Gigante

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de Luis Carlos de Morais Junior

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Copyright© 2011 by Luis Carlos de Morais JuniorDireitos em Língua Portuguesa reservados ao autor através da

QUÁRTICA EDITORA.®

Arte Final de Capa Teresa Akil

Imagem de Capa

Editoração

RevisãoO Autor

Quártica Editora

"O Beijo" ("Der Kuss", 1907/8) de Gustav Klimt

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

M825g

11-0805. CDD - 869.93

CDU - 821.134.3(81)-3

Morais Junior, Luis Carlos de Gigante / Luis Carlos de Morais Junior. - Rio de Janeiro : Litteris Ed.: Quártica, 2011 128p. :

1. Romance brasileiro. I. Título.

QUÁRTICA EDITORA ®

ISBN 978-85-7801-189-5

CNPJ 32.067.910/0001-88 - Insc. Estadual 83.581.948Av. Presidente Vargas, 962 sala 1411- Centro

20071-002 - Rio de Janeiro - RJCaixa Postal 150 - 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ

Telefax: 2223-0030/ 2263-3141site: www.litteris.com.br

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Este livro é dedicado a Mário da SilveiraReis, Noel de Medeiros Rosa e ao mestredos mestres, José Barbosa da Silva, o Sinhô

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ÍNDICE

PIZZA GIGANTE............................................................................ 9

ELA NEM LIGA, ELA LIGA...................................................... 13

LUTA DE PSICÓLOGAS NA LAMA........................................ 17

BONS TEMPOS POR VIR........................................................... 21

A CASA INDESTRUTÍVEL.......................................................... 25

CURTINDO O PRÓPRIO COURO............................................. 29

DUAS FLÁVIAS.................................................................................. 33

UM CAPÍTULO PEQUENOGRANDE..................................... 37

CAPÍTULO DUPLO......................................................................... 41

O BEIJO DE KLIMT....................................................................... 43

MEDO E FASCINAÇÃO.................................................................. 45

ALHOS E BAGULHOS.................................................................... 49

CECILIA E PERILIO....................................................................... 53

NÃO SOU ANJO............................................................................... 55

DIA DE VER O MARQUINHO................................................... 59

GRITO FALANTE........................................................................... 63

O MISTÉRIO DO OUTRO EU.................................................. 67

PAI E FILHO..................................................................................... 71

PRECIPITAÇÕES ENZIMÁTICAS............................................ 75

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A BRIGA............................................................................................. 79

A LOURA, SORRY, A LOUCA................................................... 81

BÔNUS................................................................................................ 85

A HISTÓRIA COMEÇA................................................................ 87

UM ÉDIPO RIDICULAMENTE GRANDE............................ 89

A FUGA.............................................................................................. 91

PRATO FUNDO.............................................................................. 93

A FOME E O COME.................................................................... 95

A ROUPA CIRCENSE..................................................................... 97

A MENINA E A TV....................................................................... 99

AS COISAS QUE ESTAVAM DANDO NA TV................... 103

MARIANA GESTAL VERSUS O DR. SCARAMOUCH.... 107

NOVISITA........................................................................................ 109

A ENTRELELÊVISTA................................................................. 111

COLÓQUIO AMOROSO............................................................ 113

A ÚLTIMA VISITA........................................................................ 117

A CHEGADA DOS BRAVOS MILITARES........................... 119

O COLOSSO DE RODES............................................................ 121

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PIZZA GIGANTE

(Ao som de Mário Reis.)

É SEMPRE ASSIM, nesta nossa sociedade pós-moderna,massificada, tecnicizada, ultra-capitalista.

— Boa tarde. Eu gostaria de um brotinho.No telefone a moça é incisiva, parece que traz um império

transgalático atrás de si:— Por que o senhor não pede o nosso combo com

duas pizzas gigantes e uma brotinho de sobremesa?E quem pode dizer não ao consumismo desvairado da

nossa civilização?Sou um homem sensível, e cada vez que a vida me deu

uma porrada, tive que me recolher pra lamber as feridas.Bom, imagino que alguém poderia dizer a cada linha

deste relato absolutamente verídico, e as semelhanças nãosão mesmo meras coincidências, que todo mundo passapor tudo isso, e ninguém fica assim, se fazendo de frágil.

Falar é fácil.Geralmente as pessoas acham complicada a ação.Mas, o difícil pra mim é responder. Mesmo no caso deste

contendor imaginário, que eu suponho rude, como hojeem dia, geralmente, as pessoas são, não sei o que lhe dizer,mas, sinto tanto, tantas coisas, que ele está errado, que oque eu sinto é único, que a vida é sensível, que o afeto é

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natural, que bons sentimentos são mais que uma ilusão, sãoa forma da vida se expressar enquanto ser humano, são asnossas garras, nossos voos, nossas teias.

Por que estou sozinho agora?Bem, eu poderia estar com a Flávia, eu suponho, se eu

aceitasse tudo que a gente é e que a gente não é, e tudo queela não quer ser e é, sem saber, sendo sempre o que elaespera e não espera de ninguém.

Quer dizer, se eu aceitasse o seu afeto maluco, a meabrigasse na sua campanha, sua cabana, onde faz frio, chove,neva, correm rios de lágrimas e animais rastejam. Mas éuma barraca. Isso a consola, eu acho, ela vive de esmola, emesmo assim faz caridade, porque é "boa".

Ou poderia estar com Laura. Seria tudo mais fácil, e nãovou dizer que me separei dela por causa da Flávia, seriacomo um cachaceiro enlouquecido dizer que trocou tudopela bebida, é verdade, mas é mentira. Eu sempre soubeque a Flávia não era de nada.

O maior problema não é nem esse.Estou com medo, não é só o sentimento de

incompreensão, um olhar, uma desatenção, é coisa muitomais complicada.

No ano passado a minha casa desabou. Eu estava nopátio, e me salvei.

A casa ficava no alto de uma escadaria de pedra enorme,num subúrbio do Rio, perto de uma comunidade, o quesignifica geralmente favela em morro carioca, ou regiãoplana, com pouca ou nenhuma infra-estrutura e controleparalelo de marginais.

Alguns desses eram meus vizinhos do lado.Eles tinham também uma escada de cimento sobre o

barranco, e quando minha casa desabou, devido a um

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deslizamento do terreno, a deles também ruiu, eles vieramtodos para o meu lado do muro, cobrando que eu tinha"derrubado a casa deles".

Não vou entrar em detalhes. Consegui fugir, e passeimuitas e muitas noites em motéis e hotéis, indo daqui praali.

Nessa época eu estava separado da Laura.Nessa época eu não via a Flávia há muito tempo.Meus pais haviam falecido, e eu estava mesmo com medo

dos meus vizinhos, antes do ocorrido, pois eles pareciamde olho em minha residência enorme.

Que agora eu não tinha mais, mas eu continuava commedo deles, por causa da sua injusta concepção de que eufora culpado do desabamento da minha casa e de ambas asescadarias, visto que eu não fizera obras pra consertar tudoantes ou depois, verba que excedia qualquer orçamento,meu e deles.

Então tentei ao máximo deixar meu novo endereço emsegredo, quando consegui alugar uma pequena casinha emoutro bairro da zona norte cidade, em uma área de classemédia baixa.

Meu nome é Carlos.Tenho 42 anos de idade, e sou pai de um filho com

Laura, que mora num outro bairro da zona norte, com nossofilho.

Sou funcionário de uma empresa de pesquisa demercado.

Gosto de ler os clássicos e os novos, aprecio boa música,cinema, teatro e ópera.

Amo também artes plásticas, desenho, pintura, escultura,gravura etc. Gosto de fazer coisas criativas, visuais.

E amo amar as mulheres.

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Tudo custa dinheiro.Sou magro e baixo.E tímido.Eu diria que sou feio, por causa da desatenção de gente

como a Flávia, mas, considerando que ela tem a metade daminha idade, que é uma cabeça de vento que não entendenada, e que ela e outras fazem assim com tantos outroscarlos, eu diria bem mais que sou mais um, e olhe lá.

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ELA NEM LIGA, ELA LIGA

NA VERDADE, eu estava pensando em voltar com a Laura,depois do trauma com a Flávia, e tinha dois projetos, aliás,três: reatar com a minha mulher, não ver mais a Flávia, evender aquela casa bichada herdada, porque perigosa,rachada, da vizinhança e coisa e tal.

Com o desabamento e a implicância dos bandidos, eudesisti de voltar, e não contei nada pra ela, ao contrário,fingi que estava tudo bem com a Flávia, ou com outraqualquer, e ia cada vez menos ver o Marquinho, nosso filho.

O que tinha de terrível na Flávia é que quando eu estavaquase curado dela, ela me ligava sem parar, queria me ver,de forma misteriosa, não se podia entender o que era queela queria, o que dava sempre a impressão de que era tudo/nada, muito, e sempre era muito pouco, as feridas reabertas.

Eu acho que amo a Flávia, eu acho que amo a Laura. Eé claro que amo meu filho.

É por amá-los que me afasto, quer dizer, me separei porcausa do encontro explosivo com Flávia, que por umasemana me adorava e me queria mais que tudo, na seguintecomeçou a me agredir, e logo depois, a trair.

Hoje ela quer dar pra todo mundo, menos pra mim,como diz uma canção do Péricles Cavalcanti.

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Nem sei como posso amar duas mulheres; nem sei comoposso ainda ir quando ela me chama, e sentir esse fogo,terno e delicado, cheio de alimentação pura e boa pra suaaura loura.

Eu não sei.Eu gosto de pintar, acho que já falei isso antes.Não gosto de escrever, mas escrevo, como se pode ver,

sempre cultivei um diário secreto, que é este que você estálendo agora, quer dizer, uma provinha dele, uma canchinha,se você estiver lendo, então ele não é mais tão secreto assim,talvez devido aos acontecimentos das próximas semanas,mas vamos com calma, ainda estamos no início de 2011, eunasci em 1969, e este ano faço, em julho, 42 anos.

Ela tem 22.Meu trabalho tem a ver com marketing, eu já propus a

tradução desta palavra por mercadologia, mas ninguém seinteressou, como se sabe, não sou muito bom com palavras.

Gosto das imagens.Mas meu mercado é de palavras, falo, vendo, empurro,

"convenço".Às vezes, quero pintar ou desenhar ou gravar e não há

muito dinheiro disponível, as prioridades super alfa são oMarquinho e a Laura e a sua casa, e a alfa é a Flávia, quandoela cisma na mesma hora que quer me ver, e eu topo iraonde ela quiser, mesmo que ela não queira nada, e levehoras pra isso ficar bem claro, e lá se vão nossos dolorososreais com shows bebidas comidas diversões conduções (umdia até mesmo motel, pra não querer nada, lá dentro!).

Quando quero pintar e não tenho nossos realistas dólareseu pinto o sete e desenho sobre qualquer superfície que eupossa utilizar tipo descartável ou suportável de ficar pintada/desenhada/gravada depois, caixas de papelão de produtos,

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verso das folhas usadas, pedaços de madeiras, uma cadeira,o teto da sala.

Uma vez um amigo meu do trabalho chamado Benolárioao ver a pintura sobre a sala chamou a minha nova casa(tenho mania de casa não ap, a que caiu era uma, esta éoutra; ah, e eu sabia, essa a bronca dos traficantes, eles meavisaram que tudo ia cair, estava tudo rachado, de um jeitoque passava um fio de cabelo, um fio d'água, um fio de altatensão, um aparelho de barba, um mamão, todo dia asrachaduras cresciam pra cima pra baixo e pros lados) detetodacapelasistina.

Outra acusação de plágio, essa mais séria, da Flávia 1(cinéfila e cult pro forma): por acaso eu não sabia que otítulo do meu romance desabafo pra me livrar dela Gigante(tratam-se das notas parciais de diário a que aludianteriormente, e que lhe mostrei falando que alterariapatronímicos e daria a público com o título citado) já tinhasido usado em inglês como Giant no filme que foi exibidono Brasil com o nome de Assim caminha a humanidade,realizado em 1956 por George Stevens, nos EUA, comJames Dean, Elizabeth Taylor, Rock Hudson e outrosgrandes atores. A história trata de...

Aí eu interrompi, impaciente:— Todo mundo já viu essa porcaria dessa fita!E ela me indagou se eu não gostava da obra.— Adoro. Tanto que plagiei o título, lembra?"Uma lourinha incomoda muita gente, mas a moreninha

incomoda muito mais" ("Muito mais", marchinha deAntônio Nássara e Francisco Alves, gravada por Mário Reis,em 1935).

— Ah, mas você não sabe da missa a metade. Temtambém Gigante, como o Inter conquistou o mundo

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direção de Gustavo Spolidoro, roteiro de Luís AugustoFischer (2007), e Gigante, filme de Adrián Biniez (Uruguai-Argentina-Alemanha-Espanha, 2009),

— Desses eu não sabia,,,— Ignorância de você.Ela riu mazinha:— E há, é claro, o infantil — ela frisou a palavra — As

viagens de Gulliver (2011), dirigido por Rob Letterman,com Black Jack, no qual o gigante é um nerd covarde — elade novo, de novo —, que enfrenta até um homenzinhodentro de um robozão. Vão dizer que o seu é plágio.

— Ah, cansei de você. Tchau.Bom, este capítulo está muito bom/ruim, e eu não

quero/quero deixar, como está, bem, então, vou ver tv.

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LUTA DE PSICÓLOGAS NA LAMA

HÁ UNS MESES ATRÁS, bem no meio do maremoto Flávia,eu fui numa psicóloga, chamada Aliumete, que era freudiana,e não deu certo mesmo, ela ficou tentando me fixar naminha infância, que era justamente o que eu estava tentandosuperar.

Resolvi semana passada voltar a procurar uma psicóloga,liguei para várias, que encontrei numa busca no Google, eia perguntando qual a linha delas, engraçado, as psicólogaseram sempre mulheres. Linha? Que apito você toca? Hein!

Arrumei uma chamada Flávia também! Assim é a vida,toda maluca. Era gestaltiana, pra quem for muito ignoranteé guestaltiana que fala, então, fui logo chegando eperguntando onde eu deitava, só tinha duas poltronas, elariu, me ofereceu água, falou da madeira dos móveis.

— Uma pessoa pode se apaixonar por duas ou mais aomesmo tempo? Na verdade, estou amando três mulheres,com força igual, de forma diferente, minha mulher Laura, amãe do meu filho, de quem estou separado, minha ex-namorada Flávia que fica me infernizando e adora mechamar pra me chatear, e uma novata lá do meu trabalho,Ana.

— Claro que pode. Isso é normal.

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Tudo pra ela era normal, nada tinha problema, eu nãotinha problema.

Contei meu sonho da semana anterior:— Eu acordava e estava no meio da rua, dormindo, o

sol batendo em mim, e eu era enorme, um gigante, maiorque todas as casas, maior que os ônibus, as árvores e ospostes. E eu estava deitado! Tentei me levantar. Percebique estava todo amarrado. Compreendi que eu tinha unscinquenta metros de altura. Os homens em volta eram muitopequenininhos, e eles estavam com medo de mim, e tinhamme amarrado enquanto eu estava dormindo.

— E depois?— Eles fizeram amizade comigo, viram que sou um cara

legal, e me deram dois empregos. Na parte da tarde eufazia serviços impossíveis ou quase pra eles, e que para mimeram fáceis, por causa da minha desmesurada altura. Naparte da manhã, nas segundas, terças e quintas, eu eraestudado por uma junta de médicos ou de bois, não lembrobem.

Ela ficou calada, me olhando.— E depois?— Eu me apaixonei por uma daquelas mulherezinhas.

Vivemos uma linda e longa história de amor.— Como?— Não sei, meu sonho não entrou em detalhes, fazia

uma edição ágil, decupagem experimental.— Você trabalha no quê mesmo?— Faço imagens nas embalagens vazias.— Publicidade?— Você conhece a história de um rei que falou para um

menino que queria lhe dar um presente? O menino pediutoda a terra que ele cobrisse com um passo. O rei riu e

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concordou. O menino deu um passo que foi maior que ouniverso inteiro. O rei caiu de joelhos chorando e adorandoo menino. E também tem o gigante que transportava aspessoas, para atravessar um rio. Um menino pediu pra eleo transportar. O gigante o fez. No meio do rio o meninofoi ficando pesado, e o gigante não aguentava, cada vez omenino pesava mais, o gigante pediu por sua vida. O meninoé Jesus. O gigante ganhou então o nome de São Cristóvão.

— Qual a sua altura?— Quando? Tô brincando, um metro e setenta...— Qual a altura da Flávia?— Você, faço uma estimativa de uns um e sessenta. A

outra Flávia, bem, acho que tem cerca de um metro e setentae sete.

— E você acha que você tem algum tipo de problemaou complexo com relação à sua altura?

Eu achava que ela também parecia uma igreja.Eu achava que ela também precisava de terapia, ou

alotropia.Eu achava que eu precisava de terapia.Mas as terapeutas eram uma merda.E eu achava que estava mais confuso ainda porque.Estava me apaixonando ela.Mais esta.

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BONS TEMPOS POR VIR

NO TEMPO DE PLATÃO, os filósofos eram reis, na IdadeMédia, eram papas, na época de Noel, sambistas, durante aditadura militar, censores federais.

Na minha época maluca os filósofos são professores deadolescentes que não sabem ler nem querem saber. Tenteicumprir meu fado.

Se já sou tímido e me sinto agredido quando vou comprarum pão na padaria, o que dirá de ter cinquenta a quarentaadolescentes revoltados e sem educação na sua frente,gritando, xingando e fazendo assédio moral.

A coisa foi num crescendo, eu tentando dialogar comeles, às vezes bronqueando, tirando de sala.

A mãe do garoto veio brigar comigo, reclamar com adiretora, do arbítrio.

Até que um deles me agrediu fisicamente no meio daaula. Me deu um soco.

Vieram pai e mãe reclamar do meu despreparo, da minhafalta de educação!

Foi por isso que parei de ir à escola.E tive a sorte de encontrar o trabalho que tenho agora.Toda semana passa rápida, e volta a sessão com a Flávia,

a que se propõe terapiar-me, com seus conselhos prenhes

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de obviedade, ah, todavia, eis a época em que o óbvio é oópio do polvo!

Pois não existe mais povo, claro, você deve ter visto nacopa do mundo, uma besteira assim, uma emissorazinhaimbecil e imbecilizante e gigantesca como um octópodegigante colocou no ar a grande moda, um animal dessesnum aquário, ele tinha que escolher entre duas rações, cadauma com uma bandeira nacional, a que ele escolhesse era opalpite do animal sobre quem ganharia o jogo do dia, e obicho sempre acertava no país! O povo basbaquizadocomeçou a "pensar" que alguém tinha todas as soluções, osmaias, os ETs, o molusco, o telecoteco, algum ser de algures.

Sessão:— Você se acha imaturo?— "Quem acha vive se perdendo", Noel Rosa.— Por que você cita tanto o bardo desqueixado?— "Sofrer é uma arte".— E não será uma vaidade de sofrer que faz você ficar

pensando na Flávia, que não quer nada de sério com você?— Odeio essa palavra, amizade. É em nome dela que as

pessoas mais maltratam.— Ou talvez seja a vaidade.— Outro sonho: eu e você estávamos tomando chá num

casarão, quando um cientista meu amigo bateu na porta,com uma pedra cheia de inscrições e falou que tinhadescoberto o caminho pro centro da terra. Ele não podiair, e nos deu o mapa; e eu e você fomos, enfrentando feras,frio, calor, seres pré-históricos, até chegarmos no núcleodo planeta.

— Eu e você?— Sim.— E fizemos amor?

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— Antes, durante, depois, e depois de depois.— Você já notou que seus sonhos são todos pastiches

de clássicos da literatura universal? Por quê?— Se o real o é, por que não o meu "mundo arcaico de

vastas emoções e pensamentos imperfeitos", como diriaFonseca citando seu não tão amigo Freud, o qual, por suavez, citou Havelock Ellis? E por que não?

— E por que fantasiar tanto? Você ia se sentir melhor,se encarasse a vida e as relações de um modo mais prático.

— Sabe? Desde que eu era novo que as pessoas mehostilizavam, me chamavam de louco, de bêbado, de viado,de comunista e muitas outras coisas, que eu não era. Eu eraeu, eu sou eu, eu sempre serei eu, e apenas isso, isso é maisprático do mundo, todavia parece irritar tanto asconvencionalidades das cabeças de vocês. Eu me sinto comose eu fosse um gigante, que assustasse as pessoas, por causados defeitos delas, por causa das fraquezas delas, e não porminha causa mesmo, não obstante, já que têm tanto medoassim de si, atribuírem-no a mim.

— Sei. Tá na hora. Até semana que vem.

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A CASA INDESTRUTÍVEL

EU NÃO QUIS me separar, apesar do terremoto Flávia (esei que estou parodiando Oswald de Andrade no SerafimPonte Grande e seu "furacão doroteu"; aliás, é bom lembrarque Mário faz do gigante o inimigo de Macunaíma, enquantoOswald faz de seus personagens os gigantes), eu não sabiao que fazer, e também era tudo novo, então eu estava assimmeio extático, isto é, em êxtase (e não estático, sem ação,os adolescentes analfabetos me deixaram traumatizado).

Porém, um dia cheguei em casa, e ela estava com um rolode macarrão na mão, querendo me bater, gritando comigo:

— Quem é uma piranha chamada Flávia?E começou a gritar, que a tal moça ligara sem parar o dia

inteiro, dizendo que queria falar comigo, deixando recado,pedindo pra eu ligar.

Laura contou que lhe falou assim: aqui é a mulher dele.A cínica lhe respondeu: ah, muito prazer, eu sou a

namorada nova.E carregara o tom melódico de "nova", pra implicar com

nossa idade.— Vai me mandar embora?— Claro que não! Seu maluco! Seu maníaco! Seu

irresponsável!

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E começou a falar sem parar, uma oitava acima, que eusumia, que voltava tarde, que fingia reunião, bem, às vezesera verdade, que eu não queria mais nada, não procuravapor ela tarde da noite de madrugada de manhã toda hora otempo todo como sempre fazia antigamente, que agora asminhas amantes ligavam assim cheias de descaramento, queeu não ligava pro Marquinho (que nessa hora é claro queestava ouvindo tudo atentamente do seu quarto fingindocomputar), que nossa casa estava toda rachada, que ia cair aqualquer momento, que aqueles bandidos moravam do lado(os quais também escutavam, não havia como não ouvir),que eu não ligava pra nada, só pensava em minhas escapadase minhas pinturinhas (considero o diminutivo aqui comocarinho, sim, são isso, pinturinhas, e são minhas escapadas,também), que ia embora.

Eu falei que sim.— Sim, o quê? Seu babaca!Queria que eles dois saíssem dali.— Eu nunca vou sair daqui, esta casa é a herança do

meu pai!Meu pobre pai, cultivar sua vivenda era tudo que eu podia

fazer por ele, depois de tudo que aconteceu.— Pois fique e seja soterrado pelos tijolos! Eu vou

embora! Vou levar o Marquinho comigo!— Concordo.— Seu pulha!— Vai prà casa da sua mãe?— Hoje. Amanhã começo a procurar apartamento, e

você vai alugar, depois entro na justiça, quero casa, alimentose pensão.

— Muito justo.Eu estava cansado, tinha sido um dia duro, de sol de

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ouro puro e metal pelas almas desgraçadas que sedigladiavam no mercado.

Faltou um tapa na cara. Nós não nos demos, nem isso.

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CURTINDO O PRÓPRIO COURO

DEPOIS DE QUASE um ano curtindo o tudonada (eu sei,"metáfora" Gil) da Flavinha, eu me apaixonei pela Ana.

Acho que fui bastante quietinho (fora algumas escapadasnão computadas porque monetarizadas).

A Laura não queria mais nada comigo. Estava quasenamorando um cara lá, quase voltando a estudar,trabalhando, separados na justiça, pagava um terço do brutode pensão, e o aluguel, e ainda dava por fora, por causa debem cuidar do Marquinho, e, pra ser franco, dela.

A Flávia fazia-me de tonto, se fazia de tantã, sumia,voltava, me beijava, depois me empurrava, dizia que queriaser minha amiga, só, só isso, por que diabos eu insistia? Eunão queria ser amigo dela, e ela sabia disso.

— Eu não sou seu amigo! Eu não tenho amigo!— E o Belonário?Chegou aquela fase desgraçada em que não havia

mistério, ela sabia tudo de mim, eu tudo dela, os nomes detodos ficantes, amantes, namorados, do passado, do futuro,todas as besteiras que ela fez e ainda vai fazer.

Ela não sabia da Ana.A Ana era quietinha, bonitinha, pequenininha, calminha,

eu gostava muito da Ana.

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O problema é que estava na década de vinte também.Mais uma "ninfeta" como dizia minha mulher, aliás,

Mário Donato em A presença de Anita (1948) e depoisVladimir Nabokov em Lolita (1955), e, ainda depois, StanleyKubrick no filme (1962) baseado no romance de Nabokov.O brasileiro Mário Donato, além de não receber os créditosdo pioneirismo, mereceu uma série (2001) imbecil de umaemissora de televisão oligofrênica.

E a Ana quis alguma coisa com ele?Bem, vamos começar do(s) começo(s): desde que

percebera a loucura de Flávia, e já separado da Laura, ecom o problema dos bandidos, ele não quis tentar voltar, eacha que ela não ia querer mesmo, e precisavadesesperadamente esquecer ou pelo menos contrabalançara Flávia, então ficava tentando se apaixonar pra ver seconseguia.

Foi quando a tal da Ana veio trabalhar no seu escritório.Foi quando Ana a tal apareceu e entrou no meu

escritório.Eu lhe falei imediatamente: vamos tomar um chá/fé/

refri/chop?Ela achou que era parte da política da boa vizinhança

dizer sim depois do trabalho.Mas, ao estar lá, e eu ir me abusando, ela ficou muito

estupefata, de eu ser chefe, de eu ser casado, de eu ser coroa,e estar assim desabusadamente "me passando" pra ela, umagíria velha, do tempo dos meus pais, pra compor aspersonagens.

E tinha outra coisa.Ela ouvira todo mundo dizer no escritório que eu sou

um tremendo filósofo, um pensador, um doido, então elaquis me encontrar na esperança de entabular comigo uma

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verdadeira conversação sábia e amiga, tipo filé sofiai, a amigada sabedoria.

Eu lhe falei meu amor esse negócio de que filósofo éum troço assim anódino e assexual é a maior aleivosia quejá ouvi. Filósofo é um ser selvagem.

Filósofo não é amigo de ninguém.Muito menos de bicho grilo yuppizada que gosta disso

e daquilo e é politicamente correta.Platão, Górgias, Espinosa, eram feras terríveis, homens

gigantescos, verdadeiros super-homens do sentido epraticantes de novos modos de vida, que eles inventaramsem parar.

Depois ainda citei o filme O Selvagem (The Wild One,1953), dirigido por László Benedek, com Marlon Brando,como Johnny Strabler, com sua moto TriumphThunderbird 6T.1

Nele, o "selvagem", "the wild one", na verdade é pacíficoe generoso, e, apenas por não apresentar o mesmocomportamento e modo de ser dos homens "comuns", éantagonizado.

— Você é muito doido cara. Você é um chato. Sai pralá!

— E você parece uma lagartixa listrada!— Que nojo!Eu falei, deixa ser chata, quer dizer, deixa estar gata, quero

dizer, pensei.

________________________

1 Curiosidades pescadas na Wikipedia (Enciclopédia on line) (e lembremos queCiclope também era gigante):“O filme foi baseado num conto chamado The Cyclists' Raid de Frank Rooney,que foi publicado em janeiro de 1951 na revista Harper. Depois apareceu emlivro que reunia várias histórias com o título de The Best American Short Stories

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1952. A história falava de confusões de motociclistas nas comemorações do "4de Julho" de 1947 na cidade de Hollister, Califórnia que fora noticiada na re-vista Life, de 21 de julho daquele mesmo ano sob o título de "'Tumulto emHollister" e com fotos de selvagens motociclistas rebeldes e foras-da-lei. Ofato agora é motivo de celebração anual em Hollister. No filme, a cidade élocalizada em algum lugar não identificado do Oeste.Para a maioria, os motociclistas do filme não são malévolos, não representan-do a ameaça dos filmes posteriores, baseados nos sinistros Hells Angels (Anjosdo Inferno). Na verdade, um grupo de vigilantes liderados por um comercian-te que usa de sua influência para manipular a polícia local, aparece de formabem mais antipática que os motociclistas.O antagonista de Brando no filme é o chefe de polícia interpretado por RobertKeith. Os dois apareceram novamente na comédia musical Guys and Dolls.O filme foi proibido no Reino Unido durante quarenta anos.Elvis Presley inspirou-se em Brando e imitou sua aparência no filme. Outroastro que admirava o estilo mostrado foi James Dean.Conta-se que o conjunto The Beatles inspirou seu nome no da gangue lideradapor Lee Marvin, The Beetles (Os besouros). (Referido em the BeatlesAnthology). A alteração da grafia deve-se a John Lennon, que incluiu um "a" de“Beat”. /.../ (http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Selvagem_%281953%29)Considero que Rumble Fish (1983) de Francis Ford Coppola também se inspi-rou, pelo menos em parte, em The Wild One, pois, neste também, a sociedadeé que violenta o dito selvagem:“O segundo filme que Coppola adaptou da escritora S. E. Hinton, logo apósVidas sem Rumo (The Outsiders), Matt Dillon faz o garoto que vive à sombrado irmão mais velho, que cultiva a mística dos rebeldes de moto, nos anos 50 e60. Um filme que talvez não seja tão bom quanto sua reputação faz crer. Éestilizado, esplendidamente filmado em preto e branco (com um detalhe emcor que a TV em geral não mostra), com bela partitura de Stewart Copeland euma participação especial de Mickey Rourke. Sua grande cena com DennisHopper mostra o confronto de gerações e o embate pai/filho, essencial nadramaturgia do filme (e na obra toda do autor)”. (O Estado de São Paulo, 07/07/2009, caderno 2, p. 9)

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DUAS FLÁVIAS

— EU FALEI PRA ELA: há duas Flávias, vejo duas vocês nofuturo, como naquele filme What the bleep do we (k)now?

— Como assim?— Ela se afasta, às vezes fica meses sem me ver, e quando

volta está feia, mais feia, quase feia, muito feia.— Ahn?— Você fica feia longe de mim... Ela deu ouvidos, mas

me deslocou da história, pensou só que ela pode ser lindaou feia no futuro, dependendo de como faça seu presente,como todos nós. Eu fui o mais sincero possível, falei nocaminho com coração de Carlos Castaneda (o qual ficagigante também, num episódio de O poder do silêncio),falei nas paixões tristes e paixões alegres e ações do Espinosa,ativo e reativo de Nietzsche e mandei links pro seu e-mail.

— E ela?— Acho que sacou que eu estava fazendo propaganda

de mim mesmo. Tipo: ela será feia se não ficar comigo, elinda se ficar. O pior é que é verdade. Mas ela não quer serlinda.

— Você não se acha muito protetor e prepotente?— Não.— Fixado no próprio umbigo?

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— Realista.— Desistiu dela? E a Ana?— Estou amando as duas, aliás, as quatro, inclua Laura,

e você.Ela se riu, dedicada, delicada, deliciada, ou cínica, ou

química, ou melhorpior ainda, um pouco de cada.— Não sonha mais?— Sonhei que um coelho vestido corria, olhando o

relógio, preocupado, e ficava repetindo obsessivamente"Estou atrasado".

— E você entrou pelo buraco?— Não. Olhei e achei natural, e continuei fazendo as

minhas coisas. Como quando eu vi, de verdade, na realidade,acordado, no meio da rua, um coelhogato, um ser que era amistura dos dois, parado, me olhando, na rua, perto domeio-fio.

— Você já pensou que pode ser delirante?— Pensei; não sou. Sou realista.— Você notou que o sonho de você gigante pode ser

Jonathan Swift, pode ser Lewis Carroll e pode também seros dois.

— Pensei não; sou realista.— Como assim apaixonado por mim? Não sinto a menor

atração de mim pra você ou de você pra mim.— Você falou a mesma coisa que a Flávia há uns dias

atrás, com outras palavras. Por três semanas sentia, depois,magicamente, parou de sentir.

— E por que você insiste, se não há nada? Se ela temessa necessidade infantil de encontrar com você pra se sentirmais adulta e maltrata você, e sempre fala que não quernada com você, e isso te machuca, por que você ainda aquer?

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— Não sei.— Você não é tão realista assim.— Por isto estou aqui.— E por que então quer transformar a nossa relação

nessa coisa já tão conhecida e pseudomasoquista de vocêse fingir apaixonado e ser chutado de tudo quanto é jeito?

— Não sei. Sonhei com você. Penso muito em você.— A Laura te tratava bem, e você estragou tudo.— Você parece uma mãe.— Eu sou, também. Aqui, sou sua terapeuta.— Você já traiu?— Vamos falar de você.— O que você acha da traição? Contaria pra seu marido?

Aceitaria dele? Acha que alguém pode ser sempre fiel?Nunca sentiu desejo por outros homens (ou mulheres)?Não sente atração por mim, tem certeza?

— Tenho. São muitas perguntas, todas insanas.— O que seria santidade pra você?— De onde você tirou isso? Não falei que não eram

santas.— Quem é?— Você, suponho.— Sou, sim. Eu sou um santo homem (apud Joyce e

Lacan).

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UM CAPÍTULO PEQUENOGRANDE

NÃO SOU PROPRIAMENTE amigo do Belonário!Ele é mais o único que não me hostiliza abertamente.A mesma coisa acontecia na escola, no colege (rái escul),

e quando eu dava aulas; tipo, além da hostilidade dos alunos,que era superagressiva e totalgeral com todos e com elesmesmos, entre eles mesmos, uns com os outros, eu tinhaque lidar com o praticamente ódio gelado dos meus paresprofessores.

Não sei por quê.Agora, são os escriturários; é a esposa, as namoradas, o

filho, os vizinhos, os vizinhos bands. Que fiz eu?No ofice o prioríssimo é o Androgenio.Antigamente, tínhamos judô antes da hora do trabalho,

tínhamos que chegar meia hora mais cedo pra praticar,obrigatoriamente. Ele sempre tentava transformar osexercícios numa disputa de força real, entre nós, disfarçado.

Depois virou tai chi, depois yoga. Depois será lesmayoga,tenho certeza. Quando mais gelatinosos melhor pra eles.

Ele já me sabotou, vive me encarando, dando respostasríspidas e/ou debochadas, e uma vez me convidou pràporrada na calçada depois da hora do expediente, e espalhoua aleivosia de que eu não seria de nada, no dia seguinte,

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porque fugi dele, como das amantes vampirescas e dosbands que queriam confrontação no desabamento.

Enfim, vamos mudar de assunto.

"Francisco: Na introdução deste sambaQuero avisar por um modo qualquerQue esta briga é por causa de uma mulherMário: E eu aviso tambémQue neste samba agora me metoPara cantar com Francisco Alves em duetoMário: É preciso discutirFrancisco: Mas não quero discussãoMário: Da discussão sai a razãoFrancisco: Mas às vezes sai pancadaMário: A questão é complicadaFrancisco: Quero ver a decisãoMário: A mulher tem que ser minhaFrancisco: A mulher não traz letreiroMário: Foi comigo que ela vinhaFrancisco: Mas fui eu quem viu primeiroMário: Ela é minha porque viFrancisco: Mas quem segurou fui euMário: A conversa já metiFrancisco: A mulher não escolheuMário: (E podes crer que é...)Mário: É preciso discutirFrancisco: Mas não quero discussãoMário: Da discussão sai a razãoFrancisco: Mas às vezes sai pancadaMário: A questão é complicadaFrancisco: Quero ver a decisãoMário: Já perdi a paciência...

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Francisco: Eu por ela me arriscoMário: Sou capaz de violênciaFrancisco: Mas não vai quebrar o discoMário: Quanto tempo foi perdidoFrancisco: Perdi tempo pra ganharMário: Ganhar fama de atrevidoFrancisco: Quem se atreve quer brigarFrancisco: (E podes crer que...)"("É preciso discutir", samba de Noel Rosa gravado por Francisco

Alves e Mário Reis, em 1931)

Tipo, quando eu virar um artista plástico famoso, quandoa Flávia acordar entendendo que me quer, quando eu ganharsozinho na loteria na qual não jogo, quando um anjo baixarcom sua nave e um transmutador anímico na mão convertera raça humana a alguma outra bobagem.

— Você já se sentiu como uma aveumana noaveumaninheiro sendo observado e avaliado pelo seu valorenergético e/ou mercadológico? Todo mundo sente.

Ela mudou de assunto, embaraçada.— E você jura que os sonhos são mesmo verdade?Que jeito estranho de a sua analista falar com você, esse

mundo tá mesmo de pernas pro ar. Que que eu falo praela? Quer romantismo ou erotismo?

— O que é a verdade?— Sonhou de novo?Yeah, she really do wants to hear, indeed.— Fui convocado pra uma guerra sem fim, sem heróis,

sem sentido, mas com todo o sentido do mundo. Ali, nafrente, um homem que amava sua amada mais que tudo,ainda esperando, depois de tantos anos, para estar de novocom o seu verdadeiro amor.

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Na nossa frente, um império medonho, que acobertavacom seu ouro e sua soberania o desamor e um filho bastardomimado infeliz imbecil bad boy covarde mesquinho cheiode maldade em toda parte que tinha raptado aquela mulherque só sentia nojo e medo do infeliz captor.

Lutamos bravamente, vencemos, destroiamos aqueleimpério de maldade, e eu quis voltar para o meu lar, a minhailha, Carolingia, onde a minha verdadeira amada me esperavacom tenacidade.

— E quem era essa?Claro que ela queria ouvir, nem sei por que, e eu falei:— Você.— E...— Foram mais dez anos de lutas desiguais contra todo

tipo de gigante malvado e feiticeira descarada. E você sempreme esperando: foi um sonho longuíssimo!

— E... você voltou?Sorri clinicamente, o que era uma forma inédita de

felicidade, ou toda felicidade já foi editada, e nósconsultamos pela eternidade a biblioteca do Jorge?

— Eu sempre volto.

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CAPÍTULO DUPLO

FUI FAZER A BARBA que estava crescida e preciso meapresentar decente no trabalho. Decente quer dizer: etnia,idade, roupa, barba feita, pele limpa, perfume e desodorante.

Dormido e bem alimentado, calmo, pressão e pulsaçãosob controle, nenhum desvario ou devaneio além daspsicoses eletrênicas (eu escrevi eletrênicas de propósito,decifre-se ou se devore) do rádio do cinema do celular dainternet e da tv.

No outro lado do espelho um olho me olhava. Umciclope miniatura, ali no lusco-fusco do banheiro.

Na verdade dois olhos, os da imagem que o espelho medevolvia, refletida de mim... De mim? Sou eu assim?

Mas é que um olho, especificamente, o olho esquerdo,me olhava como se fosse outra pessoa, como se nem meconhecesse, ou estivesse me provocando, estranha mente.

Ciclope! Bem que eu sonhei que estava na ilha eenfrentava essa fera humana bestial.

Fiquei parado, o pincel na mão, a espuma num copo naoutra, e fui baixando as duas, colocando os utensílios napia, enquanto a torneira pingava, e eu não ouvia, e via noespelho toda a minha pessoa se tornar uma outra, que eramuito, mas muito parecida comigo, mas não era eu.

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O BEIJO DE KLIMT

AH TÁ, NÃO TEM atração né, mas ela não se aguenta maisem pé, aliás sentada, não fala nada, fada, mas seu corpofala, e me chama pro seu divã, diva do meu sonhoflorescer.

Então eu me levanto lentamente, e me sento do seulado, e pego sua mão sinistra com a minha destra, e meaproximo muito devagar, pra dar todo tempo do mundopra ela: reclamar, me esbofetear, gritar, se levantar, rir daminha cara, quer dizer, assinalar seu óbvio não.

Que não veio.E veio aquele beijo.— Você é um sonhador...— Agora não tem mais terapia?— Agora a terapia é outra.Beijei a Flávia 2 de novo, e este seria um lindo Happy

End, se não fosse apenas o prefácio deste elivro (escrevode propósito por mil motivos elivro), e a verdadeira históriaainda está pra começar.

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MEDO E FASCINAÇÃO

AGORA TODA NOITE acendo a luz da sala e fico napenumbra do banheiro por algum tempo olhando proespelho, e logo ele vem, quer dizer, eu, não sei quem, essealguém misterioso que aparece com as minhas feições, masse ri quando eu choro, fala quando me calo, se afasta e vaiprà sala, volta e faz gestos que eu não fiz.

Tenho medo de que um dia ele saia do espelho e comecea andar por aí, e depois venham me dizer que sou dessejeito que eu não sou, ou que fiz isso e aquilo que não fiz, enão sei mais quê. Ou ainda, de me ver assim, tão diferentede mim, ou, como já dizia Sá de Miranda, será meu outroeu meu inimigo, tamanho inimigo de mim?

Você sabe, não sei fazer amigos. E quando gosto deuma mulher me apaixono.

Foi por isso que eu procurei a psicóloga.Sou um grande pintor, um cara culto, não consegui ser

professor nem trabalhar com artes plásticas, e faço todaforça do mundo pra me segurar no escritório.

Onde quase todos não gostam de mim, ou me ignoram.Me apaixonei pela Laura, tivemos um filho, e hoje ela

me despreza.Me entreguei inteiro assim de cara prà Flávia, e agora

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ela me usa pra se engrandecer, eu acho, e me tortura, umaforça de desprezo também.

Me declarei pra Ana do escritório que só faltou chamara polícia e os bombeiros, horrorizada.

O que é de tão errado comigo? Sou ruim de cama? Issotalvez explicasse em parte com a Flávia e a Laura, não coma outra Flávia e a Ana.

A outra Flávia... não vou contar pra ela desse negóciomaluco do espelho, ela vai pensar de novo que é mentira,que estou brincando de fazer pastiche de Ernst TheodorAmadeus Wilhelm Hoffmann e de Fiódor MikhailovichDostoiévski.

Me lembro como se fosse hoje, aquele beijo, e eu saí delá confuso, nada mais aconteceu, ela me pediu para sair,precisava pensar, não marcou encontro ou consulta, nãome ligou nem eu liguei pra ela depois.

Na outra semana, apareci lá, na hora de sempre, comose nada tivesse acontecido, e foi assim também que ela secomportou, fria como sempre, dava até pra acreditar quenão havia mesmo nada entre nós.

Falei do beijo.Ela a princípio disse que era mentira ou delírio, e eu

fiquei muito preocupado, eu tinha certeza do que tinhaacontecido, e comecei a duvidar do caráter moral ou dasanidade mental de minha querida esculápia. Veja queabsurdo, fiquei preocupado por ela.

— Você acha que sou masoquista?— De verdade? Não.— Você acha que sou sádico?— Não.— Você acha que sou psicótico?— Também não.

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— Como você me diagnostica?— A gestalt não acredita em rótulos fixos, assim como

os produzidos por um diagnóstico clínico. Você é o quesente que é, o que pensa que é, e seus pensamentos esentimentos vão mudando com o tempo.

— Você sabe que houve outra antes de você.— O que você está falando!?— Meses atrás, eu comecei a me analisar com uma

psicanalista freudiana.— Hm.— Ela disse que eu não estava apaixonado de verdade.

Que isso sempre acontece em terapia. Chama-se transfer.É claro que eu sei disso, não sou ignorante.

— Já leu Freud?, hein.— Transferência. Na verdade, eu achava tudo muito

cretino que ela me falava, isso quando se dignava a me falar.Logo meu sentimento esfriou. E parei de ir às consultas. Eparei de procurá-la.

— Você a procurava fora do consultório?— A palavra consultório não parece um lugar onde se

alimentam animais pra usar? Tipo curral e galinheiro. Sem ofensa.— Não parece não.— E ela disse que eu era perverso.— Talvez perversa fosse ela. Não dá pra eu saber, mas

eu sei que ela não te fez bem.— Sei.— Talvez aí esteja o que ela quis dizer com perversão.

Você não precisa proteger as mulheres, nem a sua, quandouma é sua. Você não precisa proteger as pessoas, nem asua, que é mais pessoa pros outros do que pra você, e sabeperfeitamente reagir quando precisa, se você se deixar agir,não ficar se protegendo assim.

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Eu admirei ela, naquela hora, a minha linda Flavinha decabelos negros e olhos castanhos.

— Seus cabelos são pintados?— Pense nisso. Você promete?O outro Carlos, no espelho, ria da minha cara.

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ALHOS E BAGULHOS

ÀS VEZES PENSO se eu não meio sonhoinvento a Flávia 2e seus discursos e seu beijo solto no tempo e no espaço.Não acho que eu seja louco, não acho que ela seja louca,acho que a Flávia 1 é louca, mas isso é outra história, quevou meio que contar daqui a dois parágrafos, então,paciência.

Eu sei que o real é real e realmente eu faço terapia todaquarta-feira de tarde com Flávia 2, acontece que talvez tudode genial e intrigante que eu vejo no seu discurso venha demim mesmo, já cansado subliminarmente de não terinterlocução para as questões candentes que me tantalizam,procurei a terapeuta um, depois a terapeuta 2, e, naimpossibilidade de extrair algo delas além da remastigaçãodo senso comum, de dois sensos comuns, na verdade, nogeral e o científico, eu mesmo preencho nosso tempo comas sacadas que quero que eu me esbarre nelas, eu mesmome analiso. Aliás, eu tenho certeza disso.

O problema com a Flávia 1 é que ela parece uma criançapequena que sofre sem parar, como se ela gritasse numanoite que não tem fim. Eu não tinha contado tudo isso pràFlávia 2, porque a barra vai ficando muito pesada com aF1, e eu queria poupá-la, protegê-la, de tudo de horrível

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que ela faz com os outros ou com ela, e não há onde entrarno labirinto dessa história sem ser heavy metal o gostoamargo que fica em tudo, tudo, pra ela. Cristicamente eucomprei o seu drama, e fiquei sentindo mal assim, mesmopensamentos suicidas, que é coisa que eu nunca tive antes,ficavam me obcecando, depois de cada encontro com F1.Eu pensei: essa merda é o pântano é o lodaçal é o esgotoque ela sente o tempo todo, pobre menina, mulher, o quevou fazer por ela?

Eu fiquei muito tempo, ao longo dos meses, vendo suasloucuras, e me sentindo mal com a emoção que vinha dela,e todas as suas desatenções, abusos e traições. Internamenteeu sempre pensava nela, no que ela tinha, por que sendobonita, inteligente, com todas as necessidades atendidas(mora com os pais), e podendo escolher amigos enamorado, se agredia assim, se fazia de tola, se embebedavae se violentava pra se sentir uma porcaria depois.

Um dia eu compreendi melhor e expliquei pra ela, naesperança de conseguir lhe ajudar.

— Flávia, você parece uma menina pequena, que fazcoisas erradas e perigosas pra ela mesma, sabendo que sãoassim, pra chamar a atenção do papai, como quem diz: olhao que eu estou fazendo comigo mesma, vem cuidar de mim.Suas sabotagens fazem de você uma pessoa difícil,impaciente, ríspida por dentro, tanto quanto é doce porfora. No seu elemento, quando alguém se aproxima umpouco, você se apavora, tem medo que ele chegue pertodemais, e sabota tudo, e agride etc. E precisa sabotar aimagem da pessoa, todos pra você têm que ser muito ruins,pra poderem ser descartados assim. Seu jogo de sexo casualfaz você desprezar os homens e você mesma. Quando vocêtenta amar você faz tudo pra rebaixar a figura do cara, até

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conseguir desprezá-lo tanto quanto se despreza. Cedopercebeu que o sexo é moeda forte, moeda falsa, chequesem fundo, mas forte. E começou a fazer algo superviolento. Você usa o sexo, seduzir os caras, se entregar fácil,como uma forma de ter poder sobre eles, e manipulá-los.Como a maioria dos caras se satisfaz com a posse, a primeiravez, isso é o que importa pra eles, você consegue na verdademuito pouco domínio sobre eles, e se afunda cada vez mais.De cada relação, louca ou tentando ser "normal", o sujeitosai lépido e fagueiro, feliz da vida, se sentindo melhor pelaconquista fácil e rápida de uma moça bonita, sem osatolantes compromissos. E você sai mais arrasada, maisferrada, mais atolada no seu desespero niilista. É como umvício, em que a vítima é você

— E o que ela falou?— Ficou calada. Chorou. Foi embora. A partir do dia

seguinte, começou a me agredir e sacanear mais ainda. Umdia apareceu com um cara, que me chamou de tio, e ficoume provocando, dizendo pra eu deixar a "namorada" deleem paz. Depois esse sumiu, na areia movediça dela.

Eu estava triste. Parecia uma traição contar assim osseus segredos pra F2, e, por incrível que pareça, eu tinhatanto carinho por ela, quem disse que gigante não chora.

— Por que você não fala pra ela fazer terapia?— Eu falei, muito, desde quando a conheci. E ela

fez, várias. Tentou uma psicóloga, que "lhe deu alta",achou que estava tudo bem com ela. F1 é a mestra dosdisfarces.

Ou algumas, quer dizer, muitas, pessoas hoje em dia, psiou não, são as mestras em não enxergar um palmo na frentedo nariz, e isso vale pràs duas, aliás, pràs três, inclua tambéma terapeuta que ela procurou, antes de tentar todo tipo de

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balacobaco alternativo que simplesmente era igual comerconfete de anilina e nada.

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CECILIA E PERILIO

EU NÃO SEI POR QUE escrevo este texto, não sei o que eleé, e não acredito que alguém o lerá. Talvez me faça bempor ser um desabafo, ou um desafio, ou porque aqui euestou conseguindo me analisar, eu estou fazendo a terapiacomigo mesmo, e isso me faz melhor.

É incrivelmente difícil escrever agora, veja bem, você,se é que você está me lendo agora, não sabe ainda o querealmente aconteceu. Isto é, a história ainda nem começou.Mas não se incomode não, não se preocupe, você vai saberna hora quando a verdadeira história começar, tudo istoaté aqui é só um prólogo.

E pra ajudar, não sei por que eu tenho essa mania deajudar, porém, vá lá, pra auxiliar o leitor possível a saberquando a história começou, eu vou dar a dica: isso vai serno momento em que eu estiver sozinho dentro da minhanova casa, e esta desabar em cima de mim, e eu acordar ever tudo.

Noite, apago as luzes, só deixo uma lâmpada entre oscômodos, e abro, com receio, a porta do banheiro.

O duplo no espelho... Ele passou a falar, e de uma formaterrível.

Parecia um oráculo. Ou então outra analista. Ou umaespécie de F3:

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— Você se sente culpado pela morte do seu pai. E nãotem coragem de contar isso pràs Flávias.

Fiquei em choque e ele continuou, faceiro:— Você se sente culpado de muita coisa. E com razão.

E se sente melhor que os outros, veja bem, caia na real:qual a diferença entre você e a menina prà qual falou aquilotudo, tão cruelmente?

Eu não sabia.Meu outro eu é que era cruel, tanto quanto eu sou

"bonzinho".— Vou contar prà Flávia sobre meu pai.— E isso não vai ajudar nada, nada vai mudar.Uma vez fui na cartomante pra perguntar sobre F1.Ela jogou as cartas, falou que somos almas gêmeas, e

que existe um "trabalho" de família pra ela e pra mim, uma"amarração", que nos impede de ser felizes, e de ficar comalguém.

Que os dois vivíamos o mesmo problema, por sermosgêmeos astrais.

E que ela cartomante poderia resolver tudo aquilo, comum negócio progressivo pra seres cujo nome em iorubá elafalou mas esqueci, duraria vários dias, eu não precisava fazernada, ela faria tudo, e eu teria que lhe pagar dois mil e tantosreais pra isso.

Não fui mais lá, não paguei, não encomendei o"trabalho".

Não porque achasse mentira, eu achei que ela estavacientificamente correta.

Nem foi por usura, pena de gastar tanta grana.É que eu me acharia ridículo e canalha fazendo um feitiço

pra ela poder ficar comigo.Queria que ela ficasse.Mas queria que ela quisesse.

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NÃO SOU ANJO

— SONHEI QUE OS ANJOS voltavam à Terra, desde osanos 50, eles estavam e estão entre nós, e chegam em grandescarruagens de fogo, que os homens e os meios decomunicação de massa chamam de discos voadores. Háuma conspiração pra manter tudo em segredo, e o governo,preocupado com o pânico das massas, agenciou algunsjovens criativos para trabalhar no cinema, na televisão, namúsica pop, na literatura etc, e trazer a informação aospoucos, como se fosse ficção, para a população se acostumarpaulatinamente com a ideia, e um dia poder ser tudorevelado. O grande problema é que os Anjos de Deusgostaram muito das mulheres humanas, e muitos deles secasaram com elas, quero dizer, se uniram, e dessas uniõesproibidas nasceram filhos, que não são humanos totalmente,nem totalmente anjos. Essa é a raça dos gigantes. No meusonho tudo isso acontecia, e um desses Anjos se unia aminha mãe nos anos 60, e eu nascia, e eu era um gigante.

Seus olhos piscavam sem parar.— Por que você nunca me fala do seu pai?— Então? O beijo não aconteceu? Eu o chamo de O

Beijo de Klimt. Porque foi tão colorido e interdimensional.— Você sabe que sim. Eu não queria, mas, ao mesmo

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tempo, não quis também criar um clima hostil, deixei quevocê me beijasse e depois saísse. O meu silêncio sobre oassunto, e a forma como eu o tenho tratado desde então,deveriam lhe demonstrar claramente o meu desinteressepor essa sua abordagem. Eu estou muito engajada no seucaso, do ponto de vista profissional, e não vou ferir você,nem vou amar você. E parece que as duas coisas andamsempre juntas pra você. Você amava seu pai?

— Você ama seu marido? Você tem filhos? Sempre foifiel?

— Amo, tenho dois, um menino e uma menina,pequenos. Não vou entrar em detalhes sobre minha vidaparticular com você. Sou sua terapeuta. Quero lhe ajudar.

— Quer? Tem certeza? Não durmo de noite, tenhotaquicardia, fico obcecado, uma ideia fixa que faz apertar edoer minha cabeça, sinto também no peito, no corpo todo,o nome dela nos lábios, sussurrando, o dia inteiro, pra mimmesmo, sem saber o que fazer.

— Quem?— Flávia.Ela fingiu que não viu que eu falei o nome de duas formas

possíveis ao mesmo tempo. Resolvi ser redundante eesclarecer:

— Busquei ajuda porque me sinto desconfortável. Euamo uma moça da metade da minha idade que se comportade uma maneira totalmente maluca, e me maltrata, e quantomais ela faz isso mais eu a amo. Não consigo dormir, ficoestressado, angustiado, obcecado. Sempre me apaixono pormoças mais novas, na mesma faixa de idade. Sinto que amomais de uma ao mesmo tempo, com igual furor. Nada dissoé normal.

— E o que é normal?

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— Haja paciência! Você não vê problema em eu sempregostar de garotas de vinte anos, tendo quarenta e tantos?

— Não. É sua preferência.— E eu me apaixonar por mais de uma ao mesmo tempo,

com idêntica força?— Também acontece, tem gente que decifra o mundo

através do amor, como um código. Principalmente você,que é tão arredio a amigos e eventos sociais. Sobra muitoespaço pro "amor".

— E a obsessão?— É um jeito de ficar apaixonado, muito comum

também, mais frequente do que você imagina.— Então está tudo bem?— Se você sente que não, não. Mas talvez o problema

não seja nenhum desses. Me fala do seu pai.— Ai, bem que meu duplo me desafiou a tratar desse

assunto totemtabu com a Senhora!— Seu duplo? Como assim??Ai ai, pensei, eu e minha grande boca. Agora ia ter que

contar tudo pra ela, sobre o duplo no espelho, e a mortedo meu pai.

Acho que eu queria contar.Por isso que falei, "sem querer".Eu sou Gigante, filho dos Anjos: não dou ponto sem

nó.

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DIA DE VER O MARQUINHO

SALTO DO ÔNIBUS COM meu pacote vermelho debaixo dobraço, bato na porta como um pretendente ignorado, aempregada vem abrir, ela agora tem empregada.

Marquinho grita lá do quarto mas não vem. A Janair ricom seus dentes perfeitos e branquíssimos (elegante e bemvestida, conta que trabalhou pra uma dondoca maluca, antes):

— Ele está no computador, Carlos. Sabe como éadolescente.

Hoje em dia, pra completar o lugar comum, faltou dizer,ou tá implícito. Puxa! Adolescente. Quantos anos oMarquinho tem, dez, onze?

Entro pela casa a dentro, sem medo de encontrar ofuturo namorado da Laura, pitombas, o garoto é meu filho,não me vê há quinze dias, podia ter vindo na sala, não vouficar esperando a audiência.

— Oi, velho? Beleza?Que porcaria, que droga, eu deveria sentir mais prazer

em lhe dar esse pacote que ele rasga como um vendaval etira o boneco personagem mais famoso dos desenhosanimados de porrada da atualidade e seu carro verde roupaverde brilhante cara verde tudo verde acessórios, tudo, numamonocromia tediosa de espalhafato.

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Não temos assunto. Pergunto como ele está na escola,o que anda fazendo, se pratica algum esporte, se namora.

Eu geralmente não tenho assunto com a maioria daspessoas.

Com as Flávias sempre tenho assunto.Uma é quase tão tola quanto o Marquinho, apesar de ter

o dobro da idade dele, ou mais, mas mesmo assim me delicioouvindo suas confusões e tentando com toda a força domundo lhe ajudar.

A outra é quase tão tola quanto a primeira, apesar de terquase a minha idade, e ter brevê pra pilotar as almas dascriaturas confusas e angustiadas rumo ao porto seguro e àalvorada.

Também não fala nada que preste. É por isso que eu mevisto assim, todo largado, mas coloco minhas roupas degala, quando vou ler, de noite, depois de todos os deverescumpridos, a minha satisfação, encontrar com os meusverdadeiros amigos, tipo Nicolau Maquiavel.

"Depois da jardineira, que chorando sumiuNos dias do outro carnavalDepois da tirolesa, que cantando fugiuDeixando todo o mundo malChegou a vez de dominarDe imperarComo rainha de encantos sem parIaiá BonecaA brasileirinha emoçãoDona do meu coraçãoAi, ai, como é bonitaAi, ai, como é formosaAi, ai, Iaiá Boneca

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É um botão cor de rosaIaiá me dá uma esmolinhaDos beijos teusPelo amor de Deus"("Iaiá Boneca", marchinha de Ari Barroso, gravada por Mário

Reis em 1939)

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GRITO FALANTE

— E A TAL DA Ana?— Desisti, muito boba.— Desistiu, numa boa. Assim?— Três é demais. Muita confusão na minha cabeça.— Você ainda ama sua mulher?— Sim.— Quantos anos ela tinha quando vocês começaram?— Vinte e um.— Então, você sempre segue o padrão?Fiquei calado olhando pra um inseto incrível que parecia

um et em miniatura, na parede do lado, depois se arrastoupelo teto, e eu olhando, calado.

Aí não resisti:— Quanto anos você tem, Flávia?Ela riu de boca fechada, com os cantos dos lábios, e

respondeu:— 34.— Então você é a exceção, que desestruturou a

padronagem.Ela mudou de assunto, tática:— Você não falou ainda do seu pai. Não vai falar hoje,

já sei. E seu filho?

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— O Marquinho? Que tem ele?— Como é a relação de vocês?— Nos vemos uma vez a cada quinzena. Ligo pra ele,

acompanho-o nas redes sociais. Não temos nada a falar, eupergunto sobre seus estudos e diversões, ele soltamonossílabos.

— Ele incomoda você? Acho que você se separou muitofácil, pra quem ama a Laura. Como você se sente, sendovocê o pai?

— Eu sabia que estava tudo errado. Ela tinha medo dacasa e da vizinhança, e eu tinha o compromisso com meupai, de guardar a casa. Ela ficou sabendo da Flávia 1. Eunão sou um bom pai. Aliás, eu não sou um pai.

— Por que não?— Porque sim.

Cheguei em casa cansado com as confrontações que eunão conto na rua, no trabalho, na família, e as questõespsicológicas que a análise me fazia ter que encarar, faziavirem a tona.

Eu esperava tudo, quer dizer, crise de angústia oudepressão, por causa das Flávias, agora eram duas, Laura eMarquinho, papai e mamãe, qualquer coisa assim, tudomenos me autoforçar a entrar naquele banheiro com luzespenumbrosas e olhar pràquele espelho e vê-lo ali, sempre,indefectível, quer dizer, rente que nem pão quente.

— Então você é o machão. Não briga com ninguém,quer ser o bonzinho, com todo mundo, mas brigava comele, o velho Afonso, todo santo dia.

— Não me venha com isso agora!— Com ele você não era bonzinho ou covarde. Ou era?

Agredir seu velho pai, que fazia tudo por você.

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— Fiquei na casa rachada, com os bandidos do lado, mesujeitei ao desabamento e agora eles me procuram pra sevingar. Tudo por causa dele.

— Ah, sei, você é um herói.— Não seja irônico!— Ironia é essa sua palhaçada de homem bom, de

homem amante, apaixonado. Você sabe que não amanenhuma delas. Talvez você nunca vá conseguir amar. Eos únicos que te deram amor incondicional, bem — vocêsabe o que você fez, e não fez.

— E o que vai adiantar se eu contar tudo pra ela? Issonão vai mudar nada, nada vai.

— Seja homem! Reaja!!!— O que você quer que eu faça? O que devo fazer?Ele me olhou com um misto quente de desprezo e

rancor.— Você sabe melhor do que eu.Desesperei-me, coloquei o rosto entre as mãos, sem

saber o que dizer.Quando olhei de novo, ele tinha sumido! O espelho já

não me devolvia nenhuma imagem.Mas ainda assim ouvi sua voz, de algum modo, ecoando

pela câmara acústica do banheiro:— Então deixa que eu vou fazer o que tem de ser feito.

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O MISTÉRIO DO OUTRO EU

NÃO CONSEGUI FAZER NEM falar nada, fiquei em casa,escondido, em choque, nem atendi quando me ligaraminsistentemente do trabalho.

O que o outro ia fazer?Qualquer hipótese me apavorava.Alguma violência que eu desaprovaria?Alguma besteira que me complicaria?Iria falar com alguma mulher? Falar o quê?Fechei portas e janelas de minha pequena casa, não liguei

rádio, pc ou tv, nem conseguia ler, comer nem fazer nada,fiquei debaixo do lençol, sem saber o que fazer ou não fazer.

Na mesma hora twilight, o lusco-fusco da tarde, apenumbra do crepúsculo em que eu sempre o procurava eo encontrava rindo debochado pra mim de dentro doespelho do banheiro mal iluminado, eu ali, de pé, quasedesmaiando, as minhas pernas tremendo e o corpo todoagitado, na hora certa eu voltei, e olhei pro espelho e vi:ainda não tinha reflexo, na sua superfície eu só distinguia aparede atrás de mim.

Gritei horrorizado.Alguns instantes se passaram, e eu ouvi seu riso

silencioso.

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Aos poucos distingui a sua imagem se formar diantedos meus olhos, na minha frente, no reflexo especular.

— O que você fez? Onde você esteve?— No seu mundo. Visitei três pessoas: Laura, Flávia 2 e

um padre numa igreja católica.— Por quê? O que você fui fazer?— A mesma coisa, nos três casos. Contei para cada um

deles a história da morte do seu pai, o que você fez, o quedeixou de fazer, e como se sente culpado. Elas pensaramque eu era você. O padre nem sabe quem falou, masacreditou em tudo. Vou te revelar o conselho do padre:com Laura e Flávia você mesmo vai falar, e ouvir o que elastêm pra dizer. Não pode perder esta oportunidade. Sãosuas aliadas. Suas mestras.

— O que você contou?— Tudo. Então, o padre falou que não era pecado, que

você não pode se punir pelo que aconteceu, se é queaconteceu. Que o pecado é ficar se culpando, e procurarassim nas dobras do passado por rancores e atos que nuncaexistiram, ou, se existiram, eram coisas menores, sem essagrandeza e a dimensão infernal que você mesmo lhes atribui.Ele disse que o céu se constrói na vida, que a vida pode serum céu ou um inferno, só depende de você, só de você, eque por todos os tempos ultratemporais você continua asua construção, contando com seu intento de fazer de seuspensamentos e ações algo celestial. "Hieme et aestate, etprope et procul, usque dum vivam et ultra", dixit.Acrescentou que você deveria rezar duzentos Pais Nossos,duzentas Ave Marias e duzentos Creio em Deus Pai. Ah,ele também me deu esse terço, pra você utilizar nas suasorações. Não esqueça.

E meu outro eu me estendeu um pequeno terço azul

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celeste de matéria plástica através do espelho, que eu recolhie mantive em minha mão.

— E as mulheres? Elas pensaram que você era eu?Ele riu.— Eu sou você, amanhã.Eu estava estupefato. O padre citou Brecht!?

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PAI E FILHO

— COMO ESTÃO AS COISAS com a F1?Engraçado ela falar assim, a F2. Mas eu não estava pra

brincadeiras;— Vou lhe contar sobre meu pai...— Você já me contou tudo ontem, lembra? E eu lhe

respondi o que eu penso.— Deixa eu te contar tudo outra vez, e você me fala de

novo o que você acha. Tudo bem?— Estranho. Tudo bem. Conta.— É doloroso pra mim falar... todavia, vamos lá.Ela parecia confusa.— Você me falou tudo ontem!— Não era eu, você não pode compreender isso?— Não!— Você me beijou, deixou eu te beijar, e não era você,

ou não beijou, ou você não queria. Ontem, não era eu.— Tá bom; fala.— Meu pai era um homem muito forte, na sua

personalidade, na sua energia. Com um metro e sessenta epouco de altura, musculoso (pois quando criança e jovemtrabalhava muito no sítio do seu avô, serviços braçais, degraça, por puro prazer e adoração pelo meu bisavô), se

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esquentava fácil, e brigava com todo mundo, todo dia.Todos fugiam de brigar com ele, ele colocava medo emtodo mundo, e fazia coisas loucas, eu o vi enfrentar commãos vazias bandidos armados, e falar desaforos parapoliciais. Quando saía para passear comigo e minha mãeeles sempre brigavam, ele sempre brigava, e fazia loucuras,tipo jogar o carro em cima da calçada, e, desviar das pessoas,apavorando todo mundo. Ele ficava vermelho e pareciacrescer e inchar nessas horas. Eu tinha medo dele, ele pareciauma versão vermelha do incrível Hulk. Quando ele saía pratrabalhar minha mãe ficava chorando e desabafandocomigo, que tinha muito pouca idade, e não entendia quasenada, não sabia o que fazer, mas ficava sentindo ódio porele. Eu tinha uma coisa muito angustiante em relação a ele,essa duplicidade: admirava e amava o pai calmo e bondoso,ele era muito generoso e expansivo, brincava e davapresentes pra todo mundo, e odiava com todas as forças ooutro pai, que era como um monstro terrível, e os doiseram o mesmo, e eu o amava e o odiava e não sabia o quefazer. Ao longo da minha vida, ele sempre tentava seaproximar de mim, e eu me esquivava, por exemplo, elequeria me mostrar as músicas antigas de que gostava, queriafalar de História do Brasil e do mundo, e conversar eminglês. E eu era desdenhoso com tudo isso. Eu moravacom a Laura e meu filho num outro bairro. De noite, quandoestou chegando em casa, minha mãe liga apavorada, queele estava passando mal. Ele não tinha plano de saúde, fuiprà casa dele e fiquei tentando trazer a ambulância municipalpra levá-lo a um hospital público, ele não falava nem semexia. Quando finalmente a ambulância chegou, levou-o eeu fui junto, ele ficava me olhando de uma maneiraimpressionante, não conseguia falar nada, eu queria falar,

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mas só consegui dizer: já estamos chegando. Ele ficouinternado, estava com isquemia. No outro dia, fui visitá-locom minha mãe, que era muito frágil e totalmentedependente dele. Depois de uma longa espera, só deixaramum entrar, eu pedi que ela fosse. Logo depois ela vemdesesperada, dizendo que ele estava mal, e ela não conseguirafalar com o médico. Eu invadi a enfermaria, e o cara queficava vigiando a entrada ficou irado, se sentindoprofundamente sacaneado porque eu não estava respeitandoa sua "autoridade". Chamou até a polícia militar pra metirar. Mas consegui falar com o médico, que falou que eleestava reagindo bem. No dia seguinte ligaram de manhãbem cedo me chamando. Ele havia morrido.

— E o que te angustia tanto?— Eu acho que o cara que vigiava a entrada, e que eu

desafiei, voltou lá depois e o matou. Não de uma formadireta, mas trocou ou tirou algum remédio, mexeu em algumequipamento. Do jeito que havia tanta gente na enfermariacomum, e as enfermeiras eram descuidadas dos doentes,tudo poderia acontecer.

— E qual seria a sua culpa?— Não fui um bom filho, vivi o tempo todo desafiando

meu pai, tentando me afirmar contra ele, diferente dele. Eeu desafiei o funcionário, que o pode ter matado, para sevingar.

Ela ouviu e nada respondeu. Reinou um longo silêncio,e ela falou que a consulta tinha acabado. Pedi que elarepetisse o que tinha me falado ontem. Ela respondeu queeu sabia que ela não havia comentado nada na sessãoanterior, e também não ia fazer isso agora.

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PRECIPITAÇÕES ENZIMÁTICAS

NO DIA SEGUINTE ACORDEI melhor, e por isso as coisasestavam se modificando um pouco dentro de mim.Basicamente, eu chegara a duas resoluções:

1 — Largar de mão a Flávia number one, porque elanão era number one e na verdade não era número nenhum,pra mim, e talvez não fosse pra ela nem pra ninguém, mas,eu não podia mais me sacrificar pra tentar reverter isso,que ela nem queria.

2 — Visitar a Laura, olhar cara a cara, conversar comela, não pra trocar acusações ou falar do garoto, ou dedinheiro, e sim pra me aconselhar também sobre o meupai. Calou fundo em mim o silêncio de F2 a respeito. E afala do padre foi no mínimo inspiradora. Brecht!?

Meu projeto era fazer as duas coisas ainda hoje mesmo,largar de mão da F1 era uma work in progress, e, como nocaso de qualquer vício, exigia uma atenção e uma vigilânciaconstante, lembrar sempre de não ligar nem procurar, ficarsempre firme em não atender e/ou não ir quando ela mechamasse.

"Não se deve amar sem ser amadoÉ melhor morrer crucificado

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Deus nos livre das mulheres que hoje em diaDesprezam o homem só por causa da orgiaGosto que me enrosco de ouvir dizerQue a parte mais fraca é a mulherMas o homem, com toda a fortalezaDesce da nobreza e faz o que ela querDizem que a mulher é a parte fracaNisto é que eu não posso acreditarEntre beijos e abraços e carinhosO homem não tendo é bem capaz de roubar pra dar"("Gosto que me enrosco", samba de Sinhô, gravação original de

Mário Reis, de 1928)

De alguma forma eu via que a terapia estava dandoresultado, pois eu já percebia o quanto a F1 era uma furada,sem partida e sem chegada, e já não me comprazia emmanter essa porcaria contínua pra mim.

Nem que fosse a terapia do espelho, pois, pra sertotalmente sincero, eu via de uma maneira muito poucoabonadora a competência da minha linda amiga F2.

Iria visitar Laura, mas, antes que eu ligasse, quase nahora da saída, fui cercado pelos olhares inquietos deAndrogenio e Benolário, que eram na verdade dois pólosantagônicos, se o leitor, se é que há leitor, estará lembrado.

Quem se aprochegou foi mesmo o Benolário:— Se cuida, maluco, hoje o Androgenio está atacado,

falou que vai ficar esperando lá fora, e vai te chamar àsfalas, que não adianta você tentar fugir.

— Ahn? Hein? Quê?— Ele falou que não suporta mais o seu desdém e as

suas provocações, e hoje vai ter uma conversa com vocêde homem pra homem.

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— Mas eu nem reparo naquele imbecil! Como possoprovocá-lo?!

— Pois se você está agora mesmo xingando o cara! Nãoconsegue se referir a ele com termos menos baixos?

— É. Acho que não. Brigar é chato, eu sempre achei.Então tá, deixa a briga pro capítulo que vem.

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A BRIGA

O CAPÍTULO CHEGA RÁPIDO, e, quando eu vejo, já estou naesquina, cercado pelos basbaques da repartição e transeuntescuriosos, cara a cara com o arquiinimigo de si mesmo e dosoutros, que se projetou, de novo, como num espelho, emmim.

Situação embaraçosa, ridícula, infeliz, que eu sempreodiava quando acontecia na minha infância, que tentavaevitar ao máximo, e que me perseguia, as pessoas por algummotivo ignorado adoravam brigar comigo.

Pensei: vou tentar conciliar.Saco!Entendi o que eu queria falar com a F1, naquela hora,

num átimo, e precisava falar com ela urgente, pelo menospra não esquecer a minha decisão. Ou era um truque daminha paixão pra vê-la ainda mais uma vez?

O cara falava irado, vermelho, lançando perdigotos,com as veias do pescoço inchadas, e eu não ouvia o queele falava, pensava apenas que aquele idiota ali na minhafrente estava atrapalhando e atrasando as minhasimportantíssimas e evolucionárias conversas com a Laurae a Flávia 1.

O ogro cada vez inchava de raiva, mais rubro, cuspindo

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enquanto gritava e suas veias saltavam, vinha vindo maispra cima de mim, quase encostando, e eu pensando nelas.

Dei um passo pra trás, juntei as duas mãos entrelaçadas,com os braços esticados, levei-os pra trás do meu ombrodireito, e dei um golpe com toda força que amealhei noinstante na cara do alienado agressor, acertando-o com umcoice da minha impaciência apaixonada, produzido porminhas duas mãos enlaçadas, cúmplices, eu tamanho amigode mim.

Ele caiu no chão desacordado.A assistência fez um "oh!" assoberbado.E eu saí caminhando calmamente dali, fui pegar o táxi

na outra rua, pra não virem falar comigo sobre aquelapalhaçada.

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A LOURA, SORRY, A LOUCA

PUXEI O CELULAR DO BOLSO e apertei o nome dela queestava sempre ali selecionado.

Enquanto isso fazia sinal pra um táxi, que parou namesma hora, em plena Rio Branco, às seis da tarde, a paródiados filmes roliudianos estava cheirando a palhaçada!

Ela atendeu.— Flávia 1.— Que babaquice é essa de Flávia 1?— Nada não. Vamos conversar. Agora.Ela começou uma fala miada e enlonguecida, que sempre

fazia, que cheirava a atração feminina, mas que era naverdade preguiça existencial misturada com metidice (sebice,mania de grandeza, se achava melhor, ninguém no mundosabe por quê, muito menos ela).

— Sério, Flávia. Agora. É urgente.— Tá beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee...Não esperei ela terminar o monossílabo.Entrei no táxi que me aguardava num pastiche ridículo

das novelas simiescas que uma emissora qualquer impingeao povo brasileiro e falei:

— Toca prà casa dela!Numa paráfrase sem graça de romances pósmodernosos

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vitaminados com euros e outras substâncias nutrientes, noparágrafo seguinte eu já saltava na frente do prédio,adentrava a porcaria, subia pelo elevador, e tocava acampainha.

— Fala rápido, tenho um compromisso daqui a pouco.— Bom. Não quero mais te ver. Eu te amo, te desejo,

no entanto, você é muito nojenta. Se diz minha amiga, masnão é, porque se fosse gostava de mim, me tratava bem,não seria escrota comigo. Diz que sou seu amigo, pois nãosou, porque desejo você, e não quero de jeito nenhum vervocê com outro cara. Sei que você não será feliz assim doseu jeito, e, digamos, esta conversa é o último presente queeu te dou. Não quero que você encontre alguém, e ficofeliz que a sua maldade lhe tenha dado esse carma de sersempre tratada no final por eles como você trata os homens,do mesmo jeito que você tratou a mim. No fundo, já nãome importa se você fica com alguém ou não. Seja feliz.Porém, se lembre que um dia, muito breve, você não serámais uma moça jovem, e não vai encontrar pseudo-adoradores pra manipular. O que você vai fazer? "Meimplorando, já desiludida, o meu perdão. Pra eu dizer quenão", como dizia o gênio Noel. Tchau.

Eu ia saindo todo feliz.Ela me segurou, falei: "me larga" e puxei a manga, ela se

colocou na frente da porta. Sorria má, ela sempre sorriamá, mas agora estava mais ainda.

— Eu também vou te dar um último presente, DomCarlos. O senhor se considera melhor que os outros, masnão é. Tem complexo porque é feio e baixo, fala que tem1,70, tem menos. Eu vou ficar velha e talvez não seja tãoobsessivamente cortejada, como agora, mas vou continuargostosa, e gostando, e, principalmente, sendo simpática, e

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sempre terei admiradores. Você não se admira, não admiraninguém. Não suporta conversar. Quem que te quer? Vocêera feio e baixinho quando era jovem, e agora, maduro,está mais ainda. Você exige demais, e não dá nada em troca.Então, estou achando muito bom a gente se separar poraqui.

Eu saí sem falar mais nada, pois ela sempre picava,pequena cobra coral venenosa, porque é má, e eu sócompreendia isso agora, como uma venda que caiu dosmeus olhos.

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BÔNUS

NÃO FUI DIRETO VER a Laura, estava muito agitado, fuidormir, sem ver tv nem comer gordura, porque não estavamais afim de porcaria.

No dia seguinte fui pro escritório feliz como umpassarinho, cantando pelo ônibus.

Quando cheguei todos me olhavam como quem olhaum louco.

Fui chamado na coordenação que me falou que estavafired por justa causa, porque batera num colega.

— Ele que quis brigar!— Você o provoca e humilha todo dia. Agora o

espancou. Todos testemunharam a favor dele!Peguei o cheque, just cause com fundos, e saí flanando

pelas ruas.Estava livre de Benolário, Androgenio e quarenta outros

cretinos, e ainda, por bônus, e abono, tinha deletado osnúmeros da póscretina F1 das memórias minha, da agendae do celular.

Tanta alegria num só dia não precisa de: papo cabeçacom a ex, tv ou gordura.

Comi uma salada de frutas e entrei na farra de um livro genial.A conversa com ela fica pro próximo episódio!

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A HISTÓRIA COMEÇA

FUI DORMIR FELIZ.No meio do sono, sou despertado por um ruído

insuportável, e vejo o teto e as paredes da nova casadesabando sobre mim.

Ia acordando naquele fragmento de segundo, e vendoas paredes se aproximando, lembro de ter conseguidopensar: Meu Deus, a casa está caindo, de novo! Como issopode ter acontecido?

Pois naquele átimo eu até me lembrei do quanto asparedes pareciam seguras e firmes, diferentemente damansarda anterior.

Mas não senti a dor nem os tijolos batendo, ao contrário,parecia que eu me projetava para além deles, e agora sentiaa claridade da rua, o céu azul, e a luz brilhante e quente dosol iluminando com toda força a minha pele branca e nua.Nua! Como assim?

E onde estavam os destroços?Percebi que eu estava nu por completo, havia fragmentos

de terra sob mim, nada de móveis ou paredes ou escombrosem volta, e muito menos casas! Uma rua deserta deconstruções?

Olhei melhor, e vi casas sim, mas pareciam de brinquedo,à minha volta.

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E o que eu sentira como gravetos sob meu corpo, eramos destroços da minha antiga morada. E a minha roupa hámuito se rasgara, e jazia esquecida no chão. E eu nada sentira,porque fora meu corpo que destruíra a casa e as roupas,inundado agora de inusitadas forças e formas, e novasdimensões!

Eu tinha virado um gigante! (Seria sonho?)Estava tão perturbado e confuso e cheio de medo, que

resolvi deixar o resto deste incidente para o próximocapítulo.

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UM ÉDIPO RIDICULAMENTEGRANDE

EU AGORA ERA UM gigante. Definitivamente, tinha certeza.Do tamanho de um prédio de uns oito andares, quando

de pé, eu deveria ter uns quinze metros ou mais de altura,ou altitude.

Estava atônico, estupefato.Como aquilo fora acontecer?E no meio de tantas ideias tresloucadas, a mais forte e

mais absurda de todas me dominava: diante do meu atualtamanho despropositado, não fazia mais sentido nenhumme preocupar com a leviandade de Flávia Um, as opiniõesde Flávia Dois, as cobranças de Laura, os traumas deMarquinho, a culpa em relação a minha mãe e a meu pai.

Forcei-me a concentrar.Eu estava ali sobre os restos da casa alugada, a rua deserta

porque as pessoas deveriam ter fugido do barulho, porém,com certeza, daqui a pouco, todos viriam ver o queacontecera. E o que fariam diante do meu gigantismo?

E como eu iria arranjar comida?E onde arrumaria roupas do meu tamanho (estava nu!)?E onde iria me abrigar?Fiquei realmente preocupado.Por mais absurdo que fosse, com tanta coisa pra me

preocupar, o medo e a fome que já estava se insinuando

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com força total, e o que eu poderia comer tão grande assim?,com tudo isso eu ficava pensando numa frase que lera numaestorinha de Lispector, uma bela escritora ucro-brasileira,que dizia algo assim: aquela "era a maior repulsão de que jáfora vítima: eu não cabia".

Sublinhei essas duas palavras na minha memória, umaporque era engraçada, física, o moral sempre foi físico, e, nomeu caso, agora é, mesmo. A outra por absurda, eu não eravítima de nada, nem ninguém nunca iria pensar assim não,de forma nenhuma, eles com seu metro e meio pouco mais,eu com mais de quinze ou dezessete — mas o certo é que, seeu sempre me senti assim, isso era moral?, agora phisica est,física es, física ist, physics is, phýsika estín, física é, pois é.

Num livro para aprender a comer menos e não ficarobeso o autor manda o leitor imaginar que o doce vaiinchando inchando até ficar enorme e explodir. Opensamento é que o doce além das medidas normais eexplodindo fica ridículo e deixa de ser atrativo para o gordo.

Ele imaginou Flávia nua, enorme, crescendo cada vezmais.

Lembrou também de outro livro, onde o personagemprincipal era apaixonado por Marilyn Monroe, que, numcapítulo, fica do tamanho de uma montanha, tornando-semonstruosa e nada atraente (Panamérica, de José Agrippinode Paula).

Conclusão: ele estava horrível, se nunca foi amado, se éque não foi, agora mesmo que não seria, sério.

Não devia perder tempo com isso!Estava com fome!Muita fome!Uma fome de Gargântua e Pantagruel, de Rabelais!E ouvia brados ao longe, logo atrás da esquina, na virada

da página e do capítulo.

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A FUGA

REALMENTE, UMA ENORME multidão se aproximava,ameaçadora.

Gritavam e berravam, enlouquecidos, xingamentos eameaças.

Traziam nas mãos os mais enlouquecidos tipos de armas,ancinhos, garfos, abridores de lata, de garrafa, revólveres,tudo.

De longe ativaram, uma bala tocou nele, mas não entrou.Ele se sentiu só um pouco aliviado.A população nem considerava a possibilidade de ouvi-

lo ou tentar entender o que estava acontecendo.E logo viria a polícia e a política, o exército e seus

veículos, o governo brasileiro e a sua bomba atômica"secreta".

Ele se levantou e saiu correndo, deixando rapidamentea multidão furibunda pra trás, e tentando hardly não pisarnas palavras e nas coisas, nas máquinas ou nas pessoas.

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PRATO FUNDO

CONSEGUIU ENCONTRAR UM campo cheio de vegetação,onde havia muitas árvores que meio que o escondiam, eum rio, onde ele podia beber a vontade.

O problema da fome é que ele nem conseguia imaginarcomo resolver.

E a nudez. Estava calor, mas se chovesse, se fizesse frio?E como seria o horror dos outros, ao vê-lo assim, tãogigantesco e nu? Ah, se pelo menos conseguisse imaginaronde e como encontrar um pano tão grande que o pudessecobrir, um prato tão fundo que o pudesse alimentar.

Sentou-se cansado à beira do riacho.Sorveu do precioso líquido o que parecia um

carregamento de carro pipa.A saciedade da sede amainou, pelo menos por hora, a

tirana fome.Agora precisava pensar.Mesmo que houvesse uma roupa que lhe coubesse, um

alimento que lhe bastasse, sabia que ele ainda assim iria sesentir esfaimado e exposto.

Por quê?Sempre fora desse jeito, mesmo quando tinha um metro

e sessenta e nove, e o armário cheio de calças e camisas, e ageladeira repleta de massinhas.

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Tinha um sentido ambíguo em relação às refeições, quelhe apeteciam e semelhavam sempre ser deliciosas, e, aomesmo tempo, davam-lhe toda vez uma imprecisão, umaimpressão monótona de uma bomba de carboidratos, deuma massa indiferenciada, uma gosma, sobre a qual boiavamos quatro sabores (doce, salgado, amargo, azedo) que alíngua podia distinguir, e os múltiplos aromas (geralmenteartificiais, nos produtos vendidos em nossos mercados,inclusive quando se dizem "naturais" e "light", bom, luztudo e = mc2, como já mostrou o velho Albert).

Meu Deus!Pensou ele. Como estava fugindo do ponto. Precisava

bolar uma estratégia, imaginar, ou melhor, conceber umplano de ação, pois acordara agigantado, não sabia por quê,sentia que em sua volta a população se agitava, e conhecia aobtusidade dos seres humanos, e, por cima de tudo, pensavacomo poderia agora satisfazer às suas necessidades básicas,que se tornaram colossais.

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A FOME E O COME

SÓ CONSEGUIA PENSAR besteiras, como eu pareceria paraas pessoas conhecidas quando me vissem, se estava nosnoticiários, como poderia me vestir... Pensamentosdesencontrados, que vinham num turbilhão, e não conseguiame fixar em nenhum deles, e me sentia como um bonecode pano no meio de um vendaval, ou um furacão.

Mas.A fome apertava muito, não dava mais para ignorar.Olhava em volta e só via selva, ao meu pé o riacho

salvador. No entanto, eu sabia que havia uma auto-estradaa noroeste, de onde eu viera de manhã cedo, na fugadesabalada.

Voltei andando devagar na direção da rodovia. Via meucorpo nu, enorme, e tinha medo e vergonha, quando meavistassem, o que iriam pensar? Bem, me consolei, iampensar quase a mesma coisa, estivesse vestido ou não.

Ao chegar na estrada vi alguns carros passando, e elestambém me viram, e perderam o controle, queriam fugirem todas as direções, provocando um número incrível deacidentes em alguns minutos, e um engarrafamento tambémgigantesco.

Por que será que simplesmente ao me avistar todossupunham que os iria atacar?

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Me lembrava dos sem número de vezes que vira ao vivoe na mídia as pessoas debochando ou agredindo as outraspor serem:

1- baixas demais;2- altas demais;3- magras demais4- gordas demais5- ou qualquer outra alteração.E havia toda uma gradação de humilhações relacionada

com o amplo espectro de variações das alternâncias emrelação a um suposto (e meramente) padrão.

Tudo isso...Epa!Havia um caminhão de sorvete, estava escrito sorvete

na carroceria, com uma marca, no meio do engarrafamento.E a fome era tirana, e o come é botânico, zoológico,

antropológico, potável.Caminhei a passos largos para o meio da confusão dos

carros batidos e parados.Homens corriam e gritavam, um doido tentou chutar

meu pé, a maioria deles corria desabalada, inclusive omotorista do caminhão de sorvetes.

Do qual me aproximei, feliz como um menino, e abri asua tampa (o teto da carroceria) como se fosse um pote,com próxima facilidade.

Ao ver que as inúmeras latas de sorvete eram grandespara os padrões humanos ditos normais, mas ínfimas paramim, destaquei toda a caçamba do veículo, e me afasteidali, de volta ao meu refúgio, onde pude, com calma e prazer,esvaziar uma por uma, com muito esforço, mas me saciando,neste café da manhã estranho, que era ao mesmo tempoalmoço e jantar.

E assim pude dormir tranquilo, ao fim deste dia longo e largo.

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A ROUPA CIRCENSE

MINHA MELHOR PROVIDÊNCIA no outro dia esfaimado (noqual tive que aprender a cavar um grande buraco no meioda floresta pra esconder os dejetos, destelhei uma queijariae me empanturrei de puros queijos e meditei na beira doriacho do qual bebia sem parar) foi encontrar um circo aalguns quilômetros da minha nova residência, e aproveitara minha auto-sugestão de me utilizar da sua lona, o que fizcom algum trabalho, era grande e difícil de retirar, oscircenses fizeram protestos e ameaças que ignorei, e aindame apropriei de uma espada, que, escondido na selva, utilizeipara recortar da melhor forma possível um saiote com alona do circo, com a qual naquele dia e nos dois próximoseu me vesti e cobri.

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A MENINA E A TV

DESPERTEI NESSE DIA COM um toque suave em minha face,que repousava sobre parte da lona que dobrei para fazerum travesseiro, enquanto as outras me vestiam e mecobriam, conforme as produzi para mim, como pude.

Abri os olhos embevecido.Havia uma menina pequena, que escalara as dobras da

lona-almofada, e que estava agora tentando me acordar,tocando meu rosto e me empurrando com toda sua força.

Cuidadosamente eu me ergui um pouco.Ela desceu da lona, e, olhando para cima, falou comigo

assim:— Como é o seu nome gigante?— Carlos Mirapontes. E o seu?— Laura Gestal.— Legal conhecer você, Laura. Que engraçado, você

tem o mesmo nome da minha esposa.— Legal conhecer você também, Carlos. Você tem o

mesmo nome do meu cachorrinho.— O que você faz aqui? Não tem medo de mim?— Não. Não tenho medo. Vim por três motivos, um é

que estava curiosa, queria saber como você virou gigante ecomo está fazendo, de que jeito que resolve as coisas agora,

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outro é que eu queria me oferecer pra proteger você, sevocê for bonzinho, porque as pessoas estão tramando milcoisas, você vai ver, e ainda, vim lhe trazer dois presentes.

— Puxa, Laura, muito obrigado. O que estáacontecendo?

— Antes me conta toda a sua história.Fiz pra ela uma versão adaptada pra criança de tudo que

contei até agora, não sabia e não sei como ou por que vireigigante, e lhe disse isso; da mesma forma simplificada eulhe revelei como estava me virando.

— Hm. Vai ser preciso indenizar o cara do caminhãode sorvete, da queijaria e do circo.

Ela falou com a mãozinha no queixo e a testa franzida,e eu ri um riso largo e estrondoso. Ela sorriu com o meuriso. Então não tinha medo de mim?

— O que estão tramando? Como você poderia meproteger?

— Não vou responder nenhuma das suas duas perguntas,e mesmo assim vou lhe dar as respostas. A primeira vocêterá esclarecida quando utilizar o presente que eu lhe trouxe.A segunda se esclarecerá daqui a dois dias, quando eu voltara lhe visitar.

— Hm, — dessa vez, quem fez, fui eu.— E quais são os presentes que me trouxe?— Um panetone gigante, que eu sei que pra você é menor

que um bolinho, mas que pode pelo menos lhe consolar. Euma tv com bateria. Pra você ver e ficar sabendo tudo queestão falando sobre você, e saiba que eles ficam falando otempo todo de você.

— Puxa, muito obrigado. Mas como trouxe todo essepeso sozinha?

— Não trouxe sozinha, muitos amigos meus ajudaram,

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viram você dormindo e fugiram antes que você acordasse.Está tudo atrás da moita.

Ela puxou o doce e o aparelho, e o sintonizou.— Agora você come e assiste, pra saber de tudo. Me

espere aqui, daqui a dois dias, e verá como vou ajudá-lo.— Tá. Muito obrigado, menininha.

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AS COISAS QUE ESTAVAMDANDO NA TV

...CONTINUA SEM EXPLICAÇÃO o motivo pelo qual umhomem comum se transformou num gigante de quinzemetros. O fato se deu no Rio de Janeiro, no bairro daFreguesia, durante a madrugada do dia 19. O homem sechama Carlos Mirapontes, é burocrata de um empresa, tem42 anos, divorciado, e é pai de um filho, que mora com amãe. Nada de anormal aconteceu com ele, não esteve eminstalações industriais ou radioativas, e os cientistas aindanão têm uma teoria sobre como o estranho fenômenoaconteceu.

Estas são imagens aéreas do gigante, tiradas pelo nossoporcocóptero, durante a madrugada de ontem. Vejam queele dorme enrolado em uma lona, que roubou no diaanterior, do Grande Circo Parlapatão, que estava armadopróximo ao local onde o gigante se escondeu, no meio damata, em Vargem Grande.

(Essas são notícias que ele escutou na tv Porco, queriamudar o canal e ver as outras, mas não conseguia mexernos controles microscópicos com seus dedões, e tambémsabia que todas as porcarias das emissoras estavam falandoas mesmas bobagens, inevitável. Por quê?)

Agora vejam imagens do dia anterior, quando o gigante

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apareceu numa movimentada rodovia, assustando a todos,provocando muitos acidentes e arrancando a caçamba deum caminhão de sorvete.

(Nem tinha percebido o mosquitocóptero que o filmavao tempo todo, mas logo notou que o indefectível tomtendencioso das notícias, no seu caso, era manifesta eexageradamente contra!)

Conversamos mais cedo com o renomado cientista dr.Scaramouch, que disse:

— Não sabemos o que houve, fizemos váriasmensurações atmosféricas, geodésicas, climáticas,metereológicas, físicoquímicas nas águas e alimentos etc.Nada parece indicar a causa do estranho fenômeno.Precisamos poder chegar perto do gigante, levá-lo para umlaboratório e submetê-lo a exames, para podermos descobriro que está acontecendo.

Repórter Lamária Mengão (com um cândido ar): Mas osenhor acha que existe algum laboratório no Brasil ondecaiba um gigante de quinze metros lá dentro?

Cientista dr. Scaramouch (rindo com desdém): Ótimapergunta, mocinha. Não, realmente, mas nós vamos instalara criatura numa área descoberta ao lado do laboratório defísica da cidade universitária. Se for preciso podemos colocaruma cobertura provisória sobre ele.

— E o senhor acha que o gigante vai aceitar docilmentetudo isso?

— Claro que não! Seja o que for que aconteceu física ebiologicamente com esse pobre ser humano, a mutaçãocom certeza afetou a sua mente de modos que nempodemos imaginar. Essa será parte do estudo. Seremos umajunta de físicos, químicos, biólogos, médicos e psicólogos.Contamos com o governo e as forças armadas para que

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capturem o monstro, VIVO, isso é muito importante, como mínimo de danos possível. Enquanto o estivermosestudando, ele permanecerá dopado, e não poderá serevoltar contra nós e fazer alguma loucura. Entenda,estamos agindo pelo bem dele e o nosso. Tudo pela ciência.

(Volta ao locutor, âncora, que fala:)Hoje também conversamos com o General K. Britto,

que declarou:— Carlos perdeu seus direitos civis ao se tornar um

gigante de quinze metros, e barbarizar a cidade, depredandoinstalações e aterrorizando os cidadãos. Já pedi ao presidenteBurla que nos concedesse uma das nossas bombas atômicassecretas brasileiras para jogarmos sobre a dita criatura,mesmo que isso pudesse causar algum dano a pessoas epropriedades civis, mas, mesmo assim, acho que valeria apena, cortaríamos o mal pela raiz. O presidente me disseque vai pensar, e tenho medo que ele seja influenciado poresses falsos e hipócritas movimentos pelos direitoshumanos, sim!, direitos humanos tudo bem, vá lá, mas vocêjá ouviu falar em direitos gigantescos, hein, hein?

(Depois de muitas outras notícias e informes nesse tom,sempre, mesmo durante a programação "normal" (ah,Stanislaw Ponte Preta e seu Febeapá, que acertou tantoquando diagnosticou a televisão como "máquina de fazerdoido"!), Carlos não aguentou e esmagou o aparelho comseu dedo mindinho, o da mão direita, mesmo sabendo queseria talvez melhor continuar se informando, mas seria,sério?)

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MARIANA GESTALVERSUS O DR. SCARAMOUCH

EU APENAS CONSENTI EM me encontrar com você porcausa de tudo que aconteceu anteontem, a questão dogigante e a intervenção da sua ONG (esta conversa é umflashforward, quer dizer, uma cena que ainda vai acontecer,no futuro do que está sendo narrado).

— Como vocês podem pensar em estudar Carlos comose ele fosse um rato ou um hamster de laboratório?

— É necessário, ele desafia todas as leis da ciência.— A ciência não tem mais leis.— Seja como for, com ele vamos aprender muito. Você

precisa considerar a possibilidade de isso ser uma praga,um vírus, qualquer coisa. E se o pesquisarmos agora talvezconsigamos prevenir que essa epidemia se espalhe.

— Mas vocês não têm nenhum indício de que isso sejauma epidemia!

— Você sabia que pelas leis da física e da biologia éimpossível um homem ter quinze metros? Seus ossos nãopodem sustentar essa estrutura, seus pulmões, tudo.

— Você sabia que há místicos que chamam o homosapiens de pigmeu e dizem que já fomos muito maiores doque hoje, na pré-história?

Ele se levantou irado, e abriu a porta da entrada.

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— Assim não podemos conversar! A senhorita é maluca!Acabou o diálogo!

— Você sabia que as atrizes e os atores pensam que omundo é um imenso palco?

— E daí?— Você e outros maníacos como você acham que o

mundo inteiro é um laboratório. Mas não é. O mundo éverde, é livre, é forte, é gigantesco.

— Conversa encerrada. Não posso falar a sério com osenso comum ou o misticismo. A senhorita é uma legítimarepresentante desses dois.

— E Carlos?— O governo dirá.— Não somos governados só pelo executivo e o

legislativo, como o senhor sabe. Meus amigos e eu vamosbrigar para trazer os outros poderes para o nosso lado.

Realmente confuso, ele perguntou prà porta que elafechava atrás de si:

— Por quê?

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NOVISITA

— GIGANTE... gigante!— Oi, moça.— Eu trouxe um rádio pra você.— Obrigado.— Eles vêm hoje pra lhe entrevistar. Os caras da tv.— E você quem é?— Meu nome é Mariana, sou irmã da Laura Gestal.— Ela é uma criança.— Eu tenho vinte e quatro. Meus pais tiveram ela já

maduros.— Por que vocês estão me ajudando? Quem são vocês?— Eu sei que está difícil, Carlos. Essa lona já está suja.

Você só tem comido o pouco que encontra. Dormindo aorelento. Mas amanhã tudo vai mudar. Receba a imprensa.Isso vai nos ajudar.

— E quem são vocês?— Ajudar a nós, nós todos, incluindo você. Amanhã

você saberá. Fale com eles, conceda a entrevista. Ouça orádio antes. Tchau.

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A ENTRELELÊVISTA

A JORNALISTA VEIO MUITO bonita, enviada especial da tvPorco, Porco on line e do Jornal a Voz do Porco. Era umamoça clarinha, com jeito de lusitana, um metro e cinquentade altura, roupas de hippie de boutique e uns enormes óculosazuis, com lentes cor-de-rosa.

— Senhores telespectadores, estamos aqui, ao vivo, como gigante, no seu reduto. E ele consentiu em conversarconosco. Deixe-me apresentar, meu nome é LamáriaMengão, a repórter (sorriu para a câmera). Gigante, comovocê quer ser chamado?

— Meu nome é Carlos. Eu sei que vocês sabem tudosobre mim. Ouvi na tv e no rádio.

— Gigante, como uma oferta especial da rede Porco,da Voz do Porco e dos supermercados Banha, nóstrouxemos um caminhão de vatapá para o senhor.

— Muito agradecido.— Você tem tv e rádio aqui?— Umas amigas me trouxeram, eu ouvi algo sobre o

que está acontecendo, que o presidente Burla estáconsiderando mandar o exército ou até mesmo jogar umabomba atômica aqui.

— E você não pensa em se render?— Não sei como, nem por que; eu não fiz nada.

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— Como você virou gigante?— Eu não sei. Um dia acordei assim.— E você destruiu sua casa?— Meu corpo foi crescendo e quebrou tudo, rasgou as

roupas, quando eu me vi estava deitado sobre o que tinhasido a casa, debaixo do sol.

— E as pessoas?— Só fugiam de mim. Todos têm medo de mim, não

sei por quê.— Todos?— Não. Alguns pensam em me ajudar. Vi isso pelas

moças que me trouxeram uma tv e um rádio.— Você brigou com sua mulher, não visita seu filho,

arrumou briga no emprego, foi despedido. Todos dizemque você sempre foi um sujeito estranho. Está emtratamento psicológico. Por que você é assim?

— Não sei.— E o que vai ser agora, Carlos? Você vai ser gigante

pra sempre?— Eu não sei.— E se você voltar a ser humano, quero dizer, com o

tamanho humano normal, o que será de você? Acha quetodos vão lhe perdoar?

— Eu não sei.— Senhoras e senhores, esta foi a entrevista; é bastante

difícil conversar com esse gigante, que é muito simpático,mas só sabe dizer "não sei".

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COLÓQUIO AMOROSO

O DIA SEGUINTE FOI realmente muito movimentado,começando com a visita de Laura, a tal, depois de Carlos, ooutro, e ainda a chegada das garbosas forças amadasnacionais. Falei amadas, pois poderia ter dito armadas.

Pra facilitar pro leitor, cada encontro destes, a cada umserá dedicado um capítulo, com anacoluto proposital, semque seja por questões estilísticas, e sim metabólicas.

— Ah, você veio.— Claro que vim, Carlos. Vi sua entrevista, vi você

fazendo besteira, roubando o queijo e a lona de um circo.— ...— Onde estão o rádio e a tv que as moças trouxeram

pra você?— Esmaguei com o meu dedo mindinho, o rádio

também. A crassa tolice mista à mais desvairada loucuranão faz bem.

— Você que é louco! Sempre foi. Sua psiquiatra veiofalar comigo.

— Ela é psicóloga, e eu fazia análise com ela. Não soulouco. Ela mesma me disse.

— Ah, mas naquela época você ainda não tinha viradogigante.

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— Então a culpa é minha?— Segunda a Dra. Flávia é. Veja bem, ela me contou o

que você lhe falou sobre seu pai...Estranho — o outro Carlos não tinha contado pra Flávia

também?— Ela disse que você é um autocentrado, um

egocêntrico fanático. Que se acha responsável por tudo,até pelo ciclo natural da vida dos seus pais. Que você resisteao tratamento e mascara seu ódio ao outro com uma espéciemaluca de amor, na qual você ama pra não ser amado, umamor que produz alergia, e nunca alegria.

— Ela é que tá maluca!— Quanto à questão do amor, subscrevo integralmente

o que ela declarou. E veja, eu sou a pessoa mais autorizadapara fazê-lo.

— E a minha culpa quanto ao gigantismo?— Segundo muitos autores, ela me falou, mesmo em

Freud, vemos que inconsciente é capaz de realizar grandesalterações metabólicas e fisiológicas, apenas comoprojetação das suas fantasias. Veja as tantas pessoas queproduzem espontaneamente os estigmas nas mãos. No seucaso, ela disse que você não virou gigante, fisicamentefalando. Que isso é um desejo seu de ser o centro dasatenções, de ser o depositório de todo amor, sem ter querealmente se abrir, se amar, amar o outro.

— Ela falou que eu vejo o outro?— Ao contrário. Ela falou que você não consegue ver o

outro. Que é esse o problema.— Por que você não trouxe o Marquinho pra me ver?— Por isso mesmo. Cure-se, deixe de ser gigante, e ele

virá.— Eu não sou mais nada.

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— Talvez esse seja o começo. Carlos, você não era artistaplástico? Quando conheci você você fazia curso de artes, equeria pintar, lembra?

— Sim.— Eu me apaixonei. Por que você não volta a fazer

arte?— Agora? Você não sabe o que é ser um gigante.

Ninguém sabe. Qualquer movimento mínimo é vistocomo uma avalanche pelos outros. Todos te veem comoum monstro. Tudo é difícil, roupa, comida, tudo. E hojeem dia, com câmeras e satélites que escrutinam eregistram até a magnitude de milímetros sobre toda acrosta terrestre, onde alguém como eu pode se esconder?Pra onde fugir?

— Se entregue.— Nunca.— Volte a pintar.— O que tem uma coisa a ver com outra?— O doutor Scaramouche falou na televisão que vão

colocar psicólogos estudando você.— Maravilha. A realização do sonho de ser um super

bebê, o ediposão, que todo mundo olha. Meu caminho dacura é o oposto.

Passou-se um tempo.Ele falou:— Laura, volta pra mim.— E as ninfetas, a Flávia 1, a Flávia 2 e a Ana?— Você sabe que foi ilusão. Não preciso disto. Preciso

de relação verdadeira, você. O Marquinho. Minha casa, afamília.

— Vou pensar.Ela pegou na bolsa um livro de Jean Baudrillard intitulado

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O sistema dos objetos (5 ed. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares.São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 33, nota) e leu pra ele:

— "Contudo uma lei da dimensão parece atuar naorganização simbólica: além de um certo tamanho, qualquerobjeto, mesmo o fálico de uso (carro, foguete) torna-sereceptáculo, vaso, útero — aquém, faz-se peniano (mesmose for vaso ou bibelô)".

Ela riu e comentou:— Eu sempre achei aqueles anões do Rubem Fonseca

fálicos.Ele olhava, pasmo. Ela continuou:— Você sabe, Baudrillard também fala que hoje em dia

não é mais possível o pacto com o diabo, porque não hámais uma individualidade fechada, como nos românticos,com os duplos etc. Não há o que trocar. Mas, no seu caso,você quis nadar contra a corrente, e mostrar um eu, um euseu, você não gosta de shopping, de metrô, de máquinas;mas isso não bastava. Você quis que isso ficasse gigante,pra todo mundo ver.

— Como no filme Contos de Nova York, no qual amãe do personagem do Wood Allen fica gigantesca, eaparece sobre a cidade para supermimar e proteger seu filho,submetendo-o à humilhação de que todos o vejam?

— Engraçado. No seu caso, é o contrário.— Você quer dizer que eu quero ser a mãe? Tenho inveja

da mãe?— Você acredita numa supermãe, a mãe com o poder

fálico, e se sacrifica pra realizá-la.— Desde quando você fez psicologia?— Eu estou lendo você. Pra entender você.Ele ficou feliz.

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A ÚLTIMA VISITA

CARLOS 2 APARECEU normal, com seu metro e setenta, outanto.

Veio rindo, gingando e mascando chiclete.— Eu pensei que você tinha falado com a Laura.— Você que precisava falar.Silêncio.— Você falou que sou eu amanhã. Vou voltar a ser

normal?— Alguma vez você foi normal?Riu.— Não fique triste, Carlos. Ninguém é normal. "De perto

ninguém é normal", como já disse o Caetano.— Por que eu não gosto tanto do Caetano e da Clarice?— Você os ama. O que lhe incomoda é a leitura midiática

senso comunática deles, as besteiras que as pessoas veemneles, malgrados eles.

— Como sempre.— O que te incomoda é o outro. Sou eu?— Não. Você não me incomoda. Você é o mesmo. Você

sou eu.— Então? Você seria capaz de amar a arte de Clarice e

Caetano, mesmo com todas as besteiras que desentranhamdas obras deles e colocam nos tuiteres e orcutis?

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— Uma frase fora do contexto não faz sentido, ou, fazqualquer sentido.

— E muita coisa eles inventam e colocam o nome docoitado.

— Certo. Errado.— Então?— Eu os amo.— Vou saindo de fininho, corro, que a polícia vem aí.Riu de novo. Meu outro eu ria muito.

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A CHEGADA DOS BRAVOSMILITARES

ENQUANTO ESPERAVA o exército (fugir pra quê? pra onde?)tirei um cochilo ali mesmo no mato, sobre a lona do circo,e sonhei, e meu sonho não foi como um filme desta vez,ou foi?

Um disco voador descia dos céus ali do lado, era denoite, e tudo estava muito claro.

De dentro saíam várias pessoas, homens e mulheres,iguais em tudo, tudo aos terráqueos, menos na estatura,que orçava com a minha.

— Oi Carlos. Somos do planeta Eugaia.— Somos eugaianos, e você também o é.— Nós viemos te salvar.— Como eu era igual a eles então, a minha vida toda?— Todo homem da terra nasce um feto de nós. Ele

precisa se desenvolver, existencialmente, mentalmente,psiquicamente, para maturar, para chegar ao nosso estágio,ao estado de eugaiano.

— Isso acontece só na Terra?— Em vários lugares.— Agora você vem com a gente. Vamos.Entrei na nave, fui com eles pra Eugaia, e fomos felizes

pra sempre.

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Acordei com o som de tanques anfíbios e robantropos.Os robantropos, como todo mundo sabe, são uma das

novas armas desenvolvidas pela indústria bélicatransnacional.

É um robô em forma humana, de uns dez metros dealtura, no peito do qual um homem se instala como seestivesse pilotando um veículo qualquer. Ali ele ficaprotegido pelas toneladas de aço do robô, e aciona seusinúmeros comandos de ataque e armas terríveis, como apistola termolaser.

Havia dez robantropos ali, além dos mísseis, tanques deguerra, carros anfíbios, canhões lasares e convencionais,infantaria e cavalaria (só pra embelezar a cena).

Eu não teria chance contra todos eles juntos. Ouseparados.

O ilustre General K. Britto, comandante em chefe dastropas militares, me deu o ultimatum com um megafone:

— Renda-se gigante. Temos ordens do presidente Burlade entregá-lo ao Dr. Scaramouche e sua junta de sábios naCidade Universitária, para que você seja estudadopacificamente. Eu propus ao insigne mandatário o uso dasbombas A, H e N contra você, mas ele seguiu o pensamentoliberal dessa esquerda inconsequente e dos inocentes úteis,que julgam que você é mais útil vivo. Tudo bem. Vamoslevá-lo vivo. Mas, se você resistir, irá se machucar, e muito,contra a nossa vontade, tudo devido ao seu caráter violento.Vamos começar com uma briguinha de patota. Soldadosno comando dos robantropos, atenção, preparar para atacar!

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O COLOSSO DE RODES

AO LONGE ELE VÊ Lamária Mengão, com todo seu charme,falando sem parar no microfone, e o cinegrafista filmandotudo.

Há outros repórteres, e muitos populares, para além docerco dos soldados.

Meu Deus do céu, eu ainda sou capaz de me apaixonarpela Lamária, nesta situação maluca! Ia ser muito engraçado,ele fugir com ela na mão, e escalar o maior prédio da cidade,como uma espécie de tecno-king-congo.

Bem, ela é realmente simpática.Na verdade, todos os jornalistas lá longe também. E os

curiosos, gente do povo, que ri e faz apostas, nestemomento.

E até os militares. Todos os seres humanos.E os animais, os passarinhos, as árvores.Naquele momento, sente um infinito carinho pela vida.Carlos ama a vida.Num instante, vê todas as pessoas que gosta além da

barreira dos policiais e militares, suas amadas, sua mulher,seu filho, seus amigos, seus inimigos, os vizinhos perigosos,seus colegas de infância, seus familiares, seus pais.

Não sabe como aquilo é possível, se está delirando, mastudo parece tão real.

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No meio do povo surge um tumulto, uma confusão,que confunde os militares também, e os paralisa e atrasa aordem de atacar do general cabrito.

São centenas de pessoas, com camisetas costumizadas,e cartazes e faixas com dizeres a favor do gigante, entre osquais, por exemplo, ele conseguiu ler a frase de Nietzsche:

— É preciso defender os fortes contra os fracos.À frente da turba vinham as irmãs Mariana e Laura

Gestal.Outra faixa identificava aquela manifestação como sendo

uma atividade da ONG "Salve o Gigante".Os manifestantes pararam em frente aos militares, com

megafones também, e palavras de ordem.Parecia um impasse.Nem os manifestantes podiam avançar, pois eram

bloqueados pelos militares, nem estes podiam atacar, porcausa da presença defensiva dos membros da ONG.

O que iria acontecer?O Gal K Britto pegou um telefone lilás de campanha, e,

no silêncio colossal que se fazia, quase todos puderam ouvirque ele relatava de modo rápido e viril para o presidente danação o que estava acontecendo ali, naquele momento.

Puderam ver ainda, quando um grande e feio sorriso seabriu no seu rosto.

E ele berrou num brado retumbante:— Soldados, prendam os manifestantes! Acabei de receber

ordens pessoais do presidente Burla para que eles sejamafastados, e o gigante seja por nós dominado! Agora, já!

Suas ordens foram cumpridas, e os muitos batalhões alipresentes foram mais que suficientes para dominar eneutralizar os eufóricos, porém, desorganizadosparticipantes da ONG "Salve o Gigante".

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Foi nesse momento que várias armas miraram nele, nopróprio, no nosso herói, talvez com tranquilizantes, ele e opovo não o sabiam, e o bravo general deu a ordem:

— Fogo!Os soldados apertaram seus botões e gatilhos, porém

nada aconteceu, nenhuma arma disparou.— Avante, tropa! Robantropos, atacar!E a carga não se deu, todas as máquinas estavam

desativadas, e os homens soldados com uma solda invisível,que lhes impedia e proibia os movimentos, e os fazia ficaremtodos no mesmo lugar.

O sol estava se pondo, e no lusco-fusco da tarde, todosperceberam quando uma luz grandiosa, intensa e fulgurante,multicolorida, apareceu no céu, e veio descendo, descendo,se definindo na figura de um grandioso disco voador.

O qual pousou no vasto descampado entre as tropas, oajuntamento de curiosos, a imprensa e os participantes daONG, de um lado, e do outro, o nosso gentil gigante Carlos.

Que foi a passos largos na direção da nave alienígena,sem que os outros humanóides ou robôs presentesmovessem um músculo ou engrenagem, mezzo tomadosde pavor, mezzo paralisados por uma força estranha, umraio misterioso que emanava do OVNI.

E nele uma larga e cintilante rampa se abriu e desceu, epor ela veio um casal e uma criança, todos gigantes, osadultos do tamanho de Carlos, todos vestidos com roupasdouradas, todos sem máscaras, todos morenos, com jeitode quem nasceu ontem, de bondade e energia.

Desceram e ficaram esperando por Carlos, que logo sejuntou a eles, ficou à sua frente, olhando-os nos olhos poruns bons cinco minutos, e depois é que falou, aliás, indagou:

— Eugaia?

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Um vasto sorriso se abriu nas faces dos três, e a mulherlhe respondeu, com afeto:

— Sim. Somos Eugaia.O homem lhe estendeu uma veste, que ele podia vestir,

que era do seu tamanho certinho.— Agradecido, amigos, irmãos. Mas eu vou ficar. Eu

amo o meu planeta. Eu amo a minha mulher.Eles não pareceram desapontados, simplesmente

sorriram e, a um sinal seu, um mecanismo desembarcoualgumas coisas, caixas com provisões, roupas e artefatos,suponho.

— Vamos monitorar o seu planeta. Não deixaremosque nossos irmãos mais novos lhe façam mal. E vocês, unscom os outros, vão então aprender a fazer o bem.

Sorriram de novo, era gente de dentes grandes e claros,que sorria o tempo todo.

Entraram na nave e esta decolou.Os militares pareciam cansados e confusos.— Vamos embora. Deixemos o Carlos em paz.À voz de comando um tanto hesitante de K. Britto,

todos os seus homens recolheram suas parafernálias e seafastaram dali.

Os líderes da ONG vieram falar com Carlos, sob osflashs e microfones da imprensa tupiniquim e internacional,e prometeram:

1 — proteção;2 — roupas, casa, alimentos e artefatos adaptados;3 — ampla projeção e debate da causa nos fóruns

internacionais;4 — a redação e proposta de adoção por todas as

instituições mundiais da Declaração dos Direitos dosGigantes;

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5 — e a construção da integração dos homens e mulheresgigantes na sociedade planetária, com garantia igualitária desaúde, educação, trabalho, transporte e laser.

— Carlos, há outros como você. Em todo o mundoestão surgindo gigantes. E a sociedade começa a se prepararpara aceitar vocês. Vocês somos nós. Porque a humanidadeé como um rio genético, e toda deriva que ocorra, que écatalogada como mutação, deficiência, ou esquisitice, é naverdade uma parte misturada no todo que somos, no riohumano com todas as suas manifestações.

Quem falou tão lindo assim foi a Mariana Gestal, que,junto com sua pequena irmã, era uma das líderes domovimento planetário.

Houve festa, muitos presentes, e o lançamento da pedrafundamental da construção da moradia adaptada ao seutamanho, ali mesmo, em Vargem Grande.

— Trabalho pra você é o que não vai faltar.O presidente Burla falou com eles pelo Skype, e disse

que estava muito feliz com o modo como as coisas seresolveram, que o Dr. Scaramouch e os outros cientistaspoderiam estudar o fenômeno sem injuriar os gigantes, sim,no plural, pois apareceram mais três, no norte, no nordestee no sul do país, e prometeu, ainda, fazer naquele mesmodia uma declaração numa entrevista coletiva, apoiando anossa nova causa.

À noite todos se retiraram, e Carlos se preparou paradormir, agora com muita comida e objetos, e a promessade uma casa à sua altura, com a construção a se iniciaramanhã, tudo financiado pela ONG, que ainda indenizara ohomem do sorvete, o do queijo, o do circo etc.

Havia muitas empresas fazendo doações, e váriaspropostas de emissoras de televisão, de companhias

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cinematográficas, multimídias e editoras, prometendomilhões de reais por: sua história, suas impressões, suasopiniões, seus sentimentos, seus pensamentos, sua visãode mundo, seus conselhos etc.

Já estava deitado, tentando sentir sono, pois estava muitoagitado, devido a todos os inusitados acontecimentos dodia, e como as coisas se reverteram a meu favor, assim, derepente.

Então vi a luz de uma lanterna que se aproximava aolonge, no meio daquele mato sem iluminação artificial, econsegui distinguir as silhuetas de uma mulher e de umacriança, que fiquei olhando.

Logo pude ver que eram minha mulher e meu filho,que se aproximavam de mim.

E foram se aproximando, se aproximando, e nãoparavam de se aproximar, já estavam tão grandes, e aindachegando perto, mais perto.., oh! Meu Deus! Que maravilha!

Foi aí que eu percebi que eles dois haviam virado gigantestambém.

Chegaram, me abraçaram e beijaram muito, rindo echorando de alegria.

E meu filho falou:— Pai, nós viemos ficar com você.E minha mulher falou:— Querido, nós viemos ficar com vocêE eu falei:— Meu amor, vocês vieram ficar comigo.

E foi aí que tudo começou.

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ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA CIDADE DO RIO DE

JANEIRO EM FEVEREIRO DE 2011 PELA IMPRINTA

EXPRESS PARA QUÁRTICA EDITORA EM SISTEMA

DIGITAL DE CAPA E MIOLO.

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