidade se manifestaria na interrupção, encurtamento ou

término do período de latência. Uma das conseqüências disso seriam perturbações nas

manifestações sexuais que, pelo estado incompleto das inibições sexuais e também pelo fato

do sistema genital ainda não está desenvolvido, poderiam ter características típicas das

perversões. [...] essas tendências à perversão podem então permanecer como tais ou, instaurado o recalcamento transforma-se em forças propulsoras de sintomas neuróticos. De qualquer modo, a precocidade sexual dificulta o desejável domínio posterior da pulsão sexual pelas instâncias anímicas superiores, e aumenta o caráter compulsivo que, à parte isso, os substitutos [Vertretungen] psíquicos da pulsão reivindicam para si (FREUD, 1996, p. 227).

Segundo Freud (1905), um dos fatores que poderia ocasionar rompimentos

prematuros no período de latência, bem como seu desaparecimento, seriam as influências

externas da sedução. Ele afirma que, se tal fato ocorresse, a educabilidade das crianças estaria

prejudicada. Freud não desenvolveu esta idéia em seus textos posteriores, mas essa afirmação

pode ajudar a refletir sobre as crianças na latência nos dias de hoje, tendo em vista a relação

das mesmas com a mídia, as novas formas de relacionamento afetivo, as novas configurações

familiares. Em outro momento desta pesquisa, irei resgatar e discutir com mais propriedade

esta prerrogativa feita por Freud.

É no período de latência que ocorre na criança um desenvolvimento mais

completo da capacidade de simbolização como uma tentativa de organizar seu mundo

pulsional. Ela se volta para atividades socialmente mais aceitas, o que é uma conseqüência da

sublimação dos impulsos sexuais. Há uma intensificação do recalque, que tem como efeito

uma amnésia referente aos primeiros anos de vida. O ego infantil assume um particular apego

à realidade em prejuízo das fantasias mais livres dos tempos da primeira infância. A latência é

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reconhecida, assim, como um período de luta contra a masturbação, de construção de sólidas

defesas, que acabam por empobrecer a vida imaginativa e de fantasia da criança. Freud (1926)

afirma: A principal tarefa durante o período de latência parece ser o desvio da tentação à masturbação. Essa luta produz uma série de sintomas que aparecem de maneira típica nos indivíduos mais diferentes e que, em geral, têm a natureza de um cerimonial. Muito é de lamentar que alguém ainda não os tenha reunido e analisado de maneira sistemática. (FREUD, 1996, p. 117).

Nesta etapa do desenvolvimento, a criança estabelece uma nova relação com a

realidade interna e externa. As crianças com um superego melhor estruturado nessa fase

conseguem adiar a satisfação imediata dos seus desejos e necessidades, o que supõe uma

maior capacidade de elaboração mental. Tal elaboração está ligada a um maior

desenvolvimento egóico. O ego do latente adquire uma maior capacidade de pensamento, de

análise da realidade, de adiamento da satisfação.

Laplanche e Pontalis (2001) explicam o motivo pelo qual Freud denominou esse

momento do desenvolvimento infantil estudado como período de latência e não como fase de

latência. Segundo esses autores, nessa etapa do desenvolvimento, embora possam ocorrer

manifestações sexuais, não existe uma nova organização da sexualidade como acontece na

fase oral, anal e fálica.

Ao longo da exposição das idéias de Freud sobre o período de latência,

demonstrou-se a relevância que o criador da psicanálise dedicou a esse momento do

desenvolvimento infantil, principalmente, quando relacionou este período à tendência do

homem tanto para a neurose como para o desenvolvimento da atividade cultural.

Cem anos depois de Freud postular o conceito de período de latência,

aconteceram mudanças significativas na sociedade tanto no âmbito econômico, tecnológico,

como também, na esfera dos costumes, nos ideais estéticos. As crianças nos dias de hoje têm

informações claras e explícitas através dos meios de comunicação (revistas, televisão,

internet) sobre sexo, sobre as diferenças sexuais entre homens e mulheres que já não são,

como na época de Freud, tão misteriosas. Diante de tudo isso, é importante investigar se o

período de latência hoje, no que se refere à organização psíquica da sexualidade, se diferencia

do que foi postulado por Freud na Viena du fin de siècle.

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1.4 O conceito de período de latência em Melanie Klein

Em 1932 Melanie Klein publica um livro intitulado “A Psicanálise da Criança” no

qual, através de uma série de artigos, lança as bases teóricas de suas geniais e importantes

contribuições posteriores. Nesta obra Klein discute o período de latência em três importantes

artigos: “A técnica de análise no período de latência”, “A técnica de análise na puberdade” e

“A importância das situações de ansiedade arcaicas no desenvolvimento do ego”.

Esta pesquisa não tem como objetivo o aprofundamento da teoria kleiniana, mas

faz-se necessário compreender como Melanie Klein utilizou o conceito freudiano do período

de latência.

No primeiro artigo “A técnica da análise no período de latência”, Melanie Klein

afirma que a criança na latência possui uma vida imaginativa mais precária devido à forte

repressão. O ego ainda não se encontra plenamente desenvolvido como nos adultos, o que

contribui para que a criança não possua insight sobre a sua doença nem desejo de ser curada.

Outra característica das crianças na fase de latência, segundo Melanie Klein

(1932), é a atitude de reserva e desconfiança diante do mundo. Tanto para Klein como

também para Freud, esse sentimento está ligado a uma luta interna travada pela criança contra

a masturbação. Melanie Klein (1932) observou que as crianças, no período de latência, não

brincavam como as crianças menores e nem associavam como os adultos.

Sobre o brincar das crianças na latência, Melanie Klein (1932) ressalta que Durante o período de latência, em consonância com a repressão mais intensa de sua fantasia e com o seu ego mais desenvolvido, as brincadeiras da criança são mais adaptadas à realidade e menos fantasiosas do que as da criança pequena. Em suas brincadeiras com água, por exemplo, não encontramos representações tão diretas de desejos orais ou de urinar-se ou sujar-se como nas crianças menores; suas ocupações servem muito mais a tendências reativas e assumem formas racionalizadas como cozinhar, limpar, etc. Considero que a grande importância do elemento racional no brincar das crianças dessa idade não se deve apenas a uma repressão mais intensa da sua fantasia, mas também a uma ênfase obsessiva da realidade, o que é parte integrante das condições especiais de desenvolvimento do período de latência (KLEIN, 1997, p. 80).

No artigo “A técnica da análise na puberdade”, Klein verifica que a análise de

adolescentes se aproxima mais da análise de crianças pequenas do que da análise de crianças

que estejam na latência. Ela acredita que, na adolescência, a atividade pulsional é mais intensa

e a vida de fantasia mais rica, pois é nesse momento do desenvolvimento que as fantasias

infantis, principalmente as relacionadas ao complexo de Édipo, vão ser reativadas. Essas

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fantasias infantis, quanto a intensa ansiedade que as acompanha, vão ser revividas na busca do

adolescente pelo seu objeto de amor.

Entretanto, Klein observa que, em alguns adolescentes, uma forte repressão

ocasionou uma grande limitação da personalidade restringindo seus interesses. Muitas vezes,

nesses casos, o adolescente fica restringido a apenas um único interesse, o que ganha

contornos não de sublimação, mas sim, de caráter obsessivo. Klein (1932) conclui: Cheguei à conclusão de que, por um lado, quando encontramos uma limitação grave de interesses e de meios de expressão na puberdade, estamos diante de um período de latência prolongado e, de outro, quando há uma limitação extensa das atividades imaginativas (tais como inibições no brincar, etc.) na primeira infância, trata-se de um caso prematuro do começo do período de latência. Em qualquer um dos casos, quer a latência comece cedo demais quer termine tarde demais, perturbações graves se fazem notar não apenas pela mudança no tempo como também pelo grau excessivo dos fenômenos que normalmente acompanham o período de latência (KLEIN, 1997, p. 101-102).

Isto sugere que tanto a latência começando cedo demais como acabando

tardiamente podem ocasionar graves perturbações no desenvolvimento infantil. Além do que

já foi posto por Freud, Klein também acredita ser importante o estudo sobre esse período do

desenvolvimento infantil.

No artigo “A importância das situações de ansiedade arcaica no desenvolvimento

do ego”, Klein assinala que no período de latência a estabilidade da criança é alcançada pela

união do ego com o superego na busca de um objetivo comum, levando-se em consideração

as exigências da realidade. Nesse trabalho, Klein (1932) retoma algumas idéias desenvolvidas

por Freud sobre o período de latência, principalmente a questão relativa à luta da criança

contra a masturbação. Descrevemos a estabilização que ocorre no período de latência como estando baseada em uma adaptação à realidade, efetuada pelo ego em concordância com o superego. A conquista de um objetivo como esse depende de uma ação combinada de todas as forças comprometidas em conter e restringir as pulsões do id. É aqui que entra a luta da criança para se libertar da masturbação – uma luta que, citando Freud, ‘exige uma parcela grande de suas energias’ durante o período de latência e cuja força plena é dirigida também contra as fantasias masturbatórias (KLEIN, 1997, p.204).

Além de aprofundar as idéias de Freud referentes à luta da criança contra a

masturbação ao aparecimento de mecanismos obsessivos, Melanie Klein (1932) sugere que,

nesse momento evolutivo, a criança precisa receber proibições de fora, ou seja, do mundo

externo, uma vez que essas proibições vão sustentar as interdições internas. De acordo com

Klein (1932) [...] ela precisa, em outras palavras, ter representantes do superego no mundo externo. Essa dependência em relação aos objetos com a finalidade de ser capaz de controlar a ansiedade é muito mais forte no período de latência do que em qualquer

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outra fase do desenvolvimento. De fato, parece-me ser um pré-requisito definido para uma transição bem-sucedida para o período de latência que o controle da ansiedade por parte da criança se apóie nas suas relações de objeto e adaptação à realidade (KLEIN, 1997, p. 207).

Melanie Klein destaca, nessa fase, a importância da influência do ambiente

externo no desenvolvimento infantil. Ressalta a importância dos pais em conter a ansiedade

das crianças, dando limites e fazendo valer o princípio de realidade em detrimento do

princípio de prazer. Essa reflexão sobre a importância de um superego externo que auxilie a

criança na sua luta pulsional interna é peça fundamental na tessitura das minhas reflexões

acerca da organização psíquica da sexualidade na latência nos dias de hoje.

1.5 O conceito de período de latência segundo a teoria do desenvolvimento de Erik Erikson

É importante percorrer o caminho do desenvolvimento infantil proposto por

Erikson, para melhor compreender sua contribuição e expansão teórica acerca do período de

latência e realizar o objetivo aqui proposto.

Seguindo a tradição psicanalítica de Freud e influenciado por Anna Freud, Erik

Erikson acrescentou à teoria da sexualidade freudiana suas contribuições teórico-clínicas.

Uma delas foi atribuir grande importância à influência exercida pela cultura e pela sociedade

no desenvolvimento humano.

Ele expandiu o enfoque dado para cada uma das fases sexuais freudianas,

destacando o seu caráter psicossocial de tal modo que cada estágio representa uma

organização que corresponde às exigências da cultura de uma determinada sociedade. E

assegurou que cada fase vivenciada poderia transforma-se numa crise, definida como um

momento crítico do processo de desenvolvimento.

Ao abordar o desenvolvimento, as idades vivenciadas durante o ciclo vital foram

relacionadas com as fases estabelecidas por Freud, sendo as atitudes alternativas básicas

denominadas por sentimento ou sentido de, já que o homem passa por oito crises (momentos

críticos de cada idade) no transcurso de toda a sua vida. A forte influência da antropologia na

sua formação e a grande preocupação com o conceito de mesmidade e continuidade histórica

permitiram que Erikson investigasse os motivos da ocorrência de crises no processo

evolutivo.

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Assim, formulou sua teoria sobre o desenvolvimento humano como um processo

contínuo, associado à ordenação e integração das várias experiências, caracterizando a

formação da identidade, embora os instintos sempre comandassem a diretriz da vida humana.

Na etapa anterior à latência, as características apresentadas ampliam a teoria da

sexualidade de Freud na medida em que ele propõe uma investigação que vai além da zona e

localização da necessidade libidinal, levando em consideração a capacidade e o modo de

relação da criança com o mundo e as modalidades sociais ou padrões de relacionamento

interpessoal. (ERIKSON, 1976)

A primeira idade compreende o sentido de confiança x desconfiança. Nesse

momento, os sentimentos são derivados das experiências do primeiro ano de vida. Para este

autor, o firme estabelecimento de padrões duráveis para a solução do conflito nuclear da

confiança básica versus a desconfiança é a primeira tarefa do ego e, portanto, antes de tudo,

uma tarefa para o cuidado materno. Portanto, “a soma de confiança derivada das primeiras

experiências infantis não parece depender de quantidades absolutas de alimento ou de

demonstrações de amor, mas antes da qualidade da relação materna” (ERIKSON, 1976,

p.229).

O sentimento de confiança, legado desse momento do desenvolvimento, está

relacionado com a fé básica na existência; com o sentimento de identidade e com a

capacidade que a criança adquire de confiança tanto em seus provedores externos como

também em si mesmo. O papel dos pais, em especial o da mãe, tem uma importância decisiva

na construção desse sentimento de confiança e desconfiança. Conforme Erikson, As mães criam em seus filhos um sentimento de confiança por meio daquele tipo de tratamento que em sua qualidade combina o cuidado sensível das necessidades individuais da criança e um firme sentimento de fidedignidade pessoal dentro do arcabouçodo estilo de vida e de sua cultura (ERIKSON, 1976, p. 229).

A segunda idade, na qual predomina o sentido de autonomia x vergonha ou

dúvida, acontece quando a criança consegue alcançar um desenvolvimento muscular e verbal.

O desenvolvimento muscular alcançado tem o seu contraponto relacionado com duas

modalidades sociais – agarrar e soltar. Segundo Erikson (1976), agarrar pode vir a significar

uma retenção ou repressão destrutiva e cruel ou pode se tornar um padrão de cuidado, isto é,

ter e conservar. Do mesmo modo, soltar poderá consistir em uma libertação hostil de forças

destrutivas ou então em um moderado deixar passar ou acontecer. Para Erikson (1976, p. 283-

284) essa etapa do desenvolvimento [...] passa a ser decisiva para a proporção de amor e ódio, cooperação e voluntariedade, liberdade de auto-expressão e sua supressão. De um sentimento de auto-controle sem perda da auto-estima, resulta um sentimento constante de boa

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vontade e orgulho; de um sentimento de perda do auto-conrole e de supercontrole exterior resulta uma propensão duradoura para a dúvida e a vergonha [...]

Assim, o tipo de autonomia promovido na infância e modificado à medida que a

vida se desenvolve favorece a preservação na vida econômica e política de um sentimento de

justiça. Essa idade do desenvolvimento tem uma correlação com a fase anal postulada por

Freud.

A terceira idade compreende o sentido de iniciativa x culpa. É neste momento do

desenvolvimento que estão presentes o complexo de castração, a formação do superego, e o

tabu do incesto. Erikson (1976) afirma que esses sentimentos se juntam para causar o que

chama de crise especificamente humana, quando a criança deve renunciar à uma ligação

excessiva, pré-genital com seus pais, para iniciar o lento processo de se tornar um genitor, um

portador da tradição.

A fase edípica resulta, dessa forma, num sentimento moral que delimita o âmbito

do permitido, principalmente no sentido do possível, e que vincula os sonhos infantis às

diversas metas da tecnologia e da cultura. A fase ‘edípica’ resultará, pois, finalmente não só num sentimento moral que limita os horizontes do permissível, mas também no estabelecimento de diretrizes no sentido do possível e do tangível, as quais vinculam os sonhos infantis às diversas metas da tecnologia e da cultura (ERIKSON, 1972, p. 121).

A contribuição da fase de iniciativa para o desenvolvimento da identidade infantil

consiste na libertação dessa iniciativa, no sentido de realizar tarefas semelhantes ao adulto.

Essa situação promete na infância uma ampliação das capacidades e da plena realização.

A quarta idade do ciclo vital está relacionada com o sentimento de indústria x

inferioridade e coincide com o período de latência, foco principal deste estudo. Nessa fase, a

escola começa a desempenhar um importante papel no desenvolvimento infantil. Erikson

acredita ser nessa fase do desenvolvimento que, em todas as culturas, a criança começa a

receber alguma instrução sistemática.

Nesse momento do desenvolvimento a criança descobre em si um sentimento de

que pode realizar coisas, que pode fazê-las bem. Foi baseado nessas percepções que Erikson

definiu o sentimento de indústria como uma das atitudes básicas dessa etapa evolutiva. A

criança utiliza-se de novas capacidades para realizar suas tarefas, não recorrendo, no entanto,

a exacerbações dos novos impulsos humanos. Erikson (1976) afirma que essa etapa difere das

anteriores porque não é uma oscilação de uma convulsão interior para um novo domínio.

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Com a chegada da latência, ocorre a sublimação dos desejos sexuais. A criança

volta seus interesses para iniciativas concretas com finalidade de ser socialmente aceita, como

se verifica a seguir: [...] antes que a criança, que já é psicologicamente um genitor rudimentar, possa se transformar em um genitor biológico, deve começar por ser um trabalhador e provedor potencial. Ao se aproximar o período de latência, a criança normalmente desenvolvida esquece, ou melhor, sublima a necessidade de ‘fazer’ gente por ataque direto ou de se tornar às pressas papai e mamãe; aprende agora a conquistar consideração produzindo coisas (ERIKSON, 1976, p. 238).

Segundo Erikson (1976), essa é uma das fases do desenvolvimento socialmente

mais decisivas, pois a necessidade de produzir envolve “fazer coisas ao lado dos outros”,

favorecendo o primeiro sentido da divisão do trabalho e das oportunidades diferenciadas.

Assim, É na idade escolar elementar, quando à criança são ensinados os requisitos preliminares da participação na tecnologia particular da sua cultura e se lhe proporciona a oportunidade e a tarefa vital de desenvolver um sentido de execução e participação no trabalho (ERIKSON, 1976, p. 35).

O perigo dessa fase reside no desenvolvimento do sentimento de inferioridade

(ERIKSON, 1972). Esse sentimento pode ser causado por uma solução insuficiente do

conflito anterior. Dessa forma, a criança ainda pode querer mais a sua “mamãe” do que

conhecimentos, poderá preferir ser bebê em casa a ser menino crescido na escola.

Ainda sobre a quarta idade do ciclo vital (o período de latência), Erikson explicita

que nesse momento do desenvolvimento a criança começa a desenvolver as aptidões

necessárias para o uso de instrumentos, símbolos e conceitos referentes à sua cultura.

O período de latência sob à ótica da teoria do desenvolvimento de Erikson ocupa

um lugar relevante, ou seja, é um momento de transição da infância para o mundo adulto,

quando a criança começa a desempenhar papéis preparatórios para a realidade da tecnologia e

da economia.

Após a quarta idade que está relacionada com o sentimento de indústria e

inferioridade, segue a quinta idade referente ao sentimento de identidade x confusão de papel,

compreendendo o período da adolescência. Na sexta idade, os sentimentos predominantes são

a intimidade versus o isolamento. A sétima idade proposta privilegia o sentimento de

generatividade x estagnação. E, por fim, a oitava idade compreende os sentimentos de

integridade do ego x desesperança.

É importante destacar a relevância que Erikson (1972, p. 53) delega à influência

das formas sociais, ou seja, da cultura na constituição da identidade de cada indivíduo. Uma criança tem muitas oportunidades de identificar-se mais ou menos experimentalmente, com pessoas reais ou fictícias de um ou outro sexo, e com

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hábitos, características ocupações e idéias. Certas crises obrigam-na a fazer seleções radicais. Contudo, a era histórica em que ela vive oferece apenas um número limitado de modelos socialmente significativos para combinações viáveis de fragmentos de identificação. A utilidade desses modelos depende do modo como satisfaçam, simultaneamente, aos requisitos da fase de amadurecimento do organismo, ao estilo de síntese do ego e às exigências da cultura.

A teoria do desenvolvimento de Erik Erikson amplia o olhar sobre as fases

psicossexuais postuladas por Freud (1905) à proporção que destaca o seu aspecto

psicossocial. Além disso, esse enfoque dado por Erikson acerca da influência de uma

determinada cultura sobre a construção da identidade infantil será de grande importância no

momento da análise e discussão dos dados desta pesquisa.

1.6 As pesquisas de Berta Bornstein sobre o período de latência

Em 1951, no Encontro Anual da Associação de Psicanálise Americana, Berta

Bornstein apresentou um artigo intitulado “Sobre a latência”. Neste artigo, propõe uma

divisão do período de latência em duas fases: a primeira delimitada entre os cinco anos e meio

e oito anos, e a segunda, dos oito aos dez anos. A autora discute as características de cada uma

destas fases, bem como apresenta questões relacionadas à teoria e, principalmente, à técnica

envolvidas na análise de crianças no período de latência.

Neste primeiro período da latência, o ego tem que erigir defesas contra os

impulsos genitais e contra os impulsos pré-genitais. Bornstein afirma que, contra os impulsos

genitais, o ego adota uma regressão temporária em relação à pré-genitalidade. A formação

reativa, tão característica desta fase, seria uma defesa contra estes impulsos pré-genitais.

Outro aspecto ressaltado pela autora é a luta constante entre o superego e as pulsões,

ocasionando um aumento da ambivalência.

Berta Bornstein (1951) ressalta que, nesta primeira fase da latência, ao contrário

do que a maioria dos autores acredita, a neurose infantil não diminui. Isto só vai ocorrer na

segunda fase da latência. Ela faz a seguinte consideração: Quando o ego se depara com conflitos que não consegue vencer, durante o primeiro período, surgem dificuldades de comportamento e os sintomas neuróticos se manifestam de novas formas. Alguns exemplos: fobias antigas de animais podem ser substituídas por uma nova onda de ansiedade de separação e o medo explícito de castração pode ser substituído pelo medo de morte. Durante este período o sintoma da insônia ocorre mais frequentemente do que se pensa (BORNSTEIN, 2001, p. 2).

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No segundo momento da latência, para Bornstein (1951), o ego não possui tantos

conflitos emergentes devido ao enfraquecimento das demandas sexuais e a uma diminuição da

rigidez do superego. Dessa forma, as crianças desenvolvem um maior apego à realidade

externa, pois os pais de agora não parecem ser tão onipotentes e poderosos como outrora.

Nesta etapa do desenvolvimento, a criança está menos consciente do seu

sofrimento, porque, diferentemente das crianças do primeiro período, as suas defesas estão

mais consolidadas. Logo, a criança está mais voltada a solucionar os problemas oriundos da

realidade externa, da qual recebe mais gratificações.

Sobre os dois períodos da latência Bornstein (1951) ressalta que, em ambos os

períodos, as crianças têm como principal tarefa evitar as fantasias incestuosas e as tentações

masturbatórias. Elas lutam, incessantemente, contra o aparecimento de impulsos instintivos,

tendo como conseqüência disso uma amnésia parcial dessa etapa de suas vidas.

Ao final do artigo Berta Bornstein faz uma importante reflexão a respeito do

período de latência. Segundo ela, todas as crianças na latência, não somente as neuróticas,

usam suas energias livres para o desenvolvimento do caráter. E afirma que, durante a latência,

torna-se particularmente importante não interferir na formação saudável do caráter.

Dois anos depois do primeiro artigo, escreve e apresenta um outro artigo

intitulado “Masturbação no período de latência”. Nesse artigo discute, mais detalhadamente,

as características da masturbação ao longo do período de latência e as características

referentes a primeira e a segunda fases da latência.

Na primeira fase da latência, a criança trava uma luta interna contra os impulsos

genitais e contra os pré-genitais. O ego permanece consciente dos impulsos que vão surgindo,

ao mesmo tempo em que é ameaçado por um superego violento e rígido. O mundo interno da

criança encontra-se desordenado e com uma ambivalência aumentada. Neste momento

surgem dificuldades de comportamento e uma nova formação de sintomas neuróticos. Pode-se

perceber que a latência inicial, como denomina Berta Bornstein (1953), é um momento de

intensos conflitos, principalmente, os relacionados à masturbação.

Por outro lado, no segundo momento da latência, Bornstein afirma que pouco se

sabe sobre a gratificação completa ou incompleta da masturbação, principalmente, porque elas

reprimem e negam o escape ocasional da masturbação. Seu ego está mais equipado para lidar

com os impulsos instintivos e se sentem repugnadas ao contar detalhes da sua vida sexual na

análise. Nas palavras da autora: A maturação psíquica ajuda a criança durante o segundo período da latência. O ego está exposto a conflitos menos graves, por um lado, porque o superego se tornou menos rígido. Os fatos de que a criança está mais orientada para o mundo externo,

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que tem mais gratificações na realidade e, por último, porém não menos importante, que, nesta hora a energia sexual pode ser defletida com sucesso dos objetivos pré-genitais e ser utilizada para sublimação, parecem explicar a redução dos conflitos em torno da masturbação (BORNSTEIN, 2001, p. 3).

Através de seu trabalho clínico com crianças na latência, Berta Bornstein

constatou que quanto menos grave a neurose, menos distorcidas são as atividades

masturbatórias e menos paralisantes são os sentimentos de culpa conseqüentes.

A autora enfatiza a existência de uma masturbação normal ao longo de todo o

desenvolvimento infantil e ressalta a importância de uma atitude adequada dos pais frente a

isso. Na latência, um paradoxo é evidente: a criança, às vezes, se masturba, entretanto, tenta conscientemente impedir o escape, mas sem se preocupar com o empenho. Devem se manifestar alguns leves laivos de culpa que, na puberdade, são encarados como conhecimento introspectivo benigno da inexorabilidade da vida instintiva (BORNSTEIN, 2001, p. 7).

Os estudos de Berta Bornstein acerca do período de latência auxiliam nesse

momento de pesquisa e reflexão sobre esta etapa do desenvolvimento infantil. A divisão da

latência, proposta por ela nos dois artigos, contribuiu para um maior entendimento da

dinâmica psíquica das crianças que fizeram parte de minha pesquisa. Estes artigos de Berta

Bornstein são de grande valor para quem se propõe estudar o período de latência, tendo em

vista o pequeno número de publicações dedicadas sobre o tema.

1.7 Reflexões sobre o período de latência hoje: novas perspectivas

Ao longo do levantamento bibliográfico, deparei-me com um pequeno número de

pesquisas científicas, livros e artigos que tratavam especificamente sobre o período de

latência. Existem inúmeras pesquisas com crianças em idade escolar que apresentam

dificuldades de aprendizagem, contudo, essas pesquisas não têm como foco principal a

discussão sobre a latência. Ester Sandler, Lígia Mattos e Paulo Sandler (2000, p. 56-57) no

artigo “Latência?” afirmam: [...] pensamos que não se pode mais deixar de lado o estudo e a investigação do fenômeno latência, tão pouco abordado em discussões científicas e na literatura; constamos que outros assuntos, aparentemente mais atraentes, mobilizam muito mais o interesse dos colegas, embora seguramente haja muito mais latentes do que autistas na face da terra e nos consultórios de psicanálise e de psicoterapia.

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É importante ressaltar que alguns trabalhos pesquisados tinham como tema

principal a questão da técnica utilizada na análise de crianças na latência. No entanto,

investigar e discutir a questão da técnica utilizada na análise de crianças latentes não é um dos

objetivos deste trabalho.

Ester Sandler, Lígia Mattos e Paulo Sandler (,2000), no artigo citado acima,

destacam a importância do período de latência no processo de inserção do indivíduo na

psicologia do grupo.

Sobre as questões relacionadas à influência das mudanças culturais no psiquismo

infantil, foi encontrado um artigo apresentado no congresso da Fepal em 2002. Nesse

trabalho, a psicanalista Vera Maria de Mello se propõe refletir sobre as alterações que vêm

sendo observadas no período de latência e as conseqüências dessas alterações na estruturação

psíquica das crianças, ressaltando a importância da cultura nesse processo. A cultura do prazer instantâneo é algo presente; há como que uma necessidade de gratificação rápida, sem postergação. Isto nos faz lembrar que vimos observando, na clínica, uma menor demarcação no período de latência. Talvez como uma radiografia do que ocorre em nível social – a cultura do prazer instantâneo – podemos pensar que, em nível psíquico, há uma similaridade de processos (MELLO, 2000, p. 3)

A autora acredita que o período de latência pode ser considerado um período

essencial no desenvolvimento do indivíduo, pois é o momento em que se dá o processo pleno

de simbolização, havendo uma organização, ampliação e diferenciação do psiquismo

possibilitando um melhor trâmite do pulsional. Ela sugere que a erotização precoce na

infância influencia diretamente a latência, causando entraves no desenvolvimento normal

deste período.

Em sua opinião, o que acontece é uma sobrecarga de estímulos que não têm

possibilidades de descarga pulsional, proporcionando, dessa forma, uma excitação contínua

no psiquismo da criança. A autora questiona que conseqüências teriam essa sobrecarga de

estímulos no psiquismo infantil. Sobre esses estímulos escreve: Hoje vemos o imaginário infantil, povoado de loiras do Tchan e Tiazinha, modelos aos quais as meninas procuram imitar, utilizando roupas, cabelos e gestos. Atualmente, em nossa cultura, as brincadeiras e jogos de roda, estão sendo substituídos gradativamente por concursos entre as crianças de quem consegue reproduzir, com maior qualidade, os movimentos contorcionistas, praticados por esses personagens, semelhantes a acrobacias sexuais [...]. Podemos observar que, aparentemente, nesses modelos há um apelo à sexualidade genital, no entanto, o que se dá é uma sobre-estimulação à sexualidade anal. As ‘bundinhas’ são destacadas, tanto na coreografia, como na linguagem verbal, os aspectos sádicos anais estão em evidencia. Na latência, por vezes, a sexualidade anal é ativada, em função de perigosas fantasias sexuais edípicas. Que se daria então no psiquismo infantil se, associada a isto houvesse uma superestimulação à sexualidade anal, aos impulsos sadomasoquistas? (MELLO, 2000, p. 6)

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Com base na afirmação acima a autora levanta algumas hipóteses. Para ela, a

super-estimulação da sexualidade anal estaria dificultando a utilização de um dos principais

mecanismos de defesa da latência – a repressão. Desse modo, as crianças estariam pulando o

período de latência, destinado à elaboração de processos mentais mais sofisticados, e,

conseqüentemente, substituindo o pensamento pela atuação, somatização, ou utilizando outros

tipos de descarga.

Para explicar esse processo de saturação da mente infantil, a autora recorre

primeiramente a Freud (1905) quando este afirma que, se uma quantidade de excitação supera

o limite da tolerância psíquica, o aparelho psíquico se desorganiza, não havendo elaboração

dessa quantidade de energia, ocasionando uma ruptura do processo de pensamento, o que

pode causar graves patologias. Em seguida, a autora cita a Teoria do Pensamento e do

Conhecimento de Bion (1962), na qual este afirma que, se uma experiência emocional não é

processada para formar representações simbólicas que possam ser utilizadas para o pensar e o

sonhar, será necessário evacuá-las, pondo para fora o excesso de estímulos que estaria

sobrecarregando a mente.

Ao longo deste artigo Vera Maria de Mello nos convoca a refletir sobre as

mudanças sociais e culturais que estão ocorrendo na sociedade e sua inter-relação com o

psiquismo infantil. Ela usa esse texto como disparador de perguntas e inquietações. Perguntas

para as quais ainda não temos respostas. Fica, então, um convite implícito para que mais

pesquisas, debates e reflexões sejam feitos.

Durante o levantamento bibliográfico, foi encontrado apenas uma tese de

doutorado que tinha como tema principal o período de latência. A tese intitulada “Da infância

para o mundo adulto” foi defendida em 1989 por Claudete Ribeiro na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo. Neste trabalho, a pesquisadora estuda o período de latência como um

período de transição entre a infância e o mundo adulto. Ela busca compreender essa etapa do

desenvolvimento, utilizando as teorias de Freud e de Erik Erikson acerca do desenvolvimento

infantil. Sobre a importância de sua pesquisa a autora escreve: Justificamos a execução desta proposta a partir da nossa necessidade prática, visto que um grande número de atendimentos em psicologia clínica ocorre com crianças que vivem a latência. Outro motivo é a insuficiência de estudos realizados com descrições mais precisas sobre amostras específicas, oferecendo informações sobre este momento evolutivo para o atendimento da criança (RIBEIRO, 1989, p. 8).

Em o seu percurso teórico duas perguntas nortearam o trabalho: O que é latência?

Quais são as características básicas deste período?

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Na tentativa de responder a estas perguntas, a pesquisadora fez um estudo com

212 crianças de oito a onze anos de baixa renda, estudantes de uma escola estadual da

periferia da cidade de Assis, interior de São Paulo. Para coletar os dados da pesquisa, a autora

utilizou duas técnicas – o Bender e a Investigação Psicológica da Percepção.

No primeiro capítulo, Claudete Ribeiro (1989) faz uma revisão da literatura,

focalizando a latência dentro processo evolutivo. Retoma o conceito freudiano de latência e

apresenta as idéias de Erik Erikson sobre o desenvolvimento humano, dando maior ênfase ao

período de latência.

Os problemas e objetivos são apresentados no capítulo dois. A autora busca

através do material coletado compreender e explicar, de acordo com o referencial teórico

escolhido, quais são os aspectos que definem essa etapa do desenvolvimento humano. Ela

observa que, durante o período de latência, é comum a criança vivenciar uma série de

transtornos emocionais que surgem em decorrência de uma evolução emocional inadequada.

Através da análise dos dados obtidos, Claudete Ribeiro (1989) conclui que

vivenciar a latência na condição de escolar carente e de periferia não favorece a

ultrapassagem de estágios anteriores à latência. Foi detectado que as crianças analisadas se

relacionam com as figuras paternas de forma muito distante ou, praticamente, essa relação é

inexistente. Um outro aspecto que veio à tona foi o ambiente familiar desses estudantes ser

constituído predominantemente por pais separados, ausentes ou distantes.

A pesquisadora observou também que a maioria das crianças vive o período

produtivo de “indústria” de forma muito comprometida, e conseqüentemente, não elabora de

forma satisfatória o período edípico. Ela ressalta que o processo de transição da infância para

o mundo adulto, vivenciado por esses escolares, encontra-se perturbado.

A psicanalista Sônia Carneiro Leão, em seu artigo “O período de latência e as

atividades sociais da criança”, aborda a latência sob um outro ponto de vista – o do

narcisismo. Ela deixa de lado o caminho usualmente percorrido, as fases do desenvolvimento

psicossexual, e escolhe o narcisismo como ponto de partida para a sua reflexão. Quero supor que a latência é a idade em que realmente o desejo de torna possível e efetivado. Desejar é perceber-se em falta, é bom lembrarmos, e a entrada na latência significa que o sujeito pode aceitar-se enquanto definitivamente incompleto, enquanto irremediável separado do seu objeto primordial, e que terá que buscar, pelas vias do desejo, da metonímia, da substituição esse projeto perdido. É justamente por esse motivo que na latência intensificam-se as atividades intelectuais, lúdicas, etc. (LEÃO, 1996, p. 71).

Esta autora, diferentemente de outros psicanalistas, afirma que na latência não

existe um entorpecimento da vontade. Ao contrário, a criança está à procura de suas próprias

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coordenadas, buscando a satisfação por outras vias que não as do objeto. O prazer é

perseguido, entretanto, o fim não é mais sexual, e sim cultural. Sônia Leão sugere que, na

latência, tudo o que não existe é a latência do desejo, mas a sua operação incessante. Acredito, porém, que a latência seja a fase em que a criança consegue realmente conviver com a falta e que passa para o espaço social – relações com o outro. É um período muito difícil de ser elaborado e, não é à toa que comparecem com tanta freqüência aos consultórios médicos e psicológicos crianças com comportamentos típicos de fases anteriores à latência, mostrando com isso a dificuldade que enfrentam em resolver a grande virada da vida que se dá com a elaboração do Complexo de Édipo (LEÃO, 1996, p. 579-580).

O artigo é concluído enfatizando a importância da fantasia tanto na vida da

criança latente como na vida adulta. A autora ressalta que na latência sonho e realidade

caminham juntos, destacando, também, a importância da sublimação e da recuperação do

objeto na fantasia para que ocorra a entrada da criança na adolescência. Concluindo, eu gostaria de sugerir que é importante pensar sobre o período de latência não somente como um período de pausa e repressão, mas também, como um período de desenvolvimento muito importante. A noção de pausa ou repressão, de defesas contra a sexualidade, pode ser útil para entender os problemas da criança latente neurótica, mas não para a criança latente saudável, nem para a borderline. (LEÃO, 1996, p. 580).

Em um artigo apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, o

psicanalista italiano Paulo Carignani aborda o período de latência sob um ponto de vista

inovador. Ele considera o período de latência como um importante momento no

desenvolvimento do indivíduo. Segundo ele, esse período tem um papel decisivo na

constituição da identidade individual e na integração do indivíduo no contexto de sua geração.

Em suas reflexões iniciais, Carignani (2000, p. 2) diz: Se o desenvolvimento da criança prevê um período de repressão e de particular apego à realidade, em prejuízo das fantasias mais livres da infância, deve haver certamente bons motivos para que isto ocorra, e nós deveríamos antes nos perguntar que função desenvolve semelhante período de vida num crescimento harmônico da criança.

Para Paulo Carignani (2000), a visão da latência como um período de construção

de sólidas defesas, que acabam empobrecendo a vida imaginativa e de fantasia da criança, foi

a que mais prevaleceu no campo psicanalítico. Ele relata que a passagem da primeira infância

para o período de latência constitui um momento de intensa transformação tanto no âmbito do

pensamento como no âmbito do comportamento social da criança.

Este psicanalista propõe ao longo do artigo uma nova forma de compreender o

período de latência. Para ele, por exemplo, a atividade de colecionar objetos como selos ou

moedas, tão característico desse período, pode ser entendida não apenas como um processo

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defensivo, mas também como uma nova forma da criança organizar sua relação consigo

mesma e com a realidade. Nas palavras de Carignani (2000, p. 4): Estes são os anos em que as capacidades de discriminação e distinção da criança alcançam os pontos máximos de crescimento, e também são os anos em que ela constrói e desenvolve seus principais modelos de aprendizagem. A realidade é catalogada, organizada, sistematizada, de modo que possa ser tornada compreensível e gerenciável com os novos instrumentos cognoscitivos à disposição da criança. Este processo, então, não pode ser mais explicado, segundo o modelo de Freud, de Anna Freud ou de M. Klein, como um sistema defensivo voltado para as pulsões do passado, mas deve ser pensado como um processo evolutivo aberto para o futuro.

A interpretação da latência como idade voltada para o futuro tem suas bases nas

hipóteses do psicanalista Armando Ferrari. Este parte do pressuposto que nem a mãe nem o

seio materno é o principal objeto psíquico da criança, mas sim o conjunto de sensações e

percepções provenientes do interior do seu corpo. Para Ferrari3 (1998 apud CARIGNANI,

2000), a latência não está restrita a um momento no qual tem fim a constelação edipiana; o

período de latência é um momento do desenvolvimento em que começa uma notável busca

pela identidade. Agora os pais não são mais o mundo da criança, mas fazem parte do seu mundo. Progressivamente, o Eu da criança se torna cada vez mais artífice e edificador de seus processos de conhecimento, e a busca de sua própria identidade se torna o impulso maior na afirmação de si própria. Assim, enquanto a relação vertical vai se transformando com as mudanças corpóreas e as novas capacidades de percebê-las e de tolerá-las emocionalmente, a capacidade de relações horizontais vai se ampliando, e a criança introduz em seu universo relacional um número de pessoas cada vez maior (CARIGNANI, 2000, p. 5).

Essa necessidade do latente de introduzir um número maior de pessoas em seu

universo de relações muda a forma da criança de se relacionar com mundo. Assim, o

sentimento de pertencer a um grupo vai substituindo o sentimento de possuir o mundo. A

família que, antes preenchia completamente o cenário das fantasias infantis, vai

progressivamente deixando mais espaço para a relação com os coetâneos. Segundo Carignani

(2000), a raiz do sentimento de pertencer a uma geração está intrinsecamente relacionada a

essa primeira tentativa do latente de pertencer a um grupo de coetâneos. No confronto com os

membros desse grupo, o latente vai descobrindo os contornos de sua própria identidade.

Uma outra teoria defendida por este psicanalista italiano é que a latência discutida

nessa fase do desenvolvimento infantil não é apenas uma latência sexual, mas também uma

latência relacionada ao inteiro impulso vital da criança, sobretudo àqueles de sensações

corpóreas. O movimento de reter esses impulsos é, segundo Carignani, uma tentativa de

constituição da própria identidade e pode ser percebido na forma como a criança se relaciona

3Este trabalho de Armando Ferrari ainda não se encontra traduzido para o português.

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com o mundo e consigo mesma. Exemplos disso são: momentos de silêncio, timidez, busca

pela solidão, entre outros. Sobre este tema, ele propõe a seguinte reflexão: A idade de latência está bem longe de ser uma idade desprovida de pressões pulsionais, de turbulências emocionais, de agitações interiores. São as formas como estes impulsos criativos se exprimem que são diferentes, e são adequadas a uma idade de transição, a um período de preparação. Se esta preparação ocorrer de maneira suficientemente organizada e elástica, o impacto com a adolescência será violento mas tolerável; se, ao contrário, houver um excesso de organização ou um excesso de elasticidade, o jovem encontrará dificuldade em gerir a turbulência da adolescência. Os anos preciosos da latência servirão então para fornecer uma preparação adequada para acolher uma revolução física, psíquica e hormonal sem comparação, para qual, de qualquer modo, não se poderá chegar realmente preparado, uma vez que a surpresa e a desorientação são as condições inevitáveis da explosão da adolescência (CARIGNANI, 2000, p. 12).

As idéias propostas por Carignani são de fundamental importância para a tessitura

desta dissertação, principalmente, quando afirma que a latência é um período essencial na

construção da identidade humana e no sentimento de pertencer a uma geração. Outro aspecto

relevante é o valor que este período exerce como fase de preparação para a adolescência.

Assim, a latência passa ser vista não apenas como um momento de calmaria devido a intensos

mecanismos de defesa, mas, principalmente, como um momento de intensa elaboração

psíquica, de muitas mudanças na forma da criança se relacionar com o mundo e consigo

mesma. Através de seus estudos e análises Carignani ampliou o olhar sobre o período de

latência.

Na discussão realizada acerca dos novos estudos referentes ao período de latência,

até o momento, foram utilizados artigos publicados em revistas ou encontros científicos e uma

tese de doutorado. Como é possível verificar, praticamente não existem livros que tratem

especificamente sobre o tema da latência. Ao longo da minha pesquisa bibliográfica, deparei-

me apenas com um livro que trata especificamente sobre o assunto abordado.

O livro foi publicado nos Estados Unidos em 1987 e no Brasil em 1995. O autor

Charles Sarnoff fez um extenso estudo sobre o período de latência e as características da

psicoterapia nesta fase do desenvolvimento infantil. No início do primeiro capítulo, o autor

faz uma ressalva ao pequeno número de pesquisas dedicadas à latência. Embora a criança no período de latência contribua com a porção maior às listas de casos clínicos e de profissionais particulares que fazem terapia infantil, pouco no que se refere à observação ou pesquisa dos aspectos mais refinados do desenvolvimento da criança em latência, foi tentado ou publicado. Em programas educacionais psiquiátricos, tempo insuficiente foi dedicado à palestras sobre latência. Os acontecimentos da latência, com freqüência, eram abordados com idéias preconcebidas baseadas na experiência com outras idades. A latência, um período que a observação direta mostrou ser um caldeirão fervente de ocorrências em termos de desenvolvimento, foi encarada como um deserto, suas características consideradas nada mais do que padrões e sombras, projetadas de outras zonas de desenvolvimento (SARNOFF, 1995, p. 23-24).

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O período de latência, segundo Sarnoff (1995), esteve latente durante quarenta

anos. Após este tempo, psiquiatras e psicólogos começaram a estudar, ainda que de forma

tímida, essa etapa do desenvolvimento.

Este pesquisador apresenta duas definições de latência: latência como uma faixa

etária e latência como um estado psicológico. A primeira é definida como o período que vai

dos seis aos doze anos de idade. Contudo, o conceito de latência como um estado psicológico

é mais amplo. Esta última definição é utilizada para descrever a latência como um período de

defesas dinâmicas, no qual a criança vai vivenciar uma complexa reorganização da estrutura

defensiva do ego. Nesse momento do desenvolvimento, a docilidade, o bom comportamento,

a calma tornam-se características preponderantes advindas de um equilíbrio entre as defesas e

as tensões. Acrescenta que esse estado de latência não é obrigatório, ou seja, encontra-se

facultativamente presente relacionando-se à cultura na qual vive o indivíduo.

Ainda sobre o estado de latência, Sarnoff propõe algumas considerações que

podem servir como importante fonte de reflexão no decorrer desta pesquisa: As defesas que auxiliam a produzir o estado de latência podem ser esmagadas, caso os impulsos da criança sejam fortemente estimulados por comportamento sedutor, seja de forma direta, seja de uma forma que estimule a ativação simpática dos impulsos. Para que essas defesas possam manter imperturbado o estado de latência, é providenciada uma garantia que preserve suas funções, diante das seduções e traumas (SARNOFF, 1995, p. 26).

Para explicar porque essas defesas podem ser esmagadas, caso os impulsos sejam

estimulados, Sarnoff recorre à obra de Freud e faz um minucioso estudo sobre os momentos

em que este último discute a questão da latência. Assim, o autor volta aos textos freudianos e

analisa cada passagem que se refere à discussão sobre o período de latência.

Sarnoff aponta divergências existentes ao longo da obra de Freud. Em alguns

textos, Freud (1905, 1923, 1926,1935) considera a latência como uma fase pré-ordenada, ou

seja, que possui uma herança fisiológico-hereditária. Segundo este entendimento, quando a

criança chega à idade de seis anos mais ou menos os impulsos sexuais diminuem de

intensidade e são dominados por algumas defesas, como: a repressão, a formação reativa e a

sublimação. Uma outra possibilidade apresentada por Freud (1915, 1924, 1925) é o fato da

latência ser culturalmente influenciada.

Através da análise e do estudo de casos clínicos com crianças que sofreram abuso

sexual em idade de latência, Sarnoff (1995, p. 42) afirma: Em crianças assim, não ocorre a diminuição da premência do impulso sexual. Daí que as mudanças que ocorrem na latência não podem ser explicadas em termos de uma diminuição nas energias sexuais, mas mais em termos de uma mudança na forma pela qual elas são descarregadas. Os impulsos na latência podem ser incitados

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à atividade a qualquer hora, através de sedução ou estimulação simpática. A regressão que ocorre diante de ênfases edipianas resulta na substituição de impulsos fálicos por impulsos sádico-anais, que são depois combatidos pelos mecanismos de defesa emergentes que tipificam o caráter da criança na latência. Trata-se da sublimação, formação reativa, fantasia, regressão e repressão.

A partir dessas considerações, este autor abre um extenso espaço para reflexões.

Sua hipótese é de que os impulsos sexuais podem vir à tona, a qualquer momento, durante a

latência, precisando apenas que a criança seja seduzida ou que haja uma estimulação

simpática dos impulsos. Dessa afirmação, pode-se deduzir que algo externo à criança vem

abalar o desenvolvimento de uma latência normal.

O desenvolvimento da latência, para este estudioso, é fortemente influenciado

pela sociedade. Para corroborar sua hipótese, refere-se a algumas pesquisas desenvolvidas por

Malinowski (1962), famoso antropólogo, que estuda sociedades e culturas primitivas nas

quais não existe um período de latência tal como se conhece.

A sublimação é um importante mecanismo de defesa que se consolida durante o

período de latência. Sarnoff explica que, para saber se a sublimação se manterá eficaz nos

anos seguintes, é de suma importância observar se a criança em idade de latência tem

capacidade para produzir “estados de latência”. Estes são períodos de calma e educabilidade

associados a uma sexualidade pouco profunda, ou seja, é um cenário perfeito para que a

criança possa crescer e se desenvolver de acordo com os ideais educativos de sua cultura.

Sarnoff (1985, p. 86) esclarece: Basicamente, estados de latência são induzidos, quando os mecanismos de repressão da latência são dirigidos para controlar atividades e fantasias sádico-anais. As últimas são ativadas nesta circunstância, por regressões defensivas, como resposta aos perigos das fantasias edipianas. Se a estimulação intensificar fantasias sexuais edipianas, de modo que elas ameacem no sentido de dominar essas defesas regressivas, a estrutura de latência serve como uma válvula de segurança psicológica, propiciando um caminho independente para a descarga dissimulada de impulsos sexuais agressivos. Conseqüentemente, a criança capaz de produzir estados de latência, é capaz de ajustar-se com flexibilidade a todas as maneiras de estresses variáveis.

Esse autor diferencia duas estruturas presentes no ego da criança em latência – os

mecanismos de repressão e a estrutura de latência – distinguindo esta fase de qualquer outro

período do desenvolvimento. Elas possuem duas funções: ajudam a produzir e a manter

estados de latência, e, no período pós-latência, formam estruturas de personalidade que são

parte do caráter. Os mecanismos de repressão darão forma ao superego e ao controle dos

instintos, e a estrutura de latência passará a ser o centro da habilidade do ego para o

planejamento futuro. “O estado de latência é, em si, um estágio do desenvolvimento cuja

negociação correta é necessária para o estabelecimento de aspectos socialmente orientados do

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superego e do fenômeno grupal conhecido como participação na cultura” (SARNOFF, 1985,

p. 27).

Se essas estruturas fracassam em se desenvolver ou funcionam precariamente,

começam a surgir os sintomas neuróticos, o comportamento impulsivo, o desafiar. Os

sintomas podem ser transitórios, mas é de fundamental importância que não sejam

desvalorizados, pois um bom desenvolvimento do período de latência pode ser de grande

importância para que a criança, na medida do possível, chegue preparada para enfrentar o mar

agitado da adolescência.

Para falar sobre a sexualidade na latência, Sarnoff retoma o caminho percorrido

pela sexualidade do nascimento até a adolescência. Assim, salienta que o impulso sexual na

atividade auto-erótica é descarregado através do uso de uma função não-sexual do corpo, por

exemplo, o comer, executado por um órgão também não-sexual – a boca. Nos anos

posteriores, manipulações de partes do corpo e da pele eram utilizadas na tentativa de recriar

aquela experiência prazerosa, utilizando partes do próprio corpo para a satisfação dos

impulsos. Durante os anos de latência, a função simbolizadora é estimulada e assume a

primazia tal qual um órgão de descarga sexual.

As idéias e hipóteses propostas por Sarnoff foram de grande importância para um

maior entendimento da dinâmica psíquica presente no período de latência. Tendo em vista o

pequeno número de obras que se dedicam ao período de latência, o seu livro é uma

contribuição de grande relevância teórica, técnica e acadêmica. As idéias discutidas acima

são de grande valor para a tessitura desta pesquisa.

1.8 Sobre a puberdade e a adolescência: Considerações

Um dos objetivos deste trabalho é verificar se existem indícios de adolescência

precoce nas crianças latentes estudadas. Para tanto, se faz necessário conhecer as

características intrínsecas a esse momento do desenvolvimento humano. Acredito ser

importante começar este percurso expondo as diferenças entre puberdade e adolescência. De

acordo com Aberastury & Knobel (1971), Levisky (1998), Outeiral (2003) a puberdade é um

processo decorrente de transformações biológicas enquanto a adolescência é um processo

fundamentalmente psicossocial. Sendo a adolescência um processo psicossocial ela terá

diferentes particularidades de acordo com o ambiente social, econômico e cultural em que o

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adolescente vive. Esses autores apontam o início da puberdade por volta dos 10 ou 11 anos

de idade. Sobre o início da adolescência Outeiral (2003, p.3-4) faz uma importante

observação: Observo, por exemplo, nesses mais de 30 anos de trabalho com a adolescência, que ocorre um número cada vez maior de “adolescentes” antes mesmo do surgimento das características físicas da puberdade. Com freqüência, pensamos que há uma seqüência na qual a adolescência sucede (ou ao menos é concomitante) à puberdade. Mas, no cotidiano, constatamos, cada vez mais, que crianças de 7,8 ou 9 anos, com um corpo ainda infantil, adotam uma “postura adolescente”: em suas festas buscam criar um “clima”de pouca luz, não querem adultos na sala, dançam com sensualidade;enfim, nessa idade se mostram bastante mais precoces que seus irmãos mais velhos (ou a “outra geração”). Provavelmente, estimuladas pelo ambiente, estas crianças adolescem mais cedo, pois, como vimos, adolescência é um fenômeno fundamentalmente psicológico e social.

Essa constatação feita por Outeiral nos convida a pensar e a investigar essas

possíveis mudanças entre o fim da latência e o começo da adolescência. Não podemos

esquecer, como os próprios autores colocam, que a adolescência é um processo que terá

diferentes características de acordo com a cultura e o meio social e econômico em que vive o

adolescente. Dessa forma, é importante destacar que Outeiral faz uma observação a partir de

sua experiência clínica no Sul do Brasil. Dessa forma, vale a pena questionar se em outras

regiões do Brasil, como no Nordeste, por exemplo, poderia ser observada essa abreviação no

início da adolescência.

Apesar das diferenças regionais, existem elementos comuns a todo o processo do

adolescer. A adolescência é caracterizada como um período de transição da identidade infantil

para a identidade adulta. O jovem, nesse percurso em direção ao mundo adulto, passa por

intensas transformações e reestruturações no nível egóico, cognitivo, psíquico, corporal.

Aberastury e Knobel (1981) colocam que ao longo da adolescência o jovem precisa se

desfazer de aspectos infantis e elaborar “lutos” provenientes destas perdas. Dentre esses lutos

os autores destacam:

● Luto pelo corpo infantil perdido: uma série de transformações corporais

começam a acontecer. Surge um sentimento de impotência frente a essas

transformações que, ao mesmo tempo que são desejadas são, também, temidas.

● Luto pelo papel e identidades infantis: a criança vive perdas relacionadas a

sua condição infantil que será substituída por outros aspectos em cujos

alicerces estão a agressividade e os impulsos sexuais. A entrada na vida adulta

é temida e desejada. Temor frente ao novo, a novas responsabilidades, novos

objetos de amor.

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● Lutos pelos pais da infância: Os pais da infância eram perfeitos e idealizados.

No entanto, ao longo da adolescência o jovem vai descobrindo que seus

desejos e idéias são, muitas vezes, diferentes dos desejos e idéias dos seus pais.

Sente remorso e culpa por se ver diferente dos pais. Sente medo de perder o

amor dos pais, ao mesmo tempo, que precisa contestá-los para buscar a sua

identidade e se diferenciar deles.

● Luto pela bissexualidade infantil: Neste momento do desenvolvimento o

adolescente irá consolidar a sua identidade sexual que começa a se organizar

desde o nascimento. Freud (1905) postulou que todo ser humano porta

aspectos masculinos e femininos independente do sexo anatômico. Assim com

o desenvolvimento corporal, isto é, com surgimento dos caracteres

secundários, da primeira menarca, da ejaculação começa a se impor ao

adolescente a escolha por um objeto de amor fora do âmbito familiar.

Nesse momento de busca por novos objetos de amor, por novos modelos de

identificação, pela consolidação de uma sexualidade genital adulta o adolescente começa a se

afastar dos seus primeiros objetos de amor – os pais. O adolescente vai reviver de forma mais

intensa os conflitos relacionados ao complexo de Édipo. A intensidade da angústia vivenciada

pelo adolescente vai depender dos seus aspectos constitucionais e da sua história biográfica,

isto é, da qualidade de suas experiências infantis, das relações afetivas primárias, do meio em

que ele vive e do modo de resolução de suas relações triangulares.

O ego do adolescente encontra-se fragilizado, inundado por todos esses novos

sentimentos e sensações. Para defender-se desses sentimentos e angústias o ego adolescente

utiliza-se de mecanismos de defesa maníacos como a negação, a onipotência, cisão e

idealização, diferentemente, o ego da criança na latência tem a repressão, a sublimação e os

mecanismos obsessivos como principais mecanismos de defesa. Sobre esses sentimentos

característicos do processo do adolescer Levisky (1998, p. 95) afirma: O adolescente, ao ser tomado por esse turbilhão de transformações, passa a se sentir estranho. Não consegue compreender o que está acorrendo consigo. Impulsos sexuais e agressivos até então desconhecidos, chegam à sua percepção. A observação de si mesmo, o contato corpóreo com um companheiro, mesmo um simples roçar, causam sensações novas, prazerosas, mas temidas, tidas como proibidas. O sexo oposto começa a despertar interesse. Antes simples companheiros de brincadeiras que, com o início da adolescência, transformaram-se em parceiros de um jogo pueril, mas erotizado.

Esse autor ressalta também que no início da adolescência pode haver tanto uma

intensificação das defesas maníacas por parte do ego como uma tentativa de prolongar o

período de latência. O ego pode sofrer uma regressão defensiva diante das angústias

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emergentes dessas transformações abruptas e incontroláveis decorrentes das pressões

instituais agressivas, destrutivas e sexuais.

No período de latência, ego e superego se unem na busca de um objetivo comum

levando em consideração as exigências da realidade. No entanto, na adolescência, essa

harmonia entre ego e superego é rompida. A busca por uma identidade adulta, por novas

identificações, o abandono das antigas representações e identificações, a adaptação a um

grupo, tudo isso, provoca um desequilíbrio entre ego, superego e as exigências da realidade.

Muitos autores entre eles Outeiral (2003), Mello (2000), Carignani (2000),

Sarnoff (1985) discutem a importância de um bom desenvolvimento infantil durante o período

de latência para que e ego da criança se encontre fortalecido para enfrentar os conflitos

próprios da adolescência. Se houver uma abreviação da latência resultando em uma

adolescência precoce, ou, se o ego da criança na latência for inundado por estímulos externos

os quais ela não tem condições egóicas para elaborar, o processo normal da adolescência pode

ficar comprometido. Sobre essa questão Outeiral (2003, p. 104) afirma: [...] a excessiva exposição à sexualidade e ao erotismo genital a que são submetidas às crianças, numa forma que configura um abuso pela cultura; me refiro, por exemplo, aos meios de comunicação e a responsabilidade da família e da sociedade neste processo. A abreviação da latência resulta em dificuldades que repercutirão, é evidente, em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no desenvolvimento normal, tanto na área da conduta como nos processos afetivos e cognitivos.

Dessa forma, acredito ser importante estudar como se encontra a organização

psíquica da sexualidade em crianças que estejam no período de latência tendo em vista que,

para acontecer uma adolescência saudável e, consequentemente, uma entrada na vida adulta

mais harmônica, é necessário voltarmos nosso olhar não apenas para as fases iniciais do

desenvolvimento infantil.

Através dessas considerações foi possível perceber que o ego de um jovem na

adolescência tem características diferentes do ego de uma criança na latência. No entanto, não

são apenas diferenças egóicas, mas também do ponto de vista da dinâmica e da economia do

inconsciente.

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________________________________________________________

2.0 CAPITULO DOIS

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2.1 Sobre o Procedimento de Desenhos-Estórias: fundamentação teórica

O procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) foi idealizado, em 1972, por Walter

Trinca (1997) como meio de auxiliar a ampliação do conhecimento da dinâmica psíquica no

diagnóstico psicológico. É uma técnica de investigação clínica da personalidade, que tem por

base os desenhos livres e o emprego do recurso de contar estórias com finalidade de obter

informações sobre a personalidade dos sujeitos, em aspectos que não são facilmente

detectáveis pelas entrevistas psicológicas nos moldes tradicionais. O D-E tem sua

fundamentação baseada nas teorias e práticas da psicanálise, das técnicas projetivas e da

entrevista clínica.

Quando o Procedimento de Desenhos-Estórias foi desenvolvido, destinava-se a

sujeitos que estivessem entre os cinco e quinze anos de idade. Com o desenvolvimento de

trabalhos e pesquisas, foi possível expandir o uso desse procedimento a sujeitos de qualquer

faixa etária e de ambos os sexos. O Procedimento de Desenhos-Estórias tem seu uso

consolidado em todas as faixas etárias, podendo ser utilizado em sujeitos “normais”,

neuróticos, psicóticos, tanto para o conhecimento da dinâmica interna e focos de conflito,

quanto para auxiliar em um planejamento ou em uma intervenção terapêutica. Trinca (1997,

p. 23) esclarece ao afirmar que O procedimento de Desenhos-Estórias revela a particularidade de facilitar a expressão de aspectos inconscientes relacionados a pontos focais de angústias presentes em determinado momento ou em determinada situação de vida da pessoa. Muitas vezes, verifica-se na situação atual detectada pelo D-E uma reinscrição de angústias pregressas, que são indicadas por focos profundos fomentadores de perturbações. Nesse caso, a função principal do D-E não é realizar um inventário horizontal e extensivo da personalidade, e sim um exame vertical e intensivo de certos pontos nos quais se representam como fatos selecionados, os focos conflitivos e as situações emergentes.

O Procedimento de Desenhos-Estórias consiste na realização de uma série de

cinco desenhos-livres, sendo solicitado ao sujeito, após a realização de cada desenho, para

elaborar uma estória referente àquele desenho. A estória passa por uma fase de inquérito e

recebe um título. Os desenhos podem ser cromáticos ou não. Unidade de produção é o

conjunto formado pelo desenho livre, a estória, o inquérito e o título. Pretende-se conseguir

cinco unidades de produção em uma sessão de sessenta minutos e, caso isso não for possível,

deve-se recorrer a uma outra sessão, sendo avaliado o material obtido nas duas sessões.

O Procedimento de Desenhos-Estórias fundamenta-se, essencialmente, nas

seguintes proposições formuladas por Trinca (1997):

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• Ao completar ou estruturar uma situação incompleta ou sem

estruturação, o indivíduo pode revelar seus esforços, disposições,

conflitos e perturbações emocionais.

• Quando o indivíduo é posto em situações de associar livremente, essas

associações tendem a se voltar para setores nos quais a personalidade é

emocionalmente mais sensível.

• Frente a estímulos com pouca estruturação ou até mesmo incompletos,

ocorre uma tendência de o sujeito realizar uma organização pessoal de

respostas, desde que para isso tenha liberdade de composição.

• Quanto menos diretivo e estruturado for o estímulo, maior será a

probabilidade do aparecimento de material pessoal e significativo.

• No atendimento psicológico, crianças e adolescentes se comunicam

preferencialmente por desenhos e fantasias aperceptivas.

• Mesmo nos contatos inicias, havendo setting adequado, o indivíduo

pode comunicar aquilo que o levou a procurar ajuda.

Ao realizar determinadas seqüências em repetição de provas gráficas e temáticas,

ocorre um fator de ativação dos mecanismos e dinamismos da personalidade, levando à maior

profundidade e clareza. Trinca (1997) supõe que, na primeira unidade de produção do D-E, a

indicação a respeito dos temas conflitivos são vagas e gerais. Na segunda e terceira unidades

de produção, os temas anteriormente enunciados são melhor caracterizados. Nas unidades

seguintes, o conflito é aprofundado e realçado.

O Procedimento de Desenhos-Estórias não é um teste psicológico e sim uma

técnica de investigação da personalidade. Não se restringe a nenhuma configuração avaliativa

dada a priori. Privilegia a relação humana e os fenômenos resultantes do encontro entre

psicólogo e paciente. Trinca (1997, p. 37) faz a seguinte reflexão sobre esse procedimento: A liberdade concedida pelo espaço em branco do papel, a presença receptiva do psicólogo, a continência mental, a possibilidade do paciente se comunicar simbolicamente, a linguagem simples e direta, o uso de construções metafóricas, que se apóiam em metáforas de imagens, permitem abrir um espaço interior imenso. O mundo interior descobre um canal de comunicação pouquíssimo freqüentado pelos recursos habituais da mente. Contando com tais possibilidades, que o D-E oferece, o psicólogo vai em busca do caminho mais direto e eficaz para compreender o que o seu paciente tem a comunicar [...]

Desde sua criação em 1972 até os dias atuais, esse instrumento já passou por

várias ampliações e expansões, como o alargamento da faixa etária, citado anteriormente.

Com sua ampla utilização na clínica psicológica e o desenvolvimento de pesquisas científicas,

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o Procedimento de Desenhos-Estórias deixou de ser somente um meio auxiliar no processo

diagnóstico, para ser utilizado também na realização de um diagnóstico breve, de um

diagnóstico complementar, como forma de entrevista; follow up (acompanhamento e

seguimento de processos psíquicos); instrumento básico de pesquisa qualitativa; instrumento

auxiliar ao contato e à compreensão dos processos psicológicos; objeto de estudo com

finalidades de validação; instrumento para levantar características comuns de grupos

específicos; objeto de análise comparativa. O Procedimento de Desenhos-Estórias surgiu há vinte e cinco anos como resultado de pesquisa, cujo objetivo era verificar a validade de um novo instrumento de investigação clínica. A intenção do autor, nessa época, foi introduzir um instrumento de investigação clínica, destinando-se à apreensão de conteúdos mentais com objetivos diagnósticos. De modo surpreendente, o Procedimento de Desenhos-Estórias não permaneceu em seu percurso limitado à condição de instrumento de avaliação diagnóstica utilizado em consultórios. A simplicidade e a eficiência desse material conquistaram não só os profissionais de saúde, que tratam diretamente com pacientes de consultórios, ambulatórios, instituições etc., como atraíram, também, a atenção dos pesquisadores acadêmicos. Estes investiram maciçamente na utilização do Procedimento de Desenhos-Estórias para a condução de grande número de programas de pesquisas, nos níveis de mestrado e de doutorado. A sua introdução nas universidades trouxe à luz outras características inerentes ao instrumento. A clínica psicológica tem se beneficiado dos resultados advindos das pesquisas realizadas, numa realimentação saudável, em que se acumulam acréscimos importantes à compreensão do funcionamento mental (TRINCA, 1997, p. 47).

A escolha do Procedimento de Desenhos-Estórias justifica-se ao possibilitar fácil

e eficiente acesso ao material latente, proveniente do psiquismo infantil. Por ser de simples

aplicação e constituir-se de atividades que fazem parte do mundo infantil, o D-E é aceito com

facilidade pelas crianças. Além disso, esse instrumento, segundo pesquisa realizada por

Mázzaro (1982), propicia uma situação em que as defesas são desmobilizadas, favorecendo a

emergência de conteúdos inconscientes profundos.

2.2 Aplicação e avaliação

A técnica de aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias é simples.

Primeiramente se estabelece um bom rapport com o examinando. Em seguida, é entregue

uma folha de sulfite em branco e pede-se que ele faça um desenho. Ao término do desenho,

pede-se à criança que conte uma estória sobre aquele desenho. A estória contada é escrita em

uma folha avulsa. Concluída a estória, realiza-se um inquérito com propósito de esclarecer

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aspectos que parecem relevantes para a compreensão da sua dinâmica psíquica. Ao final,

pede-se ao examinando dar um título à estória.

O material utilizado para a aplicação consiste em: folhas de papel sulfite (em

branco) tamanho ofício; lápis preto n◦ 2; caixa de lápis de cor com 12 cores. A borracha deve

estar presente, porém só deve ser entregue ao examinando se este solicitar.

A avaliação dos Desenhos-Estórias consiste na análise e na interpretação das

unidades de produção. Trinca (1987) estabeleceu um referencial, composto por dez categorias

de análise correspondentes a áreas de fatores dinâmicos da personalidade. Essas áreas são:

I. Atitudes básicas: em relação a si próprio em relação ao mundo.

II. Figuras Significativas: figura materna, paterna, relacionamento entre as

figuras parentais, relacionamento do sujeito com as figuras parentais,

fraternas e outras.

III. Sentimentos Expressos: tristeza, alegria, culpa, abandono, raiva etc.

IV. Tendências e Desejos: necessidade de proteção, desejo de livrar-se de

danificações físicas ou psíquicas etc.

V. Impulsos: amorosos ou destrutivos.

VI. Ansiedades: paranóides ou depressivas.

VII. Mecanismos de defesa: cisão, negação, repressão etc.

VIII. Sintomas expressos: idéias delirantes, obsessivas etc.

IX. Simbolismos apresentados: símbolos de religião, folclore, mitos etc.

X. Outras áreas de experiência.

Para a interpretação das unidades de produção, o autor propôs que se considerasse

a seleção do essencial, as áreas conflitivas, a consideração do conjunto, a seqüência das

unidades de produção, a história clínica, os testes psicológicos, o diagnóstico psicológico, o

diagnóstico nosológico e a elaboração de uma descrição sumária.

Tardivo (1985) criou normas brasileiras para o uso desse instrumento em crianças

de cinco a oito anos de idade. Nesse estudo, a autora ampliou a forma de avaliação proposta,

inicialmente, por Trinca (1972). Ela dividiu os conteúdos em grupos, dispondo da seguinte

forma: Grupo I - relacionado às atitudes básicas; Grupo II - figuras significativas; Grupo III -

sentimentos expressos; Grupo IV - tendências e desejos; Grupo V - impulsos; Grupo VI -

ansiedades; e Grupo VII - mecanismos de defesa.

A partir também dos pressupostos de Lourenção Van Kolck (1984), Tardivo

(1985) estabeleceu uma análise dos aspectos formais e estruturais, que inclui o tema do

desenho, o tema da estória, o título, a posição da folha, a localização na página, o tamanho em

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relação à folha, a qualidade do grafismo, as resistências, as transparências, o sombreamento, a

perspectiva do movimento e o uso de cores. A autora (1997) ressalta ainda que esse

referencial deve ser utilizado não como um esquema rígido, mas como forma de facilitação da

análise.

Uma outra forma de avaliação do D-E é a livre inspeção do material que será

utilizada nesta pesquisa. Tardivo (1997, p. 129) explica que Essa forma de avaliação sustenta-se numa análise globalística. Ou seja, estabelece-se contato com o conjunto da produção (desenhos, estórias, associações, etc.), sendo levantados tópicos referentes à natureza dos impulsos, das ansiedades predominantes, dos vínculos significativos, das defesas mais utilizadas, dos conflitos subjacentes, entre outros aspectos. Na verdade, o psicólogo usa um ‘ referencial de análise’ introjetado, que é resultante de sua experiência e de seus conhecimentos de Psicologia e Psicanálise [...] tal forma de avaliação apóia-se no método clínico, tendo sido empregada em muitas pesquisas realizadas com o D-E.

A escolha pela livre inspeção do material se justifica na medida em que esta forma

de avaliação atende aos objetivos desta pesquisa.

2.3 Algumas pesquisas realizadas com o Procedimento de Desenhos-Estórias

Com o objetivo de sistematização do Procedimento de Desenhos-Estórias, Trinca

(1976) estudou crianças entre cinco e quinze anos de ambos os sexos, que passaram por

clínicas particulares, públicas e universitárias da cidade de São Paulo, com queixas relativas a

problemas de personalidade. Para conseguir uma validação simultânea, ele realizou uma

comparação entre a produção dos sujeitos no D-E e a produção dos mesmos sujeitos no CAT-

A ou TAT. Esse trabalho demonstrou que o Procedimento de Desenhos-Estórias, além de

permitir um maior conhecimento da personalidade do sujeito em questão, é válido também

para obtenção de informação sobre os dinamismos da personalidade desajustada de crianças e

adolescentes. O procedimento de Desenhos-Estórias, portanto, fornece informações sobre os

pontos de conflitos básicos, mostrando-se útil e seguro para a exploração da dinâmica da

personalidade. Dessa forma, essa sistematização do Procedimento de Desenhos-Estórias abriu

porta para novas investigações, algumas das quais serão discutidas a seguir.

Foram vários os trabalhos que propiciaram a ampliação e expansão do

Procedimento de Desenhos-Estórias. Entretanto, para os fins desta pesquisa irei privilegiar os

trabalhos envolvendo crianças sem, contudo, deixar de citar algumas pesquisas com adultos e

adolescentes.

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Dentre os trabalhos realizado com adultos, Al’Osta (1984) estendeu o uso do

Procedimento de Desenhos-Estórias a psicóticos maníaco-depressivos e constatou que essa

técnica projetiva permite discriminar sujeitos normais daqueles que possuem diagnóstico

psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva. Fernandes (1988) estudou o psicodinamismo de

mulheres primigestas. Barbosa (1989) utilizou o D-E e outras técnicas psicológicas para

estudar os aspectos psíquicos das consequências da mastectomia por câncer de mama.

Mazzaro (1984) estudou por meio do D-E a personalidade de adolescentes homicidas. Castro

(1990) utilizou o D-E para realizar um estudo sobre a infertilidade feminina sem causa

aparente. Amarilan (1992) empregou o Procedimento de Desenhos-Estórias para estudar

aspectos psicodinâmicos de pessoas cegas. Esses são apenas alguns trabalhos dentre tantos

realizados com o Procedimento de Desesenhos-Estórias tendo como sujeitos tanto adultos

como adolescentes.

Gimenez (1983) utilizou-se do D-E para sistematizar o tipo de ansiedade

predominante em quadros clínicos de fobia escolar. Foram estudadas crianças de seis a onze

anos que, com queixa específica de não conseguirem permanecer na escola acometidas por

um intenso temor, procuraram consultórios particulares ou universitários. O Procedimento

mostrou-se de grande utilidade para classificação e apreensão da fobia escolar. A autora

verificou, segundo a ansiedade dominante, a existência de quatro classes de fobia escolar: a

fobia escolar por ansiedades edipianas, a fobia escolar por ansiedades depressivas e

paranóides, e a fobia escolar por ansiedades primárias.

Flores (1984) buscou uma maior compreensão dos conteúdos emocionais

presentes em trinta crianças terminais de três a dez anos de idade, utilizando o Procedimento

de Desenhos-Estórias. Sua pesquisa concluiu que o emprego do D-E permitiu um amplo

acesso ao estado emocional dessas crianças diante da situação de morte.

Migliavacca (1987) realizou uma pesquisa a fim de compreender as semelhanças

existentes entre o conteúdo proveniente dos desenhos-estórias e dos conteúdos dos sonhos.

Ela partiu da suposição de que o conteúdo do Procedimento de Desenhos-Estórias podia ser

analisado de acordo com a interpretação freudiana dos sonhos. Para realizar esse estudo,

foram analisados os desenhos-estórias de vinte sujeitos, de ambos os sexos que tivessem entre

seis e treze anos de idade. A pesquisa demonstrou que os conteúdos revelados nos desenhos-

estórias seja quanto ao significado, seja quanto aos mecanismos inconscientes de formação,

são semelhantes ao material que se revela por meio dos sonhos.

Mestriner (1989) estudou os psicodinamismos de crianças asmáticas com o

objetivo de diferenciá-los das crianças normais. Foram analisados dois grupos de meninos, de

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5 (cinco) a 10 (dez) anos, sendo que um grupo era formado por crianças portadoras de asma e

o outro por crianças não-portadoras. Constatou-se que as crianças asmáticas possuem o

mundo interno carregado de violência, impulsos agressivos e destrutivos, sendo esses

sentimentos dirigidos contra o próprio ego da criança e também contra o mundo externo,

como de oposição, briga, oralidade e, mais raramente, roubo e malandragem. Como

mecanismo de defesa, destacaram-se a projeção e o deslocamento, aparecendo também a

idealização, a divisão e, às vezes, a formação reativa. As crianças demonstraram uma intensa

ansiedade da separação em relação à mãe, e os desenhos e estórias indicaram alguns traços de

imaturidade.

Ana Maria Trinca (1987), em sua pesquisa de mestrado, buscou conhecer alguns

mecanismos psíquicos presentes em crianças que aguardavam cirurgia de porte médio. Para

isso, foram estudadas 15 (quinze) crianças de ambos os sexos. Ela utilizou o Procedimento de

Desenhos-Estórias e entrevista semi-dirigida com o acompanhante, além de observações

clínicas do sujeito. Foi constatado que a cirurgia aparece como fator de reativação de

mecanismos pregressos básicos; angústias evocadas aparecem, principalmente, pela situação

cirúrgica; são utilizados vários mecanismos de defesa; há o predomínio de forças de vida; a

cirurgia é vivenciada como punição e como realização de desejos de cura. Ocorrem fantasias

da criança relacionadas à sua doença física e, também, ao Procedimento D-E.

Em sua pesquisa de doutorado, Ana MariaTrinca (2002) buscou estudar como o

Procedimento de Desenhos-Estórias se porta como instrumento não apenas de investigação da

personalidade, mas também como instrumento de intermediação terapêutica na situação

específica de atendimento psicológico de crianças no período pré-cirúrgico. Foram

investigadas quinze crianças, sendo nove meninos e seis meninas de cirurgia marcada com

antecedência de até um mês. A autora observou que o D-E utilizado de modo terapêutico

permitiu a livre expressão do estado emocional das crianças. Além disso, as crianças puderam

elaborar seus conflitos e diminuir suas angústias no final do processo. Foi constatada também

uma possibilidade de reforçar as defesas do ego que se encontravam fragilizadas pela situação

pré-cirúrgica. O Procedimento D-E combinado a entrevistas e observações clínicas se

apresenta como um instrumento clinicamente válido, no atendimento de crianças na pré-

cirurgia, para a intermediação terapêutica breve.

Tardivo (1992) procurou estabelecer normas para a população paulistana relativas

aos testes projetivos CAT-A e Fábulas de Duss, comparando os resultados obtidos com o

Procedimento de Desenhos-Estórias, com base nas semelhanças e diferenças existentes.

Foram analisados 103 crianças com idade entre cinco e oito anos. Os resultados do estudo de

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Tardivo mostraram que o traço de insegurança foi o mais constante, aumentou com a idade e

foi maior nas meninas. Foram observados mais conflitos em relação à figura materna do que

em relação às figuras paternas e fraternas. Houve o predomínio de sentimentos construtivos e

ambivalentes sobre os destrutivos. Apareceram tendências mais regredidas de desejo de

atenção, cuidados e compreensão demonstrando uma certa dependência. As tendências

construtivas apareceram como meio de superar tal regressão e, juntamente com as tendências

regredidas, prevaleceram sobre as hostis. As meninas mostraram mais tendências destrutivas

quando comparadas aos meninos (exceto aos oito anos) e experimentaram mais tendências

paranóides do que depressivas. Os Mecanismos de Defesa também foram observados. Até os

sete anos as diferenças entre os sexos aumentaram com a idade, sendo que o desempenho

entre o sexos se aproximou aos oito anos.

Essa pesquisa preencheu uma grande lacuna no que diz respeito a como reagem as

crianças “normais” quando submetidas a técnicas projetivas, além de contribuir para um

maior aprofundamento das técnicas projetivas utilizadas no diagnóstico psicológico.

Em sua tese de livre docência, Tardivo (2004) utilizou o Procedimento de

Desenhos-Estórias com tema, na busca de entender o grande número de suicídios, tentativas

de suicídio e homicídios, que estavam acontecendo entre jovens indígenas aculturados na

cidade de São Gabriel da Cachoeira, do estado Amazonas.

A professora Leila Tardivo orienta e coordena, além de possuir várias artigos e

trabalhos publicados sobre o tema (TARDIVO, 1987, 1989, 1999, 2000, 2001, 2002 2003),

diversas pesquisas relacionadas com o Procedimento de Desenhos-Estórias. Esta pesquisa

vem se inserir nesse conjunto de trabalhos desenvolvidos por Tardivo. Dentre as pesquisas

orientadadas pela referida professora, destaca-se nesta pesquisa aquelas que utilizaram o

Procedimento de Desenhos-Estórias com crianças, tendo em vista sua pertinência com relação

ao presente estudo.

Kill (2002) utilizou o D-E com o objetivo de estudar as características do

funcionamento emocional de crianças pertencentes a famílias de baixa renda. Buscou também

ampliar a utilização do D-E para o atendimento a essa população além de desenvolver uma

relação entre a teoria de Winnicott e o instrumento utilizado. Ela aplicou o Pocedimento de

Desenhos-Estórias em dez crianças com faixa etária entre sete e nove anos. Kill concluiu que

as crianças utilizam mecanismos primitivos para lidar com a realidade. A análise das unidades

de produção revelou a presença elevada de atitudes de insegurança, traços de hostilidade,

sentimentos ambivalentes em relação às figuras parentais. A pesquisadora observou que a

maior parte dos sujeitos expressa hostilidade ou omissão e falta de continência por parte dos

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pais, prevalecendo sentimentos derivados do conflito e grande necessidade de suprir faltas

básicas de proteção, de ser cuidado e grande incidência de necessidades orais. As conclusões

do trabalho mostram que, por meio do Procedimentos de Desenhos-Estórias, as crianças são

capazes de expressar seus conflitos básicos e dificuldades encontradas nos diferentes contextos em que vivem.

Com o objetivo de estudar e retratar vivências emocionais de crianças recém-

abrigadas encaminhadas pelo Conselho Tutelar da criança e pela Justiça, Leôncio (2002)

realizou entrevista semi-estruturada e aplicou individualmente o Procedimento de Desenhos-

Estórias em 13 sujeitos abrigados entre 5 e 12 anos de idade, de ambos os sexos e de nível

sócio-econômico baixo. A partir da análise dos dados, Leôncio observou que a privação de

um bom ambiente está intimamente relacionada à situação de miséria e de multicarências em

que vivem as famílias das crianças. Concluiu que o abrigamento intensificou os problemas

emocionais das crianças por mobilizar sofrimento intenso relacionado às frustrações de seus

desejos de estarem com a sua família, além da angústia por estarem em um lugar estranho. A

separação da criança de tudo que lhe é familiar, segundo o pesqusador, intensificou os

sentimentos de desproteção, de desamparo, de solidão, de abandono e de rejeição. Assim

como Kill (2002), Leôncio observou que o Procedimento Desenhos-Estórias é realmente um

instrumento capaz de mobilizar as angústias e os conflitos existentes no mundo interno da

criança.

Nesse breve percurso por algumas pesquisas realizadas desde a idealização do

Procedimento de Desenhos-Estórias até os dias de hoje, podemos perceber que atualmente ele

é um instrumento amplamente utilizado tanto na clínica particular como em outras áreas de

atuação do psicólogo.

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3.0 CAPÍTULO TRÊS

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3.1 Objetivos e Justificativa

Esta pesquisa irá somar-se aos poucos trabalhos existentes sobre o período de

latência, mais especificamente à organização psíquica da sexualidade em crianças de nove

anos. Apesar da escassa quantidade de pesquisas científicas que abordam esse tema, é grande

o número de encaminhamentos de crianças latentes tanto para o consultório particular quanto

para o sistema público de saúde. Em pesquisa realizada por Wolf (1988), após investigações e levantamentos feitos com 956 prontuários do Centro de Psicologia Aplicada da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da UNESP, no período de 1978-81, a pesquisadora detectou que aproximadamente 30% da população que buscou o serviço de diagnóstico e atendimento encontra-se na faixa etária de oito à doze anos, são escolares, provenientes de um meio social economicamente carente, e que estão vivenciando o período de latência (RIBEIRO, 1989, p. 40).

Este estudo pode ser de utilidade para psicólogos e educadores que trabalham com

crianças pertencentes a essa faixa etária, já que me proponho investigar se o período de

latência nas crianças analisadas apresenta-se encurtado especialmente no que se refere à

organização psíquica da sexualidade. Ou seja, estaria a adolescência hoje começando mais

cedo, como está sendo discutido nos mais diferentes âmbitos da sociedade, ou não?

A erotização precoce das crianças tem sido tema recorrente nas discussões entre

profissionais da área de saúde, pais, professores, jornalistas. Acredito que ao investigar a

forma como a sexualidade dessas crianças de nove anos se apresenta, estarei contribuindo

também para esta discussão tão relevante e ainda pouco estudada cientificamente.

Embora permanecido por algum tempo “esquecido” pelos estudiosos, o período

de latência é de fundamental importância na construção da identidade infantil. É nesse

momento do desenvolvimento que a criança irá se inserir definitivamente em sua cultura.

Há psicólogos e psicanalistas que estão retomando os estudos e pesquisas sobre

esse período. De acordo com o que foi visto no primeiro capítulo, tais estudiosos têm

demonstrado que a latência não é apenas um período em que as pulsões sexuais encontram-se

mais adormecidas, mas também um momento de intensa elaboração e reorganização psíquica.

O presente estudo propõe como objetivos:

• Analisar, a partir do material obtido por meio do D-E, a erotização

precoce das crianças e sua capacidade simbólica; a solidez do ego para

lidar com as demandas pulsionais e a utilização do mecanismo da

repressão na intensidade própria ou característica da latência.

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• Verificar se no material clínico obtido existem indícios de uma

adolescência precoce.

• Contribuir para a área relacionada a pesquisas em psicologia do

desenvolvimento e sobre o Procedimento de Desenhos-Estórias

• Contribuir para a orientação na educação de crianças pertencentes a essa

faixa etária na medida em que este estudo destaca as características

intrínsecas a esse momento do desenvolvimento infantil.

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4.0 CAPITULO QUATRO

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4.1. Metodologia

4.1.1 A pesquisa qualitativa em psicanálise

É bastante discutida hoje a questão das pesquisas qualitativas que se afastam do

método positivista, principalmente, em relação à psicanálise, que tem como objeto de estudo o

inconsciente, havendo certo questionamento acerca da sua cientificidade. Isso se deve pelo

fato de que a psicologia, profundamente marcada pela dicotomia cartesiana, ao destacar-se da

filosofia, elegeu como objeto de estudo os estados da consciência.

A psicanálise surgiu no início do século XIX instaurando-se como um campo de

investigação e intervenção, propondo-se ser uma ciência do psíquico. Encontrava-se imersa

em um contexto positivista, que buscava um método que fundamentasse epistemologicamente

todas as ciências naturais e sociais, tentando unificar os critérios metodológicos como a

observação, experimentação e o raciocínio hipotético.

Pacheco Filho (2000, p. 237), ao escrever sobre a questão da cientificidade da

psicanálise, argumenta que Mantidas a Psicologia e a Psicanálise relativamente segregadas, a princípio observaram-se, principalmente a partir da metade do século XX, iniciativas de se estabelecer pontes de ligação ente esses dois campos. Elogiadas por alguns e criticadas por outros, essas aproximações trouxeram para ainda mais próximo do foco das discussões a questão da cientificidade da Psicanálise e o interesse pelo exame do seu método de investigação. Afinal, a cientificidade sempre foi um tema onipresente no interior da Psicologia, responsável pelos mais intensos debates e pelas mais acentuadas divergências. E, como também, nunca esteve ausente das preocupações e reflexões do próprio Freud, entrecruzamento com as querelas presentes na Psicologia só fez por acirrar as discussões e controvérsias a respeito da Psicanálise.

Não muito raramente, encontra-se hoje críticas de uma vertente positivista em

relações às pesquisas que fogem dessa tradição e são realizadas de forma qualitativa. Nesse

sentido, Pacheco Filho (1999) esclarece o fato de que, em psicanálise, a produtividade

encontra-se principalmente em pesquisas que tenham um alto nível de profundidade, duração

e detalhamento do estudo de cada caso analisado. Sobre isso, o autor declara: É certo que, à medida que seu trabalho se desenvolveu, o próprio aperfeiçoamento histórico e metodológico do paradigma mostrou cada vez mais claramente que a eficácia e a produtividade da pesquisa psicanalítica dependiam muito mais do nível de profundidade, tempo de duração e detalhamento do estudo de cada analisando, em contínua interação, com a reflexão teórica, do que, do número de indivíduos analisados: a análise exaustiva de poucos casos revelou-se inequivocadamente mais

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profícua do que pesquisas superficiais de grande número de indivíduos (PACHECO FILHO, 1999, p. 255).

Assim, com o surgimento da psicanálise, ocorre uma mudança significativa no

modelo S-O da ciência positivista. O novo modelo propõe a relação S-S, substituindo a

relação S-O. Silva (1993, p.17) afirma: A relação S-O substitui-se assim pela relação S-S, ou seja, entre dois sujeitos, cada um com uma parte consciente comunicando-se “oficialmente” com o consciente do outro, e uma parte inconsciente de cada um utilizando-se de seu estilo peculiar de interação, que passa despercebido. Trazer à tona esse nível submerso, essa intersubjetividade, e relacioná-la com o nível da superfície constitui o complexo e delicado trabalho da psicanálise. Então um clamor levanta-se: Isto ainda é ciência?.

Para Safra (2003), a psicanálise inaugura uma nova forma de fazer ciência,

deixando de lado a separação entre sujeito e objeto, os grupos de controle, a busca pelos

tratamentos estatísticos, para levar em consideração a participação do sujeito no fenômeno

que observa. Ele acrescenta, ainda, que a psicanálise é um campo que investiga o particular

para tentar compor modelos abrangentes do psiquismo humano.

Esta pesquisa situa-se no âmbito de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de

casos, realizada a partir do método clínico e permeada pelo referencial teórico psicanalítico.

4.1.2 O método clínico-qualitativo como guia

De acordo com Turato (2005), o método clínico de pesquisa é um refinamento,

uma particularização do método qualitativo genérico das Ciências Humanas. Na pesquisa

qualitativa, o interesse está mais no processo em como o fenômeno se apresenta do que nos

resultados ou produtos.

Turato (2005) propôs um esquema comparativo entre o método qualitativo e o

quantitativo. Será ressaltada aqui apenas as peculiaridades referentes ao método qualitativo.

Segundo ele, o estudo qualitativo não se restringe às hipóteses inicialmente levantadas, ao

contrário: parte-se de hipóteses abertas e livres para cada caso; as hipóteses vão se

modificando ao longo da pesquisa de acordo com a análise feita do conjunto dos casos, sendo

um trabalho de construção de significados. Os instrumentos utilizados são o pesquisador com

seus sentidos e sua subjetividade, a observação livre, entrevistas semi-dirigidas ou

complementares, coleta intencional em prontuários, testes projetivos e sessões terapêuticas. A

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amostragem é intencional, ou seja, ocorre uma busca proposital de indivíduos que vivenciam

o problema em foco e/ou têm conhecimento sobre ele.

O estudo de caso constitui-se em uma das formas mais relevantes de investigação

na abordagem clínico-qualitativa de pesquisa. Segundo Trivinos (1987), o estudo de caso é

uma categoria de pesquisa, cujo objeto é uma unidade analisada profundamente. Este tipo de

pesquisa é marcado pela participação do pesquisador no processo e pelos resultados do

estudo, exigindo maior severidade na objetivação, originalidade, coerência e consistência das

idéias. Em relação à possibilidade de generalização de um estudo de caso, Trivinos (1987, p.

130) ressalta: No estudo de caso, os resultados são válidos só para o caso em que se estuda. Não se pode generalizar o resultado atingido no estudo de um hospital, por exemplo, a outros hospitais. Mas aqui está o grande valor do estudo de caso: fornecer o conhecimento aprofundado de uma realidade delimitada que os resultados atingidos podem permitir e formular hipóteses para o encaminhamento de outras pesquisas.

Nesta pesquisa serão apresentados e discutidos dez casos clínicos. Esses casos, de

acordo com o que foi dito anteriormente, são provenientes da aplicação do Procedimento de

Desenhos-Estórias em crianças de nove anos, estudantes da terceira série em um colégio

particular de São Luís-MA. A análise dos casos foi realizada a partir do método clínico, tendo

como referencial teórico a psicanálise.

É a partir da análise e da interpretação de cada unidade de produção que será

possível saber qual o caminho que esta pesquisa irá tomar. De acordo com Hermann (1991), é

preciso deixar primeiro que surja para depois tomar em consideração.

Vou tomar em consideração aquilo que surgir da interpretação do Procedimento

Desenhos-Estórias. Por ser uma pesquisa qualitativa, não pretendo generalizar os resultados

obtidos que dizem respeito a este grupo específico de crianças. Considero importante a

reflexão feita por Hermann (1993, p. 143): Quando o pesquisador se lança numa pesquisa psicanalítica, ele faz também o papel de Therapon, quer dizer, ele não vai descobrir, ele vai permitir que se descubra, permitir que algo tire a coberta de cima de si próprio, vai permitir que se dê uma aletheia, um desesquecimento, já que as águas do rio Lethes eram as águas do esquecimento.

Antes de finalizar esta discussão, acredito ser importante remeter o conceito de

método psicanalítico ao leitor. Vale a pena recordar, primeiramente, a definição feita por

Freud (1910) sobre o que é a psicanálise: [...] psicanálise é o nome de um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica (FREUD, 1976, p. 287).

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O método psicanalítico surgiu da prática clínica de Freud, no entanto, seu objeto

não se reduz à sessão de análise. É o método psicanalítico – interpretação – que nos

possibilita entrar em contato com os aspectos inconscientes, provenientes do material

utilizado para a pesquisa. Este método, quando posto em prática, possui um efeito disruptor

no campo de sentido comum, ou seja, ela vai possibilitar que novos sentidos e significações

surjam. Então, aplicar o método psicanalítico é fazer brotar, do estudo de algumas relações humanas, as estruturas profundas que as determinam. Mais precisamente, aquilo que eu costumo chamar de ‘campo’ dessas relações. Para isso, o método todo consiste essencialmente em fazer explodir, ou talvez, mais precisamente, implodir o sistema consensual dessas relações, a forma como habitualmente as lemos, compreendemos, para aquilo que esta aí, oculto, brote [...] (HERMANN, 1993, p.135)

Assim, é com o olhar de estrangeiro que vou me debruçar sobre o material obtido

através dos D-E tentando, em um primeiro momento, me despojar dos sistemas teóricos

fechados e aprisionantes. Segundo Freud (1910), a psicanálise se constitui de uma teoria, uma

técnica e um método. Contudo, é através de seu instrumento metodológico que a psicanálise

se defronta com o novo, com um conhecimento que não é estático, nem definitivo. Para

finalizar, recorro a uma importante reflexão feita por Silva (1993, p. 22-24) sobre o pensar e o

pesquisar em psicanálise. Ao iniciar-se uma investigação, portanto, há que renunciar aos conhecimentos prévios e colocar-se numa posição de receptiva curiosidade, sem que a ânsia de conhecer obstrua ou determine as representações deixadas livres para se organizar ‘gestalticamente’ a partir do material que se oferece à observação [...] Para se contrapor ao medo de que nada de novo surja, ou à necessidade imperiosa de mostrar eficiência, há que acreditar no eterno movimento da vida, na natureza sempre pulsando em direção à representação, e ficar tranqüilo de que um sentido sempre acabará por se fazer, porque é da ordem do humano que assim aconteça [...] O panorama que afinal se descortina pode enfim se oferecer como uma verdadeira contribuição, trazendo algo de novo, e não como a comprovação de uma teoria apriorística e sem consideração pelos dados, em que se aprende o que já se sabia.

4.2 Sujeitos

Para esta pesquisa, foram selecionadas dez crianças de nove anos, sendo cinco

meninos e cinco meninas, estudantes de um colégio particular, de classe média alta,

localizado na cidade de São Luís do Maranhão. O critério de escolha das crianças foi baseado,

principalmente, na idade e no fato de não possuírem nenhuma deficiência mental ou

cognitiva.

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A escolha de crianças que estivessem na faixa etária entre nove anos e nove anos

e onze meses foi motivada pelo fato de que, nesse momento do desenvolvimento, as crianças

teoricamente não se encontram mais invadidas pelas angústias decorrentes do complexo de

Édipo e, por conseguinte, não se encontram próximas da puberdade.

4.3 Local em que a pesquisa foi realizada

São Luís do Maranhão possui cerca de um milhão de habitantes, 831,7 km² de

área e está localizada na ponta do Nordeste do Brasil, no extremo norte do Estado do

Maranhão. Uma das três capitais situadas em ilha, separa-se do continente por um estreito e

encontra-se distante dos grandes centros urbanos nacionais, próxima das cidades do nordeste

(Fonte: IBGE, acesso em 19/02/06).

De fato, apesar de ser nordestina, São Luís possui marcantes características

amazônicas. Do ponto de vista geográfico está compreendida em uma faixa de terra conhecida

por meio norte. O Maranhão a oeste faz fronteira com o Estado do Pará, possuindo uma

íntima relação também com essa última unidade geográfica no que diz respeito à vegetação,

como as palmeiras de açaí e os babaçuais, ou mesmo no deslocamento de sua população para

trabalhar em latifúndios agrícolas, acarretando graves problemas de ordem social, tais quais o

trabalho escravo, onde estes estados são campeões nacionais.

A ilha maranhense tem por clima o tropical úmido. As temperaturas e a umidade

do ar são altas. A temperatura média anual gira na casa dos 27°C e a vegetação é rica em

mangues e dunas e coberta pela floresta equatorial. O caráter do clima pode determinar-se por quente e úmido; não há senão duas estações: inverno e verão; ou, mais exatamente, tempo com chuva e tempo sem chuva; aquele dura de janeiro a julho e este, de agosto até dezembro. O calor é extenso e quase constante. (LAGO, 2001, p. 21)

O extrativismo mineral e vegetal são os destaques da economia local e do restante do

Estado. O complexo portuário integrado pelos terminais de Itaqui, Ponta da Madeira e

Alumar, interligado a ferrovias e hidrovias, é responsável por mais de 50% da movimentação

de cargas portuárias do Norte e do Nordeste. A ferrovia Carajás transporta minérios de ferro e

de manganês do Distrito Mineral dos Carajás, no Pará, ao Porto Ponta da Madeira, em São

Luís. Dos 52,6 mil km de rodovias, só 8% estão pavimentados (SEÇÃO..., 2006).

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De acordo com o Censo 2001, a população é jovem, sendo que 63,87% (555.709

habitantes) possui idade inferior a 29 anos, destacando-se que 375.624 (40,17%) são menores

de 19 anos. Das pessoas residentes com mais de 10 anos de idade, 93,10% são alfabetizadas e

o município apresenta Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 0,733 superior ao restante

do Estado (SEÇÃO..., 2006).

O Maranhão está entre os estados mais pobres do país. Em 1999, a renda per

capita de 869 dólares ao ano só não foi menor que a do Piauí, de acordo com o Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Segundo o Ministério da Saúde, grande parte dos

habitantes do estado não tem acesso a saneamento básico. Na área rural, apenas 15,4% da

população conta com esgoto sanitário. Mesmo na capital São Luís, o índice é de 47,5% - bem

abaixo da média brasileira com 63,9%. (ESTADOS..., 2006)

A educação é uma das maiores deficiências sociais do Estado. O ensino nas

escolas públicas é precário e o analfabetismo conta com 26,6% em todo o Estado, chegando a

53,2%, em termos funcionais, o que demonstra uma das piores taxas do Brasil. (ESTADOS...,

2006)

A saúde no Maranhão é também motivo de preocupação. Para cada mil crianças

nascidas vivas, 48 morrem antes de completar 28 dias. A mortalidade infantil supera o índice

nacional, sendo o pior que o de países como Colômbia e Venezuela. Tal fato deve-se à

precariedade no sistema de saúde e ao estado de miséria em que se encontra a maior parte da

população. Vale dizer, para efeito de ilustração, que 31% das crianças recebem vacinação

básica no Estado; 5 mil crianças nascem todos os anos com deficiência mental ou óssea em

decorrência da falta de iodo e de cálcio no organismo da mãe durante a gestação; e 3 mil

crianças com idade até 5 anos têm morte prematura todos os anos por falta de cálcio e de

vitamina A.

Os problemas sociais de hoje contrastam com a opulência de São Luís no passado.

A cidade já chegou ser a terceira capital mais populosa do Brasil em razão do comércio em

torno do algodão, que não demorou muito a recuar em conseqüência da recuperação

econômica americana, pós-guerra da secessão, retomando o seu mercado. Paulatinamente a

agricultura foi substituída pela indústria têxtil que, além de matéria-prima, encontrou mão-de-

obra e mercado consumidor na região. A nova atividade colaborou para a expansão geográfica

da cidade e surgimento de novos bairros na periferia, causando um dos mais sérios problemas

de São Luís, o êxodo do campo para a cidade, gerando vários focos de miséria, além do

desemprego, da violência e do crescimento exagerado da periferia.

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A história de São Luís é curiosa e afasta-se das demais capitais brasileiras. Aqui

repousava a aldeia de Upaon-Açu, que significa ilha grande, nome dado pelos índios

tupinambás. Daniel de La Touche, conhecido como Senhor de La Ravardière, acompanhado

por 500 homens, chegou à região em 1612 para fundar a França Equinocial e realizar o sonho

francês de se instalar na região dos trópicos, fundando a cidade no dia 8 de setembro. Logo se

aliaram aos índios, que foram fiéis companheiros na batalha contra portugueses vindos de

Pernambuco decididos a reconquistar o território, o que acabou por acontecer alguns anos

depois (MEIRELES, 2001, p. 56-57).

Meireles relata que a tropa lusitana comandada por Alexandre de Moura expulsou

os franceses em 1615, retomando o forte de Itapari. Jerônimo de Albuquerque, primeiro

capitão-mor da colônia, foi destacado para comandar a cidade, sendo seu governante por dois

anos. Dos fundadores restou o nome de São Luís, uma homenagem ao rei francês Luís XIII

estranhamente mantida pelos portugueses. De tal modo, São Luís nasceu francesa, foi

invadida pelos holandeses, mas cresceu e prosperou portuguesa, como nenhuma outra cidade

no país. A nova cidade de São Luís surgiu assim como primeira fundação européia na tórrida zona equatorial, na entrada da floresta pré-amazônica: um meio longínquo e hostil trazendo problemas totalmente novos que eram um verdadeiro desafio à capacidade do homem branco para se adaptar a climas e ambientes desconhecidos (ANDRÈS, 1998, p. 19).

Em razão desse legado histórico, a UNESCO a tombou como patrimônio cultural

da humanidade em 1997. São Luís possui um acervo arquitetônico colonial avaliado em cerca

de 3500 prédios, distribuídos por mais de 220 hectares de centro histórico, sendo grande parte

deles sobradões com mirantes, muitos revestidos com preciosos azulejos portugueses. Locais

como a Praia Grande e o Projeto Reviver mostram todo o poderio econômico de São Luís no

passado.

Apesar da derrocada econômica, São Luís encontra na cultura sua grande

expressão. Não se trata apenas da influência portuguesa ou francesa, mas, sobretudo, de

elementos indígenas e africanos. Os tambores são característicos da cultura popular

maranhense. De origem africana, eles têm presença marcante nas festas juninas. O ritual do

tambor de mina é semelhante ao candomblé baiano. Já o tambor de crioula é uma dança

sensual, excitante, conduzida por três tambores em ritmo contagiante. Há ainda o Cacuriá e a

Festa do Divino Espírito Santo, manifestações culturais de forte aceitação popular.

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O auto do Bumba-meu-boi remonta ao Ciclo do Gado no século XVIII, resultante

das relações desiguais que existem entre os escravos e os senhores nas Casas Grandes e

Senzalas, reflete as condições sociais vividas pelos negros e índios.

Na mais famosa brincadeira maranhense, Catirina, uma escrava, convence o seu

companheiro, o nego Chico, a matar o boi mais vistoso da fazenda para satisfazer-lhe o desejo

da grávida, o de comer sua língua. Descoberto o autor da façanha, o fazendeiro ordena que os

índios capturem o criminoso, o qual, trazido à sua presença, ressuscita o animal. Ao trazer a

vida do boi, o negro é perdoado, sendo tudo terminado em uma grande festa. Contado e

recontado através dos tempos pela tradição oral nordestina e depois espalhada no Brasil, a

lenda fundante adquire contornos de sátira, comédia, tragédia e drama, conforme o lugar em

que se inscreve, levando-se sempre em consideração a estória de um homem e um boi, ou

seja, o contraste entre a fragilidade do homem e a força bruta do boi, por um lado, e entre a

inteligência do homem e a estupidez do animal, por outro.

A cidade de São Luís é permeada por lendas que povoam o imaginário popular.

Fantasmas, animais encantados e carruagens de fogo fazem parte da crendice popular, que

ainda hoje encanta crianças e adultos. Há a Lenda da Serpente encantada, um animal que

cresce sem parar e que um dia destruirá a ilha quando a cauda encontrar a cabeça. Estaria ela

submersa nas galerias subterrâneas que percorrem o centro histórico, com seu corpo

descomunal escondido em vários pontos da cidade.

Sem dúvida, no entanto, a mais famosa das lendas ludovicenses, apreendida pelas

crianças desde a mais tenra idade, é a de Ana Jansen. No século XIX, viveu em São Luís a

Senhora Dona Ana Joaquina Jânsen Pereira, comerciante que, tendo acumulado grande

fortuna, exerceu forte influência na vida social, administrativa e política da cidade. Donana

Jânsen - como era comumente chamada – era conhecida também por cometer as mais

bárbaras atrocidades contra seus numerosos escravos, os quais submetia a toda sorte de

suplícios e torturas que, normalmente, culminava com a morte destes. Após o falecimento de

Donana, passou a ser contada na cidade a estória em que, nas noites escuras das sextas-feiras,

boêmios e noctívagos costumam se deparar com uma assombrosa e apavorante carruagem em

desenfreada correria pelas ruas de São Luís, puxada por muitas parelhas de cavalos brancos

sem cabeças, guiados por uma caveira de escravo, também decapitada, conduzindo o fantasma

da falecida senhora que pena, sem perdão, pelos pecados e atrocidades cometidos em vida

(LENDAS..., 2006).

A partir desta breve descrição sobre São Luís, pretendi situar o leitor no campo

onde se deu a experiência clínica que compõe este trabalho. As dez crianças que participaram

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desta pesquisa nasceram nesta cidade e são envolvidas por toda essa influência cultural (índia

negra, portuguesa), pela realidade socioeconômica do estado e, até mesmo, pela geografia da

cidade, pois São Luís é uma ilha quente, com muitas praias freqüentadas por uma grande

parcela da população durante todo o ano.

O Brasil é um país grande com uma diversidade cultural e social intensa. O dia a

dia de uma cidade como São Paulo é muito diferente do estilo de vida de quem mora em São

Luís, Belém ou no interior da Bahia. Diante disso, não é possível deixar de ressaltar que o fato

desta pesquisa ter sido feita em São Luís tem suas peculiaridades. As características da cidade

marcam a subjetividade dessas crianças. Isto pode ser percebido quando Felipe, em duas

unidades de produção, recorre às lendas da cidade para descrever o que se passa em seu

mundo interno.

Não é possível deixar de citar também os efeitos da globalização que, de certa

forma, homogeneíza as subjetividades dos mais diferentes lugares do Brasil e do mundo.

Existe, assim, algo que atravessa a criança que mora em São Paulo e que se faz presente

também nas crianças de São Luís, pois elas assistem aos mesmos programas de televisão,

ouvem as músicas dos cantores que estão na moda, querem as mesmas sandálias que

aparecem nos anúncios publicitários. Dessa forma, existe algo que diferencia e ao mesmo

tempo aproxima a subjetividade da criança latente brasileira.

Vale lembrar que esta pesquisa é um estudo qualitativo. O início de uma jornada.

Mais pesquisas precisariam ser feitas em outras cidades e regiões para que se possa alcançar

resultados mais abrangentes.

4.4 Instrumentos e Procedimentos

4.4.1. O contato com a escola

O contato com a escola foi feito, inicialmente, através da diretoria. Eu explicitei

os objetivos da pesquisa, a forma como os dados iriam ser colhidos e a relevância deste

estudo. As diretoras receberam a proposta de forma muito acolhedora. Consideraram o

Procedimento de D-E muito interessante e se mostraram muito disponíveis para colaborar

com a pesquisa. A instituição foi escolhida por ser conhecida como uma escola aberta a novas

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experiências e por possuir um corpo diretor e docente que procura sempre crescer e

estabelecer um bom vínculo com seus alunos.

Após o contato inicial com as diretoras, fui apresentada às duas coordenadoras

responsáveis pelas crianças de primeira à quarta série. Em seguida, as coordenadoras me

apresentaram às professoras das duas turmas da terceira série que iriam participar da pesquisa.

Expliquei para elas os objetivos do estudo e a forma como a coleta de dados iria ser realizada.

Agendei um dia e horário para fazer o primeiro contato com as crianças.

A instituição e os responsáveis foram esclarecidos com relação ao trabalho a ser

desenvolvido com as crianças. Foram entregues a eles, antes da aplicação do Procedimento de

Desenhos-Estórias, os Termos de Consentimentos (Anexos 1e 2).

4.4.2. O contato inicial com as crianças

Após os encontros com as diretoras, coordenadoras e professoras, estabeleci o

primeiro contato com as crianças. A escolha pelas turmas da terceira série do turno vespertino

deveu-se à minha disponibilidade de tempo, podendo permanecer na escola, na maioria das

vezes, durante a tarde toda.

No primeiro contato com as crianças, eu me apresentei e disse a elas que era

psicóloga. Em seguida, perguntei-lhes se sabiam o que era um psicólogo. Surgiram variadas

definições e relatos. Algumas disseram que psicólogo trabalhava com gente doida, com

problemas. Outras relataram que já tinham ido a um psicólogo, ou possuíam algum irmão, pai

ou mãe que ia ao psicólogo. Após ouvir os relatos, esclareci como um psicólogo trabalhava e

quais eram as suas áreas de atuação.

Expliquei às turmas que eu estava no colégio para realizar uma pesquisa com o

objetivo de estudar as crianças de nove anos. Disse que “gostaria de pedir a colaboração

delas”, explicando como a pesquisa iria ser desenvolvida. Contei que iríamos usar lápis de

cor, fazer desenhos e que, para realizar essa atividade, ficaríamos em uma sala separada na

escola, durante uma hora, por um ou dois dias.

Participaram da pesquisa dez crianças que se mostraram mais disponíveis e

interessadas e que haviam recebido a anuência dos pais.

Como foi comunicado aos pais, disse também para as crianças que os seus nomes

não seriam divulgados na pesquisa, somente a idade e o sexo. Essa observação era necessária

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para que as crianças ficassem mais à vontade ao expressar o que se passava no seu mundo

interno, sem medo ou sentimentos persecutórios relacionados aos pais, diretores e, até mesmo,

aos próprios colegas. Combinei com as crianças de voltar no dia seguinte para iniciarmos as

atividades. Disse-lhes também que se quisessem poderiam desistir de participar da pesquisa.

4.4.3. Aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias

A aplicação do D-E foi realizada em uma sala cedida pela escola. Era um

ambiente confortável e adequado para aplicação desse instrumento. As crianças saíam durante

a aula, uma de cada vez, e me acompanhavam até a sala, que já se encontrava devidamente

preparada. Antes de iniciar a primeira aplicação, procurei conversar com a criança, explicar

novamente os objetivos da pesquisa, bem como reiterar a questão referente ao sigilo dos

nomes, estabelecendo assim uma relação de confiança e segurança com elas.

Foi realizada a aplicação do D-E de acordo com os moldes tradicionais, relatados

no capítulo dois desta pesquisa. Uma média de duas a três crianças era atendida por dia. Caso

elas não tivessem completado as cinco unidades de produção, retornavam no dia seguinte. As

estórias contadas pelas crianças eram transcritas em uma folha avulsa por mim, à medida que

iam sendo contadas pelas crianças.

Após cada aplicação, escrevia breves comentários sobre o que havia sido

conversado ao longo do encontro. Pude perceber que o D-E mobilizou, em algumas crianças,

angústias relacionadas a aspectos conflitivos da sua vida psíquica. Algumas delas relataram

momentos dolorosos de suas vidas, como a separação dos pais ou o nascimento de um irmão.

À medida que desenhavam e contavam estórias, ocorriam em muitas delas mudanças

gradativas: no tom de voz, na intensidade da expressão, na liberdade de comunicar

pensamentos etc.

As angústias despertadas foram acolhidas por mim ao longo da aplicação do D-E.

Entendo que a postura do psicólogo clínico não é a de um mero observador ou coletor de

dados. Concordo com Silvia Ancona-Lopez (1988) quando afirma que toda atuação

psicológica é uma ação de intervenção.

Tardivo (2002, p. 21) faz uma importante reflexão quando afirma que o papel do

psicólogo clínico, como investigador e profissional que intervém, não é nunca o de julgar,

mas o de se aproximar para compreender e, se possível, propor medidas que possam levar a

mudanças. No entanto, não vou me deter na questão do diagnóstico interventivo, tendo em

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vista este não fazer parte dos objetivos desta pesquisa. É importante ressaltar a eficácia do

Procedimento de Desenhos-Estórias como instrumento capaz de mobilizar os conflitos e as

angústias emergenciais presentes no mundo interno da criança.

4.4.4. Avaliação do Procedimento de Desenhos-Estórias

Foi realizada uma análise qualitativa do conteúdo dos protocolos do Procedimento

de Desenhos-Estórias tendo como base o referencial psicanalítico. Cada caso foi analisado em

particular, para em seguida ser feita uma análise do conjunto dos dez casos.

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________________________________________________________

5.0 CAPITULO CINCO

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5.1 Apresentação e Análise dos casos clínicos

Neste capítulo, serão apresentados os dez casos clínicos que fazem parte desta

pesquisa. Para uma melhor compreensão da análise dos casos, acredito ser importante fazer

alguns esclarecimentos.

A análise dos casos foi feita a partir do material obtido através do D-E, isto é,

não obtive informações sobre a história de vida das crianças. O objetivo desta pesquisa não é

fazer um estudo sobre o atendimento psicodinâmico dessas crianças, o que implicaria a

realização de entrevistas, o uso desse procedimento e outros. Pretendo, outrossim, verificar, a

partir da análise dos Desenhos-Estórias, se existe uma tendência à erotização precoce; como

se encontra a solidez do ego para lidar com as demandas pulsionais; a utilização do

mescanismo de repressão na intensidade característica da latência; e se existem indícios de

uma adolescência precoce. Dessa forma, fica delimitado sob a perspectiva que o

Procedimento de Desenhos-Estórias será empregado.

5.1.1 Caso 1

5.1.1.1 Sobre o contato com a criança

Felipe4 tem nove anos e três meses. Concluiu as cinco unidades de produção em

uma hora. Demonstrou muito prazer em narrar as estórias. Após o contato com Felipe,

continuei indo à escola para realizar a aplicação do D-E em outras crianças. Felipe me

abordou no corredor, várias vezes, falando que gostaria muito de participar de novo. Em uma

de suas abordagens me disse, muito seriamente, que ainda não havia participado, mas sim, o

seu irmão gêmeo. Por um momento, cheguei a acreditar. No entanto, ele mesmo começou a

rir e disse que estava brincando.

4Todos os nomes utilizados são fictícios.

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5.1.1.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

O nome desse navio é navio Titanic. Está um tempo de muita chuva e todo mundo

está nervoso. A onda está muito alta alcançando o navio. O navio está sendo partido. As

pessoas com medo estão indo de barco para a sua casa, mas está muito perigoso. Só as

mulheres podiam sair de barco e depois era as vezes dos homens. No fundo do navio tinha

pessoa ainda dormindo. Os corredores estavam encharcando de água. Saía ratos por baixo da

porta e, de repente, o navio virou para cima e todo mundo segurou em alguma coisa. Um

homem em pé estava tentando desligar o contato do navio e as luzes, porque tava tudo ligado.

Ele pegou choque. O padre estava segurando uma vela e um monte de pessoas estava

segurando a mão do padre. De repente, o navio parou em pezinho, reto. Depois ele partiu no

meio, aí ele afundou. Depois a outra parte foi afundando, mas boiou de novo para cima.

Depois foi descendo de novo. As pessoas estavam todas apavoradas e, de repente, começou

um monte de onda para cima do navio. E de repente, esse negócio aqui do navio (aponta o

desenho), não sei o nome dele, caiu. E as pessoas que estavam na água, algumas morreram,

porque caiu em cima delas e água não protege. O frio estava intenso. O navio afundou porque

um gelo enorme bateu. Todo o navio afundou. Quando as duas partes do navio se

encontraram na superfície da água fez um barulho estranho e o mar se balançou. Ficou um

monte de onda por cima e as pessoas ficaram segurando nas partes que caíram. Elas estavam

de colete e de bóia.

Congelou um monte de pessoas, menos uma, que era mulher. Ela chegou até à

praia e, assim, foi a vida dela. Hoje ela tem 356 anos. No navio ela era bem rica. Agora ela tá

normal, perdeu o dinheiro. Aí, ela começou a lembrar do seu marido e da sua mãe. Acabou!

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Inquérito:

▪ Por que só as mulheres podiam sair primeiro do navio?

- Porque naquela época era só pessoa rica e, como você sabe, primeiro as damas.

▪ E que época era essa?

- De 1500. No dia que os portugueses chegaram.

▪ E como foi a vida da mulher que se salvou?

- A vida dela foi muito boa. Ela teve uma neta.

Título: O navio do Titanic

Interpretação:

Felipe narra, nesta estória, um momento turbulento e perigoso. Existe um

sentimento de naufrágio, de desabamento. Isto pode se tratar de um estado emocional quando

diz: está chovendo, está desabando, está sendo cortado ao meio.

Pode-se perceber também que os homens estão impotentes diante de um estado de

desabamento. Apenas uma mulher sobreviveu. As mulheres parecem ter alguma vantagem.

Isso fica implícito quando Felipe fala: [...] primeiro as damas.

A imagem de um navio quebrado e cortado ao meio pode revelar angústias

edípicas e de castração, ou seja, pode existir uma questão relacionada à masculinidade e à

impotência. É possível também perceber que ele esteja se remetendo a algo mais primitivo, ou

seja, a um equilíbrio emocional precário.

O tema do afundamento pode ser entendido como ausência de uma estrutura

defensiva bem estruturada. No entanto, o que é esperado no período de latência, de acordo

com Freud (1925), por exemplo, é um sistema defensivo rígido e bem estruturado. [...] os impulsos sexuais que mostraram tanta vivacidade são superados pela repressão, e segue-se um período de latência, que dura até a puberdade e durante o qual as formações reativas da moralidade, vergonha, repulsão são estruturadas. (FREUD, 1996, p. 42).

Esta primeira unidade de produção sinaliza que o ego desta criança está sendo

inundado por sensações tão intensas que a sua solidez está desabando, afundando. Ainda não

está claro nesta unidade de produção o que está ocasionando essa fragilidade egóica, essa

sensação de desmantelamento. É apenas o primeiro indício de que o ego da criança está

fragilizado, tomado por sensações que remetem a um estado emocional mais primitivo. No

entanto, essa hipótese pode ser confirmada, ou não, pelas outras unidades de produção.

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Unidade de Produção 2

Uma vez a cidade de São Luís estava tudo calmo. Dizem que de baixo da ilha de

São Luís tinha uma serpente que cada dia crescia. De repente, ela cresceu muito que o rabo e

o olho se encontraram (existe essa lenda, mas eu tô inventando mais coisa sobre ela), de

repente fez: Toc Toc Toc, no olho. Depois de muitos e muitos anos, ela acordou. Ela existiu

em 1500 antes dos portugueses. Ela existiu no século I. Ela se despertou zangada e provocou

ondas que quase derruba os prédios da cidade. Ela soltou fogo, mas não atingiu nada. Ela

furiosa ficou sentada envolta da ilha de São Luís, porque ela já era maior que a ilha. E, com as

suas nadadeiras, puxou a ilha de São Luís para baixo. Depois toda a ilha de São Luís foi para

o fundo do mar. Passou mais um dia e a cobra morreu. Depois abriu as nuvens, um Deus

apareceu e levantou a ilha de São Luís para cima. E a ilha de São Luís ficou sem mais

nenhuma lenda... e serpente, porque ainda tinha outras lendas em São Luís.

Inquérito:

▪ Como a cobra morreu?

- Porque ela já passou muitos anos e não podia mais crescer. Ela não tava se alimentando

bem. Comia alguns humanos que estavam segurando na janela. Humanos faz mal para ela, só

peixe que não.

Título: A serpente

Interpretação:

Neste desenho, diferentemente do anterior, Felipe fala de algo mais particular. Ele

atribui o desastre, o afundamento da cidade de São Luís, a uma coisa: a serpente, que está

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crescendo e pegando fogo. Pode-se pensar na serpente como um representante da sexualidade

masculina. Uma sexualidade que estava quieta, adormecida e, de repente, acorda pegando

fogo. Na estória, essa serpente, ou seja, essa sexualidade que irrompe pode ser a responsável

pelo desastre que está acontecendo. O que está despertando vem de forma tão impetuosa que

desmonta tudo. Talvez Felipe tenha a fantasia de que o responsável por esse clima de

afundamento seja essa sexualidade que começa a aparecer de forma precoce, quando ainda

não existe uma estrutura egóica e uma mente capaz de lidar com ela.

O tema do afundamento se repete. O Deus, a quem ele atribui o salvamento da

cidade, pode ser um pai idealizado que surge para trazer a repressão, defesas, e assim colocar

um freio nessa sexualidade que irrompe.

Nessa estória, assim como na primeira, não observamos mecanismos de defesa

nem uma estrutura psicodinâmica característica do período de latência. Sobre essas

características Berta Bornstein (2001, p. 2-3) escreve: No segundo período da latência, a situação é diferente: o ego está exposto a conflitos menos graves, por um lado, em virtude do enfraquecimento das demandas sexuais e, por outro lado, porque o superego se tornou menos rígido [...] o ego, durante esse período, está engajado em desviar a energia sexual de seus objetivos pré-genitais e utiliza-la para a sublimação e a formação reativa.

Unidade de Produção 3

Estava chovendo muito forte com trovões bem arrepiantes. De repente, a cabeça

do cavalo cortou e saiu fogo. Mas um cavalo ficou com a cabeça (São 2 cavalos mas não deu

para desenhar o outro). A cabeça do humano cortou e fez: Trizzzzzzzzz.... O cavalo que

sobrou (o outro que tava com a cabeça cortada tava andando também) olhou para o outro

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cavalo e para o ser humano, e cortou a cabeça do último cavalo. De repente... ouviu um grito

bem de dentro da carroça e depois começou a gritar: Ra Ra Ra, bem alto!

Uma estátua mostrou que é proibido ficar com a cabeça na cidade e no mundo

inteiro. E foi assim que a lenda da Ana Jansen ocorreu no centro histórico de São Luís. Por

isso o nome é lagoa da Jansen, e isso assombrou algumas ruas do centro histórico de São

Luís.

Dizem que lá no centro ficam os cavalos andando, e fica uma zoada: Toc Toc Toc

e o relinchar de um cavalo.

Inquérito:

▪ Quem cortou a cabeça do cavalo?

- Isso ninguém sabe. Veio uma coisa afiada e “Trizzzzzzzzz”. Nem nos filmes mostram.

▪ De quem era o “Ra Ra Ra”?

- Era da Ana Jansen. Ela tinha cabeça, mas era de outras mulheres.

Título: Ana Jansen

Interpretação:

Novamente, a estória acontece em um cenário de muita chuva e trovões. Um

cenário que remete à hipótese de que esta criança está vivendo um momento de muita

angústia. O elemento fogo está mais uma vez presente. O fogo tem uma relação simbólica

com a sexualidade e com a impulsividade. Pode-se perceber que o clima emocional presente,

assim como nas estórias anteriores, é de medo.

Um outro símbolo muito masculino, como a serpente, que compõe esta estória é o

cavalo. No caso de pequeno Hans, a figura ameaçadora do pai é projetada nesse animal

(FREUD, 1905). Nessa unidade de produção é a cabeça do cavalo que pega fogo. Pensando

em uma equação simbólica: cabeça do cavalo = cabeça do pênis que está pegando fogo e pode

ser cortada, o que remete a uma angústia de castração.

Esta estória faz pensar em uma sexualidade que assusta, mete medo e está sujeita

a tantos perigos. O grande perigo é provocado por uma mulher que, assim como na primeira

estória, é muito forte. O elemento novo, nesta unidade de produção, é a mulher representada

como alguém perigoso e castrador. Existe um masculino que se desenvolve, mas se assusta,

ficando impotente diante de um feminino fantasiado como algo muito perigoso.

A hipótese levantada na interpretação da estória anterior, isto é, a existência de

uma quantidade de estímulos sexuais maior do que a capacidade de elaboração psíquica, que

inunda a mente da criança se confirma nesta unidade de produção. Aqui a cabeça do humano

é cortada. Na cidade-mundo interno de Felipe, é proibido se ter uma cabeça-mente pensante.

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Não existe uma cabeça, ou seja, uma mente capaz de pensar sobre todos esses impulsos que

estão vindo à tona.

Unidade de Produção 4

Um homem e uma mulher estava dentro do carro. Estavam com o som ligado e,

de repente, ouve uma notícia no rádio, dizendo que escapou da prisão um homem com um

negócio assim na mão (faz um gesto). Um machado - quase igual. De repente, a mulher ficou

nervosa e disse:

- Meu amor, meu amor, vamos logo para casa!

E o seu marido disse:

- Eu sou muito forte! eu posso agüentar ele.

O rádio ligou. De novo! E ele disse, que ele tirava o cérebro das pessoas e coloca

dentro da geladeira da sua casa.

De repente, ouviu um barulho estranho no carro... Trimmmm. Depois ele ligou o

carro apressado. Eles chegaram em casa e foram abrindo a porta do carro dela. E tava o

machado, só o machado. Ele ficou branquinho e caiu no chão. Ela ficou desesperada. De

repente... chac, chac nele. Assim assombrou o resto das casas.

Todo mundo saiu dessa cidade e desse estado e do país. E nesse tempo ele teve

uma mulher, que ele confiava e que tinha um machado no lugar da cabeça. De repente, eles

foram tendo filhos e mais filhos e assim por diante. E aí invadiram a cidade, o estado e o país.

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E assim viveu a vida desse homem. Ele ficou congelado e viveu no museu dos

machados. A polícia do mundo inteiro invadiu a cidade, o estado e o país. Depois disso, eles

morreram todos e continuou a vida real.

Inquérito:

▪ Por que o homem foi levado para o museu?

- O homem que desmaiou foi levado para o museu porque não existia mais homens como ele,

quer dizer, existia, mas ninguém sabia, aí depois eles invadiram e mataram a mulher que tinha

o machado na cabeça, o marido e os filhos, e tudo voltou a ser como era.

Título:

O machado no lugar do braço do homem

Interpretação:

A descrição da cena remete a um filme como “Sexta feira 13”. Aparece uma

situação em que um homem e uma mulher estão juntos e alguma coisa assustadora acontece.

Nesse momento, algo masculino muito perigoso surge, de repente, com um machado na mão.

Pode-se pensar em uma representação fálica sentida como perigosa.

O que surge de forma tão repentina e destruidora pode ter relação com a

sexualidade. Uma sexualidade, que surge de forma tão brusca e inesperada, capaz de tirar o

cérebro, podendo inibir a capacidade de pensar. A sexualidade, novamente, é sentida como

perigosa, cortante, descontrolada, impossível de ser pensando, pois, segundo a criança, os

personagens ficam com um machado no lugar da cabeça.

O final traz uma sensação de que, em algum momento, a capacidade de pensar

será retomada, de que vai conseguir superar o machado e sair do estado de puberdade e

adolescência, em que tudo pega fogo, em que os pensamentos estão confusos e sem clareza e

retornar para o período de latência.

Levisky, em seu livro “Adolescência: reflexões psicanalíticas”, faz um

aprofundado estudo sobre as características intrínsecas ao processo adolescente. Nesta

unidade de produção é possível perceber que o ego de Felipe apresenta algumas

características que estão mais relacionadas com a adolescência do que com o período de

latência. A seguinte afirmação de Levisky (1998, p. 95) exemplifica algumas características

da puberdade, que podem ser observadas na dinâmica psíquica de Felipe. Na puberdade as pulsões emergem, invadem o ego causando um transbordamento de afetos e atitudes comportamentais [...] na puberdade surge um caráter de urgência instintual que por um lado determina o fim do período de latência e, por outro, graças ao incremento das tensões pulsionais e em conseqüência às perturbações nas relações entre o ego e o superego, faz com que haja o ressurgimento de aspectos da pré-genitalidade.

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Unidade de Produção 5

Era um vulcão do tempo das pessoas. O vulcão ficava no mar. De repente,

explodiu. Como ele ficava dentro do mar, entrou água dentro dele. E, como vocês sabem, a

lava que vem, é do subsolo da terra. E a água foi para o subsolo da terra – a metade da água

do mar. O vulcão provocou gases igual o ser humano. E saiu lava bem quente e água bem

quente. Os peixes morreram. As pessoas ficaram assombradas por o vulcão ter explodido.

O vulcão começou a fazer muitos estragos na cidade. Depois de muito tempo,

formou nuvens escuras. As nuvens foram destruindo os prédios. A água dos rios e dos mares

começaram a invadir a ponte mais alta de Nova York. E começou a água a ir pra cima –

quente. E depois a ponte quebrou no meio. O homem ficou na ponte partida e virou de cabeça

para baixo. O resto correu para o seu carro. Aí começaram a atravessar a Mata Atlântica e

nela invadiu tudo.

Começou a chover. Nevar. E depois chuva de granito. A neve começou a

congelar. Aconteceu 1(um) furacão, 3(três) furacões no mesmo dia! Depois aconteceu um

maremoto e se encontrou com a lava da terra e o subsolo. Depois a água invadiu tudo. Todo

mundo ficou nos prédios mais altos. Não, no teto, porque congelava. E, na água muito cheia,

apareceu um navio, sem ninguém, entre a rua da cidade. Depois o navio parou, o mar secou,

quer dizer, congelou. Já tava acabando o dia.

Algumas pessoas saíam para procurar um abrigo e ficavam congeladas. Algumas

ficaram dentro da biblioteca pública. E depois começou uma coisa estranha a congelar e uma

zoada de vidro quebrando Tric Tric Tric. Começaram a jogar livros no fogaréu, e começou a

pegar muito fogo. Eles pensavam que ia queimar tudo. De repente eles dormiram. Aconteceu

um furacão, mesmo eles dormindo. Depois do furacão, chegou alguns homens de resgate e

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todo mundo ficou a salvo na cidade. E não era só nessa cidade, era muitas e muitas. No Japão

também ficou.

Inquérito:

▪ Por que o vulcão explodiu?

- Porque o vulcão ainda tava com lava guardada e começou a balançar a terra.

Título: O vulcão e o resto das coisas perigosas feitas pela natureza

Interpretação:

O cenário que surge é novamente de destruição - chuvas, trovões, furacões,

explosões, enchentes. O vulcão que explode, simbolizando a sexualidade, é o responsável por

muita destruição. Novamente, verifica-se a existência de algo que não resiste e desaba (a

ponte), isto é, Felipe não possui uma estrutura de ego forte o suficiente para agüentar toda

essa impulsividade que irrompe.

Nessa estória, aparece o gelo que é o contraponto do fogo, da água bem quente.

Algumas pessoas ficaram congeladas, o que pode estar simbolizando a mobilização de

defesas para dar conta de um fogo tão assustador.

De acordo com a terceira, Felipe faz referência à impossibilidade de pensar

representada pela queima dos livros. Pode-se inferir também que está sendo queimada a

capacidade de aprender.

No entanto, ele consegue um final feliz para a estória. Ele mostra a esperança de

que haja uma figura masculina (os homens do resgate), podendo livrá-lo desse sentimento de

terror diante de algo muito impulsivo.

5.1.1.3 Síntese do caso

A sexualidade que irrompe abruptamente aparece nesse contexto como um dos

elementos responsáveis pela sensação que Felipe relata de desmantelamento e de destruição.

O ego parece estar fragilizado diante das demandas pulsionais. A sua capacidade de pensar foi

representada como estando ameaçada por um quantum de estímulos pulsionais incapazes de

serem metabolizados.

Um outro aspecto importante observado foi a não configuração de um

psicodinamismo esperado durante o período de latência. Não foram encontrados mecanismos

de defesa mais solidificados nem um estado de calmaria e apatia intensamente descritos pela

literatura (FREUD, 1905; KLEIN, 1932; BORNSTEIN, 1953).

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O que fica evidente em Felipe é uma intensa turbulência emocional que evidencia

questões que mais se aproximam de uma puberdade precoce do que da latência propriamente

dita.

Parece que Felipe sentiu que suas angústias foram acolhidas ao longo da aplicação

do D-E, pois como disse anteriormente, ele insistiu muito para participar de novo, dizendo

que tinha um irmão gêmeo e que fora este a participar da pesquisa e não ele. Fica evidente,

assim, o valor terapêutico do Procedimento de Desenhos-Estórias. Ana Maria Trinca (2003,

p.341) descreve a sua experiência relacionada ao valor terapêutico e interventivo do D-E: A aceitação unânime do D-E pelas crianças atendidas foi decorrente do fato de que elas puderam se sentir contidas pelo processo empregado, na expressão de seu mundo interno. Os medos, os sentimentos de desamparo, os conflitos profundos, as emoções violentas, enfim tudo aquilo, que não tem como ser comunicado pelas crianças por suas dificuldades de dar forma e de organizar emoções, pôde vir a ser contido inicialmente pelos aspectos formais do desenho. Estes, por sua vez, foram continentes e suporte que permitiram à mente estruturar e compor em termos imaginários, por meio das estórias, o que estava informe.

Tardivo (2003, p. 44-45) em sua tese de livre docência utiliza o D-E como um

instrumento de comunicação e intermediação terapêutica: Neste sentido, o Procedimento de Desenhos com Tema e da forma como empregado nesta investigação (Vaisberg e Tardivo, 2002), se constituiu em instrumento mediador neste contato, o qual favoreceu a comunicação da dor e do sofrimento dos jovens nas distintas situações, configurando-se também como ferramenta útil para a compreensão.

5.1.2 Caso 2

5.1.2.1 Sobre o contato com a criança

Fernanda tem nove anos e sete meses. Fez três unidades de produção no primeiro

dia de aplicação e duas no segundo. Mostrou-se muito entusiasmada em participar da

pesquisa. É muito comunicativa e afetuosa. Parecia ser a líder do grupo das meninas. Estava

sempre pintada e com as unhas feitas. Contou-me que adora dançar e assistir novelas, o seu

programa preferido.

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5.1.2.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez (errei alguma coisa). Num belo dia de sol, no jardim do Éden,

apareceu uma cobra (desenha a cobra) chamada... sei lá...Cascavel. Nesse jardim existia duas

pessoas: um homem e uma mulher que se chamavam Adão e Eva. Um dia Deus foi visitá-los

e aproveitou para avisá-los que existia uma cobra bem venenosa, que morava numa árvore. E

também falou que eles podiam comer frutos de todas as árvores - menos a qual a cobra estava,

porque os frutos dessa árvore eram venenosos. E voltou para casa.

No dia seguinte, quando Deus foi visitá-los, novamente, Eva estava comendo o

fruto daquela árvore e entregando para Adão. Mas Deus foi embora. Após quatro dias, Ele

voltou e viu que eles estavam com vergonha de sua presença e mandou expulsá-los do jardim

do Éden. Saindo do jardim, Adão e Eva encontraram roupas. Eles também encontraram uma

aldeia e lá viveram quatro anos. Tiveram seus filhos e viveram felizes para sempre.

Inquérito:

▪ Por que eles ficaram com vergonha de Deus?

- Por que eles estavam sem roupa.

Título: O dia encantado

Interpretação:

A história de Adão e Eva é também a estória da descoberta da sexualidade. O

comer do fruto da árvore proibida pode representar uma aproximação da sexualidade proibida,

venenosa.

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No entanto, existe uma autoridade superegóiga (Deus), que diz que Adão e Eva

devem permanecer para sempre na latência, ou seja, no paraíso onde não existe sexo nem

diferença sexual. Eles, porém, escolhem viver a sexualidade e são expulsos do paraíso.

Fernanda se remete a um sentimento típico da latência que é o envergonhar-se de

coisas relacionadas à sexualidade. Nesta estória, podemos inferir que ela está se referindo a

uma passagem da latência, paraíso sem sexualidade, para a puberdade.

Unidade de produção 2

Na cidade de Townsville, na casa das garotinhas, o professor fala:

- Ta na hora de acordar, meninas! Hoje é domingo e não quero me atrasar para a

praia!

E as meninas respondem:

- Praia? Que praia?

Florzinha fala:

- Lembra, garota! Hoje é domingo dia de ir para praia!

Lindinha responde:

-Ah é?

E elas começam a gritar:

- Êba, Êba!!!

O professor fala:

- Rápido, já são 10:15!

Aí elas começaram: bota o vestido, penteia o cabelo, bota óculos, banha e vão.

Vão toda molhada. Adivinha quem elas encontraram? O macaco louco, o vilão dos vilões,

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roubando dinheiro e pirulito de criança. Quando de repente: Toc-Toc-Toc. Quando o macaco

louco olha para trás: POW! Leva uma cacetada no celebro, na boca e no olho.

As meninas pegam ele e levam para a cadeia. Quando voltam, olham o professor e

perguntam:

- Que estrela é essa na sua cabeça?

E ele responde assustado:

-Que estrela?

E ela responde:

- Essa aí!

Aí, quando ele tira a mão, ele olha uma bala na sua testa e fala para as meninas

irem embora. E começa tudo outra vez. Pega, bate e bota na cadeia! Pega, bate e bota na

cadeia! No final, já era de noite e não deu tempo delas tomarem banho – bronze, aliás! E vão

dormir. E mais uma vez o dia foi salvo graças às meninas super-poderosas!!!

Inquérito:

▪ Quem são as meninas super-poderosas?

- Elas são um desenho animado que eu gosto! Mas essa estória que eu contei eu inventei uma

parte e a outra foi de um episódio.

▪ E qual parte que você inventou?

- Teve um episódio que elas foram para a praia mesmo, mas o restou eu inventei.

▪ Como a bala foi parar na cabeça do professor?

- Ah, não sei! Essa parte foi eu que inventei.

Título: As Meninas Super Poderosas

Interpretação:

Essa estória, diferente da primeira, é a estória de uma menina que está no período

de latência. O próprio desenho mostra um corpo que não tem sexualidade e sem formas

definidas.

Existe um aspecto na estória que pode remeter à questão da sexualidade, o fato de

não ter dado tempo para elas tomarem banho. O banho é um momento de contato com o

corpo, momento em que percebemos de forma mais evidente a existência de uma diferença

sexual. No entanto, elas evitaram esse contato.

Um tema típico da latência está presente: a luta do bem contra o mal. A luta dos

instintos contra a repressão. Isto é, um mundo interno cindido, divido. O cenário

predominante desta estória gira em torno da latência. Amaral (1967, p. 95) descreve algumas

características da dinâmica psíquica da latência:

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Os mecanismos reativos de vergonha, nojo, medo, escrúpulo excessivo e limpeza exagerada ativam-se no sentido da luta defensiva contra a masturbação e contra a sexualidade dos adultos que é abominada. Nessa luta defensiva a cisão é reforçada, consolidam-se as figuras idealizadas e as denegridas; por exemplo a mãe pura e o pai abjeto; ou vice-versa, ou então os pais dessexualizados e honestos, de um lado, e as prostitutas e malandros, de outro.

Unidade de produção 3

Era uma vez uma cidade chamada Bevely Hills (lembrei do carnaval das

bixas...meu irmão ficou com medo delas). Nessa cidade vivia uma família de italianos que

tinha uma filha e um filho. O nome deles era... (ah, sei lá, não sei o nome deles) Arthur e

Priscila. Eles moravam numa casa bem grande de quatro quartos, três banheiros e duas

cozinhas e uma copa. No terraço tinha um parque e no quintal uma piscina. Na garagem tinha

dois carros, um da chevrolet e um celta. Eles tinham uma vizinha (sei lá) muito gorda que um

dia foi pedir o banheiro emprestado e quebrou o vaso sanitário de tão gorda...(hum deixa eu

ver...). Priscila (tem características minhas) adorava a Hello Kitty. Ela tinha o conjunto de

quarto e o conjunto de banheiro da hello kitty. E Arthur adorava o homem aranha (não se

escreve assim, é spider man) e tinha um conjunto de quarto e banheiro do spider man.

Essa família vivia muito feliz. Até que um dia apareceu um vendedor de laranjas,

e... quando a mãe de Priscila foi pagando..., ele puxou sua mão, pegou a arma e assaltou a

casa. Ele roubou geladeira, ar-condicionado, tv, computador, livros, cama, dvd, som etc.

Oito anos depois, lá estava a família italiana na rua pedindo ajuda e Dona Sol (que

nem da novela) falou:

- Que vida! Ninguém merece!

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No dia seguinte apareceu uma senhora oferecendo abrigo para a família. E, assim,

até hoje, eles vivem na casa da Dona (vou colocar o nome da minha vó... Não! Como é mesmo

o nome da mãe do Tião da novela?) Flaviana!, a mãe do Tião - o pai das crianças.

Título: O Sol e o Mar

Interpretação:

A latência toma conta da cena mais uma vez. Nessa estória podemos perceber que

Fernanda está bem defendida. Existe um pensamento que irrompe, o carnaval das bichas, mas,

este pensamento não encontra lugar para se desenvolver.

O desenho tem características infantis.

Vale ressaltar que nesta estória surge uma figura masculina ameaçadora e

destrutiva que consegue roubar as coisas boas que a família possuía. De outro lado, surge uma

figura feminina idealizada que oferece ajuda a família que havia ficado na miséria.

Fica evidente que o masculino surge como algo destrutivo e a figura feminina

representa a possibilidade de conter o estrago causado por um masculino perigoso, capaz de

perturbar a calma que reinava na família.

Unidade de Produção 4

Era uma vez um castelo no bosque encantado. Nesse castelo morava as princesas

Anelise e Érika. Anelise tinha uma gatinha chamada Melissa. Melissa tinha cabelos

encaracolados loiros, uma fita na cabeça, um colar de pérolas e um top cor-de-rosa.

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Um dia Anelise, Érika e Melissa foram passear no bosque. Chegando lá, elas

encontraram fadas e gnomos e também barbie lago dos cines (que eu vi ontem na tv). Eles

brincaram, voaram etc. No dia seguinte, quando elas voltaram, encontraram Odete (é nome da

barbie) machucada. Quando eles encontraram Odete ferida, levaram ela para o castelo. Lá,

Odete encontrou o príncipe Daniel, botou remédio e voltou para a floresta. Chegando lá,

encontrou a sua rainha sangrando e perguntou:

- O que aconteceu?

E ela respondeu:

- Saía daqui! Está muito perigoso! Meu irmão está aqui! - e mandou ela correr.

Quando ela chegou em casa, o pai dela estava muito doente no hospital. Quase na

hora dele comer, apareceu a rainha das fadas e deu-lhe o dom da vida. Com o cavalo de sua

irmã Oditi, correu com o seu pai para o castelo, que, lá, eles encontraram Anelise chorando.

Odete perguntou para ela o que tinha acontecido e ela respondeu:

- O irmão da rainha esteve aqui. Ele me transformou em borboleta e, após o pôr-

do-sol, tudo se transformará ao normal e todo o dia será assim.

Até que um dia o príncipe Felipe apareceu e conseguiu desfazer o feitiço. Eles

casaram e foram felizes para sempre. Só!

Inquérito:

▪ Como Odete se machucou?

- Através do irmão da rainha ele tem um anel poderoso. Ele jogou nela e ela ficou machucada.

▪ Como o príncipe conseguiu desfazer o feitiço?

- O príncipe tinha uma espada e uma armadura e aí na hora que o irmão da rainha foi atirando

ele pegou e voltou para ele tipo espelho e matou ele e o feitiço se desfez.

Título: A gatinha Melissa

Interpretação:

Nessa estória não foi encontrada, novamente, uma referência direta à erotização

precoce. A estória, bem como, o desenho combinam com o período de latência. O cenário é

permeado por fadas, gnomos, príncipes e princesas. A psicanalista Sonia Carneiro (1990,

p.74) explicita algumas características referentes ao período de latência: A criança da latência parece sábia. Está com os pés nos chão mas volta e meia dá seus pulinhos para um outro lado;por isso nos surpreende tanto com soluções muitas vezes tão poéticas. Ela sabe que é importante estudar, aprender, crescer mas não abre mão de sua fantasia [....] a latência é uma fase bonita onde sonho e realidade caminham juntos. Através dessas alternâncias freqüentes da sublimação, à recuperação do objeto na fantasia, o sujeito vai se preparando para a sua próxima virada.

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Apesar de ser uma estória mais próxima da latência, existem alguns elementos

que chamam a atenção - o sangramento da rainha e a transformação em borboleta. Esses

elementos parecem estar ligados à idéia de metamorfose, transformação. Existe, talvez, um

conhecimento em nível pré-consciente ou inconsciente a respeito da puberdade, mas é algo

que ainda não pode ser elaborado nem pensado pelo ego.

Nesta unidade de produção aparecem duas representações do masculino: uma

ligada à destruição - o irmão da rainha – e outra ligada à fertilidade – o príncipe. Esses dois

aspectos encontram-se separados devido ao mecanismo de cisão presente de forma intensa no

período de latência.

O pensamento e a forma de funcionamento mental de Fernanda ainda são típicos

de uma menina que se encontra no período de latência, apesar da existência, ainda em um

nível pré-consciente e inconsciente, de questões relacionadas com a transição

latência/puberdade.

Unidade de produção 5

Era uma vez uma aldeia que morava a família de Odete e de Oditi. Lá o pai delas

era padeiro. Odete ajudava a fazer os pães.

Um dia ela olhou os caçadores da aldeia correndo atrás de um unicórnio. Mas eles

não conseguiram e o unicórnio fugiu. Odete foi atrás dele. Quando ela chega na floresta ela

fica maravilhada e vê um tronco de árvore derrubado e o unicórnio atravessando ele, e, ela vai

atrás.

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Quando ela encontra o portal mágico ela encontra a rainha e a rainha explica

como surgiu aquelas fadas. Ela explica que um dia seu pai, o rei, teria que escolher ela ou o

seu irmão Texas para tomar conta da floresta encantada. E em vez de ele escolher Texas,

escolheu a rainha. Mas Texas não se conformou e ficou muito bravo. Quis destruir a floresta.

Com seu anel mágico ele transformou os gnomos e fadas em animais. Após o pôr-do-sol, eles

voltarão ao normal e todo dia será assim.

No castelo do príncipe Daniel, iria acontecer um baile de gala, e a mãe do príncipe

disse para ele que ele tinha que encontrar uma noiva (a partir daqui vou inventar). No dia do

baile Odete foi e por ela o príncipe se apaixonou. Ele casou com ela teve filhos e foram muito

felizes.

Título: Barbie lago dos cines

Interpretação

Fernanda desenha um anjo, personagem que não possui sexo, nem sexualidade. É

uma estória com características latentes. Existe um casal que se encontra e que vive feliz para

sempre, mas é algo ainda distante e idealizado.

5.1.2.3 Síntese do Caso

Nas unidades de produção 1, 3 e 4, Fernanda apresenta um funcionamento mental

característico da latência, no entanto, nestas unidades de produção, ela também se aproxima

da questão da transição da latência para a puberdade. Ela fala da descoberta da sexualidade

(unidade 1), surge um pensamento para o qual não existe uma capacidade de simbolização, o

carnaval das bichas (unidade 3), se refere à metamorfose e ao sangramento da rainha (unidade

4), que pode está relacionado com a primeira menarca. No entanto, essa aproximação

acontece, como foi visto, em um nível mais pré-consciente e inconsciente.

Nas outras unidades, o que fica mais evidente é a estrutura psicodinâmica da

latência, com suas defesas bem rígidas e desenhos relacionados a um corpo infantil sem

nenhuma referência aos caracteres secundários. Não foi percebido nenhum conflito mais

intenso relacionado à sua vida instintiva. Não foi constatada também a presença de erotização

precoce.

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5.1.3 Caso 3

5.1.3.1 Sobre o contato com a criança

Caio tem nove anos e cinco meses. Fez três desenhos no primeiro dia e dois

desenhos no segundo dia. Mostrou-se muito concentrado ao longo da aplicação do D-E. No

entanto, ele pouco verbalizou, ficando muito quieto durante todo o procedimento.

5.1.3.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Um carro estava viajando para outro país e passou pela floresta, que encontrou

muitas montanhas e um rio grande cheio de peixe. Lá vivia um senhor idoso que andava pela

floresta com seu skate. Um dia ele viu o carro que estava passando pela floresta. Ele achou

estranho, porque ele nunca tinha visto uma coisa dessa, e então, ele foi olhar mais perto do

carro. Ele ficou com medo do carro e o carro estava sem o motorista. O carro não parava de

andar. Estava descontrolado e quase que atropelava o senhor. Mas ele escapou.

O senhor viu uma estrela cadente, que ele fez um pedido que o carro parasse de

andar. E então o seu pedido se realizou. Mas o carro caiu dentro do rio e o senhor tirou o carro

de dentro do rio. Quando ele tirou o carro estava com o motorista, e o senhor ajudou o

motorista, cuidando de seus arranhões. E eles ficaram amigos e eles viveram em uma casa só.

E eles plantavam muitas árvores para se alimentar. Mas teve uma chuva que destruiu as

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árvores. Mas eles fizeram uma casa para plantar as árvores. E eles conseguiram e comeram as

frutas das árvores e viveram muito amigos.

Inquérito:

▪ O motorista estava vindo da onde?

- De uma cidade

▪ Quem era o motorista?

- Era um homem que era um pouco pobre.

▪ Quem era o senhor?

- Ele nasceu lá. Os seus pais morreram e ele ficou lá.

Título: A Floresta

Interpretação:

No começo da estória Caio se refere a um carro que está se deslocando para um

outro país e se depara com uma floresta. Esta viagem de Caio pode representar um momento

de transição da latência para a puberdade. No percurso para um outro país, ele se depara com

algo estranho e desconhecido, simbolizado pela floresta. A floresta representa também os

impulsos, os bichos e os instintos.

Tudo o que está posto nos desenhos e nas estórias representam objetos internos

das crianças, aspectos deles mesmos. Nesta estória, o idoso e o carro desgovernado

representam aspectos de Caio. O idoso traz a idéia de alguém protetor, capaz de conter uma

instintividade descontrolada, que é simbolizada pelo carro.

O idoso pode representar a necessidade de um superego externo capaz de conter

os impulsos que estão descontrolados. Na estória o carro surge, primeiramente, sem motorista,

ou seja, sem ego capaz de lidar, de controlar a sexualidade. No entanto, quando surge a

possibilidade de contenção pelo idoso, isto é, por uma parte mais sábia, logo se descobre que

tinha um motorista-ego. Todavia, era um motorista-ego pobre.

O ego parece não estar ainda preparado para lidar com a turbulência característica

da adolescência. A transição, na estória, foi interrompida. Caio demonstra que precisa ainda

ficar perto das suas figuras parentais antes de continuar a sua aventura sozinho pela floresta.

Sobre a importância das figuras parentais para o desenvolvimento das crianças na

latência Klein (1932) afirma: Ela precisa, em outras palavras, ter representantes do superego no mundo externo. Essa dependência em relação aos objetos com a finalidade de ser capaz de controlar a ansiedade é muito mais forte no período de latência do que em qualquer outra fase do desenvolvimento. (KLEIN, 1997, p. 207).

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O fim da estória reserva uma boa surpresa. O que poderia ter sido um desastre se

transforma em algo fertilizante e criativo devido a esse diálogo e essa amizade amistosa entre

a parte mais instintiva (motorista) e a parte mais madura.

Unidade de Produção 2

A professora tava dando aula e os alunos estavam prestando atenção, quando um

menino jogou papel na professora e a menina falou que o foi o menino que jogou o papel. Ele

levou advertência e a menina ficou orgulhosa, porque falou para a professora que foi o

menino que jogou o papel na professora. E então todos pararam de jogar papel na professora,

e ninguém gostava da menina. Ela não tinha mais amigas no colégio, mas a professora

gostava dela. E então ela parou de dizer para a professora quem joga papel na professora. E

daí ela teve muitos amigos. Ela ficou muito feliz.

Inquérito:

▪ Por que o menino jogava papel

- Porque ele tava brincando e não queria prestar atenção na aula.

Título: O menino que jogava papel

Interpretação:

Essa estória e esse desenho trazem uma cena latente - de um lado meninos e do

outro meninas. Outro aspecto concernente ao período de latência é a busca por uma

adequação à realidade externa. A menina da estória, por exemplo, busca agradar a professora

denunciando os seus colegas. No entanto, o grupo de amigos também é algo muito importante

durante a latência, por isso a menina abdica de denunciar os seus colegas para se reintegrar ao

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grupo. Para Erik Erikson (1976), o período de latência é uma das fases socialmente mais

decisivas, pois a necessidade de produzir envolve “fazer coisas ao lado dos outros”.

Carignani (2000, p. 4) escreve: As relações sociais vão se modificando; em particular, a relação com os coetâneos se torna cada vez mais intensa e significativa: nascem as primeiras grandes amizades individuais entre do mesmo sexo (o/a amigo/a do peito), e o grupo de coetâneos (contemporâneos) se torna, cada vez mais, um ponto essencial de referência.

Unidade de produção 3

Tinha um homem que vivia na floresta. Ele gosta de pescar e de caçar. É assim

que ele se alimenta. Ele vive numa casa grande, feita de aço, porque do outro lado do rio tem

muitos animais perigosos. Para ele se proteger, ele se esconde, se não os animais perigosos

podem pegar ele. E ele tem medo, e é por isso que a casa dele é de aço. E, assim, os animais

perigosos não podem pegar ele.

Ele colhe muitas agricultura para ficar mais escondido dos animais perigosos. Ele

tem um sítio que tem poucos animais. Eles ficam presos para não ser pegos pelos animais

perigosos.

Inquérito:

▪ O homem vive com alguém na floresta?

- Não porque a família dele tem medo dos animais perigosos.

▪ Quem construiu essa casa de aço?

- Ele mesmo.

Título: O homem corajoso

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Interpretação:

Esta é uma estória bem característica da latência. Um lado do rio representa a

latência, lugar em que Caio se sente protegido contra os animais perigosos que vivem do

outro lado do rio, ou seja, do lado da puberdade.

Ele tem um ego-casa-de-aço, que o deixa bem seguro contra a agressividade e a

sexualidade. Esta casa de aço representa os fortes mecanismos de defesa característicos da

latência. Sobre esses mecanismos de defesa Freud (1925) ressalta: Nesse período da vida, depois que a primeira eflorescência da sexualidade feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, que estão destinadas a fazer frente à tempestade ulterior da puberdade e alicerçar o caminho dos desejos sexuais que se vão despertando (FREUD, 1996, p. 204).

Fica claro a importância de ter ao longo da latência um ego-casa-de-aço para se

defender dos impulsos sexuais e agressivos e se desenvolver saudavelmente.

Unidade de produção 4

Tinha 2 pessoas passando pela faixa de pedestre, e um carro passou no sinal

vermelho e quase atropelou as pessoas que estavam passando pela rua. E então, elas foram

correndo para a calçada e o motorista estava em alta velocidade. As pessoas foram à delegacia

para dizer que o motorista quase ia atropelando eles. E então, os policias foram atrás do carro

para pegar ele. Eles não conseguiram, mas, o carro tinha acabado a gasolina e os policiais

pegaram ele, e ele foi preso.

Inquérito:

▪ Quem eram as pessoas que estavam atravessando na faixa de pedestre?

- Estudantes.

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▪ Por que o motorista estava em alta velocidade?

- Porque ele era motorista há 3 anos.

▪ Por quanto tempo ele ficou preso?

- Por 3 anos

Título: O carro que escapou

Interpretação:

Esta estória nos remete à primeira. Tem-se novamente um carro desgovernado que

quase atropela duas pessoas. Esse carro desgovernado pode tanto simbolizar uma sexualidade

que surge de forma abrupta, como pode também representar algo mais instintivo relacionado

com a agressividade.

Um carro descontrolado também remete à questão da potência, uma vez que

muitos meninos a representam através de carros, motos e objetos em movimento.

No final da estória o motorista é preso por policiais-superego ao ter infringido o

sinal vermelho da latência.

Unidade de Produção 5

Era uma corrida de carro. Tinham 20 carros. Um deles estava quase chegando na

linha de chegada, mas chegou outro carro, e bateu no outro carro, e esse carro ganhou em 1°

lugar. O carro que foi batido estava todo quebrado, mas o juiz não aceitou a vitória dele,

porque ele bateu em outro carro, e então ele não ganhou em primeiro lugar. O carro que

estava quebrado ficou em 1° lugar, e o carro que ia ganhar em 1° lugar ficou em último.

Título: O perdedor e o vencedor

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Interpretação:

Nesta estória não encontramos uma referência clara à sexualidade, à erotização ou

à adolescência precoce. Caio fala de competitividade, mas forma latente, dando vitória ao

carro, que, no início, havia sido prejudicado. Essa preocupação com ideais éticos é algo que

se inicia no período de latência.

5.1.3.3 Síntese do caso

Caio é um menino que apresenta características esperadas em crianças que

estejam na latência – fortes mecanismos de defesa, necessidade de figuras parentais externas

que sejam continentes para a sua ansiedade, demonstra interesse pelo ambiente escolar,

preocupação com os ideais éticos.

Na unidade de produção 1 (um), Caio conta a estória de um carro que estava

viajando para outro país, passa por uma floresta, está desgovernado, sem motorista e quase

atropela um senhor. Apesar de estar predominantemente na latência essa estória se remete a

uma transição da latência para a puberdade.

Caio demonstra através desta unidade de produção que o seu ego ainda é um

motorista pobre, sem condições para lidar com impulsos avassaladores. Ele ainda precisa de

figuras parentais que o contenham e cuidem das feridas causadas por uma avalanche de

impulsos.

Na unidade de produção 2 (dois), demonstra que seus interesses estão também

voltados para o ambiente escolar. Na unidade de produção 3 (três), Caio demonstra a

importância dos mecanismos de defesa nessa fase do desenvolvimento. Na unidade de

produção 4 (quatro) ele, novamente, se refere aos perigos que podem acontecer quando um

carro está desgovernado, ou seja, quando o ego é invadido por impulsos que ele ainda não tem

condições de elaborar.

5.1.4 Caso 4

5.1.4.1 Sobre o contato com a criança

Marta tem 9 anos e 2 meses. Demonstrou muito interesse em participar da

pesquisa. Ao longo da aplicação do D-E estava sempre alegre e falante. Fez três desenhos no

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primeiro dia e dois desenhos no segundo dia. Ela contou que adora assistir novelas,

principalmente, “América”. Durante a minha estada no colégio, sempre me entregava

bilhetinhos, dizendo o quanto tinha gostado de mim e que um dia também gostaria de ser

psicóloga.

5.1.4.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez um jardineiro e sua esposa. Um certo dia, o jardineiro foi molhar as

flores e a árvore. A árvore dava muitos frutos e flores. Sua esposa estava preparando a comida

quando de repente: Cabrum!!!, começou a chover. Ele foi correndo para a casa, quando

voltou, as suas flores estavam todas caídas. Ele ficou muito triste, porque ele gostava muito

delas. Ele voltou para casa e disse para a sua esposa:

- Querida, as flores eram todas bonitas e cheirosas...

O jardineiro foi comprar novas flores. Quando chegou lá não tinha mais a espécie

da flor que ele queria. Então foi procurar em várias lojas. Quando ele chegou em uma das

lojas, achou as flores, comprou e voltou para casa. Ele e sua esposa ficaram muito felizes.

Então, ele plantou e começou a sorrir novamente.

Título: As flores e o jardineiro

Interpretação:

O jardineiro é uma figura masculina muito fálica. Ao molhar as plantas o

jardineiro as fertiliza. Marta, ao narrar esta estória, fala de um molhar as plantas que sai do

controle. É como se o jardineiro não tivesse molhado a terra com uma quantidade suficiente

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de água. Algo sai do controle, a chuva, que vem como uma enxurrada, estragando as flores.

Isto pode estar relacionado com o medo de que uma sexualidade irrompa e estrague tudo. A

chuva pode representar essa força instintiva que invade o ego da criança.

Ao ir comprar novas flores, o jardineiro vai tentar “consertar” o estrago. Este

jardineiro exerce uma capacidade criativa a qual é retomada no final da estória.

Unidade de Produção 2

Era uma vez uma menina chamada Juliana. A Juliana gostava muito de surfar,

mas ela era preservadora do meio-ambiente. Um dia ela foi surfar e a praia estava toda suja. E

como ela era preservadora do meio-ambiente, não gostou nada, nada, daquilo. Foi até o

prefeito e disse:

-Prefeito, minha praia está muito suja!

O prefeito falou:

- O que eu posso fazer, menina?

- Mande pessoas limpar e conservar!

- Tudo bem!

Um dia depois, Juliana foi à praia ver como estava. A praia estava limpa, pessoas

também limpando, mas conservando eu não vi. Foi lá no prefeito de novo e disse:

- Prefeito, eu quero AGORA a minha praia limpa!

O prefeito foi lá e mandou:

- Eu QUERO essa praia toda limpa!

Passou outro dia, a praia estava limpa e conservada. Assim, ela voltou a pegar

ondas.

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Inquérito:

▪Qual a diferença entre praia limpa e conservada?

- Conservar é as pessoas não jogarem lixo e limpar é limpar mesmo.

Título: A praia e a sujeira

Interpretação:

Esta é uma estória que traz uma cena mais latente. Juliana não quer contato com a

sujeira o que remete a um comportamento típico de crianças na latência. Amaral (1967, p. 95)

escreve: “Os mecanismos reativos de vergonha, nojo, medo, escrúpulo excessivo e limpeza exagerada

ativam-se no sentido da luta defensiva contra a masturbação e contra a sexualidade dos adultos que é

abominada”.

Há uma preocupação com a preservação do meio ambiente, o que representa uma

característica típica da latência na medida em que demonstra uma preocupação com

atividades socialmente aceitas.

Unidade de Produção 3

Era uma vez uma menina chamada Jéssica Priscila. Ela estava em seu

quarto. Quando, de repente, percebeu que estava começando a criar bolinhas. Correu

até a sua mãe e falou:

- Mamãe, mamãe eu estou começando a encher de bolinhas, será que é alergia?

A mãe dela falou que era catapora. E ela disse:

- Mamãe, catapora é muito grave?

Sua mãe respondeu:

- Não é tão grave, mas você não vai mais para a escola, para não contagiar quem

ainda não pegou.

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- Mas eu quero ir para a escola!

- Minha filha, você vai contagiar as outras crianças e o prejuízo não vai ser da

professora, vai ser seu!

- Tudo bem mamãe, eu entendo. E foi para a cama dormir.

Quando amanheceu, ela foi tomar banho de chuveiro e as bolinhas começaram a

arder. E ela gritou:

-Mãe, tá ardendo, tá ardendo!

Sua mãe foi olhar o que era, e falou:

- Minha filha, você não vai poder tomar banho de chuveiro. Espera aí, que eu vou

comprar um permanganato para você.

- Tá bem, mamãe.

Quando a sua mãe chegou, ela foi tomar banho e descansar. Alguns dias depois,

ela já estava criando cascões, melhorando. Aí ela falou para a mãe dela:

- Mamãe, já posso ir para a escola?

- Já! Vá tomar banho de chuveiro e se arrumar!

Ela tomou banho, se arrumou e foi para a escola. E todo mundo ficou feliz!

Título: A menina de catapora

Interpretação:

Este é um desenho e uma estória que se aproximam mais da puberdade. As

bolinhas, que aparecem em Jéssica Priscila, podem representar o aparecimento de caracteres

secundários, como espinhas, típicos da puberdade.

A menina do desenho ainda tem um corpo infantil, sem seios e sem formas

definidas. O que começa a surgir no corpo da menina a assusta, parece uma doença da qual

precisa se cuidar e se isolar. Dentro do meu ponto de vista, esta estória e este desenho podem

demonstrar como uma criança de nove anos se vê diante de uma sexualidade que está

irrompendo. Nesta estória, a criança se assusta e recorre à mãe com objetivo de que esta possa

conter a angústia e nomeá-la.

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Unidade de Produção 4

Era uma vez uma menina chamada Amanda. Ela era muito bonita. Ela estudava na

escola Dom João5. Um certo dia Amanda foi para a escola. Chegando lá, a escola não tinha

mais permitida a entrada de crianças de 1° a 4° série. Amanda fazia 3° série (não existe

nenhuma Amanda na minha sala, eu tô inventando). Ela foi na coordenação, quando chegou

lá, não tinha nenhuma coordenadora. Foi procurar um responsável da escola. Ela achou a

professora e falou:

- Professora, como é que eu faço para entrar dentro da sala?

- Vá conversar com tia Lisiane!

Ela procurou tia Lisiane e conversou com ela. Enquanto conversavam, ela falou:

- Tia Lisiane, quer dizer que para eu entrar dentro da sala, eu tenho que preencher

uma ficha?

Respondeu tia Lisiane:

- Isso mesmo!

A menina falou:

-Então vou buscar a ficha!

Buscou a ficha e a preencheu. Quando ela preencheu, entrou na sala e todo mundo

estava na fila para ir para o recreio. É que a ficha era muito grande, mas para encrencar mais

ainda, ela não tinha lanche nem dinheiro para comprar. E para piorar mais, ainda ela tinha

uma inimiga que foi falar com ela e disse assim:

- Chegou atrasada hoje, Amanda?

Amanda respondeu:

5Nome da escola é fictício.

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- Cheguei sim e o que que tem?

- Nada, nada - ela respondeu.

E, quando voltou para a fila da sala de aula, sentou em uma das carteiras, foi

pegar o seu livro de matemática, e não estava dentro da bolsa e nem na estante. Então, ela

falou para a professora:

- Tia, será que eu posso fazer uma ficha?

Ela falou:

- Pode sim, mas tem que ser de horas.

Ela fez a ficha, colocou na caixa, e alguns minutos depois ela foi embora da sala

de aula. Quando foi, não sabia onde estava a sua caneta cor de rosa. Procurou, procurou e não

achou. Ela voltou para casa chorando e sua mãe perguntou:

- O que foi?

Ela respondeu:

- Perdi a minha caneta preferida, cor-de-rosa.

Sua mãe disse:

- Amanhã, pergunte para a coordenadora, se não acharam, eu compro uma nova

para você.

Ela respondeu:

- Tá bom, mamãe, mas vou sentir falta da minha caneta.

No outro dia perguntou para a coordenadora e ela disse que achou. Chegando na

sala de aula, sentou na carteira bem da frente, e sua pior inimiga não tinha vindo para a escola.

Para o lanche, trouxe um chocolate, refrigerante jesus; e para comer trouxe um belo bolo de

chocolate. Chegou na hora da saída e não tinha perdido nadinha. Parou e pensou: será que

ontem foi o meu dia de azar, e hoje é o meu dia de sorte? Voltou para a casa e contou tudo

para a mãe dela. Ela ficou muito feliz, porque a sua filha também estava feliz. As duas foram

no shopping lancharam e foram para a casa, dormiram. E fim!

Título: A sorte e o azar

Interpretação:

O primeiro dia parece um pesadelo e o segundo dia, a superação do pesadelo. No

primeiro dia ela não tem lugar, tudo o que precisa não tem ou perde. Não se pode associar isso

à questão da sexualidade. O que fica evidente, portanto, é o sentimento de rivalidade presente

na relação estabelecida com as amigas na escola.

A escola é um tema muito característico da latência, assim como a estrutura da

estória que é descritiva.

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Unidade de Produção 5

Era uma vez família que estava organizando um churrasco só para a família. A

família tinha 5 (cinco) pessoas. O nome do pai é Eduardo e tinha 40 (quarenta) anos. O nome

da mãe era Fabiana e ela tinha 32 (trinta e dois) anos. O nome da menina era Fernanda, e tinha

12 (doze) anos. O nome do bebê era Lucas. O nome do menino era Fernando. Essa família era

muito especial, pois eles eram educados e carinhosos. Nesse churrasco Fernanda e Fernando

convidaram seus amigos para comer um bom churrasco e tomar banho de piscina.

Lá na casa deles, o quarto da menina era todo cor-de-rosa da hello kitty. Ela era

paty. O quarto do menino era todo do homem aranha e o quarto do bebê era todo de ursinho,

(bebê não tem preferência). A família chamou todos os seus amigos especiais. Eles tinham a

idade deles, do casal. O pai e a mãe foram comprar mais carne que estava faltando.

Compraram a carne e voltaram para casa. Quando voltaram, a carne estava pegando fogo; e

estava começando a incendiar, porque os meninos estavam lá em cima no quarto deles. Ele

fez o possível para que o fogo abaixasse e ninguém se assustasse, mas uma amiga de

Fernanda olhou pela janela da varanda e disse:

- Fogo, fogo, ai meu Deus, eu sou muito nova para morrê! – disse Vanessa.

Fernanda ouviu e todos também. E Fernanda ficou desesperada e gritou:

- Papai o que você fez?

O seu pai falou:

- Eu não fiz nada! Eu e sua mãe fomos comprar carne e quando voltamos estava

tudo incendiando.

Fernanda falou:

- Calma, calma gente! Não foi um incêndio!

Vanessa, sua amiga, disse:

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- Foi sim! Eu vi!

E todos acreditaram em Vanessa, menos um menino que gostava muito de

Fernanda, mas ela não gostava dele. Então disse na cara dele:

- Se é só você que acredita em mim, então não me interessa!

Vanessa disse:

- Menina, porque você falou isso para o Gustavo?

Ela disse:

- Eu não gosto dele e foi correndo lá embaixo.

Conseguiram apagar o fogo e eles voltaram lá pra cima. E disseram:

- Vamos começar a festa?

E o seu pai falou:

- Nada disso, mocinha! Você e o Eduardo estão de castigo!

Mas ela falou:

- E o bebê?

- O bebê não tem nada a ver com isso, ele é pequeno!

- É por isso que, às vezes, eu gosto de ser nenê.

A sua mãe falou:

- O que você está fazendo aqui, mocinha?

E ela disse:

- Mãe, só mais um pouquinho, por favor!

A sua mãe falou:

- Só mais uma hora, porque se não o seu pai briga.

Ela falou:

- Vou começar logo!

Depois de uma hora, o seu pai já tinha esquecido e já voltaram a comemorar.

Então eles ficaram até de noite. Alguns amigos foram embora, mas seus melhores amigos e

suas melhores amigas ficaram e dormiram na sua casa. E, como final feliz, eles foram a um

shopping, lancharam e brincaram.

Título: A confusão e a festa

Interpretação:

Nesta estória Marta parece falar de uma sexualidade que pode pegar fogo,

incendiar, irromper, principalmente, quando os pais não estão presentes. Ela se remete a uma

sexualidade que precisa ser contida pelos pais.

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Um outro aspecto importante é que Marta se identifica com Fernanda que tem 12

anos e que já está na puberdade. Aparece também a idéia de que as relações amorosas entre

meninos e meninas já estão acontecendo. Ela se refere a um menino que gosta dela, no

entanto, ela não demonstra gostar dele. Ela se defende desse gostar que incendeia.

5.1.4.3 Síntese do caso

Nas unidades de produção 1 (um), 3 (três) e 5 (cinco), Marta parece ficar

assustada diante da possibilidade de impulsos sexuais irromperem. Aparece o estrago que a

chuva forte faz nas flores, a angústia diante da possibilidade de que irrompam caracteres

secundários e o medo de uma sexualidade que pode pegar fogo e provocar um incêndio na

ausência das figuras parentais.

De outro lado, nas unidades de produção 2 (dois) e 4 (quatro), Marta apresenta um

psicodinamismo característico do período de latência – preocupação com a sujeira,

preservação do meio ambiente, conflitos relacionados ao ambiente escolar.

A partir do que foi analisado nessas cinco unidades de produção, entendo que

Marta sinaliza a importância da latência, o perigo de que a repressão falhe e impulsos sexuais

irrompam. Como foi visto, ainda não existe um amadurecimento suficiente da estrutura egóica

para lidar com esses impulsos.

5.1.5 Caso 5

5.1.5.1 Sobre o contato com a criança

Leandro tem 9 anos e 2 meses. Fez três desenhos no primeiro dia e dois no

segundo. Durante a aplicação Leandro relatou que seus pais eram separados e que ele morava

com o pai. Disse também que tinha mais dois irmãos. Não parava quieto ao longo da

aplicação do D-E. Levantava-se a todo o momento, saía correndo para beber água ou para ir

ao banheiro. No entanto, se mostrou muito comunicativo e interessado em fazer os desenhos e

contar as estórias.

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5.1.5.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez um rapaz que estava andando para sair do carro e chegou em sua

casa – não – na casa de sua amiga. Depois ele convidou ela para sair para o shopping e ela

aceitou. Ele chegou e comprou um prédio perto da casa da amiga. Depois eles tomaram banho

de piscina, subiram e se enxugaram e foram jogar bola. Depois ele deixou ela em sua casa,

depois voltou para o seu prédio e foi dormir. Fim!

Inquérito:

▪ Por que ele comprou um prédio do lado da casa da amiga?

- Pra ficar mais perto

▪ O que eles fizeram no shopping?

- Compraram roupas, brincaram em jogos de adulto, comeram.

▪ Qual era o nome deles? E quantos anos eles tinham?

- Ela tinha 25 e ele 26. O nome dela era Bárbara e o dele Leonardo. Não, muda! O nome dela

era Rose e o dele Revil.

Título: Nós somos amigos

Interpretação:

Nesta estória Leandro já demonstra um interesse pelo sexo oposto. Tem uma

atitude masculina diante de uma mulher – ele a convida para sair e compra um prédio para

impressioná-la. Esta atitude também demonstra a sua potência masculina.

O interesse e a aproximação relacionados ao sexo oposto aparecem nesta estória

de forma tranqüila. O ego de Leandro não demonstra estar ameaçado ou invadido por

sensações que irrompem bruscamente.

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Quando Leandro fala que eles estavam brincando de jogos de adultos, pode-se

supor que já existe uma aproximação da puberdade, no entanto, não é algo tão intenso que

pareça estar dominando seu ego. A puberdade aqui é um jogo de adulto, uma brincadeira.

Unidade de Produção 2

Era uma vez um homem que estava conversando com uma mulher e ele disse:

- Ei, vamos sair para o shopping? Vamos comprar roupas e vamos brincar nos

brinquedos de adultos? Agora vamos ir para...vamos comer? E depois vamos passear de

barco?

Ele deixou ela em casa e foi para a sua casa, e viu crianças jogando bola e foi

jogar bola com eles. E depois de jogar bola, ele foi banhar na piscina e foi para sua casa

dormir. Fim!

Inquérito:

▪ E a mulher aceitou o convite dele?

- Sim!

▪ E esse mulher era alguma coisa para ele?

- Namorada. Era o mesmo menino da estória passada só que agora eles eram namorados. É o

mesmo nome e a mesma idade.

Título: Nós já crescemos

Interpretação:

Esta estória aparece nitidamente como uma continuidade da primeira. Ele não

muda o tema. Continua interessado em brincar dos jogos de adultos. Como na estória anterior,

esta aproximação de um mundo mais adolescente aparece de forma tranqüila. O namoro é

vivido como uma forma de experimentação. Ele consegue separar o que é do mundo dos

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adultos e o que é do mundo das crianças. O jogo de bola, por exemplo, faz parte do mundo

das crianças.

Unidade de Produção 3

Era uma vez eu tava voltando do trabalho e chamei a minha esposa para viajar

para o meu interior. Lá nós brincamos, nós andamos de cavalo, andamos de bicicleta fomos

na casa do meu tio. Jogamos bola na hora que nós chegamos em nossa cidade que é São Luís.

Saindo do interior nós fomos ao parque de diversões e brincamos muito. Fim!

Inquérito:

▪ Quem são eles?

- São o mesmo da estória anterior. Não mudou nada.

Título: Nós já se casamos

Interpretação:

Diferentemente das unidades de produção 1 (um) e 2 (dois), observa-se aqui

menos associações com relação à estória e também um desenho menos colorido e de traço

mais fraco. Neste desenho não dá para saber o que se passa dentro dessa casa. É um mistério.

Depois de serem amigos e de crescerem, Rose e Revil se casam. No entanto,

quando descreve o relacionamento deles, Leandro não fala de beijos e abraços. O que ele sabe

dizer é que estão brincando de jogos de adulto, mas não especifica o que um faz com o outro.

Não tem a expressão de um contato mais físico.

Quando eles se casam, ele desenha só uma casinha, o que pode significar que é

essa a representação que ele tem de casamento, não sabendo dizer como é estar casado e o que

se passa dentro de um casamento. Ele não consegue fazer muitas associações e desenha

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116

menos. Diferentemente de Caio, a casa de Leandro não precisa ser de aço. Aproximar-se do

sexo oposto não é algo tão assustador.

Unidade de Produção 4

Eles depois de 2 meses, eles tiveram um filho. Depois levou o filho para ver a

fazenda junto com a mulher, andaram de cavalo e depois voltaram para casa.

O filho quando estava com 4 anos, ele começou a andar de cavalo sozinho. Fim!

Título: Nós temos um filho.

Interpretação:

Conforme os desenhos vão se sucedendo, as estórias vão diminuindo, os desenhos

vão ficando menos ricos e com traços mais fracos. Nesta estória pode-se perceber como é

difícil para ele narrar com clareza como é estar casado e ter filhos.

Novamente, a questão referente à sexualidade aparece de forma tranqüila, embora

ele tenha pouco a falar sobre ela. Na verdade, ele se refere a um ciclo: amizade, namoro,

casamento, filhos. Ele traz à tona o ciclo da vida.

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Unidade de Produção 5

Era uma vez um homem chamado marinheiro Papai. Ele estava andando de navio,

mas ele chamou o filho menor para ver os aviões voando. Ele tinha 2 filhos e 1 filha. O nome

dos filhos: o nome do menor era Goker, o nome do mais velho era Tranks. Eles viajaram de

navio e voltaram para sua casa. E o nome da filha era Videl.

Inquérito:

▪ O marinheiro papai tinha esposa?

- Não, ele se separou.

▪ Por que eles se separaram?

- Porque não dava para eles viverem juntos

▪ E os filhos moravam com quem?

- Com o pai.

Título: Eu sou o marinheiro papai

Interpretação:

Nesta estória, Leandro traz à cena um pai que convida o filho para compartilhar

com ele questões relativas à potência. Pode-se supor que Leandro tem uma relação muito

próxima com o seu pai. A figura paterna representada na estória é um pai que o convida para

ser homem como ele. Este fato talvez possa explicar a tranqüilidade com que ele trata as

questões relativas à sexualidade nas outras unidades de produção.

Esta estória sugere que uma relação próxima com o pai, na qual você se sente

convidado a compartilhar de questões relativas à masculinidade, pode preparar o caminho

para que a sexualidade não seja sentida como algo terrível, assustador e intempestivo.

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5.1.5.3 Síntese do caso

Leandro, ao longo das unidades de produção, se refere a um relacionamento que

vai evoluindo de uma amizade até um casamento com filhos. Ele tem uma atitude masculina

diante de uma mulher - a convida para sair, compra um prédio ao lado da casa dela e eles

brincam com jogos de adulto. É possível perceber que a aproximação que Leandro faz desse

universo masculino acontece de forma tranqüila.

Na última unidade de produção, Leandro se remete a um pai que o convida para

partilhar com ele uma sexualidade fértil e prazerosa. É interessante notar que nesta estória o

marinheiro, tal qual o pai de Leandro, é separado. Leandro parecer ter um bom

relacionamento com a figura paterna. Este fato parece ser importante para que Leandro se

aproxime da sexualidade de forma mais tranqüila.

5.1.6 Caso 6

5.1.6.1 Sobre o contato com a criança

Lia tem 9 anos e cinco meses. Fez dois desenhos no primeiro dia e dois no

segundo. Desenhava bem devagar, detendo-se por muito tempo em cada desenho. Lia não é

uma menina retraída, mas também não era tão expansiva e comunicativa como Fernanda e

Marta.

5.1.6.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

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Era uma vez um jardim que vivia vários animais. Nesse jardim não ia nenhuma

pessoa para desmatar. Até que um dia, chegou um bando de pessoas querendo caçar aves.

Eles não conseguiram pegar nenhum pássaro, porque tinha um protetor dessa selva e em todas

as outras selvas e lugares.

Essas pessoas voltaram para suas casas, porque ficaram aterrorizadas; e ficaram

muito tempo sem ir naquela selva.

Um dia eles voltaram, mas morrendo de medo; e dessa vez conseguiram pegar 10

(dez) passarinhos.

Novamente eles voltaram e muito deles morreram por causa do protetor da selva.

Ficou somente 1 (uma) pessoa. Essa pessoa ficou curiosa sem saber quem era o protetor.

Essa pessoa foi na selva e descobriu quem era o protetor. O protetor era o leão. E

o leão pegou a última pessoa que restou, e a selva ficou novamente livre das pessoas e sem

nenhum desmatamento.

Inquérito:

▪ Com que eles ficaram aterrorizados?

- Com o protetor.

Título: A selva

Interpretação:

Nesta estória o tema parece ser a agressividade e o fato de que algo precisa ser

preservado. Lia fala de um mundo institual – a selva – que encontra-se bem protegido.

Qualquer invasor terá como fim a morte.

Ela desenha o leão com traços bem fracos, ou seja, é uma agressividade que

aparece no desenho de uma forma tímida, mas que na estória é bem atuante. Isto pode

configurar um conflito, ou seja, poder externar ou não agressividade.

O que precisa ser preservado e protegido nesta etapa do desenvolvimento são os

impulsos e os instintos, para isto existe um leão-superego. Ela demonstra não ser o momento

desses impulsos saírem da selva.

O tema manifesto é a preocupação com o meio ambiente. Como foi dito

anteriormente, isto é algo característico da latência na medida em que reflete uma

preocupação em adequar-se aos valores culturais.

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Unidade de Produção 2

Era uma vez dois países que estavam em guerra em alto mar. Neste dois países

levaram carga para outros dois países. A Argentina tinha um homem que era muito bom em

tiro. Esse homem foi que lutou contra outro rapaz do Brasil.

O menino, o rapaz da Argentina, como era esperto, atirou na cara do Brasil, mas

ele não sabia que o rapaz do Brasil era mais esperto. Ele atirou no barco da Argentina e o

barco começou a afundar.

O rapaz da Argentina pulou para o barco do Brasil e pegou a arma do rapaz rival e

jogou no mar.

O rapaz do navio também pegou o dele e também jogou no mar. E os dois

começaram a lutar sem arma, até que uma hora apareceu o vencedor e quem ganhou foi o

rapaz do Brasil. Ele conseguiu a carga para outro país.

Inquérito:

▪ Qual era a carga do navio?

- Carvão

Título: A guerra

Interpretação:

O tema da agressividade se repete nesta estória. A questão da sexualidade também

não aparece nesta unidade de produção. O que fica evidente é um conflito interno que gira em

torno da agressividade e da rivalidade.

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Unidade de Produção 3

Era uma vez uma cidade que era muito legal. Nessa cidade as crianças podiam

brincar em todos os lugares, porque não passava carro. Até que um dia as pessoas ficaram

cansadas de caminhar por todos os lugares.

As lojas começaram a vender carros ex: Renault, Chevrolet e e.t.c. e foi

produzindo os carros.

As crianças não podiam mais brincar na rua, porque era muito perigoso e

arriscado de ficar na rua brincando sem atenção, porque poderia acontecer acidentes.

E todos os dias a nossa mãe e pai não deixam as crianças andarem na rua,

principalmente, brincar porque isso poderá causar vários prejuízos e como elas sempre dizem:

- “Sai daí crianças!”

As crianças achavam chato, porque não podiam brincar.

Título: O produzamento

Interpretação:

Nesta estória, Lia não faz nenhuma referência à sexualidade precoce ou a qualquer

característica que pertença à puberdade. Ela ressalta a importância do brincar neste momento

do desenvolvimento ao mesmo tempo em que demonstra como o crescimento das cidades

pode ameaçar e trazer riscos para essa atividade.

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Unidade de Produção 4

Era uma vez uma escola muito legal que tinha muitos alunos. Essa escola

ensinava várias coisas legais. Os alunos gostavam muito dela.

Nessa escola a maioria dos alunos conversa muito e as professoras não gostam. E

acabam ficando com dor de cabeça (mas não conta isso pra ninguém, tá?)

Eu e minhas colegas Raíssa, Ione, Lara, Rosa e e.t.c., a gente brinca,corre, lancha

juntas e apurrinha os meninos.

Na hora de voltar para casa, a gente não gosta, porque preferimos ficar brincando.

Título: A escola legal

Interpretação:

Esta estória traz uma cena bem característica da latência - a escola, a brincadeira

com os colegas, a rixa entre meninos e meninas e o prazer envolvido em realizar tais

atividades.

Para Erikson (1976, p. 237), neste período do desenvolvimento “a criança está

ansiosa e apta para fazer coisas em cooperação, juntar-se a outras crianças com o propósito de

contribuir e planejar, para obter maior proveito das lições dos seus mestres e seguir o exemplo

dos protótipos ideais”.

5.1.6.3 Síntese do caso

Na unidade de produção 1 (um), Lia demonstra a necessidade de se ter um

protetor-leão-superego, nesse momento do desenvolvimento, que proteja os instintos,

deixando-os sãos e salvos na floresta. Nesta unidade, ela demonstra também, em um nível

manifesto, uma preocupação com a preservação do meio-ambiente.

Na unidade de produção 2 (dois), aparecem sentimentos de rivalidade e

agressividade presentes também na unidade de produção 1 (um).

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Na unidade 3 (três), Lia ressalta a importância da brincadeira e o risco a que essa

atividade está submetida devido ao crescimento das cidades. Na quarta e última unidade, Lia

se remete à importância do ambiente escolar e do grupo de amigos.

Lia apresenta um psicodinamismo e uma estrutura egóica característicos da

latência de acordo com o que foi demonstrado através da análise das unidades de produção.

5.1.7 Caso 7

5.1.7.1 Sobre o contato com a criança

Marcelo tem 9 anos e 1 mês. Fez três desenhos no primeiro dia e dois no segundo.

Mostrou-se bem comunicativo e alegre ao contar as estórias que dramatizava fazendo as vozes

dos personagens.

5.1.7.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez uma menina e sua mãe. Um certo dia a mãe dela deu uma capa

vermelha. Outro dia sua mãe pediu para ela levar uma cesta de comidas para a sua vó que

estava doente. A mãe dela disse:

- Vá pelo lugar mais perto e menos perigoso.

E ela respondeu:

- Tá bom, mamãe.

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124

Só que quando ela estava indo, ela se perdeu e foi pelo lugar mais distante e

perigoso. No meio do caminho (deixa eu inventar um outro nome que não lobo para não ficar

idêntico) apareceu um coiote e disse:

- Menina o que tu levas nesta cesta?

E a menina respondeu:

- Doces e comida para a minha vovozinha doente.

E o lobo perguntou de novo:

- Onde é a casa da vovó?

E ela respondeu:

- É só ir reto e é a quinta casa que você ver!

Aí, o lobo esperto pegou um atalho e foi para a casa da vovó. Quando o lobo

chegou na casa da vovó, ela a escondeu no guarda-roupa e a trancou-lhe no guarda-roupa. Uns

minutos depois, Chapeuzinho chegou na casa da vovó e bateu na porta:

- Toc Toc Toc...

E o lobo perguntou:

- Quem é?

E ela respondeu:

- É sua netinha.

E ele disse:

- Venha, a porta está aberta.

Quando ela foi para ver a vovó, perguntou:

- Que olhos tão enormes você tem, vovó?

E ela respondeu:

- É pra te olhar melhor!!!

Ela perguntou de novo:

- Pra que esse nariz enorme que você tem, vovó?

- É pra te cheirar melhor!!

E ela perguntou, morrendo de medo:

- E essa boca tão grande que você tem, é pra quê?

- É pra te comer melhor!!!!!!

E ela saiu correndo pela porta dos fundos e chamou o caçador que estava andando

por lá. Ele matou o lobo e encontraram a vovó. Fim.

Título: Chapeuzinho e o coiote

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125

Interpretação:

Esta unidade de produção não traz elementos que façam referência clara à

sexualidade precoce e não possui também elementos que caracterizem uma puberdade

antecipada. Sobre o conto de fadas “Chapeuzinho Vermelho”, Bruno Bettelheim (1980, p. 06)

faz a seguinte afirmação: Na sua própria casa, Chapeuzinho Vermelho, protegida pelos pais, é a criança pré-púbere sem conflitos que é perfeitamente capaz de lidar com as circunstâncias. Na casa da avó, que também é segura, a mesma menina se torna totalmente incapaz em conseqüência do encontro com o lobo.

A partir desta afirmação de Bettelheim, é possível levantar a hipótese de que

Marcelo, assim como Chapeuzinho Vermelho, ainda não tem um ego preparado para lidar

com o lobo-mau, com os instintos e impulsos sexuais. É preciso chamar o caçador, uma figura

mais velha, para poder enfrentar o perigoso lobo-mau.

Unidade de Produção 2

Era uma vez um caçador que gostava muito de pegar ursos. Um certo dia ele não

conseguiu pegar nenhum. Ele ficou pensando: por que não peguei nenhum urso? E ele

escutou uma voz bem forte vinda da porta da sua casa:

- Tem alguém caçando os seus ursos! Trate de cuidar dele e mate-o!

No outro dia ele saiu bem cedo de sua casa com sua espingarda e viu o barulho de

tiros pum pum pum. Ele foi correndo ver o que era. Ele correu e deu um tiro em quem estava

atirando nos ursos. A sorte do moço que estava atirando foi que ele tropeçou em uma pedra e

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ele não foi atingido pela bala. E o guarda florestal, que estava passando, ouviu a zoada e foi

correndo ver o que era. Aí, ele disse:

- O que está acontecendo aqui?

E o moço falou que estava matando ursos na floresta, e o outro falou:

- Ele quase ia me matando! Você quer o quê?

O guarda falou:

- Eu não quero ver mais vocês aqui na mata!

Fim.

Inquérito:

▪ De quem era a voz que avisou o caçador?

- Era do Satanás

▪ O que aconteceu com os dois caçadores?

- Eles ficaram amigos

Título: Os dois caçadores que se deram bem, não, mal.

Interpretação:

Nesta estória não está presente nenhum elemento que se refira à erotização

precoce ou a alguma característica da puberdade. É uma estória que se aproxima mais da

latência.

Existe também uma agressividade que se manifesta na figura do caçador, mas ela

é barrada pelo guarda-florestal-superego que expulsa os dois caçadores da mata. Marcelo

parece comunicar que, ao longo do período de latência, é perigoso ficar na mata, pois podem

surgir impulsos muito destrutivos.

Unidade de Produção 3

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Um certo dia, um menino foi até a praça perto da sua casa para andar de skate. O

skate era mágico. Ele pode fazer a pessoa ruim no skate ficar boa, por isso o menino não

largava desse skate.

Um dia o menino, apavorado, estava gritando no seu quarto: Meu Deus, meu

Deus, meu skate sumiu! E perguntou para a sua mãe e seu pai:

- Vocês viram o meu skate?

Eles responderam:

- Não, estava com você ontem!

E o menino saiu da sua casa para procurar. A sua sorte foi que ele, toda noite,

botava o adesivo que brilha, e, quando ele saiu de casa, ele viu o skate igual ao dele e também

com o adesivo. Ele correu para cima do menino e perguntou:

- Onde você comprou esse skate?

Ele ficou calado. Quando o menino foi ver para trás, ele saiu correndo; mas antes

que ele fugisse, o menino pegou ele, recuperou o seu skate e ficou tudo bem.

Fim!

Inquérito:

▪ Como roubaram o skate do menino?

- O menino deixou encostado na porta e esqueceu de pegar.

Título: O menino e seu skate

Interpretação:

Esta estória já contém, mesmo que de forma mais leve, uma preocupação do

menino com a sua masculinidade. O skate aparece como representante desse masculino. Na

estória percebe-se a sua angústia ao se dar conta de que havia perdido o seu skate. É como se

Marcelo se perguntasse: “Cadê aquilo que me caracteriza como homem?”.

Apesar de não ser uma estória típica de um menino que esteja na puberdade, dois

temas já aparecem mesmo difusamente – uma preocupação com a questão do masculino e

também uma angústia de castração.

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Unidade de Produção 4

Um garoto de 9 anos tinha o sonho de ir à praia, só que não podia ir, porque seus

pais trabalhavam muito e ele não tinha familiares. Um certo dia, o garoto tentou ir à praia,

mas não conseguiu, porque o pai dele estava voltando do trabalho.

Ele tentou várias vezes, mas não conseguiu; mas teve um dia que o pai dele levou

ele até a praia. Ele gostou muito! Fim!

Título: O menino que tinha o sonho de ir à praia.

Interpretação:

Esta estória não traz nenhuma questão relacionada à erotização precoce ou a

puberdade. É uma estória mais característica da fase da latência. Na unidade de produção

anterior, ele chegou a se aproximar, timidamente, de dois temas característicos da puberdade.

Talvez a interrupção da aplicação possa ter reforçado os mecanismos de defesa da repressão.

Unidade de Produção 5

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Um garoto chamado Artur, de 9 (nove) anos, gostava muito de jogar bola. O pai

dele sempre levava ele para ver os jogos. Um dia o garoto, que era muito bom, conseguiu ir à

seleção do colégio de futebol. Eles disputaram vários jogos e conseguiram ir até a final. Ele

era o artilheiro do campeonato com 14 (cartoze) gols. No final, eles venceram de 6 (seis) a 0

(zero), sendo que 5 (cinco) desses gols ele marcou. Comemoraram a vitória e o menino nunca

mais esqueceu! Fim!

Título: O menino que gosta de futebol.

Interpretação:

Esta estória também se apresenta com características que estão mais de acordo

com a fase de latência. As atividades com o grupo de iguais e o interesse pelo jogo com regras

são características do período de latência.

5.1.7.3 Síntese do caso

Marcelo tem um psicodinamismo esperado em uma criança no período de latência

- apresenta um ego bem estruturado, demonstra interesse por jogos com o grupo de iguais,

não demonstra estar em conflito com as figuras parentais.

Marcelo comunica, na unidade de produção 1 (um) e 2 (dois), que ele ainda não

está preparado para entrar em contato com o mundo dos instintos, isto é, dos lobos, dos

ursos... precisando ainda, nesse momento, da presença e da contensão de figuras mais velhas,

representadas na estória pelo caçador e guarda-florestal.

5.1.8 Caso 8

5.1.8.1 Sobre o contato com a criança

Clara tem 9 anos e cinco meses. Fez dois desenhos no primeiro dia e dois no

segundo. Parecia muito entretida ao fazer os desenhos e ao contar as estórias.

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5.1.8.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez uma fazendinha com uma casa pequena que morava 2 (dois) filhos.

Lá tinha plantas muito bonitas. As borboletas e os pássaros voam sobre a árvore. Na árvore

tinha um balanço que as crianças gostavam tanto de se balançar nele. Gostavam tanto dessa

casinha que as plantas davam milho e outros tipos de comida. A árvore dava maçã quase

todos dia, e eles iam lá e comiam 3 (três) ou 4 (quatro) maçãs. Tinha um sol maravilhoso,

pássaros cantando. Era tudo calmo por lá. Mas um dia veio um homem à noite e destruiu as

plantas e os animais que moravam lá.

Quando a mãe e as crianças acordaram, perceberam alguma coisa estranha. Foram

para fora da casa e se assustaram com o que tinha acontecido. Um jardim tão bonito e depois

ficou feio. As crianças ficaram muito chateadas. E a mãe, que viu isso, resolveu se mudar de

lá, mas as crianças imploravam para que elas não saíssem de lá. E a mãe teve uma idéia:

- Que tal nós plantarmos o que tinha antes?

Pegaram muitas sementes, e plantavam muitas plantas sobre o jardim. Ficou à

noite. Quando acordaram, viram o velho jardim de sempre. Desde esse dia ficou tudo normal

e eles viveram felizes para sempre.

Inquérito:

▪ Quem era o homem que destruiu as plantas e os animais?

- Aqueles homens que destroem a natureza com o machado.

▪ E por que ele destruía a natureza?

- Porque ele tinha muita raiva porque a casa dele era horrível e a casa da vizinha era linda.

Título: A casinha de sempre

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Interpretação:

O tema desta estória gira em torno de uma mãe e filhos que estão vivendo

tranquilamente até chegar um homem e destruir tudo. O masculino, nesse primeiro momento,

vem representado como algo potencialmente destruidor. Ele destrói por inveja porque a casa

dele era horrível e a casa da vizinha era linda. Contudo, não aparecem referências à

erotização precoce nem a características da puberdade no desenho e na estória.

Unidade de Produção 2

Era uma vez um pescador que um dia foi ao mar pescar no mar. Quando estava

pescando, viu alguma coisa estranha no mar: era uma sereia liiiiiinda que estava cantando

para ele. Ela estava dizendo para não pegar os animais do mar. Ela disse para deixá-los em

paz onde eles vivem. O pescador não aceitou, mas ainda continuou pescando. A sereia

também não desistiu e disse para ela mesma que ia ficar até o amanhecer.

Quando foi outro dia, o mesmo homem que estava caçando, pescando animais, foi

de novo ao mar. A sereia estava no mesmo lugar que ele havia ido. Disse para ele parar, mas

ele ainda não parou de pescar. A sereia chamou todos os animais do mar para combater e

brigar, por causa que muitas pessoas vinham pescar e maltratavam a natureza. O pescador

ficou com pena dela e saltou todos os bichos que tinha pescado e devolveu ao mar.

Um dia veio outro pescador que caçava, não, pescava também peixes. A sereia

veio de novo e protestou de novo. Este homem que estava no barco era muito valente. Não

sentia dor no seu coração e nem pena. Ele pescou até o fim. Ele acabou dormindo e a sereia

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teve um plano. Ela amarrou ele com uma corda que achou no mar. Ela levou ele até à praia e

cavou na terra um buraco enorme, cheio de bichos que comiam gentes. Botou ele lá amarrado.

A sereia voltou ao mar e nunca mais viu esse tal homem por lá. E ela e os peixes

viveram felizes para sempre.

Título: O mar que foi salvo por uma sereia

Interpretação:

Esta estória repete o tema da anterior. Ela se refere a um masculino perigoso e

ameaçador, que vem destruir a sereia, ou seja, o representante do feminino. Ela coloca o

masculino separado do feminino, não existindo atração entre eles. A separação entre o

masculino e o feminino é uma característica da fase de latência.

Unidade de Produção 3

Era uma vez uma professora que era muito, mas muito, muito legal. As crianças

se divertiam muito com a professora. Um dia os meninos estavam tramando um plano para a

professora. Eles foram para o parque, fingindo que iam beber água. A professora procurou

eles, porque eles eram os únicos alunos que tinham na sala.

Outro dia, a professora não veio dar aula, porque ela pensou que os alunos não

iam vir no dia. Mas os alunos espertos, como a professora não tinha vindo, essas crianças

tramaram, riscaram o quadro de tinta, pegavam coisas do lixo e espalhavam no chão. Quando

a diretora veio, viu a bagunça que eles fizeram. Ela ficou traumatizada e chamou até a polícia.

A polícia disse:

- Vamos prendê-los!

Os meninos saíram correndo pela janela, mas não sabiam que era brincadeira. Aí,

a professora fez uma festa de arromba muito legal - mas que pena que eles faltaram na festa.

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Mas vieram todos os dias na escola e nunca mais fizeram aquela bagunça de novo. E a

professora ficou livre e sossegada desses meninos.

Título: Os meninos que nunca mais foram os mesmos.

Interpretação:

Esta estória traz uma cena latente – meninos bagunçando na escola. A estória é

contada por uma menina que relata a bagunça de um grupo de meninos. Na latência, como foi

dito antes, meninos e meninas não se misturam. É o que se convencionou chamar de clube do

Bolinha e clube da Luluzinha. Conforme Levisky (1998, p. 95): “Nesse período são

freqüentes jogos de natureza homossexual, ocorrendo uma separação espontânea nas

atividades entre meninos e meninas, organizando os populares clubes ‘do bolinha e da

luluzinha’.”

A professora aparece como um objeto investido libidinalmente. Ela, como diz

Clara, é, muito, muito legal. Na latência existe uma desinvestimento das figuras parentais e

um investimento em outras figuras exogâmicas, sendo a professora, uma das mais importantes

e significativas.

Unidade de Produção 4

Era uma vez um parque horroroso. Era muito velho. Nenhuma criança aparecia

por lá. Quando chegou um menino novo lá e o menino começou a brincar, mesmo que o

parque seje velho, ele continuou brincando.

Veio outros meninos e viam como ele brincava sorridente e calmo – tranqüilo -

como se ele nem estivesse brincando. Ele brincou tanto que começou a se cansar e foi para a

sua casa. Ficou noite e os outros meninos espertos foram testar o brinquedo. Acharam muito

legal e começaram a brincar. Teve outros meninos que não gostavam do parque e viram

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outros meninos brincando com o menino novo. Eles riam, riam, mas eles ainda continuavam a

brincar.

Teve um dia que um menino teve coragem de combater o outro. Esse menino era

o menino novo. Eles começaram a brincar até o fim dos dias. E o outro menino, até que

enfim, foi brincar no parquinho, e os outros meninos foram brincar no parque. E todos

viveram felizes para sempre.

Título: O menino corajoso

Interpretação:

É uma estória que traz uma cena típica da fase de latência: meninos brincando

entre si, tranquilamente. Não aparecem indícios de um conflito. O ambiente em que se passa a

estória é calmo e tranqüilo.

5.1.8.3 Síntese do caso

Clara é uma menina que não possui indícios de uma erotização precoce.

Apresenta características típicas da latência expressas, principalmente, nas unidades 3 (três) e

4 (quatro).

Na unidade 1 (um) e 2 (dois), Clara se remete a uma figura masculina assustadora,

que chega para destruir um ambiente calmo e tranqüilo. O masculino, nesse momento do

desenvolvimento, ainda é sentido como algo que pode destruir e estragar.

5.1.9 Caso 9

5.1.9.1 Sobre o contato com a criança

Saulo tem 9 anos e 8 meses. Fez dois desenhos no primeiro dia e dois no segundo.

Demonstrou muito interesse em participar da pesquisa. É um menino com um semblante

triste. Antes de começarmos a aplicação, Saulo diz ter muito medo de ser louco, porque não

conversa muito com as pessoas na casa dele e, todos os dias, sente vontade de sair e ficar

andando na rua do bairro. Ele diz adorar ficar inventando historinhas na cabeça dele e me

pergunta muito angustiado se ele é louco porque gosta de fazer isso.6

6Neste primeiro contato com Saulo ele demonstrou urgência em conversar sobre a sua fantasia de ser louco. Conversamos bastante antes de iniciar a aplicação do Procedimento de Desenhos-estórias. Procurei acolher a

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5.1.9.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

O menino ele não via, não enxergava. Ele tinha uma doença desde quando ele

nasceu. e ele sonhava sempre com o cachorro dele, porque ele podia pegar. aí ele não podia

ver as outras pessoas.

No dia que ele saiu, ele conheceu um menino que também era cego. E desde esse

dia ele começou a sonhar também com o menino. E dentro de casa, ele não podia falar com

ninguém só com a mãe e o pai. A mãe tinha vergonha de sair com ele porque ele era cego. Ela

já tentou matricular ele em várias escolas, mas nenhuma escola aceitava cego. Aí depois que

ele conheceu o menino ele se sentiu melhor.

Inquérito:

▪ Quem era esse menino cego?

- O nome dele era Tiago e ele tinha 9 anos que nem eu.

▪ Por que ele não podia falar com ninguém dentro de casa?

- Porque a mãe tinha vergonha de apresentar

▪ Como era o sonho dele?

- Ele sonhava que ele não era cego e tava brincando com o amigo dele. Ele imaginava do jeito

da cabeça dele porque ele não podia imaginar como era do lado de fora.

Título: O menino cego

Interpretação:

Nesta unidade de produção não tem nenhum elemento que remeta à erotização

precoce ou a alguma característica da adolescência. No entanto, Saulo traz uma fantasia de ser

doente, cego. Refere-se a uma mãe que tem vergonha dele e de sua doença. Esta unidade de

sua dor e entender a sua fantasia. Naquele pequeno espaço de tempo tentei, dentro das minhas possibilidades, amenizar a sua angústia.

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produção sugere que algo não vai bem com Saulo. É somente um indício que pode ser ou não

confirmado pelas outras unidades de produção.

Unidade de Produção 2

Era um homem que gostava de sair com o carro dele. Um dia ele foi multado. Aí

ele começou a ser rebelde com os guardas. Aí, ele disse:

- Eu não quero ser multado!

Aí, ele saiu correndo com o carro e, um dia, ele encontrou com o mesmo guarda.

Aí, ele tinha sido preso. Aí, depois da prisão ele já tava velho. Aí, ele aprendeu que ele não

podia sair correndo. Aí, ele pensou que a mãe dele ainda estava viva, mas ela já havia

morrido. Aí, ele ficou deprimido e virou um alcoólatra. Aí, um dia ele resolveu assim:

- Essa vida não dá mais para mim! – aí, ele se suicidou.

Aí, ele até hoje, ele virou um fantasma e fica perto do carro dele todo dia.

Inquérito:

▪ E esse homem tinha família?

- Ele tinha a mãe, a mulher dele morreu e o filho virou rebelde e saiu de casa.

▪ Por que ele se suicidou?

- Porque sua família toda havia morrido aí ele pensou que todo mundo tava no céu e queria

encontrar com eles. Ele tava alcoólatra.

Título: O futuro ruim

Interpretação:

Esta estória, assim como a primeira, não tem elementos relacionados à erotização

precoce nem traz referências de características adolescentes. Percebe-se em Saulo que ele

possui uma dificuldade de se identificar com o objeto bom. Não existe esperança de que algo

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possa melhorar, o que pode ser exemplificado pelo título da estória: O futuro ruim. Ele parece

encontrar na morte, ou melhor, no suicídio uma fuga para os seus problemas.

Unidade de Produção 3

Era um homem que vivia na escravidão, era negro. Os brancos batiam muito nele.

Aí, um dia, resolveram matar todos os pretos da raça negra. Aí, para eles não morrerem, ele

livrou todos os escravos e construiu um lugar. Mas, na hora, que ele foi pegar comida, um

branco achou ele e matou. Aí, ele foi para o céu e disse que lá no céu era bem melhor, porque

na terra tinha muita escravidão e sofrimento.

Inquérito:

▪ Como ele libertou os escravos?

- Porque lá eles viviam tipo um calabouço aí ele construiu uma passagem para todos os negros

se livrarem da escravidão.

Título: A escravidão

Interpretação:

Esta unidade de produção confirma as anteriores. Saulo parece ser um menino

depressivo e angustiado. Novamente idealiza a morte como fuga para os seus problemas. O

herói desta estória, assim como das anteriores, não consegue um desenvolvimento adequado,

isto é, não supera as dificuldades que encontra ao longo do caminho.

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Unidade de Produção 4

É porque no futuro os homens não preservavam a natureza. Aí, um dia, um

cientista criou uma máquina do tempo para voltar no tempo. Aí, quando ele voltou no tempo,

ele não tinha regulado a idade, e foi para a época dos dinossauros. Aí, ele achava que ia achar

animais que ia matar. Aí, ele começou a se acostumar. Aí, um dia ele foi morto por um

dinossauro. Aí, ele disse que qualquer tecnologia do mundo não ia fazer o homem feliz e

pensou que o maior erro de todos foi ter criado essa máquina do tempo, porque várias pessoas

podiam voltar no passado e ter o mesmo futuro que ele.

Inquérito:

▪ Como ele morreu?

- Um dia ele foi caçar uma carne aí o dinossauro sentiu o cheiro da carne e matou ele.

Título: Nenhuma máquina faz o homem feliz.

Interpretação:

Novamente Saulo traz o tema da morte como fuga para seus conflitos. O herói da

estória não se salva e é morto. Nesta unidade de produção ele traz questões emocionais

primitivas. Ao fazer uma viagem de volta ao passado ele só encontra morte e destruição.

Essa unidade de produção sugere que em um passado, no qual as angústias de

morte e o medo do colapso não puderam ser acolhidos, o futuro poderá ser difícil, depressivo,

cinzento e sem esperanças.

5.1.9.3 Síntese do caso

Saulo é uma criança que apresenta sérios indícios de depressão. Idealiza a morte

como saída para os seus conflitos. Na primeira unidade de produção, se refere a uma mãe

interna que sente vergonha dele. Isto faz supor que ele possa ter um objeto bom danificado.

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Na unidade de produção 4 (quatro), ele volta ao passado e lá só encontra morte. O

passado triste parece ser, para Saulo, um dos motivos pelos quais tem um futuro ruim e sem

esperanças.

Através do que foi constatado em todas as unidades de produção, Saulo precisa de

ajuda psicológica. Ele está muito angustiado e depressivo.

O Procedimento de Desenhos-Estórias mostrou-se, mais uma vez, um instrumento

eficaz no processo de diagnóstico.

5.1.10 Caso 10

5.1.10.1 Sobre o contato com a criança

Beatriz tem 9 anos e 2 meses. Fez todos os desenhos no primeiro dia. No decorrer

da aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias, contou que tinha um irmão pequeno e

que ele atrapalha muito, pois fica chorando o tempo todo. Por isso, ela gosta de ficar sozinha

no quarto trancada ouvindo música. Beatriz falou sobre os seus pais, referindo-se a figura

paterna em um tom mais queixoso.

5.1.10.2 Aplicação e análise do Desenho Estória

Unidade de Produção 1

Era uma vez uma menina que saiu à tarde para ir ao cinema. Mas o cinema fechou

e ela foi muito triste para casa. A mãe dela contou para ela que ela ía lanchar num lugar

diferente. Ela foi para casa muito feliz. E então sentou-se, assistiu tv e botou no canal 10. Ela

assistiu uma novela que se chamava “Como uma onda no mar”. Depois comeu de novo e foi

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para a cama. A mãe dela contou uma estória para ela e ela caiu no sono. A mãe dela foi

assistir tv também, comeu e foi dormir.

Inquérito:

▪ Quantos anos tinha essa menina?

- 9 anos. Pelo visto to falando de mim!

▪ Com quem ela foi ao cinema?

- Com a mãe dela. Assistiram Os incríveis.

▪ E qual foi a estória que a mãe dela contou antes dela cair no sono?

- Os espiões! Se eu to falando de mim eu tenho que falar que eu adoro estória de terror.

Título: Seu filho espião e sua filha espião

Interpretação:

Nesta unidade de produção não existem elementos que se refiram à erotização

precoce. A menina do desenho não tem uma definição sexual clara, a única referência ao

feminino é o cabelo. A figura paterna não aparece nesta estória.

Beatriz pôde perceber de forma evidente que através das estórias e dos desenhos

estava falando dela mesma.

Unidade de Produção 2

Eu tinha uma tia Gianna que é muito legal, bonita, inteligente e amada. Todos os

alunos dela, gostam dela. Alunos não, mas... Ela é a melhor psicóloga do mundo. Beijos,

Beatriz.

Título: Gianna e a aluna

Interpretação:

Esta é uma estória que tem características inerentes à psicodinâmica de uma

criança na latência, na medida em que, neste momento do desenvolvimento a criança busca o

amor de seus pais e educadores através de renúncias instintivas.

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Unidade de Produção 3

Um dia de sábado, não, de segunda, meu pai vai para a igreja. Toca músicas. Ele

já fez três CDS. Então eu vou para a casa do meu primo e escuto muitas bandas de rock. Ele

gosta de preto e eu aprendi, com ele, a ser doida - porque assim, eu era calminha e agora tô

mais agitada, por causa dele. Foi como um choque! Antes eu era calminha, só queria assistir

filme calmo, agora eu quero assistir filme doido e meu pai não deixa.

Então até hoje eu gosto muito de banda de rock. Brinco raramente, raramente.

Inquérito:

▪ Quantos anos tem seu primo?

- 9 anos.

▪ Como é filme doido?

- É filme de terror e gosto muito de novela também

▪ E qual a diferença entre ser doida e ser calminha?

- Ser calminha é só ficar quieta, gostar de musica e de filme calmo, ser doida é gostar de vestir

preto, ouvir rock essas coisas.

Título: Rock na veia

Interpretação:

Nesta unidade de produção Beatriz se aproxima de uma temática adolescente. Fala

de uma mudança interna - antes era calma e agora está mais agitada. Demonstra interesses

diferentes dos interesses do seu pai – ele gosta de música religiosa e ela de rock e relata, de

maneira enfática, brincar muito raramente.

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Unidade de Produção 4

Era uma vez uma menina que ia indo ao colégio Dom João7, porque no outro

colégio não se sentia muito bem, pois ela não gostava das professoras e nem dos colegas, pois

no Dom João me sinto melhor. Não é que não gostava do outro colégio, mas é que eu não me

sentia bem, pois eu achava todo mundo chato - então eu queria mudar de colégio. Agora no

Dom João, tô aprendendo coisas novas e, hoje, a gente estamos estudando para a feira

cultural.

Gosto muito da feira, pois no outro colégio tinha primos e deles, sim, gostava.

Inquérito:

▪ Por que a menina se sente melhor no Dom João?

- Porque tem mais educação é elhor. Tem banheiros limpos e cheirosos.

▪ Por que ela não gostava das professoras e dos colegas da outra escola?

- Tinha abusado.

Título: A menina que mudou de colégio.

Interpretação:

Nesta unidade de produção Beatriz apresenta uma atitude adolescente em relação

à escola anterior: os professores eram chatos e ela havia abusado tanto deles como dos

colegas. Ela comete um ato falho ao contar a estória - começa falando de uma menina e

depois a estória fica auto-referente.

Quando ele se remete à escola atual ela tem uma atitude mais latente – ressalta a

aprendizagem de coisas novas e a limpeza dos banheiros.

7Nome fictício da escola. A criança havia se referido ao nome verdadeiro da escola.

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Unidade de Produção 5

Era uma vez um coração que era legalzão, pois sempre tinha amigo. Um deles se

chamava Flor, a belíssima, que todo mundo amava, pois ela era muito gentil. Ela era tão

bonita, tão bela e tão charmosa que todos queriam casar com ela. A cor dela era azul, verde,

amarela, rosa e e.t.c.

Título: Um coração e uma flor.

Interpretação:

Nesta unidade de produção o desenho é bem infantil. A estória se aproxima, ainda

de forma tímida, de uma temática adolescente – existe uma flor linda que é desejada por

todos. No entanto, os aspectos femininos de sedução (beleza, charme, gentileza) ainda são

muito idealizados e distantes de Beatriz.

5.1.10.3 Síntese do caso

Beatriz é uma criança que apresenta aspectos característicos do período de

latência, evidentes na nas unidades de produção1 (um), 2 (dois) e 5 (cinco).

Na unidade de produção três e em alguns aspectos da unidade de produção quatro,

Beatriz apresenta uma dinâmica mais próxima da adolescência. Ela ressalta a sua mudança

para um momento mais doido e agitado, gosta de rock e de se vestir de preto. Ressalta que a

sua preferência musical se diferencia muita da preferência musical da figura paterna. Sobre

alguns aspectos da dinâmica característica da adolescência Levisky (1998, p.116) escreve: Um outro vértice dentro desse processo de perda refere-se à perda dos pais da infância, tanto como objeto real quanto objeto interno. A dualidade entre as forças de crescimento versus as de manutenção na infância faz com que o jovem tenha de se desvencilhar de sua independência com relação aos aspectos infantis, fundamentalmente em relação às imagos parentais como primeiros modelos identificatórios.

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Sobre Beatriz é possível dizer que ela está vivenciando um momento de transição

da latência para a puberdade. Em alguns momentos ela assume uma postura mais latente e em

outros aparece uma postura mais próxima da adolescência. É importante ressaltar, no entanto,

que esta transição está acontecendo de forma muito tímida.

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________________________________________________________

6.0 CAPITULO SEIS

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146

6.1 Discussão dos Casos Clínicos e Considerações Finais

Apresentei no capítulo anterior o material obtido através da aplicação do

Procedimento de Desenhos-Estórias em dez crianças de nove anos, sendo feita análise das

unidades de produção e síntese de cada caso em particular.

Meu trabalho, primeiramente, partiu de uma inquietação: O período de latência

hoje é igual ao que Freud postulou em 1905? Ou este período está diminuindo devido a uma

adolescência que pode estar iniciando mais cedo? Essa inquietação surgiu ao acompanhar

debates sobre uma possível erotização precoce das crianças; ao ler artigos em jornais e

revistas que questionavam a influência da mídia, principalmente da televisão, sobre a

constituição subjetiva das crianças; ao perceber a aflição de pais e educadores frente às

mudanças tecnológica, cultural e econômica por que vem passando a sociedade.

Ao iniciar a pesquisa de mestrado pude compreender melhor que o meu ponto de

partida seria estudar não o período de latência como um todo, mas sim a organização psíquica

da sexualidade em algumas crianças que estivessem no período de latência, levando-se em

consideração o meio sócio-cultural e econômico em que essas crianças estavam inseridas.

O ponto de partida e o percurso percorrido, na trajetória de minha pesquisa, já

foram relatados. Agora o momento é de refletir sobre o que foi vivido ao longo da caminhada.

Cheguei, ou melhor, chegamos à reta final. Momento de reflexão, de entrelaçar teorias,

práticas e descobertas. Para isso começarei a tecer minhas considerações sobre os casos

clínicos.

No primeiro caso, Felipe, um menino de nove anos e três meses, no decorrer da

aplicação do D-E mostrou que o seu ego parecia estar sendo inundado por sensações e

impulsos tão intensos que ameaçavam a sua solidez egóica, a sua capacidade de pensar. Na

primeira unidade de produção, ainda não estava claro o que estaria ocasionando essa

fragilidade egóica. Na segunda unidade de produção, fica mais nítido que Felipe atribui o seu

sentimento de naufrágio e a sua turbulência emocional a uma serpente que está crescendo e

pegando fogo, quando disse: Uma vez a cidade de São Luís estava tudo calmo. Dizem que de

baixo da ilha de São Luís tinha uma serpente que cada dia crescia [...] ela se despertou

zangada e provocou ondas que quase derruba os prédios da cidade. Essa serpente é um

símbolo fálico, que desperta de uma forma tão impetuosa que vai derrubando e destruindo

tudo.

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Felipe, nas unidades de produção três, quatro e cinco ainda demonstra em suas

estórias como se sente ameaçado por uma sexualidade que surge abruptamente. Uma

sexualidade que inibe sua capacidade de pensar, como indica a seguir: Uma estátua mostrou

que é proibido ficar com a cabeça na cidade e no mundo inteiro.

É possível perceber de forma clara neste primeiro caso que, quando a sexualidade

surge antes da existência de um ego capaz de elaborá-la, ela é vivida como algo ameaçador e

destrutivo. Vera Maria de Mello (2000, p. 6-7) faz uma importante afirmação sobre as

conseqüências de uma erotização precoce na mente infantil: Retomamos Freud (1905) que disse haver um quantum de angústia que pode ser metabolizada ou pensada. Desta forma o indivíduo, submetido até certo grau de estímulo, teria condições de responder com um fluxo de representação próprio e elaborar essa situação. No entanto, se o quantum de excitação supera o limite de tolerância psíquica, o aparelho psíquico se desorganiza, não há uma metabolização desse quantum de energia e se dá uma ruptura do pensável, podendo provocar sérias patologias. Entendemos que a erotização precoce, tanto da infância como da adolescência, provoca uma sobrecarga psíquica e que esta seria, então, uma forma de violência, de maus tratos, de abuso.

Felipe demonstra em todas as unidades de produção como o seu ego e sua mente

encontram-se em perigo devido a uma quantidade de impulsos que surgem sem que o seu ego

esteja apto para lidar com eles. Dessa forma, a sexualidade é vivenciada como algo destruidor,

perigoso, cortante. Nas palavras de Felipe: o vulcão provocou gases igual o ser humano e

saiu lava bem quente e água bem quente. Os peixes morreram e as pessoas ficaram

assombradas por o vulcão ter explodido. O vulcão começou a fazer muitos estragos na

cidade.

Essa mesma sensação está presente, de forma clara, nas unidades de produção 1

(um) e 5 (cinco) de Marta. O surgimento abrupto de impulsos sexuais não aparece de maneira

tão intensa como em Felipe. No entanto, sinaliza, novamente, que, se a sexualidade chegar

impetuosa em um momento do desenvolvimento em que o ego não tem capacidade para

elaborar todos esses impulsos, ela vai ser vivida como algo destruidor e perigoso, conforme

dito na unidade 1: sua esposa estava preparando a comida quando de repente: Cabrum,

começou a chover. Ele foi correndo para a casa. Quando voltou, as suas flores estavam todas

caídas. Na unidade de produção 5 (cinco), esses impulsos aparecem assim representados: “o

pai e a mãe foram comprar mais carne que estava faltando. Compraram a carne e voltaram

para a casa. Quando voltaram, a carne estava pegando fogo e estava começando a incendiar

porque os meninos estavam lá em cima no quarto deles.

Felipe em todas as suas unidades de produção e Marta na unidade de produção 1

(um) e 5 (cinco) expressam, por meio dos Desenhos-Estórias, uma organização psíquica da

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sexualidade diferente daquela esperada no período de latência. Em Felipe, mais intensamente,

no lugar da calma da latência, há uma evidente turbulência emocional. Freud (1905), no

entanto, refere-se ao período de latência como um tempo de tranqüilidade, em que ocorre a

diminuição das manifestações sexuais infantis. Nesse período,s impulsos sexuais são

suprimidos pela repressão e o ego utiliza-se de defesas mais evoluídas como a sublimação, a

repressão e a formação reativa.

Observei por meio da análise dos desenhos-estórias que, em geral, as crianças

estudadas estão vivendo o período de latência de forma adequada, com exceção de Felipe e

Saulo que apresentou sérios indícios de depressão.

Em algumas unidades de produção, as crianças mostram de forma clara que, se

este período for invadido por estímulos sexuais, os quais elas não conseguem elaborar, o ego

fica muito ameaçado. A sexualidade é vivida de forma destrutiva e ligada a impulsos

agressivos. Isto é, ela não vem relacionada à idéia de fertilidade, de procriação, de obtenção

de prazer. Caio, por exemplo, na unidade de produção1 (um), fala de um carro que surge no

meio de uma floresta desgovernado, sem motorista e que quase atropela um senhor. Entendo

que ele esteja se referindo, nesse momento, a uma sexualidade que, se aparecer em um

momento inadequado, pode ser perigosa. Na unidade de produção 3 (três), ele volta ao tema

da unidade 1 (um): Tinha 2 (duas) pessoas passando pela faixa de pedestre e um carro

passou no sinal vermelho, e quase atropelou as pessoas que estavam passando pela rua.

Nas meninas, verificou-se a existência de uma fantasia que liga o representante

masculino a algo destrutivo. Assim, o homem chega não para fertilizar, mas para ameaçar e

destruir. Clara na unidade de produção 2 (dois) relata: estava tudo calmo por lá. Mas um dia,

veio um homem à noite e destruiu as plantas e os animais que moravam lá. Érika na unidade

de produção 2 (dois) diz: Essa família vivia muito feliz. Até que um dia apareceu um

vendedor de laranjas e quando a mãe de Priscila foi pagando, ele puxou sua mão, pegou a

arma e assaltou a casa.

O conteúdo presente nas unidades de produção de algumas crianças confirma a

hipótese de alguns autores, mais especificamente, Sarnoff, Carignani, Outeiral e o próprio

Freud. A hipótese desses autores é de que uma interrupção no período de latência pode

ocasionar sérios entraves no desenvolvimento infantil. A análise do Desenhos-Estórias destas

crianças leva-me a propor uma segunda hipótese baseada nesta primeira – uma sexualidade

genital adulta, que irrompe antes do momento, pode ocasionar uma interrupção ou uma grave

perturbação no processo normal da latência. Para adentrar nesta discussão, acredito que,

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primeiramente, seja importante (re)ver o que esses autores discutem sobre as conseqüências

de uma possível alteração no transcurso da latência.

Para Freud (1905), a precocidade sexual, presente na etiologia das neuroses,

poderia se manifestar na interrupção, encurtamento ou término do período de latência. Uma

das conseqüências seriam perturbações nas manifestações sexuais, que poderiam ter

características típicas das perversões.

Freud não desenvolve essa idéia ao longo da sua obra, no entanto, abre uma

possibilidade, para refletirmos sobre as conseqüências da precocidade sexual na vida psíquica

de um indivíduo. Algumas crianças estudadas sinalizam o que poderia acontecer com a

solidez do seu ego; com a sua capacidade de pensar, de aprender; com a representação da

sexualidade que se formaria em seu mundo interno se, nesse momento do desenvolvimento,

fossem invadidas por estímulos, impulsos e sensações sexuais. Felipe na unidade de produção

5 (cinco) diz: começaram a jogar livros no fogaréu e começou a pegar muito fogo. Eles

pensavam que ia queimar tudo.

Carignani (2000) se refere à latência como um período de preparação para a

adolescência. Para este autor, se a preparação ocorrer de maneira suficientemente organizada

e elástica, o impacto com a adolescência será violento, mas tolerável. No entanto, se houver

um excesso de organização ou um excesso de elasticidade, haverá dificuldades em vivenciar e

elaborar a turbulência característica da adolescência.

Levando em consideração a afirmação de Carignani, posso pensar que uma das

possíveis conseqüências de uma erotização precoce em crianças latentes seria a dificuldade de

elaborar conflitos inerentes à adolescência. É na latência que a criança fortalece o seu ego,

utiliza defesas mais evoluídas, forma o seu superego, começa a exercer a sua plena

capacidade de simbolização, dessexualiza as suas relações objetais, volta os seus interesses

para a realidade externa; sendo todo esse processo, necessário e importante, para a criança

chegar à adolescência com mais recursos egoícos e intrapsíquicos para vivenciar a turbulência

emocional característica desse momento do desenvolvimento.

Sarnoff (1985), assim como Carignani, afirma que um bom desenvolvimento do

período de latência é de grande importância para que, na medida do possível, a criança chegue

preparada para enfrentar a adolescência. Este autor, como foi explicitado no capítulo um,

diferencia duas estruturas no ego da criança latente: os mecanismos de repressão e a estrutura

da latência. Para ele, se essas estruturas fracassam em se desenvolver ou funcionam

precariamente, começam a surgir sintomas neuróticos e comportamento impulsivo.

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Este tipo de comportamento impulsivo de que fala Sarnoff pode ser resultante de

uma falta de contenção interna e também externa, isto é, uma fragilidade relacionada às

funções do superego. Melanie Klein (1932) ressalta a importância da criança ter

representantes do superego no mundo externo para ajudá-la nesse processo de contenção da

ansiedade. A presença desse superego externo auxilia a criança da latência na luta pulsional,

que ela trava no seu mundo interno.

Marta, nas unidades de produção 3 (três) e 5 (cinco), deixa evidente a

importância das figuras parentais para conter a ansiedade resultante dos conflitos entre ego, id

e superego. Na unidade 3 (três), Marta assim narra: Era uma vez uma menina chamada

Jéssica Priscila. Ela estava em seu quarto, quando, de repente, percebeu que estava

começando a criar bolinhas. Correu até a sua mãe e falou: mamãe, mamãe, eu estou

começando a criar bolinhas, será que é alergia? Leandro na unidade de produção 5 (cinco)

também demonstra a importância de um relacionamento suficientemente bom com a figuras

parentais para um desenvolvimento saudável das questões relativas à sexualidade.

Outeiral (2003) sugere que a excessiva exposição à sexualidade e ao erotismo

genital, a que são submetidas às crianças, pode ocasionar uma abreviação no período de

latência. Segundo este psicanalista, isto poderia resultar em dificuldades que iriam repercutir

em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no processo normal do

desenvolvimento tanto na área da conduta como nos processos afetivos e cognitivos.

Acredito que essa interferência, na área da conduta, poderia se dar através da

diminuição da capacidade de pensar dessas crianças, fazendo com elas substituam o

pensamento e a capacidade de simbolizar pela atuação. Lembro-me de Bion (1962) e da sua

teoria do pensamento em que afirma que, se uma experiência emocional não é processada

para formar representações simbólicas que possam ser utilizadas para o pensar e o sonhar,

será necessário evacuá-las, colocando para fora o excesso de estímulos que estariam

sobrecarregando a mente. Uma das possibilidades de atuação relacionada à erotização precoce

poderia ser a gravidez na adolescência. Sobre este assunto Eda Tavares (1999, p. 121-130)

escreve: Os índices de gravidez na adolescência têm crescido vertiginosamente. Em menos de 10 anos, cinco vezes mais meninas de menos de 15 anos deram à luz (Veja). Cerca de 8300 meninas com menos de 15 anos são mães a cada ano no país, o que representa 20% do total de nascimentos, segundo estimativa do IBGE. [...] No Brasil tanto o governo quanto os serviços de saúde pública estão alarmados com as dimensões que vem tomando a incidência de gravidez na adolescência. [...]

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Os médicos, assim como os serviços de saúde, tendem a considerar esse fato como conseqüência da pouca informação adequada que acompanha a sexualização precoce dos dias de hoje, favorecida pelos meios de comunicação. [...] Podemos dizer, então, que essas gravidezes constituem um acting out dessas meninas, ou seja, uma demanda de simbolização.

Além da interferência no processo de desenvolvimento normal da conduta,

Outeiral observa que uma abreviação no período de latência poderia interferir também nos

processos afetivos e cognitivos. Felipe, na unidade de produção 4 (quatro), demonstra que,

quando impulsos genitais irrompem abruptamente nesse momento do desenvolvimento, no

lugar do cérebro fica um machado na cabeça, isto é, a capacidade de pensar fica ameaçada. Na

unidade de produção 5 (cinco), citado anteriormente, ele relata uma queima de livros que

acontece quando toda uma cidade é destruída devido a um vulcão que entrou em erupção.

Esses exemplos podem ilustrar como os processos cognitivos podem ficar ameaçados se a

latência for interrompida ou abreviada.

Não podemos compreender a criança fora de suas relações com a sociedade na

qual está vivendo, e desvinculada de suas interações com os sujeitos e com a cultura do grupo

em que está inserida. Essas relações são constituidoras de sua subjetividade, ou seja, de sua

forma de sentir, pensar e agir sobre o mundo. Erikson (1972) destaca a importância da

influência exercida pela cultura e pela sociedade no desenvolvimento humano. Para este

autor, cada estágio do desenvolvimento representa uma organização que corresponde às

exigências da cultura de uma determinada sociedade.

Discuti no capítulo um desta dissertação como o conceito de infância foi surgindo

ao longo do tempo, como vivemos em uma sociedade hoje bem diferente daquela em que

Freud viveu. No cerne dessa mudança estão as transformações tecnológicas, culturais e

econômicas por que vem passando a sociedade.

Não é possível referir-se à excessiva exposição das crianças à sexualidade e ao

erotismo genital sem tratar dessas transformações tecnológicas, culturais e econômica. Vive-

se em uma sociedade dominada pela ditadura da imagem, que tem a televisão vinte e quatro

horas no ar, ditando a todos os ideais de homem, de mulher, de beleza, de felicidade.

As crianças não acreditam mais na estória da cegonha. Os meios de comunicação,

principalmente a televisão, revelam segredos que na época de Freud pertenciam ao mundo dos

adultos, hoje, no entanto, compartilhados também pelas crianças. Observam-se nas ruas capas

de revista com mulheres e homens nus exibindo seu corpo, deixando explícita a diferença

sexual entre meninos e meninas, antes tão escondida debaixo de enormes saias e paletós.

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Para Freud (1905), um dos fatores que poderia ocasionar rompimentos prematuros

no período de latência, bem como seu desaparecimento, seriam as influências externas da

sedução. Ele afirma que, se tal fato ocorresse, a educabilidade das crianças estaria

prejudicada. Freud, entretanto, refere-se de uma sedução real. Nos dias de hoje talvez

pudéssemos falar de uma sedução virtual, midiática, televisiva.

Através da análise dos Desenhos-Estórias das crianças que participaram desta

pesquisa, ficou claro o cuidado que devemos ter com a exposição das crianças a imagens;

cenas; filmes que contenham um quantum de sensações, de estímulos sexuais e eróticos que

não são capazes de serem elaborados. Elas mostram como seria aterrorizante e arriscado viver

uma sexualidade genital adulta antes do tempo maturacional adequado. Quando o mecanismo

da repressão falha, os impulsos pré-genitais também são despertados e inundam o ego e a

mente infantil. Considero importante a seguinte reflexão de Levisky (2000, p. 31): Penso que a relação da mídia com a sociedade precisa ser revista, principalmente quando sabemos de suas influências sobre a estruturação da personalidade das crianças e dos jovens. Os recursos protetores da sociedade são escassos ou pouco eficientes e o sentimento que desperta nos cidadãos é de impotência.

Este autor também escreve sobre os efeitos da violência na estruturação psíquica

de indivíduos em desenvolvimento. Ele sugere que uma criança ou mesmo um adolescente

assistindo a vários assassinatos, diariamente, pela televisão poderá modificar a sua maneira de

perceber a violência. Outeiral (2003), seguindo o pensamento de Levisky e Soifer, propõe que

esta modificação não será apenas na maneira do adolescente ou da criança perceber a

violência, mas também haverá uma modificação na sua erótica se forem constantemente

expostos a uma sexualidade, em todas as suas formas e matizes ao assistirem a filmes, novelas

ou propagandas.

É importante deixar claro que este não é um discurso moralista nem nostálgico.

Penso que é importante verificar de que modo a sexualidade é apresentada às crianças na

contemporaneidade, observando como esta apresentação se difere daquela feita nos séculos

XVIII e XIX . Dessa forma é possível analisar melhor quais seriam as conseqüências dessa

nova maneira de apresentar e de viver a sexualidade na subjetividade infantil. Safra (2001,

p.17) afirma a necessidade de um posicionamento crítico perante a maneira como essas

informações são apresentadas, pois “a linguagem e a estética da era digital afetam

profundamente a subjetividade humana, principalmente a subjetividade da criança”.

Se de um lado as crianças que participaram desta pesquisa mostraram em algumas

unidades de produção como se sentem ameaçadas e em perigo quando impulsos sexuais

genitais irrompem precocemente; de outro lado, elas também mostram como é necessário que,

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durante esse período do desenvolvimento, a sexualidade, os instintos, os impulsos genitais

fiquem nas “florestas”, “do outro lado do rio,” preservados, reprimidos e distantes do seu ego.

Caio na unidade de produção 3 (três) ilustra bem essa necessidade: Tinha um homem que

vivia na floresta [...] ele vive numa casa grande, feita de aço, porque do outro lado do rio tem

muitos animais perigosos. Para ele se proteger, ele se esconde, se não os animais perigosos

podem pegar ele e ele tem medo. E é por isso que a casa dele é de aço. Lia na unidade de

produção 2 (dois): Era uma vez um jardim que vivia vários animais. Nesse jardim não ia

nenhuma pessoa para desmatar. Até que um dia chegou um bando de pessoas querendo caçar

aves. Eles não conseguiram pegar nenhum pássaro porque tinha um protetor da selva e em

todas as outras selvas e lugares.

Bruno Bettelheim, em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, estuda a

importância dos contos de fadas na elaboração dos conflitos infantis e faz uma análise sobre a

linguagem simbólica do inconsciente presente nesses contos. Nesse livro ele faz a seguinte

afirmação: O id, à semelhança da maneira como os psicanalistas o encaram, é frequentemente retratado sob a forma de algum animal, representando a nossa natureza animal [...] tanto os animais perigosos como os prestativos representam nossa natureza animal, nossos impulsos instintivos. (BETTELHEIM, 1980, p. 93).

Esta afirmação de Bettelheim auxiliou-me a pensar sobre o significado presente

nas estórias e nos desenhos das crianças. Querer proteger os animais e deixá-los na floresta

significa mostrar a necessidade de deixar os instintos no id. Isto quer dizer que ainda não é o

momento desses impulsos invadirem o ego da criança latente. Lia na unidade de produção 1

(um) ressalta a importância do protetor da selva, ou seja, a importância de um superego bem

estruturado que possa conter esses impulsos.

Victor Hugo (2006), poeta francês que nasceu no início do século XIX, em um

dos seus poemas escreve sobre a importância de viver cada fase da vida sem pressa. Ele diz

que cada momento da vida tem o seu prazer e a sua dor. Nas belas palavras do poeta: Desejo que você, sendo jovem

Não amadureça depressa demais,

E que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer

E que, sendo velho, não se dedique ao desespero.

Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e

É preciso deixar que eles escorram por entre nós [...]

Há mais de cem anos atrás Victor Hugo através de sua arte, a poesia, escreveu

sobre a importância de um amadurecimento saudável. O discurso do poeta é um discurso

desenvolvimentista, ressaltando o prazer e a dor existentes em cada etapa do crescimento

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humano e a importância de vivenciá-los. Entendo que em algumas unidades de produção as

crianças desta pesquisa, através de seus desenhos e de suas estórias, também mostram a

importância de vivenciar, adequadamente, esse momento do desenvolvimento infantil que é o

período de latência.

As crianças expressam, em outras unidades de produção, a importância das

figuras parentais, da escola, da professora e do grupo de amigos no seu processo de

desenvolvimento. Para que haja um amadurecimento adequado do ego, é necessário que a

criança no período de latência possa estabelecer um bom contato com a realidade externa. As

figuras parentais e os professores são vistos como amigos, companheiros, verdadeiros

representantes do superego na realidade externa e continentes da ansiedade. A escola é

representada como um ambiente em que estórias e conflitos estão presentes. A criança

demonstra que, nesta etapa do seu desenvolvimento, os seus interesses e seus conflitos não

estão voltados apenas para o âmbito familiar. É o momento de expandir seus interesses. Sendo

assim, a escola e o grupo de iguais vão ser investidos emocionalmente pela criança.

A unidade de produção 5 (cinco) de Marcelo ilustra esse lugar que os pais ocupam

na latência, o de continentes: Um garoto chamado Artur de 9 anos gostava muito de jogar

bola. O pai dele sempre levava ele para ver os jogos. Na unidade de produção 1 (um), Caio

refere-se a uma figura mais velha, um senhor que cuida dos arranhões de um motorista depois

que este sofre um acidente por dirigir um carro desgovernado. Nas palavras de Caio: O senhor

viu uma estrela cadente, que ele fez um pedido, que o carro parasse de andar. E então o seu

pedido se realizou, mas o carro caiu dentro do rio e o senhor tirou o carro de dentro do rio.

Quando ele tirou o carro, estava com o motorista. E o senhor ajudou o motorista, cuidando

de seus arranhões. E eles ficaram amigos.

A importância da escola, da professora e do grupo de iguais no processo de

desenvolvimento da criança na latência pode ser ilustrada pela unidade de produção 4 (quatro)

de Lia: Era uma vez uma escola muito legal que tinha muitos alunos. Essa escola ensinava

várias coisas legais. Os alunos gostavam muito dela [...] eu e minhas colegas Raíssa, Ione,

Lara, Rosa e e.t.c. A gente brinca, corre, lancha juntas e apurrinha os meninos. Na hora de

voltar para casa, a gente não gosta porque prefere ficar brincando. Clara na unidade de

produção 3 (três) também se remete a este tema: Era uma vez uma professora que era muito,

mas muito, muito legal. As crianças se divertiam com a professora.

A literatura estudada sobre a latência ressalta a importância do ambiente escolar,

do grupo de amigos, das figuras parentais para um bom desenvolvimento da criança.

Carignani (2000, p. 5) afirma que, nesta etapa do desenvolvimento, os pais não são mais o

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mundo da criança, mas fazem parte do seu mundo. A raiz do sentimento de pertencer a uma

geração está intrinsecamente relacionada a essa primeira tentativa do latente de pertencer a

um grupo de amigos.

Essa busca da criança latente por relações fora do âmbito familiar está relacionada

com a repressão dos seus desejos incestuosos. É um momento difícil do desenvolvimento,

pois a criança se separa dos seus primeiros objetos de amor, sofre a dor da castração e segue

em busca de novas formas de obtenção de prazer, novos objetos de amor. Um prazer cujo

objetivo não é mais sexual, mas sim cultural. Vale a pena recordar que Freud (1905) colocou

o período de latência como fundamental para a entrada do homem na cultura e na neurose.

O período de latência é descrito pelos autores como um momento em que se

formam os ideais éticos e estéticos no ego. Momento em que a criança se volta para

atividades socialmente mais aceitas, o que é uma conseqüência da sublimação dos impulsos

sexuais.

Na análise dos Desenhos-Estórias, algumas crianças mostraram-se preocupadas

com a preservação do meio-ambiente, o que demonstra uma apreensão dos valores da cultura,

uma preocupação também como o que é certo e socialmente aceito. Esta preocupação

apareceu de forma mais evidente na unidade de produção 3 (três) de Clara, na unidade de

produção 2 (dois) de Marta e na unidade de produção 2 (dois) de Marcelo. Para ilustrar, cito

um trecho de Marta: A Juliana gostava muito de surfar, mas ela era preservadora do meio

ambiente. Um dia ela foi surfar e a praia tava toda suja, e, como ela era preservadora do

meio ambiente, não gostou nada, nada, daquilo.

Como foi dito no início deste trabalho, esta pesquisa foi realizada em São Luís do

Maranhão. No capítulo quatro fiz um breve percurso sobre a História, a geografia, a cultura e

a situação sócio-econômica da cidade. Foi possível perceber que determinadas características

culturais permearam algumas unidades de produção. Felipe, por exemplo, utilizou a Lenda da

Serpente e de Ana Jansen, para falar dos conflitos existentes no seu mundo interno. Na

unidade de produção 2 (dois), Marta preocupa-se com a conservação das praias e, na unidade

de produção 5 (cinco), ela desenha toda a família usando roupa de banho em churrasco. Lia,

na unidade de produção 2 (dois), fala de uma sereia que luta para preservar o mar.

Outras características, peculiares às crianças que moram em São Luís, podem

estar presentes nos resultados obtidos através da análise do material. No entanto, para que se

possa compreender que outras características referentes à cultura maranhense estariam

presentes nestes Desenhos-Estórias, acredito que um estudo comparativo, e com um maior

número de crianças, precisaria ser realizado.

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Um outro aspecto que gostaria de abordar nestas considerações é o valor

diagnóstico do Procedimento de Desenhos-Estórias e sua eficácia como um instrumento capaz

de mobilizar conflitos e angústias emergenciais presentes no mundo interno da criança.

Entre as dez crianças que participaram da pesquisa estava Saulo, um menino de

semblante triste, que me relatou ter muito medo de ser louco. Ao longo das unidades de

produção ele foi revelando um mundo interno permeado por sentimentos depressivos, sem

esperança, encontrando apenas na morte e no sofrimento a saída para sua dor. Um trecho da

unidade de produção 2 (dois) ilustra essa dinâmica de Saulo: [...] ele tinha sido preso. Aí,

depois da prisão ele já estava velho. Aí, ele aprendeu que ele não podia sair correndo. Aí. ele

pensou que a mãe dele ainda estava viva, mas ela já havia morrido. Aí, ele ficou deprimido e

virou um alcoólatra. Ai, um dia ele resolveu assim: essa vida não dá mais pra mim, e aí, ele

se suicidou. Na unidade de produção 3 (três) aparece o seguinte relato: Era um homem que

vivia na escravidão - era negro. E os brancos batiam muito nele [...] Na hora em que ele foi

pegar comida, um branco achou ele e matou. Aí, ele foi para o céu e disse que lá no céu era

bem melhor, porque na terra tinha muita escravidão.

Percebi que, ao longo da aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias, Saulo

pôde se sentir acolhido. Segundo Ana Maria Trinca (2003, p. 60), “O D-E ativa e desperta

conteúdos internos de natureza essencialmente dinâmica e permite observação clara dos

movimentos emocionais que vão se desenvolvendo ao longo da aplicação”. As emoções, os

medos e as angústias de Saulo foram despertadas e encontraram um lugar onde puderam ser

narradas, simbolizadas e contidas.

Após ter percebido o pedido de ajuda de Saulo, entrei em contato com a

professora da sua classe, como também conversei com a diretora responsável pelo ensino de

primeira a quarta série. Neste caso, em especial, o D-E mostrou o seu valor como

instrumento diagnóstico dentro do âmbito escolar e também como mediador no contato que se

estabeleceu com a criança.

Algumas crianças, ao longo da aplicação do D-E, confidenciaram-me sentimentos

e acontecimentos que faziam parte de sua vida. Leandro, por exemplo, relatou que seus pais

eram separados. Beatriz falou do incômodo que sentia com relação ao seu irmão bebezinho e

do relacionamento não muito satisfatório que tem com a figura paterna. Marta disse que

achava chato morar na casa da avó. Lia contou que gostava muito de ficar sozinha no seu

quarto. Por meio desses breves exemplos, pude constatar, assim como outros autores, que o

Procedimento de Desenhos-Estórias é um instrumento que facilita o contato com as crianças

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na medida em que utiliza aspectos lúdicos como contar estórias, desenhar e pintar, para se

aproximar do mundo interno infantil.

Ao iniciar esta pesquisa, propus verificar, dentre outros objetivos, se nas crianças

estudadas existiam indícios de uma adolescência precoce. Por meio da análise do material

obtido, não constatei a existência de características adolescentes na maioria dos casos

estudados. O que pude observar foi a presença de algumas características referentes à

adolescência e, também, a um momento de transição da latência para a adolescência em

poucas unidades de produção.

Em Beatriz, por exemplo, aspectos infantis presentes na primeira e na segunda

unidade de produção contrastam com uma temática mais adolescente verificada nas unidades

de produção 3 (três) e 4 (quatro). Na unidade de produção 3 (três), ela fala do seu interesse

por rock e de um momento anterior em que era calma, diferente do momento atual que está

aprendendo a ser doida e se vestir de preto. Nesta unidade também aparece uma oposição à

figura paterna: ele gosta de músicas de igreja e ela de rock. Nas palavras de Beatriz: Um dia

de sábado, não, de segunda, meu pai vai para a igreja. Toca músicas [...] então eu vou para

a casa do meu primo e escuto muitas bandas de rock. Ele gosta de preto, e eu aprendi com

ele a ser doida, porque assim, eu era mais calminha e agora tô mais agitada. É interessante

notar que a estória criada por Beatriz é auto-referente, ou seja, fala dela mesma diretamente

sem utilizar, para isso, um personagem. Na unidade de produção 4 (quatro), Beatriz se remete

a escola, mas não de uma forma latente. No colégio em que estudava anteriormente, ela não

gostava nem dos colegas nem das professoras, achava todo mundo chato.

Leandro nas unidades de produção 1 (um) e 2 (dois) se aproxima de uma temática

adolescente. No entanto, essa aproximação acontece de forma tranqüila, diferentemente do

que ocorre com Felipe. Na unidade de produção 1 (um): [...] era uma vez um rapaz que

estava andando para sair do carro e chegou em sua casa, não, na casa de uma amiga. Depois

ele convidou ela para ir ao shopping e ela aceitou. Ele chegou e comprou um prédio perto da

casa da amiga [...], Leandro demonstra certo interesse pelo sexo oposto, tendo uma atitude

masculina diante de uma mulher. Na unidade de produção 2 (dois), os amigos da estória

anterior viraram namorados. Eles foram passear no shopping, comprar roupas e brincar nos

brinquedos de adulto. Nas unidades de produção 3 (três) e 4 (quatro), eles se casam e têm

filhos.

Em Leandro é possível perceber nítido interesse pelo sexo oposto, característico

da adolescência, em que o indivíduo começa a sua escolha por um objeto de amor fora do

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âmbito familiar. Na latência há uma desinvestimento libidinal das figuras parentais e uma

busca por outros objetos fora da família.

Na adolescência vai haver uma retomada de forma mais intensa dos conflitos

relacionados ao complexo de Édipo. O objeto de amor do adolescente vai ser alvo de

investimentos libidinais e sexuais, haja vista que no adolescente o desenvolvimento corporal e

das funções reprodutoras está praticamente completo. A busca por objetos de amor, na

latência, tem características bem diferentes, pois as crianças buscam uma maior aproximação

com crianças do mesmo sexo e ainda não existe um interesse pelo sexo oposto. Assim, fica

claro que em Leandro há uma predominância, em suas unidades de produção, de uma

temática mais adolescente.

Marcelo, na unidade de produção 1 (um) e 3 (três), também se aproxima de uma

temática adolescente, no entanto, essa aproximação acontece de forma tímida. Na unidade de

produção 1 (um), conta a estória de Chapeuzinho Vermelho que, de acordo com Bruno

Betellheim (1980), é uma estória sobre conflitos edípicos de uma menina na puberdade.

Entendo que, nesse momento, Marcelo se aproxima de um tema adolescente, mas ainda o faz

de maneira distante. Na unidade de produção 3 (três) conta a estória de um menino que fica

muito angustiado ao perder o seu skate. Apesar de não ser uma estória típica da adolescência,

ele se aproxima de três temas da adolescência: conflito edípico, angústia de castração e

preocupação com o masculino representado pelo skate.

Ao contar a estória sobre a descoberta da sexualidade, Fernanda, na unidade de

produção 1 (um), se remete a um momento de transição da latência para a puberdade. Ela se

aproxima da sexualidade, no entanto, ainda é proibida por uma autoridade superegóica

representada por Deus. Na unidade de produção 5 (cinco), Fernanda também se aproxima de

sentimentos referentes a um momento de transição, surgindo dois elementos que apontam

para esta aproximação – o sangramento da rainha e a transformação da borboleta. No entanto,

a aproximação de Fernanda ainda é muito tímida, aparecendo apenas nestas duas unidades de

produção.

Este não é o momento nem o lugar para discutir novos modelos de família, apesar

de no capítulo 1 (um) ter remetido às novas configurações e estruturas familiares presente na

atualidade. Agora de outro ponto de vista, penso ser importante destacar a comunicação feita

por Leandro. Ele relatou, inicialmente, que os seus pais eram separados e que residia com o

pai. Ao longo da aplicação do procedimento de Desenhos-Estórias, Leandro revelou que a sua

aproximação de temas relacionados com a sexualidade foi feita de forma bem tranqüila. Ele

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apresenta, na última unidade de produção, uma figura paterna que o convida para adentrar em

um mundo masculino, no qual a sexualidade é vivida como algo fertilizante e prazeroso.

Supõe-se, desta forma, que uma relação mais próxima e saudável com as figuras

parentais é de fundamental importância para o desenvolvimento infantil. Nesse momento em

que se discutem as novas estruturas familiares e o lugar da família na sociedade

contemporânea, penso ser importante destacar que os pais, juntos ou separados, continuam a

desempenhar um importante papel no palco da vida. O que parece ser importante é qualidade

da relação estabelecida e do ambiente oferecido.

A televisão e a internet são meios de comunicação que fazem parte do dia a dia do

mundo contemporâneo. É importante que os pais estejam atentos em perceber qual o lugar

que estes meios de comunicação ocupam na vida dos seus filhos e também na dinâmica

familiar. Como foi visto, a sedução infantil acontece também de forma imagética e televisa,

podendo ser, segundo Outeiral (2003), engendrada uma modificação da erótica infantil, se as

crianças forem expostas continuamente a uma sexualidade em todas as formas e matizes.

Vale ressaltar que esta é uma pesquisa qualitativa. Os dados obtidos dizem

respeito a esse grupo de crianças em especial. As crianças que participaram desta pesquisa

sinalizaram o que poderia acontecer com a sua estrutura egóica, com a sua capacidade de

pensar e simbolizar, se impulsos sexuais genitais invadirem o seu ego. Uma erotização

precoce acarretaria danos à estrutura psíquica da criança latente. Bruno Bettelheim (1980, p.

210) afirma: Pessoas psicologicamente preparadas para as experiências sexuais podem domina-las e crescer com isto. Mas uma sexualidade prematura é uma experiência regressiva, despertando tudo o que ainda é primitivo dentro de nós e que ameaça nos engolir. A pessoa imatura que, ainda não está pronta para o sexo, mas é exposta a uma experiência que suscita fortes sentimentos sexuais, recai nas formas edípicas de lidar com ele.

As crianças desta pesquisa também demonstram a importância de viver a latência.

De deixar, nesse momento do desenvolvimento, os instintos sexuais reprimidos para que elas

possam adentrar no mundo da cultura de forma mais tranqüila. Afinal, se existe uma repressão

mais intensa neste momento do desenvolvimento infantil, é porque ela tem uma importante

função a desempenhar no processo rumo ao amadurecimento.

De acordo com estas crianças, a existência de um ambiente saudável com figuras

parentais suficientemente boas, representantes do superego no mundo externo, capazes de dar

limites e serem continentes das ansiedades infantis, são de fundamental importância para um

desenvolvimento satisfatório do período de latência.

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Ao longo desta pesquisa, foi possível fazer algumas reflexões e considerações

sobre a organização psíquica da sexualidade em 10 (dez) crianças de nove anos, oriundas de

São Luís do Maranhão. Os dados levantados na literatura e os dados coletados através do

valioso e inesquecível contato com as crianças instigaram-me a realizar esta pesquisa e me

motiva a convidar outros pesquisadores a realizar novas pesquisas, em outras cidades e

regiões do país.

Este foi apenas o início de uma caminhada. Espero que novos e profícuos

caminhos sejam percorridos em direção a uma maior compreensão do fenômeno aqui

estudado.

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ANEXOS

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TERMO DE CONSENTIMENTO

1 - DADOS SOBRE A PESQUISA: Essa é uma pesquisa que pretende refletir sobre a organização psíquica da sexualidade em crianças de nove anos. O período de latência é uma etapa do desenvolvimento infantil que começa aos seis anos e termina aos dez anos, aproximadamente. Para ilustrar essa reflexão será necessário realizar a aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias em dez crianças, sendo cinco meninas e cinco meninos, da terceira série. Esse procedimento consiste na realização pelas crianças de um conjunto de cinco desenhos e cinco estórias que serão produzidos dentro do âmbito escolar.

Esclarecemos ainda que será divulgado apenas a idade e o sexo da criança participante garantido o seu anonimato anonimato.

Esclarecemos ainda que as respostas ao instrumento não constitui em nenhum

risco a quem participe, sendo na verdade uma contribuição efetiva para o estudo e a consecução dos objetivos da pesquisa.

A criança será informada que poderá desistir de participar da pesquisa em

qualquer momento do processo de coleta de dados. Dessa forma, lhe fazemos o convite para que permita que seu filho participe

desta pesquisa. Manifestamos nossa gratidão e reconhecimento pelo seu auxílio. 2 - AUTORIZAÇÃO

Após os esclarecimentos dos objetivos da presente pesquisa, tendo

garantida a não identificação do meu filho dou o meu consentimento à utilização de seus desenhos e de suas estórias para os fins desta pesquisa. Nome do Responsável: Assinatura: 3 - PESQUISADORA RESPONSÁVEL: Gianna Filgueiras Mohana Pinheiro São Luís, de 2005. Obrigatório para pesquisa científica com seres humanos - Resolução Nº 01 de 13.06.1988 - CNS - Conselho Nacional de Saúde

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TERMO DE CONSENTIMENTO

Eu................................................................................................ diretor desta instituição

escolar, autorizo a psicóloga Gianna Filgueiras Mohana Pinheiro a realizar a aplicação

do Procedimento de Desenhos-Estórias em crianças da terceira série, estudantes da

presente escola, como parte de sua pesquisa de mestrado. Estou ciente de que esta

pesquisa não se constitui em nenhum risco a quem participe uma vez que o

procedimento utilizado pela pesquisadora constará apenas de desenhos e estórias

produzidos pela própria criança dentro do âmbito escolar. Estou ciente também que esta

pesquisa está subordinada a princípios éticos os quais irão salvaguardar a identidade da

criança bem como da escola, sendo os dados obtidos utilizados apenas para fins de

publicação e estudos acadêmicos e científicos.

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