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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto De Geociências Giovanna Ermani DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE EDUCACIONAL NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO: OS CADERNOS DE GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS DOCENTES Campinas 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto De Geociências

Giovanna Ermani

DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE EDUCACIONAL

NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO: OS CADERNOS DE GEOGRAFIA

E AS PRÁTICAS DOCENTES

Campinas

2019

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Giovanna Ermani

DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE

EDUCACIONAL NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO: OS

CADERNOS DE GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS DOCENTES

DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE

CAMPINAS PARA A OBTENÇÃO DO

TÍTULO DE MESTRA EM GEOGRAFIA,

NA ÁREA DE ANÁLISE AMBIENTAL E

DINÂMICA TERRITORIAL

ORIENTADOR: PROF. DR. RAFAEL STRAFORINI

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA

GIOVANNA ERMANI, E ORIENTADA PELO PROF.

DR. RAFAEL STRAFORINI

Campinas

2019

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Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de Geociências

Marta dos Santos - CRB 8/5892

Ermani, Giovanna, 1991- Er55d ErmDisputas em torno do sentido de qualidade educacional no currículo do

estado de São Paulo : os cadernos de geografia e as práticas docentes /Giovanna Ermani. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

ErmOrientador: Rafael Straforini. ErmDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Geociências.

Erm1. Curriculos - Planejamento - São Paulo (Estado). 2. Ensino -

Metodologia. 3. Geografia - Estudo e ensino. 4. Autonomia didático-pedagógica. I. Straforini, Rafael, 1973-. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Disputes over the meaning of educational quality in the curriculumof the state of São Paulo : the notebooks of geography and teching praticesPalavras-chave em inglês:Curriculum - Planning - São Paulo (State)Teaching - MethodologyGeography - Study and TeachingDidactic-pedagogical autonomyÁrea de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica TerritorialTitulação: Mestra em GeografiaBanca examinadora:Rafael Straforini [Orientador]Luana Costa AlmeidaAna Angelita Costa Neves da RochaEvaldo PiolliData de defesa: 19-09-2019Programa de Pós-Graduação: Geografia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)- ORCID do autor: 0000-0003-3161-6193- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5510788282068518

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

AUTORA: Giovanna Ermani

DISPUTAS EM TORNO DO SENTIDO DE QUALIDADE EDUCACIONAL NO CURRÍCULO DO

ESTADO DE SÃO PAULO: OS CADERNOS DE GEOGRAFIA E AS PRÁTICAS DOCENTES

ORIENTADOR: Prof. Dr. Rafael Straforini

Aprovado em: 19 / 09 / 2019

EXAMINADORES:

Prof. Dr. Rafael Straforini - Presidente

Profa. Dra. Luana Costa Almeida

Profa. Dra. Ana Angelita Costa Neves da Rocha

Prof. Dr. Evaldo Piolli

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se disponível no

SIGA - Sistema de Fluxo de Dissertação e na Secretaria de Pós-graduação do IG.

Campinas, 19 de setembro de 2019.

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O que tem no chão da escola que tanto atrai (no desejo de

controle) como incomoda? (MACEDO, 2015, p. 903)

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AGRADECIMENTOS

Essa dissertação foi o resultado de um processo que vem sendo construído

desde a educação básica, quando optei pela geografia, quando optei pela universidade pública

e, mais tarde, quando optei pelo ensino de geografia, pela educação. De forma que pensar nos

agradecimentos e sistematiza-los, se torna uma difícil tarefa, por isso, decidi pontuar e

agradecer algumas das grandes influências durante esse processo.

Inicio pensando nos meus professores da educação básica: à Mariana, que

lecionava geografia no meu Ensino Médio, que me fez pensar sobre a forma com que o

mundo está organizado e a desigualdade social quando trabalhou uma música do Seu Jorge,

“se eu pudesse eu não seria um problema social”, ou quando ela falava sobre o Milton Santos,

que eu nem sabia quem era, mas achava que ele tinha muitas ideias legais. Depois veio o

Rafael, meu professor de geografia do cursinho, que me mostrou que a geografia servia como

um instrumento para ler o mundo. E que por meio da geografia eu seria capaz de compreender

e transformar o mundo, o que me fez ter certeza que era isso que eu queria para a minha vida

naquele momento. Agradeço a esses dois professores em especial, mas também a todos

aqueles que passaram pela minha vida escolar e deixaram marcas teóricas e afetivas,

possibilitando o meu crescimento e minha transformação.

Agradeço aos professores da UNICAMP que me ajudaram a compreender os

métodos da geografia, que para mim foi mais importante do que qualquer conteúdo, e que os

utilizo cotidianamente em minhas aulas na educação básica, a fim de possibilitar aos meus

alunos a leitura e a intervenção no mundo em que vivem. Agradeço à professora Tereza Paes,

que me ensinou sobre metodologia da geografia enquanto ciência, o que me possibilitou

pensar em como fazer a transposição disso para o ensino da geografia escolar. O professor

Vicente Eudes, que me ensinou sobre a indignação perante as injustiças da organização

espacial da América Latina. E também me ensinou na prática o que é uma aula dialógica e

qual a importância de ouvir seu aluno. O Ricardo Castillo, que não só me ensinou sobre redes

e fluxos e sobre a geografia agrária de uma maneira brilhante, mas, principalmente, me

ensinou que uma boa aula deve ser construída de forma organizada e sistematizada; com ele

aprendi que deve-se pensar onde se quer chegar em uma aula e traçar as estratégias para

alcançar seu objetivo, sempre utilizando a didática como instrumento. À professora Adriana

Bernardes, que me ensinou sobre a geografia urbana e me trouxe uma pesada discussão sobre

Milton Santos, me ensinando que é preciso um rigor teórico e seriedade quando trabalhamos

com a construção do conhecimento. Além deles, contribuíram de forma significativa para meu

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processo de construção do conhecimento, os professores Archimedes Perez, o professor

Francisco Ladeira, o professor Márcio Cataia e à professora Regina Célia.

Finalizando as influências dos docentes em minha acadêmica, trazendo os

professores Rafael e Angelita, que representam grande parte da reflexão construída nessa

dissertação, de um jeito leve e prazeroso que em muitos momentos nem parecia que

estávamos em um ambiente acadêmico. O professor Rafael Straforini, que foi muito além do

que um orientador, foi ele quem me motivou a desenvolver minha pesquisa na área do ensino

de geografia, e que me possibilitou olhar a sala de aula como um ambiente de potencialidades

infinitas, onde tudo pode virar um instrumento para a construção do conhecimento em sala de

aula, como ele diz. A forma com que ele fala sobre a educação básica me fez querer estar lá,

me fez compreender que a escola é um ambiente onde se exige uma boa formação, onde o

professor pesquisador seja capaz de refletir sobre suas práticas e atuar enquanto um

intelectual, construindo e repensando o processo de ensino-aprendizagem. A professora

Angelita me inspira, me faz querer ser melhor e me faz querer ser uma professora que permite

que meus alunos pensem e construam o conhecimento de forma compartilhada e ao mesmo

tempo autônoma, livre.

Agradeço a todos do grupo de pesquisa APEGEO, que passaram em algum

momento por mim, produzindo reflexões, orientações e relações afetivas muito intensas.

Agradeço à Anni e à Jé pela amizade e pelas conversas que sempre me moviam a pensar os

meus incômodos, saindo com novas ideias e outras tantas questões. E à Gabi e à Teté, que

estiveram comigo durante toda a graduação e no mestrado, e que compartilharam comigo não

só a técnica e teórica, mas a emoção e a afetividade, as quais levarei comigo para o resto da

vida.

Agradeço a todos os amigos que estiveram por perto nesse tempo e que

entenderam algumas de minhas ausências, e me incentivaram a continuar caminhando, tendo

forças para finalizar essa fase da minha vida; muitas vezes sendo a fonte de energia que me

faltava. Agradeço aos velhos e aos novos amigos que vão surgindo de forma espontânea e

criando suas marcas. Também agradeço à minha família, que sempre olha para minhas

escolhas com admiração, e isso me faz querer ser melhor para que eles fiquem satisfeitos.

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Agradeço à CAPES pelo financiamento da pesquisa, à UNICAMP e à UERJ

por toda que encontrei nessas universidades e por me ensinarem a dimensão do conhecimento

enquanto algo público e que deve ser compartilhado.

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RESUMO

O presente texto apresenta a reflexão desenvolvida durante minha pesquisa de mestrado, acerca das

políticas curriculares brasileiras. Concentrando essa análise no Programa São Paulo Faz Escola,

identifico os discursos que permeiam a construção dessa política, bem como, aqueles que são

produzidos a partir da instituição de instrumentos de currículo, tais como os “caderninhos”, que visam

controlar a forma com que o currículo é desenvolvido em sala de aula. Concentrando-me na relação

entre o universal e o particular, utilizo a Teoria do Discurso de Ernesto Laclau, a fim de compreender

a forma com que os professores de geografia encaram a política curricular, identificando os sentidos

de escola produzidos a partir dessas políticas curriculares, que visam estabilizar um discurso

hegemônico a partir da instituição de recursos pedagógicos que utilizam a didática enquanto

instrumento para alcançar a qualidade da educação, acabando por limitar a autonomia docente.

Palavras-chave: Políticas curriculares, Programa São Paulo Faz Escola, Didática da Geografia e

Autonomia Docente.

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ABSTRACT

The following text shows a a reflexion developed inside the time of my master research, about the

Brazilian curriculum policies. Focusing this analisys in the "São Paulo Make School" (In translation to

"São Paulo faz Escola"), I identify the speechs that permeate this policities stuctures, as well as, those

that are produced by the curriculum instruments institution, such like the "Little notebooks", that aim

to control the way the curriculum is developed inside each classroom. Focusing my attention in the

relationship between universal and particular, I apply the Ernesto Laclau's Speech Theory, to

comprehend the method as the geography teachers see the actual policity, diagnosing the school's

sense produced from those curriculum policies, that aim to establish a hegemonic discourse from the

pedagogical resources instituition that applies the didatics as a tool to achieve the education's quality,

this way, limitating teacher's autonomy.

Keywords: Curriculum Policies. São Paulo Make School Program, Geography Didatics and Teacher's

Authonomy

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LISTA DE FIGURAS

Imagem 1: Ilustração de um rizoma, proposta de leitura para as políticas curriculares.

Imagem 2: Currículo do Estado de São Paulo.

Imagem 3: Apresentação dos “Caderninhos”.

Imagem 4: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do

Professor.

Imagem 5: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do

Professor.

Imagem 6: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do

Professor.

Imagem 7: Fragmento de uma das metodologias de ensino apresentadas no Caderno do

Professor.

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LISTAS DE QUADROS

Quadro 1: Teoria do discurso e seus instrumentalizadores teórico-metodológicos.

Quadro 2: Linha do tempo das teorias de currículo.

Quadro 3: Comparação entre o curso Normal e o curso de Pedagogia com relação à

concepção de teoria e prática, segundo as entrevistas de Cruz (2008).

Quadro 4: Síntese das distintas abordagens didáticas, suas concepções teóricas e seus

objetivos, segundo Candau (2008).

Quadro 5: Marcos epistemológicos da geografia acadêmica e suas reflexões na geografia

escolar.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAP – Avaliação de Aprendizagem em Processo

APEGEO - Ateliê de Pesquisas e Práticas em Ensino de Geografia

ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo

BNCC – Base Nacional Curricular Comum

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CENP – Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas

DE – Diretoria de Ensino

ENPEG - Encontro Nacional de Práticas de Ensino de Geografia

IDESP – Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo

IGE – Instituto de Geociências

PAD – Programa de Apoio Didático

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

PROPED/UERJ – Programa de Pós-Graduação e Educação/ Universidade Estadual do Rio

de Janeiro

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

SARESP - Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo

SEE/SP – Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15

CAPÍTULO 1: QUESTÕES TEÓRICO METODOLÓGICAS – APRESENTANDO OS

CAMINHOS TRILHADOS DURANTE TODA A CAMINHADA DA PESQUISA ......22

1.1. A Teoria do Discurso ...................................................................................................22

1.2. Universalismo e Universalismo como categorias instrumentalizadoras na análise do

objeto de estudo .......................................................................................................................32

1.3. O discurso da “qualidade da educação” e seu corte antagônico: a qualidade da

formação docente .....................................................................................................................36

1.4. Significante Vazio como instrumentalizador teórico que auxilia na compreensão da

busca pela “qualidade da educação” ........................................................................................39

CAPÍTULO 2: O PROGRAMA SÃO PAULO FAZ ESCOLA E O CONTEXTO DA

ESCOLA: QUEM LIMITA QUEM? ...................................................................................41

2.1. A criação do Programa São Paulo Faz Escola enquanto um momento na política de

currículo do Estado de São Paulo ............................................................................................49

2.2. A política de integração curricular ................................................................................... 51

2.3. A qualidade da educação enquanto Significante Vazio ................................................... 55

2.4. Instrumentos de currículo e a busca pela utilização dos materiais prescritivos ...............60

2.4.1. Os “caderninhos” ..................................................................................................60

2.4.2. A avaliação externa ..............................................................................................71

CAPÍTULO 3: A DIDÁTICA E A METODOLOGIA DE ENSINO DE GEOGRAFIA.76

3.1. Diferentes momentos da didática enquanto campo epistemológico .................................76

3.2. Qual o lugar da didática específica associada a disciplina geografia? ..............................90

CAPÍTULO 4: ESCUTANDO AS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO

ESCUTANDO ÀS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO COMO OS DISCURSOS

PRODUZIDOS PELAS POLÍTICAS CURRICULARES CHEGAM ÀS ESCOLAS

.................................................................................................................................................106

4.1. As impressões sobre os “caderninhos” de quem o usa cotidianamente .........................108

4.2. A perda do intelectualismo docente em sala de aula ......................................................117

4.3. Qual a escola pública você gostaria de trabalhar? ..........................................................122

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................131

ANEXOS................................................................................................................................135

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15

INTRODUÇÃO

Ao olhar para trás e tentar repensar os caminhos trilhados para a construção dessa

pesquisa sinto que as indagações iniciais foram surgindo de acordo com a minha trajetória

enquanto participante do grupo de pesquisa APEGEO (Ateliê de Pesquisas e Práticas em

Ensino de Geografia), bem como enquanto professora da educação básica. Em um momento

me vi mergulhada no conceito de “recontextualização por hibridismo” (LOPES, 2005),

conceito teórico no qual baseou-se a minha pesquisa de Iniciação Científica (IC)1, ainda em

um estágio de maturação da pesquisa de IC, deparei-me com um dos encontros mais

prazerosos que a vida me proporcionou: a sala de aula. A escola passou a ocupar uma parte

significativa de minha energia física e mental, não porque eu estivesse dando muitas aulas,

mas a inicial carga de 12 horas/aulas para uma pessoa que viveu seus últimos anos

mergulhada em bibliotecas e na bolha da universidade pública, acabou pesando nessa nova

realidade.

A experiência na escola pode ser dividida em dois eixos: a sala de aula e a

relação com os colegas de trabalho; ambas permeadas de significados e adjetivos diversos.

Imagino que no decorrer deste texto algumas situações possam surgir que demonstrem, de

forma mais clara, o primeiro eixo apresentado (a sala de aula), cujos descobrimentos foram

muito prazerosos e os desafios bastante motivadores, resultando em um saldo muito positivo.

Nesse sentido, uma questão que sempre me intrigou diz respeito a metodologia de

ensino de geografia. Ao preparar as minhas aulas, muito do tempo utilizado destinava-se a

pensar na forma com que eu iria abordar os temas, quais seriam os recursos utilizados, bem

como os instrumentos que seriam aplicados a fim de facilitar o processo de

ensino/aprendizagem. Outra questão que me intrigou durante o momento em que estive

inserida de forma inicial no contexto escolar, era a grande preocupação, principalmente por

parte da coordenação, com a utilização da matriz de referência do Enem, pautada nas

competências e habilidades de cada área. O colégio possuía um sistema apostilado que havia

1 Pesquisa, sob orientação do prof. Dr. Rafael Straforini, na qual realizei uma análise comparativa de dois

documentos curriculares do estado de São Paulo, o documento da CENP (1988) e o currículo do estado de São Paulo (2010). Para refletir sobre a análise, utilizei o conceito de permanências e mudanças de Goodson (1997), na qual concluí que embora os enunciados textuais sejam distintos, os sentidos de geografia dos currículos possuem mais permanências do que mudanças. Os dois grandes discursos que encontrei no currículo atual e que não estavam presentes no currículo da CENP, portanto as mudanças, foram as tecnologias da informação, muito concentrada na obra do geógrafo Milton Santos, e o discurso ambientalista, como forma de conscientização do aluno durante a educação básica.

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elaborado a sua própria matriz de referência – que de certa maneira dialogava com a do Enem

-, para todo o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio. Dessa maneira, durante as reuniões

pedagógica muitas vezes nos eram apresentados gráficos que demonstravam o desempenho

dos alunos de cada série em cada uma das competências e habilidades. Após isso, nós

professores, éramos convidados a uma reflexão acerca de como desenvolver tais

“habilidades” nos alunos por meio de cada disciplina durante nossas aulas.

Por outro lado, o segundo eixo me trouxe algumas surpresas. Talvez por nunca ter

trabalhado formalmente, ou por estar a muito tempo envolvida com um grupo de pessoas que

se conhecia a muito tempo, ou que pensava de forma similar, a chegada à escola me fez

construir uma percepção de que o ambiente de trabalho e, principalmente, o convívio com os

colegas de trabalho nem sempre era uma atividade que acontecia com naturalidade, como era

com os colegas de curso da geografia da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).

No entanto, sem me delongar acerca dessa questão, penso que há uma grande potência à

quebra da inércia quando nos deparamos com algo distinto de nós; quando vemos e ouvimos

algo novo, somos movidos a pensar sobre aquilo, a construir visões, opiniões e conhecimento

sobre o novo. E é nesse cenário que os primeiros traços desse projeto de pesquisa começam a

ser desenhados.

Inserida nesse contexto, em uma reunião semanal da área de Ciências

Humanas, uma dos professoras comentou que na outra escola que trabalhava, uma escola

pública da rede estadual de São Paulo, já havia acabado o conteúdo bimestral, mas que estava

ajudando o professor de matemática com o conteúdo dele, auxiliando os alunos a lerem

tabelas e gráficos, que era um conteúdo importante para a prova do SARESP (Sistema de

Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que se aproximava. Inicialmente

essa frase passou por mim despercebida, como parte de uma conversa informal, mas com o

passar das semanas, as leituras que estávamos realizando no grupo de pesquisa APEGEO

(Ateliê de Pesquisa e Práticas em Ensino de Geografia), bem como meus próprios

questionamentos daquele momento, me fizeram voltar àquela frase e pensar sobre como as

avaliações externas à escola influenciavam no desenvolvimento do conteúdo das disciplinas

escolares. A partir daquele momento passei a refletir e a questionar de que forma isso

acontecia e quais eram os impactos para a geografia escolar, construindo os primeiros

pressupostos do projeto a seguir.

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O grupo de pesquisa foi fundamental para a delimitação do método,

representado na forma pela qual o objeto seria investigado, bem como inserindo diversos

questionamentos que foram desenhando a pesquisa que apresento a seguir.

DESENHANDO A TRAJETÓRIA DO PROJETO DE PESQUISA: O INÍCIO E OS

RETOQUES QUE FORAM SENDO DADOS

Uma vez que ao longo do processo da pesquisa o próprio objeto ao qual me

debrucei foi ganhando novos recortes e novos olhares, entendo a importância de desenhar a

trajetória percorrida desde o momento em que construí o projeto como parte do processo

seletivo da pós-graduação do Instituto de Geociências (IGE) até o dia de hoje, pontuando as

diferenças no olhar para o objeto de estudo, bem como as mudanças nos questionamentos e o

surgimento de novos sujeitos.

Os incômodos iniciais, assim como mencionado acima, as falas daquela

professora mencionada acima, e meus pensamentos insistentes sobre como a geografia

poderia estar perdendo seu espaço nas escolas públicas. Ao voltar para projeto de pesquisa

elaborado para o processo de seleção da pós-graduação, os primeiros questionamentos que

apareciam eram esses:

Como a instrumentalização das metodologias de ensino presentes em

documentos curriculares tem influenciado os materiais didáticos produzidos?

Em que medida essas metodologias influenciam a forma com que o professor

planeja sua aula?

Existe uma relação direta entre as metodologias de ensino e as provas oficiais

designadas aos alunos da educação básica?

As metodologias de ensino são consideradas pelos professores como uma

parte fundamental no processo de ensino/aprendizagem na educação básica?

Percebe-se que o objeto da pesquisa, desde o início, concentrou-se na análise das

metodologias de ensino presentes nesses documentos. Naquele momento meu principal

objetivo concentrava-se em olhar as políticas curriculares como universais, como forças

maiores, cuja potência provavelmente apagariam as ações do cotidiano escolar. Em minhas

ideias iniciais o SARESP possuía uma força única nas escolas, sendo responsável por

promover sentidos de geografia com base nas questões que apareciam nas avaliações

externas; entendia que o SARESP se comportava como um norteador de currículo na

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delimitação do que deveria ser ensinado, pensando no que seria cobrado nas avaliações

externas.

A disciplina sobre avaliação externa que cursei na Faculdade de Educação da

UNICAMP, de certa forma, reforçou esse posicionamento. Durante a disciplina li e discuti

textos que trabalhavam com a avaliação externa como perversidade (FREITAS, 2005; LEITE,

2005; SORDI E SOUSA, 2009; DIAS SOBRINHO, 2010; SORDI, 2012; AFONSO, 2012),

enfatizando os aspectos negativos de sua utilização e construindo um caminho para pensá-la

de forma mais potente, como uma avaliação participativa. Ao refletir sobre o modelo que não

tem conseguido atingir o objetivo de avaliar para produzir melhorias na educação, meu

pensamento anterior era reforçado. Ao olhar para o SARESP, percebia o quanto essa prova

determinava o conhecimento escolar por meio dos conteúdos que eram legitimados por ela. A

geografia, como disciplina escolar, vem perdendo espaço por meio da construção de um

sentido distante da funcionalidade da disciplina.

Um segundo momento na construção do projeto dessa pesquisa foi durante a

realização da disciplina de seminários2, ao apresentar meu projeto para a turma, algumas

alunas da disciplina levantaram a seguinte questão: “Giovanna, quem te disse que isso ocorre

realmente assim na escola? Você precisa ouvir os professores, na escola em que eu trabalho,

porque lá ninguém liga para o SARESP, ninguém é cobrado por isso, e, embora não tendo

esse objetivo, a escola apresenta uma boa nota na avaliação”.

Confesso que isso me causou um grande desconforto, pois a forma com que havia

pensando até então não fazia sentido? A geografia desenvolvida pela professora Nathália3 em

auxílio aos professores de Língua Portuguesa e Matemática não aconteciam em outras

escolas? Por alguns dias tentei ignorar o comentário e seguir com a pesquisa. Mas, com o

passar dos dias parecia que não conseguia pensar como antes, a fala da

professora/pesquisadora, aluna da disciplina, me incomodou tanto, a ponto de ser potente para

uma outra forma de pensar. Em orientação, Rafael e eu decidimos que as entrevistas entrariam

2 A disciplina Seminários (GG013), obrigatória para os alunos de pós-graduação do Instituto de Geociências da

Unicamp, concentra-se na orientação dos projetos de pesquisa apresentados pelos alunos de mestrado e doutorado. Os alunos matriculados na disciplina apresentam os projetos divididos em subáreas temáticas da geografia e são orientados por professores convidados externos que trabalham com essa temática ou próximo a ela. 3 A professora que trabalhava comigo no colégio e que me trouxe a reflexão inspiradora para desenvolver a

minha pesquisa de mestrado.

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como metodologia da minha pesquisa. Foi, então, que montamos a entrevista e fui ouvir as

professoras4.

Ao ouvi-las5, outras questões foram surgindo. Havia a professora que era nova na

escola – e também nova na docência -, e não entendia muito bem a lógica da avaliação

externa, não incorporava questões envolvendo preparações para o SARESP à sua prática, mas

tinha momentos em que cedia às pressões da gestão escolar e trabalhava os pontos que os

alunos tinham mais dificuldade, evidenciados pelas respostas na prova. Outra professora

seguia os materiais elaborados pelo estado, os achava importante e preparava seus alunos para

o SARESP, que além de medir a qualidade da escola, recompensava os professores e gestores

com bônus. E, por fim, havia a professora que resistia a qualquer tentativa de pensar o

SARESP, o ignorava e o negava em suas aulas.

Junto da análise das entrevistas, participava do grupo de pesquisa da professora

Alice Casimiro Lopes (PROPED/UERJ)6, e, ao ler algumas questões sobre método – o

método que eu utilizo nessa pesquisa -, a professora falava sobre como algumas pessoas que,

mesmo falando e tentando encaixar em sua pesquisa o método pós-estruturalista, a exemplo

da Teoria do Discurso, ainda continuavam a fazer pesquisa de uma forma estruturalista;

fazendo perguntas e encontrando respostas que já constavam em suas hipóteses iniciais,

deixando suas pesquisas fechadas e pouco potentes às descobertas e às vozes dos sujeitos. Ao

ouvir isso, eu pensei na hora: “Essa sou eu! Desenhei o meu método na Teoria do Discurso;

forjei algumas categorias analíticas em Laclau com o objetivo de analisar meu objeto de

pesquisa; ouvi as professoras, mas mesmo assim continuo querendo pensar sobre o poder

universal do SARESP”.

Pensei sobre isso por algumas semanas, se por um lado queria repensar essas

questões e reformular o meu olhar para a pesquisa, viver o meu método, que na vida acho que

conseguia fazer de maneira mais eficiente do que na pesquisa, por outro eu pensava que essa

mudança de olhar seria impossível, seria como reestruturar (ainda posso pensar nessa

estrutura?) toda a pesquisa, tendo poucos meses para a qualificação. Encontrei o meu

4 É por esse motivo que o projeto foi submetido à Plataforma Brasil e analisado pelo Comitê de Ética, sendo

aprovado no dia 23 de junho de 2017, sob o seguinte número do parecer 2.134.477. 5 Foram entrevistadas três professoras, as quais apresentarei no capítulo 4, bem como desenvolverei quais

foram as justificativas na escolha das mesmas. 6 Durante o segundo semestre de 2017, estive em intercâmbio com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro

(UERJ), onde tive contato direto com o grupo de pesquisa em currículo, orientado pela professora Alice Casimiro Lopes, com reuniões semanais com discussões de textos.

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orientador na defesa de mestrado da Stéphanie, uma amiga que também faz parte do

APEGEO e disse a ele: “Strafo, nada mais faz sentido”, e ele respondeu: “que bom, isso é

ótimo. Vamos conversar...”.

Algumas semanas depois conseguimos marcar uma orientação. Durante esse

período participei do ENPEG (Encontro Nacional de Práticas de Ensino de Geografia), e

novas questões foram surgindo, ao mesmo tempo em que a angústia foi dando lugar a uma

aceitação. Essa aceitação vinha do fato de que passei a pensar que talvez fosse essa a potência

da pesquisa.

Assim, a partir dessas considerações sobre a trajetória de minha pesquisa, tive

coragem de assumir algumas “brigas”, de revirar alguns incômodos e incorporar outros.

Acredito que de todas as questões apresentadas nessa pequena trajetória, o que fica mais

latente é a mudança de olhar. A partir da compreensão mais madura dos instrumentalizadores

teóricos, por meio das leituras realizadas tanto no APEGEO como no grupo de pesquisa da

professora Alice, passei a entender que o universalismo existe em relação com diversos

particularismos, não os olhando como noções opostas, mas como posições distintas que, por

meio de conflitos, negociações e articulações, vão construindo uma hegemonia provisória,

precária e contingencial.7

Assim, entendo que

O universal é parte de minha identidade na medida em que sou

penetrado por uma falta constitutiva, isto é, na medida em que minha

identidade diferencial fracassou no processo de sua constituição. O

universal surge a partir do particular não como um princípio

subjacente a este e que o explica, mas como um horizonte incompleto,

que sutura uma identidade específica deslocada (LACLAU, 2011, p.

57).

A partir disso, a pesquisa passou a ter como objetivo a compreensão da relação

entre políticas curriculares, entendidas enquanto universais e a forma com que elas são lidas

nas escolas, considerando essa releitura enquanto os particularismos, que disputam sentidos

entre o que é hegemônico. Passei a me questionar quais são os discursos que permeiam a

construção do Programa São Paulo Faz Escola enquanto política curricular, bem como a

forma com que essas políticas são encaradas nas escolas, e essa foi a reformulação da

problemática da minha pesquisa.

7

Universalismo e particularismos são categorias instrumentalizadoras para a análise da Teoria do Discurso elaborada por Ernesto Laclau, que nessa pesquisa, constituem-se como o método pelo qual esforço-me em olhar para meu objeto de pesquisa.

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21

Por fim, entendo que a mudança de visão do objeto da pesquisa acabou me

levando a pesquisar os sentidos das políticas curriculares estabelecidas nas escolas pelo

Estado por meio do Programa São Paulo Faz Escola, produzindo sentidos e discursos que

alteram a dinâmica da escola e reduzem a autonomia docente.

Assim, organizei este texto a fim de possibilitar a construção de uma discussão

teórica envolvendo elementos observados na prática cotidiana da sala de aula. No primeiro

capítulo elaborei uma discussão a respeito do significado do método para a pesquisa,

elucidando a Teoria do Discurso, bem como qual sua relação com o objeto da pesquisa, e seus

instrumentalizadores teóricos utilizados nessa pesquisa. No segundo capítulo construí uma

apresentação do Programa São Paulo Faz Escola, seu contexto de criação, bem como as

principais políticas curriculares que se desenvolvem a partir dele. Ainda mais, busquei

caracterizar o documento curricular para a disciplina de geografia, analisando como os

“caderninhos” de geografia e a forma com que a utilização do mesmo acaba por influenciar na

autonomia docente. O terceiro capítulo foi escrito a partir das leituras que necessitei realizar

para compreensão da didática e das metodologias de ensino. Ao analisar os documentos

curriculares percebi que a didática é o principal instrumento utilizado nos “caderninhos”, e

que por isso é necessário refletir a respeito desse campo de conhecimento da ciência, essa

reflexão é desenvolvida no terceiro capítulo. Por fim, o quarto capítulo apresenta as

entrevistas realizadas com as professoras que atuam na rede básica de ensino paulista.

Apresento a forma com que elas se apropriam das políticas curriculares produzindo e

ressignificando sentidos, e a forma com que suas falas demonstram as intencionalidades da

aplicação do Programa São Paulo Faz Escola na rede de básica de ensino.

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CAPÍTULO 1: QUESTÕES TEÓRICO E METODOLÓGICAS - APRESENTANDO

OS CAMINHOS TRILHADOS DURANTE TODA A CAMINHADA DA PESQUISA

Certa vez, Rafael, orientador dessa pesquisa, em uma de nossas reuniões

semanais enquanto grupo de pesquisa (APEGEO), mencionou que ao olhar para trás e

revisitar suas pesquisas anteriores, ele concluiu que as suas temáticas de pesquisa ficaram

ultrapassadas, porém, o que ficou mesmo foi o aprendizado do método da pesquisa, a forma

com que olhamos para nosso objeto. Assim, o capítulo inicial dessa dissertação concentra-se

em explicitar algo que é essencial em uma pesquisa, a visão de mundo na qual se busca olhar

o objeto de pesquisa e todas as outras questões que vão surgindo ao longo desses percursos.

Ao elaborar este capítulo, apresento um pouco da trajetória que desenvolvemos enquanto

grupo de pesquisa, onde construímos, no passar de alguns anos juntos, a compreensão e o

caminho para uma visão de mundo provisória e em constante (re) construção.

Assim, trago ao texto a Teoria do Discurso e argumento o motivo da escolha

dessa concepção teórica, uma vez que ela foi desenvolvida por cientistas políticos, Ernesto

Laclau e Chantau Mouffe, e apresenta um arcabouço teórico associado a esta ciência.

Inicialmente, desenvolvo uma linha de pensamento sobre os instrumentos teóricos que serão

utilizados na análise dos objetos da pesquisa.

1.1. A Teoria do Discurso

Pero en este movimiento general de muerte de los dioses, de las

ideologías de salvación y de los grandes sacerdotes del intelecto,

¿no estamos haciendo posible que cada hombre y cada mujer asuman plenamente la responsabilidad de su propia contingencia

y de su propio destino? (LACLAU, 2000, p. 206).

A apresentação da Teoria do Discurso enquanto método orientador dessa

pesquisa, como já mencionado, faz parte do contexto dos caminhos teóricos desenvolvidos

pelo grupo de pesquisa APEGEO ao longo dos últimos seis anos.

No início da constituição do grupo de pesquisa na UNICAMP, no ano de 2013,

concentramo-nos em leituras envolvendo o currículo, as políticas curriculares e o ensino de

geografia. As escolhas dos debates teóricos foram variadas, uma vez que o orientador do

grupo de pesquisa, Rafael, acreditava que tínhamos de compreender as diversas contribuições

teóricas no estudo do currículo, para depois escolhermos uma linha que dialogasse com a

maneira que desejássemos olhar para nosso objeto. Assim, nesse período lemos as seguintes

obras: A construção social do currículo (1997), de Yvor Goodson; Ideologia e Currículo

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(1999), de Michael W. Apple; e, Teorias de Currículo (2011), de Alice Casimiro Lopes e

Elizabeth Macedo.

Todos esses autores contribuíram de alguma maneira na construção de nosso

entendimento sobre o currículo e aparecem ao longo de nossa trajetória como pesquisadores

na área do currículo8ao longo de nossas publicações e em nossas pesquisas sobre o tema. No

entanto, na análise de todas essas linhas teóricas sobre o currículo, o livro Teorias de

Currículo nos chamou muita atenção como grupo, não só pela complexidade do que ali era

apresentado, mas também pela referência ao olhar o currículo a partir da Teoria do Discurso,

de Ernesto Laclau e Chantau Mouffe.

O contato com a teoria, a partir da apresentação e da interpretação que as

autoras trouxeram em seu livro, fez com que Rafael sugerisse a leitura do Laclau em nosso

grupo de pesquisa. A decisão foi inicialmente ler Laclau “in natura”, mesmo que isso

significasse entender ou compreender “pouca coisa”, do que nos era apresentado enquanto

teoria. Foram meses difíceis, pois a efetiva apreensão da teoria foi lenta e demandou um

esforço para além do que estávamos acostumados. Apesar disso, foram meses importantes de

crescimento e aprendizado e o desenvolvimento de um grupo de pesquisa mais maduro. E no

final, sempre ficam “algumas coisas, mesmo que sejam mais dúvidas...”

Posteriormente, no semestre seguinte, Rafael sugeriu a leitura de autores que

trouxessem a discussão da Teoria do Discurso, como uma forma de melhorar a compreensão

de algumas questões que permeavam nossas práticas de pesquisa. Nesse momento, lemos Pós-

estruturalismo e a Teoria do Discurso: em torno de Ernesto Laclau (2014), um livro

organizado por Daniel Mendonça e Leo Rodrigues e que traz a contribuição de diversos

autores que apresentam a Teoria do Discurso, a contextualizam teórica e historicamente, e

trabalham alguns dos conceitos centrais na discussão da teoria.

A partir desse momento, passamos a compreender, enquanto grupo de

pesquisa, algumas discussões apresentadas na teoria, e fizemos o exercício de dialogar nossas

8 Como é possível notar, por exemplo, nos seguintes trabalhos:

1) ERMANI, G.; JORDAO, G. F. . Formação cidadã: prática educacional para a transformação social. In: III Encontro Regional de Ensino de Geografia, 2013, Campinas. Anais do III Encontro Regional de Ensino de Geografia: Práticas Educativas em Ensino de Geografia (re) criando os documentos curriculares. Campinas: Associação dos Geógrafos Brasileiros - Seção Campinas, 2013. v. 1. p. 113-119. 2) ERMANI, G.; JORDAO, G. F. O processo de recontextualização por hibridismo da Proposta Curricular de Geografia da CENP (1988) na atual Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o ensino de geografia do ensino fundamental. In: Congresso Brasileiro de Geográfos, 2014, Vitória/ES. Anais Eletrônicos do VII CBG, 2014. 3) ERMANI, G.; PANUTTO, S. R. . Atuação do professor-pesquisador e a valorização do cotidiano do aluno: medidas práticas na busca de um ensino significativo. In: V Congresso Brasileiro de Educação, 2015, Bauru. Anais V Congresso Brasileiro de Educação, 2015.. 4) ERMANI, G.. A proposta curricular para o ensino de geografia - 1ºgrau da CENP/SP (1988): um momento na política de currículo brasileira. In: V Encontro Regional de Ensino de Geografia, 2016, Campinas/SP. Anais do 5º Encontro Regional de Ensino de Geografia: As políticas curriculares e o ensino de Geografia, 2016. p. 363-373.

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pesquisas com o método da Teoria do Discurso, enxergando um sentido nas leituras, e mais,

percebendo a Teoria do Discurso enquanto o método que no momento, fazia sentido para a

leitura de nossos objetos.

Após isso, ainda lemos alguns textos onde autores e autoras que utilizavam a

teoria em suas pesquisas e em suas obras para compreender a forma com que faziam isso. Por

fim, durante o segundo semestre de 2017, em que participei do grupo de pesquisa da

professora Alice Casimiro Lopes, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tive

uma contribuição significativa para que esse olhar da pesquisa, a partir da Teoria do Discurso,

ocorresse de forma um pouco mais leve.

É com base nessa trajetória que apresento um pouco de como a Teoria do

Discurso é utilizada em minha pesquisa.

A Teoria do Discurso é pensada por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe nas

últimas décadas do século XX, na obra “Hegemony and socialist strategy: towards a radical

democratic politics” (1985), a partir da “crise do Estado de Bem-estar social, a emergência de

novos movimentos sociais, o declínio da classe operária tradicional, o fim do sistema fordista

de produção e o surgimento do capitalismo pós-industrial” (GIACAGLIA, 2014, p. 94).

Laclau e Mouffe entendem que a complexidade da sociedade contemporânea

não consegue ser explicada apenas pelo marxismo, ou por qualquer teoria desenvolvida até

aquele momento. A emergência de novos movimentos sociais e o declínio da classe operária

tradicional, fez com que o marxismo ficasse

adstrito a uma concepção essencialista de sociedade, calcada,

sobretudo na lógica reducionista das relações sociais restritas ao

antagonismo capital versus trabalho. Em oposição, Laclau argumenta

que o que existe efetivamente é um complexo espectro social formado

por um sem número de identidades, constituídas a partir de relações

discursivas antagônicas distintas do antagonismo de classe que,

segundo a sua análise, tem locus particular e não a priori universal

neste intrincado jogo. Essa complexidade do social não é percebida

e/ou alcançada pelo marxismo, o que retira dessa corrente teórica a

capacidade de análise mais refinada e pertinente dos múltiplos

antagonismos sociais possíveis (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014,

p. 48).

A teoria é elaborada a partir da observação de uma crise política generalizada,

tanto do capitalismo como do socialismo, “provocando a queda das hegemonias tradicionais e

a constituição de uma nova ordem social” (GIACAGLIA, 2014, p. 94).

Dessa maneira, entendo que Laclau observa que há a necessidade de uma

quebra de paradigma da interpretação da política e a urgência da reformulação do pensamento

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teórico capaz de lê-la em um novo contexto, dialogando com outros autores que também

faziam o mesmo movimento.

A explosão de identidades étnicas e nacionais na Europa oriental e nos

territórios da antiga União Soviética, lutas de grupos imigrantes na

Europa ocidental, novas formas de protestos multicultural e

autoafirmação nos Estados Unidos, a que temos de acrescentar uma

gama de formas de contestação associadas aos novos movimentos

sociais (LACLAU, 2011, p. 49).

E,

A coexistência paradoxal da homogeneização e fragmentação, unidade

e diversidade, caracteriza o mundo atual. A tensão entre um processo

de globalização, que borra diferenças e institui um mercado global, e a

emergência, ao mesmo tempo, de particularismos e de

fundamentalismos de diferentes tipos, provoca, por vezes, fusões,

contaminações, mesclas, diferenças, marginalização, lutas e acirradas

guerras. Neste particular processo social atual de mundialização e

irrupção da diversidade cultural que atravessa o conjunto de nossas

práticas e funda um novo modo de ser, a integração ao sistema-

mundo de grandes massas populacionais realiza-se através da

exclusão, instaurando-se assim um sistema perverso e selvagem,

gerando profunda segmentação social (GIACAGLIA, 2014, p. 93).

A teoria do discurso ancora-se nos pressupostos teóricos do marxismo, na

filosofia desconstrutivista de Derrida, na psicanálise lacaniana, na linguística, no

estruturalismo e no pós-estruturalismo. A partir da contribuição desses pressupostos, Laclau

elabora uma teoria amparada na contingência, na precariedade, na indeterminação e na

incompletude do social (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014).

Marchart (2014) apresenta o Peronismo na Argentina como pano de fundo no

qual Laclau elaborou inicialmente sua Teria da Hegemonia9, utilizando os pressupostos

teóricos pós-estruturalistas10

como uma ferramenta para o entendimento da política nesse

novo contexto global, desconstruindo noções clássicas do pensamento social e político e

apresentando novos sentidos a essas noções. Marchart (2014) mapeia as influências peronistas

de Laclau para a elaboração da teoria, identificando quatro desses contextos de influência que

9 A Teoria da Hegemonia, desenvolvida por Laclau é construída a partir de uma releitura do conceito de

hegemonia de Gramsci, onde este pensa a hegemonia a partir da vitória do fascismo e da impossibilidade da revolução no estilo bolchevique. E Laclau passa a apresentar um entendimento de hegemonia em termos de discursividade, a partir da impossibilidade da completude e da apresentação de um “conjunto fechado”. 10

Para esse texto, decidi não elaborar uma discussão entre fundacionismo e pós-fundacionismo, ou entre estruturalismo e pós-estruturalismo, uma vez que entendo que são questões teóricas bastante apresentadas em trabalhos recentes. Apresentadas, por exemplo, de forma esclarecedora nos primeiros capítulos da obra de Mendonça e Rodrigues (2014).

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foram fundamentais para o desenvolvimento da Teoria do Discurso em meio a um cenário

político específico: i. Ativista do Partido Socialista Argentino; ii. Membro do Movimento

Estudantil Peronista. iii. Liderança política do Partido Socialista da Esquerda; iv. Editor do

jornal.

O entendimento das novas concepções do político é a questão de maior

importância na teoria, inserindo uma análise do contexto político a partir da percepção do

social e da lógica do discurso.

Discurso, por sua vez, não deve aqui ser entendido como um simples

reflexo de conjuntos de textos. Discurso é uma categoria que une

palavras e ações, que tem natureza material e não material e/ou ideal.

Discurso é prática, daí a noção de prática discursiva – uma vez que

quaisquer ações empreendidas por sujeitos, identidades, grupos sociais

são ações significativas (MENDONÇA E RODRIGUES, 2014, p. 49).

Nessa teoria, ao constituir o discurso enquanto categoria central de seu

desenvolvimento teórico, é aumentada a complexidade do entendimento de discurso para

além de “conjuntos de textos”. Ao considerar o discurso para além da “união entre o que se

fala e o que se escreve, mas também a forma como se age” (MENDONÇA, 2012, p. 206),

insere-se a dimensão da prática social enquanto discurso. Discursos estes que estão em

constante luta e disputam sentidos, por isso estão constantemente em articulações provisórias

e formando discursos antagônicos, cuja compreensão é necessária para o entendimento das

políticas contemporâneas, para esta pesquisa em especial, para a compreensão das políticas

curriculares do Estado de São Paulo.

O entendimento de discurso enquanto prática discursiva nos permite compreender

as diversas possibilidades de significação do social e do político, marcadas pela precariedade

e contingencialidade. Assim, a teoria de Laclau nos capacita intelectualmente para olhar a

realidade a partir do processo de significação de diferentes discursos, entendendo que não há

um projeto político fechado ou definido, apenas um conjunto de infinitas disputas de sentidos

que competem para a fixação desses sentidos.

A citação de Laclau colocada no início desse tópico demonstra um pouco do

significado de se adotar uma visão de mundo considerando o social enquanto prática

discursiva, elaborando o seguinte questionamento: ¿no estamos haciendo posible que cada

hombre y cada mujer asuman plenamente la responsabilidad de su propia contingencia y de su

propio destino? (LACLAU, 2000, p. 206). Essa responsabilidade em torno de suas decisões,

entendendo-as como contingentes e não como previamente determinadas e inclusas em um

sistema fechado, é central dentro da Teoria do Discurso e é fundamental para a interpretação

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de políticas educacionais, em especial as políticas curriculares, além de trazer a esperança de

acreditar que as políticas não são definitivas e totalizantes, mas que estão sujeitas a conflitos

e negociações, indicando a possibilidade de outras articulações, levando-as a outros rumos.

Laclau elabora sua teoria a partir de um conjunto instrumentalizador de

conceitos que permitem o entendimento de um sistema de significação aberto, dependente de

decisões e articulações precárias e contingenciais. O quadro apresentado abaixo constitui-se

como um mapa conceitual apresentando alguns dos instrumentalizadores teóricos que

auxiliam na construção da teoria do discurso. Esses “conceitos” não apresentam o

significado/sentido associado ao senso comum, cada um deles foi ressignificado pelo autor e

apresenta um sentido dentro da teoria.

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QUADRO 1: TEORIA DO DISCURSO E SEUS INSTRUMENTALIZADORES TEÓRICO-

METODOLÓGICOS

Fonte: Memória das leituras sobre Laclau e autores que comentam a sua obra, expostos de forma livre.

Elaboração própria

TEORIA DO DISCURSO

DISCURSO

PONTO NODAL

HEGEMONIA

ANTAGONISMO

CADEIA DE EQUIVALÊNCIA

CADEIA DE DIFERENÇA

SIGNIFICANTE VAZIO

SIGNIFICANTE FLUTUANTE

UNIVERSALISMO

PARTICULARISMO

ARTICULAÇÕES

EMANCIPAÇÃO

DEMOCRACIA

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A Teoria do Discurso aparece no centro do quadro, comportando-se como o

eixo central, como a própria teoria, a qual os demais instrumentalizadores teórico-

metodológicos estão vinculados. Esses instrumentalizadores não podem ser analisados de

forma isolada, visto que cada um deles tem uma contribuição interpretativa na Teoria do

Discurso. A posição dos demais11

são aleatórias, com exceção da “hegemonia” que aparece

acima dos demais, uma vez que, como mencionado acima, o conceito de hegemonia, é

inerente a Teoria da Hegemonia, elaborada a partir das influências do Peronismo argentino,

onde Laclau elabora uma ressignificação do conceito de hegemonia de Gramsci e passa a

entender a hegemonia a partir do arcabouço teórico associado a essa nova forma de olhar a

sociedade, a partir dos pressupostos pós-estruturalistas; e que posteriormente, instrumentaliza

teoricamente a construção da Teoria do Discurso.

Para o autor, a hegemonia é entendida como sendo a “relação em que uma

determinada identidade, em determinado contexto histórico, de forma precária e contingente,

passa a representar, a partir de uma reação equivalencial, múltiplos elementos”

(MENDONÇA E RODRIGUES, 2014, p. 53). O sentido de hegemonia desenhado pelo autor,

relaciona-se a um conteúdo particular assumindo a função de uma plenitude ausente. Isso

acontece quando um discurso particular passa a representar discursos ou identidades que

anteriormente encontravam-se dispersas, representando uma fixação de sentidos, ainda que

provisórios, precária e contingencial. Uma vez fixado como um discurso hegemônico,

imediatamente institui-se um corte antagônico entre ele e o que ficou de fora, ou seja, com

inúmeros outros discursos na disputa por uma nova significação da hegemonia.

Utilizando a Teoria do discurso, entendo, assim como Matheus (2013, p. 40),

que

A produção curricular, nessa perspectiva, é entendida como um

processo político marcado por articulações que criam cadeias de

equivalência dentro das quais certos sentidos curriculares são

hegemonizados. A produção curricular é permeada pela tensão ente a

lógica da equivalência e a lógica da diferença.

Nesse sentido, a produção curricular, assim como qualquer outra construção

política, é resultado do conflito e da negociação de demandas ligadas a diversos agentes

envolvidos na educação, que conseguem estabelecer um conjunto de “necessidades”, e

11

Para a elaboração desse quadro teórico sobre a Teoria do Discurso utilizei apenas alguns dos instrumentalizadores teóricos que dialogam com a pesquisa. Deixo registrado que outros instrumentalizadores foram propositalmente escapados desse quadro.

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acabam deixando de lado outras demandas que lhes eram necessárias anteriormente a

negociação. “Isto quer dizer que o universal é parte de minha identidade na medida em que

sou penetrado por uma falta constitutiva, isto é, na medida em que minha identidade

diferencial fracassou no processo de constituição” (LACLAU, 2011, p. 57).

Para tanto, as lógicas de equivalência e diferença são fundamentais para a

compreensão da constituição de políticas de currículo. No caso do objeto de estudo dessa

pesquisa, entendo que o Programa São Paulo Faz Escola12

é constituído a partir do jogo de

negociações de diferentes demandas associadas a um discurso fundamentado na defesa de

uma educação de “qualidade”. Para tanto, diversos grupos sociais entram em um campo

equivalencial de que a educação básica e pública do Estado precisa passar por profundas

mudanças em prol da qualidade da educação. Dessa maneira, uma parte da comunidade

(famílias e os próprios alunos), dos professores e demais sujeitos escolares, da comunidade

disciplinar, de instituições governamentais e do próprio Estado se unem em torno do

significante “qualidade” e fixam um sentido discursivo para ele, tornando-o universal de

modo que passe suturar as ações das políticas educacionais do São Paulo Faz Escola, a

exemplo da produção, distribuição e implementação dos cadernos de atividades e do professor

que devem ser utilizados por todos, também chamados pela comunidade escolar de

“caderninhos”13

. A outra parte, que ficou de fora dessa articulação equivalencial continuará

defendendo um ou vários outros sentidos para o significante qualidade a partir de outras

demandas, que nesse momento tornam discursos particulares ou o exterior constitutivo do

próprio discurso universal.

Considerando que essa relação construída em torno da lógica equivalencial

constitui-se enquanto contingencial e provisória, sujeita a reformulações a depender das

demandas de cada um desses grupos, compreendemos que junto a essa constituição, as

demandas não associadas ao processo de negociação, representadas pela lógica da diferença,

rapidamente aparecerão na disputa pela significação das políticas de currículo. Por exemplo,

se existe um consenso entre os diferentes grupos de que o que se espera alcançar é a qualidade

da educação, internamente a esses grupos, há também opiniões divergentes a respeito da

12

No segundo capítulo apresentarei o Programa São Paulo Faz Escola com maior detalhamento. 13

Utilizaremos o termo “caderninhos” para designar esse material apostilado construído pelo Programa São Paulo Faz Escola em forma de Caderno do Professor e Caderno do Aluno, mas que no cotidiano escolar acabou se tornando os “caderninhos”.

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31

definição do sentido de qualidade, ou qual a ação política a ser utilizada para que se alcance

essa qualidade.

O fechamento de uma cadeia de equivalência é garantido por uma

diferença que foi expulsa, um antagonismo que ameaça e ao mesmo

tempo constitui a própria cadeia. A defesa de determinada proposta

curricular, nesses tempos, acontece por oposição a uma diferença, um

discurso curricular que ameaça a sua constituição, que justifica a

articulação e atua como um exterior constitutivo da cadeia

significativa (MATHEUS, 2013, p. 41).

As demandas se articulam e se posicionam à medida que se sentem ameaçadas

por outras demandas, e tornam-se temporariamente equivalentes. Nesse momento, não há a

eliminação da diferença, mas sim a equivalência temporária.

Com isso mente, para desenvolver o arcabouço teórico utilizado para a leitura

do objeto de pesquisa, apresentarei nos subtítulos abaixo três discussões teóricas: i. A

definição conceitual de universalismo e particularismo dentro da Teoria do Discurso,

identificando como os leio dentro da minha pesquisa; ii. A qualidade da educação enquanto

discurso antagônico ao projeto do estado de São Paulo; iii. Os professores e a formação

docente enquanto corte antagônico ao discurso da qualidade da educação.

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32

1.2. Universalismo e Particularismo como categorias instrumentalizadoras na análise do

objeto de estudo

A caracterização do contexto histórico em que Laclau elabora a teoria

apresentada acima, permite concluir que o autor visualiza o surgimento de demandas

particulares, que não dialogam totalmente com as demandas representadas pela maior parte da

sociedade. A crise apontada nas discussões acima demonstra, para o autor, uma crise das

perspectivas universalistas, e, em contraposição, o aparecimento de múltiplas identidades

étnicas, sociais e políticas, concluindo-se que

a ideia de valores universais, sustentada pelo ocidente, encontra-se,

hoje, fortemente atacada. O pós-modernismo, ao afirmar a queda das

certezas impostas pela racionalidade ocidental moderna, significou

uma abertura voltada à ideia de pluralismo cultural e respeito às

diferenças. Dentro desse cenário, as ideias de tolerância e

multiculturalismo buscam dar algumas respostas às tensões surgidas

entre universalismo e particularismo (GIACAGLIA, 2014, p. 94).

Assim, “a queda da ideia do sujeito universal e absoluto permite pensar o

surgimento e proliferação de subjetividades e a ideia de identidades múltiplas não apenas no

âmbito social, mas também na esfera individual” (GIACAGLIA, 2014, p. 96). Para a autora, a

partir da análise da teoria de Laclau, o que se inicia é um interesse sobre subjetividades.

Laclau (2011, p. 50), elabora um resgate de como a questão da universalidade e

da particularidade vem sendo apresentada ao longo da história. Na filosofia antiga clássica, o

autor apresenta o universal como transparente à razão e o particular como corrupção. O

universal é apresentado contendo um conteúdo próprio e o particular apresenta conteúdo

apenas quando é colocado em relação com o universal. Para o cristianismo, o universal é

apresentado enquanto divino, sendo acessado apenas por meio de uma revelação, e o

particular é visto como uma encarnação. Ambos são constituídos como identidades plenas,

mas não ocorre uma relação entre eles, apenas quando há intervenção divina. Por fim, na

modernidade, a razão comporta-se como o universal e o particular encontra-se no sujeito

moderno, no burguês contaminado pela cultura europeia que disputa pela universalização de

seu particularismo por meio da expansão colonial em outros espaços (GIACAGLIA, 2014, p.

96).

No entanto, Laclau entende que essas três concepções de universalismo e

particularismos não conseguem dar conta de responder às questões sociais contemporâneas.

O espetáculo das lutas políticas e sociais dos anos 1990 parece nos

confrontar, como foi dito, com uma proliferação de particularismos,

enquanto o ponto de vista da universalidade vai cada vez mais sendo

posto de lado como um sonho totalitário e ultrapassado (LACLAU,

2011, p. 54).

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33

Nas palavras acima, o autor apresenta o olhar do universalismo e

particularismo enquanto método de análise das demandas sociais contemporâneas. Após isso,

ele apresenta uma ideia fundamental para entender a relação entre esses dois

instrumentalizadores teóricos. O universalismo constitui-se como tal a partir de várias

demandas particulares que, por meio de negociações vão construindo articulações e

representam, em determinado momento, um conjunto de demandas unificadas e

provisoriamente estáveis dominando a relação de poder que há entre o universalismo e

particularismo.

Para Laclau (2011), a relação entre universalismo e particularismo vai além de

uma relação de poder, eles dependem um do outro para existir. Para compreendermos as

posições entre universal e particular, precisamos reconhecer a necessidade desses dois

instrumentalizadores serem analisados em relação um com o outro. Laclau elenca dois

motivos pelos quais o universalismo e o particularismo são dependentes um do outro para

existir. O primeiro argumento utilizado pelo autor é o de que, ao afirmarmos um

particularismo puro, independente do conteúdo de universalidade, teríamos que aceitar que

qualquer demanda particular teria o direito à autodeterminação, inclusive demandas

associadas a práticas antissociais. Assim, grupos que buscam alcançar demandas muito

distintas, ao certificarem-se da impossibilidade de atingir todas as demandas, terão que

recorrer a demandas mais gerais, cedendo e negociando a sua própria demanda particular

àquelas que no momento se apresentam como universais.

Uma segunda razão para a impossibilidade do particularismo puro, segundo

Laclau (2011) é que, supondo que exista uma possibilidade da coexistência de todas as

demandas particulares (o que o autor nega ser possível no primeiro argumento sobre a

impossibilidade do particularismo puro, mencionado acima), essas demandas não estariam em

uma relação antagônica entre si, mas existiriam de forma harmônica e coerente. Para o autor,

Essa hipótese mostra claramente porque a defesa do puro

particularismo é, em última análise, inconsistente. Pois, se cada

identidade estiver numa relação diferencial, não antagonística com

todas as outras, então a identidade em questão será puramente

diferencial e relacional; assim, pressuporá não só a presença de todas

as outras identidades, mas também o fundamento total que constitui as

diferenças enquanto diferenças (LACLAU, 2011, p. 55).

Essa relação puramente diferencial, para Laclau, garantiria a manutenção do

status quo, uma vez que essa relação diferencial não pressupõe o antagonismo, nem as

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relações do poder entre os grupos, logo, inviabilizaria o conflito como a dimensão da

democracia radical.

Após a análise dessas questões, Laclau (2011) propõem a existência de um

universal como parte de uma falta constitutiva em si, surgindo a partir de um particular

incompleto, uma identidade específica que na luta das disputas por significação universal,

consegue uma representatividade significativa. Definindo, dessa forma, a relação entre o

universal e o particular: “o universal é o símbolo de uma plenitude ausente, e o particular

existe apenas no movimento contraditório da afirmação simultânea de uma identidade

diferencial e seu cancelamento por meio de sua inclusão num meio não diferencial”

(LACLAU, 2011, p. 57).

Utilizo as concepções teórico-metodológicas apresentadas por Laclau, com o

objetivo de ler ou encontrar o meu próprio objeto de pesquisa. Entendo que o “universal”,

nesta pesquisa, se relaciona a política curricular instituída pelo Estado de São Paulo,

representada pelo Programa São Paulo Faz Escola. Esse universal foi se constituindo por meio

de demandas sociais particulares em diferentes âmbitos que se articularam em torno de uma

cadeia de equivalência: a busca pela qualidade da educação na rede de ensino básica paulista.

Assim, o universal é entendido como a política curricular hegemônica, que provisoriamente

assume certa função universal (LACLAU, 2006).

Por outro lado, os diversos particularismos podem ser entendidos por qualquer

outra demanda que após a visualização dos documentos curriculares produzidos pelo

Programa São Paulo Faz Escola, não se sentem representados e entram em uma cadeia de

diferença com as medidas propostas pelo Programa, novamente buscando articular-se em

torno de suas demandas particulares, e, posteriormente, negociando com outras demandas,

formando cadeias de equivalência e buscando instituir um outro universal a partir dessas

demandas. Para esta pesquisa, os particularismos a serem considerados estão associados aos

discursos que os professores de geografia da rede pública de ensino paulista carregam e

defendem em oposição às ações da política educacional do Estado, os quais serão

apresentados e darei voz no último capítulo desta dissertação. Esses professores, entram em

conflito com a proposta dos “caderninhos” apresentados como material didático para as

disciplinas, mas não fazem isso em sua totalidade. Alguns deles o negam totalmente; outros o

utilizam em algumas de suas propostas; e ainda existe um grupo de professores que acredita

que os documentos didáticos são de qualidades, mas o negam enquanto política curricular,

alegando que a utilização completa desses documentos, assim como pretendido pelo Estado,

acabaria por negar a autonomia docente e impossibilitando seu trabalho enquanto intelectual.

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35

Dessa maneira, é possível entender que universalismo (políticas curriculares do

Estado de São Paulo), e particularismos (discursos dos professores da rede pública de ensino),

estão em uma relação estreita, uma relação que como afirma Laclau (2011), necessitam da

dependência mutua para existirem. Nesse sentido, os caderninhos materializam um sentido de

qualidade de educação baseado na prescrição curricular e padronização didático-pedagógica

das ações e da rotina da sala de aula, uma vez que todos os professores da rede deveriam

aplicar o mesmo plano de aula para cada um dos conteúdos do material.

Por sua vez, para a maioria dos professores, se faz necessário algum material

didático para que os alunos possam aplicar os conhecimentos desenvolvidos em sala de aula.

Com isso em mente, inicialmente pensei: se os professores desejam um material didático para

apoiar as aulas, por que não utilizam os “caderninhos” mesmo que apenas em momentos que

lhes são necessários? Qual o objetivo do Estado ao fornecer esse material didático em que são

apresentados aos alunos da rede apenas atividades práticas, sem apresentação de qualquer

conceito teórico associado à disciplina? Para responder essas inquietações, inicialmente

apresento algumas outras reflexões sobre a Teoria do Discurso, pensando em como fazer a

leitura dos documentos curriculares instituídos enquanto política curricular do Estado de São

Paulo.

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36

1.3. O discurso da “qualidade da educação” e seu corte antagônico: a qualidade da

formação docente

Inicialmente proponho dois questionamentos relacionados às políticas

curriculares do Estado de São Paulo. A primeira delas é: qual a relação entre o objetivo

instituído pelo Estado – a busca pela qualidade da educação -, e a construção dos materiais

didáticos representados pelos “caderninhos”? Também questiono por que os investimentos do

Estado se concentraram em materiais didáticos, ao invés de qualquer outro quesito de

organização do espaço escolar, da qualificação docente e de um plano de carreira vantajoso

para o professor?

Durante a análise do contexto de elaboração e dos discursos expostos nos

documentos curriculares, é perceptível que o governo estadual paulista, na busca pela

qualidade da educação, enxerga que existe uma barreira a ser vencida para que seu

planejamento estratégico alcance o objetivo final. Essa barreira, segundo ele, não se baseia

nas políticas estabelecidas pelo Estado, uma vez que a elaboração desse documento dialogou

com campo teórico científico, bem como com as experiências cotidianas das escolas, “partiu

da recuperação, da revisão e da sistematização de documentos, publicações e diagnósticos já

existentes e do levantamento e análise dos resultados de projetos ou iniciativas realizados”

(SÃO PAULO, 2010, p. 7), construindo um documento, segundo ele, de excelência.

Utilizando o discurso de modernas e renovadoras, prometendo promover a qualidade da

educação, o documento define que o Estado pretende reformular a cultura escolar, criando

“uma escola à altura de seu tempo” (SÃO PAULO, 2010, p. 11), em que “o currículo se

compromete em formar crianças e jovens para que se tornem adultos preparados para exercer

suas responsabilidades (trabalho, família, autonomia etc.) e para atuar em uma sociedade que

depende deles” (SÃO PAULO, 2010, p. 12).

Com esses discursos textuais marcados no documento curricular, entendo que

fica subentendido que o “planejamento eficaz” proposto pelo governo em forma de uma

reforma curricular, pode ser lido enquanto um discurso marcado pela oposição às políticas

curriculares anteriores, onde a escola não se apresentava enquanto contextualizada ao atual

momento de desenvolvimento da sociedade e que agora, a partir da execução dessas novas

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37

políticas, com materiais adequados, e a renovação da escola, não há motivos para que a

qualidade da educação não seja alcançada14

.

Discursivamente, vai sendo produzido um sentido de que a reforma curricular é

capaz de salvar as escolas paulistas e resgatar a qualidade da educação. Caso isso não

aconteça, o motivo não pode estar associado aos documentos curriculares, mas sim a outras

questões, tais como a atuação e o trabalho docente. Nesse sentido, as políticas educacionais do

São Paulo Faz Escola e do documento curricular ao se instituírem como discursos

hegemônicos criam seu corte antagônico: a oposição dos professores ao seu projeto.

Embora não explicitado de forma clara, o Estado de São Paulo elabora o

Programa São Paulo Faz Escola para atender a demanda dos professores da rede pública que,

segundo ele, apresenta um trabalho duvidoso em sala de aula, e que possivelmente é o

responsável por limitar os objetivos das políticas curriculares estaduais e condicionar o a tão

sonhada qualidade da educação a um fracasso total.

Isso pode ser notado nas palavras a seguir, extraídas dos documentos

curriculares produzidos pelo Programa São Paulo Faz Escola, onde é previsto o

monitoramento do trabalho docente a fim de garantir que as reformas pretendidas pelo Estado

sejam plenamente executadas:

essa ação, efetivada por meio do programa Educação — Compromisso

de São Paulo, é de fundamental importância para a Pasta, que

despende, neste programa, seus maiores esforços ao intensificar ações

de avaliação e monitoramento da utilização dos diferentes

materiais de apoio à implementação do currículo e ao empregar o

Caderno nas ações de formação de professores e gestores da rede de

ensino (CADERNO DO PROFESSOR, 2014-2017, p. 2, grifo meu).

Ao analisar esses discursos, entendo, a partir da teoria do discurso, que a

qualidade e a autonomia do trabalho docente é apresentada enquanto uma ameaça à política e

ao projeto de qualidade da educação almejado pelo Estado de São Paulo. Neste momento, a

lógica antagônica, construída a partir da relação entre docente e projeto de educação desejado

pelo Estado, passa a atuar na cadeia de diferença recém surgida. Assim, entendo que essa

lógica antagônica não opera a partir das identidades prontas, ou “pré-constituídas, mas

daquelas que têm suas próprias constituições negadas [a autonomia docente], tendo em vista

14

Vale reforçar que embora haja esse discurso, as políticas curriculares estaduais reproduzem uma visão de mundo semelhante desde 1994, quando Mário Covas assume o governo enquanto membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), partido esse que tem se mantido no governo do estado nos últimos 25 anos.

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38

que a presença do outro é identificada como a condição da impossibilidade da plena

constituição” (MENDONÇA, 2012, p. 208).

Essa impossibilidade da plena constituição, marca dois sistemas de

equivalências opostos, demarcados pela linha de oposição entre eles, definida como sendo o

corte antagônico; uma linha que aparece mais como um tracejado, do que uma linha

propriamente dita, isso porque esses dois sistemas de equivalências opostos (políticas

educacionais e autonomia docente), estão em relação e dependem um do outro para existir,

como tratarei mais à frente.

A ameaça antagônica é a condição de possibilidade discursiva para a

construção de cadeias de diferenças distintas. Assim, a partir do antagonismo é que o corte

antagônico, ou seja, o limite representado enquanto um impedimento para que a qualidade da

educação seja alcançada se constitui. Mendonça e Rodrigues (2014, p. 52), demonstram a

forma com que apresento as políticas curriculares enquanto um corte antagônico da realização

de uma educação de qualidade.

Enfatizamos, portanto, que o ponto fundamental para o entendimento

da relação antagônica é que essa ocorre entre um “exterior

constitutivo” que ameaça a existência de um “interior”. Em outras

palavras: um discurso tem bloqueado sua expansão de sentidos pela

presença de seu corte antagônico.

O exterior constitutivo apresentado pelos autores é representado pelo trabalho

docente em sala de aula, sua autonomia profissional, considerado insuficiente para atender as

demandas do interior, representado pelo Estado de São Paulo e seu desejo pela qualidade da

educação. O corte antagônico, a atuação docente, ameaça a existência de uma educação de

qualidade na perspectiva discursiva do Estado de São Paulo.

Na relação entre “interior” e “exterior”, onde o corte antagônico é apresentado

enquanto limite entre esses dois polos, ainda é preciso considerar que,

paradoxalmente, segundo Laclau (1996), ao mesmo tempo em que o

exterior constitutivo (discurso antagônico) ameaça a constituição do

interior (discurso antagonizado), ele é também a própria condição da

existência do interior, na medida em que esse último se constitui sob a

ameaça da presença do primeiro (MENDONÇA E RODRIGUES,

2014, p. 52).

Os autores chamam atenção a uma questão central para uma análise pós-

estruturalista que é a visão dos objetos de estudo para além de um único centro, responsável

pela construção de verdades associadas a uma posição determinada e fixa dos sujeitos. O corte

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antagônico, ao operar na separação entre o que tende a se universal e o que é particular

(PANUTTO, 2017), marcando, dessa maneira as políticas curriculares do Estado de São

Paulo, e o que limita a sua instituição, o particular, a atuação do trabalho e a autonomia

docente.

1.4. Significante Vazio como instrumentalizador teórico que auxilia na compreensão da

busca pela “qualidade da educação”

Durante o período em que estudamos a Teoria do Discurso enquanto grupo de

pesquisa, nos deparamos com a ideia de significante vazio, apresentada por Laclau (2011),

exemplificada com o contexto político de reivindicações construídas pela classe operária em

contestação ao modelo de desenvolvimento socioeconômico estabelecido. O autor menciona

que os operários apresentavam múltiplas demandas particulares, relacionadas a vivências e

experiências mais restritas em seus cotidianos, no entanto, eles entenderam que para disputar

pela significação do modelo de desenvolvimento a ser adotado, era necessário que as

demandas individuais fossem colocadas em segundo plano, e que houvesse uma unificação

entre o objetivo geral dos operários, que envolvia a oposição ao sistema operante.

O autor menciona, dessa maneira, que a união entre os operários era feita não a

partir de algo positivo, mas a partir do seu comum desejo de negação do sistema vigente,

construindo uma série de significados para a luta operária, mas que apareciam como uma

significação geral de negação do sistema daquele momento, apresentado como um inimigo

comum. Com a construção da possibilidade de que um único significante poder apresentar

diversos significados, com base nas possibilidades de significação não estabelecidas, é que o

significante vazio começa a fazer sentido para essa pesquisa.

Laclau (2011, p. 68), afirma que

um significante vazio só pode surgir se há uma impossibilidade

estrutural da significação e apenas se essa impossibilidade puder

significar uma interrupção (subversão, distorção etc.) da estrutura

do signo. Ou seja, os limites da significação só podem anunciar a si

mesmos como impossibilidade de realizar aquilo que está no

interior desses limites -se estes pudessem significar-se de modo

direto, seriam internos à significação; logo, não seriam limites em

absoluto (LACLAU, 2011, p. 68).

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A partir disso, compartilho da angústia apresentada pelo autor ao se perguntar “o

que, neste caso, determina que um significante, em vez de outro, assuma, em diferentes

circunstâncias, essa função significativa?” (LACLAU, 2011, p. 73). Entendo que esse

questionamento é fundamental para a compreensão do meu objeto de pesquisa e da condição

política que a escolha de alguns significados para o significante qualidade da educação, me

revela.

Essa questão será trabalhada ao longo de todo o texto, uma vez que no próximo

capítulo construirei uma reflexão sobre o Programa São Paulo Faz Escola, destacando alguns

dos sentidos para qualidade da educação que tentam ser fixados pela política curricular.

Ademais, no capítulo 4, demonstrarei, por meio da análise das entrevistas, outros discursos

que também entram na disputa pela significação do sentido para qualidade da educação,

ocasionando uma relação provisória e instável, baseada na força que cada um dos sentidos

possui em determinado momento.

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CAPÍTULO 2: O PROGRAMA SÃO PAULO FAZ ESCOLA E O CONTEXTO DA

ESCOLA: QUEM LIMITA QUEM?

Inicialmente apresento uma breve contextualização sobre as diferentes teorias

de currículo, com o objetivo de compreender teoricamente o objeto de estudo dessa pesquisa.

Panutto (2017), elabora um levantamento histórico envolvendo as diferentes

concepções teóricas acerca do currículo, baseando-se em Lopes e Macedo (2011), Silva

(2002) e Pacheco (2012), retomo a sua construção, adicionando algumas questões teóricas

originadas das minhas leituras de Lopes e Macedo (2011), e trago ao meu texto uma

contextualização dos diferentes momentos na teoria curricular a fim de posicionar a

concepção de currículo adotada nessa pesquisa, bem como subsidiar a reflexão sobre as

negociações, os conflitos, as permanências e as mudanças na teoria curricular.

Ressalto que a luz da teoria do currículo, entendo que as concepções teóricas

apresentadas abaixo são apenas discursos hegemonizados que no jogo de negociações ganham

força junto as demais para representar o campo do currículo em determinado momento. Mas

por que essa ficção nos ajuda a compreender o campo curricular? Porque elas nos permitem

entender quais as relações de poder operam para a constituição de determinadas formas de

pensar, “sufocando outras possibilidades sequer passíveis de serem mencionadas por nós”

(LOPES E MACEDO, 2011, p. 10).

Com base em suas leituras, Panutto (2017) elenca cinco grandes formas de se

pensar o currículo escolar apresentadas em forma de correntes da teoria curricular: i.

Eficientismo social; ii. Progressivismo; iii. Ecletismo; iv. Teorias críticas de currículo; v.

Associadas a concepções teóricas pós-estruturalistas

A primeira delas surge a partir da necessidade do momento histórico associado à

inserção das indústrias na técnica de produção, dentro desse contexto, o currículo servia

enquanto um instrumento para formar mão de obra para as fábricas, incutir sentidos

nacionais-patrióticos (em algumas nações recém-formadas), e ensinar o controle social ao

futuro cidadão. O objetivo era que “a industrialização da sociedade deve se dar sem rupturas

e em clima de cooperação” (LOPES E MACEDO, 2011, p. 22), definindo esse caráter de forte

controle social. Nesse contexto, o currículo baseava-se em concepções científicas e se

comportava como uma espécie de manual indicativo de objetivos, procedimentos e métodos

que possam ser mensurados. Além de preocupar-se com o que ensinar, um dos objetivos era a

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racionalização dos resultados educacionais, que deveriam ser especificados e medidos,

assemelhando-se a um modelo econômico empresarial.

Uma segunda teoria de currículo é chamada pelos autores de referência de

progressivismo, associado ao entendimento de que o currículo capacitaria a escola para

resolução de problemas sociais. Assim, segundo Lopes e Macedo (2011), os mecanismos de

controle social eram menos coercivos do que no momento anterior. O currículo era tido como

o meio para resolver as desigualdades sociais geradas, principalmente, a partir da vida urbana

e do maior desenvolvimento do capitalismo, e seu objetivo central era “formar indivíduos

capazes de atuar na busca dessas mudanças” (LOPES E MACEDO, 2011, p. 23). Como um

dos representantes dessa teoria a autora lista o filósofo e pedagogo, John Dewey e suas ideias

que se propagaram no Brasil por meio da Escola Nova, a qual apresentarei durante as

discussões sobre diferentes concepções teóricas do campo da didática.

A terceira teoria é entendida como eclética, uma vez que mistura diferentes

concepções envolvendo a teoria eficientista e progressivista, embora as autoras (Lopes e

Macedo), apontem que essa concepção se aproxima muito mais da concepção teórica

eficientista do que da progressivista. Um de seus representantes é Ralfh Tayler, um educador

também norte-americano que apostava na “seleção e organização das experiências de

aprendizagem e na definição dos objetivos de ensino” (PANUTTO, 2017, p. 29). Para este

autor, a eficiência do ensino continua a ser medida a partir dos resultados da avaliação e do

rendimento dos alunos, construindo um currículo semelhante a uma técnica para alcançar os

resultados almejados. Para ele e os que o seguem, a estrutura escolar é baseada na seguinte

abordagem linear: “definição de objetos de ensino; seleção e criação de experiências de

aprendizagem apropriadas; organização dessas experiências de modo a garantir maior

eficiência ao processo de ensino; e avaliação do currículo” (LOPES E MACEDO, 2011, p.

25). Segundo as autoras, nesse momento o autor cria uma agenda para a teoria curricular,

considerando o currículo enquanto um dos meios para a obtenção de bons resultados em

avaliações.

A quarta teoria de currículo é representada por ideias críticas associadas às

transformações político-sociais: protestos estudantis de 1968 na França, Movimento

Contracultura – Hippy, Movimentos Feministas, Movimento Negro e de Libertação Sexual.

Esses movimentos criam demandas por mudanças, buscando uma alternativa a

universalização da forma de se pensar e construir o mundo, iniciando mais uma crítica aos

ditos modelos tradicionais de currículos. São alguns dos autores associados a esse movimento

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em que se pretende renovar o currículo ao olhá-lo criticamente: Bourdieu e Passeron; Browles

e Gintis; Althusser; Apple; Giroux; Paulo Freire; Saviani; Young; Goodson, entre outros.

Lopes e Macedo (2011) apontam que há ainda outro movimento teórico pensando

sobre o currículo. Iniciado nas últimas décadas do século XX e chegando ao Brasil na década

de 90, as ideias pós-estruturalistas embora sendo variadas, questionam os aspectos da

modernidade e ressaltam o lugar da linguagem na constituição do social. Vão além da ideia

(estruturalista) de que a linguagem tem a capacidade de representar o mundo, para os pós-

estruturalistas, a linguagem cria o mundo, por meio do que se fala.

Considerando o currículo a partir dessa perspectiva, como uma prática discursiva,

entendo que

A capacidade de unificar um discurso é em si um ato de poder, de

modo que as metanarrativas modernas precisam ser vistas como tal e

não como expressão da realidade. De forma semelhante, pode-se

entender os discursos pedagógicos e curriculares como atos de poder,

o poder de significação, de criar sentidos e hegemonizá-los (LOPES E

MACEDO, 2011, p. 40).

Portanto, cada uma das tradições curriculares acima é um discurso que se

hegemonizou nas disputas por significações. Panutto (2017), apresenta uma linha do tempo

das teorias de currículo trabalhadas por ela, baseadas nos autores mencionados acima.

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44

QUADRO 2: LINHA DO TEMPO DAS TEORIAS DE CURRÍCULO

Fonte: PANUTTO, 2017

Elaboração própria

BRA (Escola Nova)

Principais autores: Dewey

EUA (Eficientísmo e Progressivísmo)

Principais autores: Bobbit e Dewey

BRA (Módulo linear administrativo entre currículo e avaliação).

Principais autores: Tyler

BRA Pedagogia crítica

Principais autores: Freire

BRA Estudos pós-críticos

Principais autores: Silva

EUA (Modelo linear administrativo

entre currículo e avaliação) Principais autores: Tyler

EUA (Teorias da Correspondência

ou Reprodução) Principais autores:

Bowles e Gintis

(Teoria Reconceptualista) Principais autores:

Pinar

ING (Nova Sociologia da Educação)

Principais autores: Young, Goodson

FRA (Teorias da Reprodução).

Principais autores: Bourdieu & Passeron

EUA (Pedagogia crítica) Principais autores:

Apple e Giroux

FRA (Estudos Pós Críticos).

Principais autores: Derrida, Deleuze e Bathers

1920 1950 1960 - 1970 1970 - 1980 1990

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45

Dialogo com a autora e penso que

que todas essas teorias e correntes tem suas limitações e grandes

contribuições para o pensamento curricular, sendo necessário buscar

na história de cada teoria os pontos fortes que sejam úteis a (re)

interpretação de questões que se mantém atuais, mas que

constantemente precisam ser revistas e questionadas sob novas óticas

de leitura, por conta de novas demandas e práticas discursivas da

sociedade (PANUTTO, 2017, p. 45).

No entanto, acredito que uma “linha” do tempo não dialogue diretamente com

a intensão de demonstrar que as diversas teorias de currículo coexistem na produção

curricular atual. Embora eu entenda o currículo enquanto prática discursiva, de significação e

atribuição de sentidos (LOPES E MACEDO, 2011), ao analisar os documentos curriculares

contemporâneos nota-se a apresentação de posturas, visões de mundo, de currículo e de

educação, associadas a todos esses diferentes momentos apresentados acima. Assim, acredito

que para a representação diacrônica das teorias de currículo uma circunferência, representada

como setas apostadas para os dois lados, indicando o diacronismo, poderia apresentar-se com

uma potencialidade de entendimento muito maior. Nesse sentido, apresento o quadro abaixo

como proposta que me permite pensar a forma com que essas políticas vem sendo utilizadas

nos documentos curriculares.

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IMAGEM 1: REPRESENTAÇÃO DE UM RIZOMA, UMA PROPOSTA DE LEITURA DAS

POLÍTICAS CURRICULARES

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48

As imagens acima representam uma proposta de leitura para o currículo,

baseada nas teorias desenvolvidas por Deleuze e Guattari (1980), a ideia é transposta por

alguns autores para a leitura do currículo, onde se busca romper com a ideia de que se deve

construir alguns conhecimentos para depois, em outra etapa, o aluno encontrar-se capacitado

para a construção de novos saberes. Assim, utilizo a filosofia do rizoma para compreender a

forma com que os diferentes momentos da Teoria de Currículo são lidos nos documentos

curriculares. A Teoria Curricular, não se apresenta de forma linear, representada enquanto

uma superação, acompanhando apenas a concepção teórica em alta naquele momento, antes

disso, as diferentes concepções muitas vezes são utilizadas juntas nos documentos

curriculares contemporâneos de forma a expressar, a depender do momento da escrita e da

intencionalidade do documento, um conjunto de pensamentos distintos.

Assim, as políticas curriculares

são resultado da interconexão dos significados que são produzidos em

múltiplos contextos, dentre os quais podemos citar as escolas, o poder

público, por meio de suas secretarias/ministérios de educação, as

universidades, agências multilaterais, comunidades epistêmicas,

comunidades disciplinares, dentre outros (MATHEUS, 2013, p. 36).

Com essa breve retomada sobre as teorias de currículo, pretendo pontuar

alguns pressupostos teóricos que foram identificados na leitura do Currículo do Estado de São

Paulo. Mas, reafirmo que acredito que “qualquer manifestação de currículo, qualquer episódio

curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currículo é

um texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que faz apenas parcialmente” (LOPES E

MACEDO, 2011, p. 42).

A produção de sentidos curriculares é uma produção de políticas curriculares.

E por essa razão é que a compreensão do currículo baseada em concepções teóricas pós-

estruturalistas é potente para minha pesquisa, uma vez que busco compreender qual o sentido

e os discursos que o Programa São Paulo Faz Escola pretende criar.

Nas próximas linhas, contextualizo o momento histórico da criação do

Programa São Paulo Faz Escola, apresentando alguns de seus materiais parceiros: os

caderninhos e o Saresp; cujo objetivo pauta-se na compreensão dessa política curricular

enquanto uma medida prescritiva e com alto controle de sua atuação no ambiente escolar.

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2.1. A criação do Programa São Paulo Faz Escola enquanto um momento na política de

currículo do Estado de São Paulo

A fim de dialogar com o Currículo do Estado de São Paulo, inicialmente

construirei uma apresentação do Programa São Paulo Faz Escola dialogando com alguns

trabalhos já desenvolvidos sobre a temática (CAÇÃO, 2010, 2011; ROSSI, 2011;

CATANZARO, 2012; MELONI, 2013; FERIN, 2015; entre outros). Compreendo que o

programa se enquadra em um conjunto de políticas cuja finalidade determinada pela

Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP) consiste na transformação de seu

sistema educacional desenvolvido até o momento da instituição do programa, em busca da

almejada qualidade da educação na rede pública do Estado de São Paulo.

A pretendida transformação no sistema educacional paulista pautava-se no

conjunto de reformas aplicadas ao Estado de São Paulo a partir do ano de 1995, quando o

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) assume o governo estadual e se sucessede

ininterruptamente até os dias atuais, seguindo e aplicando os pressupostos neoliberais

apresentados ao mundo no Consenso de Washington, realizado no ano de 1989.

A partir disso, o Estado de São Paulo, liderando a economia do país, torna-se

pioneiro nas reformas liberais em diversas frentes; no caso da educação, isso acontece com o

objetivo de alcançar uma educação funcional a esse projeto de nação15

. Durante as gestões

“PSDBistas” que o estado vivenciou - Mário Covas (1995-2009); Geraldo Alckmin (2001-

2006); José Serra (2007-2010); Alberto Goldman (2010-2011); Geraldo Alckmin (2015-

2018); Márcio França (2018-2019), a pequena brecha ao governo PSDB, visto que este

pertencia ao PSB; João Dória (2019 – até o presente momento) -, grandes reformas foram

implementadas na educação básica paulista com o objetivo de atingir uma maior eficiência e

eficácia na gestão do dinheiro público, deslocando o foco de ação do eixo pedagógico para o

eixo administrativo (CAÇÃO, 2011). Dentre essas reformas inclui-se o fechamento das salas

de aulas, a reorganização das escolas em escolas do Ensino fundamental I, Fundamental II e

Ensino Médio, a municipalização do Ensino Fundamental I, a adoção da progressão

continuada, bem como a instauração do sistema apostilado, apresentado em forma de Caderno

15

“Projeto de nação” no seu sentido mais direto, uma vez que as reformas curriculares adotadas inicialmente no Estado de São Paulo, passam a esfera federativa em um nível nacional, representado pela recente construção da Base Nacional Curricular comum (BNCC), com pressupostos teóricos e visões de currículo atrelados às políticas curriculares praticadas a algum tempo na educação paulista, sendo, até mesmo desenvolvidas pelos mesmos profissionais que aqui atuaram.

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do Aluno e tendo como garantia de sua utilização o Sistema de Avaliação do Rendimento

Escolar do Estado de São Paulo – SARESP. Segundo Cação (2011), a partir dessas reformas

Desencadeia-se nova etapa da educação pública paulista marcada pelo

agravamento de problemas: aumento de número de alunos por sala de

aula; baixos salários; falta de professores; sucateamento de

infraestrutura e um novo problema, até então desconhecido, a

aprovação em massa de alunos, resultante da aplicação da progressão

continuada, rapidamente conhecida como “promoção automática” (p.

6).

Durante o governo de José Serra (2007-2010) foi lançado um amplo plano para

a educação paulista, pontuando dez metas para a melhoria da qualidade da educação, sendo

elas:

Todos os alunos de 8 anos plenamente alfabetizados; 2) Redução de

50% das taxas de reprovação da 8ª série; 3) Redução de 50% das taxas

de reprovação do Ensino Médio; 4) Implantação de programas de

recuperação de aprendizagem nas séries finais de todos os ciclos de

aprendizagem [...]; 5) Aumento de 10% nos índices de desempenho do

Ensino Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais; 6);.

Atendimento de 100% da demanda de jovens e adultos de Ensino

Médio com currículo profissionalizante diversificado; 7) Implantação

do Ensino Fundamental de nove anos, com prioridade à

municipalização das séries iniciais (1ª a 4ª séries); 8) Programas de

formação continuada e capacitação da equipe; 9) Descentralização

e/ou municipalização do programa de alimentação escolar nos 30

municípios ainda centralizados e; 10) Programa de obras e melhorias

de infraestrutura das escolas (CAÇÃO, 2011, p. 7).

Nesse contexto é criado o Programa São Paulo Faz Escola, em que o governo

paulista volta a pensar ações que “valorizem” a dimensão pedagógica, a fim de buscar a

“educação de qualidade” propagada em suas metas.

Sob discurso de garantir uma base comum a todos os alunos da rede pública de

ensino do Estado de São Paulo o programa tem servido, por meio da elaboração de materiais

didáticos, para a busca da prática do Currículo do Estado de São Paulo16

, como é possível

notar nas palavras abaixo, inseridas na plataforma online destinada ao programa e

disponibilizada no site da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo17

.

O São Paulo Faz Escola tem como foco unificar o currículo escolar

para todas as mais de cinco mil escolas estaduais. O programa é

16

Até o presente momento foram publicadas três versões do Currículo do Estado de São Paulo. A primeira, em 2008, quando era chamado de Proposta Curricular para o Estado de São Paulo. A segunda, com algumas revisões, foi publicada em 2010, sendo o Currículo Oficial do Estado de São Paulo. Enquanto que a última versão, publicada em 2012, é chamada de Currículo do Estado de São Paulo. 17

Disponível em < http://www.educacao.sp.gov.br/sao-paulo-faz-escola>

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51

responsável pela implantação do Currículo Oficial do Estado de São

Paulo, formatado em documentos que constituem orientações para o

trabalho do professor em sala de aula e visa garantir uma base comum

de conhecimento e competências para todos os professores e alunos.

(Site Programa São Paulo Faz Escola - grifo meu).

O programa apresenta-se enquanto articulador de políticas curriculares, que,

buscando lidar com o problema do baixo rendimento escolar, identificado por avaliações

externas, conduz, de forma centralizadora, a construção de um material didático

homogeneizador e disciplinador em que conteúdos e metodologias de ensino são prescritas ao

professor em forma de exercícios, chamados pelo material didático de Situações de

Aprendizagem.

No site da SEE/SP, na página destinada ao Programa São Paulo Faz Escola é

possível identificar dois grandes eixos em que o programa se propõe a atuar: i) na unificação

do currículo escolar; e ii) na qualidade de ensino. A partir deles, elaborarei uma análise desses

documentos curriculares (o site do Programa São Paulo Faz Escola, o Currículo do Estado de

São Paulo e os “caderninhos” de geografia), concentrada nos dois eixos discursivos

mencionados acima como orientadores dessa leitura.

Para tanto, trago novamente ao texto que minha compreensão do sentido de

discurso é construída a partir da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau (2011), na qual, por

meio de uma construção teórica que envolve múltiplos conceitos analíticos, entendidos

enquanto instrumentalizadores teóricos, apresentados acima. Para o autor, discurso consiste na

união de “palavras e ações, que tem natureza material e não mental e/ou ideal. Discurso é

prática - daí a noção de prática discursiva - uma vez que quaisquer ações empreendidas por

sujeitos, identidades, grupos sociais são ações significativas” (MENDONÇA e RODRIGUES,

2014, p. 49).

2.2. A política de integração curricular

Ao analisar o Currículo do Estado de São Paulo, percebe-se que o discurso da

integração curricular é construído ao longo do documento e elucida algumas concepções que

não aparecem de forma explicita. Após apresentar os cadernos dos gestores, dos professores e

dos alunos, pontuando a função de cada um deles, é apresentada a seguinte questão,

Além desse documento básico curricular, há um segundo conjunto de

documentos, com orientações para a gestão do Currículo na escola.

Intitulado Caderno do Gestor, dirige-se especialmente às unidades

escolares e aos professores coordenadores, diretores, professores

coordenadores das oficinas pedagógicas e supervisores. Esse material

não trata da gestão curricular em geral, mas tem a finalidade

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específica de apoiar o gestor para que ele seja um líder capaz de

estimular e orientar a implementação do Currículo nas escolas

públicas estaduais de São Paulo (SÃO PAULO, 2010, p. 7).

O Caderno do Gestor tem a função de instrumentalizar o gestor teoricamente para

que ele esteja capacitado para estimular ações pedagógicas que garantam a utilização do

Currículo do Estado de São Paulo, em especial dos materiais didáticos baseados nesse

currículo. Para tanto, percebe-se que o desejo de centralizar e prescrever os materiais

didáticos perpassam por vigilância e cobrança por parte da equipe gestora.

A política de homogeneização curricular é lida a partir da concepção teórica

adorada nessa pesquisa por meio do instrumentalizador teórico “universalismo”. Entendo que

a educação paulista pretende se universalizar em toda a rede de ensino, trabalhando a partir de

uma lógica controlada, massificada e restrita ao que se é determinado apenas pelo Estado de

São Paulo, enquanto política curricular. Embora haja conflitos entre vários particularismos

que não estão representados por essa política universal, e que buscam alcançar forças para

serem ouvidos e controlarem a atual política curricular, o universalismo, com uma força de

negociação maior, acaba tornando-se a política temporariamente hegemônica.

A imagem abaixo é vinculada ao site do Currículo do Estado de São Paulo e

apresenta alguns discursos indicando a pretendida integração curricular, tais como: O

Currículo do Estado de São Paulo é a “base para cinco mil escolas”; ou quando associam o

currículo como a “orientação básica para o trabalho do professor em sala de aula”, estando

subentendido a utilização dos “caderninhos” que acabam conduzindo a aplicação do currículo

como um todo.

Imagem 2: Currículo do Estado de São Paulo

Fonte: http://www.educacao.sp.gov.br/curriculo

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53

Na busca dos resultados unitários, uma armadilha que aparece ao currículo é a de

que, na tentativa de distribuir conhecimentos comuns a todos, esse conhecimento pode passar

a ser entendido enquanto um objeto pronto, desconsiderando o fato deste ser fruto de uma

construção social e que por isso é traduzido de diversas maneiras, a depender do sujeito, é

negociado e produzido no contexto de cada realidade (LOPES, 2015).

Segundo Lopes (2015),

Na medida em que se opta por atuar de forma centralizada na política

de currículo, há uma redução das políticas à tentativa de controlar as

leituras das bases/padrões/propostas curriculares visando alcançar

(supostamente) a qualidade da educação. A política de currículo passa

a ser uma estratégia calculada para determinado fim preestabelecido

(p. 456).

No decorrer do texto, a autora pontua que, a fim de garantir que essas políticas

curriculares centralizadoras sejam cumpridas, são elaborados exames, distribuídos livros

didáticos, além do controle dos projetos; tudo objetivando que as políticas curriculares sejam

plenamente executadas nas escolas. É o que acontece com as políticas curriculares do Estado

de São Paulo, materializadas pelo próprio currículo, pelos “caderninhos” (do gestor, do aluno

e do professor) e pelas avaliações externas, no caso o SARESP – Sistema de Avaliação de

Rendimento Escolar do Estado de São Paulo.

Dentro desse contexto de controle e visando o comprimento de políticas

curriculares, há medidas mais subjetivas, que só aparecem no contexto escolar, ou seja, não

são esclarecidas ou relatadas, ou mesmo consideradas enquanto possibilidade, em nenhum

documento ou material fornecido por essas políticas. Em uma entrevista que realizei com uma

professora da rede estadual de ensino foi possível notar a partir de sua resposta quando

indagada sobre como eram os momentos de discussões teóricas e diálogos entre professores

desenvolvidos no ATPC – Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo. De acordo com a

professora,

a discussão oficial na escola é o ATPC. Eu já trabalhei em

escolas que tinha um corpo docente que não debatia nada.

Mas essa escola que eu estou agora tem um corpo docente

bem firme, que pensa e que debate. É claro que alguns

apresentam ideias que eu não concordo, mas é isso aí né?

A gente trabalha no âmbito da diversidade. Mas só tem o

ATPC mesmo como espaço de debate. Nele são discutidos

temas do dia a dia na sala de aula, mas é sempre tudo

mandado pela diretoria de ensino...”

[...]

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“A todo tempo a coordenação, a gestão, a PCNP

(Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico) e a

supervisão, porque elas frequentam essas reuniões, elas

estão sempre preocupas em “espezinhar” o professor. É

isso que eu sinto, entendeu?

O que fica evidente é que os particularismos, trabalhados no capítulo anterior

como sendo inerentes ao universalismo, uma vez que os dois estão em constante relação, é

negado pelo Estado, que sob um discurso ocultado nos documentos curriculares, mas que

entendo que esteja relacionado ao corte antagônico do projeto que busca a qualidade da

educação, a formação docente. Assim, para contornar essa situação, o Estado apresenta as

medidas centralizadoras que tem como objetivo o apagamento das medidas particulares

associadas a prática docente individual, construída a partir de um processo de significação de

experiências distintas tanto no processo de formação da carreira docente, quanto na

experimentação de caminhos e decisões cotidianas. Acredito que essa diferenciação da

formação docente pode ser usada para enriquecer o processo de ensino e aprendizagem nas

escolas, e acaba sendo desconsiderada devido a visão de mundo que vem sendo implementada

nas políticas curriculares do Estado de São Paulo.

A Diretoria de Ensino, representada pelo professor coordenador, cuja função é o

monitoramento da execução das políticas curriculares adotadas em âmbito estadual, acaba

atuando no conjunto de medidas que visam garantir o estabelecimento das políticas

curriculares para o Estado de São Paulo.

O principal argumento levantado pela Comunidade Disciplinar18

(GOODSON,

1997) envolvida na elaboração do Currículo de São Paulo, concentra-se no fato de que a

integração curricular e suas medidas que visam garantir esse objetivo, permitem que os alunos

de baixa renda, que tem tido acesso à escola apenas em períodos mais recentes, tenham a

mesma formação que os alunos que historicamente sempre frequentaram as escolas no Brasil.

No entanto, entendo que esse argumento é facilmente refutado, basta olhar comparativamente

para a configuração das escolas públicas e privadas, especificamente no Estado de São Paulo,

é possível perceber que há uma grande distinção entre a funcionalidade de cada uma delas. A

maioria das escolas privadas do estado configuram-se e reconfiguram-se com o objetivo

central de obterem um resultado positivo de seus alunos em exames de vestibulares. Esse tipo

18

Goodson entende por comunidade disciplinar todos os agentes institucionais envolvidos na elaboração de documentos curriculares.

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de escola considera o currículo como secundário, uma vez que o documento orientador de

políticas curriculares são os próprios exames de vestibulares que têm potência para

reconstruir, ou atualizar, os materiais didáticos utilizados por essas instituições19

.

2.3. A qualidade da educação enquanto significante vazio

O que venho desenvolvendo neste texto é um posicionamento crítico com relação

a uma política curricular centralizadora que com o objetivo de afirmar-se, assim como toda

proposta curricular, apresenta-se como antagônica a proposta anterior, como proporcionadora

de um certo salvacionismo à educação que vinha sendo desenvolvida antes de sua produção20

.

Esse discurso acaba por construir, mesmo que apenas no imaginário dos agentes envolvidos

com o documento, a ideia de que a almejada qualidade da educação está sendo construída.

São tantas as demandas sociais em relação ao que vem a ser

qualidade da educação, desde aquelas sintonizadas com as

condições socioeconômicas de vida até as relações interpessoais

nos lugares de trabalho, que a qualidade se esvazia de

significado. É por meio desse vazio, nunca completo, sempre

tendencialmente vazio, que a expressão qualidade da educação

se torna capaz de aglutinar diferentes demandas e constituir

diferentes sujeitos que atuam em seu nome, contrapondo-se a

uma ideia de escola sem qualidade. Não se atribui aqui um

sentido de negatividade ao esvaziamento. Defendemos ser desse

modo político que se opera e se produz hegemonia (MATHEUS

E LOPES, 2014, p. 340).

Os múltiplos sentidos atribuídos a qualidade da educação em diferentes

documentos curriculares não são fixos, e, como nos apresenta as autoras acima, estão sujeitos

a diferentes demandas existentes no momento de sua construção e em sua constante

reconstrução. A partir da Teoria do Discurso, as autoras entendem que o sentido de qualidade

da educação apresenta-se enquanto múltiplos sentidos e não fixados. Assim, apesar de

elaborar uma reflexão acerca do sentido de qualidade de educação apresentado nos

documentos, o principal foco dessa análise concentra-se em entendê-lo enquanto medida

19

A afirmação que faço aqui, sobre da situação das escolas particulares, é feita a partir de minhas próprias observações s por estar inserida nesse contexto, como professora de geografia de um colégio particular, bem como a partir de diálogos e entrevistas informais realizadas com colegas de trabalho que também atuam em escolas particulares. O enquadramento específico com o Estado de São Paulo acontece devido à experiência restringir-se nesse contexto, bem como devido ao recorte deste trabalho. 20

Realizamos algumas investigações que demonstraram que o pensamento inovador de cada documento curricular, que se denomina como repleto de mudanças, quando paramos para examiná-los notamos que são muito mais comuns as permanências do que mudanças (ERMANI e STRAFORINI, 2015).

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política, compreendendo quais as intencionalidades que o discurso pela busca da qualidade da

educação tem sido construído enquanto política curricular, bem como quais tem sido as

consequências para os principais envolvidos nesse assunto, marcando o significante qualidade

da educação com múltiplos significados que estão sempre em disputas pela fixação de

sentidos, o Programa São Paulo Faz Escola é apenas um deles.

Ao analisar o Currículo do Estado de São Paulo é claro que o significante

associado ao conceito de qualidade de educação não aparece claramente definido, no entanto,

é possível notá-lo em dois trechos específicos. O primeiro deles considera a qualidade de

educação como sendo necessária no contexto atual de massificação da educação brasileira:

Nesse contexto, ganha a importância redobrada a qualidade da

educação oferecida nas escolas públicas, que vêm recebendo, em

número cada vez mais expressivo, as camadas pobres da sociedade

brasileira, que até bem pouco tempo não tinham efetivo acesso à

escola. A relevância e a pertinência das aprendizagens escolares

construídas nessas instituições são decisivas para que o acesso a elas

proporcione uma real oportunidade de inserção produtiva e solidária

no mundo (SÃO PAULO, 2012, p. 9 – grifo meu).

O fragmento do texto acima diz respeito à qualidade da educação das escolas

públicas, elucidando que a entrada da população mais pobre à escola acaba gerando uma

demanda de uma qualidade específica, voltada para atender as necessidades desses alunos. A

qualidade específica é significada no trecho acima por proporcionar o “acesso” e

“oportunidade de inserção produtiva e solidária no mundo”, um objetivo que pode ser

entendido de diversas maneiras, tendo em vista as inúmeras formas de interpretações dessas

questões. Conduzindo a leitura do que se entende por acesso e inserção produtiva o

documento segue pontuando que

à medida que a tecnologia vai substituindo os trabalhadores por

autômatos na linha de montagem e nas tarefas de rotina, as

competências para trabalhar em ilhas de produção, associar concepção

e execução, resolver problemas e tomar decisões tornam-se mais

importantes do que conhecimentos e habilidades voltados para postos

específicos de trabalho (SÃO PAULO, 2012, p. 23).

Inicia-se a partir desse trecho o discurso que permeia todo o documento curricular,

de que a qualidade de ensino do Currículo do Estado de São Paulo é associada às

competências modernas voltadas para o mundo do trabalho. Percebe-se que a formação

voltada para o mercado de trabalho tem sido a preocupação da Cadeia Disciplinar de

elaboração do documento, que busca integrar as camadas mais pobres da sociedade brasileira

por meio de competências relacionadas ao mercado de trabalho, não mais em um modelo

fordista - de linha de produção, mas agora busca a formação de um trabalhador flexível,

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“visando ‘ajustar’ a escola à nova conjuntura do processo de acumulação capitalista; às novas

demandas da economia, da cultura, da sociedade cada vez mais midiática, hedonista e

imediatista” (CAÇÃO, 2010, p. 383).

Baseado na Teoria do Discurso (LACLAU, 2011), entendo que o conceito de

qualidade da educação aparece enquanto um significante vazio, como apresentado

teoricamente no primeiro capítulo, caracterizado pelo “esvaziamento de sentidos do

significante qualidade da educação como um dos mecanismos de constituição da hegemonia

da política de currículo centralizada” (MATHEUS E LOPES, 2014, p. 340).

Dentro do significante vazio que é a qualidade da educação entende-se que a visão

hegemônica que consegue perpetuar-se de forma mais visível nas articulações de saberes é a

de uma escola que serve a esse modelo de acumulação capitalista, proposta a formar agentes

funcionais a esse sistema, no entanto ela não é única, apenas comporta-se como hegemônica

por alguns instantes, pois junto a ela diversas outras concepções disputam sentidos no sentido

de qualidade da educação.

Dialogando com esse sistema organizado por políticas curriculares encontram-se

as políticas de bonificação inserida na rede pública de ensino do Estado de São Paulo que tem

como objetivo a premiação, por meio de bônus, das escolas que alcançarem nas avaliações

externas – no caso o SARESP21

- metas previamente estipuladas. Takahashi (2008 - apud

CAÇÃO, 2010) comenta que a SEE-SP entende que a política de premiar, em dinheiro,

professores e funcionários de escolas que atingem metas de qualidade apesar de ter sido alvo

de polêmica, é a medida entendida como adequada para valorização de bons profissionais,

uma vez que quanto mais a escola se esforçar, mais a equipe se beneficiará. O mesmo

discurso também aparece no próprio site da SEE-SP na página destinada a explicar sobre o

IDESP: “Ao alcançar pelo menos parte da meta definida pelo IDESP, a escola conquista

também o pagamento do bônus por desempenho, que é proporcional ao resultado da unidade,

ponderando a frequência do servidor e o índice socioeconômico da escola”22

.

Por outro lado, compreendo essa questão como sendo uma transformação da

educação em mercadoria que, ao ser consumida pela população, há uma legitimação de

21 O resultado do SARESP serve de base para o cálculo do índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP), utilizado como base de comparação entre as escolas públicas. 22

Disponível em < http://www.educacao.sp.gov.br/idesp> visualizado em 07/06/2017.

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valores, classificando e adjetivando as escolas mais valorizadas, em detrimento as escolas

com desempenhos menores.

Dentre os pressupostos norteadores comuns a essas reformas,

destacamos: adoção de currículos nacionais, cujos parâmetros

direcionam os critérios avaliativos; introdução de mecanismos de

mercado, como premiação das escolas por “produtividade” e o

estabelecimento da competitividade entre as organizações escolares e

entre os docentes, uma vez que critérios de promoção na carreira e de

aumentos salariais baseiam-se em metas predeterminadas, gerando a

pulverização e fragilização da representatividade da categoria

docente... (CAÇÃO, 2010, p. 383).

A partir desta breve análise dos documentos associados a políticas curriculares

do Estado de São Paulo é possível estabelecer quais tem sido os discursos e as finalidades

discursivas atribuídas a educação paulistana. É perceptível a intensão de controle e vigilância

do trabalho docente, representados por avaliações externas e a indução a utilização do

currículo da forma mais próxima possível do sentido homogeneizador com que foi construído.

Dentre os componentes que buscam significar a avaliação externa encontra-se,

disputando esse cenário a questão da qualidade da educação. Em âmbitos políticos,

econômicos e sociais há consenso de que é necessário caminharmos para uma educação de

qualidade, no entanto, não existe uma reflexão acerca do que está envolvido na chamada

qualidade para a Educação Básica.

Essa questão pode ser lida a partir da discussão do que Laclau (2011), chama

de significantes vazios, uma vez que na palavra qualidade “não enfrentamos excesso ou

deficiência de significações, mas a exata possibilidade teórica de algo que aponte, do interior

do processo de significação, a presença discursiva de seus próprios limites” (LACLAU, 2011,

p. 68). No contexto da educação brasileira contemporânea, percebe-se que há uma

impossibilidade de significação fixa, o significado de qualidade fica como que flutuando entre

signos que compõem diferentes demandas sociais e visões de mundo, uma vez que a

qualidade não é algo dado, nem tampouco neutro, mas ao contrário, algo construído a partir

de intencionalidades, valores e interesses específicos. Passa a ser utilizada enquanto a

qualidade desejada por uma visão de educação mercadológica, por outro lado, passa a ser

almejada uma qualidade para uma educação cidadã. Essas duas concepções apresentam

limites de significações a depender do contexto em que estão inseridas, não são neutras, mas

sim pressupõem exclusão.

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59

Esse cenário é de especial interesse quando pensamos nas questões políticas que

envolvem diferentes interesses em torno de um único objeto que no caso é a educação. A

dificuldade em se estabelecer o que se entende por qualidade de educação acaba sendo uma

estratégia para que diversos discursos, projetos e programas que estão associados a qualidade

mercadológica acabem tomando conta do cenário da Educação Básica, uma vez que esse

significante acaba tendo mais potência a tornar-se hegemônico devido a sua maior

visibilidade no cenário político, muito associado a sua força econômica, potente a grandes

investimentos.

Essa reflexão me leva a compreender que o início dessa discussão deve-se pautar

no estabelecimento do tipo de qualidade pretendemos. Para isso é interessante pontuar qual o

tipo de formação que queremos, qual o objetivo da escola eque tipo de alunos queremos

formar.

Machado e Alavarse apud Gusmão (2013) pontuam duas visões antagônicas de

qualidade de educação. A primeira delas está associada ao aumento do desempenho dos

estudantes em avaliações de larga escala. A segunda delas envolve uma qualidade associada a

diversas condições de ensino que conduza a uma formação ampla, abrangendo desde

conteúdos curriculares a cidadania e questões éticas.

Essas duas visões de qualidade demonstram visões antagônicas de qual deve ser a

funcionalidade da Educação Básica. O que vai tornando-se visível é a importância da

definição de qual dessas qualidades cada escola está buscando, isso porque uma escola de

qualidade me parecer ser aquela que é coerente com o que se propõem a fazer.

Após essa análise, recoloco Matheus (2013), onde, ao descrever o seu objeto de

estudo relacionado a qualidade da educação, reflete que

os significados de qualidade dependem dos jogos de linguagem

estabelecidos no bojo do discurso político, o qual, nesta pesquisa,

pode ser acessado por meio da produção textual do MEC e entendido

à medida que identificamos as demandas que mobilizam os atores

sociais a se articularem nessa política... Compreender as demandas

postas no jogo político e compreender as articulações que são levadas

a cabo no sentido de sustentar tais demandas (MATHEUS, 2013, p.

71).

Compartilho da visão da autora de que os significados atribuídos a qualidade de

educação dependem dos jogos de linguagens associados ao discurso político construído a

partir de conflitos e negociações entre diversas demandas. E que uma das formas de o acessar

é por meio da leitura das produções textuais, no caso dessa pesquisa, o Currículo do Estado de

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60

São Paulo, do Programa São Paulo Faz Escola e dos “caderninhos”, como foi feito acima, e

como continuarei fazendo no restante desse capítulo.

Apesar disso, acredito que a própria criação do Programa São Paulo Faz Escola,

“por si só”23

já se comporta enquanto um discurso a respeito do tipo de qualidade de educação

que estamos falando, bem como indica, mesmo que de maneira não revelada (oculta), que um

dos fatores limitantes para alcançar a qualidade da educação é o próprio trabalho docente, que

se mostra como insuficiente, sendo necessário a criação de um manual sobre como executar

uma aula, feito passo a passo, para que o professor consiga atingir os objetivos da educação

de qualidade almejados pelo Estado.

2.4. Instrumentos de currículo e a busca pela utilização dos materiais prescritivos

2.4.1. Os “caderninhos”

O Currículo do Estado de São Paulo é construído por conteúdos e metodologias

de ensino para os Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, dividido em áreas do

conhecimento: Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas

Tecnologias; Ciências Humanas e suas tecnologias e Matemática. No entanto, no próprio

documento há a divisão disciplinar para representar os conteúdos a serem desenvolvidos nas

escolas. Da mesma maneira é organizado o material didático, popularmente chamado de

“caderninhos”, divididos por ano e semestre, abarcando, cada um dos cadernos, as seguintes

disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, História, Filosofia, Química, Física Biologia,

Inglês, Geografia, Sociologia, Arte e Educação Física. Os cadernos de cada uma das

disciplinas são apresentados com capas de cores distintas, o que faz com que popularmente os

cadernos sejam identificados pela sua cor, por exemplo, a capa do caderno de geografia é de

cor laranja, como é possível observar na imagem 2. Os professores e os alunos recebem

materiais diferentes, porém com o mesmo conteúdo de ensino. Na versão do professor o

material apresenta textos de apoio, indicações de leitura e, sobretudo, Situações de

23

Vale ressaltar que o Programa São Paulo Faz Escola, ao elaborar materiais didáticos baseados no Currículo do Estado de São Paulo, enquadra-se como uma política curricular, no entanto, é vendido, sob o discurso do Estado de São Paulo, enquanto uma política educacional, o que é bem mais complexo e envolve outras questões. Isso acaba por “superdimensionar” as ações do governo e cria um discurso de que se com toda essa “reforma” na educação paulista, a qualidade da educação ainda não chegou às escolas, o problema passa a ser inteiramente do docente, que não tem as competências e as habilidades que lhes são necessárias.

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61

Aprendizagem24

, que nada mais são do que um plano de aula pronto para o professor

desenvolver com a turma, contendo os exercícios, atividades que devem ser aplicadas e

propostas de avaliação e recuperação de conteúdo. E que segundo o próprio documento,

“oferecem também sugestões de métodos e estratégias de trabalho para as aulas,

experimentações, projetos coletivos, atividades extraclasse e estudos interdisciplinares (SÃO

PAULO, 2010, p. 8).

Segundo Cação (2011),

ao direcionar o teor e a organização do trabalho docente e do currículo

no interior das escolas, a SEE/SP obrigou-as a abandonar seus

objetivos, metas e estratégias. Cada escola trabalhou com o material

didático elaborado pela SEE, nos meses de fevereiro e março, visando

recuperar conteúdos, sobretudo de Língua Portuguesa e Matemática e

sanar defasagens. Ao final do bimestre, a SEE realizou avaliação

centralizada. Após esse período introdutório, a cada bimestre o

professor recebeu (e continua recebendo até o momento) material

didático denominado Caderno do Professor, que detalha, para cada

disciplina, os conteúdos tidos como necessários e a metodologia a ser

utilizada. Posteriormente, esses conhecimentos são “cobrados” em

avaliação realizada pela SEE/SP, assim como por avaliações externas:

SAEB; SARESP e ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio) (p. 11).

Imagem 3: Apresentação dos “caderninhos”

Fonte: site Programa São Paulo Faz Escola

24

As Situações de Aprendizagens são sequências didáticas relacionadas a determinado conjunto de conteúdos associados a uma temática. No Caderno do Professor são apresentadas as sequências didáticas acrescidas de manuais de “sugestões” para serem seguidas ao trabalhar os exercícios com os alunos, A palavra “sugestão” aparece entre aspas, uma vez que o material foi elaborado de uma forma que essas “sugestões”, quando não seguidas, impossibilitam a utilização do material didático, como abordarei mais à frente. As Situações de Aprendizagens do Caderno do Aluno apresentam somente sequências didáticas, ou seja, os exercícios.

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62

Os “caderninhos” laranjas analisados nessa pesquisa foram as correspondentes

aos 7º e 9º anos do Ensino Fundamental - uma vez que inicialmente os questionamentos me

levaram a propor uma análise da relação entre os “caderninhos” e as questões apresentadas na

prova do Saresp -, fundamentados em exercícios cujos conteúdos são delimitados pelo

Currículo do Estado de São Paulo, que são distribuídos em forma de atividades, chamadas de

"Situações de Aprendizagens", propondo uma série de sequências metodológicas abordando

os conteúdos propostos no currículo de maneira diversa.

Destaco abaixo os instrumentos metodológicos representados no Caderno do

Professor de geografia (os “caderninhos” utilizados como base da análise foram os de

geografia para os 7º e 9º anos, volume 1 e 2 (2014-2017)).

Verificação de conhecimentos prévios

Leitura e análise de mapas

Debates

Trechos de documentários

Roteiro de questões

Pesquisas em sites da internet

Pesquisa em materiais impressos

Consulta em Atlas escolar

Análise de imagem de satélite (Google Earth)

Análise de esquemas gráficos

Elaboração de mapas, tabelas, gráficos e relatórios

Entrevista com familiares

Leitura de textos

Aula expositiva

Apresentação de filmes

Elaboração de atas sobre discussões

Em cada Situação de Aprendizagem é apresentado, detalhadamente, caminhos

metodológicos a serem seguidos, de forma tão fechada que para a realização de apenas uma

das atividades, o professor depende da realização de todas as demais.

Apresento abaixo alguns fragmentos de textos retirados do Caderno do Professor,

onde é possível compreender essa relação de dependência e de “amarração” ao documento

curricular. Para isso, enfatizo que a reflexão que desenvolvo nesta parte do texto, não se

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63

pretende ser, como a maioria das pesquisas que utilizam materiais didáticos, cujo objetivo

principal centra-se na análise do conteúdo ou da didática dos documentos curriculares,

visando o entendimento do objeto dessa pesquisa. Antes disso, buscando compreender a

política curricular, elaboro esta análise a fim de identificar as situações em que os

“caderninhos” utilizam a didática enquanto instrumento político para alcançar o objetivo

almejado pelo Estado.

As sequências didáticas propostas apresentam mapas e exercícios específicos que

dependem quase que exclusivamente da execução de cada passo ou ação didática já

previamente planejada no manual do professor, pois os exercícios que aparecem no Caderno

do Aluno, são baseados nessas sequências de atividades já prontas no Caderno do Professor.

Por mais que o professor tente subverter o material ou recontextualizá-lo à sua realidade, o

espaço de manobra para tanto é bastante reduzido, dada a capacidade de controle,

representada por uma sequência de exercícios amarrada, no sentido que para resolver um dos

exercícios, o aluno necessita ter realizado todos os outros, bem como analisado os mapas, as

imagens, as pesquisas e quaisquer outras metodologias de ensino que aparecerem nesses

materiais didáticos.

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64

IMAGEM 4: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO

APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR

Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 16.

Mesmo com a utilização do verbo “poderá”, indicando uma sugestão/opção, as

instruções metodológicas utilizadas no Caderno do Professor conduzem a uma prática

pedagógica e curricular única e padronizada em toda a rede pública de ensino paulista,

limitando os professores até mesmo na escolha da referência que eles pretendem utilizar em

suas aulas. Penso que a estrutura dos “caderninhos” revela o discurso por parte do Estado de

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65

que os seus professores não possuem boa qualificação profissional para implementar aulas

com aprendizagem significativa, pois são incampazes de planejar uma aula.

No segundo trecho destacado na figura acima, o material didático novamente

propõe uma atividade em que o professor já está condicionado a seguir o próximo passo que

aparece no Caderno do Aluno como um exercício, baseado na análise de um mapa. O Atlas

sugerido como consulta não está disponível na maioria das escolas públicas. Essa minha

afirmação resulta da minha própria experiência como professora, pois na escola onde leciono

é considerada uma das melhores em condições administrativas, financeiras e em relação ao

próprio rendimento escolar, e, ainda assim, não possui nem cinco exemplares de Atlas escolar

para serem consultados pelos alunos.

IMAGEM 5: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO

APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR

Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 18.

Na imagem acima, novamente aparece um exemplo a ser usado pelo professor

previamente estabelecido como “sugestão” no Caderno do Professor, mas apresentado no

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66

“Caderno do Aluno” enquanto proposta de exercício. Isso faz com que o professor, ao

trabalhar o conteúdo “cidade gêmeas”, que faz parte do conteúdo maior fronteira e limite

territorial, seja obrigado a utilizar como exemplo principal aquele previamente decidido pelo

documento curricular.

Não estou afirmando que não devam existir exemplos em materiais didáticos,

até porque esses exemplos são responsáveis por complementarem o entendimento dos alunos.

O que estou questionando é o fato de um material didático utilizar este ÚNICO exemplo, onde

eu, enquanto professora, não consigo trabalhar mais profundamente com algum outro

exemplo que faça mais sentido no contexto das minhas aulas, porque todos os exercícios

propostos no Caderno do Aluno seguem este ÚNICO exemplo delimitado pelo material

didático. Ainda mais, ao entregar o Caderno do Professor enquanto um material didático

pronto, onde as próprias atividades são nomeadas como “sequências didáticas”, estipuladas

passo a passo como devem ser seguidas, o Estado acaba por limitar a ação docente a um estilo

de aula e a um conteúdo que siga de uma forma determinada, permitindo que o aluno

responda as questões propostas no Caderno do Aluno. Dito de outra forma, caso eu não

trabalhe com o estudo de caso das cidades-gêmeas específicas, tal como representado na

imagem 6, trabalhadas nos “caderninhos”, meus alunos terão dificuldades em responder as

questões propostas, mesmo tendo construído o conceito da geografia urbana associada a essa

situação.

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67

IMAGEM 6: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO

APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR

Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 20.

Na etapa 3, encontramos outra exemplificação utilizada para responder uma

série de exercícios no Caderno do Aluno, limitando o professor a reprodução daquele

exemplo. A imagem 5a, citada no texto, é uma imagem de satélite das fronteiras territoriais

entre Letícia e Tabatinga e a imagem 5b apresenta um esquema sobre o circuito de circulação

de mercadoria envolvendo essas cidades, seus estados e outros países, apresentada abaixo.

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IMAGEM 7: ESQUEMA DIDÁTICO APRESENTADO NO CADERNO DO

PROFESSOR E CADERNO DO ALUNO

Fonte: Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 21.

Qualquer professor de geografia, ao analisar o esquema acima, o considerará

como didático e útil no processo de ensino. Ao trabalhar com esse esquema em sala de aula, a

maioria dos alunos rapidamente compreende a relação entre Letícia e Tabatinga e destas com

o mundo. No entanto, o que acaba se perdendo é o contexto da sala de aula, as questões que

surgem e os exemplos utilizados pelos alunos. Por exemplo, na minha sala do 7º ano D, tenho

uma aluna Colombiana, que pode trazer um relato sobre como esse comércio acontece na

Colômbia, mas fiquei me perguntando: isso aconteceu na minha aula, como seriam nas outras

turmas que não existe a Joana para relatar um pouco das relações comerciais entre Colômbia e

o Brasil aos olhos de uma menina do 7º ano? Ou ainda, como usar o exemplo da Joana caso

ela fosse uruguaia, por exemplo? Eu poderia até pedir para que ela se manifestasse e contasse

um pouco de seu conhecimento sobre o comércio e a origem dos produtos encontrados em seu

país, mas logo após essa empolgante atividade, muitas vezes envolvendo a sala toda,

concentrada em escutar a colega, nós voltaríamos a fazer os exercícios sobre Letícia e

Tabatinga.

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IMAGEM 8: FRAGMENTO DE UMA DAS METODOLOGIAS DE ENSINO

APRESENTADAS NO CADERNO DO PROFESSOR

Caderno do Professor – 7º ano Ensino Fundamental II, v. 1, p. 20.

Por fim, a última imagem selecionada da Situação de Aprendizagem 2,

novamente “sugere” uma metodologia de ensino, totalmente formatada e conduzida para

atingir determinado objetivo.

Com base na apresentação da didática específica associada à disciplina escolar

geografia, retomo a citação de Veiga (1994, p. 60), com o objetivo de tencionar o tipo de

didática utilizada em alguns momentos nas propostas metodológicas apresentadas nos

“caderninhos”:

Os conteúdos dos cursos de didática concentram-se na organização

racional do processo de ensino, isto é, no planejamento didático

formal, na elaboração de materiais institucionais, nos livros didáticos

descartáveis. Sua preocupação básica é a descrição e especificação

comportamental e operacional dos objetivos, o desenvolvimento dos

componentes da instrução, a análise das condições ambientais, a

avaliação somativa, a implementação e o controle, enfim, a

mecanização do processo de ensino e a supervalorização dos meios

sofisticados (grifo meu).

A partir da análise apresentada acima pelo autor, é visível que os caminhos

metodológicos presentes nos “caderninhos” em que os professores de geografia “poderão”

seguir, são contaminados exatamente por essa preocupação, do controle, da mecanização do

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processo de ensino-aprendizagem e da supervalorização dos meios e recursos didáticos

sofisticados, que, na maioria das vezes, são impossíveis de serem utilizados devido a estrutura

(ou a falta dela) material das escolas

A elaboração e implementação de um material contendo o planejamento prévio de

cada aula e um passo-a-passo de cada momento da aula atua diretamente na interdição da

autonomia docente, impedindo que o professor construa caminhos teórico-metodológicos

considerando a sua própria trajetória formativa, o contexto da sua sala de aula, da sua escola e

da comunidade a qual está inserida. Ainda que algumas atividades propostas nas sequências

de aprendizagem sejam interessantes do ponto de vista pedagógico e que o professor decida

por sua implementação, acredito que muitas delas são quase impossíveis de serem colocadas

em prática devido a própria política de precarização da infraestrutura escolar proporcionada

pelo Estado de São Paulo. Em muitas atividades pede-se que os alunos façam pesquisas na

internet, no entanto, quase nenhuma escola paulista possui laboratórios de informática com

máquinas em quantidade e em bom estado de uso e conectados à internet, além dos

laboratórios e das bibliotecas estarem sucateadas ou terem se transformado em depósito de

qualquer coisa.

O discurso oficial por parte do Estado para justificar a produção, bem como

todos os mecanismos de controle empregados para a utilização dos “caderninhos” é o de

garantir qualidade educacional em seu sistema de ensino. Mas porque tanto investimento de

recursos nessas apostilas? Ao padronizar a prática pedagógica e curricular dos docentes, o

Estado está assumindo o discurso de que seus professores não estão aparelhados

intelectualmente para planejarem suas próprias aulas e tampouco são capazes de garantir bons

resultados nas avaliações externas realizadas nas escolas, como o SARESP e Prova Brasil.

Trata-se, assim, de uma operação discursiva em que se suturada o discurso de qualidade

educacional à perda da autonomia docente.

Assim, buscando atingir as metas de rendimento e a fim de alcançar a almejada

qualidade da educação, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo utiliza-se do

discurso da didática nos "caderninhos" como instrumento para alcançar o padrão ideal de

qualidade no ensino. Os resultados negativos obtidos pelas escolas, não atingindo as metas de

avaliação só podem, então, ter um único culpado: os professores que não seguem os

“caderninhos”. Assim, esse material tem um duplo sentido: o de controle a partir da perda da

autonomia docente e o de culpabilização.

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2.4.2. A Avaliação Externa

Uma segunda maneira que o Estado de São Paulo utiliza para que as escolas

apliquem o currículo integrador elaborado para o Estado é o sistema de avaliação externa,

representado pelo SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São

Paulo)25

, e pelas AAPs (Avaliação de Aprendizagem em Processo)26

.

Para compreender a forma com que as avaliações externas, em especial o

SARESP, no caso do Programa São Paulo Faz Escola, tem influenciado a construção dos

currículos e a forma com que o conhecimento escolar tem sido construído, elaborarei uma

breve problematização

Não é de hoje que existe o desejo pela mensuração de como caminha a Educação

Básica. Gatti (2009), pontua que, no Brasil, a década de 1960 foi bastante significativa

devido a grande preocupação existente em elaborar processos avaliativos que eram

construídos “baseados em critérios mais claramente enunciados e instrumentos que poderiam

garantir, até certo ponto, que a avaliação do nível de realização obtido estivesse mais

objetivamente garantida”. (GATTI, 2009, p. 8). Para isso, foram elaborados questionários

socioeconômicos buscando compreender a situação dos alunos, bem como quais eram as suas

aspirações. Posteriormente, na década de 1970 novos questionários socioeconômicos foram

aplicados aos alunos visando compreender qual a relação entre o contexto dos alunos, sua

situação socioeconômica e a forma com que eles compreendiam as leituras e as ciências que

eram trabalhadas com eles durante as aulas.

Bonamino (2012), divide as políticas de avaliações do Brasil em três gerações,

sendo a primeira delas marcada pelo caráter diagnóstico da educação, e as outras duas

gerações associadas a um caráter de culpabilização pela situação em que se encontra a

educação brasileira.

Quero caminhar na construção de uma reflexão sobre a compreensão de que as

avaliações de rendimento, assim como são desenvolvidas atualmente, não foram pensadas e

25

O SARESP é alicado uma vez ao ano para os alunos do 3º, 5º, 7º e 9º anos do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio. Apesar de no site do programa < http://www.educacao.sp.gov.br/saresp> aparecer uma apresentadção da prova como sendo de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Redação, apenas as duas primeiras disciplinas são avaliadas diretamente. Após a correção da prova, as escolas, e toda a sociedade, tem acesso ao IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo), classificando o rendimento da escola e apresentando, posteriormente, um sistema de bonificação às escolas que alcançaram as metas estabelecidas. 26

As AAPs são provas enviadas pela SEE-SP referentes a disciplina Língua Portuguesa e Matemática, para serem aplicadas bimestralmente, como uma forma de treinar para a prova do Saresp.

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72

elaboradas para compreender a complexidade das condições no contexto das escolas

brasileiras. Lendo sobre alguns resgates temporais a respeito do processo avaliativo do Brasil

(BONAMINO, 2012; GATTI, 2009; ZÁKIA & SOUSA, 2003) é possível perceber que a

avaliação externa tem um histórico associado a verificação da qualidade do ensino voltada aos

testes de rendimento escolar. Embora admita-se que em alguns momentos houve negociações

que trouxeram possibilidades de avaliações mais complexas, o que se nota é que a avaliação

externa no Brasil sempre esteve distante de uma avaliação complexa e próxima da realidade

das escolas brasileiras. Entendo que durante as disputas e negociações, algumas forças com

maiores influências a levaram por esse caminho. Essas forças estão, na atualidade, associadas

às políticas neoliberais adotadas no Brasil principalmente na década de 1990. Longe de

restringir-se a Educação, essas políticas fazem parte de um conjunto de ideologias associadas

a um projeto de nação, onde há uma propaganda de um Estado falido e as funções que

deveriam ser asseguradas por esse Estado acabam sendo privatizadas, ou seja, fornecidas por

empresas a um custo específico. É dentro desse pacote que as políticas neoliberais afetam a

Educação, sendo considerada como uma mercadoria, a ser ofertada por uma empresa, a

educação passa a ser reformulada, tem seus padrões de qualidade e excelência visando

garantir a competitividade, como acontece nas políticas de mercado.

As avaliações externas27

pautadas em ideologias neoliberais, como é o caso do

Saresp, adotado pelo Estado de São Paulo, passaram a repercutir aos professores, alunos e na

sociedade como um todo. Zákia (2003) chama atenção para a redefinição do papel do Estado,

em que produzido pela visão neoliberal como um todo e afeta o cenário educacional,

transformando o Estado executor em Estado avaliador. Com isso, o objetivo deixa de se

alcançar uma educação pública e um padrão de qualidade que atenda às necessidades da

sociedade brasileira e passa a buscar atender a padrões estabelecidos pelas grandes empresas

neoliberais.

A partir desse período crescem a parceria entre Estado e empresas privadas na

gestão e no financiamento do ensino, necessitando, cada vez mais, da implantação de sistemas

de avaliação para que a qualidade desse serviço seja assegurada. Assim, essas políticas de

avaliação passam a mensurar a eficácia escolar associada ao padrão atual de educação.

27 Ao colocar o termo avaliação externa estou embasada em nas concepções teóricas de Machado e Alavarse (2014), que a entendem como sendo a realização de provas padronizadas em larga escala, contemplando amplo contingente de participantes e resultando em um conjunto de informações que pode orientar ações das mais variadas ordens nas políticas educacionais para todos os níveis da federação.

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Imbuídas desse sentido, as políticas de avaliação valem de sua força indutora para

movimentar o projeto pedagógico das escolas dos diferentes níveis de ensino nesta direção.

Índices devem ser alcançados em intervalos de tempos definidos, revelando as performances

das escolas na frenética corrida rumo aos melhores lugares no ranking educacional. (SORDI,

2012, p. 160)

Percebe-se que as avaliações passam a nortear políticas curriculares uma vez

que, buscando o sucesso nas avaliações, os currículos passam a ser reformulados ou

ressignificados pelos próprios professores a fim de que os alunos compreendam de forma

mais complexa, apenas determinadas áreas e determinados conteúdos que são legitimados

pelas avaliações.

Assim,

As matrizes que referenciam os exames nacionais e internacionais têm

se transformado nos definidores das políticas curriculares e funcionam

como importantes fronteiras indicando o que deve ser ensinado

(conhecimento que se torna oficial e útil pelo simples fato de cair nas

provas). Igualmente essas matrizes ganham o estatuto de dizer o que

deve ser considerado conhecimento redundante, descartável e,

portanto, excluído das aprendizagens a serem garantidas pela escola

pública. (SORDI, 2012, p. 161).

Ao delimitar o que se torna importante ser ensinado, a partir da seleção de

alguns conhecimentos, as políticas de avaliação acabam determinando quais saberes e práticas

pedagógicas serão considerados úteis e aqueles sem utilidade e pouco a pouco vão

desaparecendo do currículo escolar. As avaliações externas passam a ter o papel de redefinir o

currículo, tendo mais potência do que ele próprio; quando na verdade deveriam servir apenas

como orientadora de como o currículo está sendo encaminhado nas escolas.

Outra situação preocupante está associada ao fato de que não só determinados

conhecimentos são legitimados e renegados dentro de uma disciplina, mas isso também

acontece entre as próprias disciplinas escolares, quando observamos a quantidade de aulas

destinadas a cada área do conhecimento percebemos uma discrepância bastante significativa

entre Língua Portuguesa e Matemática do restante das disciplinas escolares, que aparecem em

um cenário secundário com tempos de aula bem menor. Algumas avaliações externas

concentram todas as provas nessas duas áreas de conhecimento Língua Portuguesa e

Matemática, o que acaba por legitimar o discurso da tradição das disciplinas, trabalhado por

Goodson (1997), demonstrando que desde o início da história das disciplinas escolares,

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algumas delas possuíam mais destaque que outras, sendo legitimadas pela intencionalidade de

cada um dos países.

A avaliação de rendimento acaba por reforçar esse processo,

observa-se que este modelo avaliativo acaba produzindo

intencionalmente um jogo de luz e sombra sobre a realidade

educacional das redes de ensino, descartando dados que julga, a seu

critério, “redundantes” e desmerecedores de consideração. Ao serem

desprezados, simplificam a complexidade do contexto que afetam os

resultados dos estudantes. Pior do que isso, orientam o processo

decisório das políticas educacionais com base em dados diagnósticos

equivocados, mas poderosos com base na crença cega naquilo que

dizem os números, fruto da herança positivista que herdamos (SORDI,

2012, p. 161).

Essa situação é ainda mais grave quando consideramos que são inseridas

políticas de premiação financeira das equipes escolares, feitas a partir da bonificação das

escolas que atingem determinada meta previamente estipulada, demonstrando-se como

eficazes e possuidoras de qualidade excelente. Juntamente ao sistema de avaliação externa,

essas políticas de premiação financeira acabam por iniciar outro movimento preocupante,

relacionado a discursos de prestação de contas e responsabilização. O modelo homogêneo de

avaliação aplicado em âmbito internacional, nacional, estadual ou mesmo municipal muitas

vezes permite comparações entre as escolas, medindo o rendimento delas de acordo com o

resultado em um exame, desconsiderando todo o contexto da escola.

A partir da responsabilização centrada na culpabilização, as escolas passam por

um processo onde a gestão é “direcionada para impor determinados procedimentos e práticas

que visam resultados visíveis e mensuráveis, sem preocupação com a politicidade dos

objetivos, a complexidade dos processos organizacionais e subjetividade dos atores”

(AFONSO, 2012, p. 480).

Com isso, me pergunto,

O que dizer de um processo de produção de qualidade que

desconsidera a voz dos profissionais da educação? Considerados

“redundantes” neste processo, seus saberes profissionais e

experiências tem sido sumariamente considerados lixos, fora das

especificações. Carecem assim de algo que externamente determinem

como devem agir. Necessitam de padrões a seguir rigidamente para

que determinados resultados sejam alcançados em linhas de tempo (ou

montagem?) previamente definidas e sobre as quais não lhes cabe

opinar. Aliás, insiste-se na apresentação destes padrões como algo

consensual e isento de contradições. Algo a que as escolas devem se

ajustar prontamente e para tal o controle externo é requerido de modo

a regular a qualidade dos estabelecimentos de ensino (SORDI, 2012,

p. 159).

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Penso aqui em duas questões fundamentais que se relacionam a discussão em

torno do que consiste a qualidade da educação, intensamente buscada por meio da aplicação

de avaliações externas e por instrumentos reguladores da aplicação do currículo, tais como os

“caderninhos”, e a forma com que os professores tem seu trabalho afetado por esses

instrumentos de controle. Mais adiante, no último capítulo dessa dissertação retomarei essa

questão, trazendo a voz dos professores, dialogando seus sentimentos em relação às políticas

curriculares do Estado de São Paulo quando as aplicam em sua escola e na sua sala de aula.

No próximo capítulo, busco entender um pouco mais sobre a forma com que os

“caderninhos” foram construídos. Para isso, antes da análise dos exercícios, retomo uma

reflexão teórica a respeito das diferentes metodologias de ensino, voltando a uma análise

epistemológica dos diferentes momentos da didática brasileira, pensando em como eles

influenciam na construção do material didático proposto, apresentado apenas por exercícios,

no caso do Caderno do Aluno. Ao fazer isso, pretendo dialogar os diferentes momentos da

didática brasileira com a análise dos exercícios, trazendo alguns exemplos retirados do

material didático colocados em dialogia com a teoria.

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76

CAPÍTULO 3: A DIDÁTICA E A METODOLOGIA DE ENSINO DE GEOGRAFIA

3.1. Diferentes momentos da didática enquanto campo epistemológico

A necessidade de se pensar o campo epistemológico da didática foi-se construindo

durante as primeiras análises dos documentos curriculares. Ao ler “os caderninhos”28

buscando elencar as metodologias de ensino de geografia, surgiu a dúvida sobre o que

exatamente seriam essas metodologias de ensino, como selecionar algo que não se é capaz de

significar? Assim, iniciei minhas primeiras leituras sobre didática e junto a isso alguns textos

com reflexões sobre didática da geografia (ela existe?) e metodologias de ensino da geografia.

Para essa reflexão, utilizo os termos didática e metodologia da geografia em

diversos mementos, para isso, esclareço que esses termos são tidos como uma figura de

linguagem representada pela metonímia, uma vez que compreendo a didática enquanto campo

epistemológico, e as metodologias de ensino enquanto o produto das discussões teóricas da

didática. No entanto, para essa análise, após a elaboração da discussão teórica do campo

epistemológico da didática, muitas vezes os termos são usados como metonímia, atendendo a

demanda pela relação entre o campo epistemológico e as medidas instrumentalizadas nos

materiais didáticos.

Após compreender o campo teórico da didática e a didática da geografia, junto

com o avanço no entendimento do campo teórico da Teria do Discurso, compreendi que a

didática foi utilizada pelo Programa São Paulo Faz Escola como um instrumento discursivo

em defesa da qualidade da educação, e a partir disso, entende-la tornou- se fundamental para

essa pesquisa.

Os diversos momentos do campo epistemológico da didática me possibilitaram

olhar para a didática dos “caderninhos” e compreender quais influências estavam sendo

marcadas naquele texto e, mais do que isso, como essas influências também são elementos

discursivos fortes que tentam fixar um sentido de currículo no Programa São Paulo Faz

Escola. De alguma forma, estamos defendendo que currículo e didática não são estradas

diferentes que nos levam para lugares distintos, mas sim para um único lugar: o sentido

hegemônico/universal que se tenta fixar para escola e de Educação Pública no Estado de São

Paulo: a negação da autonomia docente. Dito de outra forma, a Didática não pode ser pensada

28

Os “caderninhos” são os materiais didáticos elaborados pelo Programa São Paulo Faz Escola, tendo três

versões adaptadas ao público alvo, o Caderno do Aluno, o Caderno do Professor e o Caderno do Gestor,

posteriormente os explicarei com mais detalhes.

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77

sem um de seus elementos fundantes: a própria política. Também possibilitaram-me

compreender que as concepções teóricas não são superadas, mesmo quando novos

“paradigmas” aparecem, pois ainda continuam a existir permanências29

de momentos outros.

É esse o caminho que pretendo trilhar neste capítulo, buscando refletir quais as relações entre

a didática e a didática específica da geografia.

Embora sejam pontuados momentos históricos a fim de compreender como o

sentido de Didática foi sendo construído em diferentes momentos históricos. A pretensão

central não consiste na produção de uma linha do tempo diacrônica ou de um resgate histórico

objetivo deste campo de estudo, uma vez que compreendemos que, apesar de marcados por

momentos em que foram sendo construídos, os sentidos de Didática são sempre contingentes,

precários e provisórios, sujeitos a novas negociações e formadores de novos sentidos a cada

tempo, podendo conviver simultaneamente diferentes correntes da Didática. Em nosso grupo

(APEGEO), tempo trazido da geografia o conceito de rugosidade espacial, para pensarmos a

própria Didática, ou seja, defendemos que uma corrente não supera a outra, mas convivem

simultaneamente, num movimento que chamamos de rugosidades didático-pedagógicas.

Dialogando com os pressupostos pós-estruturalista, admito que “entender historicamente algo

significa reconducirlo a las condiciones contingentes de su emergencia. Lejos de buscar un

sentido objetivo a la historia, de lo que se trata es de desconstruir todo sentido remitiéndolo a

su facticidad originaria” (LACLAU, 2000, p. 52).

Uma vez que a didática é considerada um ramo do conhecimento pedagógico

(LIBÂNEO, 2000), pretendo, inicialmente, realizar um levantamento acerca de alguns autores

que pesquisam o campo da didática associada aos cursos de formação de professores. A

didática enquanto campo de conhecimento é marcada pelas correntes teóricas que envolveram

a própria ciência, bem como pela construção de momentos históricos e pequenas decisões

tomadas no campo epistêmico. Para esse texto, apesar de elaborar um resgate do campo

epistêmico da didática, o que me permitiu compreender as formas com que as atividades são

propostas nos “caderninhos”, o que pretendo compreender são essas didáticas adotadas no

documento didático enquanto políticas curriculares.

29

Ao trabalhar com o conceito de permanências, trazida por Goordo (1997), fazemos um empréstimo do termo, associando-o ao sentido de “Rugosidade” trazido por Santos (1982, p. 42), à leitura geográfica, entendendo-o como “formas antigas permanecem como a herança das divisões do trabalho no passado e as formas novas surgem como exigência funcional da divisão do trabalho atual ou recente”. Essa perspectiva de leitura geográfica de herança de momentos outros vem sendo utilizada pelo grupo de pesquisa Ateliê de Pesquisas e Práticas no Ensino de Geografia (APEGEO).

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78

Não pretendo aqui estabelecer um significado fechado em torno do que é

didática e de como ela se comporta enquanto um campo epistemológico, tão pouco em como

seu conhecimento é chamado à sala de aula da educação básica todos os dias. Ainda assim,

para que se tenha base ao entendimento de como se traduz a palavra didática para mim,

apresento a colocação de Libâneo (2000) que constrói uma reflexão, deixando sentidos em

abertos ao que ele entende por didática.

A didática tem como objeto de estudo o processo de ensino na sua

globalidade, isto é, suas finalidades sociopedagógicas, princípios,

condições e meios de direção e organização do ensino e da

aprendizagem, pelos quais se assegura a mediação docente de

objetivos, conteúdos, métodos, em vista da efetivação da assimilação

consciente de conhecimentos. Nesse sentido, define-se como direção

do processo de ensinar, no qual estão envolvidos articuladamente, fins

imediatos (instrutivos) e mediatos (formativos) e procedimentos

adequados ao ensino e à aprendizagem (p. 117).

A partir da revisão bibliográfica no campo da didática realizada durante a

trajetória da pesquisa (OLIVEIRA, 1992; VEIGA, 1994; PIMENTA, 2000; LIBÂNEO, 2002;

CRUZ, 2008; CANDAU, 2008, 2009; VEIGA E SILVA, 2010, entre outros), é possível

mapear algumas fases em que o campo epistemológico da didática se comportou de maneiras

distintas, influenciado pelo próprio movimento da ciência30

. A fim de pensar os diferentes

momentos da didática, embora eu reconheça que a atividade de ensinar é inerente ao ser

humano, e esteve institucionalizada no Brasil ainda com os jesuítas, estabeleço como marco

inicial para essa análise o início da disciplina de didática nos cursos de formação de

professores, pontuando um primeiro olhar para o campo, concentrado em como a didática tem

aparecido nos cursos de formação de professores.

Cruz (2008) ao refletir a respeito do início dos cursos de formação de professores,

entre as décadas de 1940 e 1950, encontra grande influência tanto do Curso Normal31

, quanto

do Curso de Pedagogia32

em seus momentos formativos. Ao entrevistar os sujeitos que ela

chama de “pedagogos primordiais”, a autora constata que a grande maioria deles obteve a

formação para tornar-se professor no Curso Normal, chamando sua atenção para os diferentes

30

Pontuo que ao se definir distintas fases da didática enquanto campo epistemológico, como já dito, não se pretende expor conhecimentos superados e/ou ultrapassados em espaços-tempos anteriores. O que se pretende é a compreensão de como o campo da didática foi contaminando-se com o que era produzido enquanto ciência, bem como visualizar como a didática contemporânea carrega permanências (GOODSON, 1997) de outras didáticas e que não há um marco temporal rígido e acabado. 31

Formação de professores em nível médio para atuar nos anos iniciais do ensino fundamental. 32

Formação de professores em nível superior para atuar nos anos iniciais do ensino fundamental, nos cursos de formação de professores em nível médio (magistério / normal), gestão e coordenação pedagógica.

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79

modos com que esses dois cursos trabalham com a teoria e a prática, como é possível observar

no quadro abaixo que traz a percepção dos entrevistados sobre esse assunto.

QUADRO 3: COMPARAÇÃO ENTRE O CURSO NORMAL E

O CURSO DE PEDAGOGIA COM RELAÇÃO À CONCEPÇÃO DE

TEORIA E PRÁTICA, SEGUNDO AS ENTREVISTAS DE CRUZ (2008)

Sobre o Curso Normal Sobre o Curso de Pedagogia

Na minha época a Escola Normal era muito

forte. Aprendia-se sobre a educação e sobre

ser professor. Tão logo concluí o curso,

ingressei no seu corpo docente como

professora de português, sabendo o que

tinha que fazer. (Entrevistada B-40).

O Curso de Pedagogia era

desmembrado em dois (Pedagogia e

Didática). Pedagogia formava o

bacharel e Didática formava o

professor. Tanto no bacharel quanto na

licenciatura, eu observava

características da Escola Normal. As

disciplinas eram praticamente as

mesmas, mas muito mais teóricas e

menos práticas. Era um curso que tinha

profundidade. Lembro-me de um

módulo do curso sobre história da

filosofia, que foi tão bom e consistente

quanto o que fiz posteriormente na

graduação em filosofia. (Entrevistado

B-40).

A base de criação da minha cultura

pedagógica se deu no Curso Normal. Do

ponto de vista estruturalmente pedagógico,

as questões de sala de aula, prática de

ensino, didática foram trabalhadas no

Normal. No Curso de Pedagogia não houve

nenhuma referência significativa a esse

respeito. (Entrevistado D-50).

O curso de pedagogia acrescentou uma

perspectiva diferente. Tive um

aprofundamento em filosofia, que até

hoje me ajuda. A mesma coisa em

matemática e estatística. (Entrevistado

D-50).

Fonte: Cruz (2008, p. 82)

Elaboração própria

De acordo com a análise das falas dos entrevistados expostas acima, a autora

chama atenção a diferente relação entre teoria e prática nos dois cursos. Ela concluiu que o

curso normal apresenta fundamentos da educação, acrescido de metodologias de ensino,

portanto, abarca questões teóricas e práticas. Por outro lado, o curso de pedagogia é

apresentado pelos entrevistados como o momento de “estudar com profundidade” disciplinas

teóricas, concentrando-se na dimensão teórica. Apesar de o curso de bacharelado formar o

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80

profissional técnico da educação, e a licenciatura formar o professor para atuar na Escola

Normal, o que se verificou pela autora, foi que “o propósito de formar um pensador em

educação, capaz de teorizar sobre ela e propor ações referentes aos processos por ela

desencadeados, não se manifestou com muita clareza no contexto da lei, mas parece ter

encontrado alcance no contexto do curso” (CRUZ, 2008, p. 86). Segundo os entrevistados, os

professores do curso de pedagogia eram grandes nomes que conheciam pouco do cotidiano da

escola e possuíam formação em direito, sociologia, teologia, filosofia, entre outras áreas, cujo

conhecimento direto, distanciava-se da pedagogia.

Junto as contribuições para a compreensão do processo de constituição dos cursos

de formação de professores no Brasil, um dos motivos que me levou a trazer a reflexão de

Cruz (2008) para esse texto, foi o questionamento que ficou em minha mente logo após a

leitura do capítulo quatro de sua tese, cujo título é “Das trajetórias e memórias de pedagogos

primordiais: os primórdios do Curso de Pedagogia no Brasil”. Passei a pensar se essa

concentração de professores oriundos de outras áreas, nos cursos de formação de professores,

não seria o marco inicial para a construção de cursos de pedagogia e de licenciatura que

apresentam, em especial com relação à disciplina de didática, objeto de estudo desse capítulo,

uma grande demarcação, em alguns casos representada por um distanciamento, entre o que se

pensa na academia e o que se pratica, ou vivencia-se nas escolas básicas. Deixo essa reflexão

inicial.

Analisando as disciplinas de didáticas oferecidas em cursos de pedagogia e

licenciaturas, alguns autores elaboraram reflexões sobre a primeira fase do campo da didática

considerada enquanto técnica. Influenciada pela ciência positivista, apresenta-se enquanto

uma “prática pedagógica repetitiva, acrítica e mecânica, quando assume uma característica

eminentemente prescritiva, normativa, fundamentando-se em modelos pré-estabelecidos”

(VEIGA, 1994, p. 19)33

. A didática apresentada nesse momento é definida pela autora como

prática pedagógica repetitiva, apresentada como um campo teórico neutro e distante da

vivência dos alunos, sem qualquer preocupação com um compromisso social. Sua

funcionalidade pauta-se na instrumentalização técnica do ensino, limitando-se a apreensão e

transmissão de conhecimentos didáticos.

33

O posicionamento da pesquisadora, assim como de tantos outros que apareceram e aparecerão neste texto, é feito tendo como base uma concepção teórica crítica, e, a partir dela é que olham para a didática anterior e a classificam da maneira citada.

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A autora estabelece uma periodização acerca de distintas concepções de didáticas

na formação de professores. Para minha reflexão, não utilizarei a periodização de forma

rígida, uma vez que não considero que as datas sejam relevantes para pensar sobre os

momentos da didática e compreender meu objeto de pesquisa, no entanto, utilizarei os

momentos desenhados por ela, marcando os tempos apenas quando houver necessidade.

O primeiro deles é chamado de renovação da didática tradicional, iniciado na

década de 1930, cujo quadro de disputas pautava-se entre as ideias tradicionais, associadas à

doutrinação católica e as ideias novas, representadas pela cientifização do campo da didática,

acompanhado de uma reflexão sobre a responsabilidade pública da educação e de sua

laicidade, e a busca pela negação do que havia sido desenvolvido até aquele momento.

Durante esse período, a didática aparece como disciplina para o magistério34

e vem ganhando

espaço enquanto metodologia do ensino secundário. O curso de didática ganha força a partir

da instituição dos cursos de licenciatura no modelo 3+1, onde três anos eram destinados ao

estudo da ciência de referência, enquanto um ano concentrava-se às disciplinas do curso de

pedagogia: Didática Geral, Didática Especial, Psicologia Educacional, Administração Escolar,

Fundamentos Biológicos da Educação e Fundamentos Sociológicos da Educação.

André (2000) ao pensar a respeito das tendências no ensino de didática no Brasil,

pontua a influência da perspectiva instrumental e tecnicista e do método experimental de

pesquisa durante a década de 1970. Ao analisar as duas disciplinas de didáticas oferecidas no

curso de formação de professores da PUC/Rio, onde concentrou-se o primeiro programa de

pós-graduação do Brasil, a autora encontra os seguintes objetivos elucidados no programa da

disciplina de Metodologia da Didática I: “Construir um modelo de planejamento de um curso,

elaborar um módulo de ensino, caracterizar os elementos básicos de um planejamento didático

a partir da abordagem sistêmica”. Os temas destinados à disciplina eram “módulo de ensino,

micro-ensino, ensino por competência, aprendizagem para o domínio, abordagem sistêmica e

planejamento didático, entre outros” (ANDRÉ, 2000, p. 193). Enquanto que a disciplina de

Metodologia de Didática II concentrava-se em trabalhar uma didática experimental, na qual

34

Acredito que aqui a autora estava tratando dos Institutos de Educação, que tinham por função a formação de professores para atuarem nos anos iniciais, a exemplo do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, o Caetano de Campos, em São Paulo e o próprio Carlos Gomes, em Campinas.

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82

eram realizadas discussões sobre possibilidades de aplicação o método científico na didática e

a análise de trabalhos experimentais35

.

Candau (2009)36

ao pensar sobre os dois grandes momentos da didática –

enquanto técnica e enquanto política -, menciona que a dimensão técnica, quando dissociada

das demais dimensões (política e social), torna-se uma didática tecnicista. Segunda a autora,

“a questão do “fazer” da prática pedagógica é dissociada das perguntas sobre o “por que” e o

“para que fazer” e analisada de forma, muitas vezes, abstrata e não contextualizada”

(CANDAU, 2009, p. 15). É sobre essa forma de didática que as críticas à didática tradicional

são elaboradas.

Participando da disputa pelo sentido de didática naquele momento, representando

as ideias novas, estavam os adeptos do movimento conhecido de escolanovismo, cuja visão de

educação concentrava-se nos métodos de ensino, em detrimento aos objetivos e conteúdos.

Segundo Libâneo (2000, p. 91) “as bases teóricas do escolanovismo europeu e norte-

americano têm como suporte uma concepção científica da educação, no sentido de que os

princípios e leis do processo educativo devem subordinar-se às exigências da verificação

experimental dos fatos”. O que se buscava era combater os pressupostos metafísicos das

pedagogias apresentadas naquele momento. Veiga (2008), pontua que a grande contribuição

do escolanovismo pautou-se na iniciativa em colocar o aluno como protagonista no cenário da

aprendizagem. A autora ainda acrescenta que “os ativistas, em coro unânime, reivindicaram o

valor predominante da espontaneidade da ação do aluno e atribuíram a máxima, senão

exclusiva, importância da atividade do aluno como estruturante do método didático” (VEIGA,

2008, p. 34).

Candau (2009) ainda apresenta este movimento como uma tentativa de superação

da escola tradicional e a busca pela reforma interna da escola. Concentrando-se nos interesses

espontâneos e naturais das crianças, o discurso escolanovista utilizava-se da teoria sociológica

de Durkheim, bem como dos pressupostos teóricos da psicologia experimental, buscando

alcançar a racionalidade e a objetividade nas práticas pedagógicas.

35

A ideia de trabalhos experimentais vincula-se a busca de tornar a didática, e mesmo todo o campo pedagógico, uma ciência positivista, possibilitando a construção de modelos de ensino a serem aplicados na prática. 36

A obra de referência é o livro “A Didática em Questão”, publicado no ano de 1983, em forma de uma coletânea de textos reunindo as falas dos palestrantes do seminário “A Didática em Questão”, realizado na PUC-Rio no ano de 1982. O livro consultado é a 29ª edição, publicada no ano de 2009.

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Trata-se de uma didática de base psicológica; afirma-se a necessidade

de “aprender fazendo” e de “aprender a aprender”; enfatiza-se a

atenção às diferenças individuais; estudam-se métodos e técnicas

como: “centros de interesse”, estudo dirigido, unidades didáticas,

método de projetos, a técnica de fichas didáticas, o contrato de ensino

etc. (CANDAU, 2009, p. 17).

Dialogando com Saviani (1980), a autora entende que o movimento

escolanovista baseia-se na tendência do humanismo moderno, assumindo uma perspectiva

idealista, uma vez que se concentra no desenvolvimento técnico e deixa de lado uma análise

prática pedagógica concreta de como essa concepção teórica acontece nas escolas.

No período que se inicia com o golpe da ditadura militar no Brasil (a partir de

1964), a visão industrial penetra no campo educacional e caracteriza-se por uma educação que

reflete e serve ao projeto desenvolvimentista do país. O campo da didática é contaminado pelo

desenvolvimento da tecnologia educacional e o ensino programado, privilegiando o enfoque

sistêmico e “baseando-se em conhecimentos científicos e visando a sua produtividade, isto é,

o alcance dos objetivos propostos de forma eficiente e eficaz” (CANDAU, 2009, p. 19).

A disputa nesse momento passa a concentrar-se em uma didática de enfoque

sistêmico e uma didática de enfoque não sistêmico:

Se um enfatiza objetivos gerais, formulados de forma vaga, o outro

enfatiza objetivos específicos e operacionais. Se um enfatiza o

processo, o outro o produto. Se uma parte de um enfoque da

avaliação baseada na “norma”, o outro enfatiza a avaliação baseada

em “critérios”. Se no primeiro o tempo é fixo, o segundo tende a

trabalhar a variável tempo. Se um enfatiza a utilização dos mesmos

procedimentos e materiais, o outro faz variar os procedimentos e

materiais segundo os indivíduos. E assim por diante... (CANDAU,

2009, p. 19).

No jogo das disputas por significações, a didática tecnicista ganha ainda mais

força do que no movimento escolanovismo e a neutralidade científica, inspirada nos

princípios de racionalidade, eficiência e produtividade contaminam o campo da didática,

buscando, com uma pedagogia tecnicista, reafirmar a escola enquanto um ambiente de

organização racional para fortalecer os sujeitos a ocuparem seus lugares dentro do modelo

desenvolvimentista.

Os conteúdos dos cursos de didática concentram-se na organização

racional do processo de ensino, isto é, no planejamento didático

formal, na elaboração de materiais institucionais, nos livros

didáticos descartáveis. Sua preocupação básica é a descrição e

especificação comportamental e operacional dos objetivos, o

desenvolvimento dos componentes da instrução, a análise das

condições ambientais, a avaliação somativa, a implementação e o

controle, enfim, a mecanização do processo de ensino e a

supervalorização dos meios sofisticados (VEIGA, 1994, p. 60).

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84

A didática tecnicista inclui modelos sistemáticos, treinamento de habilidades,

modelos de ensino. Libâneo (2000), ao pensar sobre as influências na construção da

pedagogia no Brasil, pontua que “as teorias pedagógicas que dão suporte à reforma do ensino

paulista baseiam-se no modelo de educação norte-americana, por sua vez inspirada na

pedagogia europeia de cunho naturalista-cientificista” (p. 89). Percebe-se que o campo da

didática recebeu uma grande influência do campo pedagógico, e que este, por sua vez, seguia

com a influência dos conhecimentos científico, por isso da didática tradicional enquanto

concepção positivista.

Como a didática não fornece elementos significativos para a

análise da prática pedagógica real e o que ela propõe não tem nada

a ver com a experiência do professor, este tende a considerá-la um

ritual vazio que, quando muito, pertence ao mundo dos “sonhos”,

das idealizações que não contribuem se não para reforçar uma

atitude de negação da prática real que não oferece as condições que

tornariam possível a perspectiva didática proposta (CANDAU,

2009, p. 21).

A grande crítica da didática enquanto técnica, se dá no campo do tecnicismo,

quando a didática técnica se colocar de forma individualizada, abandonando as demais

fronteiras, como a social e política. Brandão (2009), refletindo sua pesquisa sobre evasão e

repetência no 1º Grau, da voz aos professores por meio de entrevistas onde muitas vezes a

dimensão técnica da didática é trazida pelos professores demonstrando uma falta de ligação

do que é produzido pela escola e de como o conhecimento teórico é ressignificado nela,

tornando distante e sem sentido aos professores.

No cenário das disputas pelos sentidos de didática, aparece querendo significá-la a

proposta da didática crítica, apresentada a partir da noção de didática fundamental. Esta, por

sua vez, parte da noção de educação enquanto prática social e por isso deve vincular-se ao

contexto ao qual se insere. Candau (2008) menciona alguns pressupostos teóricos pretendidos

pela didática fundamental, entre eles a clareza teórica de diferentes metodologias de ensino; a

superação da visão dicotômica entre teoria e prática, e um empenho para uma nova visão

pautada na unidade. A eficiência é ressignificada, aparecendo não mais em uma visão

produtivista, mas relacionada ao comprometimento com a transformação social, usadas para

pensar práticas pedagógicas adequadas à maioria da população do país, buscando alcançar o

acesso à escola.

Candau (2009), apresenta a Didática Fundamental, como uma concepção que

envolve mais do que a oposição entre didática técnica e didática crítica, mas uma reflexão

pautada em pressupostos técnicos, humanos e políticas; compreende que essa concepção

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85

“assume a multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem e coloca a articulação

das três dimensões, técnica, humana e política, no centro configurador de sua temática”

(CANDAU, 2009, p. 23).

Assim, no final de 1980, em que na tentativa de contrapor-se à didática

“tradicional”, buscava a práxis e a superação do tratamento fragmentado e

descontextualizados do ensino, típico de uma perspectiva positivista da ciência, dando ênfase

a dimensão técnica e pretensamente neutra do ensino (OLIVEIRA, 1992). A didática crítica,

sob grande influência marxista, passa a olhar a Didática, na condição de um objeto de estudo,

como uma prática social, em que o professor está inserido no mundo e isso influencia a sua

forma de ensinar e a intencionalidade pela qual se ensina.

Oliveira (1988b, apud OLIVEIRA, 1992, p. 30) pontua quais são os quatro

conteúdos principais a serem discutidos pela Nova Didática, representada pela corrente

teórica crítica:

1. Dimensão histórica – natureza, objeto e conteúdo da Didática em seu processo

de construção histórica;

2. Dimensão antropológica – o trabalho docente e sua organização na sociedade

brasileira;

3. Dimensão ideológica – o papel do ensino tendo-se em vista as relações entre

fins pedagógicos e fins sociais;

4. Dimensão epistemológica – conteúdo e forma; as relações entre método de

ensino, método de aprender e método de organização da matéria;

Para a autora, dentro de cada um desses quatro pontos seriam abordados todos os

elementos de ensino, tais como objetivos, conteúdo, planejamento, avaliação, etc.

Um trabalho que se tornou referência no processo de renovação da didática foi

a obra de Candau (1984, 1984a), cujo objetivo principal consiste na sustentação do conceito

de Didática Fundamental como objeto da didática, uma prática pedagógica enquanto um

fenômeno concreto, um processo multideterminado.

A proposta tem, como características essenciais: o reconhecimento

da multidimensionalidade do ensino, visto de forma

contextualizada, e a consideração da articulação entre as

dimensões técnicas, humana e política do ensino-aprendizagem

como o centro de sua temática ; a elaboração de reflexão a partir

do estudo de experiências concretas, no contexto da relação

dialética entre teoria e prática; a análise de metodologias,

explicando-se as concepções de homem, sociedade, conhecimento

e contexto em que foram geradas (OLIVEIRA, 1992, p. 82).

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86

A autora, elabora uma crítica a diversas correntes teóricas que compreendem a

didática enquanto uma questão sumariamente técnica. Para a autora, é preciso estar atento a

questão da forma/conteúdo da didática, isso significa dar atenção aos “diferentes

estruturantes” que devem ser analisados pelo campo da didática, principalmente associados a

superação do formalismo e do reducionismo e a ênfase na articulação desses estruturantes.

Nesse momento, a nova didática, influenciada pelo materialismo-dialético,

originada na corrente marxista tencionava seus próprios adeptos, uma vez que havia uma

preocupação com relação à busca pela dialética entre teoria e prática acabar por perder-se no

caminho e na exagerada valorização da prática, uma vez que muitos professores passaram a

uma supervalorização da prática em detrimento da teoria.

Libâneo (2014, p. 88), ao analisar uma série de definições sobre didáticas que

autores de referência elaboraram ao longo dos anos, concluiu que o campo epistemológico

possui significativas antinomias que acabam sendo reforçadas pela dinâmica das mudanças no

campo social, político, científico e cultural.

São pontuadas as seis contradições a seguir:

1. Fragmentação entre ensino e aprendizagem;

2. Centralização nos interesses e necessidades individuais e sociais do aluno em

contraposição à ênfase no conhecimento e na aprendizagem;

3. Separação entre conteúdo/método da ciência/metodologia de ensino;

4. Fragmentação entre o conhecimento e o conteúdo (conhecimento disciplinar) e

o conhecimento pedagógico do conteúdo (didática e didáticas disciplinares);

5. Desconexão entre a didática básica (também chamada de “geral”) e as didáticas

específicas;

6. Desconexão entre aspectos social-político-culturais e aspectos pedagógico

didáticos implicados no ensino e aprendizagem;

Entendo que é possível compreender que alguns desses apontamentos são reflexos

das distintas abordagens teóricas da didática, bem como em suas ideias centrais e em seu

objeto de estudo, conforme refletido nesse capítulo. Para a discussão que vem sendo

construída é de especial interesse os pontos 3, 4 e 5.

Nesses pontos, onde são abordadas questões envolvendo a separação entre ciência

e metodologia de ensino, o autor reflete no campo da formação de professores, chamando

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87

atenção aos cursos de licenciatura, principalmente aqueles que ainda mantém o tradicional

modelo 3+1, onde o conteúdo ou a metodologia de ensino são ensinados de forma totalmente

separada dos métodos da ciência. Nestes cursos “verifica-se que a dissociação entre aspectos

indissociáveis na formação docente, ou seja, entre o conhecimento do conteúdo (conteúdo) e o

conhecimento pedagógico do conteúdo (formal)” (LIBÂNEO, 2014, p. 91). Assim, há uma

valorização maior dos métodos da ciência em detrimento das metodologias de ensino dos

conteúdos, trazendo, como consequência, alguns problemas para o licenciando quando se

depara com a atuação profissional na educação básica.

Pensando sobre as causas dos principais desafios da didática, Libâneo (2000)

pontua que apesar das renovações desenvolvidas no campo da pedagogia crítica, elas sofrem

um revés, e ele se dá pela aproximação de investigações de cunho macrossocial, emprestada

das ciências sociais, e de um esvaziamento da teoria pedagógica. As produções de pesquisas

no campo pedagógico nesse período, segundo o autor, concentram-se em questões meramente

metodológicas ou então, questão discutidas pelas ciências sociais, esvaziando a produção de

conhecimento sobre a pedagogia enquanto campo científico.

Ainda nesse sentido, e buscando sistematizar as informações que foram sendo

trabalhadas até o momento neste capítulo, trago a reflexão de Candau (2008) sobre o

formalismo didático nas diferentes concepções de didática. Segundo a autora, nenhuma das

didáticas conseguiu romper com uma visão unidimensional na construção de uma corrente

teórica, ou um método capaz de dialogar com diferentes influencias para a didática. Assim, no

quadro 2 abaixo, busquei sistematizar as distintas abordagens da didática, pensando em suas

funcionalidades e em seus principais desafios, conforme aparece no texto da autora.

Ao analisar o quadro é possível compreender que se trata de uma sistematização à

respeito das distintas concepções de didática, o qual pontuo que embora apareçam

sistematizados de forma bastante fragmentadas, cada uma das abordagens aparecendo em uma

das linhas do quadro, entendo que na aplicação, a didática aparece de forma tendencialmente

híbrida, misturando concepções em torno das disputas entre as permanências e as mudanças.

Para isso, é interessante pensar que, embora exposto em forma de quadro, a fim de

sistematizar informações, as diferentes abordagens de didáticas dialogam com a filosofia do

rizoma, apresentada no primeiro capítulo, onde a ideia de permanência e hibridização é mais

significativa. No final a autora traz a reflexão sobre qual o caminho que ela acredita que a

didática do momento em que ela escreve deve seguir, afim de superar algumas dificuldades

históricas.

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88

QUADRO 4: SÍNTESE DAS DISTINTAS ABORDAGENS

DIDÁTICAS, SUAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS E SEUS OBJETIVOS,

SEGUNDO CANDAU (2008)

ABORDAGENS DA

DIDÁTICA NO QUE SE CONCENTRA DESAFIOS

PEDAGOGIA

TRADICIONAL

Formalismo lógico.

- Didática é tida enquanto

um instrumento, a “Teoria

do modelo único), capaz de

ensinar tudo a todos.

Deixar de lado os

sujeitos da

aprendizagem e os

conteúdos específicos,

tão pouco

considerando o

contexto onde a prática

pedagógica acontece.

PEDAGOGIA

ESCOLANOVISTA

Formalismo subjetivista

(psicológico).

- A grande contribuição é a

entrada da atividade do

sujeito no ato de conhecer, a

subjetividade humana.

Deixa de lado o

formalismo lógico, os

conteúdos específicos

e o contexto em que

está inserida a prática

pedagógica.

PEDAGOGIA DA

TECNOLOGIA

EDUCACIONAL

Formalismo técnico

Dialogar com os

sujeitos da

aprendizagem e o

contexto em que a

prática está inserida

PEDAGOGIA HISTÓRICO-

CRÍTICA SOCIAL DE

CONTEÚDOS

Formalismo didático

- A busca por um modelo

único.

- Visão reducionista, pautada

apenas em um dos elementos

da didática.

Deixa de lado a ênfase

nas articulações

Fonte: Candau (2008)

Elaboração própria

Para a autora,

Devemos superar a discussão extremamente dicotômica e dualista,

que muitas vezes é feita entre processo e produto na atividade de

ensino-aprendizagem; dimensão intelectual e dimensão afetiva do

processo de ensino-aprendizagem; dimensão objetiva e dimensão

subjetiva; transmissão e assimilação de patrimônio cultural e

desenvolvimento do espírito criativo; compromisso com o saber e a

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89

questão do poder na escola; aspectos gerais da aprendizagem e

aspectos específicos da aprendizagem; dimensão lógica e dimensão

psicológica do processo de ensino-aprendizagem; dimensão política e

dimensão técnica da prática pedagógica; fins da educação, meio e

estratégias; função de ensino e função de socialização da escola

(CANDAU, 2008, p. 35).

Dialogo com a autora em sua proposta de romper com o reducionismo da didática

e de promover a conversa entre concepções aparentemente opostas entre si, sobressaltando a

potência das articulações entre as diversas concepções de didática. No entanto, acredito que

essa articulação não ocorra de maneira fluida, dependendo apenas do desejo da comunidade

epistemológica da didática, mas sim no campo de disputas e negociações políticas, que

demandam tempo e possuem a provisoriedade enquanto características marcantes, uma vez

que as diferentes concepções sempre estarão buscando alcançar um papel hegemônico na

concepção de didática, que em última instância imprime um sentido para o próprio currículo

escolar.

Buscando compreender os encaminhamentos contemporâneos do campo da

didática, trago algumas percepções de Candau (2014) desenvolvidas em sua pesquisa

“Ressignificando a didática numa perspectiva multi/intercultural” (2003-2006), onde a autora

pesquisou quais os rumos da didática nas duas últimas décadas. Por meio de sua análise ela

concluiu que “embora possamos dizer que há uma continuidade das reflexões em torno da

perspectiva crítica, naquele momento essa abordagem se faz presente de modo mais frágil”

(CANDAU, 2014, p. 119).

Classificando essa nova concepção de didática como um universo plural e

diversificado, a autora identifica novos temas que vão ganhando força, tais como o

multiculturalismo que vem aparecendo aos poucos. A autora enxerga a potência no momento

atual em que

é possível interpretar essa realidade como um momento de

desestabilização e diversificação, em que emerge uma pluralidade de

enfoques, temáticas e problemáticas. O desafio atual da didática, na

perspectiva que privilegio, pode ser sistematizado em como trabalhar

com a diferença, ou melhor, com as diferenças entre seus próprios

atores e protagonistas, favorecendo espaços de interlocução e diálogo

entre, principalmente, os grupos de pesquisa presentes neste campo

(CANDAU, 2014, p. 120).

Tendo em vista essa nova configuração mundial, representado pelo que a

autora chama de mundo pós-moderno, ela sugere o diálogo entre a didática sociocrítica, que

vem sido desenvolvida há alguns anos, e a concepção intercultural, recentemente desenhada

pela autora e seu grupo de pesquisa.

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90

Baseando-se na igualdade e no reconhecimento das diferenças culturais, a

autora desenvolve uma linha de pensamento teórico na busca de alternativas para romper com

o monoculturalismo e os movimentos ocidentalizantes. Como metodologia, o grupo utiliza o

desenho de um mapa conceitual respondendo a seguinte pergunta: Em que consiste a

educação intercultural? Após reuniões e discussões sobre a temática, elencaram quatro

categorias necessárias para se falar em educação intercultural: 1. Sujeitos e atores; 2. Saberes

e conhecimentos; 3. Práticas socioeducativas; 4. Políticas públicas.

Com relação às práticas educativas a autora evidencia que elas devem partir

“do reconhecimento das diferenças presentes na escola e na sala de aula, o que exige

questionar os processos de homogeneização, que inviabilizam e ocultam as diferenças,

reforçando o caráter monocultural das culturas escolares” (CANDAU, 2014, p. 122). Assim, a

partir do reconhecimento da diferença a autora busca reinventar a escola e favorecer

dinâmicas participativas por meio da diferenciação pedagógica e utilização de múltiplas

linguagens e mídia.

Acredito que essa concepção de educação, de escola e, principalmente de

didática carrega uma potência bastante significativa...

3.2. Qual o lugar da didática específica associada a disciplina geografia?

A construção dessa reflexão parece ter sido o momento mais delicado da trajetória

dessa investigação. Primeiro, porque esta parece ser a questão central da minha pesquisa, uma

vez que o objetivo ainda se concentra na análise e reflexão sobre as metodologias de ensino

de geografia que aparecem nos documentos curriculares para esse campo de conhecimento.

Segundo, porque sempre tive muito interesse por discussões envolvendo método e

metodologia. Durante a graduação tive o prazer de ser monitora do Programa de Apoio

Didático (PAD)37

da disciplina de Metodologia de Ensino da Geografia, ministrada pela

professora Tereza Paes - uma das docentes mais queridas da minha trajetória na graduação -,

onde consegui refletir um pouco mais sobre questões teórico-metodológicas no campo

científico da geografia. E, em terceiro lugar, porque ao olhar para a minha formação, sinto

37

O Programa de Apoio Didático (PAD), instituído pela Resolução GR-49/2007, é um programa de bolsas destinado exclusivamente a alunos de graduação regularmente matriculados na Unicamp. Suas atividades visam o aprimoramento do ensino de graduação através de monitoria exercida por estudantes e deverão ter a supervisão do professor responsável pela disciplina. Informações retiradas do site da instituição. <https://www.prg.unicamp.br/index.php/o-que-e-pad>

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91

uma fragilidade nas discussões sobre metodologia de ensino de geografia38

, o que me instigou

a refletir sobre isso, mas, ao mesmo tempo, me deixou/deixa bastante insegura ao me

apropriar de algumas linhas teóricas e alguns questionamentos.

Dito isso, e enfrentando as angústias e os estranhamentos, ao iniciar as primeiras

leituras sobre metodologia de ensino de geografia, buscando compreender a construção da

didática da geografia, lembrei-me de uma situação vivida há dois anos atrás, quando ainda

ministrava aulas de geografia na educação básica. Certa vez, ao apresentar o planejamento

anual para o coordenador pedagógico da escola em que trabalhei, lembro-me que ele fez o

seguinte comentário: “Giovanna, você não está aqui para formar mini geógrafos, você

precisa ensinar aos alunos a geografia escolar, não precisa trazer todos os autores de sua

formação”. Dona da verdade que sou, e professora no início de atuação, possuindo uma

formação extremamente acadêmica e bacharelesca, senti um grande incômodo com tal

questionamento, a ponto de negá-lo e continuar com aquilo que eu estava desenvolvendo. No

entanto, eis que nesse momento surgem em mim questionamentos que me acompanham e

causam-me incômodos até os dias de hoje: que geografia escolar é essa? Como transformar as

linhas teóricas que pensei durante os anos de graduação em uma geografia escolar? E mais,

como fazer com que isso se torne interessante aos alunos? Como legitimar essa geografia? O

que venho pensando nesta sessão, traz um pouco da minha própria história de formação

docente, são algumas reflexões que venho carregando comigo há algum tempo.

Ao pensar sobre a geografia escolar, percebo que há um aglomerado de disputas

vindas do campo da geografia acadêmica ao longo de seu desenvolvimento, junto disso, há

demandas sociais de leitura de espaços - vividos e não vividos -, que fazem com que

determinados conteúdos e metodologias de ensino permaneçam no currículo escolar.

Os teóricos no campo da investigação do surgimento da geografia escolar têm

associado o histórico da geografia enquanto disciplina escolar em um momento anterior a

consolidação da geografia acadêmica, de seu campo científico. Alguns autores chamam

atenção ao fato de que a disciplina geográfica supriu a necessidade de incutir o sentimento de

38

A licenciatura em geografia da Unicamp possui uma marca muito forte do bacharelado em geografia, como é possível observar nas dissertações de mestrado de Carvalho (2015): "Licenciatura, bacharelado e geografia: resistir ou reexistir, eis a questão?” e Freitas (2016): “Formar professores-pesquisadores numa escola de bacharéis: a cultura do Pibid de Geografia da Unicamp”. Nesse sentido, as disciplinas oferecidas em minha formação, que elaboraram uma reflexão sobre o ensino de geografia, foram apenas Estágio Supervisionado em Geografia I e II, ainda assim, a temática foi pouco abordada dentro do grande universo e do pequeno tempo para apreender diversas questões.

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92

pertencimento ao novo território que se vinha construindo ainda as primeiras décadas do

século XX, chamado de Brasil. Rocha (1998), no entanto, contrapondo essa ideia, acredita

que para além desse pensamento, o principal objetivo consistia na criação de um instrumento

de divulgação de uma cultura universal, a qual os filhos da elite brasileira deveriam ter acesso

para dialogarem com o mundo dos brancos europeus. Acredito que esse segundo motivo,

apresentado por Rocha (1998) é bastante coerente, uma vez que grande parte dos alunos que

frequentavam a escola, em seu período inicial, pertenciam a elite brasileira. Na prática, penso

que as duas hipóteses acabaram coexistindo em alguns momentos, disputando sentidos na

recente geografia escolar.

A disciplina de geografia em seu período inicial39

apresentava grande influência

da geografia francesa, baseando-se nos conteúdos e livros franceses, que apenas em alguns

momentos eram traduzidos para o português. Essa geografia apresentava-se como descritiva e

mnemônica, buscando a descrição das paisagens e a classificação de nomenclaturas

geográficas. A metodologia de ensino concentrava-se em

transmitir conhecimentos, geralmente estruturados em livros. Nessa

direção, educar significou proporcionar a maior quantidade possível

de dados geográficos aos educandos, com as atividades didáticas do

ditado facilitadas pelos educadores, para dar a conhecer conteúdos

livrescos que os estudantes deveriam adquirir, primeiramente copiar

no caderno e logo memorizar o transmitido como evidência de

aprendizagem (RIVERA, 2012, p. 31).

Com uma concepção de escola baseada nas escolas europeias, surgidas no

contexto de revolução industrial e início da ciência do século XIX, o processo de ensino-

aprendizagem era visto como possível de se existir de forma neutra, buscando extinguir toda

subjetividade, tanto do professor, quanto do aluno.

Nesse sentido, Díaz (1996 apud Rivera, 2012, p. 32), fala sobre a relação entre o

culto à inteligência e às práticas pedagógicas de repetição e memorização, ocasionando uma

escola descontextualizada e distante da realidade dos alunos. No caso da disciplina de

geografia, essa relação com o positivismo científico é perceptível ao analisarmos a história

dessa disciplina escolar ou mesmo livros didáticos de pouco tempo atrás. Práticas de ensino

da disciplina geográfica, com frequência estimulam o ensino enciclopedista, memorístico e

distante de análises das realidades geográficas.

39

Instituída no ano de 1837 no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (ROCHA, 1998).

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93

Entendo que a busca pela objetividade e neutralidade é ressignificada nos dias de

hoje, vivemos em tempos de Escola sem Partido40

, ao mesmo tempo vivemos em tempo de

permissão/incentivo do ensino religioso nas escolas. Essa ressignificação da neutralidade

acontece à medida que a discussão sobre neutralidade no ensino já é superada, a comunidade

produtora de conhecimento, seja na academia ou nas escolas, entendem, em sua grande

maioria, que o conhecimento não consegue ser neutro. Os dirigentes políticos, responsáveis

por desenhar e aprovar leis e decretos que orientam a educação básica, tem um

conhecimento ainda maior dessa questão, no entanto, sabem que isso é um ponto estratégico

da escola, isso é o que a torna um campo de disputa e por isso é que passam a ideia de uma

neutralidade, quando na verdade o que pretendem é demarcar uma ÚNICA visão, uma

ÚNICA ideologia e uma ÚNICA formação escolar que atenda aos seus interesses.

Ao pensar sobre isso, não acredito que “tudo está perdido”, como dizem alguns,

ou ainda, “que para baixo não há limites”, embora reconheça que realmente não há! No

entanto, penso que, na disputa pela significação de que tipo de escola queremos e que tipo de

conhecimentos iremos construir nas nossas escolas, ainda há brechas, ainda há espaços de

resistência e ainda há (e são muitos) os que disputam significações e sentidos e desestabilizam

uma forma de conceber a escola hoje universalizada. É sobre essa escola, é sobre essa

geografia escolar que busco pensar nesse texto. Como transformar a geografia de herança

francesa, descritiva em uma disciplina de interesse aos alunos?

Rivera (2012) propõe uma renovação epistemológica qualitativa, em que

aposta na subjetividade para desenvolver uma geografia escolar significativa aos alunos.

“Essa explicação considera que a realidade geográfica é um constructo humano e pode ser

interpretada ao recorrer as pessoas que a habitam e constroem, pois de uma forma ou de outra

tem opinião empírica a respeito” (RIVERA, 2012, p. 36). Isso possibilita a visualização de

qual a visão de mundo dos alunos, sua realidade e sua vida, questionando a ciência tradicional

Moreira (2000 apud Gonçalves 2012, p. 6) dialogando com Goodson, comenta

que “uma disciplina surge no currículo, muitas vezes, para responder a uma necessidade

imediata e, para que ela ganhe prestígio, vai buscando um caminho mais acadêmico, abstrato,

40

O Programa Escola sem Partido é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental ao médio de um cartaz ditando os deveres do professor associadas a não identificação de opiniões, convicções políticas, ideológicas, morais, religiosas. Informações retiradas do site do programa <https://www.programaescolasempartido.org/>. Entendo que essa proposta além de restringir a liberdade de diálogo em sala de aula, torna praticamente impossível que as aulas de ciências humanas sejam construídas de acordo com o objetivo e a intencionalidade as quais foram desenvolvidas.

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94

mais distanciado do cotidiano, da realidade”. E não é isso o que aconteceu com a geografia?

Inicialmente atendendo às demandas sociais, posteriormente, ao se aproximar da ciência

geográfica, muitas correntes teórico-metodológicas perpassaram a geografia acadêmica. Mas

seria esse o objetivo da geografia escolar, formar “mini-geógrafos”?

Batista (2017), em sua tese de doutorado, ao realizar um levantamento de artigos

sobre ensino/método da geografia publicados no Boletim Geográfico, classifica as prescrições

didáticas e técnicas no que chama de quatro famílias argumentativas que faziam o discurso

geográfico funcionar: 1. Método moderno de ensino; 2. Estudo do meio; 3. Psicologia escolar

e 4. Recursos didáticos.

Segundo o autor, o método de ensino tradicional da geografia, representado pela

descrição e práticas de memorização “não dava mais conta das características sócio históricas

encontradas tanto nas salas de aula quanto nos avanços científicos do pensamento geográfico”

(BATISTA, 2017, p. 84). A geografia moderna e seu método pautado na observação,

descrição e explicação, acrescenta a neutralidade e a passividade como um instrumento de

ação.

Existe algo por detrás da paisagem geográfica, não-perceptível à

primeira vista; por isso, deve ser analisado de modo semiótico. É

numa atividade investigativa como essa que se valoriza a atuação

do professor de Geografia, pois ele pode orientar seus alunos a

encontrar a chave que explica o mapa, a paisagem, o objeto

geográfico (BATISTA, 2017, p. 85).

A geografia pautada na explicação do mapa, da paisagem ou do objeto geográfico,

segundo o autor, deve estar centrada na unidade entre homem e natureza, deve-se enfatizar as

interdependências que constituem o espaço geográfico, bem como a negação do determinismo

geográfico. Para tanto, o autor propõe que a abordagem metodológica da geografia escolar se

concentre na resolução de problemas na sala de aula, concentrando em “problemas da vida

humana” (CARVALHO, 1952d). Essa metodologia ativa, onde o aluno é o sujeito de sua

aprendizagem ao resolver os problemas que tocam sua vida, é baseada no tripé metodológico

ver, pesquisar e fazer, superando a observação e descrição da geografia tradicional.

O mesmo autor, ao comparar a geografia tradicional e a geografia moderna

compartilha as ideias de Pinto (1964a, 1964b), onde a autora menciona que a primeira, a

geografia tradicional, tem como alicerce a memorização e a descrição, instrumentos presentes

nas viagens dos primeiros geógrafos, enquanto a segunda fundamenta-se pelo acoplamento

entre observação e explicação científica. Com isso, fica a seguinte questão: em que medida a

geografia escolar é unicamente tradicional ou moderna? Quantas vezes nós, professores,

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95

utilizamos de métodos e metodologias que concentram diversas correntes teórico

metodológicas da geografia?

Lestegás (2012) ao diferenciar a geografia acadêmica e a geografia escolar pontua

que a última reúne saberes já existentes e que em algum momento e lugar são considerados

úteis para a formação dos cidadãos. No caso da geografia escolar, a ciência de referência – a

geografia – não se apresenta aos professores como um referencial teórico-metodológico único

e coerente internamente. Para o autor, “o progresso científico não vem determinado, neste

caso, por uma sucessão de “revoluções” ou substituições de um paradigma por outro, senão

pela tensão entre as diversas correntes de pensamento vigentes” (LESTEGÁS, 2012, p. 17).

Assim, as diferentes correntes teórico-metodológicas desenvolvidas pela geografia

acadêmica e trabalhadas durante o processo de formação do licenciando em geografia

aparecem acumuladas e efetivadas na prática docente.

De acordo com as concepções a respeito da disciplina que ensina e de

seu próprio oficio, o professor pode-se inclinar para uma ou outra

corrente, ainda que na maior parte dos casos utilize um pouco de tudo,

confusão paradigmática a que conduzem as próprias diretrizes oficiais

e, certamente, os livros didáticos (LESTEGÁS, 2012, p. 17).

Com isso, acredito que as discussões sobre a supremacia de uma corrente teórico-

metodológica da geografia, em detrimento de outra, devem ser questões superadas. Straforini

(2008, p. 68), refletindo sobre essa questão realiza a seguinte afirmação: “a Educação

comprometida com a transformação deve estar alicerçada no método dialético”. Acredito que

essa afirmação se encontra datada, marcada por um conjunto de referenciais teóricos

utilizados pelo autor no momento da escrita desse livro, que se diferenciam das reflexões

teóricas que o autor tem apresentado recentemente.

Desenvolvendo ainda mais essa questão, outra discussão que se encontra superada

diz respeito a articulação única entre concepções teóricas da Geografia e da Educação, como

salvação de todos os problemas da Educação brasileira, como é mostrado nas seguintes

palavras,

A crise da Geografia é, enfim, a materialização da não-coerência dos

pressupostos teórico-metodológicos da própria disciplina geográfica

com os da Educação, uma vez que na prática educativa elas caminham

em sentido oposto, ou seja, quando os professores primários dominam

os avanços teóricos-metodológicos da Educação, não os dominam da

Geografia e vice-versa. Essa crise continua a reproduzir em sala de

aula a noção de espaço absoluto, fragmentado e congelado

temporalmente (STRAFORINI, 2008, p. 72).

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96

O próprio autor acima citado, refletido sobre seus escritos e parafraseando um

livro (MARTINS; TONINI; GOULART, 2014) faz a autocrítica a essa afirmação acima. Para

ele:

Fazer tal afirmação me é muito caro, pois não mais do que dez anos

defendia em meu livro “Ensinar Geografia: o desafio da totalidade

mundo a séries iniciais” que “a filosofia da Geografia Escolar não

poderia continuar sendo uma colcha de retalhos”, e que “a crise do

ensino de Geografia é, enfim, a materialização da não coerência dos

pressupostos teórico-metodológicos da própria disciplina com os da

Educação (STRAFORINI, 2014, p.8).

Dialogando com os pressupostos da corrente cotidianista da Educação, Straforini

(2014, p. 8) afirma que que “não se trata de pré-definir esse ou aquele referencial teórico e

pedagógico para falar, dialogar, ouvir o “o quê” e o “como” se ensina-aprende geografia, mas

deixar que essa(s) geografia(s) fale(m) e se revele(m).” Para o autor, os(as) pesquisadores(as)

da área do Ensino de Geografia nas últimas duas décadas, ao se apropriarem mais dos

fundamentos das pesquisas educacionais, passaram a falar mais “com”, “na” e “da” escola do

que “sobre” a escola, mudando a própria escala de análise: ao invés de se fixarem na análise

da macro-estrutura educacional, passaram a incorporar a micro escala, ou seja, o chão da

escola e o seu cotidiano. Para Straforini (2014, p. 9) essa mudança escalar possibilitou um

olhar mais híbrido.

Não se trata de “ecletismo” ou de “colcha de retalhos”, mas de

sombreamentos, ou como nos ensina Nestor Garcia Canclini de

“hibridismos”. Aprendemos e identificamos na escola não somente a

cultura da reprodução do sistema capitalista, de um colonialismo

didático-pedagógico; de um professor fixado apenas no “triplo d”:

desqualificado, desmotivado e desmoralizado, mas desse mesmo

professor que também se revela insurgente, subversivo, criativo; que

as mesmas mãos invisíveis que operam os desejos de um Estado

opressor, também operam a liberdade, mesmo que instantaneamente

(STRAFORINI, 2014, p. 9).

Com essas referências o que pretendo esclarecer é que acredito que a geografia

escolar pode/deve pautar-se nas diferentes correntes teórico-metodológicas da geografia

acadêmica, dialogando com diferentes concepções de Ensino, Educação e Didática. O

professor, enquanto intelectual licenciado, possui formação suficiente para executar suas

escolhas e determinar em que momento de sua aula, cada uma dessas correntes da Geografia e

da Educação apresentam-se como potentes.

Rocha (2008) ao pensar os documentos curriculares que apresentam potência para

o ensino de geografia nos dias atuais, menciona que “a leitura atenta do trecho extraído do

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PCNs de Geografia permite evidenciar que o movimento de hibridização entre as perspectivas

teóricas do campo geográfico estabelecem articulações discursivas com outros campos de

saber” (p. 21).

Com base nessas constatações, bem como na vivência de diferentes documentos

curriculares entendo que a geografia escolar não é uma cópia da geografia acadêmica, tão

pouco apenas uma “transposição”41

do que é desenvolvido na ciência geográfica. A geografia

escolar tem um objetivo, um projeto e uma flexibilidade que vem do cotidiano e da

necessidade de cada sala de aula a fim de que se delimite os conteúdos e a forma com que

esses conteúdos serão trabalhados. No entanto, acredito que a geografia acadêmica acaba

ecoando na geografia escolar com relação ao método, o que chamamos de visão de mundo - a

forma com que olhamos para o espaço geográfico a partir de referenciais teóricos que nos

ajudam a pensar o objeto de estudo da geografia. As diferentes correntes teórico-

metodológicas, tais como geografia positivista, geografia teorética-quantitativa, geografia

crítica e geografia humanística acabam influenciando a geografia escolar e formando o que

Rocha (2008) chama de “hibridização entre as perspectivas teóricas do campo geográfico”.

O quadro abaixo é um esboço elaborado de forma livre, sem recorrer a autores

específicos, pautado em minha própria percepção das correntes teórico metodológicas da

geografia acadêmica e na forma com que elas influenciam na construção de uma geografia

escolar hibrida. Uma vez que a construção é feita a partir do meu entendimento sobre as

geografias, entende-se que há um recorte e uma seleção de correntes epistemológicas, bem

como conteúdos geográficos que me despertam a atenção. É importante salientar que, ao

desenvolver esse quadro, não pretendo legitimar ideias que afirmam a dependência entre a

geografia escolar e acadêmica, ao contrário disso, o que pretendo é demonstrar que, embora

haja uma relação teórica associada ao método da geografia em ambas as instituições

(academia e escola), os instrumentos metodológicos são apresentados de forma distinta,

adaptando-se a realidade de cada um deles.

41

Em referência ao conceito de Transposição Didática de Chevallard.

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98

QUADRO 5: MARCOS EPISTEMOLÓGICOS DA

GEOGRAFIA ACADÊMICA E SUAS REFLEXÕES NA GEOGRAFIA

ESCOLAR

AS GEOGRAFIAS ACADÊMICA ESCOLAR

GEOGRAFIA TRADICIONAL Descrição e classificação

da paisagem

Classificação de aspectos

naturais ao estudar os

espaços geográficos

GEOGRAFIA TEORÉTICA

QUANTITATIVA

Quantificação com

objetivo de aproximar a

geografia da ciência que

vinha sendo

desenvolvida

Gráficos, tabelas, mapas

quantitativos, dados

estatísticos

GEOGRAFIA CRÍTICA

Explicação de

fenômenos geográficos a

partir da crítica a

sociedade capitalista

Discursos associados a

formação do cidadão

GEOGRAFIA HUMANÍSTICA

Sob influência da

fenomenologia, busca

alcançar diferentes tipos

de percepção, valores e

atitudes frente ao espaço

geográfico

Lugar e espaço vivido

enquanto categorias de

análise

Fonte: Minhas memórias e concepções construídas em um curso de graduação em geografia

Elaboração própria

Com base nessas considerações pergunto-me: Qual o papel da geografia escolar

atualmente? Quais as metodologias de ensino dessa disciplina? Existe uma didática da

geografia enquanto corrente epistemológica?

Callai, Cavalcanti e Castellar (2012), entendem que os pilares para a

interpretação, tanto da ciência geográfica como da geografia escolar, pautam-se nos conceitos

de espaço, lugar, paisagem e território. Para essas autoras, a geografia escolar deve empenhar-

se em “articular os conteúdos com a vida social cotidiana e a escola, e as práticas de ensino de

Geografia tem, assim, o papel de promover a formação geral e a construção de interpretações

de mundo” (p. 87). As autoras afirmam que as crianças e jovens devem estar conscientes das

características de tempo e espaço que estão inseridas, bem como da relação entre global e

local, a fim de interpretarem os acontecimentos em uma escala social de análise, buscando

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99

compreender o mundo em que vivem. Para isso, as autoras entendem que o objetivo da

geografia escolar é o desenvolvimento de “capacidades de pensar e atuar de modo autônomo,

de resolver problemas, estabelecendo suas próprias metas, definindo suas próprias estratégias,

trabalhando as informações e construindo recursos técnicos para atender às suas

necessidades” (p. 87).

Callai (2012) entende que o ensino de geografia, ao se preocupar com a

explicação e compreensão do mundo, a contextualização espacial e social no mundo em que

se vive, bem como pela construção de um mundo mais justo, apresenta uma potência, uma

vez que pode ser compreendido enquanto educação geográfica, cujos objetivos são maiores.

Para a autora, a educação geográfica compreende a análise da sociedade e do mundo a partir

da espacialidade dos fenômenos, valorizando o lugar como categoria/conceito de análise

potente para que a educação geográfica seja significativa ao aluno.

A geografia pode ser um instrumento para compreender o mundo e a

sociedade – como esta se organiza para produzir a vida das pessoas,

como são as relações entre as pessoas e como é esta relação com a

natureza e a partir daí como se concretizam no espaço essas vivências.

O ensino de Geografia caracteriza-se, então, como a possibilidade de

desenvolver raciocínios geográficos por meio de um olhar espacial

que permita compreender a sociedade (CALLAI, 2012, p. 79).

Segundo a autora, o raciocínio geográfico é desenvolvido a partir do “olhar

espacial”, onde são trabalhados os conceitos e as categorias geográficas a fim de que se

desenvolva uma análise geográfica da sociedade. Esses conteúdos são divididos de três

maneiras:

Conteúdos procedimentais: desenvolvimento da capacidade de fazer e de saber

o que fazer. Isso acontece por meio da adoção de procedimentos adequados na realização de

determinada tarefa.

No trabalho com mapas, gráficos, tabelas, trabalhos de campo,

fazendo observações, entrevistas, trabalhando com a orientação

espacial, pode-se verificar a capacidade do aluno de se utilizar de

variadas fontes e conseguir os instrumentos para fazer seu

aprendizado” (CALLAI, 2012, p. 82).

Conteúdos atitudinais: responsáveis pelo desenvolvimento de valores, atitudes

e comportamento.

São assentados fortemente nas relações entre os grupos e pessoas da

escola e, dessa maneira, envolvem o aspecto aferivo e emocional e

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100

dizem respeito a conhecimentos e crenças (valores éticos),

sentimentos e preferências (atitudes) e ações e declarações (normas ou

regras de convivência social) (CALLAI, 2012, p. 82).

Conteúdos conceituais: aqueles relacionados a definição de um conceito.

O estudante pode, além de reproduzir e repetir sua definição, usar

como instrumento para interpretar, para avançar na compreensão da

realidade em que vive. A ideia de construção de conceitos supõe que

seja cada vez maior a complexidade do/no tratamento dos conceitos

no decorrer das aprendizagens (CALLAI, 2012, p. 82).

Para Callai, esses três tipos de conteúdos devem ser problematizados com os

alunos, pois eles definem o objetivo do ensino da geografia escolar, e sedimentam o

raciocínio geográfico.

A autora segue desenvolvendo o que entende como sendo a metodologia de

ensino da geografia escolar pautada em questionar/problematizar/contextualizar. Segundo

ela, o ensino de geografia deve romper com a visão dicotômica entre homem e natureza, bem

como proporcionar mais do que uma leitura de uma realidade geográfica, mas sim uma

interpretação baseada no questionamento na problematização e na contextualização.

A seguir a autora apresenta um esquema representando a origem dos conteúdos

da geografia escolar e a forma com que ela sugere que os conteúdos sejam trabalhados.

Fonte: Callai (2002)

Elaboração própria

Nesta leitura, a construção do conhecimento é a última fase em que o conteúdo de

geografia é apresentado. Os dados, muitas vezes representados como centrais nas aulas de

geografia, não possuem grande potencialidade se não forem trabalhados, ou seja,

transformados em informações. As informações transformam os dados para explicar algo a

respeito de determinado objetivo, e estas, por sua vez, quando contextualizadas, transformam-

se em conhecimentos. Para a autora, essa metodologia aproxima a geografia escolar do

Conteúdo de Geografia

Dados Conhecimentos Informações

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101

contexto dos alunos, tornando-a mais significativa e interessante a eles, uma vez que os

coloca como produtores do próprio conhecimento geográfico.

Pensando a respeito dos saberes ensinados na pela geografia escolar, Lestegás

(2012) acredita que a escola não ensina os conhecimentos científicos, mas sim os saberes

“escolarizáveis” aqueles necessários à cultura escolar, derivados de quatro elementos:

1. Uma “Vulgata”: diz respeito a um conjunto de conhecimentos ou conteúdos

compartilhados pelos professores de geografia e considerados próprios da disciplina.

Entre as vulgatas da geografia incluem-se os exercícios de localização, por

exemplo: “A Ásia é o continente em que vivem mais pessoas e o de maior densidade”.

Também são vulgatas as relações, tais como “o cultivo de arroz em regime de inundação

explica o povoamento nos países do Extremo Oriente”.

Esses dois exemplos representam o conteúdo principal da vulgata:

conhecimentos fatídicos, nomenclaturas e vocabulários específicos, desenvolvidos enquanto

conceitos da geografia escolar.

2. Exercícios-tipo: são fundamentais para a definição e delimitação de conteúdos.

Para a geografia os exercícios-tipo podem ser associados a documentos cartográficos, quando

são utilizados como instrumentos de informação no auxílio da vulgata, mencionada acima.

O autor elabora uma crítica aos exercícios-tipo da geografia que muitas vezes

funcionam como fonte de informações ou comprovação de dados, exigindo pouca reflexão e

análise dos alunos.

3. Procedimentos de motivação e incitação ao estudo: refere-se aos meios de

legitimar a disciplina escolar. Serve para pensar na postura do professor frente aos alunos,

buscando despertar o interesse destes para a geografia escolar, bem como a construção global

da disciplina e às lutas perante a comunidade escolar e a própria sociedade pela sobrevivência

da geografia escolar.

Nesse sentido, o autor trabalha com a ideia de que a geografia utiliza como

procedimento de motivação aos alunos as questões de atualidades e problemas

contemporâneos, que acabam ressaltando a importância da aprendizagem de certas questões

geográficas.

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4. Um conjunto de práticas de avaliação: esse elemento permite que o professor

credite os aprendizados realizados, por meio de elementos quantificáveis de medida de

aprendizagem de seus alunos. Para tanto, alguns tipos de exercícios, como elaboração de

mapas, análise de mapas, construção e interpretação de gráfico, tem bastante tradição nas

avaliações de geografia.

[...] determinados exercícios adquirem a função específica de provas

de valoração. Este elemento exerce peso considerável sobre o

desenvolvimento da classe de da matéria, de maneira que professores

e alunos mostram uma preocupação especial pelo que costuma “cair”

no exame (LESTEGÁS, 2012, p. 24).

Dessa maneira o autor constrói uma reflexão a respeito do ensino de geografia e

seus principais instrumentos metodológicos utilizados na construção do conhecimento.

Contribuindo com esse diálogo, Cavalcanti (2017) acrescenta que o ensino de

geografia se baseia na construção de conteúdos geográficos entendidos como instrumentos

simbólicos potentes a análise da realidade sob determinada perspectiva. Os conteúdos

geográficos são conjunto de categorias, conceitos, teorias, dados e informações. A construção

de conteúdos geográficos é feita a partir dos conceitos analíticos da geografia, os quais a

autora chama de conceitos mais abrangentes: lugar, território, paisagem, região, natureza,

ambiente, entre outros. Esses conceitos são a base do trabalho de mediação didática do

professor, uma vez que são ferramentas simbólicas que permitirão aos alunos a compreensão

dos conteúdos escolares, das informações vinculadas a escola e a vida.

Em outras palavras, a mediação didática, intencionalmente organizada

pelo professor no ensino de Geografia, colabora para os processos de

desenvolvimento intelectual, cognitivo, emocional, intervindo na

construção de uma rede de conceitos geográficos dos alunos, ou seja,

em sua rede de significações que irá orientar seu pensamento e suas

práticas cotidianas (CAVALCANTI, 2017).

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103

Fonte: Cavalcanti, 2017, p. 114

Elaboração própria

A autora trabalha sob a perspectiva de que os conceitos científicos não devem ser

apresentados de forma isolada, mas sim unidos em um sistema de conceitos maior. Para a

geografia, esse sistema de conceitos tem como base o espaço geográfico, por meio dele

diversos outros conceitos vão surgir a depender do assunto abordado em aula. Dessa maneira,

a autora sugere que o professor, ao preparar a aula, defina quais os conceitos são necessários

abordar para o entendimento de determinado assunto, isso seria o que aparece no esquema

acima como “sistematizar”.

A problematização inicial funciona como uma medida de interesse dos alunos

com relação ao tema, bem como na forma como o professor relaciona o assunto tornando-o

potente aos interesses dos alunos a partir da aproximação com o cotidiano dos mesmos.

Duarte (2016), em sua tese de doutorado elabora uma reflexão sobre a cartografia

escolar e destina um de seus capítulos para a reflexão sobre o conhecimento geográfico.

Considerando as distintas correntes teórico-metodológicas do campo epistemológico da

geografia, o autor assume que “a despeito das muitas e recorrentes questões epistemológicas

da Geografia, sempre esteve presente, de alguma maneira, nessa disciplina a ideia de que

existe um pensar que é característico desse ramo do conhecimento”: o pensamento espacial

(DUARTE, 2016, p. 77).

Duarte (2017), elabora uma caracterização do que pensam as autoras de referência

em pesquisas sobre a geografia escolar (CAVALCANTI, CASTELLAR, ALMEIDA). Nessa

análise, o autor destaca o posicionamento das autoras entendendo que a educação geográfica é

responsável pela formação de pensamentos ou raciocínios geográficos. Assim, nossas

Demarcação do foco central da abordagem, dos principais conceitos geográficos e habilidades a serem trabalhadas com os

alunos

Experimentar

Conteúdo Geográfico (teorias, temas, dados, tópicos de conteúdos)

Problematizar Sistematizar Sistematizar

Conceitos Científicos (uma compreensão mais abrangente do tema)

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104

metodologias de ensino devem estar pautadas na compreensão de operações cognitivas que

envolvam o entendimento dos fenômenos socioespaciais como fonte do conteúdo geográfico.

Para o autor, os fenômenos socioespaciais são parte fundamental do conhecimento

geográfico e podem ser adquiridos a partir do Pensamento Espacial (Spatial Thinking),

conceito este desenvolvido por geógrafos anglo-saxões a partir de 1990, e sistematizado no

relatório produzido pelo Conselho Nacional de Pesquisa Estadunidense (National Research

Council – NRC), publicado no ano de 2006, que caracteriza o pensamento espacial baseado

em três elementos: conceitos espaciais, instrumentos de representação e processo de

raciocínio. Esses conceitos são definidos por diversos pesquisadores que atuam no processo

de construção desse referencial teórico.

Os “Conceitos Espaciais” são como blocos estruturadores do pensamento

espacial. São exemplos: localização, densidade, região, hierarquia, fronteira, perfil, gradiente

e redes; as “Formas de Representação” assemelham-se a ferramentas cognitivas que podem

ampliar a aprendizagem e o pensamento, estão associadas a duas formas: internas e externas.

A facilidade é não memorizar as questões trabalhadas, mas sim utilizarmos os recursos

cartográficos; e, o “Processo de Raciocínio” é o elemento do pensamento espacial responsável

por definir a cognição envolvida ao mobilizarmos conceitos e representações espaciais. É

nesse momento que aluno consegue avançar para além da informação espacial e adquire o

conhecimento espacial (DUARTE, 2017).

Acredito que o pensamento espacial se mostra potente enquanto um dos métodos

de ensino da geografia escolar, uma vez que envolve diversas áreas, como a psicologia

cognitiva, matemática e, principalmente, a geografia.

Recentemente, assisti uma aula introdutória de geografia no Colégio Técnico de

Campinas (COTUCA), onde estou atuando como monitora em um projeto do professor de

geografia do colégio em que o professor trabalhava a importância da geografia no cotidiano

dos alunos. Para isso, ao valorizar a noção espacial em nossas vidas, o professor apresentou a

seguinte frase de Aristóteles: “O que está em nenhum lugar, não existe”.

Essa frase simples e objetiva me fez pensar sobre a importância do papel da

geografia enquanto a principal, se não a única, disciplina escolar responsável pela construção

do pensar espacialmente. Assim, desenvolver métodos que nos possibilitem desenvolver

metodologias de ensino acerca de como trabalhar esse pensamento espacial nos dias de hoje é

um dos grandes desafios ao ensino de geografia que nos é colocado.

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105

Duarte (2016) defende que não se deve criar uma disciplina escolar para que seja

trabalhado o pensamento espacial, mas sim que ele deve ser apresentado enquanto um eixo

horizontal do currículo. Ressaltando que o pensamento espacial aborda o espaço geométrico

ou euclidiano e não o espaço geográfico, acredito que ele seja um dos métodos apresentados

ao ensino de geografia escolar, uma vez que como discutimos acima, a espacialização dos

fenômenos é a base da geografia escolar, no entanto, outros raciocínios também são

desenvolvidos por essa disciplina e acredito que o desenvolvimento apenas do pensamento

espacial não conseguiria dar conta da complexidade da disciplina.

Assim, a pergunta que fica é: como utilizar o pensamento espacial para

desenvolver o raciocínio geográfico?

As breves revisões bibliográficas de autores de referência do ensino de geografia

trazidas a esse texto permitem enumerar algumas questões sobre a didática específica da

geografia:

1. É consenso entre os autores que existem alguns conceitos básicos que devem

permear o ensino de geografia. Eles variam na quantidade desses conceitos, bem como na

forma com que eles devem ser trabalhados, mas todos pensam que a geografia escolar

subsidia a leitura do espaço geográfico por meio da análise desses conceitos.

2. A geografia escolar é responsável por espacializar os fenômenos geográficos,

por isso a questão escalar entre local e global é de fundamental importância.

3. Os autores apresentam a importância da superação entre geografia física e

geografia humana. A relação homem/meio deve ser apresentada de forma unificada para que

os alunos possam compreender a construção do espaço geográfico.

4. O raciocínio espacial aparece com bastante potência para legitimar as disputas

em torno da disciplina geografia. Isso acontece porque desenvolver o raciocínio espacial é de

fundamental importância na formação do aluno e essa tarefa é função primariamente da

geografia escolar.

Portanto, o que se discute nesse capítulo não nos permite condenar o

desenvolvimento dos “caderninhos” como material didático. Pelo contrário, o material

apresenta o que há de mais moderno no campo da didática, combinando vários momentos

históricos e apresentando vários tipos de didáticas distintas a fim de alcançar diferentes

intencionalidades. No entanto, o que se pretende questionar é a forma com que esse

documento é utilizado, como ele apresenta-se enquanto política eficientista, instrumentalista,

para atender a demanda do Estado em encontrar uma educação de qualidade aos seus moldes.

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106

CAPÍTULO 4: ESCUTANDO ÀS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO COMO OS

DISCURSOS PRODUZIDOS PELAS POLÍTICAS CURRICULARES CHEGAM ÀS

ESCOLAS

O capítulo de fechamento dessa dissertação tem como objetivo ampliar a

discussão sobre o sentido das políticas curriculares aplicadas pelo Estado de São Paulo no

cotidiano dos professores da rede pública de ensino. A necessidade de ouvir os professores foi

se construindo e se solidificando ao longo da execução da pesquisa, uma vez que inicialmente

pretendíamos investigar apenas os documentos curriculares. No entanto, com os

direcionamentos que a pesquisa foi tomando e a readequação dos objetivos específicos

pautados no entendimento dos sentidos discursivos que estão por trás da criação do Programa

São Paulo Faz Escola, se fez necessário ouvir alguns professores da rede estadual de

educação, a fim de compreender como essas políticas curriculares chegam às escolas, são

interpretadas, ressiginifcadas ou, simplemente, ignoradas, por parte dos sujeitos escolares.

Assim, esse capítulo é construído a partir do que foi sendo apresentado pelas professoras

durante as entrevistas, alinhavando suas falas com reflexões teóricas.

A Secretaria Estadual de Educação reconhecendo que quaisquer políticas

perpassam pelos sujeitos escolares e que as condições materiais do seu sistema se encontra

completamente precarizada, o almejado discurso “qualidade educacional” encontra no seio de

seu próprio sistema, comporta-se enquanto corte antagônico para que tal discurso de

qualidade se hegemonize (JORDÃO, 2016).

As entrevistas foram realizadas com o objetivo de compreender como essa

política curricular é instituída nas escolas, quais são as formas de controle institucionais para

que ela seja executada, bem como as formas de resistência por parte dos professores.

Retomando as discussões desenvolvidas nos capítulos 2 e 3, o posicionamento dos

professores marca uma disputa de sentidos para significar o termo qualidade da educação.

Assim, ela foi criada de forma a compreender diversos aspectos, contando com a seguinte

estrutura: i. contextualização das professoras; ii. como o Currículo do Estado de São Paulo

apareceu durante a construção de sua carreira docente; iii. suas práticas e as metodologias de

ensino utilizadas; iv. suas opiniões a respeito do material didático fornecido pelo Programa a

partir das suas aproximações cotidianas; v. algumas outras questões que relevassem aspectos

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107

do cotidiano escolar vivenciado por elas42

. Foram realizadas três entrevistas, cada uma com

uma professora diferente, feita em momentos distintos e individualmente.

A primeira professora entrevistada foi a Bia43

, que trabalha na rede estadual de

educação de São Paulo desde julho de 2014, completando três anos como professora efetiva

no período da entrevista (2017), tendo saído do estágio probatório a pouco tempo. A

professora trabalha com todos os anos, do Fundamental II ao Ensino Médio, mas no ano de

2017 ela não tinha turmas de 2ºEM e nem com os 8ºEF. Ela trabalha em duas escolas

estaduais que se localizam na periferia de Campinas. A professora Bia tem uma forte ligação

com a Universidade Estadual de Campinas, tendo finalizado seu mestrado recentemente e,

agora, iniciado seu doutorado no Instituto de Geociências, na área de climatologia.

Nathália foi a segunda professora a ser entrevistada. Sua entrevista foi

realizada no ambiente escolar, enquanto imprimia simulados para seus alunos. Ela trabalhava

com os dois 6º anos, e um 1º EM, mas no período em que realizei a entrevista, a professora

estava afastada do cargo de geografia pois havia assumido a vice direção da escola. Ela

trabalhou como professora na rede estadual de São Paulo nos anos 2006 e 2007, ainda sem ser

efetivada, e se efetivou no concurso realizado em 2014, atuando no município de Jundiaí.

A professora Gabi começou a trabalhar na rede estadual de São Paulo em maio

de 2014, entrando como Professora de Apoio a Aprendizagem (PAA), não possuindo turmas

sob sua responsabilidade. O principal objetivo da professora de apoio era de acompanhar os

alunos com dificuldade, mas a professora mencionou que na prática seu trabalho era cobrir a

ausência dos professores. No ano de 2015 ela passou a fazer parte do corpo de docente da

escola como professora de geografia, contratada pela categoria O44

e não como concursada,

trabalhando inicialmente com as turmas do Ensino Médio e, hoje, com as turmas do Ensino

Fundamental II. Ela trabalha no município de Paulínia, em uma escola localizada na área rural

do município, sendo uma das escolas com as melhores notas nas avaliações externas do

município.

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, as entrevistas não visam produzir

generalizações, no entanto, embora pontuais, revelam sentidos que circulam pelas escolas.

Inicialmente pensei em entrevistar professoras que estivessem próximas do meu cotidiano,

42

A estrutura utilizada nas entrevistas está inserida como anexo no final deste texto. 43

Os nomes das professoras foram mantidos, uma vez que as professoras optaram por isso. 44

Relação de trabalho precarizada, feita como regime de contratação. A oferta depende das aulas que sobram após a escolha dos professores concursados.

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108

buscando não estabelecer qualquer linha de pensamento intencional. A professora Bia eu

conheci na disciplina de seminários, onde trocamos algumas ideias sobre escola, ensino de

geografia e como isso aparece na minha pesquisa de mestrado. A professora Nathália

trabalhou comigo em uma escola particular do município de Jundiaí, e ela foi uma das

motivações para o incômodo que se tornou o objeto de pesquisa dessa dissertação. É provável

que essa informação faça sentido quando eu trouxer a voz dessa professora durante esse

capítulo. E a professora Gabi conheci durante a graduação e cursei algumas disciplinas com

ela.

No momento em que realizei as entrevistas essas eram as únicas informações que

eu tinha a respeito do cotidiano das políticas curriculares nas escolas públicas paulistas. Já no

início do ano de 2018 assumi aulas de geografia em uma escola estadual do município de

Jundiaí como professora efetiva, o que fez com que eu mergulhasse, de certa forma, em minha

própria pesquisa, que já estava bem consolidada naquele momento, por isso, acredito que este

capítulo seja onde eu consiga trazer de maneira mais clara um pouco da minha própria visão

de professora de geografia na escola pública estadual.

4.1. As impressões sobre os “caderninhos” de quem o usa cotidianamente

A pretensão de se trabalhar com as impressões que as professoras tinham ao

vivenciar a utilização cotidiana do material didático fornecido pelo Programa não foi para

apenas concluir que materiais didáticos engessam e limitam a autonomia dos docentes, uma

vez que isso é uma opinião compartilhada entre a maioria dos docentes. O que pretendo

analisar nesta parte do texto identificar é compreender no cotidiano escolar os sentidos

discursivos que estão em disputas sobre “qualidade educacional”; pelo lado do Estado, uma

qualidade baseada na padronização das práticas docentes por meio dos Cadernos de Geografia

dos docentes e dos alunos (“caderninhos”) e, por parte dos docentes, uma qualidade baseada

na autonomia docente.

Analisando as falas das três professoras, identifico que todas elas entendem os

“caderninhos” enquanto instrumento de currículo, como forma de se organizar os conteúdos

da disciplina, e a tentativa de impor uma rotina e uma didática única nas escolas de todo o

sistema educacional do Estado de São Paulo, limitando radicalmente a autonomia docente. Os

trechos que se seguem abaixo representam essa preocupação.

Eu uso o “caderninho” como um meio que me norteia. Como uma

forma de lembrar que eu tenho que ensinar esse conteúdo este ano,

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109

porque ano que vem eles vão aprender outras coisas, e eles têm que

ter esse conteúdo como base. Eu sempre penso isso porque a gente

nunca sabe qual professor vai pegar a turma. Assim, não dá pra eu

dar uma coisa que não tenha nada a ver do “caderninho” porque

pode ser que o ano que vem eles vejam a mesma coisa, e isso vai

prejudicá-los (Professora Gabi).

A ordem eu sempre sigo, porque a cobrança que aparece no SARESP

e nas provas é naquela ordem [dos caderninhos]. Como agora, na

aplicação dessa AAP45

que veio, o conteúdo foi início do ano. Então,

se o professor em algum momento mudou a ordem e não deu aquele

conteúdo, o aluno não vai conseguir fazer a prova. Esse é um

problema, tem que seguir a ordem (Professora Nathália).

As falas das duas professoras demostram que a forma que utilizam os

caderninhos é a de orientação curricular acerca dos conteúdos a serem desenvolvidos em sala

de aula. No entanto, uma forte questão a ser considerada é a forma como a avaliação externa é

concebida para servir como um instrumento de verificação da utilização dos “caderninhos”,

uma vez que os próprios conteúdos que são apresentados bimestralmente nesse material são

cobrados nas avaliações. Assim, apesar de o currículo ser utilizado como um instrumento

didático, há uma forte intencionalidade em constituir uma política de currículo conservadora e

tecnicista, em que se sutura discursivamente o problema da falta de qualidade da educação

paulista e os baixos resultados nas avaliações externas à qualidade das aulas dos professores.

Logo, os caderninhos são apresentados como uma resposta e alternativa aos problemas

educacionais, uma vez que neles se apresentam o conteúdo a ser trabalhado, os planos de aula

prontos, com todas as sequências de aprendizagem já definidas, item por item, ponto por

ponto; bem como as atividades que os alunos devem executar nos “caderninhos” dos alunos.

Para além disso, também é possível compreender os discursos envolvendo a

intencionalidade de se usar o material didático. A professora Nathália é sempre mais enfática

sobre o resultado das avaliações externas, enquanto que a professora Bia, opõem-se a

qualquer tentativa de enquadrar-se no modelo sugerido pelo Estado, apontando que “a

utilização completa dos caderninhos reduz a autonomia e precariza a aula, que é o que o

Estado quer. Essa é minha visão! Ele quer uma aula medíocre, porque ele não quer

pensadores críticos no futuro. Ele [o Estado] quer uma massa trabalhadora. Essa é a minha

visão” (Professora Bia). Assim, isso me revela que a forma com que os professores reagirão

45

Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP), consiste em uma avaliação externa anterior ao Saresp, ocorrem nos meses de fevereiro e agosto e o objetivo é que os alunos testem habilidades desenvolvidas no currículo e que serão cobradas no Saresp.

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às políticas curriculares vai varia a depender de sua formação e do ambiente escolar ao qual

estão inseridos.

Outro ponto relatado pelas professoras é que o material didático apresenta

apenas uma lista de exercícios prontas e descoladas da realidade do aluno ou mesmo de uma

reflexão teórica desenvolvida anteriormente.

eu o acho ruim os “caderninhos”, mas eu acho que ele é

condizente com o que o Estado entende que é a realidade desse público, porque é um material fraco, uma vez que não aprofunda

muito os conteúdos. Por exemplo, o aluno abre o “caderninho” e

já tem lá um exercício. O que você supõe? Que você tem que problematizar essa temática antes do exercício. Mas o próprio

“caderninho” do aluno não traz nenhum texto, nada para você escrever na lousa, ler ou falar com os alunos. Até certo tempo eu

não via problema nisso, eu mesmo contextualizava o tema com as

minhas coisas, passava na lousa, e depois eu partia para os “caderninhos” porque ele vem muito pobre de informações antes

das atividades. Só que eu comecei a achar ele muito sem base,

muito sem aprofundamento, muito pobre, muito medíocre. É como se ele não forçasse o aluno a ter um pensamento crítico sobre

qualquer assunto (Professora Bia).

... as vezes começa de um jeito sem relações com conteúdos

anteriores, não tem uma introdução e começa a atividade do nada! Como se fosse uma mágica! E então, tem que voltar um pouco...

Não é nem voltar! Tem que apresentar mesmo os conteúdos: “Oh,

vocês vão estudar a distribuição populacional por conta disso e

disso, e ela funciona assim, assim, assim... Não tem uma teoria ou

um texto para os alunos acompanharem a discussão. No caderno do professor até tem. O caderno do professor até informa que você

pode começar com a pergunta tal e escrever na lousa assim,

assado e fazer não sei o que... Isso eu nem olho! Aliás, eu nem tenho o caderno do professor. Eu tenho um caderno do aluno que

eu respondi, que é o que eu acho importante eles responderem. E eu vejo por ali, sabe... então a Situação de Aprendizagem 1 é tal...

a 2 é tal... a 3 é tal... então, esse bimestre eu tenho que ensinar

isso e isso. Aí eu monto o meu currículo. E na hora que vai ter exercício sobre a situação de aprendizagem 2, eu falo pra eles, faz

o exercício tal... (Professora Gabi).

O caderno do aluno, na verdade a gente olha como uma lista de

exercícios. Ele não tem conceitos, ele não traz os conteúdos, ele só

traz os exercícios. Então o professor, no caso desse material, ele precisa preparar muito bem a aula dele pra que ele possa passar

para o aluno o conceito (Professora Nathália).

As falas das professoras revelam a necessidade de se construir com os alunos

toda a discussão teórica e as dificuldades de se fazer isso sem qualquer base anterior ou textos

introdutórios e de apoio. Como professora da rede paulista também percebo isso, pois antes de

aplicar as atividades dos “caderninhos” tenho de elaborar uma sequência de aprendizagem

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que atenda os conteúdos que se pretendem trabalhar, para que os alunos entendam o contexto

daqueles exercícios e consigam ir construindo uma ligação lógica entre os conteúdos

trabalhados e os exercícios propostos nos “caderninhos”. O problema é que ao apresentar

exercícios específicos, nós enquanto professores, precisamos elaborar essa sequência de aulas

voltada para que os alunos consigam não só compreender o conteúdo, mas também responder

precisamente as questões propostas nos “caderninhos”.

Pensando nos exemplos trabalhados no capítulo 2, quando trouxe os exercícios

relacionados às cidades-gêmeas, bem como a forma com que o Livro do Professor conduz a

orientação didática a ser trabalhada, é perceptível que os exercícios são colocados no Caderno

do Aluno a fim de que o professor siga um padrão de aula, em que certos conceitos sejam

trabalhados para que os alunos consigam responder os exercícios propostos nos

“caderninhos”. Assim, percebe-se novamente a redução da autonomia docente e a condução

de seu trabalho de forma a atender as necessidades imaginadas pela comunidade disciplinar

que o elabora e, sobretudo, aos sentidos discursivos sobre conhecimento escolar, sobre escola

e sobre conhecimento geográfico que se intenta hegemonizar, produzindo uma política de

currículo conservadora e tecnicista.

O livro didático poderia ser um material que conduzisse a essa introdução de

conceitos ou reflexões teóricas antes da entrada nos exercícios propostos pelo “caderninho”,

porém nos deparamos com outro problema indicado pelas professoras de que

... “o caderninho nem sempre casa com o livro didático

adotado pela escola e também com o Plano Curricular do

professor. É muito estranho! Às vezes, acontece de

encontrarmos no planejamento e no livro didático uma

lista de conteúdos a ser trabalhada no primeiro bimestre

do 9º ano e no “caderninho” esses mesmos conteúdos

aparecem no 4º bimestre. Isso tudo costurado com as

avaliações externas que são aplicadas, às quais nós

docentes temos que nos atentar.” (Professora Bia).

Isso acaba por alterar toda a dinâmica e a rotina pedagógica da escola e conduz

algumas escolhas com base nessa “problemática”.

um dos grandes problemas é que não existe um livro didático que segue o caderno do aluno. Então, por mais que a gente escolha

uma coleção de livros didáticos, sempre tem problemas em

correlacioná-los com os caderninhos. Na escolha da coleção que fizemos no ano passado para ser utilizado nesse ano, a gente nem

viu muito a qualidade do livro, mas a gente viu assim “ah, nessa

coleção tem o conteúdo que tem no caderno do aluno, então, vamos indicá-lo porque pelo menos tem o conceito que está no

caderninho”. Que nem no caso do meu livro que eu escolhi para o

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6º ano, ele quase não tem exercícios, porque a gente priorizou os conteúdos já que o exercício tem no caderno do aluno. Imagem a

gente prioriza bastante, porque como a gente não tem material

eles têm que ter a imagem (Professora Nathália).

A fala da professora Nathália me apresentou uma dimensão ainda maior do

problema enfrentado nas escolas com relação aos “caderninhos”, onde a preocupação em

atender a demanda teórica por conteúdos específicos trabalhados nos “caderninhos” é tão

grande que ela passa a ser o principal critério para se decidir qual o livro didático mais

adequado para a sua turma, mais importante até que a qualidade do livro. Essa situação é

agravada quando se considera que a maioria das escolas não recebe livros suficientes para

seus alunos, o que faz com que se tome a decisão de deixar os livros na escola, apenas para

serem utilizados durante as aulas, de maneira compartilhada entre todas as turmas de

determinada série. No entanto, como temos esse problema de descompasso de conteúdos entre

o livro didático e as atividades propostas nos “caderninhos”, os conteúdos que estão no livro

do 8º ano, as vezes precisam ser usados para trabalhar com os alunos do 9º ano, por exemplo.

Isso acaba gerando um transtorno enorme na organização e rotina cotidiana na utilização dos

materiais que, em geral, são de baixa qualidade e quantidade e não atendem a necessidade dos

alunos e professores.

Por fim, as professoras associam a forma com que são cobradas para que

utilizem os instrumentos didáticos. Quando questionadas sobre a cobrança para que certas

proposições vindas de fora da escola fossem seguidas elas responderam da seguinte maneira...

o Saresp sim, a avaliação diagnóstica muito e tudo o que vem da

Diretoria de Ensino (DE). Então, agora eles estão lá com a gestão

democrática, a gente agora é obrigada a receber os alunos, já era

obrigada receber os alunos no conselho de sala, agora os pais dos

alunos. Só que aí, por exemplo, esse conselho foi o primeiro...

ninguém foi. Foi um pouco de aluno, e nenhum pai. Então, tudo o que

vem de ordem lá da supervisão, da DE, elas ficam em cima para a

gente acatar. Fazer projeto, tem lá o projeto de leitura, que na

minha opinião tem muitas coisas legais, mas o modo como vem

instaurado... já vem pronto, entendeu? Não vem assim, vocês vão

montar... vem pronto e você tem que seguir (Professora Bia –

destaque meu).

“Ah, vai vir alguém da DE aqui, então vocês têm que usar o

“caderninho” no dia tal”. Sabe, assim, para mostrar..., mas na

verdade acho que meio que... é mais uma preocupação pra fora, de

cobrança que vem para a escola, sabe? E não da direção em si, isso

não tem..., mas, por exemplo, no bimestre passado eu não usei nada

do 8º ano, ninguém falou nada para mim... nada! (Professora Gabi).

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113

(eu uso) só o caderno do aluno. O que tem que ser dado tá ali. É

porque as provas que são SARESP, AAPs são todas com base no

caderno do aluno. Essa elaboração de um provão na própria escola é

para que eles não percam esse ritmo que eles tão tendo, que a gente

está ditando para eles. Para quando eles chegarem no 9º ano eles

façam a prova. E não é só porque a escola vai ganhar mais bônus, ou

porque o professor vai ser elogiado por isso. Pelo contrário, é para

que o aluno tenha sanado os problemas dele. Todo começo de ano, no

planejamento, a gente faz uma análise dos dados do Saresp. Tem uma

plataforma na Secretaria Digital o SED, que a gente fala, que ele traz

todos os gráficos de sala por sala, defasagem e tal. Um exemplo, o

nosso 3º ano que saiu o ano passado, saiu com nível de matemática

do 9º, três anos de atraso. E aí o que que a gente tenta fazer dentro do

nosso planejamento? Exatamente isso, sempre pensando em sanar o

problema. E esses problemas são identificados com essas provas, não

tem o que fazer. Precisa que exista para que a gente saiba que um

aluno não sabe fazer as quatro operações básicas da matemática, não

consegue (Professora Nathália).

Nos trechos destacados acima, é perceptível que há uma cobrança que vem de

fora da escola, da Diretoria de Ensino, por exemplo, para que as unidades escolares sigam o

currículo do Estado, materializado nas escolas pelos “caderninhos”. A professora Bia aborda a

dimensão do controle para além da necessidade de seguir os “caderninhos”, mas sob a

perspectiva da falta de liberdade para a realização de projetos pautados na necessidade da

escola. A escola, em especial a pública, carece de projetos que envolvam os alunos e

recuperem déficits de aprendizagem, bem como renovem o sentido da escola para os alunos.

Todavia, projetos prontos, sem quaisquer participações prévias feitas por professores e alunos

podem ter pouco efeito e apresentarem-se enquanto externalidade aos alunos, o que faz com

que a ideia de projeto perca o sentido. Além disso, as professoras Bia e Gabi trazem a

dimensão da cobrança feita pela Diretoria de Ensino frente ao que é “sugerido” por eles.

Contreras (2012, p. 41) nos chama atenção para a dimensão dessas

delimitações e “sugestões” por parte de órgãos institucionais que orientam as escolas.

A determinação cada vez mais detalhada do currículo a ser adotado

nas escolas, a extensão de todo tipo de técnicas de diagnóstico e

avaliação dos alunos, a transformação dos processos de ensino em

microtécnicas dirigidas à consecução de aprendizagens concretas

perfeitamente estipuladas e definidas de antemão, as técnicas de

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modificação de comportamento, dirigidas fundamentalmente ao

controle disciplinar dos alunos, toda tecnologia de determinação de

objetivos operativos ou finais, projetos curriculares nos quais se

estipula perfeitamente tudo o que deve fazer o professor passo a passo

ou, em sua carência, os textos e manuais didáticos que enumeram o

repertório de atividades que os professores e alunos devem fazer.

Estando todos os passos pedagógicos e os repertórios conceituais já

delimitados para professores e alunos seguirem, o que resta a se fazer? A escola como espaço

de criação, de invenção e produção de conhecimentos no contexto da sala de aula é

impossibilitado, restringindo-a a uma tecnologia limitada a tarefas e adestramentos

previamente desenhada.

Ainda mais,

ao aumentar os controles e a burocratização, ao não ser um trabalho

autogovernado, mas planejado externamente, o ensino resulta ser cada

vez mais um trabalho completamente regulado e cheio de tarefas. Isto

provoca diversos efeitos nos professores. De um lado, favorece a

rotinização do trabalho, já que impede o exercício reflexivo,

empurrado pela pressão do tempo. De outro, facilita o isolamento de

colegas, privados de tempo para encontros em que se discutem e se

trocam experiências profissionais, fomentando-se dessa forma o

individualismo (Torres, 1991, p. 199). A intensificação coloca-se

assim em relação com o processo de desqualificação intelectual, de

degradação das habilidades e competências profissionais dos docentes,

reduzindo seu trabalho à diária sobrevivência de dar conta de todas as

tarefas que deverão realizar (CONTRERAS, 2012, p. 42).

Esse processo de desqualificação intelectual é observado na rede estadual de

educação do Estado de São Paulo, que, ao impor uma aula previamente concebida e

elaborada, acaba produzindo um padrão educacional extremamente reprodutivista, descolado

da dimensão política e social.

O modelo de gestão das escolas tem se aproximado cada vez mais ao

gerencialismo empresarial,

na medida em que aumenta as tarefas burocráticas do professor pelo

uso da tecnologia, além do físico pertencente ao cotidiano escolar

(diário de classe), resulta-se num amplo ciclo de intensificação e

autonomia controlada desses docentes somada à falta de estrutura e de

equipamentos adequados nas escolas (internet, computadores) (PIOLI,

MESKO E SILVA, 2016, p. 163)

No entanto, o modelo gerencial de educação que vem sendo adotado se mostra

ineficaz inicialmente devido a impossibilidade de “gerir” uma escola aos moldes de uma

empresa, pois tanto os objetivos como os caminhos para alcança-los são muito distintos

quando comparamos uma empresa a uma escola. Posteriormente, a infraestrutura e a

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organização da escola, refletida na forma com que o governo estadual paulista tem conduzido

a anos as políticas educacionais, conforme apresentado no capítulo 2. Assim, “essa nova

escola, de caráter gerencialista, performático e neoliberal, estaria modificando

substancialmente o ofício do professor, transformando profundamente sua formação e sua

carreira” (PIOLI, MESKO E SILVA, 2016, p. 168).

Por outro lado, a professora Nathália, por sua vez, demonstra uma postura

totalmente vinculada a aceitação da estrutura organizada pelo Programa São Paulo Faz

Escola, bem como de seus instrumentos de avaliação. Como dito anteriormente, no momento

da entrevista, a professora Nathália estava afastada de suas aulas e seguia com o cargo de

vice-diretora, o que pode ser uma das razões dessa visão que mais dialoga com personagens

da gestão do que com os docentes. Em seu discurso é perceptível a forma com que a gestão

escolar, e até mesmo os professores de sua escola, encaram as avaliações externas,

demonstrando como os posicionamentos das inúmeras comunidades escolares são diversos.

No início do capítulo mencionei que a professora Nathália havia sido a

inspiração para essa pesquisa. E a narrativa desse fato envolve uma conversa que tivemos no

ano de 2015 em uma reunião pedagógica do colégio particular que trabalhávamos juntas. Ela

comentou que na escola estadual em que trabalhava ela já havia terminado o conteúdo e que

estava tão tranquila com relação ao tempo que estava ajudando o professor de matemática

com algumas habilidades do Saresp. Essa fala me incomodou tanto que pensei nela por

semanas, elaborei o projeto e a pesquisa foi tomando sua própria forma de acordo com as

demandas de leitura e investigação durante o cotidiano da pesquisa, e o questionamento sobre

se faria sentido que a professora Nathália utilizasse a sua aula de geografia para trabalhar

habilidades da matemática, foi aos poucos perdendo sentido. Mas quando trago as falas dela

para este capítulo, consigo compreender o porquê de a professora dizer aquilo, e do porquê de

pensar daquela maneira. Entendi, durante o desenvolvimento dessa pesquisa, que muito do

que somos enquanto docentes está associado ao ambiente no qual nos formamos enquanto

professores, mas também, e talvez até de uma maneira mais significativa, do ambiente de

nosso fazer docente, de nossa formação continuada, da escola em que estamos cotidianamente

atuando enquanto professores.

Durante a entrevista com a professora Nathália esse aspecto mencionado

acima, sobre a influência da instituição escolar em que o docente se encontra inserido, foi

bastante significativa. Ela mencionou que a comunidade escolar, principalmente os docentes e

a gestão, construíram um projeto para melhorar os índices da escola no Saresp.

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Na verdade, é assim... a gente tem muita falta de professor. E não é

porque faltam muitas vezes, mas é porque a escola é muito grande,

tem muitas salas. E por isso, criamos o Projeto de Efetivo trabalho,

então, o que acontece? Toda vez que falta um professor, a gente passa

uma atividade. Nem sempre da matéria que o professor dá... aí o

Augusto começou, que é o coordenador, começou a pegar atividades

de matemática, de língua portuguesa, assim, gerais, coisas que eles

têm realmente dificuldade. Por exemplo, cálculos básicos de

matemática, de português, a questão da interpretação de texto, e aí a

gente vai na sala, aplica para eles. E agora teve a AAP e estamos

vendo resultado, pelo que o Augusto comentou que os professores

corrigiram e sentiram, é que já teve uma melhora... (PROFESSORA

NATHÁLIA)

Quando questionada se essas medidas adotadas pelo Programa São Paulo Faz

Escola reduziam a autonomia docente a professora respondeu da seguinte maneira:

Não, como é com base no currículo, eu não vejo perder

autonomia, porque professor tem o currículo para seguir que é o Caderno do Aluno, o SARESP só vai cobrar o que está no Caderno

do Aluno. Então, quer dizer, mesmo que o professor fale assim:

“ah, mas eu queria dar tal coisa...”. O que acaba engessando? O próprio Caderno do Aluno, mas isso é como eu disse, é qualquer

material didático, que aí precisa ter essa organização pra seguir a Base Nacional (Professora Nathália).

A ideia de trazer a discussão a fala da professora Nathália não tem o intuito de

julgar a sua visão sobre educação, a escola ou metodologia de ensino. Expor os pensamentos

da professora tem como objetivo demonstrar que as escolas públicas são complexas e diversas

e que por mais que se tente homogeneizá-las ou padroniza-las, como mencionei no segundo

capítulo, por meio de políticas curriculares, não é isso que acontece na prática. As escolas

comportam-se enquanto os particularismos abordados no primeiro capítulo, disputando

sentidos a serem significados e recontextualizando as políticas curriculares.

As vozes das professoras me proporcionaram a reflexão sobre a necessidade de

existirem políticas curriculares na orientação dos conteúdos a serem trabalhados, para que o

trabalho seja contínuo em qualquer escola, tanto para o professor quanto para o aluno. No

entanto, essas políticas não podem ser construídas de forma a buscar o controle de todo o

processo de construção do conhecimento, até porque o conhecimento só é construído a partir

da interação social, algo que vai ser pontual em cada sala de aula. A política educacional do

Estado de São Paulo pautada pela retirada da autonomia docente retira do professor e do aluno

a parcela mais bela de sua relação: a criatividade e a liberdade do pensar e de construir

conhecimento a partir da relação com o outro.

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O relato das professoras sobre a didática utilizada nos caderninhos, me faz

retomar algumas discussões desenvolvidas no capítulo 3. Ao comparar os diversos momentos

da didática, uma das correntes teórico-metodológicas apresentadas relaciona-se a didática

enquanto técnica, que, influenciada pela ciência positivista, utiliza-se de práticas repetitivas,

acríticas e mecânicas, prescritivas e normativas, apoiando-se em métodos pré-estabelecidos e

apresentando certa individualização, uma vez que aparece descolada da dimensão político e

social. Nota-se que a política curricular, apesar de pretender ser transformadora da realidade

apresentada, na realidade acaba por tornar-se uma política tecnicista, conservadora e

prescritiva.

4.2. A PERDA DO INTELECTUALISMO DOCENTE EM SALA DE AULA

A centralidade colocada nos professores traduziu-se na valorização do

seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos

importantes para se compreender o seu fazer, não apenas de sala de

aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão

também os elaboram, os definem, os reinterpretam (CONTRERAS,

2012, p. 15).

As vozes das professoras entrevistadas me permitiram elaborar uma reflexão

sobre a forma com que os docentes vêm perdendo sua autonomia e o seu trabalho enquanto

intelectual a partir de uma série de medidas burocráticas e controladoras adotadas para

conduzir e avaliar o seu trabalho em sala de aula. Tais como aquelas que foram

exemplificadas no capítulo 2 e que demonstram a forma com que as sequências didáticas

acabam por limitar a criação e a autonomia docente, tanto durante o processo de planejamento

como nas próprias aulas. Inicio essa parte do texto com a citação de Contretas (2012) exposta

acima como o estabelecimento de algo que perdemos a muito tempo... se não temos a

autonomia do fazer docente, que dirá do pensar, sentir, das crenças e valores. E, ao mesmo,

tempo a coloco aqui como forma de luta, como busca por cadeias de semelhanças que nos

movam a lutar pelo retorno da imagem de valorização do docente.

O questionário semiestruturado preparado para a entrevista não previa uma análise

da organização da escola pública paulista, apenas continha perguntas que investigavam o

contato que os professores da rede pública tinham com o Currículo do Estado de São Paulo.

No entanto, ao mencionar os momentos de ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo),

como possíveis diálogos sobre o currículo, muitas das professoras revelaram que a reunião era

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utilizada para fins burocráticos, que atendiam mais a demanda de fiscalização do que de

construção e formação continuada dos professores.

Ao ser indagada sobre a forma com que o currículo era apresentado em momento

de formação continuada para os professores, a professora Bia respondeu da seguinte maneira:

“Isso nunca é discutido. O currículo em si, o que o professor vai

trabalhar na aula, em nenhuma escola que eu trabalhei eu vi essa

discussão. O ATPC, que é uma reunião que a gente tem, é

completamente pautada em questões burocráticas, sempre voltando

para compreensão e aceitação desse sistema. Então, não tem

nenhuma abertura, em nenhuma escola que eu trabalhei, para um

diálogo sobre questões que eu julgo mais importantes e profundas em

relação ao ensino básico do Estado de São Paulo” (PROFESSORA

BIA).

Quando perguntei sobre quais seriam essas questões mais importantes, a

professora respondeu da seguinte maneira:

“Ah, seria, por exemplo, Reforma do Ensino Médio; esses conteúdos

dessas provas, tipo SARESP, avaliação diagnóstica, pra diagnosticar

o que? Isso nunca é discutido. Apenas chega lá, você tem que

aplicar... então nunca me perguntaram o que eu trabalho na sala de

aula, em nenhuma escola. São discutidos temas do dia a dia na sala

de aula, mas é sempre tudo mandado pela diretoria de ensino”

(PROFESSORA BIA).

E ainda que,

“A todo tempo a coordenação, a gestão a PCNP, a supervisão,

porque elas frequentam essas reuniões, elas estão sempre preocupas

em “espizinhar” o professor. É isso que eu sinto, entendeu? O que

você acha que é o conselho de sala?” (PROFESSORA BIA).

É importante ressaltar que esse não foi o projeto inicial para o ATPC. O

documento norteador desse projeto organizado pela Coordenação de Gestão da Educação

Básica, comenta que a antiga CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), ao

instituir 2h de trabalho coletivo na escola, orientou que o planejamento e a organização do

ATPC deveriam perpassar pelos seguintes pontos:

Considerar as demandas dos professores frente às metas e prioridades

da escola; Elaborar previamente a pauta de cada reunião, definida a

partir das contribuições dos participantes; Dividir entre os

participantes as tarefas inerentes às reuniões (registro, escolha de

textos, organização dos estudos); Planejar formas de avaliação das

reuniões pelo coletivo dos participantes; Prever formas de registro

(ata, caderno, diário de bordo, e outras) das discussões, avanços,

dificuldades detectadas, ações e intervenções propostas e decisões

tomadas; Organizar as ações de formação continuada com conteúdos

voltados às metas da escola e à melhoria do desempenho dos alunos,

com apoio da equipe de supervisão e oficina pedagógica da DE (SÃO

PAULO, 2014, nº 10, p. 7 – grifo meu).

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A análise do texto nos permite compreender que o ATPC foi formulado como

um espaço-tempo de construção coletiva do/para o professor. Segundo essas diretrizes, a

demanda do que será trabalhado tem que vir do professor, e o objetivo é que se discuta acerca

de avanços, dificuldades e propostas a serem desenvolvidas, tendo os funcionários da

Diretoria de Ensino apenas como supervisores, e não como propositores de pauta e vigias do

que vem sendo desenvolvido no espaço coletivo dos professores.

Nesse sentido, é possível perceber as disputas pela significação desse espaço,

criado para atender a demanda de formação continuada e organização do cotidiano escolar, e

que hoje aparece como um momento de resolução de questões burocráticas, a fim de atender o

modelo hegemônico de gestão escolar adotado pelo Estado de São Paulo. E como é possível

notar na fala da professora Bia, com uma grande preocupação em controlar o docente e o

encaixá-lo na forma em que a educação pública paulista está se construindo.

A professora Gabi também chama atenção ao problema que existe com relação ao

planejamento.

“Então, esse negócio de planejamento, para ser bem sincera eu nunca

fiz. Porque como eu entrei depois, geralmente a professora que entra

primeiro, em janeiro ou fevereiro, elas já faziam, eu não tenho

planejamento nenhum. Até falaram: Ah, precisa fazer... mas aí pega

as Situações de Aprendizagem, monta, cópia e cola e pronto, só pra

jogar pra DE46

, mas nunca foi pedido isso da parte da coordenação

assim: Ah, eu preciso de um planejamento certinho, bonitinho... nunca

me pediram isso!” (PROFESSORA GABI).

O que aconteceu com a professora Gabi é bem comum de acontecer com outros

professores, a forma de inserção de professores por meio da Categoria O, como já

mencionada neste texto, é uma forma precária de vincular o professor ao quadro docente por

meio de um contrato de trabalho. Esse contrato acaba tendo o seu processo inicial durante

todo o ano letivo, assim, alguns professores conseguem aulas apenas no meio do período, o

que faz com que ele entre após a atividade de planejamento, que é imprescindível a qualquer

professor em qualquer escola.

A partir do que foi colocado pelas professoras percebo que a estrutura

organizacional da escola pública paulista contribui de forma significativa para o cenário de

precarização do trabalho docente. Junto a isso, há uma série de burocracias administrativas

46

Diretoria de Ensino

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120

que visam regular e controlar o trabalho docente. Assim, entendo que “o que está em jogo na

perda de autonomia dos professores é tanto o controle técnico ao qual possam estar

submetidos como a desorientação ideológica à qual possam se ver mergulhados”

(CONTRERAS, 2012, p. 37).

Contreras (2012) trabalha com duas formas de redução da autonomia docente

que aparecem na fala das duas professoras mencionadas acima. A primeira delas é o controle

técnico, a forma com que o ATPC é utilizado para cumprir questões burocráticas, ou seja,

nada mais é do que uma pequena amostra da forma com que o Estado pretende controlar a

atuação docente e a sua prática pedagógica por meio dos materiais didáticos. Por outro lado, o

autor menciona a desorientação ideológica, e notamos exatamente essa queixa na fala da

professora Bia quando ela diz sentir falta de discussões que ela julga serem importantes, tais

como questões envolvendo políticas educacionais e curriculares. É interessante se pensar

nisso porque para além da escola, qual seria o lugar de discussões sobre políticas curriculares

e intencionalidades dessas políticas? A maioria dos professores da rede pública paulista não

frequenta um ambiente “acadêmico”, o ambiente escolar seria o mais próximo disso, visto que

é um ambiente onde estão reunidos vários intelectuais. Em algumas situações, percebe-se que

a ausência de diálogo acaba por criar um docente alienado e reprodutor do que lhe é imposto.

Esse cenário entre o que é proposto pelo sistema por meio da burocratização e

o posicionamento das professoras frente a realidade que lhes é imposta, buscando dialogar e

questionar o que é estabelecido, pode ser lido por meio das disputas entre o universal, a

política oficialmente estabelecida pelo Programa São Paulos Faz Escola e as demais

características da educação pública brasileira, e os particulares, representados pela unidade

escolar, ou mesmo os próprio docentes, que buscam aliar-se aos que pensam de forma

semelhante a eles, refletindo e questionando as políticas curriculares.

Com o objetivo de hegemonizar um currículo e um sentido de escola e de

conhecimento escolar, o Estado sutura os “caderninhos” e o currículo aos instrumentos de

verificação e controle, tais como as avaliações externas. Como mencionado acima, o Estado

de São Paulo utiliza o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo

(SARESP).

Essa foi uma das questões que incluí na entrevista, buscando entender qual a

relação dos professores com essa avaliação, como preparam os alunos e como utilizam o

resultado; o objetivo final era compreender como a prova interfere na rotina da escola e

delimita (ou não) conteúdos e metodologias de ensino a serem trabalhados em sala de aula.

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A professora Bia classificou a prova como “medíocre”, exigindo pouca reflexão

dos alunos e disse que não existe uma análise crítica por parte do corpo docente e da

coordenação da escola, eles apenas aplicam a prova enviada sem qualquer análise ou

preparação dos alunos.

Nem elas sabem, você entende que não existe um estudo, ninguém

nunca pega a prova e fala, vamos estudar essa prova, vamos ver o

que os nossos alunos vão absorver dessa prova... não existe isso.

Existe a parte burocrática, tem SARESP, tem o índice, tem o bônus,

entendeu? (PROFESSORA BIA).

Por outro lado, a professora Gabi dimensiona o que acontece em sua unidade

escolar após a correção das Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP)47

, indicando a

forma com que elas acabam interferindo no trabalho docente.

quando vem o resultado da AAP a gente vê onde que os alunos estão

com mais dificuldade em português e matemática, onde eles estão

com mais problemas. E a gente escolhe entre as competências e

habilidades que eles estejam com problemas, uma para trabalhar

dentro da nossa matéria. Aí por exemplo, eu estou trabalhando

energia, aí vi lá que eles estão com problemas de gráfico e tabela em

matemática, então eu tenho que preparar uma aula com gráfico e

tabela direcionado ao meu conteúdo, para trabalhar matemática ou

português. E isso está acontecendo, inclusive agora na sexta-feira eu

vou ter que fazer isso. Eu ainda não peguei, então não sei sobre o que

é, mas eu sei que o ano passado eu usei construção de gráfico e

tabela com os alunos. E esse geralmente é o que eu mais uso, porque

para geografia é o que é mais fácil de trabalhar (PROFESSORA

GABI).

É percebível a forma com que os professores são conduzidos a mobilizarem-se

para incluir as competências e habilidades das disciplinas Língua Portuguesa e Matemática

em suas aulas de geografia, por exemplo. Acredito que o problema não está em o professor

trabalhar gráficos e tabelas em sua aula de geografia. Isso de certa forma já faz parte do

currículo e está inserido em alguns conteúdos específicos, mas sim na forma com que essas

provas legitimam certos conhecimentos em detrimento de outros, e ainda afetam a autonomia

do professor, que se vê pressionado a abandonar seu planejamento para trabalhar certas

habilidades associadas instrumentos didáticos específicos.

A professora Gabi ainda chama atenção para a forma com que essas provas são

inseridas na escola,

Sempre tem reclamação. Tipo, “ah, que bosta vai ter” ... até a

coordenação e até a direção, sabe? É como se fosse um dia morto

aqui. Porque é muito trabalho, é trabalho pra aplicar, os alunos

47

As Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP), são realizadas bimestralmente e tem como objetivo a preparação para o SARESP, com um mesmo formato, apenas incluem as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.

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perdem aula. Por exemplo, biologia, geografia, história são duas

aulas no Ensino Médio, então você perde duas aulas aplicando uma

prova que não vai servir de nada, e realmente não serve de nada. A

gente que corrige, a gente se divide, todo mundo, pra corrigir aquelas

provas pra não pesar para o professor de português e matemática.

Nesse sentido não funciona de nada, mas quando vem os resultados

acontece aquilo que eu falei... ai vê a sala tal está com mais

problema, está com mais dificuldade. Mas é muita coisa burocrática,

e aí não dá tempo (PROFESSORA GABI).

A alteração no cotidiano escolar também chama atenção. A fala da professora nos

faz refletir sobre a forma com que essas provas anulam o que o professor planejou para a sua

aula e insere a aplicação da avaliação externa, entendendo-a como mais urgente do que o

planejado pelo professor.

Contreras (2012) trabalha com as consequências dessa forma de organização

escolar, onde o trabalho do professor é controlado e em alguns casos planejados

externamente. O autor traz para seu trabalho a Teoria da Proletarização docente, onde entende

que “o trabalho docente sofreu uma subtração progressiva de uma série de qualidades que

conduziram os professores à perda do controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à

perda da autonomia” (p. 37). A teoria da Proletarização docente trabalha com a ideia de que

os professores têm, enquanto categoria, sofrido mudanças nas atividades que desempenham, e

essas mudanças tem transformado o trabalho docente a condições semelhantes a classe

operária. Essas condições estão associadas a racionalização do trabalho apresentadas nas

empresas e na produção em geral: alienação do trabalhador, taylorização do trabalho e

fragmentação das tarefas que, sendo isoladas e rotineiras, perde o sentido para o trabalhador,

que não compreende o significado do processo que envolve seu trabalho, perdendo

habilidades que anteriormente possui.

E não são exatamente essas as nossas características enquanto docentes? A

fragmentação do ensinar da disciplina, buscando atender as demandas de avaliações e

currículos, não acabam por fragmentar de tal forma o trabalho docente que não conseguimos

mais enxergar a educação como um todo, apenas nossas áreas disciplinares?

4.3. Qual a escola pública você gostaria de trabalhar?

Por fim, a última pergunta que fiz para as três professoras era qual a escola

pública que elas gostariam de trabalhar.

Deixo as três respostas completas aqui.

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PROFESSORA BIA

“Nenhuma! Se for pública não quero mais. Rsrs. Eu estou desiludida, não sei... eu não sou a

professora mais indicada para tentar... entendeu? Eu já tive muito essa coisa de... vamos fazer alguma coisa

para mudar. Eu estava assim até pouco tempo atrás. Eu montei grupo de estudo com alunos do terceiro ano,

eles começaram a faltar, eles começaram a falar que eles não conseguem entender. Mas eu entendo que a

culpa não é deles, mas enquanto profissional isso vai frustrando né? E aí a coordenação me chama para

falar que a minha aula está com um nível muito elevado, que eu preciso baixar, que eu não posso deixar

ninguém com vermelha, isso frustra também. O sistema é frustrante com um todo. Então eu estou em

busca de sair desse meio, entendeu? Eu queria muito continuar sendo professora da educação básica,

mas eu cheguei num ponto que eu nem sei mais se eu quero ser professora universitária, sabe? Eu

gosto muito de dar aula para criança e adolescente mesmo, gosto muito da devolutiva que eles dão,

mas eu estou em crise com o sistema educacional do estado de São Paulo, tanto que o que me segura

lá, além de eu não ter outro trabalho e eu precisar dele para viver, são os alunos que me dão prazer

em estar naquele espaço, entendeu? Quando eu entro na sala de aula os problemas acabam, mas

quando eu saio eu tenho que lidar com a coordenação, com a gestão, com a Diretoria de Ensino, com

a supervisão, e a minha vida vira o inferno. Porque eles não gostam de professores contestadores e

que cobram, né? Porque a gente é cobrada a todo momento, mas quando você cobra de volta, eles

começam a arrumar problemas para você. O que eu já ouvi: “há você é muito jovem, é por isso que

você é contestadora. Mas isso vai passar, espera que...” E infelizmente eu estou caindo nessa, isso está

passando...

Eu não estou falando que eu vou sair amanhã, pode ser que o ano que vem eu estarei lá, pode

ser que eu fique lá o meu doutorado inteiro, entendeu? Agora a vida inteira eu não vou conseguir falar, vou

fazer outra coisa... nem que eu não possa mais ser professora, não vou ficar. Mas eu não queria, entendeu?

Eu queria ficar! Eu queria que eles pagassem um salário que proporcionasse uma vida digna para o

professor. Porque é isso né, eu não sou casada, não tenho filho... dá pra viver. Você tem que se privar de

algumas coisas, mas você vive até que bem. Da para viajar as vezes, dá pra compar... agora, imagina gente

que está lá na mesma situação que eu e que tem filho... eu não sei como faz. Porque vamos ser sincero, a

gente está numa situação de elite, dentro da universidade pública, a gente sabe que outras coisas vão acabar

aparecendo. Tá difícil para todo mundo agora, procurar emprego... A maioria das pessoas tem um respaldo

familiar. Então, esse mês apertou, eu vou ter que pedir ajuda para o meu pai... eu sei que tem uma galera

que consegue, que tem essa ajuda. Mas tem gente que não tem. E aí como é que fica ganhando esse salário

o resto da vida e nessas condições? Então o que eu vejo lá... todas as professoras que eu converso tem

depressão, tomam antidepressivo. Tomar antidepressivo lá pra elas é um status, todo mundo fica

falando do seu antidepressivo. E isso vai me deixando extremamente preocupa e eu fico achando

assim... O fim é você ganhando pouco e tomando antidepressivo ainda por cima, e ficando feliz com o

seu bônus anual do SARESP. Essa é a vida delas, não estou querendo ser pejorativa, mas a gente fica

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lá a gente faz análise né? Elas devem fazer de mim também. Eu devo ser a louca do doutorado, a louca

que fica perdendo tempo brigando com a coordenação. A retardada que tá achando que vai mudar alguma

coisa, mas eu ainda prefiro ficar assim do que cair. Eu prefiro sair antes e abandonar o barco do que chegar

nesse ponto de ter que tomar antidepressivo com 40 anos. Por que a coordenação me odeia? Porque a

coordenação vem, justamente com o sistema, e eu não acredito em nada que ela fala. Uma vez ela falou

para mim que ela sentia que eu desmerecia o trabalho dela. E eu fiquei pensando na minha casa, “puta, que

foda! Eu não queria fazer isso com a mulher, não queria que ela achasse que eu faço descaso com o

trabalho dela, mas eu não acredito em nada do que ela está falando, ela vem com texto de Carnal pra mim?”

Eu já li esses caras quando eu fiz licenciatura, eu sei quem eles são, eu sei o que eles pregam. E eu não

acredito, eu não acredito mais. E eu não acho que se eu for trabalhar em uma escola de elite, de gente rica,

eu não vou ter um monte de problemas tão grandes quanto este, mas eu acho que é outra estrutura, vão ser

outros problemas, e eu acho que eu estou querendo, eu estou cansada desse! É o que a gente estava

conversando, além de tudo um salário ridículo, a gente ganha o que? Mais ou menos uns 12,60 por aula.

Ainda quem é efetivo tem um monte de regalia, um monte de coisa a mais do que quem é categoria O, que

eu acho também um absurdo! E é isso, eu não sei direito quanto é que um professor consegue atingir hoje,

as professoras que trabalham comigo que tem 25 anos de casa, não ganham nem 4 mil reais. É muito

pouco! E nessas condições de trabalho. A gente que entra como iniciante com 20 aulas, lá você ia tirar uns

1400 reais, é muito diferente. Com outra estrutura, com outros problemas que você vai lidar, mas assim,

acho que é um desgaste um pouco menor... não sei... Você me chamou para a entrevista nos piores dias,

não porque eu não poderia vir, mas porque eu estou muito...”

PROFESSORA GABI

“Pode inventar? Rsrs. Eu gosto muito de trabalhar lá, tanto é que eu continuo dando aula

porque é uma coisa que eu gosto muito. Eu não me imagino fazendo outra coisa e eu não me imagino numa

escola particular. Se eu for para uma escola particular é por conta de dinheiro, sabe? É bonito, mas ao

mesmo tempo é triste... E aí eu fico pensando, isso é uma coisa que existe dentro da escola estadual,

dentro da escola pública. Já chegou época, isso quando eu comecei dar aula, de tirar espinho da mão de

aluno que ficava carpindo o dia inteiro e não conseguia escrever, a mão era puro pus, sabe umas coisas

assim? Então isso é uma coisa que me encanta. E aí eu acho que isso passa da questão da geografia,

sabe? Porque de verdade, pode até ser vagabundagem da minha parte, mas em uma aula de 50 minutos,

geralmente são meia hora, 25 minutos de geografia, e os outros 25 minutos são de qualquer outra

coisa, ensinar uma menina que tem que pentear o cabelo porque se não os outros vão “zoar” com ela

e ela vai ficar chorando, falar pro outro que não é pra ele ficar falando palavrão... pra menina que se

ela for transar para ela usar camisinha. Sabe umas coisas assim? E isso me faz aprender muito. Eu

aprendo muito com eles, eu até falo isso pra eles... até falo não, eu sempre falo isso pra eles, só que é

triste né? Num mundo ideal não precisaria acontecer isso, mas ao mesmo tempo é o que me encanta

também. Então não sei, é difícil né pensar numa escola de... mas eu acho que faltar, falta muita coisa,

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sabe? Podia ser melhor, óbvio que não vai ser um conto de fadas, mas podia ser um pouco melhor no

sentido de ter algumas coisas que funcionasse nas salas, um globo, mais recursos, menos alunos nas

salas de aula, isso eu acho que seria uma coisa que iria ajudar, facilitar... 40 alunos e mais um cego,

como que eu dou conta? Não tem... sozinha, não dá... então dá pra melhorar, eu acho, eu acho não, eu

tenho certeza... tem que melhorar!”

PROFESSORA NAHÁLIA

“É aqui! Eu amo, é o que eu falo, eu amo trabalhar nessa escola. A gente tem muito problema,

por exemplo a gente não tem um real no caixa. Esse ano, Gi, a gente está em junho, a gente não teve um

real de verba. Não veio, o governo não repassou nem um real, nada. Então, assim, se quebrar uma descarga

a gente tem que tirar do nosso bolso, tanto que agora a gente vai fazer a festa junina no dia 24, é o que a

gente está esperando que dê certo para ter um fôlego. Então, o que que eu gosto? Primeiro, na nossa

área... o povo do nosso país está aqui dentro! A minoria é que está na escola particular. E o que mais

me assusta, estando nas duas, ainda, é ver que quem está lá na particular não enxerga quem está

aqui... não tem a mínima noção! Tem uma sala lá que é um pouco mais maleável lá no Criarte que é o

9ºC, e teve um dia que eu peguei uma atividade de um aluno do 6º ano, do Alisson, o jeito que ele escreveu.

Quando eu mostrei eu falei assim pra eles: “de que turma vocês acham que é isso?” Letra palito, desse

tamanho, mal escreve o nome tal... “Minha nossa professora, sei lá, acho que é do pré”. E eu falei: então, é

um sexto ano. “Quem de vocês se identificam quando vocês chegaram no 6º ano assim?”. Ninguém! Eu

falei “então, só que esse é um aluno onde o pai dele é semianalfabeto também, a mãe também, então todo o

aparato que vocês tiveram em casa, ou de uma babá, ou da vó, ou da própria mãe e do próprio pai, ele não

tem isso, ele depende só da escola”. Então eu amo trabalhar aqui exatamente por isso, porque eu sinto

que meu trabalho tem significado. E aí que nem eu te disse, na particular hoje eu ganho dinheiro lá...

só! Aqui eu também ganho, mas aqui eu construo uma carreira docente”.

As três falas foram mantidas na íntegra pois acredito que elas sintetizam opiniões

de muitos docentes das escolas públicas brasileiras. É bastante representativo o fato de que o

cotidiano da escola pública muitas vezes é desanimador, a luta contra o descaso do governo e

a busca por construir uma escola que tenha sentido para os alunos é exaustiva.

Por outro lado, as falas das professoras nos apresentam a dimensão de uma

escola que faz parte da realidade da educação pública brasileira, onde você sente que seu

trabalho é significativo e que seus alunos realmente precisam de você. Quem acredita que a

escola pública não dá mais certo, com certeza nunca pisou em uma escola pública. Durante o

ano de 2018 acredito que entendi o que está envolvido na minha profissão, compreendi qual a

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diferença entre ser professora de geografia e educar, ensinar. A escola pública me apresentou

uma outra dimensão do ensinar, e sinto que se existe algum projeto de escola que deu certo, é

a escola pública.

Assim, finalizo esse capítulo militando pela escola pública, lutando para que a

autonomia, a valorização intelectual, salarial e o respeito revigorem a carreira docente e a

escola pública seja o lugar onde os docentes consigam sentir-se realizados profissionalmente,

emocionalmente e financeiramente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que vem sendo apresentado nesse texto permite-me concluir que o problema

não está na existência das políticas curriculares, acredito que elas são necessárias para orientar

o processo de ensino-aprendizagem; também não está na utilização de um material didático

nas escolas públicas, como bem falaram as professoras. Mas sim, está na forma com que as

políticas curriculares são construídas. O problema está nas práticas discursivas que são

apresentadas aos docentes, que marcadas por articulações e disputas, apresentam-se enquanto

um projeto de escola hegemônico, marcado por políticas de culpabilização e de redução da

autonomia docente e diminuição da diversidade.

Com a criação de políticas curriculares aos moldes do Programa São Paulo Faz

Escola são produzidos sentidos de que a reforma curricular é capaz de solucionar os

problemas das escolas paulistas, a até mesmo salvar a educação brasileira através da

promoção da qualidade da educação. E se isso não acontecer, para o estado, o motivo não

estará associado aos documentos curriculares ou materiais fornecidos, mas sim ao trabalho

docente. Assim, as políticas curriculares do estado de São Paulo ao instituírem discursos

hegemônicos criam o seu corte antagônico pautado na oposição entre os professores e o seu

projeto de educação.

Esse corte antagônico é criado discursivamente pelo estado a partir de uma

relação limitadora entre o projeto de educação e o trabalho docente, mas, que ao mesmo

tempo, possui uma relação de interdependência, onde o projeto de educação só ocorre com o

trabalho docente. É por esse motivo que se pensa políticas curriculares da forma com que os

documentos analisados nesse texto as apresentam, buscando centralizar e controlar o trabalho

docente, limitando sua autonomia.

O fazer desta pesquisa me trouxe a visibilidade sobre a forma com que o

trabalho docente é limitado pelas políticas universais: “Caderninhos”, Saresp, decisões da

Diretoria de Ensino, livro didático, e muitas outras que permeiam o ambiente escolar e que

dificultam o trabalho do professor. Sob o discurso de alcançar a qualidade da educação,

diversas medidas entram nas escolas públicas e alteram o cotidiano dos alunos e docentes,

padronizando as escolas paulistas, e as transformando em um ambiente distante da realidade

dos alunos, e por isso sem sentido.

Durante o período em que escrevi o último capítulo dessa dissertação de

mestrado (o início do primeiro bimestre escolar), vivemos uma situação específica nas escolas

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públicas paulistas que parecem um bom medidor para o que venho trabalhando neste texto. Os

“caderninhos” já estavam com seu prazo de validade vencido, foram elaborados prevendo

uma utilização entre os anos 2014 a 2017, e os utilizamos até dezembro de 2018, esperando

que no ano de 2019 eles fossem renovados. Acontece que devido a BNCC (Base Nacional

Comum Curricular), já discutida e aprovada para o Ensino Fundamental II e homologada para

o Ensino Médio, acredito que eles resolveram esperar para formular um material a partir desse

novo documento curricular.

Com isso, estamos os “caderninhos” para trabalhar com os alunos, apenas os

livros didáticos que foram devolvidos no ano passado (insuficiente para todos os alunos, que

devem continuar na escola, sendo usados apenas para consulta). Também recebemos

orientações de duas habilidades por série que deveríamos desenvolver até fevereiro. No início

ficamos preocupados, como dar conta de trabalhar habilidades junto aos conteúdos com os

alunos sem material? Com o passar do tempo fomos nos adaptando e aquilo que parecia um

desafio inalcançável tornou-se uma atividade onde movemos a criatividade e a liberdade e que

conseguimos criar estratégias a partir de formas que, se estivéssemos com materiais

apostilados, não enxergaríamos. Durante algumas aulas os alunos traziam questões que

acabaram sendo o tema da aula seguinte, e isso tornou as aulas mais interessantes e próxima

dos alunos, fazendo com que eles se colocassem mais, apresentassem suas dúvidas e

curiosidades.

Algumas especulações realizadas pelos gestores, me fazem acreditar que os

“caderninhos” após serem adaptados aos novos documentos curriculares voltarão às salas de

aula48

, o que me deixa preocupada, pensando a respeito da nova forma com que seremos

limitadas, com que teremos a nossa criatividade diminuída em detrimento de sequências

didáticas previamente elaboradas, onde pouca coisa dialoga com a realidade de nossos alunos,

com o contexto de nossas aulas, uma realidade já observada antes, apenas recontextualizada

com uma outra política curricular que nos é apresentada enquanto uma reforma na educação

brasileira.

Assim, a implementação de tais políticas curriculares acabam por constituir um

discurso de escola em que o conhecimento e a autonomia são colocados de lado em prol da

48

Ao revisar o texto, em agosto de 2019, releio essa informação e afirmo que eles já voltaram, nossos “caderninhos” foram desenvolvidos a partir de nova habilidades presentes na BNCC.

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129

construção de uma escola gerencial e performática, baseada no controle e na exibição de

dados maquiados, promovidos por avaliações descontextualizadas.

Além disso também me preocupa a forma com que a própria produção do

conhecimento é entendida. Como mencionado no segundo capítulo, o conhecimento é um

processo que deve ser construído junto ao aluno, qualquer forma de sistematização que

apresente um conhecimento pronto perde o sentido, uma vez que ele se faz na relação entre o

mundo científico e o cotidiano vivido pelo aluno.

Assim como apresenta Contreras (2012, p. 49)

Isto mantém íntima relação com o fato de que o ensino é um trabalho

que se realiza com seres humanos. É impossível, por conseguinte,

fixar de uma vez por todas e por antecipação a prática do ensino. A

realidade variada e variável das situações humanas e de suas

características exige, pelo menos, uma adaptação às diferentes

circunstâncias e casualidades. Isso quer dizer que é impossível separar

por princípio a concepção da execução no ensino. Necessariamente, o

professor detém um nível de autonomia e de planejamento em seu

trabalho. É precisamente essa impossibilidade de separar radicalmente

a concepção da execução o que leva às tentativas de desenvolver

modos de racionalização do próprio processo de planejamento ou

concepção que os professores deverão realizar, de modo que fiquem

presos na lógica de controle pelo processo de tecnicidade,

abandonando a reflexão sobre seus fins e assumindo os da instituição.

Essa racionalização do processo de planejamento é o que incomoda os

professores e o que me fez elaborar a reflexão que aqui apresento. Essa dissertação apresenta

a política curricular do estado de São Paulo, o Programa São Paulo Faz Escola, e a forma com

que ele tensiona o trabalho docente, retirando-o sua perspectiva reflexiva, intelectual e social.

Mas e depois disso? Como seguir, reagir ou lutar contra o estabelecimento de tais políticas

universais esmagadoras? Finalizo este texto apontando o papel dos particularismos dos

professores frente a recontextualização de tais políticas no cotidiano escolar.

Acredito que

A antagônica relação entre o Estado e a relativa autonomia da escola.

“Essa necessidade contraditória do Estado e a relativa autonomia da

escola e do papel do professor criam espaços não definidos nem

totalmente fechados, de difícil controle técnico e burocrático, nos

quais cabem ações de resistência à imposição racionalizadora”

(CONTRERAS, 2019, p. 43).

Esses espaços fechados são representados pelas “brechas”, pelos espaços de

resistências em que os professores vão encontrando e se colocando, como é possível perceber

nas falas das professoras entrevistadas. Espaços esses que permitem que, mesmo sem a

autonomia para a atuação intelectual docente, os professores e as professoras consigam

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recontextualizar as políticas, reinterpretando-as de acordo com suas visões e suas

necessidades, ainda que de maneira precária.

Assim, acredito que a Teoria do Discurso mostra a sua potência teórica

enquanto método uma vez que permite a visualização dessas “brechas”, a atuação de

particularismos na disputa para a constituição de um universal, ou mesmo de um hegemônico,

ainda que provisório. Ao escrever as últimas linhas deste texto, penso que o arcabouço teórico

do pós-estruturalismo me permitiu enxergar esperanças no fazer docente, me permitiu

compreender que a escola não é feita necessariamente de macro políticas curriculares, mas

sim de disputas, disputas entre particularismos e essas políticas, que disputam pela definição

da qualidade da educação, pela definição da própria escola pública.

E respondendo ao prólogo dessa dissertação “o que tem no chão da escola

que tanto atrai (no desejo de controle) como incomoda?” (MACEDO, 2015, p. 903),

acredito que o que há na escola é a liberdade do pensar, é o espaço onde a criatividade, onde

os seres humanos que ali estão não possuem ideias prontas ou visões de mundo construídas e

estabelecidas durante anos, e é justamente isso que incomoda e atrai o desejo de controle no

chão das escolas.

Para além de escolas, ressalto que a escola mencionada nesta dissertação é a

escola pública, essa entidade completamente antagônica e alvo de disputas. E que mesmo com

tanta precariedade ainda encontra espaço e significado na sociedade brasileira. Acredito que

essa pesquisa serviu para me fazer entender que se há uma escola que ainda tem potência para

educar, e não somente transmitir conhecimentos, essa escola com certeza é a escola pública,

que apesar de hoje encontrar-se carente em tantos aspectos, ainda é onde deve pulsar a

liberdade do pensar, a autonomia da construção do conhecimento.

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135

ANEXO 1: ROTEIRO DE ENTREVISTA

O professor

1. Gostaria que você se apresentasse enquanto docente:

→ Com quais anos você trabalha? Quantas turmas você tem? Em quais escolas?

Quanto tempo de docência você tem?

O currículo em sua carreira docente

1. Quais os documentos curriculares que você e sua escola utilizam para a

elaboração do planejamento anual de disciplina? Há algum documento que você mais se

identifica?

1.1. Qual o contato que vocês, professores da rede pública de ensino do Estado de

São Paulo, tiveram com o Currículo do Estado de São Paulo (2010)?

2. O que você acha que esse currículo trouxe de novo para o planejamento anual

das suas turmas e para as suas práticas diárias? Qual a diferença entre ele e os demais?

3. Em sua escola como vocês se apropriam de documentos curriculares?

→ Vocês têm grupos de estudos, grupos de discussões? Ou isso é feito no

momento do ATPC?

4. Ao planejar as aulas para suas turmas, existe alguma preocupação sua com

relação ao SARESP? Se sim, quais e por que?

5. Quais são as formas de cobrança internas para que seu planejamento tenha

alguma relação com o SARESP?

6. Existem resistências por parte dos professores nessa relação planejamento com

o SARESP?

Como você resiste, quais suas ações?

As suas práticas

1. Em suas aulas de geografia, você utiliza o material didático fornecido pelo

Estado, popularmente apelidado de “caderninhos”?

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136

SE NÃO…

1.1. Por que os “caderninhos” não servem para você?

TENSIONAR A AUTONOMIA DOCENTE

1.2. Utiliza outros materiais didáticos para apoiar suas atividades de ensino? Que

tipo, por que?

1.3. Nada do “caderninho” lhe serve? Se sim, como você o utiliza?

SE SIM…

1.1. Por que você faz uso dos “caderninhos”? Em que medida ele te auxilia no seu

cotidiano de professora?

2. Como você avalia as situações de aprendizagem apresentadas nos

“caderninhos”?

Sobre as metodologias praticadas

1. Quais são os caminhos metodológicos na utilização dos “caderninhos”? Digo,

você segue passo a passo as instruções ou as modifica? Dê um exemplo.

2. Costuma acrescentar outras metodologias e fontes em complemento as

sequências didáticas apresentadas nos “caderninhos”? Por quê?

3. Como os professores de outras áreas costumam trabalhar? Em especial os

professores de Matemática e Língua Portuguesa, você tem conhecimento se eles usam os

“caderninhos”? Há algum diálogo entre vocês?

Opiniões sobre os “caderninhos”

1. Qual a opinião da gestão escolar sobre o uso dos “caderninhos”?

2. Você percebe que há alguma pressão com relação ao uso dos “caderninhos”,

SARESP e outros documentos curriculares?

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3. Qual o posicionamento dos alunos com relação aos “caderninhos”? O que eles

preferem, livro didático ou os “caderninhos”?

4. Com relação à significação que o SARESP tem para o ambiente escolar que

está inserido, pontue, de acordo com a sua experiência e suas impressões, qual os significados

da avaliação externa do SARESP para cada um dos grupos sociais a seguir:

i. para a gestão escolar.

ii. para os professores.

Iii. Para os alunos.

Algumas questões investigativas

1. Qual o papel e o impacto produzido pela Avaliação da Aprendizagem em

Processo (APP) em suas aulas e para a escola? A partir de quando ela começou a ser

instituída?

2. Em que medida as APPs e as provas do SARESP estão ligadas?

3. Pela sua experiência na rede básica de ensino do Estado de São Paulo, há uma

preparação dos alunos especificamente voltada para obter resultados satisfatórios em

avaliações externas?

Se sim, de que forma isso ocorre?

4. Em que medida isso afeta o processo de ensino/aprendizagem? Em que medida

isso afeta a sua autonomia enquanto docente?

5. Como isso afeta o conhecimento dos alunos com relação à geografia?

6. Qual a importância ou o papel do conhecimento geográfico escolar para os

alunos responderem as questões das provas do SARESP e das APPs?

7. Na sua visão, quais são os resultados que o SARESP proporciona para a escola

e para as suas práticas?

8. Para finalizar, gostaria de deixar a palavra aberta para que você nos fale qual

seria a escola pública que você gostaria de trabalhar.