Giannetti - A economia não é a física

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Eduardo Giannetti A economia não é a física (Prof. Bráulio Matos cópia para uso pessoal) 1 A economia não é a física Eduardo Giannetti 1 O rigor, a precisão e o prestigio da física sempre exerceram grande fascínio sobre os economistas. Não é para menos. Com um simples par de prismas polidos, Newton enterrou milênios de fantasias sobre as causas do arco-Íris. Quem não adoraria, por exemplo, estar em condições de prever a inflação brasileira em 95 com a mesma segurança e exatidão com que se pode prever a hora e a duração do próximo eclipse total do sol em 2046? Para os economistas neoclássicos do início do século, o desafio parecia ao alcance da mão. O uso de instrumental matemático sofisticado na economia prometia fabulosos avanços. Os pioneiros da chamada “revolução marginalista”, como Jevons e Walras, definiam a teoria econômica como a “mecânica da utilidade e do auto-interesse”. Vilfredo Pareto, o grande economista italiano, ia mais longe. “A teoria econômica”, afirmou ele cheio de confiança em 1909, “conquistou assim o rigor da mecânica racional”. De lá para cá. a sofisticação matemática só aumentou. A teoria econômica tomou-se um jogo altamente seletivo e excludente, do qual pouquíssimos economistas participam e uma legião de desafe- tos reclama. A impressão que se tem, contudo, é que a distancia em relação à física não diminuiu. Como dizia Schumpeter “A economia está para a astronomia assim como São Domingos está para a França”. É próprio da condição da ex-colônia sonhar com a metrópole. O sonho não acabou. A deliciosa anedota com que o economista norte-americano Paul Krugman, da Universidade de Stanford, abre o seu mais recente livro — “Peddling Prosperity” (Norton, 1994) — mostra que o fascínio pela física está mais vivo que nunca. Um economista hindu, desses que circula no ‘jet set” acadêmico internacional, criou uma teoria singular sobre a reencarnação. Ao encerrar o seu curso de pós-graduação, ele adverte os alunos: “Se vocês forem bons economistas nesta vida, virtuosos no exercício da profissão, vocês serão físicos na próxima encarnação; mas se vocês forem maus economistas, se fraquejarem e relaxarem no seu dever, vocês estarão condenados a renascer como sociólogos”. A piada, como observa Krugman, admite duas leituras. Na primeira, os economistas sonham com a certeza matemática da física e desprezam a prosa torturada das ciências humanas. Com os olhos no céu e os pés no inferno, a economia seria o purgatório da ciência. A outra leitura, menos arrogante, é a de que os economistas admiram a física, mas sabem que existem disciplinas mais complicadas que ela. Haveria um reconhecimento tácito de que a economia é mais difícil que a física, embora não chegue a ser tão árdua quanto a sociologia. A punição do mau economista na anedota é ter que enfrentar um desafio ainda maior na próxima vida. Por que a economia não é a física? As diferenças relevantes são basicamente duas e a ausência de experimentação controlada não é uma delas. Assim como o economista, nenhum astrônomo tem con- dições de testar suas teorias em laboratório. Tudo o que pode fazer é observar, construir modelos expli- cativos e procurar novas evidências que corroborem ou refutem suas teorias. A grande questão é: por que é tão mais difícil prever em economia? A primeira parte da resposta tem a ver com o grau de complexidade do sistema. É rigorosamente verdade que, no universo, tudo está ligado a tudo. A sorte é que nem sempre o prejuízo causado pela inevitável simplificação é exorbitante. Os melhores êxitos da física foram obtidos no estudo de sistemas que, por serem relativamente fechados, podem ser reduzidos a um conjunto estrito de variáveis com alto poder explicativo. O problema é que, à medida que a complexidade aumenta, o prejuízo sobe. A meteorologia — consolo do economista – ilustra bem isso. Embora se possa prever, com décadas de antecedência o momento exato da aparição de um cometa, ninguém sabe dizer com cer- teza se vai gear na Flórida no próximo inverno. As controvérsias sobre o “efeito estufa” mostram o que acontece quando alguns dos melhores cérebros científicos da humanidade, munidos de satélites e 1 Professor de Economia da USP. Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 06/nov/1994.

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Eduardo Giannetti – A economia não é a física (Prof. Bráulio Matos – cópia para uso pessoal)

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A economia não é a física

Eduardo Giannetti 1

O rigor, a precisão e o prestigio da física sempre exerceram grande fascínio sobre os

economistas. Não é para menos. Com um simples par de prismas polidos, Newton enterrou milênios de fantasias sobre as causas do arco-Íris. Quem não adoraria, por exemplo, estar em condições de prever a inflação brasileira em 95 com a mesma segurança e exatidão com que se pode prever a hora e a duração do próximo eclipse total do sol em 2046?

Para os economistas neoclássicos do início do século, o desafio parecia ao alcance da mão. O uso de instrumental matemático sofisticado na economia prometia fabulosos avanços. Os pioneiros da chamada “revolução marginalista”, como Jevons e Walras, definiam a teoria econômica como a “mecânica da utilidade e do auto-interesse”. Vilfredo Pareto, o grande economista italiano, ia mais longe. “A teoria econômica”, afirmou ele cheio de confiança em 1909, “conquistou assim o rigor da mecânica racional”.

De lá para cá. a sofisticação matemática só aumentou. A teoria econômica tomou-se um jogo altamente seletivo e excludente, do qual pouquíssimos economistas participam e uma legião de desafe-tos reclama.

A impressão que se tem, contudo, é que a distancia em relação à física não diminuiu. Como dizia Schumpeter “A economia está para a astronomia assim como São Domingos está para a França”. É próprio da condição da ex-colônia sonhar com a metrópole.

O sonho não acabou. A deliciosa anedota com que o economista norte-americano Paul Krugman, da Universidade de Stanford, abre o seu mais recente livro — “Peddling Prosperity” (Norton, 1994) — mostra que o fascínio pela física está mais vivo que nunca. Um economista hindu, desses que circula no ‘jet set” acadêmico internacional, criou uma teoria singular sobre a reencarnação. Ao encerrar o seu curso de pós-graduação, ele adverte os alunos: “Se vocês forem bons economistas nesta vida, virtuosos no exercício da profissão, vocês serão físicos na próxima encarnação; mas se vocês forem maus economistas, se fraquejarem e relaxarem no seu dever, vocês estarão condenados a renascer como sociólogos”.

A piada, como observa Krugman, admite duas leituras. Na primeira, os economistas sonham com a certeza matemática da física e desprezam a prosa torturada das ciências humanas. Com os olhos no céu e os pés no inferno, a economia seria o purgatório da ciência.

A outra leitura, menos arrogante, é a de que os economistas admiram a física, mas sabem que existem disciplinas mais complicadas que ela. Haveria um reconhecimento tácito de que a economia é mais difícil que a física, embora não chegue a ser tão árdua quanto a sociologia. A punição do mau economista na anedota é ter que enfrentar um desafio ainda maior na próxima vida.

Por que a economia não é a física? As diferenças relevantes são basicamente duas e a ausência de experimentação controlada não é uma delas. Assim como o economista, nenhum astrônomo tem con-dições de testar suas teorias em laboratório. Tudo o que pode fazer é observar, construir modelos expli-cativos e procurar novas evidências que corroborem ou refutem suas teorias. A grande questão é: por que é tão mais difícil prever em economia?

A primeira parte da resposta tem a ver com o grau de complexidade do sistema. É rigorosamente verdade que, no universo, tudo está ligado a tudo. A sorte é que nem sempre o prejuízo causado pela inevitável simplificação é exorbitante. Os melhores êxitos da física foram obtidos no estudo de sistemas que, por serem relativamente fechados, podem ser reduzidos a um conjunto estrito de variáveis com alto poder explicativo. O problema é que, à medida que a complexidade aumenta, o prejuízo sobe. A meteorologia — consolo do economista – ilustra bem isso. Embora se possa prever, com décadas de antecedência o momento exato da aparição de um cometa, ninguém sabe dizer com cer-teza se vai gear na Flórida no próximo inverno. As controvérsias sobre o “efeito estufa” mostram o que acontece quando alguns dos melhores cérebros científicos da humanidade, munidos de satélites e

1 Professor de Economia da USP. Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 06/nov/1994.

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supercomputadores, enfrentam as agruras da complexidade. E se isso complica a vida da meteorologia, imagine-se como fica a economia – um sistema aberto que depende, entre tantas outras coisas, do próprio clima...

A segunda razão pela qual a economia não é a física é bem sintetizada pelo físico norte-america-no P. W. Bridgman: “A principal dificuldade em entender as ações dos homens é entender como eles pensam —como as suas mentes funcionam”. O fato inegável é que o conhecimento da mente — e dos processos de formação de crenças em particular — está apenas engatinhando. Conhecemos mais sobre o mundo físico que nos certa do que sobre nós mesmos.

Durante muito tempo, os economistas trabalharam como se isso não importasse. A teoria neoclássica agiu como o bêbado que descobre ter perdido as chaves saindo do bar à noite, mas resolve procurá-las somente perto do poste de luz, já que pelo menos ali se consegue enxergar alguma coisa. Faz todo o sentido começar a busca onde há mais luz — assumindo a racionalidade plena dos agentes. Só que, se as chaves não aparecem, é preciso tatear na escuridão.

No fundo, é o que diria Keynes, evocando a proverbial maçã newtoniana: “Na economia, é como se a queda da maçã ao chão dependesse dos motivos da maçã, se vale a pena cair no chão, se o chão de-seja que a maçã caia, e dos cálculos errôneos, por parte da maçã, sobre quão longe ela está do centro da Terra”. As crenças e valores das pessoas determinam o seu comportamento. A grande questão é: por que acreditamos no que acreditamos?! O economista romeno Georgescu-Roegen levantou, a esse respeito, uma questão intrigante: “Se um físico pudesse ´per absurdum’ conversar com os elétrons, ele se recusaria a perguntar-lhes: por que vo-cês pulam?”. Mas à resposta que ele oferece — “certamente não”— caberia acrescentar duas coisas: 1) se os elétrons falassem, nós jamais os entenderíamos (Wittgenstein); mas, 2) se conseguíssemos “per absurdum” entendê-los, seria o fim da física como ciência exata!

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