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    Identidade: Anthony Giddens eNorbert Elias

    Nina Gabriela Moreira Braga Rosa

    Resumo

    O enfoque desse trabalho apresentar as perspectivas de identidade deNorbert Elias e Anthony Giddens. A concepo eliasiana oriunda de um ex-tenso debate com a filosofia, principalmente a de Kant e Descartes. Para Elias,s possvel pensar em identidade considerando as redes de interdependn-cia que os indivduos estabelecem nas configuraes s quais pertencem. Eliasaponta que a mudana na balana ns-eu est vinculada a transformaes his-tricas das sociedades. J Anthony Giddens, por outro lado, est preocupadoem demonstrar o desenvolvimento da auto-identidade. Para isso, ele evoca erev conceitos da psicologia tais como confiana bsica, ansiedade existencial,segurana ontolgica, vergonha e culpa e prope a sustentabilidade de uma nar-rativa autobiogrfica. Nesse sentido, ele desenvolve um aparato conceitual queaponta outra direo no tocante temtica da identidade

    Palavras-chave: Anthony Giddens, Norbert Elias, identidade, configura-es, narrativa autobiogrfica.

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    A proposta desse artigo explanar os conceitos de identidade de AnthonyGiddens e Norbert Elias. Esse esforo torna-se relevante por esses autores con-temporneos tentarem responder a uma das grandes questes de teoria social

    o problema da ao e estrutura e por suas concepes de identidade es-tarem estreitamente imbricadas em suas teorizaes. Anthony Giddens dedicouuma de suas obras exposio de seu pensamento sobre identidade. Entretanto, necessrio evocar, mesmo que brevemente, a teoria da estruturao para umacorreta compreenso conceitual. J a perspectiva de Norbert Elias aqui apresen-tada fruto de uma tentativa de sistematizar o pensamento do autor quanto temtica, que no est exposta da mesma forma que em Anthony Giddens.

    Identidade em Norbert Elias

    A concepo eliasiana de identidade apresentada em seu livro A sociedadedos indivduos, principalmente, na Parte III (denominada Mudana na balanans-eu) e complementada, endossada e clarificada por algumas asserespresentes em outras obras do autor. Ao longo de sua extensa produo e emfuno de sua ampla formao acadmica (medicina, filosofia e sociologia),Norbert Elias posicionou-se em relao a discusses ontolgicas recorrentes

    marcadas pelo pensamento kantiano e cartesiano. Esses debates contriburamem muito para a proposta do autor em superar o que ele denominou homoclausus, ou seja o eu desprovido de ns. Elias interpreta as teorizaes deKant, Descartes, Hurssel, Berkeley e outros como concebendo um homo phi-losophicus, ou seja, o eu do conhecimento, isolado, dentro de um invlucro,dotado de atributos dados a priori; um indivduo possuidor de capacidades eaptides gerais inatas. Assim, construes conceituais, lgicas e percepesde tempo, espao e objetos, eram qualificadas como atributos naturais dosindivduos. Portanto, na imagem filosfica referida por Elias, cada pessoa eraconcebida como um sistema fechado, protegido, dotado de uma razo uni-versal desvinculada de contedos mutveis. O que Elias denominou por homoclausus significava pensar uma existncia hermtica, dicotomizada entre o eu(um frum interior) e o mundo exterior. Analogamente s mnadas semjanelas de Leibniz, Elias ilustrou essa idia ao se referir s esttuas pensan-tes, concluindo que estas elaboraes filosficas compreendiam a sociedadecomo uma massa de eus incomunicveis e solitrios.

    Norbert Elias considera que qualquer concepo moral, temporal ou sobre

    a natureza aprendida e apreendida de outros indivduos, ou seja, socialmente.A experincia de si e, conseqentemente, a individualizao so parte do pro-

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    cesso social pelo qual passam as configuraes1. Para ele, mesmo o que se pensaser mais ntimo e pessoal se desenvolveu no decurso social, como exemplificadona explicao do desenvolvimento da estrutura de emoes, do patamar de em-

    barao e dos costumes nos dois volumes da obra O processo civilizador.A proposta eliasiana , portanto, representar os indivduos com seus egos

    ou eus interdependentes, cada um com valncias2 abertas possivelmente co-nectadas por um equilbrio mais ou menos instvel de poder, formando cadeiase teias de interdependncia das mais diversas entre si. Apresentando seu mo-delo de hominis aperti, o autor refora que a compreenso de muitos aspectosdo comportamento e das aes dos indivduos s se d pelo entendimento dasconfiguraes as quais eles fazem parte. Apesar de criticar severamente o aprio-

    rismo filosfico, Elias considera a importncia dos atributos biolgicos quepropiciam o aprendizado. Essa tendncia das concepes filosficas em pen-sar o eu dentro do indivduo separado do mundo exterior por algo invisvel justificada por Elias como a maneira pela qual certas sociedades, ao longo dotempo, construram o conhecimento a respeito de si mesmas como uma formade conscincia profundamente enraizada tpica de sociedades muito individua-lizadas. Tal assero, para o autor, considerada uma falsa imagem do eu, semns e sem voc.

    Elias ressalta que o uso de pronomes demonstra como um indivduo um

    ser social. A utilizao do eu requer e direcionada a outros pronomes taiscomo ns, ele, ela, eles e vs. preciso, portanto, olhar a trama derelaes em que um indivduo est inserido para poder compreend-lo. Dessaforma, ao relutar contra a dicotomia indivduo-sociedade, Elias compreendeo indivduo necessariamente vinculando-o s cadeias de interdependncia dasquais ele faz parte. As sociedades, em decorrncia, so o plural dessas interde-pendncias. As configuraes, ento, so uma pr-condio para a autopercep-o. Em suas prprias palavras: O sentido que cada um tem de sua identidadeest estreitamente relacionado com as relaes de ns e de eles no nosso pr-prio grupo e com a nossa posio dentro dessas unidades que designamos nse eles (ELIAS, 1991, p. 139).

    1 Por configuraes Norbert Elias compreende os indivduos e as teias de interdependncia que eles

    formam entre si.

    2 Por valncias abertas Norbert Elias pretende exemplificar as relaes que os indivduos estabelecem

    uns com os outros. Para ele, nessas relaes, os indivduos realizam uma gama de necessidades emocio-

    nais. A morte de algum, exemplificando, no significa uma causa externa que atua no eu interior, massim a destruio de parte integrante do eu, da imagem de eu e ns.

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    Relacionando a identidade do indivduo como indissociavelmente vincu-lada configurao, vrias implicaes podem ser consideradas. Para o autor,a relao identidade-eu/identidade-ns varia conforme a sociedade. Ele evi-

    dencia que, a partir do Renascimento, a balana passou a pender cada vez maispara a identidade-eu. A identidade-ns passou a ser ocultada na conscincia.A individualidade, portanto, entendida como oriunda do autocontrole, daconteno de emoes e instintos, e no como algo naturalmente dado. An-teriormente, as sociedades exerciam um controle externo e coercitivo ao com-portamento das pessoas por meio de vrios mecanismos conforme suas posiesnas configuraes. Com o passar do tempo, esse controle social foi subsumidoao autocontrole.

    Esse autocontrole instilado to profundamente desde essa tenra idade que, como se

    fosse uma estao de retransmisso de padres sociais, desenvolve-se nele uma auto-

    superviso automtica de paixes, um superego mais diferenciado e estvel, e uma

    parte dos impulsos emocionais e inclinaes afetivas sai por completo do alcance direto

    do nvel da conscincia (ELIAS, 1993, p. 202).

    Assim, pelo autocontrole, pelo amor ou pelo medo dos outros, os indiv-duos vo se diferenciando, e esse ideal de ego, essa batalha por se tornarem

    diferentes e se destacarem, que constituiu a identidade. No entanto, esse um processo socialmente exigido, um requisito social que passa desperce-bido aos indivduos. Para o autor, transformaes da conscincia so tantopessoais quanto histricas. A autoconscincia e a imagem que os indivdu-os fazem deles mesmos so prprias de um contexto especfico. Essa formado indivduo se enxergar j foi e poder ser vivenciada de outra maneira deacordo com as mudanas das configuraes. Acrescenta-se que, na medidaem que se transformam as imagens do universo (as concepes a respeito domundo fsico), a imagem que os seres humanos fazem de si tambm vai secaracterizando de outra forma. possvel, no entanto, observar, em certassociedades, um aumento no conhecimento, um acmulo do saber e, conse-qentemente, uma mudana na perspectiva de observao dos indivduos emrelao ao mundo-objeto e a eles mesmos. Com um maior distanciamento emaior controle das emoes, a auto-imagem e a autoconscincia se modifi-cam. Norbert Elias, ento, vincula as aes e representaes dos indivduosa um acmulo de saber e a um universo scio-simblico proveniente tantodas experincias pessoais como dos conhecimentos de indivduos interdepen-

    dentes que os antecederam e que configuraram uma determinada matriz noplanejada. Em seu livro Envolvimento e alienao, ele afirma que as pessoas esto

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    Em suma, a concepo eliasiana que indivduos so interdependentes for-mando configuraes que estruturam alguns traos da personalidade ou, me-lhor dizendo, configuram a estrutura social de personalidade. Isso significa queo cdigo social (a herana social comum) marca o comportamento e a sensibili-dade pessoal permitindo, a partir da, o desenvolvimento de uma personalidadeindividual praticamente exclusiva e nica. Nesse ponto, importante ressaltarque Norbert Elias critica severamente a falta de conceitos comunicveis entre ascincias biolgicas, sociolgicas, histricas e psicolgicas. Para ele, compreen-

    der o indivduo em sua identidade compreender e conectar aspectos oriun-dos de diversas reas do conhecimento. preciso entender o desenvolvimentodo indivduo como um processo seqencial que, sem a memria, no poderiater continuidade. A individualizao , assim, facilitada pela capacidade seletivada memria em arquivar experincias pessoais e de outros indivduos. Dissoinfere-se que a partir de uma composio social que brotam caractersticasindividuais que distinguem as pessoas umas das outras. O nome de algum ,portanto, um exemplo claro de como a existncia pessoal est vinculada ao so-cial. O lado para o qual a balana ns-eu pende que pode variar. Para que

    a balana penda para o lado eu, so necessrias formas mais conscientes deautocontrole e menor espontaneidade dos atos e do discurso. Paralelamente,segundo Elias, os traos da identidade grupal nacional constituem uma camadado habitus social encravada muito profunda e firmemente na estrutura de perso-nalidade do indivduo.

    Para endossar essas afirmativas pontuais, possvel invocar o estudo elia-siano da comunidade de Wintson Parva e as elaboraes a respeito da vida deWolfgang Amadeus Mozart. A pequena comunidade analisada, segundo Elias, uma relao de estabelecidos moradores antigos e outsiders moradoresmais recentes de um pequeno povoado. Em suas observaes, Elias aponta quea relao de interdependncia entre os dois grupos influenciava a auto-imageme a auto-representao dos indivduos. Os superiores incutiam nos inferio-res uma sensao de inferioridade e de falta de virtudes e assim alimentavamem si uma auto-imagem de superioridade, reafirmando sua identidade comomelhores. A percepo de uma rede da qual alguns estavam excludos permitiaque, a partir dela, uma nova configurao fosse elaborada a de outsiders. Nessarelao, h um equilbrio instvel de poder e, apenas por meio da instalao

    nessa posio, a estigmatizao possvel. Elias explica tambm que a coeso dogrupo ao longo de geraes de indivduos pela passagem de um processo grupal

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    proveniente do acmulo de um estoque de lembranas, histrias, simpatiase averses comuns. Dessa forma, a opinio de indivduos coesos influencia osprprios membros desse grupo e capaz de orientar sensaes, sentimentos e

    atitudes. Segundo o autor, essa opinio funciona como a conscincia da prpriapessoa. A auto-imagem e a auto-estima de um indivduo esto ligadas ao que osoutros membros do grupo pensam dele. Tanto o crdito quanto o descrditocoletivo tem alicerces profundos na estrutura de personalidade e, portanto, naidentidade pessoal. A experincia que o indivduo tem de si e das outras pessoasajuda a modelar a identidade individual.

    O mesmo percebido nos relatos de Elias sobre a vida de Mozart. Os ma-nanciais de sua auto-estima estavam no amor de uma mulher e na admirao

    e reconhecimento do pblico de Viena por sua msica. Segundo Elias, mesmoque ele realmente fosse um vencedor e, postumamente, viesse a ser reconhecidopor seu talento musical estimvel, isso no significava que ele se visse enquantotal. No entanto, a explicao eliasiana que o desespero e agonia que Mozartpassou estavam vinculados a um conflito que tambm era social. O antagonismode padres, ou seja, a ambivalncia entre a identificao de Mozart com os gos-tos e ideais da aristocracia e a humilhao que ela lhe impunha por ele ser umburgus, perpassava seu interior refletindo uma conjuntura social. Em suma,a falta de amor e de credibilidade e a dependncia material da aristocracia de

    corte em tenso com a imaginao e talento peculiar de artista foram respons-veis por sua tragdia.

    Identidade em Anthony Giddens

    A concepo de identidade de Anthony Giddens foi sistematizada em suaobra Modernidade e identidade. Para explan-la, importante colocar como panode fundo o que o autor entende como estruturao e reflexividade, aspectoscentrais em seu pensamento. A estruturao diz respeito maneira com queas prticas dos indivduos se rotinizam e se estendem ao longo do tempo e doespao em funo da estrutura ser tanto meio como fim de tais prticas. A es-trutura , assim, tanto coercitiva quanto facilitadora, oferecendo aos agentesas regras e os recursos para realizarem suas aes. nesse mbito que o autorconcebe as aes individuais e coletivas. Portanto, para Giddens, os indivdu-os organizam suas prticas recursivamente (lanando mo dos recursos que aprpria estruturao organiza e oferece) e a reflexividade, ou segundo Scott

    Lash, a auto-reflexividade; e o monitoramento contnuo da rotina fazem par-te da cognoscitividade dos agentes na modernidade.

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    Considerando isso, o conceito de identidade proposto por Giddens en-volve tambm algumas conceitualizaes que ilustram o eu na vida cotidiana eprecisam ser pontuados para que se possa compreender o que o autor prope

    ao explicitar o desenvolvimento de uma narrativa autobiogrfica. O primeirodesses conceitos o de segurana ontolgica, que se relaciona ao carterimplcito da conscincia prtica, ou seja, daquilo que os agentes so incapazesde elaborar na forma de discurso. Essa segurana significa pr entre parn-teses (fenomenologicamente falando) as possibilidades de caos potenciais aosquais os indivduos podem estar sujeitos no decorrer das atividades cotidianas.Isso se d por meio de um referencial compartilhado, tacitamente aceito, queGiddens denomina como o ambiente faz de conta em relao s questes

    existenciais. Tal referencial de realidade tempo-espacial e psicolgico quepermite a continuidade, o prosseguimento do fluxo das aes. A seguranaontolgica , portanto, uma resposta a possveis questes que o indivduo sefaa. Essa reposta que alicera uma base cognitiva, emocional e existencialgarantindo o prosseguimento da rotina. Na obra Constituio da sociedade, Gid-dens ressalta a importncia da segurana ontolgica para a dure da vida coti-diana e sustenta que ela tem sua origem na formao da confiana bsica emdetrimento da ansiedade bsica que aparece nas relaes da criana.

    A confiana bsica um termo herdado de Erik Erikson, ecoando

    D.W.Winnicott. Para Giddens, ela desenvolvida atravs das primeiras relaesda criana com aqueles que cuidam dela, relaes essas anteriores a possveisdistines do eu e do mim. A confiana bsica elaborada atravs da acei-tao, por parte da criana, da ausncia dos cuidadores, aquilo que Winni-cott denominou de espao potencial. Diz respeito aceitao da ausncia dospais e confiana na volta deles, sustentando uma realidade constitutivamenteorganizada por essas relaes. A confiana da criana nos que cuidam dela assim denominada pelo autor de inoculao emocional, uma proteo contraansiedades e ameaas existncia. O fluxo da vida cotidiana apresenta perigos existncia do indivduo que so triados pela confiana bsica na sustenta-o do que Giddens denomina de casulo protetor uma carapaa defensivatambm fundamental ao prosseguimento da vida. O casulo protetor, portanto,diz respeito a uma sensao de normalidade que pode ser rompida, temporriaou definitivamente, quando sensibilizada. , segundo o autor, um sentido deirrealidade, de suspenso dos riscos eminentes oferecidos pelas possibilidadesnegativas da vida como doena e morte. Debatendo com Husserl e encontran-do anteparo em Wittgenstein, Giddens afirma que descobrir o outro de modo

    cognitivo-emocional alicera a constituio da autoconscincia pelo prprioindivduo. Essa f no outro, como descrito acima, est imbricada com o sen-

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    tido de realidade conferido s coisas. As respostas do outro so necessrias nasustentao de um mundo que observvel e que responde, e, no entanto,no h como confiar em termos absolutos (GIDDENS, 1992, p.53). O autor

    pressupe, assim, que a subjetividade deriva da intersubjetividade. Ele acentuaque auto-afirmao e autocompreenso do eu se vincula percepo de um ou-tro. Autenticidade e integridade pessoal esto vinculadas f na autenticidadedo outro. Nesse ponto, faz-se uma ressalva: segundo o autor, na modernidade,o prosseguimento do cotidiano garantido atravs da confiana em sistemasabstratos. Entretanto, a confiana nas pessoas que confere gratificao psico-lgica aos indivduos.

    Quanto distino entre medo e ansiedade, Giddens concorda com

    Freud. Evocando o pensamento freudiano, pensa a ansiedade como o medoem que o objeto ausente. Trata-se de um estado geral de emoes, incons-cientemente organizado, que ameaa a segurana do indivduo. Segundo asconcepes de Winnicott, Erikson e Sullivan, a ansiedade uma experinciavirtual ou real de sentimento de desaprovao diretamente relacionadas sreaes e respostas dos outros e formao da auto-estima. No espao po-tencial, o lado negativo da confiana se expressa como ansiedade, aparececomo o medo da perda afetando a constituio do eu, portanto, do sistemade segurana ontolgica do indivduo. Enfim, para Giddens, ser seguro ter

    as respostas s questes existenciais3 para poder seguir em frente, visto que osindivduos conseguem e precisam antecipar as possibilidades da vida, o quepromove, invariavelmente, a ansiedade.

    Para finalizar esses conceitos fundamentais, tambm necessrio dis-tinguir vergonha e culpa. Giddens percebe a culpa como proveniente dapercepo de uma ao errada realizada pelo indivduo. A vergonha, porsua vez, mina a integridade do eu se relacionando a sensaes de insufici-ncia pessoal, afetando, assim, a auto-identidade de maneira direta. A ver-gonha, bem dizer, oriunda do medo reprimido, do possvel deslocamentoe inadequao da narrativa pessoal frente s presses sociais. Ela ameaa aconfiana, sem a qual o indivduo pode ter a coerncia do mundo-objetorompida, violada, atingindo radicalmente o sendo de realidade. Valendo-sede Piers e Singer, Giddens coloca a vergonha como a incapacidade de atin-gir o ego-ideal e classifica esse ideal, apoiando-se em Kohut, como aquilo

    3 Questes existenciais Giddens pontua como a contradio da existncia (de ser parte da natureza e

    dela ser destacado), a finitude da vida, a conscincia do no-ser, a existncia de outras pessoas, entreoutras.

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    que o indivduo gostaria de ser, algo fundamental que orienta e estimula aproduo da auto-identidade4.

    Para o autor, a auto-identidade, ento, a trajetria ao longo da vida por

    meio das mais diversas situaes institucionalizadas, uma biografia reflexi-vamente organizada. Ela pressupe autoconscincia (distino entre o eu e ono-eu, que ocorre por dispositivos psicolgicos da criana em suas primeirasrelaes) e supe a criao de algo relativo extenso da identidade no tempoe no espao e interpretao reflexiva contnua que do agente sobre si mesmo.A auto-identidade no um trao distintivo, ou mesmo uma pluralidadede traos possuda pelo indivduo. o eu compreendido, reflexivamente pelapessoa, em termos de sua biografia (GIDDENS, 1992, p.54). Giddens critica

    a dicotomia eu e mim da teoria de G.H.Mead, em que o mim aparececomo uma identidade social que o eu apreende. Isso acarreta uma compreen-so do indivduo como possuindo uma parcela no socializada. O autor tam-bm apresenta o problema da elaborao freudiana de ego, superego eid que fazem parecer existir mini-agncias dentro do indivduo. Giddenssubstitui a trade pelo uso do eu em detrimento do termo ego e conscinciamoral ao invs de superego. Ele elabora o modelo de estratificao do agenteque consiste na segurana bsica, conscincia prtica e discursiva, que serelacionam segurana ontolgica e auto-identidade do indivduo. Por isso,

    Anthony Giddens ressalta que a identidade no consiste no comportamentoindividual, mas, antes, na capacidade pessoal do agente em estabelecer e darcontinuidade a uma narrativa a respeito de sua prpria histria. Enquantonarrativa pessoal, entretanto, a auto-identidade apresenta um paradoxo: s-lida o suficiente para conferir segurana ao indivduo e frgil como uma outraestria qualquer que potencialmente poderia ser contada e constituir outraidentidade. Utilizando a obra Autoterapia, de Rainwater5, Giddens demonstraque a elaborao de um dirio secreto, em que o indivduo pode ser intei-ramente honesto consigo mesmo, necessria para a produo de seu prpriocrescimento. Ele refora que a autobiografia um meio de correo do pas-sado que o prprio agente, e apenas ele, capaz de realizar. Assim, que seplaneja e, de certa forma, projeta o futuro. O exerccio de escrever e narrarfaz com o indivduo reconstrua, reveja e refaa sua histria como gostaria quefosse. Novos dilogos, sentimentos e atitudes so reintroduzidos na narrativa.

    4 Todos os conceitos apresentados nesse tpico so elucidaes de Anthony Giddens no livro Moderni-

    dade e identidade, 1992.5 Janette Rainwater, Self-therapy, Londres: Crucible, 1989.

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    Na modernidade tardia, o eu um projeto reflexivo. Ele se desenvolve pormeio de uma reavaliao do passado com vistas a um futuro antecipado. Nesseprocesso, o eu se caracteriza por uma auto-interrogao peridica em que o

    indivduo questiona o que est sua volta e a si mesmo tambm. A sexualidade,por exemplo, uma forma de expresso da auto-identidade, pois no umacondio natural preestabelecida, mas tem que ser cultivada.

    O estilo de vida que cada pessoa deve escolher fundamenta, alm de pre-encher de forma utilitria, as necessidades pessoais dos indivduos. Segundoo autor, estilos de vida so prticas rotinizadas que esto sujeitas a mudanas.As escolhas que os indivduos fazem cotidianamente sobre o que comer, ves-tir, fazer, entre outras, so mais que simples decises sobre hbitos, so esco-

    lhas do que ser. O corpo tambm tem um papel fundamental no processo deauto-identidade pois , antes, uma forma de construir um eu diferenciado.Experimentar o corpo uma maneira de tornar coerente o eu como um todointegrado em que o indivduo reconhece onde vive. O corpo a encarnao doeu e promove a comunicao por meio de feies e gestos, alm de constituir,em certa medida, a autoconscincia por meio de sua prpria diferenciao emrelao a outros corpos. O controle do corpo fundamental na manutenodo casulo protetor, alm de ser intrnseco a uma agncia competente. Isso querdizer que a disciplina corporal mantm a autonarrativa do indivduo e est ex-

    posta s observaes do outro. Muito da elaborao de Giddens sobre o corpoteve como base os estudos de Goffman e Garfinkel.

    Por outro lado, as transformaes na auto-identidade so interconecta-das a mudanas de carter global. devido reflexividade institucional6 que sepode dizer que o eu passou a ser um projeto reflexivo e que a realizao bemsucedida desse projeto, denominada por Giddens de autonomia, umacondio para que um indivduo se relacione com outro de maneira iguali-tria, pois ajuda a configurar os limites pessoais necessrios administraobem sucedida dos relacionamentos. Autonomia , portanto, a condio deum dilogo aberto que expressa as necessidades dos indivduos, meio peloqual o relacionamento reflexivamente organizado7.

    6 Por reflexividade institucional Giddens entende o carter de reflexo da modernidade sobre si mes-

    ma. Isso se estende tambm sociologia, pois os agentes utilizam seus conceitos assim como influen-

    ciam suas elaboraes. (GIDDENS, 2002, p.223)

    7 Scott Lash distingue as duas reflexividades a que Giddens se refere (institucional e pessoal).

    A primeira diz respeito confiana em sistemas especialistas, tpica da modernidade; a outra estrelacionada organizao pessoal das narrativas de vida.

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    Em seu livro A constituio da sociedade, Giddens chega a utilizar o termo iden-tidade social para denominar o papel ou a posio social ocupada por um indi-vduo e que compreende prerrogativas e obrigaes especficas dentro de uma

    gama de possibilidades.Exemplificando suas asseres, o autor mostra a reconstruo da identi-

    dade ao citar os prisioneiros de campos de concentrao que tiveram sua per-sonalidade alterada por se identificarem com seus prprios opressores. Almdisso, em sua anlise da obra de auto-ajuda de Wallerstein e Blakeslee8, eleaborda que, aps um divrcio em que a identidade perde o sentido porqueestava vinculada outra pessoa, necessrio (re)encontrar imagens e razesde independncia. Essa uma verso aguda do processo de encontrar-se a si

    mesmo, de interveno e transformao ativas que so impostas pelas condi-es sociais da modernidade. possvel inferir que a auto-identidade, para Giddens, se constitui a partir

    de uma trajetria construtiva, interpretativa e compreensiva, pois o sentidolgico dado pelos agentes sua prpria vida, enfatizando que o envolvimentonas aes em bases criativas, tanto com os outros quanto com objetos, neces-srio para a afirmao da dignidade pessoal e do bem-estar. Esse desenvolvi-mento da auto-identidade, portanto, oriundo da criao de uma narrativaautobiogrfica relacionada percepo dos agentes a respeito de si mesmos,

    considerando, entretanto, que aes individuais acontecem sob determinadascondies (regras e recursos), se estendem no tempo e no espao, e, por fim,estruturam as condies de realizao de outras aes.

    Concluso

    Os dois autores aqui tratados desenvolveram uma gama de conceitosque foram utilizados como ferramentas para suas elaboraes, tratando-se dedois mundos diversos, assim possvel fazer aproximaes e apresentar in-congruncias entre eles.

    Norbert Elias no parece ter a mesma preocupao de Anthony Gid-dens quanto identidade. Grande parte de seu discurso um dilogo comas concepes filosficas que concebiam a constituio do eu como des-vinculada das relaes sociais. Fruto desse esforo, ele elabora uma teoriafiguracional ou dos processos que explica o desenvolvimento das estrutu-

    8 Judith Wallerstein e Sandra Blakeslee. Second Chances. Londres: Bantam, 1989.

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    ras sociais9 de personalidade em congruncia com as interdependncias dosindivduos. O habitus social oriundo das configuraes funciona como ummecanismo de socializao. J posteriormente que ele fala de identidade-

    eu e identidade-ns. Giddens, de outra feita, no parece discordar comas proposies eliasianas, visto que conhecedor de suas obras, ao cit-loem seu livro Modernidade e identidade. Mas suas preocupaes so devotadas aosdebates com a psicologia e seu intuito apresentar a importncia que osatores atribuem s suas contingncias e influncia que elas representam naconstituio da auto-identidade por meio da elaborao da narrativa auto-biogrfica. Em Giddens, porm, visvel um extenso dilogo com diversosautores da sociologia clssica e contempornea, o que no se percebe to

    claramente em Elias.H nas obras de Anthony Giddens, tambm, um enfoque quanto refle-xividade na modernidade, seja reflexividade institucional ou auto-reflexo. Aauto-reflexividade em Elias pode ser vista como autocontrole. Brilhantemente,ele exps que, por um processo scio e psicogentico, a coero externa foi setornando autocontrole. A dimenso criativa pessoal, para ele, no um fator demudana social. Mesmo em suas observaes sobre etiqueta e comportamento,a distino se d por uma demanda, antes de tudo, socialmente configurada.Ele ressalta, inclusive, que as tendncias de trajetria das configuraes no

    so planejadas por nenhum indivduo, especificamente, ou pela ao conjuntadeles. O problema na elucidao eliasiana que o autor no interpreta de ma-neira satisfatria as pluralidades das configuraes existentes na modernidadee a possvel incompatibilidade entre elas. Elias no explica como um indivduoadentra em determinada figurao, a no ser no tocante ao nascimento, almde no explicitar em sua anlise como cada rede de interdependncia influenciana constituio do indivduo, visto que elas podem apresentar valores, rotinas,enfim, caractersticas, que no se sobrepem. Portanto, compreender as distin-es e formaes de gosto e preferncias se torna extremamente rduo apenasatravs de suas elucidaes.

    J Giddens apresenta um aparato terico mais satisfatrio na medida emque enfatiza a agncia do indivduo na elaborao da narrativa biogrfica e aoconferir a esta, a principal responsvel ou bem dizer, o produto mensurvel

    9 Mesmo sendo conhecedor do desenvolvimento das discusses quanto dicotomia indivduo-socie-

    dade, como explicitado em sua obra A sociedade dos indivduos (1939), Elias, em 1987, ao escrever

    Mudana na balana ns-eu, mesmo ampliando seu leque conceitual, no abandona o dilogo com afilosofia.

    Identidade: Anthony Giddens e Norbert Elias

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    da identidade pessoal. Essa impresso quanto exposio de Giddens preci-sa ser endossada evocando a teoria da estruturao que no aparece de formaexplcita no livro Modernidade e identidade. A teoria da identidade do autor, para

    no pender para um subjetivismo que ele mesmo critica, precisa ser enxergadaatravs de regras e recursos recursivamente implicados na reproduo de to-talidades sociais (GIDDENS, 2003, p.303), mecanismo, esse, que permite aoagente mobilizar meios pelos quais ele pode atingir fins desejados. No entanto,Scott Lash, em Modernidade reflexiva, questiona at que ponto o indivduo est livrepara construir sua autonarrativa. Ele pergunta se em todos os casos as regras e osrecursos se equilibram mutuamente. As restries econmicas aparecem comoum dos exemplos dessa limitao.

    Por outro lado, na teoria de Giddens, percebe-se uma perspectiva dife-rente da historicidade eliasiana. Nas explicaes de Elias, as comparaes maisevidentes so entre configuraes distintas separadas por uma perspectiva cro-nolgica. J em Anthony Giddens, em contrapartida, possvel, por suas teori-zaes, compreender a criana desde suas primeiras relaes com os que cuidamdela at seu desenvolvimento como indivduo adulto.

    Por fim, as duas concepes de identidade parecem ora servir de pressu-postos ontolgicos para as teorias da ao desenvolvidas pelos dois autores, orasugerem que s poderiam ser extradas a posteriori. Entretanto, essas so pontua-

    es para um outro estudo.

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    Nina Gabriela Moreira Braga Rosa

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    Identidade: Anthony Giddens e Norbert Elias

    NINAGabriela Moreira Braga Rosas graduanda em cincias sociais pela UFMGe bolsista pelo PET.

    E-mail: [email protected].