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Nos meus 27 anos de vida chorei pela pr imei ra vez lendo este livro

Dr. Luiz de Araújo advogado

É duro mexer nas fer idas da humanidade.

Mas , às vezes, é preciso. D izem que só o que arde , cura.

Por isso não tenho nenhum remorso de ter escri to este l ivro.

Adela ide C a r r a r o

A real idade deste livro arde c o m o fogo: se você não tiver um espír i to gigante, não o leia.

Se você não tiver mais de 21 anos,

não leia este l ivro. Fo i preciso que eu

tivesse muito mais de 21 anos para ter a coragem

de escrevê- lo .

Adela ide Car ra ro

Global

GD editora e distribuidora ltda.

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Este livro foi digitalizado e pré-revisado pela Cia do Livro especialmente para o Grupo Bons Amigos, que tem como objetivo atender aos deficientes visuais.

A Cia do Livro desenvolve um trabalho voluntário sem fins lucrativos. Nas nossas digitalizações, fazemos apenas a pré-revisão, pois acreditamos que o

trabalho de escanear é um trabalho de equipe: 1 °. Alguém compra/consegue o livro e escaneia. 2 ° . Faz o mesmo chegar a quem não tem o livro e gostaria de ler. 3 ° . Estes por sua

vez lêem o livro e, neste processo de leitura, fazem a revisão. Assim sendo, qualquer erro ou retificação, solicitamos que envie um e-mail com a

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livro virtual comprem o original e doem a uma biblioteca púbica.

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SUBMUNDO DA SOCIEDADE

Quando li os origi­nais deste livro, senti que não seria fácil classificá-lo.

Adelaide Carraro, que em todos os seus livros, teve o mérito de rasgar os véus das aparências, para mos­trar-nos, ao vivo, algu­mas feridas que roem a nossa Sociedade, demonstrou, ao escre­ver mais esta obra,que somos forçados a ele­vá-la ao grau (má­ximo) de escritora mais corajosa do Brasil.

Como disse o gran­de jornalista e escri­tor espirita, Hercula­no Pires,

não devemos com­parar as obras de Ade­laide Carraro a uma Françoise Sagan, mas sim as denúncias de um Rousseau, De Quincey ou Zola.

Chega a nos causar arrepios, quando ao-ler" Submundo da Sociedade", depara­mos com a chocante

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A D E L A I D E C A R R A R O

SUBMUNDO DA

SOCIEDADE

2. a EDIÇÃO

FEVEREIRO/74

Global

GD L i v r a r i a P r o g r e s s o Compra e Venda, Novos c Usados

L í V R O S e C D ' S RUA CORREDOR DO BISPO ,57

_ Boa. vista - Recife-PE Fone:(81 )3221 -2Ò68 FaX -3421-8821

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DA MESMA A U T O R A

EU E 0 GOVERNADOR

FALÊNCIA DAS ELITES

EU MATARIA O PRESIDENTE

OS PADRES TAMBÉM AMAM

O COMITÊ

PODRIDÃO

ASCO

A MANSÃO FEITA DE LAMA

GENTE

ESCURIDÃO

CARNIÇA

Direitos desta Edição reservados à

GLOBAL EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA.

Rua José Antonio Coelho, 814 — CEP 04011 Telefone: 71-9335 — São Paulo — SP

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O que o povo pensa de Adelaide Carraro.

Entre inúmeras cartas escolhemos três.

Uma do jovem Uilson Pinheiro Dias — Baiano.

Outra da jovem Divalda Pires do Carmo, também da Bahia

por fim a da jovem Rosa Auxiliadora de Oliveira de São Paulo.

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Itanhém, 29 de julho de 1973. Bahia.

Adelaide Carraro

Meus respeitos.

Só no pensar em escrever-te, as palavras me fugiam como se tivessem medo de serem lidas ou pronuncia­das por você.

Agora que escrevo, elas não me saem.

Queria pelo menos, que esta minha carta chegasse às suas mãos, para lhe dizer, através das minhas rudes palavras, o quanto eu lhe admiro e lhe respeito.

Queria no mínimo, lhe dizer que me livrei dos bra­ços cruéis do mundo depois de ler alguns de seus li­vros.

Antes de lê-los, eu não sabia quem eram os meus amigos que me levavam a viver na escuridão, me afas­tando do meu lar e me enlameando perante os olhos da sociedade da minha pequena cidade.

Um dos amigos de meu pai, havia lhe emprestado Eu e o Governador. Eu não ligava muito para livros.

Sem querer, peguei naquele livro e comecei a folhear.

Depois de ler determinados trechos do mesmo, voltei ao início.

Adelaide, você tem muita coragem.

A leitura do livro me impressionou. A partir daí comecei a olhar para dentro de mim mesmo. Depois veio "Podridão''.

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Assim que terminei, eu comecei a me alertar. Pas­sei a escolher as devidas companhias. Depois veio "Eu mataria o Presidente" e "Escuridão". A partir daí eu me encontrei. Hoje depois de ter todas as suas obras, agradeço muito à você ser quem sou.

Adelaide Carraro, o dia que o povo aprender o quan­to de interessante, de belo, de grandioso, existe dentro de uma de suas obras, você terá um lugar no coração de cada brasileiro.

Na planura da literatura brasileira você vai ficar como um bloco súbito de montanha híspida, cheia de* alcantis, de cavernas, de precipícios, de massas brutas da natureza.

Atenciosamente

Uilson Pinheiro Dias

Rua Joaquim Ferreira, 58 — Bahia

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São Paulo, 7 de agosto de 1973

Adelaide

Perdoe-me por usar seu nome assim com tamanha intimidade, porém vendo o caso com um (só) sol ala­ranjado como descrito por você, senti-me mais sua ami­ga, embora você não me conheça, também não importa.

Li diversos livros seus, e notei que você tem uma grande quantidade de carinho, amor e realidade impres­sionante.

Hoje passando numa livraria recém-aberta na Av. Duque de Caxias, vi alguns livros seus, fiquei indecisa entre Podridão e Eu e o Governador, que já li, mas queria ler de novo, mas havia outro que me chamou a atenção "GENTE" comprei-o e enquanto esperava a Assistência Técnica do Supergasbras, li-o sem me levantar até a página 81, e o desejo de congratular-me com você por um livro humano, tão simples e sensível, veio de repen­te fazendo com que parasse de ler e escrever-lhe.

Vou dar alguns de presente, vou presentear o meu, e farei a maior e melhor propaganda possível.

Chorei com você, por causa do gatinho, e agradeci com você aos "Homens do Fogo" que mais de uma vez tive a oportunidade de admirar e desejar saber, pintar, escrever, fazer poesias, sei la o que, para homenageá-los para mostrar ao povo dos mesmos, graças à Deus que existem escritoras como você que fazem isto pela gente que Ama e sente. Agradeça a L. Oren, por mim, a edição de obra tão maravilhosa.

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E à você, gostaria de poder ser sua amiga, para ajudá-la, para ser ajudada por você, para trocar-mos idéias.

Que Deus a ajude a dê-lhe mais inspiração para escrever novos livros.

Abraços e Parabéns, de sua admiradora

Rosa Auxiliadora de Oliveira

Av. Duque de Caxias, 186 apto. 308 — Centro

Sou enfermeira do Hospital Emílio Ribas. Se ne­cessitar de algo pode contar comigo.

ROSA

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Aletinga, 7 de janeiro de 1970.

Prezada Adelaide.

Saúde...

Paz, saúde, tranqüilidade são os meus Votos.

Ê natural que você se surpreenda ao receber esta carta. Porém o que levou-me a tão grande atrevimento foi a vontade louca, de receber uma cartinha sua, que para mim será uma grande honra.

Adelaide gosto muito dos seus livros e sei perfeita­mente que neles só existem verdades. Pois reflito e vejo tudo como eles dizem.

Olha desejo falar tanta coisa para você porém não sinto-me com coragem, pois temo desta carta não che­gar em suas mãos, pois não tenho seu endereço, escre­vi por entermédio da Distribuidora dos seus livros, não sei mesmo se esse é o seu endereço.

Depois que li os seus livros aprendi a viver e co­nhecer as pessoas de perto, que antes eu não conhecia, pois julgava que todos eram bons quando na realidade não passam de uns monstros, fingindo-se de "santos".

Veja só Adelaide como eu gosto de você: Certa vêz li em uma revista a seguinte frase "As escritoras maldi­tas" essa frase era para você e Cassandra Rios, fiquei com tanta raiva que cheguei até chorar. No lugar de "Malditas" devia estar "BENDITAS" isso sim. O povo é assim, não apoiam nunca as pessoas que falam a ver­dade.

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Como dizia o seu livro, Os padres também amam: "Em seus livros ferve a verdade que muita gente gosta­ria de ver sepultada". Quem escreveu essa frase sabe mesmo as coisas e reflete divinamente bem. Pois o mal do Brasileiro é ter medo de falar a verdade (menos você).

Nada mais dessa humilde fã, que deseja-lhe um pre­sente maravilhoso, e um futuro brilhante.

N.B. Responda-me se isso não acontecer eu serei a moça mais triste do mundo.

Dinalva Pires do Carmo

Rua Rui Barbosa n.° 52

Aletinga — Bahia

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ZÉ chegou na estação da Luz, descendo de uma terceira classe de um trem que veio de Belo Horizonte. E se assustou com o movimento da Grande São Paulo. Arregalou os olhos e começou a se virar para todos os lados, admirando a enorme quantidade de gente, que se movimentava apressadamente pela plataforma.

Ele se perdia naquele lufa-lufa de gente carregando malas, cestas, sacolas, embrulhos e crianças. Desviava de um carregador e já era empurrado por um passa­geiro afoito, que queria sair o mais depressa possível da estação, e pegar qualquer condução que o deixasse no lugar pretendido.

Empurrado daqui e dali, o Zé chegou até a calçada e mais assustado ainda com o movimento de gente e de carros, já meio tonto, procurou uma parede e se encostou sem saber o que fazer ou para onde ir. Tinha vindo para São Paulo, na esperança de conseguir for­tuna como o seu Lucas, patrão de seu pai, que é uma das fabulosas fortunas de Belo Horizonte.

No meio de toda aquela azáfama ele conseguia ouvir a voz do pai.

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— É meu filho. O homem é podre de rico. E você sabe que ele é filho de gente pobre como nós. Hoje com quarenta e um anos o seu Lucas é milionário.

— E onde ele achou o dinheiro, heim pai?

— Que achou, filho. Ele trabalhou muito lá em São Paulo.

Lá em São Paulo. Lá em São Paulo. Aquilo ficou martelando na cabeça de Zé, e quando o pai morreu, largou toda a sua pobreza e desembarca em São Paulo.

Agora, encostado na parede ele olhava por onde de­via começar para ficar rico. Ficar rico. Foi aí que se lembrou de contar quanto dinheiro lhe restava, da ven­da dos velhos móveis que tinham pertencido aos seus pais, agora mortos. Tirou o pacotinho de notas do bolso e começou a contá-las.

— Vinte, quarenta, cinquenta, cem, duzentos. Poxa!

Tenho duzentos cruzeiros. Nunca tive tanto dinheiro. Mas coitado do pai. Ele gostava tanto daquela cristalei­ra, com espelho dentro.

As lágrimas queriam molhar seus olhos mas um moço que vinha chegando as secou.

— Olá menino.

— Sim, sr.

— Você poderia me fazer um favor?

— Até dois.

— Imagine você. Ganhei na loteria Esportiva, esse monte de dinheiro que está aqui neste pacote. Embru­lhei em jornal para melhor disfarçar, pois aqui em São Paulo, tem muito ladrão. Principalmente, aqui na Esta­ção da Luz. Eles ficam olhando; e quando vêem um pacote com papel, mais fino nhoc, nhoc, agarram logo, e fogem como cão danado.

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Zé arregalou novamente os olhos (pobre Zé, se ele soubesse como teria de arregalar os olhos daí em diante) e pegou rapidamente a malinha do chão e a segurou firme com as duas mãos, amassando os duzentos cru­zeiros.

— É, segure bem. Ladrão não falta — Segure, se­gure bem. Mas como ia lhe falando. Desse dinheiro tenho que entregar a metade para o meu sócio no jogo. Marcamos encontro aqui. Olhou para os lados. Mas a questão é que devo tomar o próximo trem e ele não aparece.

— 0 que devo fazer, para ajudar o sr.?

— Queria que fosse à casa dele. Fica aqui perto e lhe entregasse o pacote de dinheiro.

— Mas eu não sei andar em São Paulo. Cheguei neste instante de Belo Horizonte.

— É fácil — Você está vendo ali do outro lado da rua aquela casa de janelas azuis? Pois é ali.

— Ah! Ali é canja. Ê só o sr. segurar a minha mala.

0 moço fica irresoluto.

Zé pergunta rápido.

— 0 sr. está desconfiando de mim?

— Não é isso. É que aqui dá tanto ladrão.

— Mas eu não sou ladrão.

— Eu logo desconfiei, e é por isso que o escolhi para levar esse monte de dinheiro para o meu amigo, mas é que eu preciso de uma garantia. Você vê — O moço abre o pacote e deixa a mostra uma nota de cem cruzeiros. Aqui é só nota de cem. Vamos fazer o se­guinte. Eu pego essa nota de cem do pacote e você

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me dá esse dinheiro aí. Antes de você entregar o pacote pode pegar dez notas de cem, tá bom assim?

Zé arregala os olhos.

— O que?!! dez notas de cem?

— Dez notas de cem!

— Poxa. Nunca pensei que fosse ter tanta sorte aqui em São Paulo.

Sorri mostrando dentes sujos e cariados.

O moço pega logo os duzentos cruzeiros e dá o pacote ao menino que sai correndo segurando firme a velha malinha.

Com grande dificuldade, atravessa a rua e chega à porta do prédio.

— Moço, moço. O jovem que estava na porta, olha para Zé, com

indiferença.

— O que é que há?

— Eu vim entregar o dinheiro, pro homem que mora aqui.

— Aqui moram muitos homens.

— Muitos?! — Zé arregala os olhos.

— Muitos — Responde o moço com enfado, pois isto aqui, é um hotel. Qual é o nome dele?

— O nome dele?! O nome dele?! Ah! o nome dele, esqueci de perguntar.

— Então nada feito — Olha para as mãos de Zé

— Deixe ver o dinheiro.

Zé com um sorriso inocente lhe entrega o pacote.

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O moço abre-o, e os olhos de Zé, quase saltam das órbitas, pois aparece um monte de papel dobrado.

— E o dinheiro? — pergunta com o coração aos pulos.

— Neca de dinheiro. Você não está vendo, que não existe nem um tostão? Você foi enganado. Foi ví­tima de um paco.

— Paco?!

— Sim, sim menino. Algum espertalhão lhe achou com cara de idiota e lhe fez cair no conto do vigário.

0 menino de treze anos, mulato, raquítico, mal vestido, fala baixinho.

— Eu não sei. Eu não entendo o que o sr. está falando. 0 que é conto do vigário? O que é paco?

— Olhe aqui menino. Vou lhe explicar sobre paco. Mas depois você dá o fora, pois não quero saber de atrapalhadas aqui no meu hotel. — Paco é esse pacote aqui. Papéis velhos que simulam notas de dinheiro. Eles sempre usam uma nota verdadeira, para cobrir os pa­péis. Ela devia estar aqui. O que você deu ao homem que lhe deu esse pacote?

— Meus duzentos cruzeiros. Agora não tenho mais nem um tostão.

— Isso não me interessa. Vai andando, vai andan­do.

0 homem empurra Zé, rudemente.

Com a malinha na mão, Zé, anda vagarosamente, pelas calçadas das ruas da grande cidade. Já cansado põe a malinha no chão e tira molemente o lenço do bolso, para enxugar o suor que lhe escorre pelo rosto. Quando volta a pegar a mala, esta havia desaparecido. Arregala os olhos e virando para todos os lados. Gente andando feito louca, carros, luzes, businas, fumaça.

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Minha mala! Minha mala! — nervosamente para um transeunte e com as duas mãos lhe agarra os braços e grita.

Roubaram a minha mala. A minha malinha. Era de meu pai.

— Larga-me menino. Você está louco? Quer que chame a polícia?

— Mas roubaram a minha mala.

Zé chora. O povo vai passando apressado. A noite chega. Zé está com fome, cansado e triste. Vai andando. Vai conhecendo a grande maravilhosa cidade de São Paulo. Quantos prédios que se perdem lá no meio do céu! Quantas luzes coloridas! Zé olha as vitrines, cheias de lindas e caras roupas. Seu estômago está fundo. Pára perto de uma vitrine na Praça da República, estu­fada de jóias. Lindas jóias tem São Paulo! Mas ele gira, gira, sem saber para onde ir. Anda mais um pouco. Re­solve atravessar um cruzamento da Avenida São Luiz, esbarra num menino que com um rodinho está lavando o vidro de um carro. O menino grita.

— Não enxerga, viado filho da puta!

Zé fica vermelho.

— Desculpe-me. Estou . . .

0 sinal abre. 0 menino o agarra pelo braço e o puxa rápido para a calçada.

— Quase que você foi atropelado. Você é biruta, heim cara?

— Tô tonto de fome.

— Ah! isso não é novidade. É a coisa que eu mais conheço. Menino com fome.

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— Então, onde é que eu posso comer?

— Porra. Em qualquer lugar. A cidade está suja de bares e restaurantes.

— Mais eu não tenho dinheiro.

— Não tem?! — Aí o menino paulista já velho nos seus doze anos, cai na gargalhada.

Zé arregala os olhos e sem graça.

— 0 que eu disse de engraçado?

— Porra, é o que eu vejo todos os dias. Você não trabalha?

— Cheguei agora de Belo Horizonte, e na estação roubaram a minha mala, e o meu dinheiro.

— Por que você veio pra cá?

— Quero ficar bem rico, como o seu Lucas.

— Quem é o seu Lucas?

— É um homem muito rico. Ele era pobre e aqui em São Paulo, ficou rico.

— Então você deve começar desde já. Pegue esse rodinho e limpe os vidros dos carros. Eu sou teu sócio. Meio a meio.

— Como devo fazer? — Olhe, o carro pára você corre, passa o pano no

vidro do carro e puxa com o rodinho. Depois vai até a janelinha daquele que está guiando e ele lhe dá um dinheiro. Nunca pergunte se pode limpar o vidro, por­que os filhos da puta, sempre dizem que não. Olhe fechou o sinal. Corra. Tó o pano e o rodinho. Preste atenção nos sinais. Quando ficar amarelo, você dá o pira.

X X X

Agora, Rui e Zé estão sentados em uma caixa de engraxate comendo pão com mortadela. A cidade está

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meio quieta, pois são quatro horas da manhã.

— A gente não vai dormir? — pergunta Zé abrindo a boca.

— Se você quer dormir, dorme porra.

Zé olha para os lados.

— Mas onde?

— No chão. Ali perto daquela porta. É uma gara­gem, ninguém vai encher o teu saco, pois só abre lá pelas sete horas.

— Mas eu lá em Belo Horizonte, nunca dormi no cimento.

— Mas lá o horizonte é belo — Rui gargalhou — Lá, talvez existam sonhos para os meninos de nossa idade. Nós, daqui uns dias você vai conhecer a nossa turma, são mais de mil, somos os meninos paulistas sem sonhos, sem passado, sem presente e sem futuro. Isso quem disse foi um repórter, que veio nos entrevis­tar. Eu saí no jornal. Até, que fiquei legal. Sabe o que saiu escrito no tal jornal. Que nós somos de alguém. E que esse alguém, é o submundo das noites paulistas.

— Eu não sei o que é isso.

— Logo você vai saber.

— Logo quando?

— Quando você começar, como a minha turma, a andar, lado a lado com traficantes, prostitutas, assassi­nos, ladrões, viciados e pederastas.

Rui foi explicando tudo ao menino franzino de Belo Horizonte.

— Não Rui. Eu não vou viver junto com essa gente. Eu vou viver com gente da alta sociedade. Meu pai, sempre dizia que o seu Lucas é da alta-sociedade. E que

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essa gente granfina é maravilhosa. Eles vivem num mundo diferente da gente. Eles têm casa bem linda, grande, rodeada de jardins com piscina. Lá dentro tem tapete bem grosso e macio. Meu pai disse que um dia pisou no tapete da casa do seu Lucas e que até levou um susto, pois o pelo do tapete cobriu todinho os seus pés. Sabe Rui, eles comem numas mesas com ricas toa­lhas bordadas, com lindos pratos de porcelana, colheres de prata e bebem em taça de cristal. Você bate no vidro da taça e ela faz trim, trim, trim.

— Isso é trem que faz.

— Não Rui, são os copos das gentes da alta socie­dade.

Poxa você já pensou. A gente toma banho de chuveiro quente. Na casa de seu Lucas, tem banheiro no chão.

— E onde você queria que o banheiro estivesse?

— Não, não você não entendeu. O banheiro fica dentro do chão.

— Olha aqui Zé. Teu pai te disse como é a cama dessa gente da alta sociedade. Só a cama interessa.

— Porque?

Rui tem um riso malicioso.

— Porque a gente pode trepar numa mulher no macio. As mãos de Rui, iam planando o ar devagar, bem devagar. Você já pensou, como a mulher se torna legal no meio de lençóis de linho e colchas de pele. Ainda mais se estiver fazendo frio.

Zé arregalou os olhos e falou com voz de sono.

— Nunca vi trepar em mulher. Só vi trepar em árvore.

— Porra. Como você é burro. Quantos anos você

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tem? Treze e nunca trepou em mulher?! Trepar em mu­lher, quer dizer foder a dona.

— Também não sei o que é isso.

— Ora cara vá gozar outro. O papai aqui você não vai levar prá grupo. Nunca fodeu. Então vai ver que é viado. Rui explicou tudo.

— Ah! mas não é assim que se diz.

— E como se diz dr.?

— Ter relações sexuais.

— Então você já teve relações sexuais — Rui ri, torcendo a boca — Sexuais.

— Não.

— Então você vai com a Laura gorda. Por uma garrafa de pinga ela lhe dá a buceta e você dorme numa cama. Venha vou levá-lo lá.

— Mas tem cama, com colchão e tudo?

— Não é da alta sociedade, mas serve.

— Que bom estou morrendo de sono.

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Laura a Prostituta

Num porão escuro, cheio de ratos e baratas e com um cheiro horrível de coisas podres, Laura Gorda, abre a porta para os meninos. Bêbada, com os cabelos em desalinho embrulhada em um penhoar sujo, sorri numa dentadura postiça com a gengiva cor de abóbora e den­tes amarelos.

— Oi, oi Laura, te trouxe um menino que diz que não se fala foder e sim, ter relações sexuais.

Os dois riem as gargalhadas.

Zé fica encabulado.

— Mas é assim mesmo que se diz.

Mas esses meninos nunca aprenderam a falar bo­nitinho. Eu sei que é assim mesmo que se fala, mas agora entro na deles, senão não ganho pinga. — Senta aí pirralho que eu vou lhe contar quem fui — Senta você também, Rui.

— Não Laura. Eu quero ver você ensinar ele fo­der... Tua vida já encheu o saco.

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— Se você não ouvir também não faço nada com o negrinho.

— Ele é mulato. Parece preto, porque aqui está muito escuro. — Rui sacode o Zé que está dormindo

na cama com lençóis imundos. — Hei acorde diabo. Você vai sentir o que é gostoso.

Zé esfrega os olhos, e faz um tremendo esforço para mantê-los abertos.

— Conte logo então, Laura, senão o Zé dorme.

Laura esparrama suas banhas no chão e Rui senta na cama perto de Zé. Os ratos e as baratas passeiam por entre os três.

Uma vez ou outra Laura esmaga alguma barata e joga debaixo da cama. Zé faz cara de nojo e engole em seco. Rui ri. A voz de Laura, enche o porão.

— Nunca fui prostituta de "trotoir". Cai nesse lixo porque as garras dos mercadores de escravas brancas chegou, lá na minha terra. Minha terra, ouviu seu ne­grinho, porque eu não sou dessa porcaria de São Paulo. É, sou de Recife — Morro de Saudades. Rui pegue a garrafa de pinga, vou beber mais um gole, pois quando falo de minha terra me seca a garganta.

Laura bebe na garrafa e estala a língua.

— Pois como estava falando. Eu era uma linda mo­ça e frequentava os melhores clubes da minha adorada Recife. Mas um dia conheci um rapaz, boa pinta. Alto, moreno, com olhos aveludados e lindos dentes, bem branquinhos.

Logo que me viu, ficou gamado por mim. Visitou os meus pais e adorou os meus irmãozinhos. Alonso de cinco anos e Marcos de oito. Falou para mamãe que pretendia casar comigo. Oh! foi uma festa. Minhas ami­gas morriam de inveja. Deixei até o concurso de Miss

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Brasil, pois era uma das mais fortes candidatas. Lucio era seu nome, tinha bastante dinheiro no bolso, e me levava a boates todas as noites. Sendo menor, Lucio distribuía dinheiro a rodos, para eu poder entrar. Para mim bobinha com quinze anos ele me pareceu forte e protetor. Confiando em ser sua esposa, deixei que ele me possuísse, sendo depois trazida para São Paulo.

Aqui em São Paulo fui instalada num luxuoso hotel. No dia seguinte visitei as melhores lojas comprando roupas caríssimas. Lucio dizia que era o meu enxoval e que logo nos casaríamos. Um dia mandou que eu vestisse somente um neglige transparente. Me senti lin­da naquelas nuvens azuis onde sobressaiam, as minhas belas formas. Rodopiei pelo quarto e cai nuns braços que me apertaram fortemente. Os braços não eram as de meu noivo e sim de um desconhecido. Lucio sorria de um canto do quarto e disse:

— Laurinha, se você me ama de verdade, seja boa­zinha para esse cavalheiro. Gastei muito com o seu enxoval e fiquei quebrado. E cada dia aparecia um milionário diferente. Davam mil cruzeiros, para deixar por em todos os lugares. Mas eu não deixava. Dava só a frente. Até hoje graças a Deus, ainda sou virgem no trazeiro. Nunca mais ví Lucio, mas em compensação apa­receram os caras mal encarados que abriram o jogo. Sa­bem o que eles eram? Nada mais, nada menos do que uma gang de Escravas Brancas, que agem em São Pau­lo. "Eles" me fizeram, sair do hotel e fui morar num rico apartamento, com algumas colegas, que foram tra­zidas para a maldita São Paulo, como eu. "Eles", me conseguiram documentos falsos, acobertando-me como menor, para eu poder frequentar as boates "quentes". Uma tarde estava dormindo, quando a empregada avi­sou-me que tinha um cliente.

— Diga-lhe que trabalho só à noite. Durante o dia, tenho o direito de dormir. Mas o cliente já estava no meu quarto. Era da gang, e veio todo sorriso.

— Todo sono dever ser respeitado, mas como não

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tinha companhia, lembrei-me da linda Laurinha, das coxas grossas e aqui estou, me ajoelhando aos seus pés para que me lance, ao menos um pequeno olhar.

Sorri, pois não tinha outro jeito mesmo. O nome dele era Rodolfo. Foi muito bonzinho por isso me abri.

— Sabe, Rodolfo estou com vontade de voltar pa­ra a minha cidade, e para a minha família, já faz um ano que estou nessa vida e ainda não arranjei o em­prego fabuloso, que vocês me prometeram, para ir bus­car os meus pais e irmãos.

Rodolfo andou pelo quarto, apertando o queixo com a mão fina e bem cuidada, onde sobressaia o esmalte brilhante das unhas. "Eles" todos são bem cuidados e se vestem com roupas finíssimas e possuem carros do último tipo, a custa de milhares de bucetas.

— Sabe Laura — disse-me, ele. Eu não posso fazer nada por você. Em todo caso no dia da reunião dos "chefes", vou expor o seu caso. Agora vista-se. Vamos até a Ilha Bela — Precisamos de um banho de mar, você não acha? Na Ilha Bela, Rodolfo estava alegre e saltitante. Tomamos banho no mar bem azul e depois fomos jantar.

— Que delícia — disse-lhe. — Hoje não preciso es­tar naquela boate nojenta com aquela bebida nojenta e aqueles homens nojentos — Viva a liberdade!

Se eu soubesse que "liberdade" teria daí pra frente, juro que teria me afogado.

Rodolfo ria muito. Apertou-me nos braços e excla­mou.

— Vamos comemorar. Aliás para comemorar tome essa pastilha.

— Prá que?

— Prá você ficar ligada.

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— Mas eu não quero ficar ligada. Estou bem assim.

Estou feliz. Mar, terra, céu, árvores e a noite caindo, oh! Rodolfo deixe a pastilha prá lá. Você pensa que não sei que isso aí é entorpecente.

— É mesmo querida. Paguei cem cruzeiros, por

dois micros ponto de LSD, um para você. Outro para mim.

— Não, não quero.

— Ora Laura, escolhi você, para passar meu dia de folga. Me informaram que você era a mais bacana das garotas. E agora você vem com esse lero lero, de não querer me fazer companhia. Falando francamente eu sou viciado em alucinógenos e não escondo de nin­guém. Tome vá. Vamos ficar ligados. Você vai ver como é legal.

— Não Rodolfo, não vou tomar. Detesto tóxicos.

— Só dessa vez — juro que falo com os Chefes, para você cair fora dessa vida, com um bom emprego, que eu mesmo posso lhe arranjar. Aí você poderá tra­zer a sua família.

— Jura que você fará isso?

— Juro.

— Então eu tomo — Eu já tinha lido muitos arti­gos sobre o LSD e sabia de seus efeitos e conseqüên­cias. Naquela primeira experiência, tive a percepção mais aguçada. Imagine vocês, que o barulho e mais ba­rulhento. E meus olhos viram a beleza que jamais pen­sei que existisse.

Laura tomou mais um gole de pinga, e respirou fundo, fazendo as dobras banhosas de seu corpo, su­birem e descerem. Depois continuou.

— 0 mar tomava cores diferentes. Uma hora era

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vermelho como sangue. Depois um azul cheio de rosa, lilás, dourado, prateado, enfim mil cores. Eu estava drogada. Mas nada me interessava eu só queria saber da sensação maravilhosa que estava sentindo. Uma sen­sação onde tive a impressão que meu corpo flutuava no espaço. Acordei já de madrugada com o sol fraco cobrindo-me inteirinha. Olhei para os lados e vi que Rodolfo estava no mar me acenando as duas mãos. Cor­ri para ele — Ele me abraçou de encontro ao seu tórax forte e cabeludo. Não sei se foi impressão, mas o sor­riso de seus lábios, era um sorriso de ironia. Depois de cinco dias quando o procurei os seus lábios se abriram no mesmo sorriso.

— Rodolfo me de mais uma pastilha de L . S . D . Fiquei vidrada por ela.

— Tenho uma por cincoenta cruzeiros.

Comprei uma, depois duas, três, dez, vinte, já es­tava viciada.

Aí vim saber que todas as minhas colegas da gang, passaram pelas mesmas coisas e estávamos todas vicia­das. Era assim que "Eles" agiam para a gente não dar o fora. Endividando-nos em drogas. "Eles" precisavam das nossas bucetas.

— Não fale esse nome que o Zé não está acostu­mado, Laura.

— Mas ele vai se acostumar. Só se ele for embora agora. Deve fugir agora dessa cidade que esmaga quase todos que nela se infiltrarem. Fuja menino, fuja para a sua Belo Horizonte. Aqui você poderá, até ser um assassinado, como foi a minha colega de apartamento. Ela também era uma viciada, mas um dia quis bater as asas, pois já estava cansada de ser explorada, por aqueles cafajestes. Sabe o que foi que aconteceu? Ela apareceu quebrada, no asfalto da rua Dom José Gaspar. Foi atirada do décimo segundo andar. Estava já fria, bem fria, quando corri e arranquei o meu anel de ouro

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que tinha lhe emprestado.

Laura vira os olhos nas órbitas e cochicha.

— Eu não posso falar alto. É preciso cuidado, pois "Eles", podem estar me vigiando.

— Que, Laura! que nada. Agora "Eles", sabem que ninguém acredita em você. Você já viu a polícia, acre­ditar, em mulher velha, louca e bêbada.

— Eu não sou velha, ouviu? Tenho trinta anos. Quer ver meu documento, quer?

— Só quero ver, o Zé te foder. Só isso. O resto não me interessa.

— Pois ainda não acabei de contar.

— Olhe aqui, Laura, já sei o que você vai contar. Que suas amigas prostitutas, que desejavam dar o fora da gang, iam sendo assassinadas. Primeiro foi essa aí, da Dom José Gaspar. Depois foi aquela que foi estran­gulada com o fio da enceradeira, a Lídia. Depois foi a Lia, nua estrangulada e violentada.

— Espere aí. Você não esta contando que ela, aliás, que o corpo dela, estava putrefato, e cheio de vermes.

— E, e, e, e, e, e o que tem. Depois de morto todo mundo é comido pelos vermes.

— Mas na sepultura ninguém vê, e eu vi. Vi todos aqueles enormes bichos se mexendo como um formi­gueiro em volta.

Laura esconde as mãos e soluça. Eu vi. Vi os ver­mes, por isso fugi. Laura vira os olhos novamente — "Eles" podem estar por perto. Devo falar baixinho.

— Sabe de uma coisa, Laura, se você não der a buceta pró Zé, eu vou embora e nunca mais lhe compro pinga. Já estou com o saco cheio. — Rui dá um puxão

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e faz Zé se levantar.

— Tô com sono, Rui.

— Vá bobo, olha, ela já está deitada.

— Espere aí que acendo a luz.

— Viu como ficou legal. Agora você pode ver tudo direitinho. Tire a roupa.

— Prá que? — Prá que?! Rui diz com enfado. Prá foder a mu­

lher, homem de Deus! Aliás, menino de Deus — não quer aprender?

— Mas preciso tirar toda a roupa?

— Claro burro. A camisa atrapalha.

Zé foi tirando as roupas. Nu, escondeu o sexo com as duas mãos.

Rui num gesto brusco, puxa as mãos de Zé e diz.

— Chiiiii, o pinto dele está mole. Olhe aqui, Laura. Abra as pernas para ele ver as coisas.

Laura escancara as pernas e Zé arregala os olhos.

— Porra, Laura, você não lavou a bunda. Está tudo engruvinhada. Como é que o Zé vai entrar aí.

Laura passa as mãos pela vagina imunda e grita.

— Pronto! Agora vê se faz logo, pois quero beber mais pinga.

Zé deitado em cima daquelas carnes deteorantes, se enfiava no submundo de São Paulo.

Depois os três dormiram. A prostituta. O menino paulista de doze anos, e o menino mineiro de treze.

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Ela velha em plena mocidade e eles velhos, na in­fância.

Quando Zé acordou, Rui já tinha saído e Laura ron­cava soltando o bafo da pinga. Zé procurou as roupas Rui as levara. Zé ficou com medo de acordar a mulher, e se enrolando num trapo que apanhou ao acordar, saiu para enfrentar a grande cidade.

Agora parado em frente às grandes máquinas que constroem o metrô, parou de olhos arregalados. Ho­mens e mais homens, como formigas, num vai e vem sem fim, cavam, batem, reviram a terra, derretem aço jogando faiscas de fogo que chegam até ao menino, que continua imóvel apalermado.

— Hei menino. Sai daí senão vai se queimar. Olhe, olhe o guincho. Corra . . . Zé corre do guindaste gigante, que levanta enormes blocos de cimento.

Mais cimento armado. São Paulo precisa progredir. São Paulo, tem que ser a melhor a mais moderna cida­de do Brasil.

— Poxa que fome e que frio. Onde devo ir, meu Deus!?

Pra lá? Não. Pra cá? Não. Pra frente, ou para trás? E nem devia ter vindo. Mas eu quero ficar bem rico. Quero ser da sociedade, como seu Lucas. Mas como?!

Zé se viu cercado por um bando de garotos maltra­pilhos, sujos, descalços com as unhas pretas e cabelos desgrenhados.

— Oi cara.

— Olá.

— Quede a sua roupa?

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— O Rui levou.

— Que Rui?

— O menino que me mandou lavar os vidros dos carros.

— Você não tem casa?

— Não.

— Nós também não temos. Venha a gente arranja roupas, prá você. Vamos Luiz, tira a calça de cima e de pro menino.

— Tá bom.

— Você Walter dê uma das suas blusas.

— Tá bom.

Zé se vestiu rápido.

— Obrigado.

— Meu nome é Sebastião.

Um menino falou rápido.

— O Sebastião já saiu no jornal, sabe? O repórter veio aqui e botou no jornal tudo da vida dele. O repór­ter disse que nós somos os Bandidos de Amanhã.

— Ora, Luiz. Eu não vou ser bandido, eu vou estu­dar.

Todos riem.

— Estudar, o que é isso? Prá nós não dá. Só se a gente ganhar, na Loteria Esportiva. Mas menor não po­de jogar e por isso a gente não ganha.

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— Bem gente, vamos trabalhar. Sebastião tinha â mesma idade de Zé, treze anos.

O menor da turma de nove meninos, tinha oito anos e se chamava Vitor. Mas como todo menino abandonado, que vagueia pela grande cidade de São Paulo, Vitor co­nhecia drogas, estelionatários, caftens, prostitutas, cri­minosos, pederastas e ENTENDIDOS. Mas ele ainda, não podia entender a essas espécie de homens pois seu corpinho raquítico ainda não revelava nada sobre sexo. De par a par eles cumpriam a tarefa imposta pelo "che­fe" Sebastião, que chamavam de Tião.

Uns limpavam os para-brisas dos carros nos gran­des cruzamentos, outros vendiam saquinhos de limão, mixiricas, ameixas, ou a fruta que estava na época. Os menores pediam dinheiro nas janelinhas dos carros. Is­so eles faziam até às dezesseis horas. Depois . . . Bem vamos segui-los as dezesseis horas. À turma ficou de se reunir essa hora no gramado que enfeita as margens da fabulosa Av. Rubem Berta.

Todos estão sentados no gramado. Só Zé, não presta atenção para o que Tião esta falando. Ele tem os olhos esbugalhados e pregados nos luxuosos carros que zu­niam como mil demônios, soltando uma fumaceira e exa­lando um cheiro horrível de óleo queimado.

— Oi, cara.

Zé sai da linda avenida, e vira-se para seus compa-nheirinhos rotos.

— Que é?

— Você nunca viu, carro? De onde você veio?

— De Belo Horizonte.

— E lá não tem carro?

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— Tem, mas não como aqui. Lá fico na Av. Ama­zonas, vendo os carros passar. Mas nunca vi nada igual a São Paulo.

Sebastião suspirou.

— É São Paulo, é muito bacana, mas ele é cego.

— Cego?!

O riso de Zé se juntou aos dos outros meninos.

— Cego sim.

— Nunca vi cidade ter olhos.

— E eu nunca vi cidade ser cega.

— Você são uns bobos mesmos. Digo cego no sen­tido . . . no sentido — Tião bate na cabeça — Me esque­ci que palavra boto aí para vocês compreenderem o que eu quero dizer. O que eu quero explicar é que São Paulo, só pensa em si. Ele é egoísta. Se veste de lindas aveni­das, de altos e luxuosos prédios, de verdejantes praças, de fantásticas pontes elevadas e agora o caminho sub­terrâneo. Mas ele esquece de uma coisa muito importan-te.A criança.

— Mas onde está a criança que ele esquece.

Tião enfadado morde os lábios.

— As crianças estão aqui. Você, eu e todas as crian­ças abandonadas e todas as crianças que estão nos asi­los do governo. Você não lembra que o repórter disse no jornal, que nós estamos enfrentado sem saber, os traumas que nos conduzirão à delinqüência e à margi­nalidade? Nosso futuro? BANDIDO.

As gargalhadas das crianças se misturaram com o ruído da metrópole desumana.

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Todos apresentaram ao "chefe", as poucas moedas que ganharam. Tião dividiu em partes iguais.

— Eu quero tudo o que ganhei Tião, diz Luis: pois vou comprar uma garrafa de uísque, prá a mulher que eu vou foder hoje.

— Você vai receber o mesmo que a turma.

Luiz tem dez anos. Estava vestindo uma calça de brim toda puída com os joelhos a mostra e uma blusa encardida com inscrições de uma universidade dos Es­tados Unidos. Luiz, levanta-se da grama e de um salto, cai em cima de Tião, que se defende com uma faca. Mas o fuscar do aço, não assusta os dez anos de Luiz que se afasta sorrindo, tira do bolso da calça rasgada um ob­jeto escuro. Ele aperta um botãozinho, e a lâmina de um punhal brilha nas pequenas mãos. Lutam as duas crianças, faca a faca. Rolam pela grama e caem na cal­çada da grande avenida. Das janelinhas dos velozes car­ros assomam rostos cobertos de indiferença.

0 golpe no braço de Luiz, e o fim da briga. Tião, limpa o sangue da ponta da faca e diz, respirando aos solavancos.

— Ainda sou o "chefe" — Se você quiser procurar outra gang, pode ir. Mas enquanto estiver aqui, tem que acatar as minhas ordens.

X X X

Zé, Luiz e Vitor, por ordem de Tião, iam nesta tarde até as duas da manhã, "trabalharem" juntos.

Andando lado a lado eles iam varando o povo até que chegaram na Praça Júlio Mesquita.

— 0 negócio é assim, Zé. Você está vendo aquele cara ali sentado?

— Tô.

— Pois é. Você chega lá e fala assim prá eles, que

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você trabalha num hotel e que o gerente mandou per­guntar se eles querem um quarto, prá curta permanên­cia. Você precisa explicar pros caras, que não tem bron­ca não.

— Mas você deve me explicar pra que é que eles

querem ir para o hotel, se estão tão bem lá sentadinhos.

— Ah! Você não sabe ou está me gozando.

— Não sei não, palavra de Deus.

— Bem. As vezes os caras estão conversando, e ficam com vontade de fode r . . .

Zé interrompe.

— Ficam com vontade de ter relações sexuais.

O riso de Luiz e Vitor.

Vitor com um sorriso malandro.

— Hei, Luiz. O cara não sabe o que é foder.

Zé com orgulho.

— Claro que sei. Esta noite dormi com uma mu­lher e tive relações sexuais com ela.

— Isso aí, de relações sexuais, quer dizer foder, re­truca Luiz, enrolando a língua.

— É.

— E quem disse?

— O meu pai. .

— 0 teu pai?! Você tem pai?!

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— Ele morreu. Mas ele trabalhava na casa de gente

bem rica, e sabe falar tudinho como na alta sociedade.

— Alta sociedade?!.

— É. Seu Lucas é da alta sociedade lá de Belo Ho­rizonte. Ele é estudado. Ele ficou bem rico aqui em São Paulo.

— Está bem, tudo está bem. Deixa prá lá, o seu Lucas. 0 negócio é que se os caras estão com vontade disso aí que você falou, mas eu repito foder, senão não sei explicar nada, os caras vão querer foder e não vão deitar no banco da Praça, então os caras querem uma cama, mas tem medo de alugar quarto no hotel, porque a polícia pode aparecer, então a gente fala pros caras e os caras, vem com a gente e gente leva eles prô gerente e o gerente dá dinheiro pra gente. Cada casal que você levar, ganha cinco mangos.

— E a gente pode ficar rico?

Luiz ri.

— Pra ficar rico é só você entrar no negócio das drogas. Mas depois a gente fala sobre isso. Agora en­quanto você fala pros caras, eu vou ali naquele bar, be­ber um gole de uísque.

Zé arregala os olhos.

— Você bebe?!

— Claro. Olha, eu não tou nem aí, com esse negó­cio de fumar maconha, e outros bichos. O que eu gosto mesmo é de beber uns bons goles. Pode ser daqui ou do estrangeiro. Mas pra mim tem que ser uísque.

Você quer também um gole?

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— Não.

— Então vou beber e depois começar a "trabalhar".

Vá você também Vitor.

— Eu já sei o que tenho de fazer. Não precisa você mandar. Já vou faturar aquele casal ali.

Zé com os passos indecisos chega perto do casal. Senta num canto do banco de pedra e fica esfregando o dedão do pé no cimento. Depois de algum tempo cria coragem.

— Boa, boa noite.

O homem vira-se carrancudo.

— Que você quer?

— Eu trabalho no hotel.

— E que é que eu tenho com isso?

Zé abaixa a cabeça.

— Coitadinho Carlos. Deixa ele falar — diz a moça.

— Então fala vamos, eu não tenho tempo para per­der.

Zé fala rápido, olhando o homem bem nos olhos.

— Eu trabalho no hotel. Aquele lá. O gerente disse se vocês quiserem quarto, ele aluga bem barato, e diz também que não precisa ficar preocupados, pois a polí­cia não os importunará.

O homem se interessa pelo negócio e responde mais afável.

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— E quem garante que a polícia não vai aparecer. — Ele disse que paga uma boa nota, prá polícia

desse setor.

— Bem se é assim — Aperta a mão da moça — O que você acha, meu bem?

— ótimo, meu bem. Estou morrendo de vontade. Ele passa as mãos pelos seus cabelos.

— Assanhadinha. Vamos lá. Venha menino. Venha mostrar qual é o gerente.

— Pera aí um pouquinho, faz favor.

Zé avista Luiz e grita.

— Luiz hei Luiz, venha cá.

Luiz se aproxima. Quando abre a b o c a para falar o hálito de álcool faz o homem se afastar receioso.

— Mas o que é isso? Um menino alcoviteiro, e ou­tro alcoólatra. Onde estamos meu Deus! — Agarra a moça pela mão e saem a passos apressados.

— Você assustou os caras Zé. O que você quer?

— Eu não sei qual é o gerente do hotel.

— É o homem que está vest ido de preto, já lhe disse com uma gravatinha borboleta, também preta. Ve­nha, o melhor é eu apresentar você a ele. Aí ele fica sabendo que você é dos nossos. Agora, eu posso lhe mostrar o homem de longe e explicar como você tem que agir.

— Bem eu prefiro ver de longe.

— Então venha aqui. Tá vendo lá do outro lado da

Avenida aquele hotel branco com janelas marrom?

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— Tô.

— Tá vendo aquele cara alto, magro, todo de preto com o cabelo preto bem penteadinho que anda de um lado pro outro, com as mãos prá trás. É o cara gerente.

— Tá bom. E quando eu chegar lá com a casal, o que faço?

— Você olha prô homem bem olhado e quando ele olhar prá você é só você levantar o dedão da mão direi­ta e mostrar o casal. Quando o casal pegar o elevador para ir prô quarto, o gerente te dá os cinco mangos.

— ôba! Acho que vou ajuntar pra começar a ficar rico e ir para a alta sociedade.

— Olhe aqui, Zé. Esquece da alta sociedade. Você não tem jeito de gente rica. É preto e feio. Esquece vá Zé, esquece.

— Não Luiz. De qualquer jeito eu chegarei a mo­rar em uma linda casa, com móveis bem caros, cortinas e tudo. A minha casa vai até ter piscina. E terei uma mulher branca, linda e macia, coberta de sedas.

— Porra, cara! Largue de sonhar, e "trabalhe" se­não. . . Olhe lá está outro casal. Corra.

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III

Subterrâneo

Às duas horas da manhã os meninos se reuniram num subterrâneo do metrô em construção, e Zé vinha com trinta cruzeiros. Conseguira convencer seis casais.

— Quanto você ganhou Vitor?

— Vinte cruzeiros.

— E você, Luiz?

Luiz fechou a cara e jogou o dinheiro, que tinha ga­nho no chão, perto de Tião. Tião pegou o dinheiro e contou alto.

— Cinco, dez, quinze, vinte, cincoenta. oitenta, cem. Porra, hoie vocês levaram um monte de fregueses para o seu Pedro. Ele deve ter ficado muito contente, pois cobra cem cruzeiros para cada casal. Ganhou quase t rês milhões. Acho que vou cobrar mais caro. Ele vai ter que dar uns sete mangos, por casal. Amanhã, falarei com ele. Bem. aprova o negócio é repartir o dinheiro. Nós tam­bém levamos muitos casais para outros hotéis.

Repartindo o dinheiro os moleques, saíram e cada qual tomou um rumo.

Zé não queria ficar sozinho, por isso acompanhou Vitor.

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— Hei, Vitor aonde a gente dorme?

— Você escolhe. A cidade é grande.

— Mas eu queria dormir numa cama.

— Então dorme.

— Onde tem?

— Tem muitas pensões por aí. Cobram barato.

— Me mostra uma.

— Venha.

— A onde você vai?

— Vou na boca do lixo.

— Que é isso?

— É onde tem mulher que cobra prá foder.

— E você vai pagar?

— Não. Vou falar com minha irmã.

— Onde está sua irmã.

— Na "boca" do lixo".

— Ela cobra?

— Cobra mas não gosta de preto.

— Mas eu não quero ter relações sexuais, com sua irmã. Só quero conhecê-la. Por que ela cobra?

— Isso se chama vender o corpo.

— Vender o corpo. Que coisa complicada.

— Nada cara! — Ela é prostituta. Fica na esquina e os homens passam e pedem para foder. Aí ela faz o pre­ço.

— E ela está sempre com vontade.

— Não.

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— Então porque ela vai?

— Dinheiro.

Vitor estalou os dedinhos e repetiu — Dinheiro, di­nheiro.

As duas crianças chegaram a Av. São João, debaixo de uma garoa fina e fria.

Zé batia o queixo e se encolhia todo. Nem podia fa­lar.

— Fica muito longe a "boca do lixo"?

— Estamos nela.

— Não estou vendo nem uma prostituta.

— Antigamente tinha muitas mas agora elas são conhecidas por "gatas da noite", e se mandaram para os bairros. Aqui onde estamos é o centro da cidade, e bem longe daqui é bairro.

Vitor queria explicar a Zé porque a "Boca do Lixo", ou o "quadrilátero do pecado", estava calmo àquela ho­ra. Mas seus oito aninhos, não podiam saber tanto, já sabiam demais.

A explicação aos meus leitores será minha.

Antigamente existia uma espécie de zona do mere­trício na área localizada entre a Av. Duque de Caxias, São João, La rgo General Osório, Mercado e av. Ipiran­ga, a onde se descortinavam os quadros mais tristes de vidas infelizes e desgraçadas.

Espetáculos deprimentes, escândalos, atentórios à moral, eram presenciados por famílias residentes nestes locais.

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Crimes monstruosos, sádicos e perversos foram, re­gistrados nesta área. .

Nos prédios que ganharam o nome de "palácios dos prazeres", "edifícios da vergonha", "prédios do amor", onde era explorado o mais vergonhoso lenocínio, era dia­riamente vasculhado pela polícia.

A polícia se desdobrava, atuando dentro das limita­das condições que podia atuar, levando-se em conta que, realmente prostituição nunca foi, não é, jamais será, problema afeto diretamente ao órgão policial.

São Paulo, viveu como num braseiro neste tempo. A polícia agia com rigor, e às vezes em exagero pratican­do as mais violentas barbaridades, e com um difícil tra­balho, aos poucos foi limpando os prédios. Ainda existe antros onde continua o lenocínio em áreas centrais, mas longe de ser como a cinco anos passados.

Então as prostitutas, se espalharam pelos bairros. Mas vamos seguir e ouvir Zé e Vitor.

Vitor aponta com o dedo.

— Olhe Zé. Aquela de saia estampada é a minha irmã.

— Pôxa que saia curtinha. Está aparecendo toda a calça dela.

— É moda bobo. É a mini-sáia.

X X X

A irmã de Vitor tinha dezesseis anos. Era uma mo­cinha linda. Seu corpo apesar de bem desenvolvido, era o corpo de uma adolescente. Ela na realidade desconhe­cia totalmente tudo sobre o sexo. Para ela que se "per-

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deu" a apenas dois meses, prostituição é uma "profis­são" e nada mais. Os pais dela são pobres e analfabetos. Na casa dela, não existe diálogo. Ninguém se cumpri­menta nem para sair nem para entrar. Vivem como ani­mais. Uma irmã débil mental, morde todo mundo. Vitor era o preferido. Está cheio de marcas de mordidas. Já procuraram interná-la, mas não há vagas. O pai sofre de reumatismo e foi mandado embora da fábrica onde trabalhou dezesseis anos, e não era registrado. A mãe geme o dia todo, pois tem 4 coluna desviada, mas assim mesmo lava roupa para fora. Vera assim é o nome da menina que entrevistei, trabalhava como doméstica e antes de voltar para casa passava pela cidade para apa­nhar o dinheiro do irmãozinho Vitor, para ajudar nas despesas da casa. Vitor estava naquela vida desde os seis anos. Sem o dinheiro do pequenino, ninguém podia comer pois o dinheiro de Vera, era para o aluguel e o da mãe para pagar água, pois não existia luz na sua casinha lá em São Miguel Paulista. Uma noite Vera des­ceu do ônibus, não trazia nenhum dinheiro, pois Vitor não trabalhou devido a uma infecção no ouvido, que o fez rolar pela calçada e gritar de dor. O pus corria de seu ouvido espalhando-se pela nuca e entrando em seu corpinho encardido. Alguém lhe deu antibiótico, e sem receita médica o menino tomava dois a treis comprimi­dos de uma vez. Então não "trabalhou". Aí Vera chegou em casa, e o pai que bebia muito" para curar as dores dos músculos, gritou.

— Me dá uns trocados aí, que vou comprar pinga pois esse reumatismo está me matando.

— Não tenho dinheiro.

— Como não tem dinheiro?!

— 0 Vitor está com dor de ouvido. Não trabalhou.

— Como não trabalhou?

— Não trabalhando né pai.

— Quando dor de ouvido impediu de trabalhar?

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— É que sai muito pus. Um pus verde, bem fedido.

— E fedor impede alguém de trabalhar?

— É uma infecção. Ele se rola no chão.

— Caralho! Justo hoje, que estou com a garganta seca. Aliás, com essa dor horrível, picando as juntas. Pensa um pouco. — Cospe no chão e passa o pé por cima. E você porque não pediu prá sua patroa, já que o peste do Vitor, não deu?

— Mas pai como eu podia voltar da cidade, até Itaim. O dinheiro da condução só dava prá eu voltar para casa.

— Era melhor que não tivesse voltado. A puta da sua mãe não lavou roupa, porque finge que está com dor nas costas. A louca da sua irmã, está chorando de fome. Nesta casa ninguém comeu hoje.

— Que posso fazer. O Vitor não deu dinheiro.

— Olhe aqui sua descarada. Saia e traga dinheiro, senão o pau vai comer e comer feio. Desta vez a surra é pra valer. Traga pinga, pão e leite.

Vera saiu. Tudo escuro. O local que Vera morava, perto do cemitério, não tinha luz na rua e Vera foi até a padaria e falou para o dono.

— Seu Manoel, será que o sr. poderia me vender, fiado, leite, pão e uma garrafa de pinga?

Manoel, sacudiu a cabeça em sinal negativo e apres­sado continuou a servir os outros fregueses.

— Vera ficou vermelhinha de vergonha. Virou o belo rosto para os lados, e seus olhos encontraram os de Osmar,, o chofer de praça seu vizinho, casado e pai

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de três filhos. Osmar sorriu mostrando bons dentes e passou a mão pela quantidade enorme de pelos de seu largo tórax, que sobressaiam pela abertura da camisa azul, desabotoada até a cintura.

Vera foi até ele encorajada pelo sorriso.

— Osmar será que você podia me emprestar um di­nheiro?

— Emprestar não! Te dou.

— Dá?!

— Dou.

— Que bom. Meu pai vai ficar bem contente.

— Mas o dinheiro está na casa de meu amigo, Emí­

lio. Se você quiser ir c o m i g o . . .

— Claro. Eu só quero cinco cruzeiros.

— Claro. Eu te darei cinco cruzeiros. Entra aí no carro.

Osmar rodou e parou atrás do cemitério.

— Sabe Vera. A muito tempo que desejo você.

— Deseja?! Como?!

— Fazendo amor.

Vera entendeu. Começou a tremer e foi abrindo a porta do carro.

Osmar sorriu, quando olhou a corrente que tinha mandado colocar contra ladrão. A porta se abriria, só se ele desejasse.

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— Não adianta Vera. Daqui você não vai sair, se não me der essa coisa gostosa aqui sua mão se infiltrou no meio das pernas de Vera e procurava rasgar a sua calcinha. Vera começou a gritar, Osmar ria. — Lá fora o vento a escuridão e uma luzinha bem ao longe da pri­meira casa onde começava o bairro residencial.

— Se você gritar é pior.

Vera continuou, com gritos agudos. Osmar começou a lhe dar socos por todos os lados. Vera parou de gritar e começou a chorar de dor. Osmar sem se importar per­guntava.

— Você já fez com algum homem?

— N ã o . . . N ã o . . .

Nenhum deles botou o dedo?

— Não.

— Larga de ser mentirosa, sua safada. Vejo sempre você, com homens aqui atrás do cemitério.

— É mentira.

Vera não mentira. Apesar de seus dezesseis ano, nunca tivera um namorado. Pois só tinha um sonho. Es­tudar. Ela só tinha cursado o primeiro ano escolar e sa­bia escrever muito mal, algumas palavras. . . Por isso, ela chegava do serviço e ia estudar nos livros que a pa­troa lhe emprestara.

— Se é mentira ou não, o negócio é que eu vou lhe dar dinheiro. E o dinheiro não brota no meu quintal. Foi com o suor que cobre esta cara, que o consegui. . . Olhe já que você é virgem, gostaria então que você me punhetasse um pouco. Não vá dizer, que nunca bateu punheta para homem nenhum.

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— Não.

— Não, não. Será que você não sabe dizer outra coisa?

Olha aqui Vera, ou você topa bater punheta ou eu eu "como" a sua bunda ou a buceta. Nem estou aí, nesse negócio de virgindade.

— Então me ensina.

— Pegue aí o meu caralho (ela obedece). Sim, é is­so; um pouco mais depressa, minha vida, meu amor. Não, não cubra a cabeça, quanto mais você esticar a pele, mais depressa eu gozo; Não já lhe disse para deixar a cabeça descoberta. Agora. . . mais depressa. De uma chu­padinha. Ponha a boca nele, sua puta, senão a mato. Porra. Não adianta mais. — Osmar pegou um pedaço de jornal que estava no chão do carro e se limpou.

— Aí, que delícia. E você não gozou. Você quer que eu titile seu clitóris? Ah! é verdade. Você não entende nada de sexo. Bem vamos buscar o dinheiro. Está ven­do? vai ter dinheiro sem fazer nada.

Osmar rodou o carro até o centro de São Miguel.

Buzinou três vezes e apareceu um jovem alto e forte.

— Olá Osmar. Que prazer.

— Já sei, pilantra. — Piscou um olho. — É prá isso mesmo. Só quero cem cruzeiros.

Clóvis abriu o pequeno portão de ferro e se apro­ximou do carro. Já estava acostumado com aquelas si­tuações, ainda mais, quando viu os olhos da menina, in­chados de tanto chorar. Ela podia fugir.

— Claro que lhe empresto os cem cruzeiros. Mas antes entre para tomar um cafezinho. Coitadinha o que tem a menina.

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— Nada. Ela é minha vizinha. Moça direita. Não fi­que de olho.

Vera se acalmou um pouco. Achou que não haveria nada demais, tomar um cafezinho.

Tão logo entrou na casa, foi agarrada por Clóvis, arrastada para uma cama. Osmar correu e segurou os braços da menina, enquanto o amigo lhe tirava as rou­pas.

— Oh! céus, que seios enormes! Chupe um que eu chupo o outro.

— De que jeito. Essa gata se torce sem parar. Ê melhor você enfiar logo o negócio. Ainda tenho que fa­zer umas corridas, para completar a féria, que tenho de dar, lá na frota.

— Que féria que nada, homem. Eu completarei. Se­gure firme a bicha.

Vera gritava e se retorcia numa luta desigual para salvar sua virgindade. Mas sentiu que alguma coisa dura como aço lhe rasgava as entranhas.

— Pronto. Porra. Enfiei até os pentelhos. Agora, chorona, você está alçada à categoria de mulher. Tá vendo não precisava fazer tanto escarcéu prá uma enfia-dinha a tôa.

Vera se vestiu as pressa e ia saindo quando Osmar gritou.

— Tome um dinheiro. Cinco cruzeiros, como você pediu.

Vera nessa noite não voltou para casa. Tomou uma decisão, que estava tentando já algum tempo: fugir de casa.

Pensou que enfrentando a vida sozinha, seria bem melhor. Ia esquecer das surras de chicote que o pai lhe dava, quando voltava para casa sem dinheiro. Ia esque­cer as mordidas da irmã louca, e da mãe doente. Mas não ia esquecer de mandar dinheiro para a mãe.

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IV

Vera. Criança vagabunda

— Alô Vera.

— Oi, Vitor.

— Esse aqui é Zé.

— Zé de que?

Zé só.

— Você não tem sobrenome?

— Prá que. Ainda não fiquei rico.

Vera riu. Boca de criança com dentes branquinhos. — Sabe Vera, o Zé disse que tem pouca prostituta

por aqui.

— É. Elas estão espalhadas. Se ele quiser pode achar na porta do cemitério da rua da Consolação, na Av. Tiradentes, na Av. Brasil, Augusta, etc. Tem monte espalhadas pelos bairros.

— Ele não quer. Ele está com sono. Ele quer uma cama. Eu o mandei procurar a casa da Lola.

— Olhe Vitor. Agora eu aluguei um barraco lá na marginal da Casa Verde. — Olhou em redor. — Como a freguesia está fraca vou levá-los para dormir lá. Já são quatro horas. O melhor é tomar um táxi. Você tem di­nheiro Vitor?

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O táxi parou num amontoados de barracos feitos de tábuas cinzentas (O nome desses barracos é ( ' ) "mocó") com teto de zinco. Num canto do chão de terra um col­chão de molas bem novinho. Os três deitaram com rou­pas e tudo e logo pegaram no sono.

X X X

Zé acordou quando foi puxado violentamente do col­chão. Esfregando os olhos e aos tropeções foi seguindo para onde era empurrado. Aí se achou no meio de um monte de gente, rodeada de policiais. Olhou para o céu, quando o barulho de um helicóptero se fez ouvir bem em cima de sua cabeça. Logo mais Vera e Vitor vieram se juntar a eles.

— Que aconteceu, Vitor? — perguntou Zé com os olhos arregalados.

— É a "Operação Tira da Cama" — responde Vera.

— Mas pra que tiraram a gente da cama — retru­cou Zé. Ainda está escuro. Eu acabei de deitar. — Ainda não dormi nada. Estou morrendo de sono.

— Ê prá fazer limpeza, nos "mocós". Nas favelas dá muito marginal. Principalmente assaltantes perigosos. Você está vendo aquele carrão preto? Nós o chamamos de "ônibus tintureiro". Daqui a pouco ele está cheio de bandido. — Enquanto Vera explicava os olhos esbu­galhados de Zé, iam seguindo os policiais que entravam nos barracos e logo nos vão que devia estar uma porta assomavam homens segurando as calças ou esfregando os olhos vermelhos pela bebida, ou pelos entorpecentes. Homens sujos e mal trajados, com os cabelos em pé e barba por fazer. Zé não compreendia, como podia caber tanta gente naqueles poucos barracões.

— Quantos barracos tem a favela, sargento?

( ' ) Mocó — nome que os marginais dão aos barracos, onde se escondem da polícia.

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— Oitocentos.

— E quantos moradores?

— Seis mil e seiscentos.

— Quantos com documentos em ordem?

— Uns quinhentos. Cincoenta e seis foram encami­nhadas a D . A . R . C . (Divisão de Arquivos e Registros Criminais), para triagem.

Nisto um policial, vem arrastando um jovem.

— Este aqui dr. tem uma plantação de maconha dentro do barraco.

— É mentira. Excia. É fumo.

— Que fumo cara. Sou policia há vinte anos.

— Juro por Deus. Posso ver aqui na minha frente Jesus crucificado como é fumo.

— Bote ele no "tintureiro". 0 delegado pediu aos estudantes presentes para ba­

terem alguns "slides", da plantação.

— Os que não tem documento algum, encaminhe para o xadrez. Serão identificados.

— Quantos doentes?

— Uma porção Dr.. O delegado olhou em redor. Aonde estão as ambulâncias? Ótimo. Encaminhe-os para o Hospital das Clínicas.

— Tem mais de cincoenta mulheres, com gonorréia, dr. Acho que não devem seguir na mesma ambulância.

— Tem outras ambulâncias!? 0 delegado chega perto de uma menina que está

chorando.

— Que é? Porque está chorando?

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— Dói.

— O que dói?

A pequena que tem seis anos, levanta o vestido e mostra a vagina.

O delegado, chama o médico (na Operação Tira da Cama, sempre estão presente, quatro ou mais equipes médicas.)

— Está com gonorréia.

Os médicos encontraram dezenas de crianças, com o mucopurulento escorrendo pelas pernas. Todas foram encaminhadas para hospitais.

— Documentos.

Vera olha firmemente para o policial.

— Vamos menina documentos.

— Não tenho.

— Quantos anos você tem?

— Dezoito. — Mente.

— Com quem você mora?

— Com meu irmãozinho, Vitor e um coleguinha, esse aí

— Trabalha?

— Trabalho.

— No que?

— Na Clipper — Sou balconista.

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— Mentira, Excia. Ela é prostituta. Faz ponto lá na Av. São João.

— Então para o xadrês, não é delegado. Ela é do trofoir.

— Trotoir, não é crime.

0 policial se admira.

— Não é crime, Dr?

— Nem mesmo contravenção penal, pois aquelas que mercadejam o corpo só trazem prejuízo para si mesmo.

Enquanto o delegado falava, Vitor pega a mão de Zé, e o vai puxando pelo meio dos favelados, e quando se vê fora da favela corre e faz o Zé, correr como doido.

Quando param Zé nem consegue falar.

— O que foi Vitor?

— O que foi é? Ainda você pergunta. Quando che­gasse a nossa vez, sabe para onde nós iríamos?

— Não.

— pra o Juizado, lá da Celso Garcia. Lá é ruim prá burro. Os caras ínetem ripa na gente. Ainda mais, tem um monte de menino maior que quer foder o cú dos pequenos.

— E agora prâ onde vamos? Ainda está escuro.

— Conheço um lugar bom pra gente dormir. Venha é por aqui.

%.

Andaram pela madrugada, até chegarem na Av. Cruzeiro do Sul.

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Deitaram debaixo da ponto do elevado do Metrô, e encostaram o corpo numa pilastra para se resguar­darem do vento frio.

Acordaram com o sol, já bem quente. Estava um lindo dia. Desses com o céu bem azul e o sol bem amarelinho.

Vitor foi o primeiro a acordar.

— Olha Zé, nós viemos dormir bem perto da De­tenção. Se os guardas nos ver

Porra, justo agora estou com vontade de mijar e cagar.

— Credo, Vitor. Não é assim que se fala.

— E como é?

— Fazer xixi, e fazer cocô.

Vitor caiu na gargalhada.

— O que eu falei de engraçado?

— Nem sabia que mijar era xixi e cagar era cocô. Se você falar assim perto da turma, eles vão pensar que você é veado.

— Você conhece veado?

— Claro que conheço. Lá na Praça da República; aquela praça onde nós fomos m i . . . quero dizer fazer xi-xi-xixi tem de t monte.

— Eu não vi nem um. Estão no cercado de ferro?

— Que nada, estão soltos. Já um monte deles qui­seram me por na bunda. Mas eu não sou bobo. Dei uma mordida no saco de um, que saiu num pé só, ga­nindo de dor.

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— Poxa, por que você não deu um tiro nele?

— Porque o meu revólver, está emprestado pro Gaguinho.

— Quando ele lhe devolver, você me empresta?

— Prá que?

— Quero matar um veado e guardar os chifres.

Quando eu tiver a minha casa, vou pregá-los na parede.

Meu pai disse que na sala de seu Lucas, perto da la­reira, tem um chifre de veado, que ele caçou na África. Imagine você. Ele foi lá longe pra pegar o bicho, quan­do aqui em São Paulo, tem bem na cidade.

Vitor riu.

— Você é bem burro, heim. O veado que falo não é veado de bicho, é veado de gente. É aqueles homens que querem que a gente bote o caralho no cú deles.

E tem os que querem por no cú da gente. Você vai conhecer muitos — Mas agora Só quero mijar.

Olhe cara eu vou lá atrás daqueles carros, se vier alguém você me avisa.

Vitor voltou amarrando a calça.

— Ainda bem que eles, inventaram calças igual a pijamas, é só levantar e puxar o cordão.

— mas você não se limpou.

Vitor olhou Zé assustado.

— Limpou o que?

— Ora você sabe.

Quando a gente vai na privada e faz cocô, a

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gente limpa a-a-a

— Bunda?

È.

— Ora Zé, isso é lá na casa do seu Lucas. Vamos, vamos logo encontrar com a turma, já é tarde. O Tião vai dar a bronca. Você tem dinheiro?

Zé bateu no bolso da calça.

— Tenho.

— Você paga o taxi. O meu dinheiro deixei todo com a Vera. Ela vai levar pros meus pais, e prá minha irmã louca.

Entraram no carro e Vitor continuou.

— Coitada da Vera. Ela sempre se queixa de dor.

— Dor onde?

— Na buceta.

— Não fale assim, Vitor. O nome é vagina.

— Olhe aqui Zé, se eu quisesse ficar trancado, nu­ma sala de aula ouvindo alguém ensinar ler e escrever, não estaria aqui. Tem gente estudando aí que está na pior. Falar bem e ser culto é bobagem das grandes.

— Mas lá na ca

— Do seu Lucas, todos falam corretamente, e nin­guém fode. Ora Zé, eu tenho oito anos, mas já sei muita coisa. Os da alta sociedade são os piores.

— Não fale da alta sociedade, Vitor eu não gosto.

— Se você não gosta que se dane. É que nunca

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você conhecerá a alta, pois seu tipo não é que os da alta gostam. Os homens da alta que nós conhecemos só gostam de menino bem arrumadinho, branco e com o caralho grande.

O coração de Zé, começou a bater alto e gritou.

— É tudo mentira sua. Os da alta são gente direi­ta. Gente fina, educada e não vive bagunçando. Eles só têm relações sexuais quando casam.

— E as mulheres deles não fodem com outros ho­mens?

A mão de Zé estalou na cara de Vitor. Este avançou contra o pretinho de unhas e dentes. O chofer parou o taxi e fez os dois meninos saírem. E no asfalto quente no centro da grande São Paulo, rodeadas de gente os dois meninos lutavam. Uns davam uma espiadinha e seguiam indiferentes. Outros balançavam a cabeça e sorriam. Um mais humano falou.

— Pobres crianças abandonadas. Porque será que brigam? Talvez por um pedaço de pão.

Alguém gritou.

— Polícia!

Todos desapareceram por encanto. Os dois meninos pararam de lutar mas não saíram do lugar. Não era a polícia.

Vitor limpou o suor do rosto e disse.

— Vamos para o trampo.

Os dois seguiram como se nada tivesse acontecido.

Tião já os esperava na grama verde que ladeia a Av. Rubem Berta.

— Tarefa — Aliviar bolsas e sacolas das madames na feira do Jardim Europa. E à noite passar drogas.

(') Trampo — trabalho, na linguagem do submundo.

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Vitor e Zé trabalhariam novamente juntos.

X X X

Chegaram no bairro de gente rica e Zé perguntou.

Passamos por tantas feiras, porque viemos para esta?

Porque aqui as madames têm as bolsas recheadas de dinheiro. A turma estudou as feiras e Tião descobriu que nesta não tem muito tira. Vamos começar logo. Olhe ali. Aquela madame é fácil aliviar, pois ela fala muito.

— Eu não vou roubar Vitor. Você me desculpe. Roubar não dá pé.

— Mas então o que você vai fazer?

— Não sei. Faço outra coisa, menos roubar.

Vitor parou e ficou pensando.

— Tião não vai gostar.

— Então eu saio da gang.

—Vá isso não.

— Já tive uma idéia. Você procura trampo nas obras. Olhe vá naquela ali, fale com o pedreiro. Depois eu vou lá e encontro você. Agora deixe eu aliviar alguém, senão

Zé foi até a construção de um prédio.

— Oi moço!

— Sim.

— Queria trabalhar.

— Fale lá com o "chefe"

— O "chefe" com capacete amarelo perguntou —

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Tem documentos?

— Não.

— Então como quer trabalhar?

— Mas não é o documento que quer trabalhar, sou eu.

— Atrevido. Saia daqui.

— Desculpe-me sr. Não falei por mal. Ê que eu quero trabalhar. Cheguei a dias de Belo Horizonte. Rou­baram a minha mala com o meu registro de nascimento.

— Então trate de arranjar outro. Aqui em São Paulo ninguém trabalha sem documento.

— Mas onde a gente tira?

— De que bairro você é?

— De que bairro?!

— Sim. Que bairro você mora?

— Em nenhum.

— Como, em nenhum?

— Em nenhum.

— Sei, sei. Você já falou mas não enrola. Explica direito ou dê o fora. Não tenho tempo a perder.

— Eu não moro em nem um lugar. Durmo na rua.

— Desde que você chegou de Belo Horizonte, está na rua?!

— Sim sr.

— Barbaridade. A polícia não o prendeu, nem uma

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vez?

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— Não sr. Tem muito menino dormindo na rua.

— Mas, e o Juiz de Menores?

— Os meninos me disseram que sempre vão parar lá, mas fogem. Olha aquele que vem vindo aí é o Vitor. Ele também dorme na rua. Ele tem oito anos.

— E o menino que está junto com ele?

—Aquele eu não conheço.

— Olha Zé. Mário não tem casa. Vai ficar com a gente. Ele tem dez anos.

O chefe dos pedreiros, chega perto dos meninos e diz para Mário.

— Mário você tem mesmo dez anos?

— Nao acredita por que?

— Parece mais.

— Desliga cara, quer me pôr de maior. Vitor retruca.

— Ele também está na vida da gente. O homem pergunta.

— Quanto tempo você está nesta vida?

— O sr. sabe que vida?

— Sei sim. O Zé me contou.

— Um tempão.

— Por que?

— Começou numa noite que os homens do Juiz

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levou a gente pro juizado. Tinha moleque que não acabava mais. — Mário coçou a cabeça e ficou pensan­do. Depois estalou o dedo polegar no médio e disse rápido, devia de ser uns duzentos moleques.

— Por que você não ficou lá? Dizem que lá as crianças estudam e são bem tratadas.

Mário caiu na gargalhada.

— Que nada cara. Foi lá que aprendi malandragem.

Lá a gente aprende coisas diferentes. Vitor impaciente grita.

— Gente vamos "trabalhar" senão o Tião zanga — Vamos Mário.

— Vocês "trabalham" no que?

—O riso de Vitor é malicioso.

— Aliviar.

— Aliviar?!

— B o i . . . Não vou falar. Você é capaz de chamar o Juizado.

O homem fica curioso.

— O que eles vão fazer?

Zé fica sem graça. E começa arrastar o dedão do pé no chão formando rodinhas na areia da construção.

— Não sei.

— Você sabe sim. Se você falar, eu dou um jeitinho e lhe boto como ajudante de pedreiro.

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— Eu não posso falar porque o Vitor é meu ami­go. Me apresentou até a irmã dele que faz a vida lá na cidade.

0 homem ficou interessado.

— Ela é bonita?

— Ela é linda. É toda cor de louça. O sr. já viu uns pratos assim cor-de-rosa. É. . . Zé põe dois dedos na testa — Deixe pensar direito. É da cor-de-rosa clara, com um pouco de escuro.

— Vá menino. Que baita confusão. Você está que­rendo dizer que ela é tipo de porcelana, toda porcelana.

— Bem. . . Acho que é isso mesmo.

O homem lambe os lábios.

— E as coxas são grossas?

— São dessa grossura — Zé abre os dois braços e encosta os dedos.

O homem lambe os lábios.

— Legal, legalíssimo. E os peitos são durinhos?

Zé risca o chão com o dedão.

— Não sei.

— Você ainda não apertou?

Zé arregala os olhos.

— O que?!

— Os peitos dela?

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— Não. A cara de la . . .

— A cara não me interessa... Bem se você me ar­ranjar essa garota eu te dou dez cruzeiros.

Zé pensou um pouco e falou.

— É, dez cruzeiros já dá pro Tião pensar que eu, roubei as madames. Levantou os olhos para o pedreiro.

— Só o endereço vale?

— Não.

— O que vale?

— Eu trepar na menina.

— Mas eu não sei onde ela esta agora.

— Onde você a deixou?

.— Na favela lá da Casa Verde.

— Olhe eu pego o carro de meu patrão, e vamos até lá.

— Tá bom.

X X X

A favela estava horrível, assim, à luz do sol. Era uma ferida que se esvaiava em pus, um pus cheio de vermes, que enfeiava a grande, rica e próspera São Paulo.

Os dois andavam no caminho que separavam os barracos pisando nas fezes e molhando os pés na urina de gente e de cachorro.

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Enxotando os cães esqueléticos e alisando as cabe­ças das inúmeras crianças com as barrigas enormes de vermes, eles chegaram até o barraco de Vera.

Zé espiou.

— Ela está dormindo.

— Chame-a.

— V e r a . . . Vera. Ela não acorda.

— Deixe-me entrar.

Nada a cobrir a pela louçã da menina, que talvez, ainda devesse brincar com bonecas.

O pedreiro foi chegando e chamando.

— V e r a . . . V e r a . . . Oh, Vera.

Ela ressonou suavemente.

O homem chega perto e a sacode. Ela não acorda. O homem desabotoa a braguilha, e exitado cae em cima da menina, abrindo-lhe as pernas com brutalidade.

— Vou lhe por essa vara até o fim, e quero ver se você acorda ou. não, acorda.

O ranger dos dentes do homem, naquele entra e sai misturou a vós sufocada de Zé.

— Moço, moço. Não faz assim, a criançada esta to­da espiando.

O homem não ouvia, continuava a subir e descer e a cada estocada mordia o rosto, pescoço e ombro da menina deixando-a cheia de manchas roxas e gritava.

— Acorda sua puta, sua vagabunda. A cor-da-a-a-a. Caiu pesadamente sobre o corpo louçã da menina. De­pois tirou o penis limpou num pedaço de jornal que

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estava colocado na parede, atrás de uma porção de pa­nelas pinduradas, enfiou-o para dentro da calça, e pu­xando Zé pelo braço foram andando com a criançada atrás.

— A Vera acordou? Um jovem mal encarado com os olhos vermelhos,

como braza, perguntou, numa voz mole. Zé sacudiu a cabeça, em sinal negativo.

— Foi o Carlão que a deixou baratinada. Quiz fazer um teste de L . S . D . , com coca-cola. Ele vai ficar con­tente.

— L.S.D. com coca-cola. Esse homem deve estar lou­co. Vamos, vamos menino. O meu patrão já deve ter chegado. Ele chega sempre s às dez horas. Escute aqui Zé.

Porque você não trepou também.

— Porque ela não é da alta sociedade.

X X X

Quando chegaram, o pedreiro deu o dinheiro pro­metido a Zé, que correu em busca de Vitor e o achou em companhia de Mario, junto a uma barraca de frutas. Vitor lhe deu uma piscadinha e colocou o indicador nos lábios.

— Fique quieto ai Zé, pois estamos de olho naquela mulher. Ela está com a bolsa cheinha da grana alta.

Zé assiste as duas crianças maltrapilhas se aproxi­marem da moça, que discutia com o feirante. Mario fin­ge cair e se agarra fortemente na moça, que assustada segura-se na banca com duas mãos. Vitor dá um puxão na bolsa, e sai devagar por entre os curiosos que já co­meçam a se aglomerar. Mario também vai saindo de­vagar passando perto de Zé lhe diz.

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— Venha comigo. Vá andando como se nada tivesse acontecido. Nem olhe para trás.

Vitor logo é localizado, pelos dois meninos atrás de uns caminhões. Logo que se reúnem, Vitor abre a bolsa e os três gritam alegres, quando veem uma porção de dinheiro.

— Sabe Zé — diz Vitor. Você fica aí tomando conta da bolsa que eu e o Mario, vamos aliviar mais umas ma­dames, e depois vamos nos encontrar com Tião. Quero apresentar Mario a ele.

Zé pega a bolsa e a fica revirando na mão.

— Quero lhe falar uma coisa Vitor.

— O que é?

— É sobre a sua irmã.

— O que há com ela?

— Está dormindo.

— Sei lá, se ela está dormindo.

— Eu não estou perguntando. Eu estou falando. Ela esta dormindo.

— Como você sabe?

— Eu fui lá. Não me pergunte nada agora. Vamos Vitor. Ela precisa da gente.

— Mas o que foi, Zé?

— Não me pergunte já lhe disse. Olha aí vem um táxi. Vamos.

X X X

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A favela tinha mudado um pouco. Agora moscas e mais moscas, andavam por todos os lados. Zé dava um passo, pisava num monte de fezes e as moscas voavam feito loucas.

Vitor na frente, depois Mário e logo atrás de Zé, o bando de crianças misturadas aos cachorros esqueléti­cos chegaram ao barraco onde Vera continuava a dor­mir de boca aberta. Vitor olhou o corpo da irmã e arre­galou os olhos para as manchas pretas que cobriam om­bros, rosto e pescoço. Sem poder articular uma palavra ele ouvia uma menininha de seis anos.

— Sabe menino. O homem enfiou, um negócio no meio das pernas dela.

— Ele enfiou o pinto. Sua boba. A outra criança es­fregava as mãozinhas e continuou. — Esse aí — apontou Zé — também estava aqui. Ele ajudou o homem.

— É mentira, menina, o homem fez tudo sozinho. Ele fodeu na Vera e a Vera nem acordou — exclamou uma outra criança.

Vitor apertou o rosto nas pequeninas mãos.

Zé, se aproximou.

— Eu trouxe o homem, porque pensei que ele fos­se pagar muito. No final ele só me deu dez cruzeiros. E depois, nunca pensei que ele fosse agir assim.

— É Zé. Tudo isso é um barato.

— Porque você não conta pro seu pai, menino? Vitor virou-se para a menina que falava, e acendeu um sorriso quando viu que a garotinha envergonhada fazia beicinho com os olhos pregados no chão e por fim ar­riscando um olhar continuou. — O seu pai bate no ho­mem.

Nisto uma mulher encardida, sem dentes, com os cabelos desgrenhados, dentro de trapos imundos, en­tra e vai logo dizendo.

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— Olhe aqui fedelhos. Saiam e deixem a moça dor­mir. Logo ela acorda, bota água com sal, nestes roxos e vai continuar a andar por aí. Vamos, vamos.

Os três meninos saem e o bando, de crianças, vai atrás.

Zé, só levanta os olhos do chão, quando Vitor lhe bate a mão no ombro.

— Eu não estou de mal com você. Zé.

— Eu pensei que ele fosse dar muito dinheiro.

— Eu se i . . . Vitor pensou um pouco. — Juro que eu gostaria que Vera estivesse.. . Aliás, eu gostaria que Vera tivesse pai e mãe e casasse com um homem bem rico.

— Mas você disse que tem pai e mãe. Que tem fa­mília.

— Mãe com espinha fora do lugar, irmã louca e pai bêbedo, não é família Zé. Família é . . . Bem eu não sei o que é família. Só conheço desse jeito.

— Ah! eu conheço uma família. A do seu Lucas. Meu pai, sempre me contava, o seu Lucas é bonitão, al­to, encorpado e . . . bem só que não gosto muito é dele ser careca. Mas, assim mesmo é bem bonito. Ele é ca­sado com uma linda moça da alta sociedade. Tem três filhos. São todos bem tratados. O meu pai disse que o rosto deles é tão vermelho que parece maçã.

Eles não tem essa cor esverdeada como nós. Os cabelos deles tem brilho igual ao sol. As roupas deles são lindas e cheirosas. Ah! que delícia ter roupas cheirosas e sapato. Ter sapato, pôxa como é ruim andar descalço. Na casa do seu Lucas, todos comem na mesa com toalha bem limpinha. Sabe o que eles põem no meio da mesa?

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Flores, rosas, cravos, adálias. Não. Não. Adálias não. A mulher do seu Lucas não gosta. Você já pensou Vitor. Comer com flores na mesa? E meu pai me disse tam­bém, que na hora que o seu Lucas sai, para trabalhar beija os filhos e beija a mulher. Quando volta a noite, traz flores pra mulher e bombons, para os filhos. São felizes, Vitor. — Todos dizem bom dia, até logo, boa noite. Meu pai disse que quando eles estão sentados na sala de visitas ficam conversando mil coisas e o seu Lucas ri às gargalhadas das gracinhas das crianças. Quan­do vão dormir a mãe senta na cama bem macia e conta estórias. Meu pai disse que o colchão da cama das crian­ças, quando a gente deita até afunda. Faz puf.. . f . . . f . . . f.... — Você já pensou a gente dormir com a imagem da mãe e a cama bem quentinha. Zé permaneceu imó­vel como numa espécie de sono e sacudiu a cabeça quan­do sentiu as mãozinhas de Vitor apertando-lhe o braço e o vivo de seus olhinhos.

— Acorda Zé. Na nossa situação, pensar em família, caminha quentinha é um desperdício. O homem lá do juizado disse uma vez assim. Olha, disse, bem assim.

Vitor parou no meio da multidão em plena praça da República e ficando de frente para Zé, e Mario, le­vantou o indicador e exclamou.

— (Meninos, vocês não tem o direito de serem crian­ças igual as de família. Essa estória de Papae Noel e de outros bichos já era. Vocês tem que obedecer a lei, aqui no casarão ( ' ) . Aquele que ficar sonhando feito um pa­lerma vai para as grades, grades com g maiúsculo). Por isso temos que fazer o que aprendemos lá. Malan­dragem. Os três pequenos brasileiros rotos e descalços se infiltraram no meio da multidão, e reapareceram no encontro de todos os dias, na grama verdinha da Av. Rubem Berta.

Zé arregalou os olhos quando viu uma porção de meninos estranhos.

— Não se admire Zé. Temos mais amiguinhos. To­dos sem casa. Agora somos em vinte.

(') Recolhimento Provisório de Menores.

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— Vinte e um, Tião. Eu trouxe o Mario. Ele tem dez anos, mas sabe manejar muito bem um revólver.

Mario criança de sorriso tímido, feito precocemente marginal vai até o meio da turma e diz orgulhoso.

— A minha arma é só prá dá um gelo nos loques. . . Nunca atiro para ferir.

— Nem nós. Aqui dessa turma acho que não tem nem um assassino... Tem?

As crianças sacudiram a cabeça.

— Bem, bem. Agora o dinheiro do assalto às mada­mes das feiras, grita Tião.

Tião conta o dinheiro. Depois reparte. Um pouco para cada um. Os novos ganham menos.

— Agora vamos a tarefa da "tarde e noite". A tarde vender rosas e entregar maconha. A mulher das flores é lá na rua, na rua lá perto do Mercado, na porta prin­cipal. Amanhã as dez horas aqui. Tá?

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Zé, Vitor e Mario caminham juntos. Zé enfia a mão na calça esfarrapada tira algum dinheiro.

— Olha Vitor. Será que esse dinheiro, dá prá tirar os documentos?

— Acho que não. Deixe ver. Você tem vinte cruzei­ros. Gasta cinco de lanche. Cinco de rosas. Sessenta cen­tavos para o ônibus de ida e sessenta de volta. Um cru­zeiro e vinte centavos. Um lanche prá de manhã. É não dá não. É melhor você deixar para outro dia.

— Prá que você quer os documentos? Mario apro­ximou-se.

— Prá trabalhar.

— Xê cara. Eu acho que não vai dar não. Não é por causa do dinheiro. Você tem registro de nascimento?

— Tava na minha mala.

— Um cara roubou a mala dele, lá na Estação da Luz.

— Então nem adianta tentar. Sem registro de nas­cimento os caras lá do governo nem te olham.

— Mas você não tem registro, Mario? Zé espantou-se.

Mario riu. Um riso meio tímido.

— Nunca conheci meus pais. Também, prá que.

— Mas onde você viveu esses dez anos?

— Na casa. Aliás num hotel de "barra pesada". Eu era o "mascote" das meninas. Enquanto elas ficavam nos quartos com os homens eu e o dono do hotel, ficáva­mos falsificando uísque que era servido para os loques.

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Zé arregalou os olhos e depois riu.

— Ah! essa não. O uísque já vem lacrado. Qualquer bobo logo vê que a borrachinha foi tirada.

— Mas eu sei falsificar de um jeito que ninguém descobre. A gente comprava, um uísque estrangeiro. Pe­gava uma garrafa vazia, também de uísque estrangeiro. Aí fervia chá misturado com um corante da côr da be­bida tirávamos o uísque da garrafa com uma seringa, com agulha bem fina e púnhamos na garrafa vazia.

— Tirava e punha com a agulha?!

— Claro. Também o chá. Depois a gente experimen­tava. Se ficasse fraco, dava umas três seringadas de ál­cool. Ficava uma delícia. Lá era engraçado. A gente ficava acordado a noite inteira e dormia de dia. Era bom, por­que cada dia eu dormia com uma das mulheres. Elas me compravam roupas e doces.

Vitor olhou para Mario, com um olhar cheio de mistério e depois cochichou.

Zé riu.

— Pode falar alto, Vitor eu já ouvi mesmo. Risos.

— Ora Zé. Você não gosta que fale foder. Quer que a gente fale um negócio todo enrolado. R e . . . sex . . . Co­mo é mesmo?

— Relações Sexuais. Mas isso quem fala é só gente fina. Gente da alta sociedade.

— Deve ser — retrucou Mario. Porque lá no hotel se falava. Pistolada.

Os três caíram na gargalhada.

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Compraram as flores. Agora os três na frente do mercado, esperavam o ônibus.

— É melhor a gente ir a pé — disse Zé. No aperto do ônibus a gente perde todas as flores. Vai ser aquela esmagação.

Os dois concordaram.

— Eu quero vender num lugar que tem escada ro­lante, assim quando não há freguês a gente brinca, ex­clamou Mario.

— Você esquece que precisa passar tóxico?

— Ah! é. A gente não pode brincai.

O tom de voz saiu lastimoso dos lábios, arroxeados de frio, pois já começava a cair uma garoinha gelada.

Os três ramos de rosas dançavam, no alto para não esbarrarem nas pessoas, seguras fortementes pelas mão­zinhas gelada daqueles três meninos sem sonhos, sem passado, sem presente, sem futuro. Velhos meninos que iam em busca de tóxicos, cuidando com carinho para que as frágeis flores, não morressem esmagadas pelos sapatos coloridos das pessoas que iam em busca da me­lhor condução, para voltarem para seus lares.

De repente, um esbarrão. Vitor quis acudir, abra­çando o ramo de rosas. Mas suas mãos frias, não tiveram forças, e as rosas se espalharam no chão.

O menino ajoelhou-se rápido e com as duas mãos espalmadas cobria as flores tentando evitar que a apres­sada multidão as pisasse. Mas tudo foi inútil. Os sapa­tos coloridos iam e vinham esmagando, esmagando sem­pre. Zé e Mario se aproximaram, ficando um de cada la­do da criança, que continuava ajoelhada, muda e deso­lada com lágrimas caindo nas mãos postas nos joelhos.

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— Não chore Vitor. Eu reparto, as minhas com você.

— Eu também. Mas nem terminaram de falar, quando Zé sente que

o seu ramo lhe foi arrancado por um monte de gente que corria para pegar um táxi. Era só um táxi que foi seguro por muitas mãos. Todos queriam entrar. Foi uma disputa violenta, num chute de rosas e numa porção de gente caindo.

Zé e Vitor, procuram Mario e o viram enfiado num canto de uma vitrine de jóias, todo descabelado com a roupa em desordem. Os dois chegaram perto.

— Sofri, mas salvei as minhas rosas. Vitor tentou sorrir, limpando com as costas da mão

os olhos.

— É se o Tião souber? Ele quer que a gente preste as contas direitinho. Se a gente não vender as rosas, tem que levar prá ele, nem se for murcha.

— A gente pode vender as minhas mais caro. Em vez de dois cruzeiros cada a gente vende por seis. Mario sorriu ao falar. — Assim dá prá pagar o ramo do Zé também.

— Vai ser difícil. O melhor é a gente assaltar al­guém. Vitor falava com raiva.

— Nessa eu não entro retrucou Zé. Já disse a você que não roubo. Posso fazer tudo menos isso.

— Ah! já sei onde posso arranjar, dinheiro. Vocês conhecem o Jardim Trianão, lá na Avenida Paulista?

— Eu conheço, mas o Zé não. — Pois então Zé, você vai conhecer. E o negócio é

você que vai fazer.

— Que negócio?

— Ora vai pôr na bunda de uns caras.

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— Você está louco. Eu não sou veado. — Veado são eles, seu loque. — Olhe você tem o

pinto grande? Zé avermelhou. — Sei lá.

— Assim não dá. Você é maior do que a gente é quase homem. A gente tem o pinto pequeno, eles não gostam. Você quer ou não ajudar o Vitor.

— É sim Zé, Mario tem razão. O Tião pode até mandar matar a gente, só porque deixamos perder as rosas.

— Bem se fôr assim. Mas espere aí. Eu não viro veado.

— Que nada bobo. Homem é homem, seja em qual buraco enfiar.

— Olhe aqui só se não vender-mos as rosas. — Combinado. — Ok. Bem, agora o negócio é irmos buscar os pa-

caus da erva. — Onde estão? — Venham eu lhes mostrarei.

X X X

Os três continuaram a varar o povo. Mario no meio segurando o ramo, tendo de um lado Zé, e do outro Vi­tor que mesmo debaixo da garoa afogueava-se, com pres­sa de defender o ramo das rosas dos prováveis encon­trões, e assim chegaram ao Largo do Arouche.

— Olhe lá. O homem está lá. — Que homem? — Aquele que vai dar a maconha pra gente. Cada

pacau que a gente passar ganha cinco mangos. — Mas aquele lá, parece homem direito. — Direito, uma conversa fiada. Ele é traficante de

drogas. Mas é esperto, a polícia não pega ele nunca. — Porque não pega? — Você mesmo esta falando que ele parece um

homem direito. — A polícia também acha. — Qualquer um acha. O homem está levando com

todo o cuidado aquele carrinho com criança. — Olha

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como ele se abaixa e agrada o bebê. — É ele cuida bem, mas não é da criança, não.

Sabe o que tem lá, debaixo do b e b ê . . . Nem é bom falar. — Fala vá Vitor. — Maconha.

Os olhos de Zé se arregalam e o sorriso de Mario se estica.

— É, eu já imaginava. E não me admiro. Os meni­nos da outra gang. A outra onde eu "trabalhava", escon­dia os tóxicos no cú. Logo que a gente era preso, o sar­gento do Recolhimento de Menores gritava.

— Todo mundo para os pinicos. Aquele que não ca­gar a droga escondida, vai para o pau. Três dias sem, comer e beber.

— Era um Deus nos acuda de molecada sentado no pinico e ficando vermelho de tanta força que faziam. — Alguns precisavam passar, pela enfermaria, pois tinham ficado entupidos. Aí aprontavam uma lavagem nele e a droga saía junto com montes de merda.

Zé, arregalou os olhos. O homem avistou Vitor e veio empurrando o car­

rinho, passou pelos meninos e disse entre dentes. — Apartamento oitenta e seis. No prédio vinte e

oito. — Agora temos de dar um jeito no zelador. — Disse

Vitor. — Eu sei como fazer. Mario deu a idéia. — Eu vou lá e entretanto o zelador, lhe oferecen­

do rosas. Enquanto isso vocês entram no prédio e sobem as escadas. Vinte oito, é no segundo andar.

— E você?

— Ora. Vocês trazem os meus tóxicos. — É uma boa idéia. Vamos lá. Mario se adiantou e encontrou o zelador na porta. — Olá. Ele o encarou.

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— Deseja o que? — O sr. não quer comprar rosas, para a sua sra.? — Não sou casado. — Então para a sua mãe. — Não tenho mãe. Mario coçou a cabeça. — Então para o Santo de sua devoção. — Não sou católico. — Olhe lá zelador. Aquela moça está fazendo sinais

para o sr. O zelador virou-se rápido para o lado que o menino

apontava. — Não estou vendo moça nenhuma. Os amigos já haviam passado e subiam as escadas

correndo. Mario suspirou aliviado. — Ah! não é para o sr. desculpe me enganei. Então

o sr. não quer mesmo comprar nada? — Não, e vá andando. Vá andando. Mario anda e pára em uma esquina. Os meninos voltam. — Então? — Toma o teu. Temos que entregar para dezoito

pessoas lá na buate "Primavera". O dono da muamba, vai ficar sentado perto do pianista. Tem uma hora que uma moça começa a tirar a roupa na pista de dança, aí fica em volta tudo bem escuro. Então vamos até onde está o traficante e ele indica o viciado. A gente entrega e sai. Ele sai depois e nos dá o dinheiro. Enquanto um entrega os outros vendem as rosas.

X X X

O ambiente da buate é igual ao de todas as outras. Pouco iluminada, muita fumaça e gente dançando cola­da na pista, dialogando bem baixinho. O conjunto to­cando alto, músicas modernas. De mesa em mesa, iam os meninos oferecendo rosas. De repente as luzes fracas se apagaram de uma vez, tendo só na pista um foco que cobre a moça do "strip-tise". Vitor se aproxima de Zé e diz.

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— Vá até o homem que está com o isqueiro aceso. Zé, com o coração aos pulos chega até ao homem.

A voz grossa ordena. — Dos pacotinhos que você tem no bolso entregue

dois ao homem que está com um cravo vermelho enfia­do no nó da gravata, e dois para uma moça loira que vai lhe pedir uma rosa azul. Os outros dois são para um mu­lato que está vestindo um casaco de crochet amarelo. Está bem perto da porta.

Zé, anda aos tropeções no escuro, e tateando chega até ao homem da porta.

— Moço, um homem mandou entregar este paco­tinho para o senhor.

O mulato observa disfarçadamente os lados e diz. — Ponha o pacotinho junto com uma rosa e me dê

os dois.

O mulato pega a rosa e diz rindo. — Obrigado menino que lindo botão de rosa! Quan­

to é? O mulato enfia a mão no bolso. — Toma lá dez cruzeiros. Pode ficar com o troco. Zé agradece e aperta os olhos. — Onde diabo, vou ver um sujeito de cravo verme­

lho no nó da gravata. Vai passando por entre as mesas. — Menino. A loira segura-lhe firme o braço. Estava sentada em

uma mesa bem perto do bar. — Sim senhora. — Uma rosa azul por favor. Dê-me o pacotinho jun­

to com a flor.

Zé pega um botão de rosa com a haste bem com­prida e junto com a maconha coloca na mão que está bem perto de seu rosto e ouve a moça sussurrar.

— O homem de cravo vermelho, está na mesa ao lado— depois elevando a voz. — Quanto é a rosa?

— Seis cruzeiros. — To leva dez.

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Zé deu ao homem a rosa e o pacau. Depois ficou de mesa em mesa, vendendo as flores, enquanto Vitor e Mario, entregavam a mercadoria.

Terminadas as flores Zé, se encostou num cantinho e ficou vendo a moça se despir ao som da música bem escondidinho, de um provável comissário de menores. Alguém sussura aí perto e Zé, presta atenção.

— Você recebeu o pacotinho?

— Recebi. O pretinho me entregou. Poxa, eu fi­quei procurando cinco dias por todos os cantos da Gua­nabara.

— Lá estava perigoso. Aqui é fácil. Ninguém vai des­confiar de crianças com rosas.

— Não entendo como essas crianças, entram em boates para venderem flores.

— Arranjos. — Você é bem confiante. É, se os meninos fugirem

com as drogas. Você já pensou? — Não nasci ontem. Eles pensam que estão entre­

gando maconha. — Quantos micro-pontos de L . S . D . , os meninos

passaram. — Cada um passou quinhentos, num total de mil e

quinhentos pontos. — Quanto de lucro? — É tudo lucro. Paguei cada comprimido cinquen­

ta cruzeiros. — Deixe ver. Mil e quinhentas vezes cinqüenta. Cin­

co vezes nada, nada. Cinco vezes cinco, vinte e cinco, vão dar, cinco vezes um, cinco com dois que se foram sete.

— Não esquenta seu. — Dá setenta e cinco mil. — É. É uma boa "gaita". E quanto você deu aos

garotos?

— Para cada um cinco cruzeiros.

X X X

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— Hei Zé.

Zé fez um esforço para voltar a realidade.

— Que é, Vitor?

— Vamos embora. — Já acabou o nosso "trabalho".

Os três meninos, sairam da luxuosa casa noturna e na rua iluminada cheia de homens e de buzinas de carís­simos carros que iam bem devagarinho, com o dono, prestando atenção na buate, que entraria, para escolher a mulher que iria satisfazer nas breves convulsões dos espasmos

Para isso iria gastar muito dinheiro. Por isso tinha que escolher bem, muito bem.

— E os três meninos, um com oito anos, outro com dez, outro com treze estavam, às quatro horas da ma­nhã, tremendo de frio na rua Major Sertório, mistura­dos a homens da alta sociedade, a homens da escória, as prostitutas, às drogas, à traficantes, a caften, em fim, estavam se afogando no submundo das noites paulistas. Agora, sem rosas, sem mais nada estavam resolvendo, em que calçada, debaixo de ponte, patente de portas ou buracos, iriam dormir.

Mario esfregando as mãozinhas, foi o primeiro a falar.

— Olhe o melhor é a gente ir ali no pipoqueiro e tomar uma pinguinha.

— Pinguinha no pipoqueiro?! — Claro. Ele é meu amigo. Tem uma garrafa escon­

dida. Todas as vezes que eu passo por aqui, Compro um copo de pinga.

— Ah! eu não bebo. Vitor levantou os ombros todos contente. Quem bebe é o meu amigo Luiz. Ele, luta com faca para defender o uísque. De pinga ele não gos­ta muito.

— Eu também não bebo, disse Zé. Mas quando eu estiver na alta sociedade, vou beber. Mas, beber com classe. Vou pegar a taça assim. — Zé enfia o indicador

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da mão esquerda no meio do indicador e do médio da mão direita, virando para cima. Olhem bem, meu pai, disse que o seu Lucas e toda a gente fina que frequen­tava a casa dele, pegavam a taça assim e ai iam beben­do aos golinhos. Lá tem bebida que pega até fogo. Meu pai

— E, e, e, e, e Zé. Você é mais "loque" do que eu pensava. Isso aí é conhaque. Estou cansado de beber co­nhaque. Não é só gente rica que bebe conhaque não, co­nhaque é baratinho. Agora, só se for do estrangeiro. Do estrangeiro eu nunca bebi.

— Claro que deve ser estrangeiro, Mario, replicou Vitor com as duas mãozinhas nos bolsos da calça com os joelhos a mostra, foi explicando — O pai do Zé, en­tende de bebida. Ele disse ou não disse que era estran­geiro?

Zé pensou um pouquinho. — Bem isso eu não me lembro. Só sei que põem

fogo. Já estavam perto do pipoqueiro.

X X X

Na rua Major Sertório, esquina com a Bento Frei­tas, bem no coração da grande São Paulo, um mulato forte com cara de baiano; todas as noites improvisa, um fogão com duas pilhas de tijolos e uma grade de ferro por cima e uma bandeja também de ferro, onde põe carvão para fazer o fogo. Do lado tem sempre uma pra-teleirinha, cheia de "coisas", óleo, sal, saquinhos vazios, colheres, copos e garrafas. O homem estava pondo óleo na negra panela, quando, os meninos chegaram.

— Oi Pedro. Esses aqui são meus amigos, Vitor e Zé. Zé é de Belo Horizonte.

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Pedro joga milho no óleo quente Fecha a panela e a fica agitando de lá prá cá. Enquanto o milho estou­ra, ele olha para Zé e diz.

— Ah! Belo Horizonte — Gente boa. Eu morei lá uns dois anos, depois vim para São Paulo. Mas aqui, não tenho muita sorte. Vocês vêem no que trabalho? Sabem porque? Porque não tenho letras.

— Letras? Nunca vi ninguém ter letras.

— Não tenho estudo. Se eu fosse letrado, não esta­ria aqui vendendo, pipoca. Vocês reparem. O fogo es­quenta a gente. Aí eu dou uns passos, para pegar qual­quer coisa e recebo toda a friagem, da madrugada. Já estive entrevado duas vezes. Por isso sempre digo para o Mario estudar.

— Eu já pensei nisso Pedro. Mas estudar como? Pa­ra se matricular em qualquer escola, precisa ter regis­tro de nascimento. Vai dai, que eu arranjo registro. Onde vou morar, para poder ter cadernos, lápis, mala e tudo. E roupa? Ora Pedro, falar é fácil.

— Dá um jeito menino. Arranje uma família que o adote.

Mario e Vítor, caem na gargalhada. Pedro despeja o monte de pipocas na toalha encar­

dida. Vem um freguês. — Um saquinho de pipocas, faz favor? Pedro lança aos meninos um olhar de soslaio. Re­

luta um pouco e diz: — Com pouco ou muito sal. — Com muito sal. Pedro vira as costas aos meninos, e fica um tem­

pão mexendo nas "coisas" da prateleira. Ai vira-se e olhando firmemente para o freguês.

— Cinqüenta cruzeiros.

O freguês pisca o olho tira a carteira, conta cédula por cédula e dá uma de cinqüenta cruzeiros para Pedro, e pergunta:

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— Quantos? — Um. — Poxa. Está caro. — É subiu muito. — Amanhã têm? — Têm? — Quantos? — Um. — Você poderia me arranjar, uns quatro? — De jeito algum. — Dá um jeito vá. — É ordem de lá de cima, um para cada freguês. — Ok. Se por um caso, sair mais você me avisa —-

Tchau.

— Tchau. Pedro volta a lançar um olhar de soslaio, para os meninos.

Mario sorri.

— Escute aqui Pedro. A gente não vai te dedar, não. Eu sei que o saquinho de pipoca, tinha um pacau de maconha.

Pedro ouvia-o num misto de estupor e medo. Ai gaguejou:

— Você deve estar louco menino. — Aposto que era L.S.D., retrucou Zé. — L.S.D. — Pedro virou para todos os lados. Pegou

a panela e começou a agitar o milho, com as mãos tre­mulas. — Você está mais louco ainda. E depois falem baixo. Se alguém escutar vai pensar que é verdade.

— Não esquenta, cara. Nós não vamos contar na­da. Vitor pegava uma a uma as pipocas e ia mastigan­do rápido. Depois olhou Zé — Escute aqui Zé, como é que você sabe que era L.S.D.

— Pelo preço. — 0 Preço? — Cinqüenta cruzeiros. — E dai?

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— Posso falar perto de Pedro? — Pode vá. Ele também está passando tóxico. — Meninos eu — Deixe ele falar Pedro, senão a gente te deda.

Fala Zé.

— Escute, eu ouvi o homem da buate, aquele que nos deu os pacotinhos, falar pró outro que nos pacoti-nhos em vez de maconha tinha quinhentos micros-pon­tos de L.S.D., a cinqüenta' cruzeiros cada um.

— Ah! Deixe prá lá, tanto faz ser maconha ou L.S.D. O que importa e os cinco cruzeiros que ganhamos. Va­mos embora Mario. — Vamos. Já tô co saco cheio de ficar nessa rua. Vamos arranjar um lugar pra dormir.

— Deixe primeiro eu tomar uma pinguinha. Serve ai vá Pedro — Uma das grandes.

— Vou encher bem o copo Mario, mas com uma condição.

— Já sei, já sei. Prá gente não dar com a língua nos dentes. Nos não vamos dedar não. Se a gente for falar que você passa droga, tem que falar aonde a gen­te estava e como sabe que droga é droga — Nosso ne­gócio é outro Pedro. Não esquente a cuca, Mario vira o copo de uma vez. Tchau, Pedro. Nós não vamos falar, não. Você também está na pior como nós. Tchau.

Os três sobem a Av. Ipiranga, e Zé fica extasiado diante do Hilton Hotel.

— O que é aqui? — Hotel de rico. Dizem que só prá dormir é du­

zentos cruzeiros. Zé arregala os olhos. — Duzentos cruzeiros! Se dormir um mês dá. . . — Chi, cara não esquenta. Vamos pegar um carro

e dar-nos um pulinho lá no Jardim de Trianão. Tem veado pra dá com o pau.

Zé encarou Mario, fixamente, e sua voz saiu trê­mula.

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— Vendemos todas as rosas, não vendemos? — Vendemos Zé. Você não vai precisar enfiar na

bunda do veado. Vamos lá só prá curtir um barato. — Mas qual é o chofer que vai parar o táxi prá

gente. — Qualquer um bobo. Vocês já não pegaram táxi

tranquilamente todos esses dias. — E dinheiro? — A gente gasta as grojas. Você não ganhou dez

cruzeiros'5 Pois bem. Quatro de cada um forma doze. Ai dá direitinho pro táxi.

Desceram do táxi na Alameda Santos, bem debaixo da ponte do grande parque da Av. Paulista.

Mario mostrou ao Zé. — Tá vendo Zé. Esse é o parque do Trianão. Va­

mos subir por esse barraquinho, você vai ver como lá

dentro é bonito. Os três se enfiaram pelas árvores a dentro e para­

ram no largo iluminado, onde tem algumas balanças e gangorra para crianças.

— Oba! balança! — grita Vitor, correndo para o ba­lanço. Que delicia, vem Zé. Sinta que gostosura. Que ventinho gelado na cara da gente.

Vitor de pé no assento e com as duas mãos, segu­rando firme as correntes, ia e vinha num balanço alto e perigoso, rindo às gargalhadas.

— Hei, Vitor. Pára. Caiu o seu revólver. — O ba­lanço foi diminuindo, diminuindo até parar. Vitor sal­tou pegou o pequeno revolver e escondeu no cós da calça.

— Credo Vitor. Você quase chamou a atenção do guarda. Ele acabou de passar ali no meio daquelas ár­vores. Sabe de uma coisa. Você parece uma criança, nem pode ver brinquedo.

Um pesado silêncio caiu no imenso parque. Depois. A voz balbuciante de Vitor.

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— Desculpe gente. Sempre esqueço que tenho dez anos, não sou mais um bebê. Me de um cigarro Mario. Eu ia parar de fumar, mas estou vendo que não dá.

Caíram novamente em silêncio. Fumando, foram andando pelos caminhos estreitos que serpenteavam o grande parque enegrecido pela escuridão da noite que chegava numa neblina gelada que se via em volta das enormes luzes, que pouco podiam iluminar. Entraram por um atalho, um atrás do outro. Tudo imóvel, só se ouvindo o barulho dos pezinhos descalços amassando as folhas secas, acamadadas no chão úmido. Subitamen­te à direita surgiu um largo mas claro onde um amon­toado de moças, riam, falavam, jogando as mãos e o corpo para todos os lados. Os meninos pararam. Zé cauteloso e rápido deu um pulo para o lado e se escon­deu atrás de uma árvore.

— Zé, que é isso. Está com medo das mulheres, disse Mario.

— Eu não, mas estou com sono. — Que sono que nada. Vamos arranjar uma dessas

moças, e dar umas pistoladas. — Elas já nos viram. Vem Zé. Não vai ficar nada

bonito, uma ir te buscar aí. — Está bem.

Zé foi puxado do mato, por uma das mulheres que calada pousou a mão no seu ombro. Ele seguiu em si­lêncio, Vitor e Mario, que já estavam no meio da mu­lherada. A moça não largava o ombro de Zé. Depois a mão dela foi deslizando pelas costas do menino até a citura.

Zé mexia-se nervosamente, fazendo tudo para se li­vrar daquelas mãos debaixo do riso dos dois pequenos.

— Chi Zé tá com medo. Bate uma punheta pra ele minha lindoca, bate.

Zé empurrou a mão que lhe abria a braguilha. — Pare. Eu não quero. O rosto de Zé estava esqui­

sito e sem expressão. — Vamos Zé, coragem. Mostre que é homem. Ma-

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rio caçoava rindo sem parar. A moça virou-se e ralhou com os meninos numa voz

estranha. — Por favor, precisamos por um pouco de ordem

neste parque. Senão ninguém se entende. Eu escolhi es­te mancebo. Deixe que eu me entendo com ele.

Mario botou as mãos na cintura e saiu rebolando, imitando a voz da moça.

— Ai esse mancebo. Será que ele tem um caralho, bem grande? — revirou os olhos — Ai meu Deus do céu. Eu morro se assim não for.

— Cale a boca menino. Você é um fedelho. Não serve para nada. Então não estrague. Voltou-se para Zé e disse-lhe com voz meiga — Venha comigo, debaixo daquela árvore meu bem. Vou lhe fazer muitos carinhos. Você vai gozar como nunca.

Zé virou o rosto. — Desculpe moça, mais eu não estou com vontade. — Você quer gozar, por bem ou por mal? Os olhos de Zé, se voltaram para os amiguinhos e

Mario gritou. — O único jeito é dar no pé. inda mais que elas

são homens. Mas já, mais duas moças, ou melhor dois homens

se aproximaram e seguraram o menino pelos braços en­quanto a outra lhe abria a braguilha e pegando-lhe o pe-nis, colocou-o interinho na boca e o foi sugando devaga­rinho.

Zé ficou completamente imóvel e quando o homem tirou por um momento o penis da boca, lhe deu um pon-ta-pé que o fez cair por terra. Zé num esforço enorme se desprendeu das mãos dos outros dois e como bólide varou o bosque com Mario e Vitor em seu encalço.

Um guarda-parque encapotado, com um chapéu pre­to enterrado na cabeça, passou por eles.

— Vão pra casa moleques. Não são horas de crian­ças, estarem na rua, ainda mais neste parque.

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— Tá bem. Nós já vamos. Ou melhor. Estamos indo.

O guarda desapareceu nas sombras, debaixo da ga­roa fria que velava as grandes luzes salpicadas do par­que.

Os meninos sentaram, num dos muitos bancos de pedra, que existem espalhados pelo bosque.

Zé esfregou as mãos.

— Poxa, do que me livrei. O que é que aqueles ca­ras iam fazer comigo.

Mario riu, naquele riso inocente de dentes branqui­nhos. Alguns ainda de leite.

— Ora o que eles iam fazer. Venha. Eu vou lhe mos­trar. Venha também Vitor.

— Não vou não, Mario. Já estou cansado de ver. To­das as noites é a mesma coisa. Vou me enfiar ai no mato e dormir. Não, vão me deixar aqui. Quando vocês voltarem me acordem. Olhem bem. Estou nessa direção. Mostrou com o dedinho em riste o poste preto que sus­tinha a lâmpada.

Mario atravessava as áryores puxando, Zé pela mão Evitava os caminhos calçados onde poderia encontrar outro guarda. Chegaram perto de uma clareira onde um amontoado de "travestis", conversavam animados.

— Se esconda ai Zé.

— Onde.

— Ai atrás dessa árvore. Venha nesta aqui. Dá pra dois.

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— Tá, vendo essas moças? São todos veados. Da­qui a pouco vai aparecer um entendido.

Zé arregalou os olhos. — Que é isso?! — Entendidos são meninos de quartoze ou quinze

anos que põe o caralho no cu dos homens e ganham di­nheiro.

Zé ia falar que não era assim que se expressava. Mais engasgou, pois também, ficou sem saber se o ato sexual entre dois homens seria relações sexuais.

— Olha Zé, lá vem vindo um menino. Vamos ver se ele é entendido.

Um jovem magro e alto de uns quinze anos foi se aproximando do grupinho.

Um dos travestis se adiantou. — Aló, benzinho. Qual é o galho? O menino o olhou cinicamente. Tirou o cigarro, do

bolso, acendeu-o e sempre fixando o "travesti", soltou-lhe uma baforada no rosto.

— Você sabe bem o que desejo. Isto — Esfregou o incador dobrado no polegar.

— Quanto você quer? — Cem paus. — O "travesti", cruzou as mãos deu uma gingada

para trás e articulou em gritinhos. — Ai, que caro! Só se você fizer, em dois. Assim

cada um lhe dá cincoenta. — Tá certo. Até em três. — Acho que você vai ganhar mais que isso. A ga­

roa estragou a noite. Quase não aparece entendidos ho­je. Alias meninos. Amores de meninos.

O entendido jogou o cigarro e o amassou com a ponta do pé, enquanto tirava o palito e ia falando.

— Chega de conversa fiada. Descubra essa bunda logo. — E passa a "grana".

O "travesti", dando pulinhos de alegria, disse rin­do enquanto arrumava a longa pinica.

— Não preciso me despir, meu boneco. Fiz um furo na saia ai atrás. Não haverá problemas. Chamou os amigos. Venham cá. — Revirou os olhos. — Meu bo­neco, faz em mais dois.

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Todos gritaram ao mesmo tempo. — E u . . . e u . . . eu. — Cinqüenta mangos. — É caro. — Ora depende do tamanho do penis. — Mostra menino. — Chii gente. Estou com o traseiro em brasa e

vem vocês com conversa fiada.

— Curve logo vá. Já estou com o caralho duro. — Ah! benzinho que espressão. Diga penis. — Olha vou desistir. — Espere, espere já lhe dou o dinheiro. Abriu a

bolsa e lhe estendeu uma nota de cinqüenta cruzeiros sem soltar. O menino segurava de uma ponta e o "tra­vesti" de outra.

— Jura que não foge, quando estiver com o di­nheiro na mão.

— Pode ficar alguém atrás de mim já que você está desconfiado.

— Fica você Rose.

Um dos homens vestido de mulher, ficou atrás do menino, enquanto este colocava o dinheiro no bolso da calça, desabotoava a braguilha e tirava um penis enorme. Os homens cruzam as mãos e exclamam.

— Oh! O "travesti" todo risos.

— Admirem mas e meu é meu. Volta o traseiro pa­ra o menino e dobra o corpo para frente enquanto com as mãos, estica o buraco de trás da saia.

— Toma minha bunda boneco e enfie tudo. Mete logo.

O menino põe devagar. — Não quer entrar. — Ponha cuspe nele, benzinho. Ponha que não

aguento mais.

O menino obedece. Segura o homem pelos quadris e com incrível prática, foi penetrando.

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O "travesti", remexia o corpo num rebolado ele-trizante enquanto gritava.

— Mete até o fundo das estranhas. Não quero só a cabeça. Mete tudo, meu puto. Empurra, empurra.

— Gente o guarda vem aí. O "travesti, gritou logo para o menino.

— Não tire. Não tenha medo. É por isso que fiz o buraco na saia. Eu encosto em você assim. Estamos como dois namorados. Mas não tire. Estava quasi go­zando e o bastardo do guarda tinha que aparecer agora.

0 menino abraça suavemente o homem. Os outros "travestis" os rodeiam. O guarda passa e vê aquele gru­pinho rindo e conversando. Sorri e se afunda no enor­me e sombrio parque.

Nem bem o guarda havia desaparecido e tudo con-tinua. 0 menino empurrando e o homem se remexendo, cai nos estertores do prazer.

Depois o menino sai do homem. — Poxa nunca fui fodido assim na minha vida. A

onde você aprendeu boneco? — No "casarão". — casarão?!

0 menino ia se limpando num lenço imundo que tirou do bolso.

— "Casarão" é o nome que damos ao "Recolhimen­to Provisório de Menores".

— Que delícia. Então vocês. — Revirou os olhos para os outros travestis. — Vocês já pensaram. A gen­te lá no casarão.

O parque se encheu de risos. — E o que mais você aprendeu lá? — Assaltar, roubar residências, aliviar bolsas de

madames, roubar cegos, passar tóxicos e

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Zé cutucou com o cotovelo as costas de Mario e arre­galou os olhos.

— Que coisa horrível é esse casarão. Nem quero pensar se a gente for parar lá.

— Eu já estive lá muitas vezes. Aquele "entendido" ali e um Cos` nossos.

— Já esteve lá?!

— É. Mas não vou falar sobre isso. É muito nojento.

— Escute Mario, o melhor é a gente ir dormir.

— Vamos ver mais um só.

— Oh! Já enjoei.

— Olha já está mais um dando o cú.

— Não, não. Vamos dormir

Os dois voltaram para onde estava Vitor. Deita­ram-se nas camadas de folhas úmidas e adormeceram.

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V

Assaltante mirim

É assim vive o menino de Belo Horizonte, na cida­de que mais cresce no mundo. Faz um ano que ele está entre nós e só conheceu a sarjeta. Já fez de tudo, que o submundo ordena. Menos roubar. Agora mesmo va­mos encontrá-lo. Está na mesma gang. Só que agora o chefe é Mario, pois Tião, foi morto num entrevero com a polícia, quando com mais alguns meninos assaltava um supermercado.

— Bem Zé, já que você não quer assaltar as resi­dências do Jardim Paulista, então o negócio é você assaltar chofer de praça.

— Já disse que não entro em roubos. E depois acho que vou trabalhar.

— E o documento? — Já escrevi uma carta para o jornal de Belo Ho-

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rizonte. Penso que algum jornalista vai dar um jeito. — Que jeito? — Ora vai procurar em algum cartório onde es­

tou registrado e me manda a segunda via. — Então porque você não vai até lá. — É. É uma idéia.

— Escuta Zé. Porque você não acompanha, Vitor o Gaguinho, e o Careca. Eles vão assaltar casas no Itaim Paulista Brooklin e Jardim Paulista. Você ganha uma nota. Da prá você ir buscar o registro. Aí você tira os documento e vai trabalhar sério. Se eu tivesse os meus documentos não tava nesta vida.

— Não, roubar não. Já disse. — Mas é só uma vez. — Não, não. Não insista, Mario. — Então você os acompanha e guarda as coisas que

eles roubam. — Ah isso eu faço.

Careca, Gaguinho, Vitor e Zé, conseguiram mais de oitenta mil cruzeiros, em jóias, objetos de valor e dinheiro em uma noite de assaltos nos três bairros ricos.

Esconderam tudo em uma casa abandonada, perto do Ibirapuera, e foram dar uma volta.

— Olha lá Zé. — Gritou Vitor. Hoje tem o show Carnaval no Gelo. Ali seu loque. Ali no Ginásio do Ibi­rapuera.

Os quatro parados de mãozinhas para trás admira­vam as filas enormes que se formavam para assistirem o show.

— Eu conheço o guarda daqui. Quando acabar o espetáculo, a gente pede prá ele e vai deslizar na pista de gelo. É um barato. Esperaram terminar o show. O guarda penalizado com a aparência das crianças os deixou entrar.

Os quatro, deslizavam, caíam, riam, levantavam e começavam tudo de novo.

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Já cansados, resolveram ir avisar Mario sobre o produto do roubo. Iam encontrar uma outra turma rou­bando carteiros no centro da cidade, Ponto Praça da República. Mario conhecia um homem que comprava todo o roubo. Era só dar um telefonema.

Os quatros molhados e tremendo de frio, surgiram ao enorme portão do ginásio do Ibirapuera. Nem bem deram uns passos e foram agarrados pelos comissários de menores que faziam a ronda no bairro.

— Todos para o Casarão. Zé espremido entre uma dezena de meninos, dentro

do carro preto com grade furadinha, ia triste e cabis­baixo.

Entraram no Casarão. Zé arregalou os olhos.

Era horrendo. O cheiro de carniça vindo dos me­ninos marginalizados, das privadas, e de todos os can­tos entraram pelas suas narinas e fez saltarem lágri­mas de seus olhos. Por todos os lados que seus olhos virassem ele encontrava imundice.

Foram levados para as celas escuras. Zé fez um esforço para ver no que tinha pisado. E

quando viu que era um menino franzino que gemia sem parar falou baixinho.

— Desculpe-me, foi sem querer . . . Mas o que você tem?

— Estou doente. — A criança nem podia falar. — Mas porque você está deitado ai no cimento. — Aqui não tem cama nem colchão. Não tem nada. — Mas não tem médico?! — Não. Aí que dor! Aí que dor! — 0 que eu posso fazer? — Nada. — Posso chamar o responsável? — Não tem responsável.

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O menino gemia e se retorcia, segurando com as duas mãozinhas a barriga inchada.

Zé sentou e se encostou na parede fria, da cela imun­da. Aí permaneceu imóvel, ouvindo o pobre menino a choramingar.

. . . . Percebeu que havia mais gente perto dele, mas não conseguia distinguir nada. E lá ficou ele à espera que acontecesse alguma coisa. Tonto de sono, sobressaltava-se a cada ruído. Não queria dormir, pois sentia "coisas" passarem pelas suas pernas.

À luz do dia, começou a espalhar-se pelo casarão, e dentro da cela as coisas foram se definindo. Zé reteve um grito de horror.

A cela um pequeno cubículo estava com o chão to­do tomado por montes de trapos sujos, exalando um cheiro medonho. A luz clareou mais. O monte de trapo tinha diversas cabeças, com os cabelos desgrenhados onde mãozinhas com unhas compridas e pretas coçavam sem parar. Pernas, com pés cascorudos se agitavam afas­tando os ratos e baratas que pásseavam aos montes.

Zé, arregalou os olhos. Seria um monstro nojento de mil cabeças, pernas e braços? O sol foi se levantando e seus raios fracos iluminaram mais e mais o cubículo. Agora Zé via direitinho. O monte de trapo se moveu e foi se repartindo. Zé riu. Eram crianças. Riu mais, como um bobo. Eram seres humanos como ele. Mas eram tão pequenos. Poxa, Zé pensou até que fossem bichos. Os

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meninos bocejam e se espreguíssavam. Rostos amare­los, com clhos bem fundos. Zé ficou como uma estátua, em contemplação aos que iam devagarinho para um canto da cela, ai abaixavam as calças rotas, sujavam e urinavam no chão de cimento. Depois levantavam a cal­ça, iam segurar a grade de ferro, e ficavam esperando calados.

0 barulho de alguma coisa rodando e um carrinho apareceu, empurrado por um jovem. Cada um recebe uma caneca com café preto e um pãozinho.

0 jovem gritou para Zé. — Ei, negrinho! Sacuda esse dorminhoco. Zé, olhou para o menininho esticado no chão, com as

duas mãozinhas na barriga. Esticou a mão e a colocou no ombro da criança. Aí

chamou baixinho. — Menino, menino acorde. 0 menino estava duro e frio. Zé soltou um grito. — Ele está morto moço. — Tam bem. Cubra ele com esse jornal. Volto já.

Zé cobriu o pequeno corpo e relanceou os olhos pe­los pequenos, que mudos pararam de tomar o café e co­locaram devagarinho a caneca de alumínio em cima do jornal, que tinha sobrado do morto, e sentaram no chão, onde tinham dormido. Zé também pegou sua caneca e a colocou no jornal. Apertou os olhos. Abriu-os novamen­te. Sim era verdade. Tirou a caneca. Sim, ali estava.

Zé rasgou o canto do jornal e leu rápido.

Recolhimento Provisório de Menores, é uma vergo­nha para a cidade de São Paulo. Quem visitar essa orga­nização e que aliás é uma desorganização ficará horrori­zados, pois é um depósito fétido de jovens marginaliza­dos, dotados de todas as características, que fariam in­veja às subterrâneas prisões medievais. E o que pode­ríamos dizer de suas incríveis instalações? Ali há imun­dice pontificando por toda a parte. Meninos enfermos, mofando em infectas celas, sem colchões ou camas. Ali

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as crianças, tem inumanas condições de tratamento e o contato direto com milicianos, numa completa contradi­ção com os modernos ensinamentos, de sociólogos, pe­dagogos, psicólogos e criminólogos.

Zé parou de ler, quando dois soldados levaram o pe-pequeno corpo. Depois dobrou o pedaço de jornal e o en­fiou no bolso da calça.

Deus do céu! Como sair de tudo aquilo. — Zé, oh Zé. — Vitor! — Venha. Vamos fugir. — Como?

— A cela não está trancada.

FUGIRAM. ( I )

Agora estavam novamente na rua. A primeira coisa a fazer. Ir correndo para casa abandonada onde tinham guardado o roubo.

Tudo tinha sumido.

( 1 ) Não conto como fugiram. Prometi ao menino que me contou tudo o que aqui está escrito.

X X X

Zé vendeu flores e arranjou algum dinheiro. Foi até a Rodoviária para comprar passagem para sua terra, pois pretendia trazer o registro.

— Por favor uma passagem para Belo Horizonte. — Quem está com você? — Estou só. — Quantos anos você têm?

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— Quatorze. — Não vendemos passagem para menores. Zé sentiu um frio na boca do estômago. Voltou para

a gang. — 0 negócio é você esperar ficar grande. Espera né

Zé. Falta só quatro anos. Se você não quer roubar. Fica chefe dos vendedores de flores.

— Acho que vou limpar os para-brisas dos carros. — Mas isso não dá dinheiro. — Que importa, Vitor. Já desisti de ficar rico. Seu

Lucas teve muita sorte. — Ninguém fica rico de um dia para outro, Zé.

Calma talvez.. . — Não fale, nada Vitor. Vou esperar ficar grande.

Zé cossou a cabeça. — Sabe de uma coisa, Vitor? — Não. — Vou deixar a gang. — Porque? Vitor gaguejava. — O que eu vi esta noite, lá no casarão. — Isso passa. — Pode ser para você que tem nove anos. Mas para

mim.. . Eu já sou um homem lá por dentro Vitor, ape­sar de meus quatorze anos . . . B e m . . . Vitor tchau.

Vitor desviou o rosto para o lado e começou a cho­rar.

Zé, pousou-lhe a mão no ombro e disse-lhe doce­mente.

— Se eu arranjar um bom emprego venho buscá-lo. Você vai morar comigo.

Vitor esfregou o nariz, com as costas da mão. — Quando? — Quando eu for grande.

Zé lavava os para-brisas dos carros nos grandes cru­zamentos. Quando passava para o farol verde, ele se encostava na banca de jornais e ficava lendo as manche­tes.

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"Gang", Mirim Assalta, "Gang" Mirim Assassina" "Gang" Mirim Fura Chofer Na Ponta da Faca".

E os dias foram se amontoando formando meses e anos.

Zé, está com dezessete anos, e como os meninos paulistas, cresceu sem sonhos, sem passado, sem presen­te e talvez sem futuro. Com as mesmas roupas velhas e rasgadas, andou esses quatro anos, na lei do submundo. Conheceu traficantes, pederastas, prostitutas, esteliona-tários, caftens, ladrões, assassinos.

Esgueirou-se como um fantasma entre buates, infer­ninhos e lupamares. Dormiu em buracos como um ani­mal mas jurou que nunca roubaria e não roubou. Vamos encontrá-lo vendendo dúzias de rosas, na Alameda San­tos. Vamos continuar a seguí-lo. Já vendeu todas as flo­res e vai se dirigindo para uma banca de jornais. O jor­naleiro sorri.

— Então Zé. Vendeu tudo? — Graças a Deus. — Você viu que coisa horrível? — Não. — Leia aqui. Zé leu. A "gang" formada de menores, que tem ocupado

diariamente as manchetes dos jornais, com crimes mons­truosos, foi desfeita hoje com a morte de seu chefe, um garotinho, que apesar de ser franzino não temia nada. Nem a polícia e nem, os "protetores" do submundo. Seu nome Vitor.

Zé ficou olhando muito tempo para o jornal, com o coração aos pulos. Seu único amigo estava morto. Vitor morreu com doze anos. Zé ficou pensando na vida do amiguinho e parecia ouvir sua vozinha.

— Sabe Zé, hoje fui levar dinheiro, para a minha mãe. A espinha dela está cada vez mais torta. Agora já não pode nem lavar roupa.

Um dia veio chorando.

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— Sabe Zé. A Vera foi assassinada. O cara amarrou o fio da enceradeira no pescoço dela e apertou, apertou até o fio entrar nas carnes. Coitada da V e r a . . .

Vitor a criança toda mordida pela irmã louca, que não podia ser internada, porque não existia vaga, estava agora morta. Morta com seis tiros pela polícia.

Zé foi andando. Andando. . . Andando. Andando sem­pre. Passou, pelos altos e luxuosos prédios. Respirou a fumaça cinzenta dos escapamentos dos coloridos carros, ouviu as buzinas estridentes. Tudo o que Vitor gostava. Vitor o pequeno amiguinho já não existia. Andou mais e mais. Parou e se encostou na parede de uma grande loja.

Arregalou os olhos, quando viu, um carro estacio­nado bem na sua frente, com a chapa amarelinha, bri­lhando nas luzes, que começavam a se acender e enfeitar á grande e Majestosa Cidade. E leu Belo Horizonte. Com o sangue gelado nas veias ficou esperando o dono do carro. Esperou muitas horas. Não sabe quantas. Só sabe que as pernas não aguentavam mais. Aí o homem che­gou. Zé correu para ele.

— Espere moço o senhor é de Belo Horizonte?

— Sou. Porque?

Zé gaguejou. — Bem é que eu queria ir para lá. — E porque não v a i . . . ?

— B e m . . . estacou. Não queria falar que não pos­suía documentos para viajar. Ficou vermelho quando sentiu que o homem olhava com desconfiança. Maldisse as roupas velhas, e os sapatos rotos. Tinha que inven­tar uma desculpa para tudo aquilo.

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— Bem é que perdi a mala com tudo. Roupas, do­cumentos e dinheiro. Um amigo me emprestou estas. Sei que não são apresentáveis m a s . . . O sr. sabe, São Paulo, é uma cidade bem difícil. Não consegui tirar novos do­cumentos. Zé sem querer contou a verdade. — E a estó­ria é essa. Ia inventar coisas para o sr. mas estou dizen­do a verdade. Quero voltar para Belo Horizonte, e tirar novos documentos. Tirou o monte de cédulas do bolso. Veja, eu tenho dinheiro. Posso lhe pagar se o sr. me le­var.

— Está bem garoto suba.

Zé, respirou feliz quando o carro entrou na esbura­cada Av. Amazonas. A cidade lhe pareceu pequena e in­significante. Mas jurava que não a trocaria nem por uma dúzia de São Paulos.

O dono do carro parou em uma luxuosa residência.

— Espere aí meu jovem, vou lhe arranjar algumas roupas, de meu filho. Ou melhor, entre. Olhe ali, na ala dos empregados.

Zé saiu do rico palacete com uma mala novinha — cheia de roupas e estufou o peito contente, quando co­meçou a andar e olhando para o chão, via sair da calça moderna, com a boca bem larga o sapato de primeira qualidade. Passou a mão para sentir a maciês da cami­sa de tergal com bordados na gola e nos punhos. Ga­nhou também um cinto da mesma cor do sapato, com uma grande fivela niquelada.

Eram coisas usadas mas para Zé a felicidade. Com

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a mala na mão e a cabeça bem alta, andava com passos firmes olhando de soslaio para ver se as pessoas o no­tavam.

Zé percebia, que para todos aquilo de ter roupa para vestir era natural.

Chegou na casa de um amigo de infância o João, lá na favela do Sapo.

Nem precisou bater na velha porta do barraco. A mãe de João, lavava roupa no meio dos barracos, o re­conheceu e veio correndo enxugando as mãos no vestido encardido.

— Santo Deus do Céu. Mas não é que você voltou. E voltou rico. Como está bem vestido! Que roupas boni­tas.

Logo Zé estava rodeado por todas as pessoas sim­ples da favela. Todos queriam, saber como ele tinha con­seguido ficar rico.

— Que rico gente. Vim para trabalhar. Zé não que­ria conversa só tinha um desejo, ficar sozinho.

— Posso ficar uns dias com a sra. Aliás se o João permitir.

— Claro meu filho. João está um moço feito. Ar­ranjou um emprego na casa de uns milionários lá no bairro do Vale Verde.

Entraram na cabana. Um quarto, com mesa, cadei­ras, fogão, e duas camas de solteiro. Tudo limpinho e as camas com roupas branquinhas.

— No que João trabalha? — É rondante de uma mansão. — Rondante?!.. . Vigia a senhora quer dizer? — É, ele fica das dez às sete da manhã, dando vol­

tas, em redor da casarona de gente rica. Ganha muito bem. Duzentos, cruzeiros por mes.

Zé, expremeu o riso. Duzentos cruzeiros ele ganha­va por noite quando passava tóxico em São Paulo.

— Quer dizer que ele só volta amanhã cedo.

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— Então vou dormir.

— Coma alguma coisa. Espere vou fritar um ovo, já tem arroz e feijão do almoço.

Zé comeu e deitou na cama. Puxou a Cortini nha que o separava da mãe de João.

Nem queria acreditar. Depois de tantos anos . . .

Uma cama. Dormiu e só acordou no dia seguinte, com alguém arrancando-lhe as cobertas.

— Zé você?!

Zé pulou.

— João, amigo. Poxa. que saudades.

Conversaram muito. Conversaram os quatro anos que estavam separados.

— É João. A vida lá é dura. Nem te conto. Juro que dá pra fazer um livro. Passei por cada uma! Olha sinceramente, nem sei como ainda estou vivo. E Zé foi contando tudo.

— O negócio é esquecer e ir pra frente. Eu traba­lho de rondante, e à tarde faço o ginásio. Estou no ter­ceiro ano. Olha Zé, à noite levo você pra conhecer os meus patrões. Eles poderão arranjar um emprego pra você.

— Será ótimo. Vou tirar novos documentos.

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A Dama

Zé arranjou emprego. Seria rondante da mansão da senhora Cristina Alves de Almeida. Rica dama da nossa sociedade.

Cristina era desquitada de Júlio Vila Nova, e vivia só, na mansão. Só não, com duas empregadas. Lourdes e Cida.

Zé iria começar naquela noite a ronda. Deveria che­gar, às sete horas mas às seis ele já estava tocando a campanhia, para avisar que começaria já, já o serviço, pois tinha ânsia de trabalhar. A noite caia. Cristina sen­tada no divã de veludo vermelho contemplava sem ver toda a decoração de uma de suas salas de visitas. Sedas, rendas, veludos, e imensas cortinas. Móveis os mais modernos e luxuosos. Prata, cristal, porcelana, bronze, ouro. Famosos quadros, macios tapetes. Apanhou uma revista e destraida, abstrata ia virando as páginas.

A empregada avisou que o jantar estava pronto.

Ela foi para a sala de jantar e, na grande mesa de cristal, revirou a comida no prato, largou tudo e voltou para o sofá, a cismar. Ligou a televisão a cores. Uma cena de amor com beijos demorados, irritou mais os

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seus nervos já abalados. Ela desejava sensações. Há muito tempo, desde que se separara do marido

andava assim fraca e doente. O toque estridente da campanhia a fez tremer. — Seu Carlos, dona Cristina. Ela ergueu á cabeça e encarou com os olhos brilhan

tes o jovem alto, forte e bem vestido que acabava de entrar na sala.

— Olá Cris. Ele estendeu a mão e puxou-a ajudan­do-a a levantar-se.

— Vim como prometi.

— Obrigada Carlos. Fi-lo prometer que viria por­que estou me sentindo muito só. Sentaram-se e Cristina continuou a falar. — Sinto umas coisas estranhas a cor­rer pelas minhas veias. Uma forte sonolência me perse­gue o dia inteiro.

— Eu sei o que é, Cris. Já lhe falei. É o desejo da carne. Ninguém fica assim tanto tempo sem ter relações sexuais. Isso mata. Destrói-. — Delicadamente Carlos a atraiu para si. Você quer? Eu estou aqui.

Ela sentou-se novamente e de cabeça baixa disse.

— Não é falta de homens, Carlos. É que nem um me faz gozar. Eles ficam em cima de mim empurrando, empurrando. No fim gozam e e u . . .

Carlos ajoelhou-se, beijou-lhe as mãos, e aperto-as entre as suas grandes peludas.

— Eu a farei vibrar, juro.

Os olhos de Cris, se voltaram para ele cheios de desejos. E o desejo que latejava lá no seu todo de mu­lher de trinta anos, foi esquentando, cada vez mais.

Carlos fê-la deitar-se no divã e enlaçando-a com os dois braços beijando-a furiosamente a boca carnuda de dentes brancos e perfeitos.

Foi fácil tirar a calcinha pois o vestido micro, aju­dava muito. Cristina sentiu Carlos penetrá-la devagari­nho, num ritmo igual, de entra sai, entra sai. Nervosa e agíitada, com medo que ele acabasse antes dela, come-

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çou a mover os quadris, num gingado louco de quem deseja gozar para espelir os males que invadiu seu cor­po.

Carlos tremeu gemeu e parou pesando toneladas. Depois ergueu-se, abaixou e beijou-lhe o rosto suado.

— Você foi tremendamente maravilhosa. É uma douçura. Agora suponho que não se queixa mais de so­nolências, tristezas.. .

— Eu não gozei. — Cris estava quase chorando. Carlos parou com as calças, puxadas até o joelho e

disse assustado. — Não gozou?! Mas quando você começou a gingar,

eu pensei.

Um suspiro triste veio bem fundo do peito de Cris. — Não faz mal. Fica para depois. Carlos puxou rápido as calças. — Claro sou um homem forte. Daqui a pouco, pluf.

Ficará retinho outra vez.

Em silêncio Cristina, saiu da sala, e foi para o ba­nho. Logo mais voltou mais ardente que nunca.

Abriu o roupão branco, felpudo e enlaçou Carlos, puxando-o para si. Levantou os olhos castanhos avelu­dados.

— Agora? Carlos abriu a braguilha. — Segure um pouco. Assim ele renascerá rapida­

mente. — E se eu não segurar, demora? — Um pouco.

«. A mão de Cris, com dedos longos e macios passava suavemente pelo macho, adormecido que aos poucos foi se levantando até tomar a sua forma para a luta. Em riste, pontudo para a frente.

— Acho melhor irmos para a cama. Aqui é muito desajeitado. — Retrucou Carlos.

— É. É muito melhor.

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Foram para o quarto. Cris jogou as roupas no ta­pete azul de veludo que cobria todo o chão do quarto e se afundou debaixo das cobertas.

Carlos foi tirando as roupas, e quando ficou nú Cris, se espantou de ver que tudo estava murcho.

Carlos riu. — Calma querida, daqui a pouco. Deixe-me encos­

tar em você.

Sentindo o calor doce da bela mulher, tudo acordou e Cris receosa puxou logo Carlos para cima de seu cor­po e disse.

— Comece logo antes que abaixe outra vez. Ternamente Carlos, a penetrou sentindo que Cris,

se agarrava a ele, tremendo e se retorcendo toda. Ele queria demorar, mas infelizmente era dos ho­

mens que tinham o prazer muito rápido, por isso aca­bou mais uma vez antes de Cris, e caído sobre ela chora­mingou pedindo perdão.

— Não adianta, Cris. Você é muito mulher. Não há homem que resista ficar mais que dois minutos em cima de você, sem gozar.

Cris imóvel, pálida, olhou para ele, e levantando as mãos juntas disse baixinho:

— Dê um jeito para que eu goze. Não aguento ficar assim.

Carlos ficou mudo, olhando para Cris, fixamente. Não sabia o que falar. Por fim, sentou-se na beira da ca­ma e começou a calçar os sapatos. Vestiu a calça. Esta­va nervoso e trêmulo. Já vestido, procurou num relance de olhar onde poderia, estar o cinzeiro. Não vendo bateu a cinza na mão em concha e falou sem graça.

— Desculpe-me Cris. Eu sempre satisfiz as mulhe­res, com quem me deitei. Tenho grande prazer em dissi­par minhas forças, com o sexo oposto, mas com você não sei o que fazer.

Cris disparou numa gargalhada nervosa.

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— Reconheço que é triste e desanimador para um homem ter o coito rápido. Mas não tem nada não, qual­quer dia farei algum homem suar sangue, para obter o meu prazer. Também é a segunda vez que o vejo Carlos. Todo homem que me vê, cai assim como você. Se derre­tem todos, só em pensar em mim. O chato é que aqui em Belo Horizonte sou exclusivamente amada por todos os homens. Casados, solteiros, etc.

Cris já tinha levantado, e andava núa pelo quarto fazendo mil gestos.

— Por isso mesmo é que já estou enjoada de ser a primeira mulher de Minas Gerais. Tudo o que precisam, chamam Cristina Alves de Almeida, a mulher mais linda, mais elegante do Brasil. — Andou de lá prá cá e conti­nuou. — Sabe de uma coisa Carlos. Vou ficar isolada da alta sociedade. Vai começar hoje.

0 telefone tocou como um estrondo.

— Alô Cristina. Só estou ligando para você não es­quecer a festa do Antenor Patino. Vou apanhá-la as vinte e duas horas.

— Está bem Rogério. Estarei pronta.

X X X

Orquestra, luzes, flores, jóias, vestidos deslumbran­tes, casacas, cristais e iguarias, bebidas, e o rei mundial do estanho formava a festa.

Cristina entrou num vestido preto transparente, to­do bordado de pedras também pretas. Os cabelos loiros, presos no alto da cabeça, com alguns cachos soltos pelos ombros. Frente a frente com alta camada, ela começou, se sentir mas só. Mesmo assim procurou se distrair dan­çando com o rei do estanho, com o ex-presidente da Re­pública do Brasil. Cristina não mentia, todos os homens feitos de ouro, estavam ali, aos seus pés.

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Os homens mais ricos do Brasil estavam ali, enrola­dos em finíssimas roupas e calçando os mais luxuosos sapatos. Sapatos! Cristina nos braços de Antenor Patino cismava. Sapatos. De que couro seria o sapato do rei do estanho? E os dos outros milionários presentes. Seriam de vaca? Vaca ou de boi? E se os animais viessem recla­mar seu couro, já pensou, quantas vacas cabras, jacarés não estariam aí, dando voltas e mais voltas, ao som da música. Tantos homens e as suas entranhas queimando de desejo. O rei pisou-lhe o pé.

O sapato dele, também devia, ser feito de couro de boi. Cristina continuava a cismar, abstrata, distraída, ouvindo tão bem o mugido como se ainda estivesse na fazenda. O boi foi se aproximando de uma vaca, baixa e gordinha. Ansioso farejava o ar soltando um berro cheio de luxuria. A vaca indiferente, continuava a comer o ca­pim verdinho e aveludado deixando no canto da boca um chumaço que fazia desaparecer aos poucos mastigan­do devagar.

Babando, com os olhos saltando da órbita o boi arreganhou os beiços, mostrando os dentes enormes, sú­bito saltou sobre a vaca e com uma estocada certeira, entrou até o fim, fazendo a vaca oscilar. — Cristina sua­va, por todos os poros. Sentiu que uma coisa quente corria pela sua barriga, e ia se perder no sexo. Era o desejo. Desejo do macho.

A orquestra emudeceu. O "rei" a acompanhou até a mesa onde estavam os amigos. Ao sentar-se seu sexo se expremeu, contra o veludo macio da cadeira, fazendo-a guase demaiar. O desejo crescia. Um homem a olhava, fixamente. A aliança brilhava, brilhava em sua mão es­querda.

Casado, pensou Cristina. Os casados tem mais expe­riência. .. Sacudiu a cabeça fazendo os cachos sedosos

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irem de lá, prá cá. Mas experiência.. . Se assim fosse não estaria desquitada. Lembrou do marido.

Logo que o conheceu, ficou apaixonada pela sua be­leza. Alto, com os ombros largos, quadris finos, peito pe­ludo, braços peludos. Só não gostava das coxas. Eram grossas e úmidas. Pareciam coxas de mulher. Só não as confundia, com as das amigas, por serem bem peludas. E o rosto? Como o adorou. Rosto de pele limpa e sadia onde chamava a atenção um vasto bigode, da cor dos cabelos castanhos, que iam até os ombros.

Cabelos, e bigodes bem tratados, como seda. Os dentes eram brancos iguais. Dentes para publicidade de algum dentifrício. E os olhos. Verdes e sombreados por cílios negros. Até pareciam que usava delineador. Eram lindos. Seu sorriso punha qualquer mulher nocaute.

— Luiz Carlos, Cristina. — Muito prazer. — Eu que digo. Sabe que você é a mulher mais lin­

da que vi até hoje. E olhe que já viajei o mundo todo e convivi com as chamadas misses.

— É o que ouço todos os dias. — Gosto de mulheres vaidosas. . . Tem algum com­

promisso para a noite? — Não. — Então a apanho às dez horas. Boates, clubes, festas, iates. Ele vivia num mundo

grande e lindo. Onde a ordem era ser milionário. Tenho um grande iate, Cristina. Quer conhecê-lo?

— Mas aonde está? — Em São Paulo. Ou melhor. No Guarujá. Vamos amanhã para lá.

X X X

0 iate era super confortável. — Cristina, filha de pais de classe média, nunca podia pensar que chegasse a tanto. Um grande e majestoso iate a sua disposição. Vestiu o reduzido, biquini, tipo tanga. Mas tanga de dois centímetros de largura.

Ele adorou. Abraçou-a. Os dezessete anos de Cristi­na arderam. Ela se encostou o mais que pode e deu umas

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leves esfregadinhas. Luiz a afastou. Cristina freou. — Poxa. Não devo demonstrar tanto calor. Assim

não conseguirei fisgá-lo. O negócio é não ter a mínima intimidade. Fingir pureza.

Luiz gostou de que a jovem não fosse tão ardente, como as que tentava levar ao altar.

X X X

O véu, a grinalda, o buquê de flores. O sonho se rea­lizará. Cristina Vilares de Araújo, entrou na vida dos que vivem rodeados de ouro.

Linda, inteligente. Seu nome, seu rosto, seu corpo, começaram ser vistos nas páginas da imprensa e video do mundo inteiro. Era a glória!

X X X

Na primeira noite de casados Cristina se vestiu de azul e foi correndo para os braços de Luiz. Mas Luiz dormia profundamente.

Cris pensou.

— Talvez o cansaço do casamento. Mas não tem im­portância, estamos em Paris. Isso me consola um pouco. Nem acredito que estou respirando o mesmo ar, que a Rainha Maria Antonieta. — Engraçado a Rainha da Fran­ça, também tivera o mesmo problema. O Rei Luiz X V I , a deixou virgem sete anos. Cristina estremeceu. O marido também, se chamava Luiz. Dois Luizes, dormiram na noite de núpcias. Ela andou pelo quarto, fazendo os maiores barulhos e ele roncava. Com raiva, arrancou as roupas e deitou-se em cima do marido e se esfregou nu­ma fúria selvagem, fazendo o sangue se injetar rápido, nas artérias levando o coração a dar arrancos quase pu­lando fora do peito. E ela lutava, lutava.

Agitada, trêmula, pálida sentiu-se desfalecer.

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Na noite seguinte, já deitados. Luiz a apertou con­tra si e beiiando-a fez com que ela começasse a sentir aquele ardor, que a fazia contrair as pernas. E Luiz a fuçou sem parar. Machucando-a, mas nada conseguiu, pois o penis não conseguia a potência necessária.

— Juro Carmem. Juro que apezar de estar oito dias em lua de mel, continuo virgem, o penis de Luiz, não en­durece. Aliás, levanta, mas quando vai penetrar fica mo­le.

Nem quiz continuar a lua de mel, que para mim foi a lua de merda. Que caralho, ó que devo fazer. Es­tou morrendo de ódio. Ele me excita, fico sentindo um calafrio percorrer-me pela espinha. Uma escuridão per­passa pelos meus olhos, fazendo-me sentir tremendas ver­tigens. Cris andava, falava, gesticulava. Nem sei o que faço. Aquele veado filho da puta.

— Cris você não falava nomes feios. O que aconte­ceu?

— O que aconteceu. Ainda você pergunta? Eu ardo. Sou mulher, meu sexo doe e não tenho ninguém para amenisar tudo isso. Tenho que sofrer, me amargurar so­zinha, só porque liguei minha honra a um papel de ca­samento. Você acha que devo aceitar essa submissão de mulher casada, nem que morra de desejos. Agora vejo quanto errei ter ido jurar fidelidade diante do altar, a um homem sem o conhecer sexualmente. Sim pratiquei um grande erro.

— Você casou Cristina. Devo obedecer as leis. Se você praticar o adultério. . .

— 0 que acontecerá? Fale, vamos Carmem. — Tanta coisa. Crimes, confusões. Você não lembra

do caso Marini. Glória era nossa amiga, faz cinco dias que foi assassinada pelo marido nos braços do amante.

Cristina voltou, triste e abatida para sua casa. Luiz estava a sua espera, mais lindo do que nunca. Aquele corpo, aquele rosto, oh! Deus, eram de enlouquecer qual­quer mulher.

— Deus do céu! Onde esteve? Já são vinte e três ho­ras.

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— Fui visitar Carmem. — Que diabo ficou fazendo naquela maldita casa?

Luiz empalidecia e tremia enquanto gesticulava. Sabe que horas são?

Cristina voltou-se e gritou branca de raiva. — Você já disse. Vinte e três horas e daí? — É daí. Então você se esqueceu que é uma mu­

lher casada? Cristina caiu na gargalhada.

— Casada? E com quem? — Você quer me deixar louco? Casada comigo. — Cona você. Gritou ela de dedo em ristej apontan­

do para o rosto dele. Atirou a bolsa para longe e che­gando bem perto o encarou com os olhos fora das órbi­tas e continuou gritando.

— Você é . . . é um impotente. Luiz recuou alguns passos, e ficou da cor de defun­

to. Cristina, sentiu um súbito remorso. — Fiquei lá esperando que . . . b e m . . . que ela me

desse alguns conselhos porque acho que você não gosta de mim.

Ele a fixou, estupefato. Correu para ela e a tomando nos braços, apertou-a sofregadamente, e falou com a voz embargada.

— Eu não gostar de você?! Como pode, pensar isso meu amor, minha vida. Eu a adoro. Você . . .

Cris o interrompeu. — É que junto de mim você fica frio. Não conse­

gue nem me fazer sua mulher. Luiz riu, apertando-a mais e mais. — Ê assim mesmo Cris. Eu estou tendo o máximo,

cuidado para não magoá-la. Afrouxou os braços. Mas já que você quer. Vamos.

Luiz foi homem. Mas como nos sete anos que se­guiram, um homem que acabava muito rápido. No co-

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meço Cris sentiu algum prazer, mas quando vieram os dois meninos gêmeos, começou a odiar o marido. Brigas e mais brigas, e, o desquite. Cris foi morar na mansão, que ganhara nas partilhas dos bens do marido.

— Cris, quero lhe apresentar Onório, meu grande amigo. Chegou hoje de um cruzeiro pelas Antilhas.

Era o homem que a fixava e agora estava dançando apertada em seus braços.

Cris sentiu um calafrio a percorrer-lhe o dorso, quan­do os lábios quentes de Onório, se encostaram em sua orelha enfeitada por pingente de brilhantes.

— Você deve ser uma mulher super-ardente. — Por ser, sou muito castigada. — Não entendi. — Sou desquitada — Já o sabia. — Sabe porque? — Imagino. Ciúmes! — Eu?! — Não, seu marido. — Nada disso.

A língua de Onório dentro de seu ouvido. — Não faça isso. — Porque? — A sociedade. Estamos na alta camada social. Ele riu. — E se não estivéssemos? — Seria diferente. — Posso levá-la para casa? — Acho que não. — Mas parece que você está tremendo. Estaria en­

ganado ou é falta de um homem. — É isso mesmo, mas ainda não encontrei o homem

que me fizesse vibrar. — Está aqui. As pernas de Cristina, bambearam. — Jura? — Juro.

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— E a sua mulher? — Me descartarei dela em um minuto . . . E o seu

acompanhante ? — Apenas um amigo.

X X X

O grande portão foi mal aberto pelo rondante, que se atrapalhou todo e fez com que o carro raspasse nas grades negras de ferro.

Zé correu para a portinhola, de onde surgiu o rosto de Cris. Os olhos dele se arregalaram. Nunca tinha visto o rosto tão lindo. ,

— Escute aqui seu imbecil. O portão deve ser escan­carado. Olhe o que você fez, no meu Mercedes. Os olhos de Cris, examinavam-lhe detidamente, minuciosamente. Olhos grandes e morteiros, a boca de lábios grossos, a pele mulata. Estatura mediana. Era um tipo meio repul­sivo.

Zé a encarou e disse humildemente. — Peço perdão, para a madame. — Peço perdão, para a madame. Que raio de por­

tuguês é esse? — Não sei madame. Cristina riu. — Como é o seu nome? — Zé. — Zé de que? — José Alvino. — Sei que você é o novo rondante. — Olhe lá. Tome

bem conta de tudo. — Cris acelerou o carro e se perdeu na escuridão da alameda que conduzia as escadarias da mansão.

Completamente alheio a tudo, Zé seguiu o carro com o coração aos pulos e as pernas bambas.

Logo que Cris entrou no quarto, Onório atirou-se à ela apertando-a nos braços, e cobrindo-a de beijos. Cris ergueu a cabeça e o fixou com os olhos, cheios de um terrível desejo. O apelo brotou fraco de seus lábios.

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— Venha. Onório a soltou e sempre a fixando foi tirando a

roupa e jogando-a brutalmente para qualquer parte. Seus modos de cafajeste exitaram mais o sangue ar­dente da bela mulher, que juraria, que daquele instan­te lhe daria tudo o que ele quisesse, e fascinada despiu-se e languidamente, se estendeu na cama esticando os dois braços para frente.

— Venha. — O olhar de uma fixidez lúbrica, a lín­gua rosa passando pelos lábios carnudos, a ponta dos dentes brilhando. Ele tremendo começou a mover-se em passos curtos. Avançava.

As mãos de Cris, fizeram mil gestos impacientes. — Venha. Venha logo. Ele chegou mais perto. O pênis grande reto, fez com

que um calor de mil fogos apertassem o sexo dela. Suas pernas se retorceram quando ele começou a penetrá-la. Ele entrou e saiu entrou e saiu. Tremeu se esticou e caiu pesado.

— Gostou meu amor? Cris ficou estupefata. Gostou? Ele caiu para o lado e repetiu. Gostou? — De que? — Ora eu não lhe disse que a faria vibrar.

— Mas eu. — Cris entendeu a verdade naquelas pala­vras. Não adiantaria mais nada, os homens só pensam em si. Esticou as pernas. Sentiu o esperma correr pelas coxas grossas de seda. Pegou debaixo do travesseiro o lenço de papel fino que tinha reservado para essas oca­siões e ao limpar-se sentiu que não poderia conter as lá­grimas que sentiu correrem céleres pelo seu rosto.

Onório sentou-se assustado. — Mas o que aconteceu? Você é uma mulher estra­

nha. Todas gozam contentes e você chora. Apoiou a mão nos cabelos dela e os alisou docemente.

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— Não chore. Isso acontece, quando a mulher tem o prazer muito intenso. Eu não lhe disse que o faria vi­brar, desmaiar? — Beijo-a pelo corpo esfregando o ros­to áspero na pele rosada e macia.

Cris virou de bruços e escondendo o rosto nos bra­ços cruzados chorava sem cessar na agonia do desejo não satisfeito. Sentiu mãos leves alisando-lhe as costas e depois foram deslizando até no meio das coxas. Cris desvirou-se e encarou o homem.

Onório estava pálido e uma expressão de macho marcava o seu rosto. Cris deixou-se apalpar na esperan­ça que nessa segunda vez ela ia se realizar. Parou de chorar, limpando os olhos na barra bordada do lençol de seda e permaneceu, completamente imóvel. Sentiu quado ele a penetrou devagar, afastando com as mãos tremulas suas coxas. O movimento ativo do macho em suas carnes que ardiam, mais não sentiam nem uma leve briza a amenisar o calor. Sentiu que o corpo do homem humedecia, depois estremeceu se retesou e quedou imó­vel. Ele tinha acabado. Mas o sexo dela continuava a la­tejar. O que faria? Porque não pode gozar junto com ele? Ainda lá dentro era um tumulto gritante. Ele ia sair dela. Mas Cris se agarrou a ele e implorou.

— Fique mais um pouco.

E ai num selvagem remexer de quadris sentiu o or­gasmo, dando gemidos fracos.

Meio desapontada empurrou Onório de cima e com uma espécie de eloqüência triunfante começou a falar.

— É a gente mesmo tem que lutar para a felicidade do prazer, e para por fim ao estremecimento da carne. Você foi um cavalheiro, ficando assim ereto e imóvel em equanto eu tomava a ativa. Quero que volte outras vezes. Agora gostaria que se fosse. Pode levar o meu Cor­cel. Amanhã você manda alguém trazer.

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VII

O Rondante

Na transparência do amanhecer, o dia vinha surgin­do sem sol. Zé não sabia as horas, pois não tinha relógio. Quieto, parado, Zé sentia ir-se a sua primeira noite de trabalho. Não sabia porque, mas estava triste. Ele não queria se afastar dali. Seus olhos percorreram a imensi­dão do parque e foram mais além, na mata espessa que circundava para lá dos muros da mansão. Tudo estava silencioso. Zé esfregou as mãos sentindo um estranho frio. Tudo quieto. Tantas árvores e nem um piado de pássaros. Não entendia como aquela moça tão linda mo­rava isolada, sozinha. Não teria ela medo? Mas ela- sem­pre tinha rondante. O rondante era obrigado a salvá-la de todos os perigos. Zé estufou o peito e sentiu-se orgu­lhoso. Agora ele era o rondante. Ele era o responsável pela moça tão linda! Levantou do banquinho que estava encostado no grande portão de ferro. Sim ele faria tudo para preservá-la de qualquer perigo. Tudo, tudo. Andou com os olhos fixos na luxuosa mansão. Sim faria tudo. Seria até assassino. Sentiu uma coisa terrível apertar-lhe o coração. Apertou o peito com as mãos de unhas encardidas. Assassino. Fez o sinal da cruz. Pedia a Deus que aquilo nunca tivesse que acontecer.

Sobressaltou-se quando ouviu um barulho que vinha do portão. Correu como um louco. Imaginou mil modos, para defender a mansão e ela. Principalmente ela. Na falta de arma. Apanhou um pedaço de pau e continuou

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a corrida. Levantou a arma na hora que viu alguém abai­xado e quando ia dar o golpe viu que.

— O que foi mocinho? Eu sou o padeiro. Zé abaixou o pau. — Desculpe, sim. Pensei que fosse ladrão. — Não tem nada. Não esquenta. Nesse deserto da

prá gente ter medo da própria sombra. O padeiro em­brulhou o pão e entregando-o disse. — Você é o novo vigia, não é?

— Sou sim. — Pois bem, eu venho todos os dias às sete horas

entregar o pão. Você sabe onde colocá-lo? — Não muito bem. Ontem a empregada me expli­

cou, mas não entendi direito. — Olhe você pode colocar na janela do quarto da

empregada. Era aí que o outro rondante punha.

X X X

Zé pegou o pão e foi em direção ao quarto da em­pregada, rodeando a mansão para uma última ronda. Subiu numa elevação de terreno e correu os olhos pelo parque. Tudo em ordem. Cris dormia.

Ia colocar o pão quando a empregada abriu a ja­nela.

— Olá. Como foi o primeiro dia de trabalho? — Bem. — Quer esperar o café? — Se a sra. quiser. —- Não me chame de sra. Sra. aqui é só a patroa. Zé não soube o que falar. Calado seguiu a moça. En­

traram na cozinha e Zé arregalou os olhos. __ O que foi? Parece tão assustado. — É que nunca vi cozinha na minha vida. A empregada parou e encarou Zé, meio desconfiada. — Nunca viu cozinha, assim granfina, você quer di­

zer. — Não, não vi de jeito nenhum. — Não entendo. —- Quando era pequeno eu morava com o meu pai

em um quarto.

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— E sua mãe? — Ela já tinha morrido.

— Então meu pai trazia a comida já pronta lá da casa de seu Lucas. Aí meu pai morreu e eu fui prá São Paulo. Lá morei quatro anos na rua.

— Na rua?! — É. Lá tem uma porção de meninos que moram

na rua.

— E onde comia? — A gente comprava sanduíche. — Mas sempre, sanduíche? — As vezes comida de restaurantes. — E você trabalhava? — Trabalhava. — No, que?

Zé esfregou as mãos nervosamente. E agora? Se fos­se falar que vivera no submundo perderia o emprego. Tinha que mentir.

— De ajudante de pedreiro. — Ah! Então você vai gostar de ser vigia aqui. Ê

um serviço limpo. Você nem precisa sujar as mãos em cimento, terra, areia e um mundo de coisas ruins. Olhe tome o café. — Sente-se aí.

— Aí?! — Sim.

Zé sentou-se encolhido na cadeira forrada de pele branca. Com a xícara tremendo em sua mão tomava os golinhos de café com leite. Notou que a toalha era de linho toda bordada a mão e o aparelho de café de fina porcelana.

Imagina se o pessoal da "gang" o visse. Zé riu inter­namente, pois sentiu que estava entrando na alta-socie-dade.

Acabado o café ficou à espera de alguma coisa que não sabia o que era. Foi preciso a empregada falar.

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— Se você já terminou pode ir Zé. A noite você pode jantar aqui antes de entrar na ronda e assim po­derá, acertar com a outra empregada quanto vai ga­nhar. Meu nome é Lourdes e da outra é Cida.

X X X

Zé saiu da mansão com o mundo todo bem claro e um sol amarelo esquentava tudo.

A noite voltou para a ronda e escancarou o portão para o Corcel guiado por Onório entrar.

Cristina assomou no topo da escadaria e estendeu a mão ao amante que subia os degraus abraçado a um monte de rosas. A porta escondeu o casal e Zé abaixan­do os olhos e chutando cascalho, começou a ronda. Su-bio novamente na elevação do terreno e percorreu os olhos pelo casarão comprido, somente com uma luz acesa. O quarto de Cristina. Seu olhar foi se alongando e perpassou pelo parque. Nem uma vida, nem um mo­vimento. Andou em direção à mansão, e a luz do quarto de Cristina crescia em seus olhos. Zé voltou-se rápido e tomou outro rumo. Sentia tanto respeito pela linda mu­lher que não quis nem passar por baixo de sua janela.

X X X

Cristina colocou as flores em um vaso, na mesinha do luxuoso quarto e quando deu meia volta sentiu os braços de Onório volteando-lhe a cintura.

Um vivo ardor começou a trabalhar em todo o seu ser.

— Hoje estou em brasas meu amor. Vamos logo, falou com olhos hipnotizantes.

Cris foi mais lasciva do que nunca, mas não conse­guiu gozar junto com Onório e foi num tremendo esfor­ço que conseguiu chegar ao seu orgasmo, se esfregando em Onório nervosamente.

— Que diabo de mulher é você Cris? perguntou Onório com um sorriso inexpressivo.

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Ela se assustou. — Não compreendo — sorria. Sou uma mulher co­

mo as outras. — Você é uma mulher muito mais bonita do que

as outras mas tem um grave defeito. — Defeito? — Sim, defeito. — E qual é posso saber? — Demora muito para gozar. — Ou você goza muito depressa. — Hoje eu demorei, uma eternidade. Qualquer mu­

lher gozaria duas ou três neste tempo. — Sabe que você está faltando com toda a ética de

um cavalheiro, falando assim brutamente. Já ando com um tremendo trauma psíquico por causa desse proble­ma de sexo. Não existiu, não existe, e creio que não exis­tirá nem um homem que me faça gozar junto. Cris an­dou pelo quarto com as duas mãos apertando a cabeça. E . . . penso que nunca serei feliz. Tenho trinta anos e não sei o que é vibrar junto com o sexo oposto. Cris tremia. Onório a observava espantado. Não podia crer que existisse problemas com o sexo. Nunca tinha pen­sado nisso. Sua mulher. Bem que adiantaria pensar na mulher, naquela hora. O negócio era ficar com ela mes­mo. Não queria ter problemas. Cris era muito linda. Linda mesmo. Mas ter que ficar em cima dela fazendo um tremendo esforço para que o pênis não ficasse flá­cido, e ter que medir o peso do corpo. Ah! era desagra­dável ao estremo. Nem pesado demais, nem muito leve. Não podia acreditar que tinha acabado sem que ela al­cançasse o gozo. Afinal ele era o homem. O macho. Nun­ca mulher alguma havia reclamado.

E nesta noite Cris voltou a condição de mulher in­satisfeita.

Nos dias que seguiram uma tristeza profunda to­mou conta dela. Os familiares aconselharam consultar a um famoso psiquiatra. O médico aconselhou, repouso no campo.

Cris levou as duas empregadas e o rondante Zé.

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VIII

Zé o macho

A fazenda era como qualquer outra fazenda. A casa grande circundada de vastíssima varanda. O jardim bem cuidado em volta da casa. A piscina no gramado verde.

O imenso bosque que ficava ao lado das cocheiras. Depois campos e mais campos, com árvores espalhadas por todos os lados e montes de vacas vagando pelo ver­de. Atrás da casa um longo laranjal cruzado de estreitos caminhos que se perdiam em uma cerca de arame far­pado. Do outro lado mais campo.

Pulou da cama abriu a janela e recurvou-se para es­piar o céu, pois a larga varanda atrapalhava um pouco.

Céu azul, pássaros cantando, flores perfumando, bois mugindo abelhas zunindo, e o verde brilhando num sol fraco meio amarelo.

Cris< tomou o copo de leite puro que Lourdes, lhe trouxe e depois saiu para um passeio a pé. Pegou uma vareta comprida e a foi açoitando daqui e dali.

Andou um pouco e logo se sentiu cansada, sentou num morrinho sentindo tremenda prostação. Olhou o sol que começava a jogar uma luz bem forte para todas as coisas. Cris levou a mão aos olhos. A luz a incomoda­va. Procurou uma sombra. Encontrando-a numa frondo-

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sa árvore, bem perto de um canavial. Sentou-se na gra­ma macia e ficou quieta melancólica ouvindo o vento que sacudia de leve as folhas da cana que se esfregavam uma na outra num som áspero, monótono e irritante. Seus nervos não aguentavam. Respirou fundo o ar chei­rando a pureza e recomeçou a andar sentindo que as pernas pesavam toneladas. Contornou o lago, pisando com cuidado nos inúmeros paus, trançadas, nos buracos, de lama que se formavam em redor da água. Abaixava-se para passar nas árvores pequeninas que apareciam a cada dez ou vinte metros. Daquele lado o capim estava todo cor de rosa. Cris parou um momento extasiada. Con­tinuou a andar e se encontrou em frente a uma velha ca­sinha. Sentou-se na soleira da porta e com a varinha co­meçou a riscar o chão. Levantou os olhos para as mon­tanhas distante. Apertou os lábios e sacudiu a cabeça para afugentar as idéias que a queriam obrigar a largar tudo aquilo e voltar para a vida agitada da grande cida­de de Belo Horizonte.

A vida dela, ela vivia intensamente os trezentos e sessenta e cinco dias do ano e todos esses dias eram dias de festa. As estações climáticas, então ela sabia aprovei­tá-las como ninguém. Em uma explêndida mansão na Barra da Tijuca, na Guanabara, ela passava o verão em companhia de pessoas do mundo internacional, como o diretor cinematográfico Raman Polansky, Odyle Rubiro-sa, Tony Curtiz, Florinda Bulcan e outros. O inverno cur­tia esquiando na Suiça. A primavera e ela chegavam jun­tas a Paris, onde Cris, possuia a mais rica mansão entre a dos brasileiros que tinham comprado nos arredores de Paris. No seu luxuoso iate, ela flutuava, pelas águas azuis de Taiti, quando as primeiras folhas, começavam a cair anunciando o outono.

E agora ela estava ali no meio do mato nos confins de Minas Gerais. Mas era preciso. Ela não ia ligar para o que estava sentindo. Sacudiu mais e mais a cabeça. Não, não é não. A luz dourada do sol, não era embaçada e triste. Também o verde da vegetação o rosa dos cam­pos o azul do céu e o azulado das montanhas não eram

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desagradável a visão. Não. Nada era hostil e melancólico. E ainda mais. O que lhe fazia parecer estar dentro de um poço, cercada de altas muralhas era estúpido e sem nexo. Levantou-se, jogou a varinha bem longe e saiu correndo em direção a casa grande, apavorada e tremen­do, pois ouvia como se um terremoto estivesse desmoro­nando tudo. Tropessou nas cadeiras que circundavam a piscina e segurando o coração entrou na sala e foi logo se apoiando em uma cadeira pois sentiu que ia cair.

Cida e Lourdes acorreram.

— O que aconteceu dona Cris? — Nada, nada. É o meu sistema nervoso. — Passou

a mão pela testa e sentiu um suor friu molhar a sua mão. Tentou sorrir. E o médico tem razão. Estou irritadíssi­ma. Vou tomar um calmante. Não se preocupem. Ficarei no quarto.

É o primeiro dia na fazenda Cris, o passou sozinha, trancada no quarto. Os outros dias que seguiram ela os aproveitou como pode. Passeou, leu, se balançou na re­de, tomou leite puro, caldo de cana, comeu mil frutas, nadou na piscina. Mesmo assim emagrecia, e o seu sem­blante esverdeava. E o que sentiu nos primeiros dias contra a fazenda, cresceu.

Já estava farta de verde, animais e gentinha. Não via hora de estar, no seu meio. A alta sociedade. A nata. A gente fina, tratada. Gente de pele lisa sedosa, perfu­mada. Gente coberta de roupas, bem feitas e caras, lu­zes, flores, música. Cris passou a mão pelos longos cabe­los castanhos e sentiu um baque no coração. Não, não aguentava mais. O médico que fosse as favas. Seria o úl­timo dia no mato.

Chamou as empregadas, e ordenou que arrumassem as malas. Depois vestiu um conjunto leve, calçou botas e foi para última volta. Com uma varinha, batendo aqui e ali foi enfrentando a noite que começava a velar o mun-

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do abafado e cheio de coisas estranhas. Estava calor, mas Cris, sentiu um frio esquisito.arrepiar todos os poros do corpo. Apertou a gola da jaqueta contra o pescoço. An­dava. Piados de pintos, chilríar de passarinhos latidos de cães bem longe. Ninguém.' Nem uma alma humana por ali. Os colonos já haviam se recolhido. Passou pelo engenho. Olhou a cana empilhada num canto. O moedor de dentes arreganhados e o alambique de latão já velho. Andou, pulou a cerca, deslisou pelo verde aveludado do pasto. Sentou num cocho e olhou para o infinito. Ten­tou bater as abelhas que zuniam bem perto, se revesan­do em roda-moinhos loucos, absorvendo os últimos raios do sol, que fazia luzir os coloridos de seus minúsculos corpos.

E se fossem as africanas? Quantas gentes já tinham morrido pelas picadas das abelhas africanas? O melhor era fugir. — Cris correu em direção ao alto mato, que circundava o lago. Afogueou-se com a pressa da corrida e desobotou a jaqueta. Entrou no mato. Não pode pas­sar porque ali era brejo bravo. Voltou para o campo. Tudo quieto. Vagou atolando as botas, no capim áspero. Lá do outro lado o bosque. Sim o bosque era mais limpo. Entrou no bosque. Pisou o espesso tapete de folhas mor­tas. Segurou nas árvores cheias de limbo esverdeado e se enroscou nos cipós que trançavam tudo. Jogou a va­rinha e com as duas mãos foi destrançando o caminho. Duas risadas cortaram o ar. Cris se escondeu atrás de um enorme tronco e foi espiando devagarinho em dire­ção aos risos.

Sentiu o coração vir até a garganta. Ali na pequena clareira, uma mulatinha núa com os seios bem empina-dos e umas brutas coxas, sorria com dentes branquinhos para um homem que estava de costas e que com movi­mentos apressados, tirava a camisa jogando-a longe, de­sabotoou a calça e deixando-a cair, mostrando um corpo mulato e magro. O homem abaixou-se para pegar-a-calça e jogou-a em direção à árvore. Aí Cris, levou a mão a boca para abafar um grito. O preto era o Zé. Imagine o Zé. O Zé seu rondante. Nunca tinha reparado nele. Esta-

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tica, tremendo pregou os olhos no pênis enorme duro reto, que saia do meio das pernas musculosas. Depois seu olhar correu para o resto do corpo. Não era lá gran­de coisa. Meio alto, meio magro. Cabeça, bem feita, com carrapichinhos grudados no couro cabeludo e rosto com feições de branco onde sobressaiam olhos negros e mor­teiros. Tornou a olhar para o pênis do jovem e com todo o sangue a refluir-se ao coração descompassado pensou que fosse desmaiar. Nunca vira nada igual. Perpassou o pensamento pelos homens que conhecera na alta socie­dade e retesou os músculos. Pequenos, médios e mur­chos.

X X X

Zé foi em direção à mulatinha. Passou a mão pelos peitos estufados.

A mulatinha parou de rir e se afastava devagar com os olhos pregados naquela coisa preta e comprida.

Zé se olhou e sorriu. — Que é? — Não pensei que fosse tão grande. — Então? Quer que corte um pedaço. Sorriu. — Não é isso. E u . . . — Se você não quiser, não tem nada, não. — Falou

delicadamente. A pretinha parou. — Querer eu quero. — Você disse que já não é mais virgem, e que gosta

de mim. Zé parou. Olhe não sou de forçar. — Eu sei. — Então. — É que me assustei, com o tamanho. Grande as­

sim deve doer muito. — Eu sei um jeito que não doe nada. Deite vá. Zé abaixou-se e estendeu a calça e a camisa num

monte de folhas. — Deite aqui. Não vai doer. Puxou a pretinha delicadamente a fez deitar-se.

De barriga para o ar a pretinha foi abrindo as per­nas devagar. Zé ajoelhado a sua frente, não esperou mais nada, foi caindo em cima dela e segurando o pênis foi

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forçando-o devagar sempre perguntando com vóz preo­cupada.

— Está doendo. . . Está doendo? Abra mais as per­nas. Quer que eu mude de posição?

A voz da pretinha saia fraca. — Não, Zé não doe nada, pode enfiar mais.

X X X

E Cris, via aquela coisa grande e preta entrando e saindo. Entrando vigorosamente rapidamente parecendo esfolar a carne macia e quente que o recebia em gemi­dos e gritinhos. Compassando-se, abaixando-se se retor­cendo como uma serpente, Zé se afundava, vinha a ato-na, urrava em uivos animalescos que se perdiam no si­lêncio do úmido bosque.

Cris, sentia que suas carnes se sacudiam, tremiam, vibravam, numa agitação que a levavam para a volúpia que crescia dentro dela. Torcia as mãos, rangia os den­tes mordendo os lábios até sentir o gosto salgado de sangue invadir sua boca . . . E quando Zé caiu estenuado para o lado, nas folhas secas ela não conseguiu refrear o grito, que como um silvar dolorido lhe saiu da garganta.

Quase abraçada ao grosso tronco, da árvore, foi cain­do devagar e já estendida, na terra fofa começou a se torcer toda em contrações que a tornavam estranhamen­te deformada.

Zé sentou rapidamente. — Você ouviu um grito?! — Ouvi sim. — Foi aqui perto. — Acho que é cobra. — Cobra não grita. — Primeiro foi grito. Depois foi coisa de cobra. Co­

bra se engasgando. Zé levantou-se. Vestiu rapidamente as roupas e co­

meçou a procurar aquele grito sufocado. Parou estático, duro como se fulminado por um

raio, quando deparou com Cris, desmaiada.

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Chegou perto e abaixou o olhar e todo aquele corpo entrou de um só arranco no seu coração. Nesse mês que estava na fazenda as ordens de sua patroa, nunca tinha conseguido se aproximar. Só a vira aquela vez lá na mansão de Belo Horizonte, e a tinha achado muito boni­ta e seu coração dera um monte de saltos quando ela surgiu na janelinha do carro, chamando-o de imbecil. Mas agora. Agora ela estava ali caída aos seus pés, Zé desviou as vistas, não queria encarar pois a jaqueta esta­va desabotoada e Cris não estava usando su t iã . Mas al­guma coisa não o deixava ficar muito tempo com o rosto para o lado. Alguma coisa, desvirava a sua cabeça e fazia que os seus olhos de dezessete anos, admirasse toda a deslumbrante beleza que se enroscava nele, começando a arrastá-lo devagarinho para a morte. Pobre Zé, se ele soubesse o triste fim que o aguardava, teria fugido dali como um demônio foge da cruz. Mas em vez disso, le­vantou-a do chão e carregando-a com cuidado, foi se afastando do bosque sem ouvir as súplicas da mulatinha, para que ficasse e deixasse a mulher branca, pois existia muita gente a se preocupar com ela. Com o precioso far­do apertado nos braços, Zé ia andando devagarinho, pi­sando com cautela, nos clarãozinhos que os últimos raios de sol deixavam atravessar pelo rendado da folhagem. Na última árvore já na saída tropeçou num galho seco e para não deixar o rosto de Cris, bater num tronco cur­vou-se e encostou sua face na cútis cetinosa da moça. Estremeceu, sentindo a maciez daquela tépida pele, e um tanto assustado, passou pelo gramado, pelo jardim, su­biu as escadarias e gritou pelas empregadas, que acorre­ram cheias de cuidados.

X X X

Cris, acordou vendo as pessoas que a rodeavam en­volvidas por um nevoeiro azulado transparente. Levou a mão aos olhos e os apertou fortemente.

— Esta melhor dona Cris? Quer que mande o Zé chamar o médico?

— Não. Não preciso de médico. Foi apenas uma vertigem. Agora estou sentindo uma pequena turvação,

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mas logo passará. — O Zé trouxe a sra. desmaiada.

Ouvindo o nome de Zé, um abalo, revolveu tudo lá dentro, as loucas sensações da carne a martelavam fa­zendo-a levantar-se de um ímpeto, ordenando coisas sem nexo.

As empregadas obedeciam assustadas. — Pôxa, co­mo dona Cris, estava diferente. Ajudou até a arrumar a mesa, para o jantar.

Cristina queria movimento. Movimentando-se, daqui e dali e falando sem parar, pensava esquecer a cena da relação sexual entre Zé e a mulatinha. Cris precisava de um homem. Queria, desejava loucamente, ardentemente, estar debaixo de um homem. Queria sentí-lo entrar em suas entranhas freneticamente.

— As malas já estão prontas dona Cris. A voz do chofer da fazenda, a fez sair do sexo e vol­

tar a realidade. Ficou com um prato, que ia colocar so­bre a mesa suspenso no ar, e apalermada olhava para o homem. Depois sacudiu a cabeça e perguntou com voz funda.

— O que foi que você disse? Repita por favor. — As malas já estão no carro. A sra. pediu para avi­

sá-la de que partiríamos às vinte horas. Largou o prato. — Ah! — a imagem de Zé nú, balançou na sua fren­

te. — Não vou partir hoje. Resolvi ficar, mais alguns dias. — O chofer saiu contrariado. A empregada serviu o jantar. Cris tentou comer, Levou a comida a boca mas­tigou, mastigou e não conseguiu engulir. Correu para fo­ra quando sentiu que uma bola subia do estômago a gar­ganta. Tossiu vermelha como um pimentão, querendo que aquela coisa pesada lá dentro se desfisesse. Já cansa­da, caiu estenuada na rede, e enguliu aos golinhos a água que Lourdes lhe trouxe.

Meio descansada e se apoiando na empregada foi para o quarto. Deitou-se de bruços e ficou quieta pen­sando. De repente volta o desejo, Cris trincando os den­tes, amarfanhando o travesseiro. Sente a eletrecidade machucar seu desejo de sentir a carne dentro de outra carne.

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Esfrega o rosto na fronha macia, geme chora, e a carne não para de latejar. Cris, vira-se. O que poderia fazer para passar aquela tortura? Passa a mão pelos seios e estremesse. Vae descendo. Abre as pernas e aperta to­dos os dedos contra o sexo em fogo. Tinha que fazer al­go. O que por exemplo? Levanta-se e vai para o chuveiro. Senta-se na água gelada que empossa o box. A carne des­cansa. Com a toalha envolvendo o corpo molhado volta para o quarto e começa a se enxugar diante do espelho. Mas onde estaria a Cris, de tempos atrás? Pele amarela, seios caídos. Coxas flácidas, magra. Até podia contar as costelas.

Voltou-se apanhou um enorme vidro de água de co­lônia e arremessou contra aquela Cris, de faces fundas, e corpo esquelético. Tomou um comprimido se enfiando debaixo do linho macio e ficou esperando o sono com as lágrimas pingando na maciez da fronha bordada.

X X X

Acordou com enjôo de estômago, a cabeça pesada e uma molesa nas pernas. Não quiz o leite puro com a bo­bagem do conhaque misturado para fortificar. Saiu para o verde. Deu um ponta-pé no cahorro, que veio correndo para o seu lado com mil balanços de rabo. Passou pelo engenho, pegou uma faquinha que viu caída no chão e sem reparar no dia fortemente colorido de inúmeras ma­tizes e doloridamente claro, foi andando de mau humor fazendo tudo o que fosse de malvado. Parou em frente a um mamoeiro baixinho e carregadinho de mamões ainda pequeninos e os cortou, um a um, jogando-os para todos os lados. Esfaqueou as abóboras que brilhavam amare­las no meio do verde. Botou um monte de pinga no cocho dos gado. Tocou pedras nas galinhas e tirou os pintinhos debaixo das chocas, sem se importar com os piadinhos tristes e doloridos. Esborrachou os ovos das patas, pisando com as pesadas botas nos inúmeros ni­nhos que se espalhavam pelo enorme galinheiro. Esmi-

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galhou as flores que se abriam risonhas e perfumadas. Tirou a rolha do alambique e riu as gargalhadas quando viu o caldo verde e grosso escorrer pelo chão de terra vermelha, ante o olhar assustado do empregado. Entrou na cocheira e deparando com um bezerrinho doente, tre­pou em cima dele e pulava fazendo com que a sola das botas rasgassem a carne tenra e fraca, até vê-lo morrer gemendo de dor.

Cris, olhou ao redor e correu em direção a um por­quinho que com uma patinha partida, não conseguia sair do lugar. Mais a voz, veio rouca, profunda autoritária.

— Não se aproxime do porco. Zé tremia em sua frente.

Cris jogou os cabelos empapados de suor para lon­ge do rosto e encarou o preto. Os olhos de Zé brilharam de ódio. Olhos nos olhos. Os da alta-sociedade e os do jovem que cresceu como um cão no submundo da gran­de e magestosa São Paulo. Riqueza e miséria se defron­tavam. Mas a força era igual nos dois lados. O que estava valendo agora, era o amor, o sentimento, a defeza ao fra­co. Zé não abaixava os olhos. Sabia que estava perdendo tudo. O emprego. Boa comida, e o conforto que sempre sonhou, mas nada importava. Poderia cair novamente na lama. Na lama, igual a que pisava dentro da cocheira, úmida de mijo e bosta de vaca,mas ela não daria mais um passo.

Ereta, altiva com os lábios tremendo de desdém — fez um esforço para que a voz saisse natural.

— E quem vai me impedir? — Eu. — E quem é você? Saia já da frente. — Só se a sra! me matar. — Eu vou é matar esse nojento porco. Deu um passo para frente. Zé também deu um pas­

so para frente, sem despregar os olhos dos olhos gran­des negros e brilhantes.

Cris levantou o braço e mostrou a faquinha. Mas os olhos de Zé não se abaixaram.

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— Saia.

Zé mostrou os cientes, cariados num riso retorcido e ergueu mais a cabeça valente, destemido, homem me­nino. Menino macho.

— Não saio.

A força crescia dentro dele, era a do homem cora­joso que não mede obstáculos para defender os fracos. Seu pai sempre lhe dizia que o seu Lucas, era um ho­mem valente, forte, e corajoso como ninguém em defesa dos mais fracos, nem que esse mais fraco fosse uma mos­ca e o mais forte o Presidente da República. E a força dentro dele se fortificou mais ainda fazendo-o dar mais um passo e arrancar das mãos da badaladíssima dama a faquinha enferrujada e a atirar bem longe. Agora frente a frente, Cris ouviu as batidas rápidas do coração do negro e seus olhos se queimavam ante aquele olhar fixo e morteiro e se voltaram para o chão, depois subiram um pouco e pararam na braguilha estufada.

Os olhos de Zé seguiram os de Cris e se arrepiou todo quando percebeu, que seu penis ia se inflamando ardorosamente diante daqueles olhos anciosos que iam se tornando desmesuradamente abertos. E depois foram se levantando até chegar aos seus. Então Zé, viu neles alguma coisa que o fez perder toda a força, toda a valen­tia. Zé jurava que eles pediam, pediam! Ah! isso não era possível. O negro sacudiu a cabeça mil vezes e quando a fez voltar ao normal, Cris tinha desaparecido. Zé ficou por muito tempo parado no mesmo lugar. Depois abai­xou-se pegou o porquinho e o levou para ser tratado. Caminhava coberto de uma tristeza que não entendia de onde vinha.

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No dia seguinte Zé acordou com a imagem de Cris saltando em sua frente. Ferveu em sua memória os olhos grandes negros e brilhantes envoltos em desejos. Empa­lideceu só em pensar, o que estava imaginando. Não, não tinha esse direito. Zé levantou-se de um ímpeto e apertou as mãos nas têmporas. Devia estar ficando louco. Onde se viu imaginar que uma mulher daquela, linda, rica, da alta sociedade ia desejar ter relações sexuais com ele. Zé riu. Riu até que as lágrimas saltassem de seus olhos. Depois com a mão fechada ia se dando socos na cabeça e gritando.

— Você está louco Zé. Tire isso da cabeça. Se ponha no seu lugar. Ande Zé. Vá fazer as suas obrigações. Va­mos Zé, pense na mulatinha de coxas grossas. Aí Zé fa­zia um esforço enorme para lembrar em tudo da preti­nha. Fixou o pensamento demoradamente naqueles dois seios grandes duros, pontudos. Repassou as carnes fir­mes cor de chocolates e reviveu os beijos ardentes e os sexo em furor de tempestade. Também os lábios carnu­dos que cobriam dentes branquinhos e iguais dançarem na frente de Zé, tentando matar a imagem de carnes amarelas e flácidas da patroa. M a s . . . Zé saiu para a chuva que caia forte com o furor do vento balançando tudo num barulho ensurdecedor. As nuvens passaram baixas e negras, deixando para trás raios de fogo, que estouravam como que quisessem destruir o mundo. Mas Zé nada escutava nada sentia. O que o martirizava era aquela imagem ali na sua frente. Queria esquecer. Es­quecer. Correu debaixo das faíscas amarelas que cruza­vam a mata cerrada que era sacudida de lá prá cá nuns gritos estridentes empurrada pelo vendaval infernal.

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Pisou os montes de folhas encharcadas de chuva e penosamente atravessou os emaranhados de árvores, saindo perto de um alto morro, onde a enxurrada resga-va a verde grama de seu corpo, fazendo aparecer montes de terra lamacenta. Zé se sentiu forte. Podia subir sem se segurar nas touceiras que se espalhavam morro aci­ma. E ele subia, subia. Subia cada vez mais, pois queria deixar para baixo, bem baixo, lá em baixo o amor que arrebentava no seu magro peito. Sim agora ele sabia do que estava fugindo. Estava fugindo do amor. Mas pobre Zé. 0 amor como a fúria do vento que rugia lá embaixo estava mais forte, mais ardente mais dolorido lá em cima.

Lá em cima de pé, no alto do morro, com a camisa voando em mil trejeitos pelo ar molhado, Zé sentia a chu­va escorrer por todo o seu corpo e se excitava de um modo estranho quanto sentia a frialdade agarrar seu pênis fogoso, que palpitava envolto na imagem da dama da alta sociedade.

Zé se desembaraçando do vento, com grande difi­culdade, conseguiu amarrar as pontas da camisa e com os braços abaixados ficou sentindo as leves marteladas do aguaceiro que o castigava sem parar. Depois seu olhar abrangeu toda imensidão da fazenda, pousando na casa grande e quando parou na janela de Cris, sentiu uns fré­mitos envolver em seu coração. Cruzou os braços, sentin­do toda a frialdade da camisa grudar na sua pele. Des cruzou-os rapidamente. Lá bem ao longe o casarão cres­cia. Zé sentia o corpo balançar, pensou até que fosse cair. Não, não devia pensar tanto nela. Ela a Deusa morena. Apertou o nariz pensando estar sentindo o perfume gos­toso e suave que se desprendia de toda Cris, quando ela estava bem junto dele lá na cocheira. Não, não devia pensar mais. O olhar agora corria em sua volta e Zé sen­tiu que o lugar estava sinistro, gélido com os raios cain­do bem ali perto. Lentamente começou a dar os passos de volta.

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De longe avistou que tinha alguém parado na porta de seu quarto. Apertou a vista mas a água balançava a figura. E ele foi se aproximando.

— Credo Zé. Você está molhado, como um pinto. Lourdes o fixava. Zé passou por ela em silêncio. Lourdes leu em seu

semblante que ele não tinha gostado de encontrá-la ali. Mas assim mesmo entrou no quarto do rapaz e foi logo no assunto.

— Sabe Zé. A dona Cristina, amanheceu doente. Zé que estava se enxugando por cima da roupa mo­

lhada, parou com a toalha no ar. — Vim aqui para sa­ber o que realmente aconteceu antes de ontem, quando você a levou desmaiada.

Zé jogou a toalha longe. — Eu a encontrei desmaiada. — Seu ar era apreen­

sivo. — Isso eu sei Zé. Mas é que toda a vez que a gente

mencionava o seu nome ela fica diferente. Vermelha, bran­ca, grita esbraveja. Sei lá. Um monte de coisas estranhas. Parece que tem ódio de você.

0 coração de Zé começou a pular. Disse com voz funda.

— Eu não sei. Juro que não fiz nada. — Deve ter havido alguma coisa. Alguma coisa que

eu estou sentindo aqui dentro do peito do lado do cora­ção e não sei explicar.

— Eu também não sei explicar. — Onde você estava na hora? — Que hora? — Que ela desmaiou. — Sei lá. Eu fui andando, e encontrei ela atrás da

árvore.

— Mas você disse que a encontrou lá na clareira do bosque. O que você foi fazer lá, que é só mataria bem fechada.

— Fui passear ora.

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— E você encontrou a patroa assim sem mais nada, só passeando? Conte a verdade Zé. O que você estava fa­zendo lá?

É que o médico disse que dona Cris, deve ter- se assustado com alguma coisa.

Zé arregalou os olhos. — Assustado?! — É assustado. E você deve saber o que. — Eu não sei de nada. Lourdes sabia que o mistério estava com o Zé e

também sabia que Zé, era bobo e inocente. Sabia que estava mentindo e também sabia como ia fazê-lo confes­sar.

Lourdes pegou uma toalha seca. — Tá Zé. Vai lá dentro tira essa roupa molhada

enquanto faço um café bem gostoso. — Oh! Lourdes, não se incomode. — Você esta tremendo. Vá Zé. Não seja bobo. Se

seque, vamos. Zé voltou com roupas limpinhas, e aceitou a xícara

de café. Tomou aos golinhos calado, pensativo. — Coitada da patroa. 0 titilar da xícara era de quem a segurava com mãos

tremulas e a voz que sobressaia ao ruido da chuva que continuava sem cessar, também era de quem estava he­sitante, tímido, nervoso.

— Coitada porque? — Porque se a gente não souber o que ela viu, tal­

vez morra. O médico quer saber. Assim ele dá um jeito e ela fica boa logo.

De soslaio Lourdes via Zé torcer as mãos; e disse rápido.

— Sabe Lourdes. Eu estava tendo relações sexuais com a filha do homem que corta cana. Aí ouvimos um grito. Eu corri procurando e vi a patroa caída.

O sorriso dos lábios da empregada era seco e bem esticado.

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— Ah! então o médico tinha razão! —- Razão no que? — Disse que talvez fosse histerismo. — Que é isso?

Para Lourdes, histerismo, não era doença nervosa que se manifesta por convulsões espasmódicas. Era.

— Falta de homem. Zé sentiu um baque no coração, e o pênis estufou

com uma força dolorida. Virou-se envegonhado. Mas Lourdes notou e jogando um tchau Zé. Ia saindo quando o negro a segurou pelo braço.

— Olha lá o que vai contar Lourdes, não quero per­der meu emprego.

— Que bobagem. — Lourdes, fez uma cruz com o indicador sobre os lábios. — Juro que não conto nada.

— E como é que o médico vai saber o que ela viu? — Pode ficar sossegado, que isso não a assustou e

nem vai matá-la. Não vou contar nada para o médico. — Venha almoçar. Aprove i t e que estou de guarda-chuva.

X X X

A chuva passou pelas treze horas, e um sol fraco saiu de trás das nuvens. Ventava um pouco quando Cris, quis dar um passeio.

— Vou com você Cris. O médico era jovem e cheio de vida. Seria uma boa

companhia. E os dois saíram para o verde molhado. — Ê engraçado como a gente muda com o tempo,

observou o doutor. Em regra as pessoas ficam mais ale­gres com o amarelo do sol. Chuva nos envolve de tédio, preguiça e tristeza. Você está se sentindo mais alegre não está Cristina?

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Cris ensaiou um sorriso.

— Quem não fica mais feliz com o sol doutor? — Tem muita gente Cris, que mesmo estando o

Universo vestido, de ouro se embutem no descontenta­mento. Tem criaturas que destroem até perfume das flo­res. Você está sentindo esse suave aroma de jasmim?

— Não. — Está vendo Cris. Tenho ou não tenho razão. Aqui

fora, olhando para todos os lados a gente, fica extasiado ante essa maravilhosa natureza e sente a grande alegria de viver. O ar está impregnado de mil perfumes de flo­res. Olhe ali. Olhe Cris, como zunem e brilham os inse­tos? Você nem sabe para qual, deve olhar. São como jóias rebrilhando a luz de milhares de refletores, verdes, azuis, amarelas, rubras. Levantou o rosto para o céu azul e branco e parou estático. Deus meu! Que variedade de pássaros.

E os pássaros chilreando se reviravam no aroma perfumado em vôos baixos e curtos sacudindo as asas coloridas.

O médico ia falando. Falando de tudo o que via, ir­ritando ainda mais a jovem, que ia se tornando cada passo mais pálida. Cris estava sentindo que aquela volta com o doutor, só piorava o seu sistema nervoso. Tinha que encontrar um jeito de o repelir. Queria libertar-se dele e sobretudo, dela mesma ou melhor dos pensamen­tos que queimavam o seu cérebro e da comichão, que sentia entre as coxas, fazendo-a sentir aquela umidade morna que se espalha por toda a carne macia de seu sexo. Cris começou a sentir arrepios correrem pelo corpo todo, fazendo os poros levantar-se em minúsculas boli­nhas.

A excitação crescia, e ele não parava de falar. Ele era um homem. Cris virou-se e o encarou como homem pela primeira vez, mas o homem continuava poeta. Agora abai­xava-se no verde molhado e gritava para Cris.

— Veja, como essas florzinhas de cabinhos bem curtos se agarram umas as outras palpitantes ao castigo do vento.

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Cris voltou tristemente a cabeça para as flores e sentiu que não adiantaria nada se ensinuar. Ele estava por demais absorto nas coisas da natureza. Cris teve ím­petos de chegar bem perto dar-lhe um monte de ponta­pés e fazê-lo fucinhar naquele monte de flores. Aquela besta! Ela estava ardente e latejante e ele só via bestei­ras. Arrancou da cintura um macinho de flores que ele tinha lhe dado e ela enfiará no cinturão de couro e o atirou bem longe e como as pernas permitiram saiu cor­rendo se embrenhando na mata viva, úmida brilhante ali na sua frente. Encostou-se num tronco limboso e sentiu o sangue ferver quando o viu vir correndo em sua dire­ção. Odiou-o, e quando ele chegou bem perto, sentiu vontade de esbofeteá-lo, de escarrar-lhe na cara. Não po­dia perdoar-lhe de gostar de florzinhas, de arvorezinhas de passarinhos, de abelhinhas. Esses diminuitivos vira­vam-lhe o estômago. Enterrou as unhas na palma da mão quando viu que ele nem reparou que ela estava com raiva.

— Esta bem disposta hem, Cris? Teve bastante for­ças para correr até aqui. Eu cansei.

— Quero voltar, vamos. A voz de Cris, saiu seca e autoritária.

X X X

Logo cedo, o médico partiu recomendando a Cris que voltasse rapidamente para a cidade, pois a ociosi­dade não fazia lá muito bem para o seu rebelde tempe­ramento.

— Um mês na alta roda e todos esses males desaparecerão. Você terá de volta todas as reservas or­gânicas que o campo lhe roubou. Precisa de distrações, muitas distrações.

— Cris cerrou os dentes, enquanto ele falava. Pen­so mesmo que falarei com sua mãe para vir convencê-la já que não consegui. — Cris no final concordou com a vinda da mãe, para passar uns dias na fazenda.

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IX

Alta Classe

No dia seguinte, uma buzina cortou o silêncio do campo e um luxuoso carro veio serpenteando pela gran­de alameda freando escandalosamente, no pé da esca­daria de mármore Carrara, e dele saltou uma jovem senhora, vestindo um rico traje esporte.

Os cabelos curtos castanhos brilhantes e bem tra­tados, eram um adorno para o rosto cheio de pele acetinada onde reluziam olhos grandes e castanhos. Era uma mulher, que ninguém daria os cinqüenta anos bem vividos. Era a mãe de Cris.

Segurando a bolsa de um último modelo do mais fino couro, ela subiu sem demora a escada e caiu nos braços de Cris, que fazia correr a enorme porta de vidro.

— O que aconteceu, Cris? Há! como você está ma­gra! Está a sombra do que era uns meses atrás. Virgem Santíssima, que cor horrível. Até parece que você se lam-busou de terra. Que aspecto feio! Afastou-se para ver melhor. — Cris do céu, v o c ê está um esqueleto ambulan­te. Olhe essas calças, estão larguíssimas. Está sem um pingo de busto.

Santo Deus vamos, vamos. Vou levá-la para casa e consultaremos outro médico. — Cris se afundou na larga poltrona de couro branco, esticou os pés colocan­do-os em cima da mesinha redonda de cristal branco

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e olhando para a mãe respondeu com voz cansada. — Não preciso de médico, mamãe. São os nervos.

Ando numa depressão terrível. Você bem sabe qual é o meu problema. Já, uma porção de médicos consul­tados por nós disseram que não posso viver sozinha.

— Mas você pode se casar outra vez Cris. Há tan­ta gente desquitada, se casando por aí. Agora, não é aqui no meio do mato que você vai arranjar outro marido. Vamos, vou mandar os empregados arrumar as malas. Você não pode ficar mais nesse fundão de mundo. Que horrível ficar assim, isolada de tudo.

— Não exagere mamãe. Posso estar um pouco emagrecida e um tanto pálida, mas gosto de tudo isso aqui. Não pretendo voltar agora.

A mãe de Cris, tirou o casaquinho e ajeitou o laço da blusa de palha de seda toda em preguinha e bor­dados coloridos.

— Que blusa encantadora. Aposto que Carmem a trouxe da Grécia.

— Que nada. Comprei na Itália. — Não sabia que você tinha viajado para a Europa. — Só fui passar um fim de semana, e fazer umas

comprinhas. E por falar em comprinhas, trouxe para você, um maravilhoso vestido de organdi suíço, para a noite.

— Organdi?! É a última moda. — Que cor? — Preto, todo bordado em prata. — Mas já vesti um longo preto na última festa que

compareci. Você não lembra mamãe? Vesti um preto em (point d'esprit).

— Não me lembro. — Ora mamãe. Aquele com que dancei com o rei

do estanho. O Antenor Patino. — Mas aquele era cetim de seda pura, em "point

d'esprit", de cristal.

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— Dá no mesmo né, mamãe. — Se você não quiser o preto, pode ficar com um

modelo que é uma verdadeira jóia. — Hilda bate na testa. Deixe-me ver se recordo o nome do costureiro. Ba-a-a-a não me recordo mesmo. Mas você, vai adorar. Combina perfeitamente, com a sua morenice é amarelinho claro, com aplicações de rosinhas coloridas, bordadas com pérolas e fios de ouro.

— De que tecido? — Também de organdi suíço. Como lhe disse, a

Europa toda está se vestindo de organdi. É uma verda­deira maravilha. Sabe Cris. — Hilda puxou uma banque­ta e quase encostada na filha falava rindo e jogando um largo riso para todos os lados.

Era também mulher da alta-classe brasileira — Também sempre aparecia em colunas de jornaes e sua foto era estampada nas grandes revistas.

— Comprei nove vestidos. Seu pai, quase morreu de um colapso cardíaco, quando lhe apresentei a conta. 0 mais barato ficou em vinte milhões. O primeiro que usei foi um crepe de seda branco entremeado de labi­rinto. Foi um sucesso. Usei-o para participar do júri que escolheu Miss Minas Gerais. Sabe Cris, fui no seu lugar. A diretoria do concurso escolheu, algumas das mulheres da alta de Belo Horizonte. Você precisava ver. As outras quase morreram de inveja.

— E quem venceu? — Foi. Eleonora. Uma jovem muito bonita.

Cris, tirou os pés de cinja da mesinha. Foi até a estante apanhou o maço de cigarros tirando- um e ofe­recendo outro a mãe.

Hilda fumava carregando mais nos gestos sofisti­cados e exalando a tênue fumaça para o ar continuou.

— Sabe qual é a última fofoca européia? 0 olhar de Cris virou-se interrogativamente. — A Jaqueline Onassis, aparece nua em uma re­

vista erótica italiana. Cris sorriu. Um sorriso largo de dentes brancos.

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— Jura? — Claro. Juro por Deus. — Não me diga. Essa foi das melhores. Isso é para

essa gente ignorante ver, que o nu é natural. — Mas andar nua assim, com gente batendo fotos,

para o mundo ver. Não foi bem aceito. — Aposto que foi um ( 1 ) paparazzi, que bateu as

fotos. — Que nada, dizem que foi um dos que substi­

tuem o Onassis, naquelas horas. O sorriso de Cristina desapareceu e nos seus ouvi­

dos as palavras — naquelas horas, começaram a mar­telar de leve. — Pobre Jaqueline, talvez estivesse passan­do pelo fogo do desejo, como ela, e só arranjava homens, que vinham, esquentavam, subiam em cima, davam duas bombadinhas, gosava vestiam as calças e soltando enormes baforadas se diziam, machões e outras coisas mais.

Hilda sem nada perceber continuou. — Jaqueline tem um belo corpo para a idade. Nem

celulites nem pelancas. Alguns a acham um tanto ma­gra — De fato, nas fotos aparecem, seios pequenos, per­nas tortas, coxas com aquele vãozinho no meio. Enfim par mim não é lá grande coisa. Mas o que interessa é que essas polêmicas fotos é o assunto do mundo in­teiro e a mulher que estava meio escondida lá na sua ilha Skorpios, está aparecendo mais que o sol.

Hilda amassou o cigarro contra a prata fria do cinzeiro e sentindo que a filha estava deveras interessa­da pelo assunto continuou.

Segundo lí na revista "Playmen'', onde saíram suas fotos, Jaqueline é narcisista. Quiz aparecer nua, para que todos, ou melhor, testou o corpo operado de uma plástica, feita pelo nosso cirurgião brasileiro, em Nova Iorque.

— Quem a operou mamãe?

Ivo Pitangui.

( 1 . Fotógrafo italiano que persegue gente famosa).

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E o dia passou com as duas mulheres da nossa alta-sociedade discutindo coisas para elas importantís­simas.

X X X

A chuva continuou por mais dois dias e Hilda não aguentando aquele desterro, como dizia, voltou para a cidade, acreditando que com mais alguns copos de leite puro e ar sem poluição Cris logo voltaria as formas an­tigas.

Logo que a mãe partiu, Cris vestiu um casaco de couro preto que lhe cobria os joelhos, calçou botas, enfiou na cabeça um chapéu de abas largas, também de couro e saiu para a imensidão do verde, sem se impor­tar com o frio e com a garoa fina que caia sem cessar. Andou alguns passos e farejou no ar úmido o cheiro do macho preto.

Sim, Cris iria para o que a carne pedia. Nestes dois dias de recolhimento uma emoção fria de revolta nas­cera lá dentro dela. Qual o sacrifício de todo* aquele desejo irrealizado? Qual a utilidade de sentir a vagina eletrificar-se o dia inteiro? Para que ficar curtindo aque­le anseio vago, a aquela sede de sensações que a tor­turavam fazendo-a quase todas as noites se sacudir na força de um ataque de esterismo. Ainda na noite an­terior sentiu uma dor atrós nas entranhas, fazendo-a revirar-se sem parar amarfanhando a branca e macia cambraia da roupa de cama e mordendo a fronha bor­dada do travesseiro, em gemidos fracos, sentindo uma baba pegajosa na boca do sexo que a fazia contrair-se em espasmódicos, fazendo-a amanhecer toda fraca e sentindo todo o corpo dolorido com aspecto de velha de cem anos.

Ia deixar de lado o espírito friamente vaidoso de alta classe.

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Ia cair nos braços do negro. O negro que todos esses dias cresceu em sua imaginação. Era só lembrar-se daquele músculo negro enorme, reto que um frêmito corria por todo o seu corpo. Apressou os passos em direção ao quarto do jovem negro, e sem se importar com nada, empurrou a porta e entrou.

Lourdes a olhou assustada. — O que está fazendo aqui? Cris se tornou pálida

e trêmula. Sua voz saiu seca e autoritária. — Estou arrumando a cama do Zé. — Mas a fazenda tem empregados para isso. — Eu sei dona Cristina. Mas eu tenho muita pena

do Zé. As roupas dele estão tão encardidas. Os olhos de Cris, pousaram na cama de solteiro,

onde dois lençóis amarelados estavam sendo esticados pela empregada.

Depois seus olhos fixaram na moça branca gorda, com seios exuberantes e aparência sadia.

Teria Zé. .. Não. Lourdes era de um comportamen­to exemplar. Tinha bom caráter e era totalmente con­trária ao sistema de amor livre.

— Vou falar com o capataz sobre roupas. Você não precisa mais se incomodar com isso. Onde está o Zé?

— Foi para o bosque.

X X X Cris saiu em direção à mata, e quando esta surgiu

em sua frente como um gigante colorido de milhares de matises de verde, molhado pelo chuvisco, impertinen­te, Cris sorriu num sorriso, onde se pintava algo miste­rioso. Começou a arrancar as cascas que se desprendiam dos árvores, foi andando sem ter noção exata de que caminho deveria seguir. Foi andando. Somente andando. Avistou o lago de águas, bem limpinhas rodeado de ma­to mais baixo. De repente ouviu um farfalhar de folhas secas e risadas baixinhas. O coração de Cris ficou bem pequeno, espremido mesmo.

Seria Zé? E se fosse? Estaria com ciúmes? Era Zé. Estava acompanhado do porquinho que

Cris quisera matar. Zé ria vendo o animalzinho andar pela primeira

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vez sem a faixa que a dias ele lhe envolvera a patinha partida.

Cris respirou fundo. Continuou escondida atrás da moita grossa de folhas selvagens enquanto Zé conver­sava com o porco.

— Agora fique aí quietinho que vou tomar um banho neste lago geladinho. . '

O ruído do negro se despindo e o baque de seu corpo nas águas. Depois ele nadando de lá para cá, e depois saindo, com os filetes de água a escorrer pela pele lustrosa, foi deitar-se de costas no chão arenoso perto do porquinho. Esticou as pernas e jogou os bra­ços abertos para a garoa fria que os cobriu de mil par­tículas prateadas, deixando toda a mostra o penis mor­to, enroladinho num monte de carnes arroxeadas.

Cris, quase desmaiou quando lembrou que estava ali, como uma criminosa, espreitando aquilo, um mon-tauro roxo. Retorceu os lábios em seco. Depois começou a sentir a coisa que doia dentro dela fazendo-a arre­piar-se toda, e a carne latejar. Era a carne que gritava, esbravejava, uivada pela carne. Sentindo uma zonzeira nos ouvidos, ergueu-se e, inconscientemente, louca, afas­tou-se da moita e devagarinho foi se aproximando do preto.

A mata toda se cobria de um profundo silêncio quebrado apenas pelo ressonar tranqüilo do Zé. Cris se aproximou. Caiu de joelhos sentando-se nos calca­nhares, e olhou para o rosto do negro. Olhos fechados, boca meio aberta mostrando os dentes podres. Cris apertou os lábios. Zé engoliu um pouco da saliva grossa que começava a escorrer pelos cantos dos lábios gordos.

Cris jogou o chapéu para bem longe. Ele foi ro­dopiando no ar, em voltas requebradas, e caiu num ruí­do surdo no meio *da mata. O porquinho se assustou e varou o mato num chiado triste. Zé mastigou o sono. Cris tirou devagarinho o casaco e estendeu-o perto do preto. Depois as botas. Zé sacudiu um pouco a cabeça Cris, parou no primeiro botão da blusa. Zé gemeu. Um gemido curto e abafado. Cris arrancou a blusa com os

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botões saltando ao longe. Zé dormia. Cris levantou-se puxou a calça comprida junto com a calcinha de seda bordada com babadinhos de renda francesa. Nua, pa­recia mais alta em confronto com o mato baixinho que quase os rodeavam. Zé abriu os olhos. Zé fechou oá olhos. Zé arregalou os olhos. Zé, apertou os olhos. Zé ficou gelado, frio, estático, duro. Zé queria chorar. Os olhos esbugalhados do Zé. Zé que viveu do lixo da grande São Paulo, o Zé que saiu da podridão do sub­mundo das prostitutas, dos caftes, dos pederastas, dos maconheiros, dos traficantes, dos alcoólatras, dos ma­níacos, dos sádicos, e do horror do Recolhimento de Me­nores. O Zé que conseguiu sair limpo dessa enxurrada de animais apodrecidos, devorados pelos purulentos ver­mes, começava agora a ser envolvido pelas patas visco­sas da grande aranha negra, peluda nojenta — A alta sociedade.

— Alô Zé. Olhe para mim. Zé nem teve coragem de abrir os olhos. — Olhe para mim Zé. A voz era macia, calma, ave­

ludada, meiga.

Devagarinho as pestanas curtas e meio enroladi-nhas, foram se abrindo e as bolas negras e brilhantes viram aquela mulher alta, magra, com os seios murchos caídos, com a lufada de vento frio que perpassou por eles e entrou no bosque sacudindo levemente as gran­des folhas, seguras pelos talos verdes. Verdes de mil jeitos. Zé nem reparou nas coxas sem carnes e nas ná­degas chupadas. Seus olhos não desgrudavam daquele maravilhoso rosto onde sobressaiam os olhos luminosos de pantera acuada na escuridão da floresta. A cabelei­ra castanha caindo pelos ombros estreitos estava ves­tida de mil salpicos cristalinos da garoa que não parava de deslizar pelos olhos do céu, como lágrimas de Deusas que pingavam pequeninas para encobrir a grande tra­gédia que sentiam no ar. Cris coberta de partículas de prata dessas lágrimas foi envergando os joelhos e quando sentiu a terra úmida contra eles esticou a mão branca, fina, de dedos longos, e unhas bem tratadas e pousou no peito do negro, que num sobressalto levan-

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tou-se, quebrando o silêncio com as violentas pulsações de seu coração.

O sorriso de Cris era de pérolas iguaizinhos. — Não fique assustado Zé. A mão desceu, se enfil-

trou nos pelos emaranhados que volteavam aquele ner­vo morto roxo, feio, que numa estremeção, levantou-se vivo, ereto, empinado para a frente chamando aos gri­tos latejantes, aquela cova úmida, macia escondida en­tre as penas cetinosas da fêmea ali à sua frente. Fêmea que o segurava alisando-o, de leve, muito leve, nas mãos quentes.

Zé não se mexia. Sentia um pavor monstruoso cres­cer dentro dele. Esse pavor que os fervorosos sentiam diante das coisas celestiais, quando cometiam algum pecado muito grave.

Para ele, encostar, nem se fosse com a ponta dos dedos, na sua patroa era um sacrilégio. Mas não estaria sonhando? Seria mesmo a jovem milionária, que estava ali com o seu pênis, nas mãos numa fricção de endoide­cer até os cabelos? Zé, se torceu todo. O corpo triunfava nos desejos da carne mas o espírito chorava. Zé não queria o que estava acontecendo. Zé sabia que mulher assim, não era para ele. Mas as mãos continuavam e o cérebro dele se emaranhava na excitação, que fazia fu­gir o raciocínio. Uma mão de Zé, foi se esticando até encostar nos cabelos úmidos de Cris. Depois desceu len­tamente e fez uma paradinha no ombro para logo des­lizar pelas costas até a cintura. Cris virou-se encarando Zé. Ai segurou-lhe a cabeça com as duas mãos e tremen­do foi aproximando o seu rosto no rosto amedrontado do preto, aí colou a boca morna, ávida, espremendo os lábios grossos até sentir os dentes nos dentes. Zé perdeu as forças caindo para trás e arrastando Cris para cima dele. Ele queria empurrá-la, e foi levantando as mãos para isso, mas quando elas tocaram os seios pequenos de bicos arrebitados o macho estourou dentro dele las­civo e bestial. Zé agarrou o corpo da moça e fazendo-a

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ficar debaixo dele, foi cobrindo-a de beijos grudentos da baba pastosa que se formava abudante na sua boca de­vido aos inúmeros dentes estragados. Depois de percor­rer quase todo o corpo os lábios pararam nos lábios, e Cris bebeu-lhe a saliva retendo o corpo de Zé num abra­ço forte, enérgico, vigoroso, gritando, gemendo, se tor­cendo enquanto ele ansioso abria-lhe as pernas e com uma das mãos segurava o nervo duro, que com pincela­das curtas procurava a cavidade ardente e quando a en­controu, foi entrando devagar. Cris sentindo aquela coisa grossa e dura empurrar as suas carnes abriu bem as per­nas, levantando-as no ar para que ele entrasse inteiro. Zé entrou, e quando se sentiu engolido pela carne em fo­go foi saindo devagar, devagar para depois voltar em es­tocadas fortes desordenadas, furando, furando, cada vez mais violento quando ouvia os gemidos lascivos da fê­mea espremida debaixo dele, implorar para que não go­zasse.

E Zé não para, não cansa. Estoca, estoca remexendo o corpo para todos os lados. E dizendo com voz meiga, grossa e baixinha bem dentro do ouvido da patroa.

— Não vou gozar. Fique descansada. Só gozo na hora que a senhora mandar.

— Quero gozar com você. Me beije. Zé esqueceu que era Zé. Sentiu-se forte, macho, po­

tente e apertando a patroa nos braços deixou-se ficar lá dentro virando o pênis, machucando, ferindo, sangrando, rachando, as carnes de Cris, com seu membro enorme e todo poderoso e Cris, então gritou.

— Goze Zé. E as carnes tremeram se sacudiram, tre­mularam, gritaram e se esticaram ao mesmo tempo e ficaram paradas, quietas, úmidas, carnes nas carnes.

Depois Zé apoiou as duas mãos de encontro a terra molhada e pondo as pontas dos pés no chão, foi levan­tando as nádegas, fazendo o pênis sair murcho, roxo e enrugado.

Se a pele preta pudesse se vestir de outra cor, Cris veria que Zé estava pálido com o rosto sem expressão, talvez arrependido de ter corrido assim sem mais nada, sem ao menos fingir que não a queria.

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E se ela o tivesse experimentado? Tivesse se entre­gado a ele, só pra ver onde chegava o respeito de um empregado? Era isso mesmo. Ela o vira tendo relações com a negrinha, e achou um desaforo o seu empregado desrespeitar a casa onde era recebido com carinho. E agora? Agora ela o mandaria embora. Teria que procurar outro emprego. E as referências? Que referências, ela poderia lhe dar? Zé com receio virou a cabeça e olhou para a patroa caída, sorrindo para ele sem se importar com a garoa que já não era mais garoa, mas uma chuva miúda que entrava pela boca meio aberta de Cris, sem matar o riso que começou a acalmar o coração de Zé. E quando ele sentiu a sua mão, caminhando suavemente, apalpando-o por todos os lados, esqueceu novamente que era só um Zé.

E sabendo muito bem que ela era a patroa, era a mulher que (como Lourdes lhe contara), na vida social atraía, mais ibope, causando muita inveja para as menos afortunadas. Ele sabia que na vida daquela mulher ma­gra com a pele terna que estava passando as mãos pelos escrotos, havia muita riqueza, muito luxo, muitos amores importantes. Até um príncipe Zé, caiu de amores por ela. A voz de Lourdes se desfazendo no ar.

Ele sabia de tudo isso, mas com o mesmo ímpeto irresistível do macho no cio, Zé caiu por cima da patroa, funcionhou por entre a vasta cabeleira castanha, beijan-do-lhe a orelha cor-de-rosa, de pele bem fininha, e depois seus lábios grossos com a mesma baba pastosa íoram beijando em beijos melados pulando da face à testa, da testa o pescoço e do pescoço aos cabelos, dos cabelos aos ouvidos e dos ouvidos à boca. Aí Zé enfiou toda a lín­gua e fazendo-a se retorcer junto da língua de Cris, en­terrou-lhe nas pernas já abertas o faulo, esfomeado, que entrava e saia, num ritmo calmo sossegado tranqüilo. Não podia movimentar-se, mais aceleradamente porque Cris se agarrava a ele como um polvo. Os braços dela lhe volteavam as costas apertando-o fortemente, e as pernas se cruzavam em suas nádegas.

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Cris sentia lá dentro de seu ventre aquela coisa grossa, comprida, pulando, latejando, fazendo-a experi­mentar toda a nova beleza da ressuscitação do amor. Em cada entrada, em cada estocada, Cris sentia, em cada poro de seu corpo o estremecimento do sacudir das carnes que famintas se abriam se oferecendo sem se importarem quem as comia. E enquanto ele furava, furava, Cris começou a se movimentar em requebros diabólicos, chupando a língua do macho que estava den­tro de sua boca, e como um néctar divino engoliu toda a baba viscosa que se formava abundante e quente. As pernas de Cris foram amolecendo, e escorregando das nádegas murchas do preto que se vendo livre, se afun­dou mais e mais até ouvir a voz trêmula que lhe sus­surrava — Goze Zé. E como se tivessem tirado a tampa de um vulcão o esperma esguichou fervente, como que­rendo abafar os urros da fêmea que esperneava debaixo dele. Depois amoleceram e permaneceram relaxados, quietos e passivos, largados no meio da mata, que go­tejava sem parar as lágrimas de dor e de tristeza.

Cris puxou o casaco e sentou-se em cima dele disse sorrindo.

— Acabamos juntos as duas vezes. Zé com os olhos fixos nas copas das altas árvores

nada respondeu. Nem se virou. Também seus dezessete anos não sabiam que existia esse problema.

— Zé? — Sim senhora. — Você ouviu o que eu disse? — Ouvi sim senhora. — Então. Você não ficou contente? — De que? — De termos gozado juntos . . . — Mas existe, quem não, n ã o . . . Goze juntos? — Claro bobo. Cris ria, atoa — Tem gente que

passa a vida toda tentando e nem consegue. O ar do rosto que se voltou para ela estava coberto

de ingenuidade.

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— Eu não sabia.

Cris compreendeu que com ele não poderia existir diálogos assim de coisas difíceis. Mas falar o que? O que se fala com uma pessoa que não era da alta classe?

— Vá procurar o meu chapéu Zé. Deve estar ali

Os dois ficaram calados por muito tempo, até que Cris, levantou-se, vestiu-se e olhando ao redor, disse, no meio do mato, naquela direção.

Zé ia pegar a calça.

— Não precisa se vestir Zé. Vá assim mesmo. Gosto de vê-lo nu.

Zé olhou-a nos olhos, mas virou-se rápido quando sentiu que aquele brilho de olhos de pantera, faziam seu pênis endurecer, estremecer num só repelão. Andou sentindo nas costas, nádegas, coxas, pernas e pés aque­le olhar que queimava, fazendo-o tropeçar nas próprias pernas. Apanhou o chapéu, virou-se e deu alguns passos, parando estático de olhos arregalados.

Cris estava nua, caminhando para ele.

Os olhos dos dois se cruzaram. Cris tinha visto o pênis duro do negro e mais uma vez, tudo se fundiu dentro dela gritando de desejo.

Tirou delicadamente o chapéu das mãos do preto e se ajoelhou na sua frente, esfregando o rosto macio no membro palpitante. Depois foi se levantando deva­gar, cingiu com os braços, se esfregou ao negro sen-tindo-o terrivelmente excitado abriu as pernas e disse.

— Eu quero.

Zé, se desprendeu e puxando-a pelo braço, fê-la en­costar-se numa árvore e segurando o membro, dobrou os joelhos e o fez se comprimir contra as carnes mo­les que se abriram, abocanhando numa só dentada o nervo longo com a boca saltando labaredas crepitan­tes. Cris sentiu-se colada com os pelos sedosos se ema-

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ranhando nos pelos encarapinhado e, que cresciam a-bundantes no baixo ventre do negro, que neste momen­to perdendo o controle enterrava as unhas nas suas ná­degas, empurrando-a mais e mais contra a árvore, até sentir que la dentro dela tudo se derretia num calor abrazador, fazendo-o ganir com as pernas moles e os olhos se revirando nas órbitas, imensos e morteiros.

Depois a voz de Cris meio travada. • — Gozamos juntos novamente Zé. Frente a frente. Zé abaixou os olhos meio envergonhado e ficou ca­

lado. E, depois do desejo satisfeito não existia nem um

assunto que pudessem discutir. Cris vestiu-se rapida­mente e olhando para Zé, que ficara de pé abotoando as calças, disse alegre.

— Tchau, Zé. Caminhou tranqüila. Zé parou no último botão sentindo as mãos pesa­

das. Cris olhou para trás e vendo-o assim parado em completa imobilidade experimentou um certo mal es­tar, ele lhe era completamente estranho. Jurou que não o veria mais. Mandaria alguém lhe dar algum di­nheiro e que fosse para os quintos dos infernos. Ca­minhou apressada, mais apressada. Mas que interes­sante, ela se sentia leve alegre e cheia de vida. Entrou no grande salão cheio de móveis bem antigos, coloca­dos como a formar quatro salas de visitas, jogou o chapéu no ar. Arrancou o casaco do corpo, sentou, le­vantou a perna e abaixou a cabeça para tirar a bota, e ai sentiu o cheiro de macho exalando do esperma que lhe escorriam por entre as coxas, então Cris se levantou pos um disco na vitrola virou todo o botão para o som bem alto penetrar pelo salão, pela casa, pelos campos para que ele cantasse a toda, a imensidão do universo que ela encontrara um homem, um varão, um macho. Cris com os braços abertos, rodopiava pela sala canta­rolando, juntamente com a voz do disco.

Depois chamou os empregados e mandou que lhe servissem o jantar.

Cida olhou para Lourdes sem compreender.

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— O que será que aconteceu com a patroa?! Lourdes ficou pensativa, calada. Cida voltou a falar enquanto arrumava o jantar na

bandeja.

— Santa Bárbara. Nunca vi a patroa tão contente, olhe que trabalho com ela há cinco anos.

Mas Lourdes não a ouvia, sentia-se tonta, atordoa­da, via na sua frente um ponto luminoso que se alar­gava, alargava, manchado com duas pequenas figuras que foram crescendo. Ai ela viu uma mulher branca nua com os cabelos esparramados ao vento, agarrada a um preto que estava deitado nu por cima dela. Èra a patroa e Zé.

Lourdes tinha seguido Zé e presenciara tudo. — Você escutou Lourdes? — Escutei. — O que você acha? — Que passarinho a patroa viu para estar assim

tão contente. Cantando, dançando, pulando. Poxa, queria que ela fosse sempre assim.

X X X

Cris devorou toda a comida, ouvindo música bem alta. Depois se trancou no quarto, abriu a larga jane­la e respirando o ar molhado da noite quase fechada, negra e escura, deixou-se ficar ouvindo o trinar dos pássaros e as latidos dos cães ao longe. Sem fechar a janela, deitou-se. Olhou para o vidrinho de calmante bem ali a sua frente, com os pequenos comprimidos rebrilhando à luz da lâmpada que pendia de um fio no meio do teto e sorriu. Levantou-se, pegou o vidrinho e o atirou pelo negro da noite. Depois caiu na maciez do colchão de penas e só acordou com o sol bem alto. Pulou rápida da cama abriu a porta e com o neglige esvoassando para todos os lados, correu gritando pelos empregados.

— Que lindo dia — exclamou aproximando-se da porta e saindo para o terraço coberto de vasos com

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plantas coloridas. Um céu bem firme com um belo sol. Abriu os braços, jogando a cabeça para trás.

— Onde está a Cida? — Foi no curral buscar leite. — Ótimo. Apronte logo o meu café e mande en-

silhar um cavalo. Vou dar uma volta pela fazenda.

oOo

O cavalo galopando era uma mancha negra no azul, amarelo e verde do mundo. Cris galopou a ma­nhã toda, voltando alegre, corada, perguntando pelo al­moço.

Mandou servir. Bateu palmas rindo atoa. — Cuscuz, frango, farofa, arroz, salada, pasteis . .. — Oba, que é isso, temos cuscuz. — Chega, chega Cida. Você é a melhor cozinheira

do mundo.

Cris ria beliscando o cuscuz e disse para as empre­gadas:

— Estou louca por um papo. Senta gente. Senta.

Cris comia sem parar de falar servindo ela mesma as empregadas.

Depois foi para o terraço, esticou-se na rede. Mas não parou um minuto ali. Levantou-se e correu para o ar mormacento. Uma coisa picava dentro dela. Ela ia resolver agora. Ia mandar Zé embora. A saúde já entrara em suas carnes novamente. Era falta de sexo. Tinha-o tido muito no dia anterior até chegar a exaus­tão. Agora era só pensar em fazer longos passeios a cavalo, longas excursões a pé, beber leite tirado na hora, meio morno, com conhaque, comer com apetite todas as frutas que existiam na fazenda. Sim ia man-> dar Zé embora. A lembrança de Zé a envergonhava. Ter de encontrar-se com ele sempre nos passeios que fazia. Vê-lo ir à casa grande para almoçar ou jantar. Vê-lo no terreiro conversando com os empregados. . . Sim toda aquela imagem negra tinha que zular dali. E para isso a corrida de Cris se tornava mais apressada, mais violenta, deixando saltar ao vento os cabelos bri-

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lhantes e bem tratados. Ó quarto de Zé estava vazio. Os olhos de Cris percorriam tudo. Nada.

Andou pelo cafezal, pelo laranjal, pelo lago, pelas cocheiras. Nada.

Silêncio completo. O pessoal da fazenda parecia ter se evaporado.

Cris até se esqueceu que ao meio dia os colonos se enfiavam em suas casas para o descanso após o al­moço. Zé devia estar almoçando lá na casa grande. Primeiro iria beber um pouco da água clarinha lá da fonte", que rumorejava no meio do bosque. Seguiu pe­lo trilho, ladeado de árvores bem altas, ouvindo o tri­nar sonoro dos pássaros e pisando nos clarões que o sol deixava passar por entre a ramaria e se grudavam nas camadas de folhas secas que atapetavam o chão brilhante de uma telha fincada no barranco musguen-to. O líquido formando um pequeno lago, que descia num filete encosta abaixo. Cris passou a mão pelo pes­coço, que estava coberto de suor.

Lá estava bem fresquinho. Cris gostava muito da­quele recanto da mata. Era uma clareira meio grande, coberta de grama e salpicada de touceiras de copo-de-leite com o fio de água que vinha da fonte setrpentean-do por todo o gramado. Cris adorava ver a água an­dar devagarinho por aquele caminhinho estreito.

Ela bebeu a água com a mão em concha e depois foi sentar-se na grama bem perto do riozinho e com uma das mãos tapava as suas águas e ria jogando a cabeça para trás quando o pequeno filete de líquido cristalino transbordava e se espalhava por entre o ve­ludo do capim, se enroscando em suas pernas fazendo-a arrepiar-se em contato com a sua frialdade.

oOo

Neste momento, Zé estava no bosque perto do lago bem no lugar que tinha acontecido tudo. Ele não acredi­tava que tivera a patroa nos braços e que tinha sentido as suas carnes dentro das carnes quentes e palpitantes da patroa. Se Vitor estivesse vivo nem ia acreditar. Ele até ouviu a risada do menino caçoando.

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— Sabe gente, o Zé não fode as meninas que a gente arranja porque não são de alta sociedade.

Zé só quer mulher de classe. Imaginem, preto, pobre, feio, fedorento, sem ter onde cair morto, quer ser da alta. Quer mulher da alta.

Ba-a-a-a-a esse negro está louco. A gargalhada do pequeno Vitor se espalhou pela

floresta apertando o coração de Zé. Mas agora era ele que ria. Ele tinha a mulher com quem sempre sonha­ra. Rica, linda e da alta sociedade. Zé sabia que o que estava fundindo os seus "órgãos docemente lá por den­tro era uma coisa nova para ele. Era o amor.

Sim ele amava. O seu coração de dezessete anos transbordava de paixão, adoração pela amante.

Amante. Amante. Os joelhos de Zé até se dobravam a esse pensa­

mento. Tudo lá dentro dele ardia em vida. O amor! Sim. Zé sentia que o coração até então

fechado estava escancarado para receber o de Cristina Alves de Almeida. E quando o dela entrou Zé fechou-o rapidamente com os mais fortes ferrolhos do mundo. Ele seria só seu, somente seu.

Lutaria até se encharcar em sangue se para isso fosse preciso.

E pensando tudo isso Zé procurou o recanto on­de se sentira um Deus entrando na mulher amada. A-joelhou-se no chão e reerguendo o corpo magro e le­ve beijou a erva onde Cris tinha deitado.

Como era engraçado o amor. Transformava-o tor-nado-o diferente, fazendo-o alcançar o mais alto da masculinidade. Ser o dono.

Sim a força de ser o dono começou a crescer den­tro dele.

E Zé deixou-a crescer sem temor, livre. Como seu corpo que corria agora pela mata. livre, bem livre pois não encontrou nem ao menos um cipó impedindo a sua passagem. E Zé corria, corria em direção a fonte. Foi aí que ouviu o grito cheio de risos da mulher ama­da.

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Parou com o coração na garganta. Depois come­çou a dar uns passos como um autônomo e seus olhos se arregalaram. Cris estava lá. Tinha desabotoado a blusa deixando a mostra o seios pequenos e murchos cheios de respingos de água, pois Cristina para se sa­far do calor, molhava as mãos e agitando os dedos de encontro ao peito fazia com que os chuviscos de água cobrissem a pele amarelada de seu corço. Zé ficou de olhos pregados na patroa, hoje mais linda do que on­tem.

Zé tremia, fez menção de ir ao seu encontro, mas ficou com as pernas pregadas no mesmo lugar. Cris­tina o inibia. Longe dela a coragem crescia, se fazia grande, estourava. Mas perto assim; vendo-a quase nua brincando com a água Zé sentiu que a adoração em demazia se perdia por si mesma. Ele não tinha for­ças nem para levantar um braço. E Cris ria com os pés dentro da lago cheio de pedregulhos cor-de-rosa repuxando a saia curta para cinta deixando a mostra as coxas flácidas e magras. Abaixou-se fazendo apare­cer a calcinha rosada, começou a chapinhar as mãos fazendo a água pular para todos os lados, dando griti-nhos de prazer que entravam nos poros de, Zé, fazen­do seu f a l o esticar, duro, ereto e latejante.

E Cris levantou mais a roupa agora levando-a a dei­xar descobertas as nádegas até a cintura. Os olhos de Zé mais se arregalavam e o coração mais batia e a for­ça que o tinha deixado a poucos segundos voltou lé­pida, ardente, destruidora, gritante, empurrando-o pa­ra a fêmea que esperava ver derrubada pelo macho. E foi se aproximando. O f a l o crescia se enroscando e machucando-se na fazenda áspera da calça, fazendo-o desabotoar a braguilha de onde pulou elástico gritan­do a necessidade imperiosa da mulher.

Lentamente, silenciosamente Zé desceu a elevação que o levava à clareira e aproximou-se um pouco mais, ficando de pé atrás da moça que de súbito sobressal-tou-se e virando-se reteve um grito. E com a mão na boca ficou com os olhos fixos no negro que de pênis erguido a encarava, plantado bem na sua frente, arque­jante, com o rosto pingando suor.

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— Como? O que você está fazendo por aqui?! Ex­clamou ela admirada.

Mas Zé nem parecia ouvir. Nem ligou quando a voz de Cristina balançou os tímpanos de seus ouvidos, agora surdos.

— Foi bom ter vindo, eu o estava procurando pa­ra lhe dizer q u e . . .

Os braços de Zé volteavam a sua cintura e Cris estremeceu, quando sentiu aquela coisa dura compri­mir-se contra suas coxas.

— Dizer o que? A voz grossa do negro bem junto ao seu pescoço. — Dizer que vá e m b . . .

Os lábios do negro grossos, espumantes se agarra­vam no bico de um de seus seios e chupava sofre­gamente. Uma das mãos de Zé se infiltrou-se debaixo da saia da patroa e dilacerou-lhe a calcinha para logo em seguida procurarem no vão de suas pernas, o con­tato da carne aquosa e macia, e quando a encontrou infiltrou um dedo, devagarinho, ouvindo os gemidos da jovem que murmurava.

— Mais um dedo.

Dois dedos do negro, a amassar suas entranhas macias. Ela voltava a pedir, a implorar.

— Mais um dedo.

Você me mata. É assim que eu gosto.

E os três dedos do negro recomeçaram a movimen­tar-se revirando-se por todos os lados até alcançar o útero que massacrado começou a se derreter, fazendo Cris soltar gritos selvagens. Zé jogou brutalmente a mulher na água e como um animal pulou em cima dela com as órbitas dilatadas e a baba amontoada nos can­tos da boca. Abriu-lhe as pernas e se enfiou inteiro e começou os movimentos de vai-e-vem. Segurou as ná­degas de Cristina e as puxava para si violento, sádico, louco, fazendo a água se espalhar num murmúrio rit­mado pelo entra e sai do macho, em delírio. E Cris se

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contorcia, para a frente e para trás com os pelos do negro se emaranhando nos seus, martelando o seu clí-tores. E Cris antes de perder a consciência sentiu o es­perma do negro jorrar dentro dela, quente limoso. Ela voltou a si agarrada a ele.

— Gozamos juntos. Zé riu e ia sair de dentro dela, mas ela se agarrou

mais e mais. — Não, não saia. Quero sentir seu pênis crescer

dentro de mim. Vamos Zé. Eu quero que você me foda mais. Vamos meu puto. Meu macho. Meu negro. Meu homem. Vamos me foda. Me foda.

— Os ouvidos de Zé estalaram e de longe ouviu a voz de Vitor.

— Zé não quer que se fale foder. Ele quer que se fale relações sexuais. Diz que as pessoas da alta socie­dade não falam nomes feios e nem f o . . .

— Que foi Zé? Recomece. Eu quero. Vamos ver se você é homem mesmo.

Vamos deixe esse caralho se inchar na minha bo­ceta. Vamos.

Zé se arrancou de dentro da mulher e ficando de pé diante dela — exclamou.

— Por favor não fale assim. Cris ficou também de pé com água escorrendo pelo

corpo abaixo e perguntou.

— Assim como?

— Nomes feios. Ela sorriu.

— Ah! Você não gosta? — Não. Zé abaixou a cabeça.

— Se ouvir nomes feios fico sem vontade. — Tá bem. Então não falo mais. Cris começou a falar como ele, meia analfabeta,

misturando verbos, adjetivos, nomes, pronomes, enfim tudo. Aí ela foi para perto dele. — Mas coisas que gosto que você me faça, você vai gostar não é?

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— Que coisas?

— De sexo.

— Faço o que a senhora mandar.

— Então quero sentí-lo crescer lá dentro.

— Isso é fácil. É só começar. Zé olhou para os la­dos.

Deite-se aí e abra as pernas.

Cris obedeceu e, sorrindo, viu que o broto negro já estava pronto em riste para a luta. Veio chegando-se, e a cobriu delicadamente com seu corpo magro, fazendo que o enorme pênis a rachasse com a pele indo e vindo colada dentro de sua vagina. Ela se agarrava nele chu­pando o seu lábio inferior, sentindo os mesmos turbi­lhões das sensações que vibravam dentro de seu ser, ardentes, queimando para depois se tornarem aquele líquido esbranquiçado que se misturava nos jatos su­cessivos que esguichavam do faulo que a fundia sem piedade. E gritando debaixo dele em estranhas convul­sões, sentiu a vista perder-se e de longe muito longe pareciam virem os seus urros.

Por fim queda-se relaxada, com os braços jogados para os lados, inertes, arrepiados, sentindo o macho esmorecer dentro dela. Cris pensou em falar-lhe para recomeçar tudo. Quando ia abrir a boca sentiu que ele começava a se mexer e com medo que saisse de cima dela cruzou as pernas nas nádegas negras e com os braços apertou-o para junto de si, agarrando-o num delírio de enlouquecer.

Zé só conseguiu afastar um pouco a cabeça e a olhou bem nos olhos, que logo se cobriram de um mór­bido desejo fazendo que um calafrio passasse por to­dos os poros de seu corpo indo acordar o centro que não teve tempo nem de terminar a ejaculacão e já es­tremecia, recrescia, inchava, pulava, até encher todo o vago baboso que se esticava, se abria para ele, naquela demolição de todas as suas entranhas.

— A senhora quer gozar outra vez?

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Cristina não precisou responder. Qualquer um com­preenderia que aquela retraição, aquela gemeção só po­dia ser o desejo que numa chama pequenina crescia, se alargava formando uma enorme fogueira. E quando Zé sentiu-a levantar e abaixar as nádegas começou a dar estocadas, rápidas, afobadas e profundas. E naquelas punhaladas profundas que a golpeavam como num en­terrar de punhaes, Cris cedeu mais uma vez com todos os nervos se abrindo na palpitação do orgasmo que pa­recia a morte.

Depois da penetração do negro em suas carnes, Cris ficou uma porção de tempo calada sentindo que preci­sava falar alguma coisa, pois o negro parecia tão sem graça, acanhado, taciturno, meio triste. Já não era mais o macho vestido de sexo. Pensou, pensou e por fim fa­lou.

— Conte-me qualquer coisa a seu respeito Zé. Mas primeiro vista-se.

Cris vestiu a blusa e a saia. A calcinha rasgada jogou no meio do mato. Zé torcia as mãos nervoso, de cabeça baixa. E continuava calado.

— Bem, já que não quer falar, Vou andando. Tchau. — Dona Cristina! Como um grito de socorro o som

saiu roquenho da garganta do menino homem. Cris voltou-se. Mas não encontrou nada naqueles

olhos morteiros que a fixavam sem piscar. Sentia até um pouco de enfado e desconhecendo a mão que se es­pichava em direção a ela, exclamou.

— Que é! A voz era fria. A mão caiu, os olhos abaixaram. — Nada, não.

X X X Cris subiu a elevação seguindo a trilha rde terra

batida que a levaria a casa grande e Zé viu o mato de verdes serrar-se sobre ela.

Cris entrou na sala, colocou um disco na vitrola e rodopiando foi em direção ao banheiro.

Debaixo do chuveiro com água lhe invadindo a bo­ca de dentes perfeitos envoltos em cosquinhas de péro­la, ela gritou para a empregada trazer a toalha.

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Envolta no pano macio e felpudo foi para o quarto e cantando vestiu um roupão leve, só um roupão.

— Lourdes, Lourdes.

A empregada de pé na porta com os dedos das mãos trançados.

Quero um lanche bem forte. Doces, frutas, leite, manteiga. Enfim tudo o que Deus pôs na terra para ser comido. Olhe, sirva na beira da piscina e ligue a freqüência modulada. Quero que até as vacas ouçam música hoje. Estou me sentindo muito feliz.

A piscina aquela hora era manchada de inúmeras sombras marronsadas que caiam das grandes árvores que ficavam ao lado esquerdo do enorme casarão. O ar estava mais pesado, mais quente, mais abafado, cor­tado pelas abelhas que zuniam em montinhos aqui e ali. Cris começou a comer. Um beija-flor batendo as asinhas volteava uma touceira de gerânios vermelhos enfiando o bico comprido entre as pétalas trêmulas e minúsculas da flor, procurava alcançar a corola e quando a alcan­çou agitou mais e mais os membros azulados numa agi­tação febril para sugar o mel.

Cris encarava o pássaro com a boca aberta e uma balacha untada de manteiga parada no ár, segura pela sua mão inerte.

Quando sentiu as carnes espremidas de encontro a cadeira latejarem, apertou as virilhas e atirou a bo­lacha no passarinho quase acertando no caboclo que vinha pisando a grama bem verdinha.

— Boa tarde dona.

Cris, olhou-o sem o ver, ainda absorvida pela per­tinaz cena do bico do beija-flor entrando, no meio do gerânio.

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E lá no meio da neblina as formas foram se ajun­tando a apareceu um homem, que a olhava indeciso segurando o chapéu de palha com as duas mãos e re­petindo.

— Boa tarde dona. — O que você quer? Cris odiou-o pois ele a havia

tirado da paz que a cobria naquela tarde. Quanto tem­po não tivera tanta tranqüilidade. Aqueles momentos de solidão envoltas em satisfação sem nada ruim sentir era um milagre, algo que cairá do céu durante seus trinta anos de vida. E agora aquele intruso ali a mur­murar.

— Boa noite dona, boa noite dona. Teve vontade de lhe arremessar um prato na cabeça.

— Ê que a musga na cocheira está muito alta. — Que musga? — A musga. — Eu sei lá o que é musga. — É a musga dona, inguar a esta que nóis tamo

escutando. Parece um monte de lata veia se batendo.

— Ah! Cris apertou os lábios .. Ia responder que aquilo. Aquele som divino que se elevava ao ar era o belíssimo Concerto de Violões e Orquestra de Castelnuo-vo Tedesco. Lembrou-se da dupla juvenil que assistiu quando esteve em Salamanca, no castelo de uns nobres espanhóis que lhe ofereceram uma festa.

Ainda ela estava casada. O marido de casaca e ela com um longo de Dior. Foi uma noite de grande luxos, com os homens e mulheres desfilando suas grandes "toilletes" e suas caríssimas jóias e suas valiosas peles. Mas o que ficou mais gravado em seu subconciente na hora do concerto foi ver os delicados violões defronta­rem-se valentemente com o conjunto orquestral. Os pe­quenos v io lões . . .

— A senhora escutou dona?

— Escutei sim.

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— Pois é dona. O seu Dr. Gilberto disse que com musga as vacas dava mais leite, mas eu acho que não dá não. Elas estão lá mugindo.

— Está bem. Vou mandar desligar a freqüência da cocheira. Pode ir agora.

Cristina acabou de comer e se esticou em uma es­preguiçadeira de ferro branco com as fofas almofadas azues e adormeceu.

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Lourdes encontrou Zé, sentado na soleira do paiol, cortando mandioca e dando os pedacinhos ao porquinho que grunhia todo contente e seus olhos se levantaram para Lourdes fingindo surpresa, mas na realidade ele já tinha avistado quando ela havia apontado lá na por­teira.

— Te procurei para te dar o almoço e não te en­contrei.

Zé sorriu.

— Prá que tantos tes, Lourdes? — Tu sabes que quando estou nervosa só falo as­

sim. — E porque voce está nervosa. Posso saber? — Porque tu vai indo mal muito mal.

— Mal?!

— Mal sim Zé. E tu sabe muito bem. Zé quis desconversar.

— Olha Lourdes, como arrumei a palha. Amontoei o milho, lá naquele canto, veja. Zé falava, inventava as­suntos, fazia observações, de repente deixava escapar perguntas sem nexo, descabidas, deslocadas, atrapalha­va-se, confundia-se, dava estremeções súbitos como se estivesse sendo picado por mil alfinetes.

Lourdes o olhava fixamente.

Se Zé fosse branco, ela veria que ele empalidecia, avermelhava, esverdecia.

Zé estava morrendo por dentro. Imagine se Lourdes soubesse mesmo. Aí Cris não o veria mais. Só em pen­sar nisso, Zé ficava todo confuso. Pegou num monte de palha e a soltou logo, pois o seu contato áspero, irritava as suas mãos, que ainda guardavam a maciez das car­nes úmidas da patroa.

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— Não adianta fingir Zé. Eu sei que você e dona Cris andam no mato eu vi tudo Zé.

Um zumbido forte nos ouvidos e as batidas desor­denadas do seu coração um fraquejar nas pernas, e um engasgar de voz.

— Viu o que Lourdes? — Ora, Zé tenho até vergonha de falar. Nunca vi

tanta senvergonhice. Lourdes fez Zé sentar-se num monte de palha e

sentando-se na sua frente num caixote vazio, pôs a mão no seu magro joelho e continuou docemente.

— Zé, eu o quero como um filho. Gosto muito de você. Quando você foi pedir emprego eu fiz muita for­ça pra mãe de dona Cristina dar a vaga pra você. Sabe porque? Porque eu o achei muito magro, muito abati­do, tão maltratado. Você vai desculpar o que estou di­zendo, mas você parecia um morto de fome, um fra-gelado.

Zé riu sem graça. — Não exagere Lourdes. — Não estou exagerando. — Ora Lourdes, eu era na ocasião uma amostra

grátis da cidade que mais cresce no mundo. Você sabe de onde eu estava chegando, não sabe? Então eu vou te falar. Estava chegando de São Paulo. Você quer que eu te conte como vivi lá.

— Não desconverse Zé. O que eu quero mesmo falar é para você se afastar da patroa.

— Mas eu não estou encostado na patroa Lourdes. — Zé não me embaralhe. Estou com muita pena

de você.

— Pena porque? — Porque a dona Cris, está iludindo, mentindo,

pra você. Você acha que ela branca, linda rica, e da alta sociedade vai justamente se apaixonar por você, um, u m . . .

— Negro pobre sujo, maltratado, raquítico. — Desculpe Zé. Eu já estou trabalhando pra dona

Cristina um monte de tempo. Uns dez anos. É isso

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mesmo. Dez anos. Eu conheço muito bem ela Zé. Eu sei do que ela é capaz Zé.

Zé se mexeu na palha e perguntou. — Capaz de quê? — Sei lá. Só sei que ela já trocou de homens umas

mil vezes. Cada dia leva um pra dormir com ela. — Então Lourdes. Agora ela levou eu.

ciedade, do mundo dela. E ela judiou de todos eles. Tem um que ela tirou dos braços da mulher e dos filhos, fez ele cair apaixonado por ela e agora pisa nele. O coitado ficou até gago. Todas as vezes que ele chega no portão da mansão é barrado pelo porteiro. Você tem que ver o coitado chorar. É assim que ela age Zé. Você toma cuidado. Se esse doutor, homem forte, milionário, ela fez ele ficar gago, imagine o que vai fazer com você Coitado do seu Lucas eu gosto tanto dele.

— Seu Lucas?!! Zé arregalou os olhos. — Sim o seu Lucas. Um homem que era tão feliz

com a mulher e os filhos. O coração de Zé estava sufocado. — O seu Lucas que era patrão de meu pai? — Eu sei lá se ele era patrão de seu pai. Só sei que

o nome dele é Artamiro do Prado Assunção. Zé suspirou fundo. — É ele mesmo Lourdes. Meu pai gostava muito

dele. Ele ficou muito rico lá em São Paulo. Meu pai achava ele muito feliz. Meu pai disse que ele era alto, forte e bem careca.

— Era careca, mas para agradar a patroa foi no estrangeiro e fez implante de cabelos. Agora está bem cabeludo. Mas nem assim a patroa quer ele. Coitado, vive se arrastando como um réptil nos pés dela. E não é só isso. Ele manda pra ela um mundo de presentes. Jóias, perfumes, peles. Até um carro ele deu pra ela. Um carro novinho em folha. Pobre seu Lucas, ele seria até capaz de se atirar num poço, por causa da patroa. É por isso que eu aviso você Zé. Se afasta dela Ela não está apaixonada por você. Ela só quer fazer maldade.

— Digo homens Homens da so-

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— Você já não está mais tateando Lourdes. Te-te-te. Era chato ouvir. Quer dizer que agora você não es­tá mais nervosa?

Zé sorriu. — Eu ainda tô, Zé. Mas tenho fé em Nossa Senho­

ra da Aparecida que você não vai mais se encontrar com a patroa, para fazer aquilo Zé. Se eu estou lhe avisando é pro seu bem.

, — Eu sei Lourdes. — Olhe Zé. Eu sei de quem está precisando de um

rondante e ganha muito bem. Três, vezes mais do que você ganha com a patroa. Você quer trabalhar lá? E tem mais. Dorme no emprego. No fundo do parque des­ta mansão tem um quarto com banheiro em cima da garagem.

O outro rondante tinha direito até de usar o carro dos patrões, nos dias de folga. Ah! Ia me esquecendo. No quarto tem televisão e rádio-vitrola. Que tal Zé?

Zé já estava se animando. Sentia-se feliz, por ter uma pessoa, tão interessada nele. Nunca conhecera a mãe, que talvez fosse lhe dar os mesmos conselhos que Lourdes. Sim. Zé, sentia que a ternura de Lourdes era sincera, mulher de cinqüenta anos, já bem vividos po­dia estar com a razão.

— Está bem Lourdes. Eu vou para esse emprego que você falou aí. Mas como vou sair daqui?

— O capataz vai amanhã prá Belo Horizonte. Falo com ele. Ele leva você até a casa dos Vergueiros. Você vai adorar aquela gente. São uns santos. Você precisa pensar Zé que tem muita gente de coração duro neste mundo.

— Sei, sei Lurdes. Acho que você tem razão. Juro que me vou embora. Também acho que está tudo er­rado.

— Então amanhã às sete horas o Capataz passa lá no seu quarto para pegar você.

— Está bem Lourdes. Eu lhe agradeço muito. — Ora Zé. Zé sentiu um grande alivio quando viu Lourdes de

saparecer na porteira.

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Continuou por um largo espaço de tempo sentado no monte de palha a pensar.

Ele era pobre, preto e sem cultura. Mas era jovem e potente. Sabia que a patroa gostava muitíssimo de ter relações sexuais, com ele. Sabia que as relações entre eles não levaria a nada. Naquelas duas vezes que esti­veram junto, nunca imaginara por um segundo sequer que a patroa, pudesse estar apaixonada por ele. Ela era casada. Ou melhor, desquitada. Casada ou desquitada, era a mesma coisa. No Brasil não valia estar desquita­da. Entre ele não esperaria casar com e l a . . . mas, em suma porque não poderiam viver juntos? Zé sacudiu a cabeça. Estava ficando louco. Viver com ela.

— Imagine viver com ela. Lourdes tinha razão. É o que ela fizera com o seu Lucas. Seu Lucas, tão bom para o seu pai. Coitado. Já pensou. Seu Lucas chorando. Tão rico, tão cheio de dinheiro, da alta sociedade e cho­rando. Seu Lucas ajoelhado se arrastando aos pés de 1

Cristina. Credo. Pôxa nunca pensara que ela pudesse ser tão má. Mas seria má uma mulher que inspira tanta paixão? Ela poderia também se apaixonar por ele. Mui­tos pretos tinham inspirado paixões. Lembrou-se de Ger­mano, o Germano também era um preto horrível, com um beição que até parecia um quilo de carne pindurado e a Condessa Giovana, branca, riquíssima, jovem e boni­ta e além de tudo de sangue azul se apaixonou louca­mente por ele, abandonando tudo para se casarem. 0 Pelé. Sim, o Pelé. Mil brancas ricas e bonitas tinham se apaixonado por ele. Ou melhor, ainda inspirava pai­xão. O Toni Tornado. Quantas mulheres gostariam de se casar com ele? E demais, ele Zé, tinha só dezessete anos, ainda poderia ser alguém na vida. Ainda poderia ser bem importante. Se tivesse alguém para lhe dar a mão ele poderia ser um grande cientista. Lembrou-se das vezes que fugia do submundo para ir mexer no la­boratório de um médico lá da Av. Nova Cantareira. E se o que Cris sentisse por ele, não fosse apenas coisas do sexo? Fosse um pouco de afeição, um pouco de sim­patia, um pouco d e . . . Não, não. Amor não. Mas se as­sim fosse? E se Cris o quisesse por amante? Que deve-

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ria fazer? Pelo visto Cris, não tinha preconceitos raciais. Mas Lourdes dissera que ela era hipócrita, profunda­mente imoral. Zé se esticou na palha, bem no mancha­do de sol que vinha do retângulo da porta.

— Ter por amante um preto. Levá-lo a tira-colo na alta classe? Certo que não. A patroa não queria isso. Ele sabia que ela não o faria porque há milhares de anos que o negro é excluido da sociedade. Era perigoso, cho­car os amigos da elite. Mas, Cris poderia ir levantando-o devagar. Poderia puxar a corda e faze-lo subir pouco a pouco. Não fazê-lo logo, se defrontando, cara a cara com a alta sociedade.

Afundou a mão na palha, levantando para o ar um barulhinho desagradável. Ele amante de uma mulher da alta sociedade. Virou-se de bruços. Desvirou-se. Levan­tou-se de repente. Lourdes tinha razão. Era preciso que tudo terminasse. Ele não poderia alimentar nem uma ilusão. A patroa era muito mulher. Era bom entrar ne­la. Mas na mulatinha também era. Mas a mulatinha não era da alta-sociedade. E o que tinha? Ora ele ainda po­deria ser feliz. No novo emprego tinha televisão. Poxa ele nunca vira televisão por horas seguidas. Até hoje só tinha espiado. E tinha carro, ele iria aprender a diri­gir. Era isso "mesmo. Iria embora. Nunca mais queria ver a patroa. M a s . . . Súbito Zé estancou com o coração gelado. Ficou duro, parado sem poder se m o v e r . . . E o porquinho? Zé levantou devagar um pé, depois o outro sentindo uma tremenda força começar a nascer dentro dele, força que o fez correr como um doido em direção à casa grande, gritando por Lourdes. Queria levar com ele o porquinho. Atravessou o estenso tapete de grama­do verde, penetrou no bosque de pinheirinhos, encon­trou a cocheira que pulou se espremendo contra as va­cas para abrir caminho, depois as roseiras, os coquei-rinhos e a piscina.

Cristina meio sentada o olhava. — Que gritaria é essa Zé?

Os cabelos brilhantes como seda em desordem emolduravam o lindo rosto onde os olhos brilhantes

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como água se tornavam meios puxadinhos para cima, devido o jeito dela usar as sobrancelhas.

Zé reparava bem nas sobrancelhas. Pareciam s o -brancelhas... Zé ficou pensando, pensando. Sombran-celhas de que? Ah! Já se lembrava. Eram iguais as do diabo. Começavam bem cheias perto dos olhos e iam se afinando e subindo. Não. Não eram do, demônio . . . Era um olhar, um olhar de cobra. Semicerrado, fixo, pa­rado, luminoso, gélido, era mesmo de uma cobra. Zé se lembrava bem. Sim era o olhar de, uma serpente que ele fitava fascinado. Cris passou a língua curta, arrendon-dada, rosada pelos lábios carnudos que se tornavam úmidos, brilhantes, fazendo tudo la dentro do Zé se re­volucionar. Zé levou devagar a mão para poder conter o pênis que começou a levantar, levantar se retorcendo, latejando, pulando, se esticando, num chiar lastimoso por não encontrar a saída.

— Responda Zé. Zé duro, pregado, alisou o sexo que doía, esquenta­

va, fervia. — Venha cá Zé. Zé pensou em sair correndo. A voz de Lourdes no

ar. Cuidado Zé. Ela está fazendo de você um joguete.

Ela é da alta-sociedade Zé, não vai ligar prá você. Mas Zé não fugia, Zé avançava. — Mais perto Zé.

Olhos nos olhos. O cérebro de Zé ardia. Cris come­çou a mover devagar a mão branca, sedosa, que foi se esticando* até alcançar a do preto, que estava em cima da braguilha. Zé cambaleou como se estivesse agarrado, a uma descarga elétrica. Mas seus olhos não se despre­gavam do rosto da patroa que agora tinha as narinas dilatadas, frementes, sentindo o cheiro do macho. A mão de Zé foi caindo e a de Cris procurando soltar o nervo que em contrações doloridas gemia se debatendo às guinadas. Ela não teve paciência de desabotoá-lo e num puxão os botões saltaram na água esverdeada da pisci-ia. O sexo negro pulou, como que impulsionado por uma

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mola e ficou oscilando, levemente, para num instante de­pois, se espreguiçar, e quedar, duro reto, altivo e orgu­lhoso, cônscio de sua superioridade a espera da fêmea esfomeada que fremia em sua frente. Zé se sentia dono. Zé se sentia da sociedade. Zé esquecera do porquinho, do emprego com quarto, só pra ele, com televisão. Tam­bém não queria aprender a guiar. Era tão perigoso. Ele poderia dar uma trombada, ai teria polícia, justiça. Era tão chato. Ele já fora testemunha de uma moça que entrara sem querer numa preferencial, porque um car­ro estacionado a sua direita tapara a sua visão. E todos achavam-na culpada. Não tinha importância matar na preferencial. Poderia se correr a duzentos. Mas era pre­ferencial. Não, Zé não queria mais ser motorista, nem amador nem profissional. Ele queria a patroa. Lourdes tinha inveja da patroa, só porque ela era rica, bonita e da alta classe.

Cristina encostou o rosto, naquela lança negra, e o cheiro do macho que começou a penetrar por toda ela, era um veneno para o seu organismo. Sentiu-se de novo presa de forte desejo. Desencostou rapidamente o rosto e voltou a se deitar na espreguiçadeira, fazendo com que o leve roupão se abrisse mostrando todo o corpo magro onde os seios caídos para os lados devam uma nota tris­te, de carnes sem dono. Carnes sem dono. Zé tremeu. Ele agora era o dono. Zé se lembrou dos meninos do submundo paulista.

— Mulher magra é mais melhor Zé, entra tudo. Zé estendeu a mão para a mão que se esticava e

sentiu um violento puxão, que o fez cair em cima dela, como ela desejava.

Este continuou parado uns minutos até que ela falou bem dentro de seu ouvido.

— Faça de roupa mesmo Zé, não aquento mais. Zé se mexeu. Cristina levantou as pernas e apoiou uma num braço da espreguiçadeira direita e a outra no bra­ço da espriguiçadeira esquerda. E Zé enfiou tudo de um só arrancão, sem se importar com o berro da pa­troa. Zé era o dono de tudo, enfiava, tirava, enfiava, ti­rava, levantando e abaixando as nádegas, cobertas com

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as calças de brim encardida com a barra toda enlamea­da.

— Mais, mais Zé. Deixe-o parado lá dentro um pou­quinho. Agora faça-o girar como se você estivesse me­xendo uma panela com pulenta. Assim Zé. Zé meu Zé. Reme mais. Agite Zé. Pule em cima de mim Zé. Mais. mais Zé. Me machuque Zé. A calça suja subia e descia rápida, veloz, ligeira, como a música que se aleva ao espaço, encontrando lá em cima o eco dos gritos de Cristina.

— Empurre, empurre mais meu negro filho da pu­ta. Despedaça-me vamos Zé. Você tem o maior caralho do mundo, por isso me foda, foda, f o . . .

— Acabamos juntos, hem Zé. Cris esticou as pernas. Zé sorriu se levantando e apertando os joelhos com

as mãos. — Ê mas a posição tava de amargar. — Nem tanto. Olhe agora tiro o roupão, faço um

bolo assim e coloco-o debaixo de minhas nádegas. Está vendo?

— Zé olhou para aquele monte de cabelos úmidos de esperma. Ele tinha acabado de sair do meio deles e eles já se arreganhavam outra vez.

— Venha Zé. As duas mãos estendidas. — Posso tirar as calças? — Não quero esperar. — Mas ainda. . . — Eu sei. Venha até aqui. Aqui perto de minha

cabeça.

Zé esticou as pernas como se mil demônios o esti­vessem dilacerando, quando sentiu seu membro babo­so ser sugado pelos lábios rubros da patroa, que o en­volvia numa quentura abrazante, fazendo-o inchar ro­bustecido, forte e mais uma vez vitorioso. Zé pensou até que ia fraquejar na virilidade, quando viu suas mãos negras, de unhas sujas alizarem a cortina de cabelos de seda que caiam cobrindo quasi toda a calça imunda que cobria as suas raquíticas pernas. Sentia o coração bater em gestos desordenados e quando começou a em-

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purrar a cabeça de Cris, fazendo-a quase se engasgar, com o seu enorme pênis, Zé levantou os braços para o ar, abriu as pernas e novamente se sentiu dono. Assim, com o sexo inteirinho dentro da boca da patroa, era o dono do universo.

— Venha agora Zé.

Por um segundo ele sentiu o ar perfumado e mor­no da tarde que caia envolver seu membro úmido de saliva. Mas foi realmente um segundo, pois logo, estava experimentando o palpitar ardente das carnes em de­lírio. Novamente, Cris se entregou toda.

— Gozamos juntos Zé. Zé saiu dela e quando ficou de pé sentiu que os

seus joelhos tremiam. — É a posição é bem desagradável. Cris, sorriu puxando o roupão e se cobrindo, en­

quanto Zé sapateava na grama dizendo. — Estou sentindo um formigamento subindo pelas

pernas. — Você não irá sentir mais. Zé parou. Zé arregalou os olhos. — Porque a senhora diz isso? — Porque de hoje em diante você virá ao meu

quarto. O coração de Zé estufou.

Cris levantou-se empurrando com os joelhos a es­preguiçadeira e jogando o roupão para longe, caiu na piscina, e começou a nadar. Ia e vinha em braçadas es­paçosas, batendo furiosamente os pés. Virava de costas e deixava se boiar, batendo as pernas esticadas leve­mente, fazendo a água formar uma sucessão de círcu­los. Apertava os olhos contra os raios do sol que se infiltravam através das árvores. Depois voltava-se e re­começava a nadar, sem olhar uma única vez para Zé que estacou como que abobalhado sem despregar os olhos do ventre, dos seios, das nádegas do rosto, dos dentes que apareciam e desapareciam nas águas agita­das. Quando Cris saiu da piscina, Zé embebeu com os

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olhos esgazeados todos os carocinhos que se formavam no corpo da patroa enquanto ela ficava a tirar contra a luz do sol que teimava em sombrear aquele recanto da imensa fazenda. Cris jogou os longos cabelos, numa restea de luz quente, e os enrolou, torcendo-os de leve. Depois os sacudiu jogou-os para as costas. Vestiu o roupão e seu olhos encontraram os do negro.

— Ué. Ainda ai? Voz fria. Zé estremeceu desajeitado. Não soube o que res­

ponder. Sabia que sua figura estava parecendo a de um espantalho. As calças encardidas seguras por um cinto com o couro todo esfacelado e bem enrugado, em volta dos buracos onde antigamente existiam alguns ilhoses. Sentia que um friozinho entrava pela braguilha aberta, sem um botão. Zé ficou até com vontade de dar uma olhadinha para ás águas da piscina onde eles ti­nham caido, mas não teve coragem. Os olhos da patroa o magnetizavam. Sentia a boca larga e cheia de lama de calça enroscar nos seus pés nús, onde crostas de barro no meio dos dedos o impediam de andar direito.

Zé queria levar à mão a camisa de pano barato, meia rota nos cotovelos para cobrir o magro peito. Mas o olhar da patroa. O olhar da patroa o deixava imóvel, letárgico, com aquele sono o amolecendo todo.

— Ainda aí. O que você quer? Seca, petulante, altiva, orgulhosa. A mão que aper­

tava o coração de Zé foi se enrijecendo, endurecendo. Ele sentiu uma dor tão forte que nem aguentou a bri-zinha abafada que o cobriu devagar e cambaleando se­gurou o nada que se tornou imenso diante dele. Nada, nada. Nada teria acontecido minutos atrás? Teria ou não teria feito sua carne dura, reta, pulante entrar no meio das pernas daquela mulher ai na sua frente? Estaria ele sonhando? Não teria sentido sua esperma jorrar quente, espumoso, pegajoso nas entranhas escancaradas da bela dama da sociedade que estava ali na sua frente? 0 que estaria acontecendo? Seus lábios grossos, molha­dos da viscosa baba que abundava, saindo dos tocos d o c

dentes, se abriram para murmurar.

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— O que aconteceu? Cris espantou-se.. — O que aconteceu? Seus vermelhos e carnudos lá­

bios se cobriram de um ricto de desdém. — Não estou compreendendo; — A senhora estava t ã o . . . , tão boazinha. A t é . . .

até me bei jou . . . A g o r a . . . Cristina continuou a olhá-lo com os olhos cheios de

espanto e permaneceu imóvel com as duas mãos duras, paradas no cinto do roupão que tinha começado a en-lacear.

O que estaria dizendo aquele homem? Em que pensava... Era um estranho ela o desconhecia. Mas o que estaria fazendo ai, tão próximo dela? Os olhos de Cris o percorreram dos pés a cabeça. E lá dentro num frêmito suas carnes se envolveram calmas, passivas, dor­mentes, trazendo para seu espírito uma onda de alegria de prazer. Ele, aquele fragelo de homem, sujo, maltra­pilho e que estava na sua frente, era o calmante de suas carnes. Cristina sorriu. Sim as carnes estavam saciadas. Saciadas por enquanto.

Terminou de amarrar o cinto do roupão e sacudin­do os cabelos para as sombras da noite que desciam, falou.

— Venha ao meu quarto. É o último do corredor. Saiu correndo, deixando no ar o cantarolar de um

trecho do Concerto de Violões e Orquestra de Castel-nuovo Tedesco.

X X X

Um calafrio perpassou pelo corpo de Zé, quando ele deixou o pequeno quarto e saiu para o negror da noite, que se fechava, cheia de estrêlas mas sem lua. Zé não sabia as horas, mas já devia ser quase meia noite, pois há muito que os colonos deixaram a cantoria e a música desafinada do violão.

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Zé andou um pouco e sentiu-se cercado de uma transparência escura, que tirava a forma de tudo. Ele olhou para o céu, que parecia tão baixo, pois tinha-se a impressão que era só esticar o braço e se poderia pegar uma das estrelas que se misturavam em um amontoado luminoso.

— Pôxa, quantas estrelas! Zé nunca tinha reparado em céu de fazenda. Ele começou a caminhar ao modo dissimulado. Só tinha medo que alguém o visse cami­nhar para a casa grande. Mas como o serviço de colo­nos era um serviço tão pesado, ele duvidava que algum poderia estar espreitando alguma coisa. Deviam é es­tar roncando aos quatro ventos. Zé achou melhor dar a volta pelo bosque e chegar a casa grande por trás. Assim andou, andou pisando na grama úmida, na terra molhada, se enroscando nos gravetos e se molhando nos matos baixinhos. Subiu um morro alto e relanceou o olhar pelas inúmeras formas escuras que avistava ao longe. No vão de sua vista apertada, ele divisou o casa­rão silencioso e escuro e precisou apertar o lugar do coração, quando pensou que logo mais estaria num da­queles quartos, com a patroa em seus braços. Naquele momento, Zé sentiu que já não poderia viver sem as car­nes úmidas, macias e perfumadas de Cris. Sim ela o atraia como um imã e a necessidade da carne ferveu dentro dele, fazendo-o descer em desabalada carreira o morro abaixo. Chegou esbaforido no vasto alpendre flo­rido que rodeava-todo o casarão.

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Lentamente, silenciosamente, galgou os dois largos degraus que o conduziram a imensa sala assoalhada de largas tábuas que rangiram aos seus pés descalços com as unhas impreguinadas de sujeira.

Zé estacou no escuro com os ouvidos atentos. Tudo em completo silêncio, só ouvindo as pulsações violen­tas, irascíveis, de seu coração.

Segurou firme alguma coisa à sua frente. Era o espaldar de uma cadeira.

Afastou-a com cuidado e recomeçou a andar em pontas de pé, deslizando suavemente. Agora seus olhos já se acostumaram às trevas, e ele pôde ver um monte de portas perfiladas pelo comprido corredor. O último do corredor. Ah!

Era aquele ali. Porta larga, de uma só folha e esta­va semi-cerrada, então Zé esticou a mão direita e fez uma leve pressão e ela, se abriu chiando nas dobradi­ças.

Escuro de breu. E agora? Onde seria a cama? Zé cheirou o ar, arreganhando os lábios grossos e um aro­ma suave de perfume entrou pelas suas narinas dilata­das e invadiu todo o seu ser fazendo-o tontear de pra­zer.

Ele estava sentindo o perfume da patroa que esta­va talvez um passo de seus braços. Fez os pés escorre­garem em várias direções até que seus joelhos bateram de leve na cama.

— Quem está aí? A luz clara invadindo tudo. Cris envolta em nuvens

alvíssimas lençóis em cambraia de linho, entremeados de rendas e flôres e vestindo uma camisola de seda bordada. Tinha os cabelos soltos aos ombros e um sor­riso de criança na boca bem feita que emoldurava a fi­leira de dentes alvos.

Zé parado, pregado, respirando aos solavancos, não conseguia controlar o barulho de idéias desordenadas, que balançavam, misturavam, confundiam-se-lhe no cé­rebro agitado. Cris. A sua Cris, ali rodeada de luxo.

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— Eu quero ter relações sexuais com uma mulher da alta-sociedade, numa cama macia, com lençóis de seda, rendas, veludos e bordados. Vocês ouviram gente. É isso o que o Zé quer. O Zé não gostou de foder a Laura. Mulher cheia de formas. Cheia de Carnes. Zé quer mulher de classe. As gargalhadas do submundo paulista a lhe martelar os ouvidos. Zé apertou a cabeça com as duas mãos.

Não estaria ele sonhando? Estaria mesmo, no quar­to da alta-classe, indo ao alcance de sua mão, uma mu­lher de pele cetinosa que usava um delicioso perfume que o fazia perder a razão? As mãos de Cris procurando as suas. Era verdade. Ele sentia-lhe a maciez das mãos quentes, que começaram apalpar-lhe o sexo reto de de­sejo.

— Eu estou muito sujo, dona Cristina. Vim pelo lado do mato com medo que alguém me visse. Olha es­tou coberto de carrapichos.

— Não tem importância. Deite-se. Zé deitou todo encardido e não teve coragem nem

de mexer um dedo enquanto ela lhe desabotoava a bra­guilha e puxava-lhe as calças até os pés.

— Levante os pés. Cris jogou longe a calça enlameada e de joelhos

admirava a beleza do negro.

— Ah! É enorme, como é grande! Murmurou Cris­tina esfregando o rosto no cetro negro, reluzente que se esticava fazendo estoar o sangue em suas veias. Que delicia encostar a minha face e sentí-lo latejar, latejar.

Veja Zé. Isso é o amor. Se você não gostasse de mim ele estaria pequenino, insignificante, todo enco­lhido ai no meio de suas pernas. Você gosta de mim não gosta?

O cérebro de Zé, estava excitado; o raciocínio há milhares de metros. O que poderia responder?

Cristina caiu por cima dele, entreabriu as pernas, passou-lhe o braço em redor do corpo sob a camisa e

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cada vez mais fora de si, mais atrevida se esfregava, multiplicando, aquele descer e subir de nádegas, até que se sentiu derrubada para o lado, tendo o negro por cima. Macho bestial, insolente, que a cobria de beijos molhados, achatando seus lábios e enfiando-lhe a língua pela boca a dentro, num misturar de saliva que deixava jorar espuma pelas bocas.

Cada vez o negro mais se exaltava. Largava a boca e descia pela garganta em lambidas pegajosas até que sentia os bicos arrebitados dos seios e ai parava chu-pando-os, mordendo-os, fazendo a patroa dar berros que se perdiam ao longe. Cristina se torcia, retorcia se requebrava, esticando as pernas, dobrando as pernas, ofegante, molhada. Fraqueava-lhe os nervos, descaiam-Ihe os membros, pendia-lhe a cabeça.

— Zé, outra vez.

Zé cobria-lhe o corpo com seu físico raquítico e fa­zia sua grossa carne entrar e sair até vê-la entregar-se novamente, em gritos de prazer.

— Outra vez Zé.

X X X

Zé retomava o papel de atacante.

X X X

— Pode ir Zé.

X X X

Zé caiu duas ou três vezes antes de chegar em seu quarto, as pernas estavam frouxas, moles e trêmulas.

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Cristina deu ordens as empregadas que providen­ciassem um quarto para Zé dentro do casarão. Um quar­to bem perto do seu.

Neste dia chegou a mãe de Cristina acompanhada de vários amigos, que logo tomaram conta da casa, en-chendo-a de risadas, gritos e falas altas.

Máquinas fotográficas, rádios, toca-discos, fitas, dis­cos, raquetes, tacos, chapéus, roupas, tudo jogado de lá prá cá.

Escolheram os quartos.

— Não mamãe. Esse que não. Cristina de pé na porta impedia a entrada dos amigos.

— Mas porque? Quem dorme ai? — É o Zé. — O Zé? O . . . o . . . o . . . negrinho!!? — É mãe. — Mas dormindo dentro de casa. — A fazenda é cheia de perigos. Ainda ontem um

vagabundo, ninguém sabe de onde surgiu estava dentro de casa. Bem, b e m . . . bem lá dentro do banheiro.

— Incrível! Meu Deus! Mas agora estamos rodea­dos de homens. Veja quantos.

Um dos moços já era antigo fã de Cris, era um dos quatro que vieram sem a mulher. Os outros amigos for­mavam três casais.

— Mesmo assim é necessário que Zé durma dentro de casa.

— Por esses dias não há necessidade Cristina. Eu tomarei conta de vocês — exclamou Charles o preten­dente de Cristina, apertando-lhe fortemente o braço.

A idéia não desagradou Cristina. Afinal era um consolo ter um homem fino, elegante, branco, bonito, culto e bem vestido ao alcance da mão.

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Os dentes dela brilharam. — Está bem Charles, você vai ocupar esse quarto

bem perto do meu. — Bendita sejas, minha Cristina. Novas gargalha­

das.

A alta-sociedade estava ali envolta em mato. Pas­seavam, jogavam, nadavam e à noite ficavam sentados no grande salão, apunhalando-se com diálogos ferinos. Um procurava ferir mais o outro escolhendo belas pa­lavras para se impor aos olhos dos demais. Todos ali eram milionários. Gente que nunca soube o que era a fome, frio ou maus tratos. Gente que nasceu e se criou no meio do ouro. Mas essa gente assim que se separa­vam diziam horrores uns dos outros.

Cristina alegre e bem disposta, tomava parte na conversação quando sentiu os olhos de Charles em cima dela.

Ela sorriu. — Vamos dar uma volta ao luar, Cris? A voz dele correu pela sala e todos aprovaram. Os dois sairam andando sem rumo pela imensidão

de verdade envolto em um luar bem claro. — Não sei como você aguenta tanto tempo longe

da cidade. — Juro que nem sinto falta. — Pode ser de Belo Horizonte, pois o lugar que

você mora é bem tranqüilo. Mas em que eu moro em plena Av. São Luiz, lá em São Paulo.

— Você devia estar feliz, por Deus estar lhe propor­cionando uma noite maravilhosa dessas. Olha que aqui só tem chovido. E ainda fala mal. Disse Cris em tom de brincadeira.

— Agradeço a Deus por estar com você. Os dois olharam o céu coalhado de estrêlas e Char­

les continuou. — Sabe Cristina, desde o seu desquite que venho

tentando me aproximar de você. — Agora está próximo. Cris se agitava toda, fazendo-se coquete.

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— Estou pensando em me desquitar. — Jura? E por que não se desquita? — Se você autorizar. — Autorizo. — Jura? — Juro. — E você casará comigo? — E meus filhos? — Ficarão conosco. — Meu ex-marido tem mais dinheiro do que você — Você é que pensa. — Eu vou pensar. Ele a fez ficar de frente e apertando-lhe os braços

falou sincero.

— Juro, Cristina que poderei lhe dar toda a feli­cidade que você aspira. Toda a felicidade coberta de prazeres, de jóias, peles, roupas, carros, palácios, ia­tes . . .

— Você acha que isso é a felicidade? — Não Cris, mais tudo isso é fiador da felicidade.

Felicidade eu acho que é quando vem com os nossos corações num mesmo elo. E quando dois seres se en­tendem perfeitamente naquela fricção mental . . .

— Prefiro não falar sobre isso Charles. Amor é uma coisa muito complicada. Vamos mudar de as­sunto. Mamãe me disse que você veio a pedido dela, pois da última vez que ela veio a fazenda me achou magra, irritável, doente. Eu lhe agradeço. Sei que você e mamãe, querem que eu saia da fazenda. Principalmen­te mamãe. Ela não se conforma por eu estar perdendo tantas festas, viagens e situações sociais das mais van­tajosas. Mas eu já expliquei a ela que voltarei logo que estiver mais forte.

— De fato você está bem magra, mas seus olhos tem um brilho de alegria. Não creio que esteja tão doen­te.

X X X

A passos eles voltaram para a casa grande.

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— Posso ir a seu quarto Cristina. — Pode. Charles começou a tirar as roupas caríssimas e co­

locá-las bem dobradinhas em cima de uma cadeira, fi­cando só de cuecas.

Delicadamente, deitou-se ao lado dela. Até que Charles não era dos piores. Foi carinhoso,

lascivo e potente, mas. — Porque você não gozou junto comigo? — Porque você goza muito depressa. — Quer que recomece? — Quero. Ele entrou calmo, chegou ao orgasmo e saiu calmo

sem que Cris pudesse se realizar. — E agora gozou? — Gozei. — Nem pareceu. Você é tão fria. Não ouvi nem

um gritinho. Cris apertou os lábios, não queria dizer que ele,

não tinha lhe despertado nem um pingo de atração se­xual. Ou melhor que ele não soube fazer que suas car­nes despertassem.

X X X

No dia seguinte, quando todos sairam para um pas­seio a cavalo ela foi a procura do negro.

— Venha ao meu quarto hoje à noite. Zé arregalou os olhos, e o sorriso de dentes podres

se alargou. Todas as noites entrava na casa-grande e pé ante

pé, entrava no quarto da patroa e fechava a porta por dentro.

Com o passar dos dias todos viam surgir uma nova Cristina. Engordava. Andava calma, alegre, risonha. O corpo ia se cobrindo de uma pele rosada, que volteava os braços roliços, as coxas grossas, os seios duros e pontudos.

A mãe ria satisfeita. — Pôxa, filha. Você tinha razão. O ar do campo é

uma maravilha. Você deve ficar mais algum tempo.

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Hoje parto com a turma.

X X X

Cristina em absoluta liberdade, fez com o negro passasse a residir no casarão e aí o usava de dia e de noite.

Uma noite sentou-se a beira da cama nua e chamou o negro.

— Tire a roupa Zé. Zé nú em sua frente com a coisa dura e reta como

sempre. — Estique a língua Zé. Quero vê se ela também

é comprida.

A língua roxa e comprida fora da boca de Zé. — Beije os meus pés Zé. Zé ajoelhado trêmulo, beijava um a um os dedos

róseos, subindo depois para o pé, as pernas e quando chegou nas coxas, Cris caiu para trás.

— No meio das coxas Zé.

Zé levantou-se com a respiração apressada, e ner­voso, brutal caiu em cima da patroa e enlaçando-a com os braços apertava-a de encontro ao seu corpo numa tentativa louca de penetrá-la logo. Mas Cris, fazia um esforço tremendo para desenlaçar-se gritando.

— Ainda não! Ainda não! Assim não quero! Quero do outro jeito.

Mas Zé não ouvia. O macho insolente, faminto, ar­dente, crescia dentro dele, lhe dando forças de mil demônios e encontrando as carnes úmidas, entrou vito­rioso, abrindo em solavancos tudo o que queria, sugan­do os lábios de Cris impedindo que seus gritos fossem ouvidos pelos empregados. Banhado de suor saiu de dentro e sem desgrudar o seu corpo do dela foi escor­regando e beijando o pescoço, os seios, o ventre e abrin-

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do-lhe de um arrancão as pernas enfiou sua língua na maciez das carnes. Lambia, chupava, mordia, fazendo a patroa se retorcer em fogo vendo um milhão de discos luminosos que a fazia desmaiar. Ai todas as noites Cris­tina queria assim.

Zé evitava o contato com Lourdes e os outros em­pregados. Estava o dia todo aos pés da patroa. Só nas horas das refeições é que se separavam.

Nestas ocasiões Zé pegava o prato já feito e corria se trancar no quarto. Um dia almoçava com o prato no colo dentro do quarto quando surgiu o rosto da mula­tinha na janela.

— Sabe Zé, matei o seu porquinho. Zé pulou deixando o prato cair no chão, branco

como um defunto. — O que você falou!? — Matei o Rabicó. — Você está brincando. — Não estou não. Também você não ligava mais

pra ele.

— Você não se atreveu a matar o meu porquinho. Zé arregalava os olhos e apertava a mão até as

unhas entrarem nas carnes.

— Matei sim. Matei porque você é um cachorro. Um cachorrinho que vive sacudindo o rabo pra dona Cristina.

— Cale a boca. — Calar porque? Todo mundo sabe. E tem mais,

todos o chamam de "Perdigueiro". O Tição Perdigueiro. O cachorro que não sai de cima da cadela. Eu vejo você todos os dias no mato.

Zé pulou a janela e saiu correndo atrás da negri­nha.

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— Zé. Zé. estacou como fulminado e olhou para trás. — Venha cá Zé. A voz de Cristina. A voz da negri­

nha. — Matei o seu porquinho. Matei o seu porquinho. A voz da negrinha que pulava no meio do campo

batendo uma mão fechada na outra aberta. — Que foi? — Nada. — O que ela queria? — Cachorro. Cachorro perdigueiro. Sacuda o rabo

prà lá e pra cá. — Que atrevida. Lourdes, mande essa menina para

bem longe. Não a quero ver por esses lados. — Sim senhora. — Venha Zé. — Ê . . . é . . . que o meu porquinho. — Posso beijá-lo? O sorriso de Cristina matou a

imagem do porco.

X X X

Dois meses de mato e voltaram para Capital. Zé continuou a ronda e Cristina as festas, as via­

gens a sociedade! Zé dificilmente via Cristina. Aliás a via quase todas

as noites entrando na mansão em carros luxuosos de seus inúmeros amigos, pelo portão grande de ferro que ele abria correndo.

— Alô Zé. Tudo bem? Essas palavras da patroa e nada mais. Zé passava os dias em claro, ralado de ciúmes e as

noites de ronda ia e vinha com o coração pesado como chumbo, só acelerando desordenadamente quando ele ouvia as buzinadas do carro que anunciava a sua che­gada. Nestas horas Zé corria como um doido, alongan­do o olhar através do portão, à espera, a todo momento,

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de um. — Venha ao meu quarto. Zé antegozava o pra­zer de sentí-la estremecer em seus braços com as car­nes nas carnes, trêmula e se torcendo em convulsões, quando ele pedia. Abra as pernas dona Cristina. Quando via que não era ela, abria o portão de má vontade sen­tindo as pernas moles, lerdas, retardadas e recomeça­va a vigilância com calafrios percorrendo-lhe o corpo todo.

Uma noite não aguentou. Deixou o portão escan­carado e foi para mansão. Sabia que Cristina não esta­va, mas queria pelo menos sentir o suave perfume que ela usava. Entrou na casa, atravessou as luxuosas salas. Derrubou na afobação, uma jarra de grande valor, es­condeu os cacos dentro de um enorme vaso que estava colocado ao lado da lareira e entrou no quarto da pa­troa. Empalideceu, encostou-se a porta para não cair. Que seria aquilo? Cristina abraçada a um homem, dor­mia a sono solto. Zé se sentia estraçalhado por um mundo de feras, que abocanhavam suas carnes com os dentes ponteagudos, feito pontas de punhais e arranca­vam nacos deixando-lhe o corpo cheio de buracos san­grentos. Curvou-se segurando o estômago e de sua gar­ganta brotou um gemido rouco como o grito de alguém que vai se despencando num abismo. Cristina e o ho­mem acordaram sobressaltados, e sentaram rápidos na cama. Dos lábios dela surgiu a pergunta.

— O que você quer aqui?

Zé conseguiu erguer devagar a cabeça e arregalou os olhos quando leu nos olhos dela, ódio e desprezo. Ele via ela ali, ali junto com outro homem. Outro homem que tinha, entrado nela, outro homem que tinha beija­do os seus lábios carnudos. Outro homem a tinha sub­metido a todos os seus caprichos.

Zé apertava mais o estômago que se contraia quasi o matando de dor.

Fechou os olhos para não ver mais nada. — Responda Zé. Como foi que Você se atreveu a

entrar em meu quarto?

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Á voz do homem.

— Quer que eu chame a polícia? Zé abriu os olhos esgazeados e viu diante de si

Cristina e o homem dançarem no meio de uma neblina cinza-clara. Sentiu que tudo lá dentro se revolvia dolo­rosamente. Fez um tremendo esforço para voltar ao parque e recomeçar a ronda. Não aguentou andar, sen­tou num banquinho perto do portão, perdeu a cabeça sentindo que as lágrimas caíam de seus olhos que ar­diam como brasa.

Nem sentiu o amanhecer. E ficaria o dia todo aí sentado se não tivesse ouvido a voz áspera e autoritá­ria do homem que deixava a mansão dentro de um carís­simo carro.

— Abra o portão, seu atrevido. Outra vez que você entrar naquela casa, mando lhe prender e peço aos ti­ras para lhe darem aquela surra.

Zé arregalou os olhos. Deixou a ronda e foi para casa. Pedro seu amigo ainda dormia. Zé chegou e se sentou na beira da cama fazendo Pedro acordar.

— Oba Zé. Já voltou? Mas ainda são cinco horas. Zé torceu as mãos angustiado. — Ê que, é que. — Ela lhe deu um pontapé?

Pedro jogou as pernas no ar e com um impulso levantou-se e cantarolando, só parando de vez em quan­do para voltar a cabeça para o lado de Zé e gritar!

— Isso passa, isso passa. — Como é que você sabe? — Lourdes esteve aqui. — Ah.

Pedro bateu-lhe nos joelhos.

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— Isso passa amigão. Essas mulheres desquitadas são assim mesmo. Elas abrem o útero para a gente en­fiar o pau e depois, saciada a carne, fingem que nem nos conhece. Ai somos negros, fedidos e nojentos. A filha da minha patroa fez isso comigo. Mas eu não ligo. Eu também aproveitei bastante.

X X X

Mas Zé não esqueceu. Procurou de todo o jeito ali­mentar a ilusão que estourava dentro dele, de ainda po­der voltar a ter a fabulosa mulher em seus braços. E dia após dia, Zé perseguia Cristina, que se escondia dentro da mansão.

Espiava por todas as frestas para vê-la em qual­quer situação.

Cristina morria de raiva e já estava perdendo a paciência.

Uma noite encontrou Zé dentro do banheiro e cha­mou a polícia. Zé ficou um dia preso e quando voltou encontrou um outro rondante.

Zé endoidecia. A lembrança de Cristina era um ve­neno para o seu organismo. Não se importava com na­da. Polícia, amigos da patroa, a família e o revólver que Cristina comprara, eram coisas tão insignificantes diante de seu grande amor. Zé multiplicava os jeitos de se encontrar com a mulher que o estava enlouquecendo de amor. Não comia, não dormia, não trabalhava, não se cuidava. Só tinha um pensamento.

Cristina.

Mais uma vez, entrou no quarto da ex-patrôa. Ela estava só. Frente a frente, Cristina, lívida, feições tre­mendamente contraidas, pegou o revólver de cima da cômoda e apontou para Zé.

— Saia daqui.

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A garganta de Zé queimava. — Não posso viver sem a senhora. Deixe-me voltar

a ser rondante, só isso. Juro que não a perturbarei de jeito nem um. Quero só saber que estou perto da senho­ra. Pelo amor de Deus, dona Cristina, eu a amo. Amo muito, mas juro que jamais a perturbarei, só quero o meu emprego.

— Não o quero mais perto de mim. Você está fe­dendo. O seu fedor me dá náuseas. Saia, saia, saia.

Zé arregalou os olhos. A imagem de Cristina era igualzinha a da prostituta Laura, lá do submundo de São Paulo. Zé até ouviu quando Rui gritava.

— Porra, Laura, você nem lavou a bunda. Está to­da engruvinhada. Como é que Zé vai entrar aí?

Alta-sociedade. Zé começou a rir, rir, rir até que o riso se tornaram em estrondosas gargalhadas.

— Sai Zé, sai já. Senão eu atiro. Zé lhe virou as costas mastigando a gargalhadas e

falou.

— Eu volto dona Cristina. Eu volto.

X X X

Cristina colocou o revolver debaixo do colchão. Mandou a empregada encher a banheira e misturar na água sais aromatizados. Deitou-se na água lépida pen­sando de que modo poderia se livrar do negro. Cismou algum tempo até que dentro de seu cérebro alguma coisa estalou. Pulou da banheira fazendo a água cair para to­dos os lados, e saiu correndo para a sala, pegou no te­lefone e ligou para Lucas.

Vestiu-se, e penteou-se com esmero. A maquiagem foi bem suave. Lucas não gostava de exageros. A última vez que não o quisera receber ele chorara muito lá do outro lado do portão. Do lado da rua logicamente.

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Uma freada brusca na entrada da mansão foi o aviso de sua chegada.

Cristina veio linda e mui-saltitante fazendo o vesti­do de gaze chifon todo plisado esvoaçar no ar perfu­mado das embriagantes flores colocadas nos inúmeros vasos espalhados pela escadaria, que ela desceu de dois em dois degraus, para oferecer seu lábios rosados a bo­ca ressequida do homem que a amava loucamente. Des­te dia em diante começou a ser vista em todos os luga­res em companhia do Prado Assunção — "Lucas".

X X X

A noite caia envolvendo de sombras o bosque entre­meado de canteiros emplastados de margaridinhas que desabrochavam em mil cores. Cristina caminhava no rendado de luz que marcava as folhas amarelas que caiam como pingo de chuva aqui e ali no emaranhado de árvores do bosque. De repente de uns tufos de mio­sótis surgiu a figura magra e triste de Zé. Cristina não se assustou, pois era isso mesmo o que ela queria. Um encontro com negro. E sabia que ele passava a maior parte de sua vida, escondida no mato para vê-la e puxar com força o ar que tinha enroscado lá dentro de seu peito.

— Alô, Zé. Zé arregalou os olhos. — Venha às seis horas no meu quarto. Não deixe

ninguém vê-lo. Eu te amo muito. Não diga para nin­guém. — Ê um segredo meu e teu. De três batidas no carro que eu abro a janela.

Cristina virou as costas e saiu correndo, mato a dentro deixando Zé, quasi morto, pregado, duro no mesmo lugar.

X X X

Lucas chegou cedo e Cristina lhe serviu um drin­que.

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— Então Cristina posso pedir o desquite?

— Não sei Lucas. Ainda preciso pensar.

— Mas pensar o que? — Eu a amo muito. Muito mesmo. — Desejo renunciar minha mulher e meus fi­lhos por você e ainda você quer pensar.

— Eu também o amo, mas existe uma coisa que me matiriza. E eu não sei como me safar dela.

— Eu a ajudarei a resolver esse problema. Seja ele qual fôr.

— Será que você me ama tanto assim?

— Ouça-me querida.

Lucas se perdia em elevos, perto da mulher amada. — Já disse. Seja o que for eu resolverei. Para fazê-

la feliz, vê-la feliz seria até. — Até?

— Capaz d e . . .

Cristina bebia as palavras que saiam da boca do amante e as ia sorvendo devagar, aos golinhos dando es­talos com a língua.

— Matar.

O coração de Cristina balançou com um furor de tempestade. Atirou-se nos braços do amante e o beijou por todos os lados. Ele ria com a boca escancarada ao mundo, mostrando bons dentes. Lucas era bem simpá­tico, um boa pinta mesmo. Cristina abaixou a cabeça e disse, num murmúrio.

— É o ex-rondante. — O que tem ele? — Me persegue. — Porque?

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— Se diz apaixonado. — Que atrevido! Cristina começou a chorar. — Mas. .. Cristina meu amor. Não chore. Isso é

fácil. Falarei com ele.

— Não, não. Tenho medo. Se você falar, ainda é pior. Aí ele vai pensar que eu ando comentando sobre isso e vai se vingar.

Cristina se agarrou a Lucas. — Oh! Lucas tenho tanto medo. — Tens medo? — Tenho. — Não terá mais. Eu estou aqui. — Mas ele anda armado. Com um punhal deste ta­

manho. Afiadíssimo.

Já o vi, só de uma estocada, cortar uma árvore meio grossa pelo meio.

— Eu não tenho medo. — Mas ele é marginal. Viveu no lixo. Lá no sub­

mundo de São Paulo. Você já pensou? Cresceu no meio da escória. É malvado. Imagine você. Lá na fazenda, ma­tou um bezerrinho a pauladas.

Lucas deu um passo para trás. — Matou um animalzinho a pauladas?! O rosto de Lucas era de cera. Cristina o olhava de soslaio, mordendo a ponta do

lábio inferior.

— Isso não é nada. Cris sabia que Lucas era grande amigo e protetor

dos animais. — Imagine que deu diversas punhaladas em um

porquinho e o deixou largado no meio do mato. — Não?! Esse rapaz não tem coração. Não tem

sentimentos. Deve ser feito de ferro. — Não tem mesmo. Nem lhe canto o resto para

não o aborrecer mais. Sei que você é muito sensível. — Sou mesmo Cris. Sou incapaz de matar qual­

quer animalzinho. Nem mesmo um inseto ou melhor nem mesmo um réptil.

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O coração de Cris murchou. — Mas você disse que por mim seria até capaz de . .

— Matar?

— Isso. — Estou repetindo.

— Oh! Lucas. Amo-o mais ainda. Mais e mais. Cristina não parava de beijá-lo. Lucas se desprendeu delicadamente e falou alegre. — Agora vamos. Jantaremos fora. — Mas. — Mas!? — Ainda não lhe contei tudo.

Lucas olhou-a interrogativamente. — Ele disse que viria essa madrugada para me ma­

tar. — Não acredite, querida. — Mas e se ele vir? — Eu estarei aqui. — Estará aqui? — Sim, de hoje em diante dormirei aqui para pro­

tegê-la. A g o r a . . . jantar.

Cristina se sentiu leve como uma pluma.

Jantaram e voltaram para a mansão.

Nesta noite ela foi o máximo em meiguice e ca­rinho.

Quando acabaram, Cris acompanhou Lucas ao quar­to de hóspedes.

— Mas é melhor eu dormir com você Cris. Assim poderei protegê-la melhor.

— Deixe eu ir me acostumando aos poucos, já es­tou habituada a dormir sozinha. E tem mais, pode pe­dir o desquite. Eu me caso com você.

Lucas nem teve forças para fechar a porta.

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Zé olhava para o despertador. Não tinha conseguido dormir como das outras

noites. Só que agora, não dormira de alegria. Levantou às quatro horas, tomou banho, vestiu a

melhor calça e a melhor camisa e saiu para . . .

Passos apressados, envolto na claridade embaçada, o cérebro emaranhado, o sexo ardendo.

— Alô Zé.

Ele nem reparara no jornaleiro que tinha uma ban­ca, bem perto da mansão. Sobressaltado virou-se.

— Oi, Pascoal. — Aonde você vai tão cedo? — Vou na casa de dona Cristina.

Zé arregalou os olhos. Tinha prometido que não falaria para ninguém. O segredo era dela e dele.

Zé bateu na boca. Apressou o passo. Chegou no grande portão de ferro.

Silêncio. Onde estaria o rondante? Zé contornou a mansão.

Silêncio.

Zé pulou a grade e se esgueirando para o casarão. Passou pelo mato baixo e uma porção de carrapichos grudaram em suas calças. Pé ante pé, ele entrou na garagem e sem parar um minuto para amenizar a can­seira que o envolvia deu três batidas no carro.

A janela se abriu, ali bem perto da garagem. Zé pu­lou para o quarto.

O perfume quente, a cama de linho, sedas e rendas e a mulher nua aveludada deitada de ventre para o in­finito.

O cetro pulou duro, fazendo os botões da bragui­lha pularem longe.

— Posso tirar a calça?

Zé varou a flor vermelha que escancarava diante de­le. E enfiou tudo, tudo, sentindo que a penetração era uma penetração de calma para sua alma torturada. Zé estava feliz. Zé estava na cama da alta-sociedade.

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Alta-sociedade. Que gente boa! Que gente limpa! A patroa então era uma verdadeira santa. Não tinha pre­conceitos nem um. Ela gostava dele e ele gostava tanto dela . Poxa e tinha gente que duvidava da alta-classe. Ele adorava a alta-sociedade. Não ia permitir nunca mais que alguém falasse perto dele da alta-classe. Alta-classe. A l t . . . Zé levantou a cabeça e apurou os ouvidos! Cristina estava gritando ou estaria sonhando?

Cristina gritava.

— Socorro, socorro! O Zé está me violentando. So­corro.

Zé deu a última estocada. O esperma jorrou abun­dante.

Nos estertores da carne, Zé puxou o sexo molhado, pingando esperma nas carnes sedosas da amante, na ma­ciez da cambraia de linho, na seda da colcha. Pegou a calça grosseira de brim e enfiou apressado. Abotoou a camisa falhadamente. Quando ia pegar o cinto, Lucas assomou à porta. Zé segurando o cós da calça com uma das mãos correu em direção à janela.

Cristina apanhou o revólver de sob o colchão e o entregou para Lucas gritando.

— Mate-o. Mate-o. Ele enfiou essas carnes imundas em mim. Olhe, olhe, Lucas. Estou toda suja de esperma.

— Lucas! Zé parou com a mão na patente da janela. — Lucas! Lucas pegou o revólver das mãos acetinadas de unhas

longas e bem pintadas. — Toma. Mate-o Lucas. Vamos ande. Aproveite que

ele está de costas.

Zé ficou indeciso. Pularia à janela? Ou viraria para conhecer o Seu Lucas? Mas seria o Seu Lucas, o patrão e amigo de seu pai? Seria o Artamiro do Prado Assunção?!

— Vamos Lucas. Mostre a esse negro sujo que você

é Artamiro do Prado Assunção. Zé virou-se de um ímpeto, com os olhos esbugalha­

dos.

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A bala partiu do revólver acertando o magro peito do negro, fazendo-o oscilar. Zé largou as calças e ten­tou pular a janela. Já estava com meio corpo para fora quando recebeu um outro tiro pelas costas. — Zé pulou a janela. Zé num tremendo esforço conseguiu levantar-àe e virando-se para a janela arregalou os olhos para a figura de Seu Lucas que dançava num imenso nevoeiro. Zé recebeu o terceiro tiro.

— Ele estava falando alguma coisa Cristina.

Zé abria e fechava os lábios grossos, tentando fa­lar, mas apenas uns bálbucios envoltos em camadas de sangue escuro saiam de sua boca.

Mas a mente que se fechava para sempre deixou no ar seus últimos pensamentos.

— Eu já não quero ser igual ao seu Lucas. Ele é um covarde. Ele é um assassino. Não pensei que gente da alta-classe matasse por matar.

Zé já estava morto quando Lucas o virou com um pé. E agora Zé olhava para o céu com os olhos arrega­lados sem vêr o dia que surgia dourado e azul com um gorgear incessante de pássaros, que em revoada, baixa, passavam e repassavam por cima de seu corpo ensan­güentado.

— Ele está morto Cristina. Gaguejava Lucas. — E com três tiros, como você queria que estives­

se? Puxe ele lá para a rampa.

Lucas arrastava e as calças de Zé desciam. Agora estavam até os joelhos, mostrando o sexo murcho, arro­xeado e insignificante. Cristina torceu o rosto enojada.

— Ande logo Lucas. Deixe-o aí. Aí está bem. Cristina parou. — Espere. Espere um pouco Lucas. Correu para a mansão e voltou com uma faca de

prata, sem o mínimo corte. — Tome Lucas, bote na mão dele. Lucas colocou a faca. — Agora vá embora. Espere! Aonde está o revólver? — Ali na janela.

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— Meu Deus como tudo está cheio de sangue! Vá buscar um balde com água. Agora lave tudo Lucas. Ago­ra fuja. Deixe o resto por minha conta.

— Mas . . . C r i s . . . eu . . . — Não gagueje, pelo amor de Deus. — Está bem. — Vá, vá, Lucas, não atrapalhe. — Mas posso pedir o desquite? — Vou pensar. — Cristina?! — Pode, pode. Mas vá embora, vá embora. Pegue

o meu carro.

O ruido do automóvel ao longe.

X X X

Cristina passou as duas mãos para desmanchar a vasta cabeleira. Pingou colírio nos olhos. Muitas, gotas, escorriam pela sua bela face de seda. Toca o alarme.

A mansão se encheu de gente. — O Zé estava roubando e o Lucas o matou. — Bem feito. Negro atrevido. — Lucas lhe deu três tiros. — Só? Merecia uns cem. — Lucas ficou com pena.

— Que pena que nada. Essa gentinha devia ser es­folada viva. Eu não suporto nem a presença deles.

— Lucas fugiu. — Fugiu, para que? Matar a ralé não é crime.

Cristina enxugou o colírio que escorria abundante pelo rosto.

— Não chore Cris. Não chore. Essa menina sempre foi tão sensível. Coitadinha tem um nobre coração. Es­se cachorro. Esse negro vagabundo. Não sei porque aca­baram com o Esquadrão da Morte.

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X X X

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Cristina voltou da Sauna, já com as unhas e cabe-los arrumados. Vestiu um rico conjunto de calça e ja­queta côr-de-vinho, que mandara comprar em Paris para esse dia, e colocou no pescoço uma grossa corrente de ouro que sustinha um punhado de figas e dentes de marfim.

— Minha bolsa mamãe, não está ornando com a côr do conjunto.

— Ora Cristina, você está ótima. Cristina pegou a bolsa a tiracolo e deu uma volti­

nha diante do espelho. Sorriu. — Os advogados já chegaram dona Cristina. A voz da empregada veio de longe. — Vamos mamãe.

X X X Trinta minutos depois, Cristina acompanhada dos

advogados de defesa, penetrou na agitação do Tribunal de fisionomia bem triste apertando contra os olhos um mini sprey perfumado e as lágrimas de seus olhos, rola­vam pela maquilada face fazendo com a multidão de re­pórteres, fotógrafos e cinegrafistas que a rodeavam mor­ressem de pena, quando ela iniciou o depoimento.

— O Zé era um ladrão senhor Juiz. Já tinha inva­dido a minha casa e roubado diversos objetos de alto valor, inclusive um vaso que custou cinqüenta mil cru­zeiros. Lucas o matou porque o Zé quiz roubar mais uma vez a minha mansão. Ele avançou com a faca na mão. Lucas o matou. Mas o matou de frente.

X X X Uma hora depois o milionário Artamiro do Prado

Assunção, alto, forte com os cabelos implantados esvoa­çantes, adentrou o Tribunal.

Aí contou porque tremeu de medo diante do meni-no-homem, magro, fraco desnutrido que empunhava uma faca sem o mínimo corte.

X X X

Tempos depois, a justiça deu o vered i to . . .

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L E G Í T I M A D E F E S A -

X X X

A alta-sociedade estava absolvida.

X X X

Luzes, flores, música, risos, riquíssimas toiletes, ves­tiam a luxuosa mansão. Havia festa da vitória.

Cristina num longo branco, bordado a prata, dei­xou a multidão dos alegres convidados e com um copo cheio de bebida na mão foi até o jardim. Vagou pelas fileiras de arbustos, floridos. De repente frente a frente com um mulato tímido, nervoso e agitado, feio, magro e desdentado.

— Boa noite ,Senhora, sou o novo rondante.

— Como é seu nome?

— Sebastião, sim Senhora.

Cristina o olhou demoradamente e lá dentro dela qualquer coisa ferveu.

— Amanhã parto para a fazenda e você irá comigo, ouviu, Tião?

DIGITALIZADO POR LEANDRO MEDEIROS PARA DEFICIENTES VISUAIS X X X

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Í N D I C E

I Zé 13

II Laura a Prostituta 23

I I I Subterrâneo 41

IV Vera, criança vagabunda 51

V Assaltante mirim 95

VI A Dama 107

V I I O Rondante 121

V I I I Zé, o macho . 127

IX Alta Classe 145

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vida de nossas crian­ças. É, Adelaide, você merece as reverên­cias dos reis, pois, co­mo ninguém, você faz o governo ver os pro­blemas sociais. Como aconteceu com "Po­dridão", no grave pro­blema do menor na sociedade.

Juro, Adelaide, a primeira vez que cho­rei nos meus vinte e sete anos, foi lendo "Submundo da So­ciedade". É de arre­piar.

Com "Eue o Gover­nador", você conse­guiu a Casa de RECU­PERAÇÃO para os ex-tuberculosos po­bres. Com este livro espero que consiga que o Governo dê mais amor as nossas crian­ças abandonadas.

Como advogado, como escritor, como jovem rico e como gente, os meus respei­tos. SENHORA

ADELAIDE O A R R A R O

Dr. Alaor Landon Freitas

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Nos meus 27 anos de vida chorei pela p r ime i ra vez lendo este l ivro . . .

Dr. Luiz de Araújo advogado

É duro mexer nas fer idas da humanidade.

M a s , às vezes, é preciso. D i z e m que só o que arde , cura.

Por isso não tenho nenhum remorso de ter escr i to este l ivro.

Ade la ide C a r r a r o

A real idade deste livro arde c o m o fogo: se você não tiver um espír i to g igante , não o leia.

Se você não tiver mais de 21 anos,

não leia este l ivro. Fo i preciso que eu

t ivesse muito mais de 21 anos para ter a coragerm

de escrevê- lo .

Ade la ide C a r r a r o

Global

GE) editora e distribuidora ltda.